LEITURA DE FÉRIAS 2019 ESCRITORAS BRASILEIRAS · busto, com balas. Mas possuía o que qualquer...

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Retrato Eu não tinha este rosto de hoje, Assim calmo, assim triste, assim magro, Nem estes olhos tão vazios, Nem o lábio amargo. Eu não tinha estas mãos sem força, Tão paradas e frias e mortas; Eu não tinha este coração Que nem se mostra. Eu não dei por esta mudança, Tão simples, tão certa, tão fácil: — Em que espelho ficou perdida a minha face? (Cecília Meireles) ******************** Aninha e suas pedras Não te deixes destruir… Ajuntando novas pedras e construindo novos poemas. Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça. Faz de tua vida mesquinha um poema. E viverás no coração dos jovens e na memória das gerações que hão de vir. Esta fonte é para uso de todos os sedentos. Toma a tua parte. Vem a estas páginas e não entraves seu uso aos que têm sede. (Cora Coralina) ******************** LEITURA DE FÉRIAS 2019 ESCRITORAS BRASILEIRAS

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Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,

Assim calmo, assim triste, assim magro,

Nem estes olhos tão vazios,

Nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,

Tão paradas e frias e mortas;

Eu não tinha este coração

Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,

Tão simples, tão certa, tão fácil:

— Em que espelho ficou perdida

a minha face?

(Cecília Meireles)

********************

Aninha e suas pedras

Não te deixes destruir…

Ajuntando novas pedras

e construindo novos poemas.

Recria tua vida, sempre, sempre.

Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.

Faz de tua vida mesquinha

um poema.

E viverás no coração dos jovens

e na memória das gerações que hão de vir.

Esta fonte é para uso de todos os sedentos.

Toma a tua parte.

Vem a estas páginas

e não entraves seu uso

aos que têm sede. (Cora Coralina)

********************

LEITURA DE FÉRIAS 2019

ESCRITORAS BRASILEIRAS

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Casamento

Há mulheres que dizem:

Meu marido, se quiser pescar, pesque,

mas que limpe os peixes.

Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,

ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.

É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,

de vez em quando os cotovelos se esbarram,

ele fala coisas como “este foi difícil”

“prateou no ar dando rabanadas”

e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vez

atravessa a cozinha como um rio profundo.

Por fim, os peixes na travessa,

vamos dormir.

Coisas prateadas espocam:

somos noivo e noiva. (Adélia Prado)

********************

Motivo

Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

no vento.

Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me desfaço,

— não sei, não sei. Não sei se fico

ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

— mais nada. (Cecília Meireles)

********************

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O cântico da Terra

Eu sou a terra, eu sou a vida.

Do meu barro primeiro veio o homem.

De mim veio a mulher e veio o amor.

Veio a árvore, veio a fonte.

Vem o fruto e vem a flor.

Eu sou a fonte original de toda vida.

Sou o chão que se prende à tua casa.

Sou a telha da coberta de teu lar.

A mina constante de teu poço.

Sou a espiga generosa de teu gado

e certeza tranquila ao teu esforço.

Sou a razão de tua vida.

De mim vieste pela mão do Criador,

e a mim tu voltarás no fim da lida.

Só em mim acharás descanso e Paz.

Eu sou a grande Mãe Universal.

Tua filha, tua noiva e desposada.

A mulher e o ventre que fecundas.

Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor.

A ti, ó lavrador, tudo quanto é meu.

Teu arado, tua foice, teu machado.

O berço pequenino de teu filho.

O algodão de tua veste

e o pão de tua casa.

E um dia bem distante

a mim tu voltarás.

E no canteiro materno de meu seio

tranquilo dormirás.

Plantemos a roça.

Lavremos a gleba.

Cuidemos do ninho,

do gado e da tulha.

Fartura teremos

e donos de sítio

felizes seremos. (Cora Coralina)

********************

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Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,

desses que tocam trombeta, anunciou:

vai carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher,

esta espécie ainda envergonhada.

