Leitura psicanalítica do filme O Show de Truman, o Show da Vida

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Pausa para a Filosofia Abertura Crônicas Filosofia Miscelânea Contato Miscelânea/Cinema Miscelânea Cinema Leitura psicanalítica do filme O Show de Truman, o Show da Vida C. Guillermo Bigliani e Sérgio Telles O tão elogiado O Show de Truman, o Show da Vida (The Truman Show), filme de Peter Weir (autor de grandes filmes como O ano em que vivemos em perigo, A testemunha e Sociedade dos poetas mortos) é uma parábola, uma metáfora que comporta várias leituras. A mais imediata delas é a ligada ao poder da mídia eletrônica, especialmente a televisão, que assusta tanto e tantos. Arnaldo Jabor, recentemente, relativizando tal temor, lembrou uma das grandes preocupações dos anos 60/70, quando se dizia que a Rede Globo iria controlar ideologicamente o país. Hoje em dia, esta ameaça já não aflige ninguém. A Globo, apesar de manter sua hegemonia, luta para se manter como a preferida dos miseráveis, disputando ferrenhamente os telespectadores com Ratinhos e Leões, ao mesmo tempo em que sua audiência de elite se volta para a TV a cabo. O mesmo ocorre nos Estados Unidos, onde as grandes redes perderam a hegemonia, totalmente esfaceladas pela TV a cabo que, por sua vez, se estilhaça em dezenas de canais. Muito bem, se não corremos o perigo de UMA única rede nos dominar, persiste um perigo ainda maior, o da hidra de mil cabeças, dos muitos canais a nossa disposição – ou, diria Truman, o filme de Weir, que dispõem de nós. O roteiro do filme mostra como a vida de Truman foi transformada numa novela que está no ar desde o momento de seu nascimento e que é vista mundialmente. Truman ignora que sua vida é uma ficção planejada minuciosamente pelos criadores do programa, representados por Christof. Uma tese sustentada pelo filme seria como a televisão invade inteiramente a subjetividade, confunde público e privado, aprisiona os sujeitos numa vida alienada, ditada pelos valores do mercado, onde a felicidade está atrelada à posse de bens de consumo e a própria identidade pessoal se esfuma frente às identidades por ela fornecidas, especialmente aquelas veiculadas pela publicidade, que forjam imagens de masculinidade ou feminilidade, de sucesso e triunfo, sempre caudatárias do consumo. Não há propriamente uma novidade nesta argumentação repetida à exaustão pelos teóricos dos meios de comunicação de massa. Sem negar a imensa importância que a TV exerce sobre todos o tempo todo, pensamos ter ela um papel menos onipotente do que aquele que habitualmente se lhe atribui. Neste sentido discordamos do de resto excelente trabalho apresentado por Jorge Ahumada (1998) na Sociedade Psicanalítica de São Paulo quando parece creditar ao uso deliberado das cenografias do nazismo e stalinismo veiculados pela TV o poder de engendrar tiranias. A TV é expressão de uma formação sócio-econômico-psicológica que se destaca por privilegiar a superficialidade e evitar as dores do pensamento, formação cultural que fornece muito mais tempo de Rambo que de Bouillon de Culture. A forma como a psicanálise compreende a constituição do sujeito, baseada em identificações com os objetos primários (pai, mãe), de certa forma afasta a mídia como um fator estrutural constitutivo no ser humano, como alguns autores equivocadamente tentam estabelecer. Um exemplo disto pode ser encontrado na sempre presente e legítima preocupação dos pais quanto aos malefícios que a televisão pode provocar em seus filhos, pois seria ela um perigoso fator instigador da violência, da agressividade, da sexualidade mal dirigida, etc. Parece-nos que a questão fica incompletamente formulada, pois não leva em conta o fato de que as crianças não estão expostas apenas à televisão. Afinal, antes da TV elas estão expostas a uma influência extremamente mais importante, definitiva e constitutiva que é aquela trazida pelos próprios pais, cujas imagens vão servir de pólos identificatórios para as crianças, e cujas atitudes e desejos conscientes e inconscientes vão plasmar o clima onde a criança está totalmente imersa e receptiva. A tão temida "influência maléfica" que a televisão teria fica num papel necessariamente secundário. Do ponto de vista prático, compete aos pais regulamentar o acesso da criança à TV. Assim como é necessário proteger as crianças de uma série de perigos dos quais ainda não sabem se defender sozinhas, o mesmo vale para a TV. Crianças que têm livre acesso à televisão poderiam ser entendidas como crianças abandonadas à própria sorte, sem controles e cuidados. Lamentavelmente, seu número só tem crescido nos últimos tempos. Mas não são só as crianças as vítimas do televisor: é o mundo dos adultos que, no filme, é dominado pelo Show de Truman. Vemos que são os adultos os que ficam plugados na telenovela, validando com sua assistência enlouquecida e acrítica a evolução de uma experiência alucinada de clonagem humana. Pausa para a Filosofia (Miscelânea/Cinema/[04] Leitura psicanalítica do ... http://www.pfilosofia.xpg.com.br/04_miscelanea/04_10_cinema/cinema0... 1 de 3 4/6/2009 19:43