Aceito os subterfúgios que me cabem,

sem precisar mentir.

Não sou tão feia que não possa casar,

acho o Rio de Janeiro uma beleza e

ora sim, ora não, creio em parto sem dor.

Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.

Inauguro linhagens, fundo reinos

— dor não é amargura.

Minha tristeza não tem pedigree,

já a minha vontade de alegria,

sua raiz vai ao meu mil avô.

Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou.

(Adélia Prado)

********************

Felicidade Clandestina

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio

arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos

achatadas. Como se não bastasse enchia os dois bolsos da blusa, por cima do

busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias

gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de

pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da

loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos,

com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima

palavras como “data natalícia” e “saudade”.

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança,

chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que

éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres.

Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu

nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe

emprestados os livros que ela não lia.

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Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma

tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de

Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele,

comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me

que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu

não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me

traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num

sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para

meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu

voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve

a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando,

que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem

caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam

mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando

pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de

livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua

casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro

ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu

como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se

repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo

indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já

começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho.

Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer

esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer.

Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio

de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a

olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e

silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a

aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações

a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco

elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar

entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com

enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem

quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia

ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a

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potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à

porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se

refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora

mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.

”Entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo tempo que eu quisesse ” é

tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro

na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como

sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas

mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa,

também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para

depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas,

fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com

manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por

alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina

que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece

que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… havia orgulho e pudor em

mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo,

sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu

amante.

(Clarice Lispector)

********************

Eu sei, mas não devia

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter

outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se

acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma

a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma

a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece

o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na

hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus

porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá

para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque

está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando

a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os

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números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas

negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa

duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não

posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser

ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.

E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que

precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a

saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais

dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e

ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir

publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável

catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e

cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam

na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar.

À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de

madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter

sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses

pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um

ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na

primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente

molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se

consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que

fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono

atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.

Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e

baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que

aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

(Marina Colassanti)

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Amor

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Outro dia liguei o rádio e ouvi que faziam um concurso entre os ouvintes

procurando uma definição para amor. As respostas eram muito ruins, até dava

para se pensar que nem ouvintes nem locutores entendiam nada de amor

realmente; o lugar-comum é mesmo o refúgio universal, que livra de pensar e

dá, a quem o usa, a impressão de que mergulha a colher na gamela da sabedoria

coletiva e comunga das verdades eternas. O que aliás pode ser verdade.

Mas a ideia de definição me ficou na cabeça e resolvi perguntar por minha

conta. Tive muitas respostas. A impressão geral que me ficou do inquérito é que

de amor entendem mais os velhos do que os moços, ao contrário do que seria

de imaginar. E menos os profissionais que os amadores __digo os amadores da

arte de viver, propriamente, e os profissionais do ensino da vida. Vamos ver:

Dona Alda, que já fez bodas de ouro, diz que o amor é principalmente

paciência. Indaguei: e tolerância? Ela disse que tolerância é apenas paciência

com um pouco de antipatia. E diz que amor é também companhia e amizade. E

saudade? Não. Afinal, o amor não vai embora. Apenas envelhece, como a gente.

A jovem recém-casada me diz que o amor é principalmente materialismo.

Todos os sonhos das meninas estão errados. Aquelas coisas que se leem nos

livros da Coleção das Moças, aqueles devaneios e idealismos e renúncias e

purezas, está tudo errado. Quando a gente casa, é que vê que o amor não passa

de materialismo.

Um senhor quarentão, bem casado, pai de filhos: “Amor, como se entende

em geral, é coisa da juventude. Depois de uma certa idade, amor é mais

costume. É verdade que tem a paixão com seus perigos. Mas você falou em

amor e não em paixão, não foi?”

__ E de paixão, que me diz? __ Aí ele se fecha em copas. “Deixo isso para

os jovens. Velhote apaixonado é fogo. E eu não passo de um pai de família.”

A mãe da família desse senhor: “Amor? Bem, tem amor de noiva, que é

quase só castelos e tolices. Tem o de jovem casada, que é também muita tolice

__ mas sem castelos. Complicado com ciúme, etc., mas já inclui algum elemento

mais sério. E tem o amor do casamento, que é a realidade da vida puxada a

dois. Agora, o amor de mãe… Você perguntou também o amor de mãe?”

Respondi energicamente que não: amor de mãe, não. Quero saber só de

amor de homem com mulher, amor propriamente dito.

Diz o solteiro, quase solteirão, que se imagina irresistível e incansável: “Amor é

perigo. Só é bom com mulher sem compromissos. O melhor é amor forte e

curto, que embriaga enquanto dura e não tem tempo para se complicar. Aquela

história de marinheiro com um amor em cada porto tem o seu brilho, tem o seu

brilho”.

O pastor protestante diz que o amor é sublimar a atração entre os dois

seres, é atingir a mais alta e pura das emoções. Não confundir amor com sexo!

Já o padre católico não elimina o sexo do amor. Explica que, pelo contrário,

o sexo, no amor, é tão importante como os seus demais componentes __ o

altruísmo, a fidelidade, a capacidade de sacrifício, a ausência do egoísmo. E é

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tão importante que, para santificar o amor sexual __ o amor conjugal __, a

Igreja o põe sob a guarda de um sacramento, o santo matrimônio. E ante a

pergunta: se tudo é assim tão santo, por que os padres não casam? O padre

velho não se importa com a impertinência, sorri: “Nós nos demos a um amor

mais alto. Casamento, para nós, seria pior que bigamia…”

E por último tem a matrona sossegada que explica: “Amor? Amor é uma

coisa que dói dentro do peito. Dói devagarinho, quentinho, confortável. É a mão

que vem da cama vizinha, de noite, e segura na sua, adormecida. E você prefere

ficar com o braço gelado e dormente a puxar a sua mão e cortar aquele contato.

Tão precioso ele é. Amor é ter medo __ medo de quase tudo __ da morte, da

doença, do desencontro, da fadiga, do costume, das novidades. Amor pode ser

uma rosa e pode ser um bife, um beijo, uma colher de xarope. Mas o que o amor

é, principalmente, são duas pessoas neste mundo”.

( Rachel de Queiroz)

********************

Venha ver o pôr do sol

Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas

iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos

baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro,

algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota

viva na quietude da tarde.

Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num

largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinham um jeito

jovial de estudante.

- Minha querida Raquel.

Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.

- Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar

destes. Que ideia, Ricardo, que ideia! Tive que descer do taxi lá longe, jamais

ele chegaria aqui em cima.

Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.

- Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me

aparece nessa elegância…Quando você andava comigo, usava uns sapatões de

sete-léguas, lembra?

- Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui? – perguntou ela,

guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. – Hem?!

- Ah, Raquel… – e ele tomou-a pelo braço rindo.

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- Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul

e dourado…Juro que eu tinha que ver uma vez toda essa beleza, sentir esse

perfume. Então fiz mal?

- Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso

aí? Um cemitério?

Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de

ferro, carcomido pela ferrugem.

- Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem

os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo –

acrescentou, lançando um olhar às crianças rodando na sua ciranda.

Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro. Sorriu.

– Ricardo e suas ideias. E agora? Qual é o programa?

Brandamente ele a tomou pela cintura.

- Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um

instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo.

Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.

- Ver o pôr do sol!…Ah, meu Deus…Fabuloso, fabuloso!…Me implora um

último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta

buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do sol

num cemitério…

Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.

- Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria

era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso

fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que

vive espiando pelo buraco da fechadura…

- E você acha que eu iria?

- Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei,

se pudéssemos conversar um instante numa rua afastada…- disse ele,

aproximando-se mais.

Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos,

inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos ligeiramente

apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não

era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de

rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente

e meio desatento:

–Você fez bem em vir.

- Quer dizer que o programa… E não podíamos tomar alguma coisa num

bar?

- Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.

- Mas eu pago.

- Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque

é de graça e muito decente, não pode haver passeio mais decente, não concorda

comigo? Até romântico.

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Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.

- Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber

que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero ver se alguma das

suas fabulosas ideias vai me consertar a vida.

- Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se

arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério

abandonado, veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o

portão. Os velhos gonzos gemeram.

– Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.

- É um risco enorme, já disse . Não insista nessas brincadeiras, por favor. E

se vem um enterro? Não suporto enterros.

- Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a

mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os

ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha

medo…

O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de ter se alastrado

furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrando-se ávido pelos

rachões dos mármores, invadira alamedas de pedregulhos esverdinhados, como

se quisesse com a sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos

vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada

de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita

do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas

obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa

curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos

esmaltados.

- É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável,

é deprimente – exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um

anjinho de cabeça decepada.

- Vamos embora, Ricardo, chega.

- Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei

onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da

tarde, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambiguidade. Estou lhe dando

um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.

- Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.

Delicadamente ele beijou-lhe a mão.

- Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.

- É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar

mais.

- Ele é tão rico assim?

- Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já

ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro…

Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas

voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa,

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repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as

rugazinhas sumiram.

- Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?

Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.

- Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã…Mas, apesar de tudo, tenho

às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Palavra que, quando penso,

não entendo até hoje como aguentei tanto, imagine um ano.

- É que você tinha lido “A dama das Camélias”, ficou assim toda frágil, toda

sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora. Hem?

- Nenhum – respondeu ela, franzindo os lábios.

Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada:

– A minha querida esposa, eternas saudades – leu em voz baixa.

Fez um muxoxo.

- Pois sim. Durou pouco essa eternidade.

Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.

- Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra

mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja-

disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de

dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo,

ainda virão as raízes, depois as folhas…Esta a morte perfeita, nem lembrança,

nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.

Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.

- Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo

que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir

assim – Deu-lhe um rápido beijo na face. – Chega Ricardo, quero ir embora.

- Mais alguns passos…

- Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou

para atrás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.

- A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio – lamentou ele, impelindo-a para

frente.

– Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê

o pôr do sol.

E, tomando-a pela cintura:

– Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha

prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer

flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha

priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos

planos. Agora as duas estão mortas.

- Sua prima também?

- Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente

bonita, mas tinha uns olhos…Eram assim verdes como os seus, parecidos com

os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas…Penso agora

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que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os

seus.

- Vocês se amaram?

- Ela me amou. Foi a única criatura que…- Fez um gesto. – Enfim não tem

importância.

Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o,

- Eu gostei de você, Ricardo.

- E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?

Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.

- Esfriou, não? Vamos embora.

- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.

Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma

trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A

estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo

de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do

cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a

cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de

madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já

rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os

ombros do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro

dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a

catacumba.

Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles

restos da capelinha.

- Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?

Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico.

- Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas,

sinais da minha dedicação, certo?

- Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse

abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a

morte se isolou total. Absoluta.

Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da

portinhola. Na semiobscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo

das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.

- E lá embaixo?

- Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo,

pó- murmurou ele.

Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no

centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la.

– A cômoda de pedra. Não é grandiosa?

Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.

- Todas estas gavetas estão cheias?

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- Cheias?…- Sorriu.- Só as que tem o retrato e a inscrição, está vendo?

Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe- prosseguiu ele,

tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro

da gaveta.

Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.

- Vamos, Ricardo, vamos.

- Você está com medo?

- Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!

Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e

acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado:

- A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato.

Foi umas duas semanas antes de morrer… Prendeu os cabelos com uma fita azul

e vejo-a se exibir, estou bonita? Estou bonita?… Falava agora consigo mesmo,

doce e gravemente.

- Não, não é que fosse bonita, mas os olhos…Venha ver, Raquel, é

impressionante como tinha olhos iguais aos seus.

Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.

- Que frio que faz aqui. E que escuro, não estou enxergando…

Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.