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Pausa para a Filosofia

Abertura Crônicas Filosofia Miscelânea Contato

Miscelânea/Cinema

Miscelânea

Cinema

Leitura psicanalítica do filme O Show de Truman, o Show da Vida

C. Guillermo Bigliani e Sérgio Telles

O tão elogiado O Show de Truman, o Show da Vida (The Truman Show), filme de Peter Weir (autor degrandes filmes como O ano em que vivemos em perigo, A testemunha e Sociedade dos poetas mortos) éuma parábola, uma metáfora que comporta várias leituras.

A mais imediata delas é a ligada ao poder da mídia eletrônica, especialmente a televisão, que assustatanto e tantos. Arnaldo Jabor, recentemente, relativizando tal temor, lembrou uma das grandespreocupações dos anos 60/70, quando se dizia que a Rede Globo iria controlar ideologicamente o país.Hoje em dia, esta ameaça já não aflige ninguém. A Globo, apesar de manter sua hegemonia, luta parase manter como a preferida dos miseráveis, disputando ferrenhamente os telespectadores com Ratinhose Leões, ao mesmo tempo em que sua audiência de elite se volta para a TV a cabo. O mesmo ocorre nosEstados Unidos, onde as grandes redes perderam a hegemonia, totalmente esfaceladas pela TV a caboque, por sua vez, se estilhaça em dezenas de canais.

Muito bem, se não corremos o perigo de UMA única rede nos dominar, persiste um perigo ainda maior, oda hidra de mil cabeças, dos muitos canais a nossa disposição – ou, diria Truman, o filme de Weir, quedispõem de nós.

O roteiro do filme mostra como a vida de Truman foi transformada numa novela que está no ar desde omomento de seu nascimento e que é vista mundialmente. Truman ignora que sua vida é uma ficçãoplanejada minuciosamente pelos criadores do programa, representados por Christof.

Uma tese sustentada pelo filme seria como a televisão invade inteiramente a subjetividade, confundepúblico e privado, aprisiona os sujeitos numa vida alienada, ditada pelos valores do mercado, onde afelicidade está atrelada à posse de bens de consumo e a própria identidade pessoal se esfuma frente àsidentidades por ela fornecidas, especialmente aquelas veiculadas pela publicidade, que forjam imagensde masculinidade ou feminilidade, de sucesso e triunfo, sempre caudatárias do consumo.

Não há propriamente uma novidade nesta argumentação repetida à exaustão pelos teóricos dos meiosde comunicação de massa. Sem negar a imensa importância que a TV exerce sobre todos o tempo todo,pensamos ter ela um papel menos onipotente do que aquele que habitualmente se lhe atribui. Nestesentido discordamos do de resto excelente trabalho apresentado por Jorge Ahumada (1998) naSociedade Psicanalítica de São Paulo quando parece creditar ao uso deliberado das cenografias donazismo e stalinismo veiculados pela TV o poder de engendrar tiranias.

A TV é expressão de uma formação sócio-econômico-psicológica que se destaca por privilegiar asuperficialidade e evitar as dores do pensamento, formação cultural que fornece muito mais tempo deRambo que de Bouillon de Culture.