- Pegue, dá para ver muito bem…

Afastou-se para o lado.

- Repare nos olhos.

- Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça…

Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu

em voz alta, lentamente.- Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil

oitocentos e falecida…

Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel.

– Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos!

Seu menti…

Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A

peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava

por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio

malicioso.

- Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso? Brincadeira mais

cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente a escada. – Não tem graça

nenhuma, ouviu?

Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro.

Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.

- Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou,

torcendo o trinco. Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota!

É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!

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- Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na

porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr

do sol mais belo do mundo.

Ela sacudia a portinhola.

- Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente!

Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela,

dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de

lágrimas. Ensaiou um sorriso.

– Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo,

vamos, abra…

Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles,

reapareceram as rugazinhas abertas em leque.

- Boa noite, Raquel.

- Chega, Ricardo! Você vai me pagar!… – gritou ela, estendendo os braços

por entre as grades, tentando agarrá-lo.

- Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos!- exigiu, examinando a

fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma

crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele

balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade

a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi

escorregando.

- Não, não…

Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi

puxando as duas folhas escancaradas.

- Boa noite, meu anjo.

Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os

olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.

- Não…

Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve

silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E,

de repente, o grito medonho, inumano:

- NÃO!

Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram,

semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram

ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra.

Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço.

Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado.

Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de

roda.

(Lygia Fagundes Telles)

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Marcelo, marmelo, martelo

Marcelo vivia fazendo perguntas a todo mundo:

- Papai, por que é que a chuva?

-Mamãe, por que é que o mar não derrama?

- Vovó, por que é que o cachorro tem quatro pernas?

As pessoas grandes às vezes respondiam. Às vezes, não sabiam como

responder.

-Ah, Marcelo, sei lá...

Uma vez, Marcelo cismou com o nome das coisas:

- Mamãe, por que é que eu me chamo Marcelo?

- Ora, Marcelo foi o nome que eu e seu pai escolhemos.

- E por que é que não escolheram martelo?

-Ah, meu filho, martelo não é nome de gente! É nome de ferramenta...

- Por que é que não escolheram marmelo?

- Porque marmelo é nome de fruta, menino!

- E a fruta não podia chamar Marcelo, e eu chamar marmelo?

No dia seguinte, lá vinha ele outra vez:

- Papai, por que é que mesa chama mesa?

- Ah, Marcelo, vem do latim.

- Puxa, papai, do latim? E latim é língua de cachorro?

- Não, Marcelo, latim é uma língua muito antiga.

- E por que é que esse tal de latim não botou na mesa nome de cadeira,

na cadeira nome de parede, e na parede nome de bacalhau?

-Ai, meu Deus, este menino me deixa louco!

Daí a alguns dias, Marcelo estava jogando futebol com o pai:

-Sabe, papai, eu acho que o tal de latim botou nome errado nas coisas.

Por exemplo, por que é que bola chama bola?

- Não sei, Marcelo, acho que bola lembra uma coisa redonda, não lembra?

-Lembra, sim, mas ... e bolo?

- Bolo também é redondo, não é?

- Ah, essa não! Mamãe vive fazendo bolo quadrado...

O pai de Marcelo ficou atrapalhado.

E Marcelo continuou pensando:

“Pois é, esta tudo errado! Bola é bola, porque é redonda. Mas bolo nem

sempre é redondo. E por que será que a bola não é a mulher do bolo? E bule? E

belo? E Bala? Eu acho que as coisas deviam ter o nome mais apropriado. Cadeira,

por exemplo. Devia chamar sentador, não cadeira, que não quer dizer nada. E

travesseiro? Devia chamar cabeceiro, lógico! Também, agora, eu só vou falar

assim”.

Logo de manhã, Marcelo começou a falar sua nova língua:

- Mamãe, quer me passar o mexedor?

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- Mexedor? Que é isso?

- Mexedorzinho, de mexer café.

- Ah, colherinha, você quer dizer.

- Papai, me dá o suco de vaca?

- Que é isso menino?

- Suco de vaca, ora! Que está no suco-da-vaqueira.

- Isso é leite, Marcelo. Quem é que entende este menino?

O pai de Marcelo resolveu conversar com ele:

- Marcelo, todas as coisas têm um nome. E todo mundo tem que chamar

pelo mesmo nome porque, senão, ninguém se entende...

- Não acho, papai. Por que é que eu não posso inventar o nome das coisas?

- Deixe de bobagens, menino! Vá brincar, filho, tenho muito que fazer...

Mas Marcelo continuava não entendendo a história dos nomes. E resolveu

continuar a falar, à sua moda. Chegava em casa e dizia:

- Bom solário pra todos...

O pai e a mãe de Marcelo se olhavam e não diziam nada. E Marcelo

continuava inventando:

Sabem o que eu vi na rua? Um puxadeiro puxando uma carregadeira.

Depois, o puxadeiro fugiu e o possuidor ficou danado.

A mãe de Marcelo já estava ficando preocupada. Conversou com o pai:

- Sabe, João, eu estou muito preocupada com o Marcelo, com essa mania

de inventar nomes para as coisas... Já pensou, quando começarem as aulas?

Esse menino vai dar trabalho...

- Que nada, Laura! Isso é uma fase que passa. Coisa de criança...

Mas estava custando a passar...

Quando vinham visitas, era um caso sério. Marcelo só cumprimentava

dizendo:

- Bom solário, bom lunário... – que era como ele chamava o dia e a noite.

E os pais de Marcelo morriam de vergonha das visitas.

Até que um dia...

O cachorro do Marcelo, o Godofredo, tinha uma linda casinha de madeira

que Seu João tinha feito para ele. E Marcelo só chamava a casinha de moradeira,

e o cachorro de Latildo.

E aconteceu que a casa do Godofredo pegou fogo. Alguém jogou uma

ponta de cigarro pela grade, e foi aquele desastre!

Marcelo entrou em casa correndo.

- Papai, papai, embrasou a moradeira do Latildo!

- O quê, menino? Não estou entendendo nada!

- A moradeira, papai, embrasou...

- Eu não sei o que é isso, Marcelo. Fala, direito!

- Embrasou tudo, papai, está uma branqueira danada!

Seu João percebia a aflição do filho, mas não entendia nada...

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Quando seu João chegou a entender do que Marcelo estava falando, já era

tarde.

A casinha estava toda queimada. Era um montão de brasas.

O Godofredo gania baixinho...

E Marcelo, desapontadíssimo, disse para o pai:

- Gente grande não entende nada, mesmo!

Então a mãe do Marcelo olhou pro pai do Marcelo.

E o pai do Marcelo olho pra mãe do Marcelo.

E o pai do Marcelo falou:

- Não fique triste, meu filho. A gente faz uma moradeira nova pro Latildo.

E a mãe do Marcelo disse:

É sim! Toda branquinha, com a entradeira na frente e um cobridor bem

vermelhinho...

E agora, naquela família, todo mundo se entende muito bem.

O pai e a mãe do Marcelo não aprenderam a falar como ele, mas fazem

força pra entender o que ele fala.

E nem estão se incomodando com o que as visitas pensam...

(Ruth Rocha)

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Muitas fugiam ao me ver…

Muitas fugiam ao me ver

Pensando que eu não percebia

Outras pediam pra ler

Os versos que eu escrevia

Era papel que eu catava

Para custear o meu viver

E no lixo eu encontrava livros para ler

Quantas coisas eu quiz fazer

Fui tolhida pelo preconceito

Se eu extinguir quero renascer

Num país que predomina o preto

Adeus! Adeus, eu vou morrer!

E deixo esses versos ao meu país

Se é que temos o direito de renascer

Quero um lugar, onde o preto é feliz.

(Carolina Maria de Jesus)

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A Rosa

Eu sou a flor mais formosa

Disse a rosa

Vaidosa!

Sou a musa do poeta.

Por todos sou contemplada

E adorada.