A forma como a psicanálise compreende a constituição do sujeito, baseada em identificações com osobjetos primários (pai, mãe), de certa forma afasta a mídia como um fator estrutural constitutivo no serhumano, como alguns autores equivocadamente tentam estabelecer.

Um exemplo disto pode ser encontrado na sempre presente e legítima preocupação dos pais quanto aosmalefícios que a televisão pode provocar em seus filhos, pois seria ela um perigoso fator instigador daviolência, da agressividade, da sexualidade mal dirigida, etc.

Parece-nos que a questão fica incompletamente formulada, pois não leva em conta o fato de que ascrianças não estão expostas apenas à televisão. Afinal, antes da TV elas estão expostas a umainfluência extremamente mais importante, definitiva e constitutiva que é aquela trazida pelos própriospais, cujas imagens vão servir de pólos identificatórios para as crianças, e cujas atitudes e desejosconscientes e inconscientes vão plasmar o clima onde a criança está totalmente imersa e receptiva.

A tão temida "influência maléfica" que a televisão teria fica num papel necessariamente secundário. Doponto de vista prático, compete aos pais regulamentar o acesso da criança à TV. Assim como énecessário proteger as crianças de uma série de perigos dos quais ainda não sabem se defendersozinhas, o mesmo vale para a TV. Crianças que têm livre acesso à televisão poderiam ser entendidascomo crianças abandonadas à própria sorte, sem controles e cuidados. Lamentavelmente, seu númerosó tem crescido nos últimos tempos.

Mas não são só as crianças as vítimas do televisor: é o mundo dos adultos que, no filme, é dominadopelo Show de Truman. Vemos que são os adultos os que ficam plugados na telenovela, validando comsua assistência enlouquecida e acrítica a evolução de uma experiência alucinada de clonagem humana.

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Leitura psicanalítica

A outra leitura que a metáfora trazida pelo filme permite é uma leitura psicanalítica sobre o queacabamos de falar acima - a constituição do sujeito humano.

Tausk, discípulo de Freud e seu analisado, descreveu nos pacientes esquizofrênicos algo que elechamou de aparelho de influência. Estes pacientes sentiam que sua vida era observada cuidadosamente,que seus pensamentos eram comentados, que seu interior era vasculhado, assim como o espaço queeles habitavam era supervisado por forças estranhas e alheias a eles.

No inicio do filme, uma inquietação percorre a platéia: é Truman um esquizofrênico, um louco comdelírio de influência?

A psicanálise postula que durante a constituição do sujeito psíquico os outros (a começar pelos pais) seinstalam em seu interior como palavra e pensamento, como cuidados que o sujeito realiza consigomesmo, como uma série de aspectos normativos e instrumentais que passam a constituir seu próprioser.

Tudo isso que se origina no exterior, passa a ser ego-sintônico, ou seja, algo que o sujeito sente emsintonia com seu ser e cuja origem não pode mais ser traçada até suas origens externas. Perde-se o eloque o une ao real.

Na loucura, essa influência constitutiva não é assimilada. O louco vê muitos de seus próprios desejos decuidados e de atenção sob a forma de alucinações, como se esses desejos estivessem sendo realizadosno presente por forças reais externas, como o foram na infância pelos pais. Só que o ego vê essesdesejos realizados como estruturações persecutórias.

Quando isso acontece, não se teria realizado uma adequada simbolização desse passado constitutivo e,por isso, ele retorna como real. Através desse aparelho de influência o sujeito encontra uma forma deperpetuar esse passado de influências benéficas (ou não) e a proteção dos pais. Isto seria conflitantecom os desejos de crescer e de se abrir, por identificação com os pais, a experiências exogâmicas, o quecaracterizaria a normalidade.

Em outras palavras, a história de Truman mostra a passagem entre a alienação no desejo do Outro e aassunção do próprio desejo, o estabelecimento da própria subjetividade.