A rainha predileta.

Minhas pétalas aveludadas

São perfumadas

E acariciadas.

Que aroma rescendente:

Para que me serve esta essência,

Se a existência

Não me é concernente...

Quando surgem as rajadas

Sou desfolhada

Espalhada

Minha vida é um segundo.

Transitivo é meu viver

De ser...

A flor rainha do mundo.

(Carolina Maria de Jesus)

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Menina bonita do laço de fita

Era uma vez uma menina linda, linda.

Os olhos pareciam duas azeitonas pretas brilhantes, os cabelos

enroladinhos e bem negros.

A pele era escura e lustrosa, que nem o pelo da pantera negra na chuva.

Ainda por cima, a mãe gostava de fazer trancinhas no cabelo dela e enfeitar com

laços de fita coloridas.

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Ela ficava parecendo uma princesa das terras da África, ou uma fada do

Reino do Luar.

E havia um coelho bem branquinho, com olhos vermelhos e focinho

nervoso sempre tremelicando. O coelho achava a menina a pessoa mais linda

que ele tinha visto na vida.

E pensava:

— Ah, quando eu casar quero ter uma filha pretinha e linda que nem ela…

Por isso, um dia ele foi até a casa da menina e perguntou:

— Menina bonita do laço de fita, qual é teu segredo pra ser tão pretinha?

A menina não sabia, mas inventou:

— Ah deve ser porque eu caí na tinta preta quando era pequenina…

O coelho saiu dali, procurou uma lata de tinta preta e tomou banho nela.

Ficou bem negro, todo contente. Mas aí veio uma chuva e lavou todo

aquele pretume, ele ficou branco outra vez.

Então ele voltou lá na casa da menina e perguntou outra vez:

— Menina bonita do laço de fita, qual é teu segredo pra ser tão pretinha?

A menina não sabia, mas inventou:

— Ah, deve ser porque eu tomei muito café quando era pequenina.

O coelho saiu dali e tomou tanto café que perdeu o sono e passou a noite

toda fazendo xixi.

Mas não ficou nada preto.

— Menina bonita do laço de fita, qual o teu segredo para ser tão pretinha?

A menina não sabia, mas inventou:

— Ah, deve ser porque eu comi muita jabuticaba quando era pequenina.

O coelho saiu dali e se empanturrou de jabuticaba até ficar pesadão, sem

conseguir sair do lugar. O máximo que conseguiu foi fazer muito cocozinho preto

e redondo feito jabuticaba. Mas não ficou nada preto.

Então ele voltou lá na casa da menina e perguntou outra vez:

— Menina bonita do laço de fita, qual é teu segredo pra ser tão pretinha?

A menina não sabia e… Já ia inventando outra coisa, uma história de

feijoada, quando a mãe dela, que era uma mulata linda e risonha, resolveu se

meter e disse:

— Artes de uma avó preta que ela tinha…

Aí o coelho, que era bobinho, mas nem tanto, viu que a mãe da menina

devia estar mesmo dizendo a verdade, porque a gente se parece sempre é com

os pais, os tios, os avós e até com os parentes tortos. E se ele queria ter uma

filha pretinha e linda que nem a menina, tinha era que procurar uma coelha

preta para casar.

Não precisou procurar muito. Logo encontrou uma coelhinha escura como

a noite, que achava aquele coelho branco uma graça.

Foram namorando, casando e tiveram uma ninhada de filhotes, que coelho

quando desanda a ter filhote não para mais! Tinha coelhos de todas as cores:

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branco, branco malhado de preto, preto malhado de branco e até uma coelha

bem pretinha.

Já se sabe, afilhada da tal menina bonita que morava na casa ao lado.

E, quando a coelhinha saía de laço colorido no pescoço, sempre encontrava

alguém que perguntava:

— Coelha bonita do laço de fita, qual é teu segredo pra ser tão pretinha?

E ela respondia:

— Conselhos da mãe da minha madrinha…

(Ana Maria Machado)

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