A relação entre Truman e a produção do show - a televisão onipresente e onipotente, que o controla emtudo com suas cinco mil câmaras de filmar, impondo-lhe seu desejo, impedindo-lhe qualquer autonomiae escolha - seria uma possível representação da relação estabelecida por uma mãe narcísica que tomaseu filho como prolongamento dela própria para realizar seus desejos onipotentes. Uma mãe que nãotolera se separar do filho, e o filho que luta entre o desejo de ficar na segurança da cela esplêndida econtrolada, onde é uma eterna criança brincando de viver, e o desejo de sair dali e assumir sua própriasubjetividade, seu próprio desejo, arriscando-se a enfrentar as dores do viver.

Vemos no filme como todas as tentativas de autonomia apresentadas por Truman são imediatamenterechaçadas, invalidadas, desautorizadas, desestimuladas. Posteriormente ele é impedido e punido portais tentativas. Fobias e sentimentos de culpa lhe são induzidas com este intuito. As imagenscatastróficas da companhia de turismo desestimulam qualquer desejo de sair, de ir para longe.

O que falamos até aqui caracterizaria uma psicose. Uma relação narcísica, não castrada, fundida com oobjeto primário, uma impossibilidade de assumir o próprio desejo, a própria subjetividade.

Vemos em Truman, entretanto, como este sistema narcísico começa a ruir na hora em que opersonagem se interessa efetivamente, espontaneamente por uma mulher. É a emergência de seupróprio desejo, não mais aquele decorrente da manipulação externa. Truman estabelece sua relaçãoexogâmica pela escolha da mulher estranha ao meio endogâmico, cuja imagem vai organizando aospoucos, numa colagem de lembranças e afetos, até constituir um objeto amoroso (objeto a, fonte dedesejo?). É interessante notar como o acesso a essa mulher é severamente reprimido, como vemos noencontro na praia, quando ela é sumariamente levada por homens. Seria uma menção à interdiçãoedípica, que organiza a saída primeira do narcisismo, a segunda se daria na adolescência.

A fala final de Christof, o criador do programa, tentando fazer Truman ficar no "útero", assegurando-lheque a vida lá fora é também cheia de mentiras e enganos, e que aqui ele está mais protegido é atentativa final e frustrada feita pela "mãe" para impedir que o "filho" possa ele mesmo fazer asdescobertas boas e más que o "mundo externo" inevitavelmente trará, que ele realize sua relaçãoexogâmica.

Neste sentido, Truman seria uma metáfora tanto da situação inicial da constituição do sujeito, comotambém da sua crise maior, aquela que se dá na adolescência.

Truman nos permitiu mostrar uma formação psicótica, que seria aquela onde ele fica encerrado no"útero", na relação narcísica, sem ousar sair. Vimos também a solução "normal", com a saídaexogâmica, que é o final feliz do filme. Falaremos agora de uma saída neurótica. Referimo-nos àquelessujeitos normopatas, que parecem viver uma vida adulta com uma mulher com a qual aparentementeestão casados. Mas isto é apenas na aparência, pois a mulher opera como mãe, é vista pelo pacientecomo uma mãe. Esta versão as if ("como se", aparente) da maturidade é assustadoramente freqüenteem nossos dias em casais de determinadas classes sociais.

Não sabemos quanto influem para sua prevalência os prolongados períodos de educação em extensãoconstante desde o Renascimento, assim como, por outro lado, a submissão infantilizante ao poder damídia como aparece metaforizado em Truman.

Uma outra idéia que Truman nos faz pensar é que a estrutura relacional narcísica que ele ilustra

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costuma se instalar nas mais diversas terapias, em função das repetições transferenciais, criando - àsvezes - impasses que são resultantes de sua elaboração inadequada.

Supostamente as boas análises são aquelas mais demoradas. Somente elas efetivamente teriamconseguido as integrações necessárias, as reparações, as elaborações da posição depressiva, daestruturação simbólica, o atravessamento do fantasma, etc. Mas é de se pensar até que ponto nãoocultam elas - as terapias muito longas - distorções e perversões, onde ao invés de ajudar o analisandoa sair da relação narcísica, fazem o contrário, restabelecem com ele tal relação e a mantémindefinidamente.

Fonte: http://www.polbr.med.br/arquivo/truman.htm

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