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LEITURASCOMPARTILHADAS DISTRIBUIÇÃO GRATUITA PARA AS ESCOLAS DO LEIA BRASIL | FASCÍCULO 4 | AGOSTO DE 2002 | EXEMPLAR AVULSO R$ 10,00 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR ANTIGAS, PEQUENAS, DISTANTES E BOAS. MAIORES, APARENTES, BONITAS E NOVAS. SIMPLES, ESTRANHAS, SANTAS, MÁS E LEVES. VELHAS DIFERENÇAS, QUE FAZEM, DE CADA UM, UM. CELSO SISTO . CLÁUDIA WERNECK . ELIANA YUNES . GILBERTO VELHO . JOEL RUFINO . MUNIZ SODRÉ . MARINA COLASANTI . NEI LOPES . NILTON BONDER . PEDRO LUÍS . ROSEANA MURRAY E OUTROS. ENTREVISTAS: ARNALDO ANTUNES . JUSTINE SHAPIRO

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LEITURASCOMPARTILHADASD I S T R I B U I Ç Ã O G R A T U I T A P A R A A S E S C O L A S D O L E I A B R A S I L | F A S C Í C U L O 4 | A G O S T O D E 2 0 0 2 | E X E M P L A R A V U L S O R $ 1 0 , 0 0 | W W W . L E I A B R A S I L . O R G . B R

ANTIGAS, PEQUENAS, DISTANTES E BOAS. MAIORES, APARENTES, BONITAS E NOVAS. SIMPLES, ESTRANHAS, SANTAS, MÁS E LEVES. VELHAS DIFERENÇAS, QUE FAZEM, DE CADA UM, UM.

CELSO SISTO . CLÁUDIA WERNECK . ELIANA YUNES . GILBERTO VELHO . JOEL RUFINO . MUNIZ SODRÉ .

MARINA COLASANTI . NEI LOPES . NILTON BONDER . PEDRO LUÍS . ROSEANA MURRAY E OUTROS.ENTREVISTAS: ARNALDO ANTUNES . JUSTINE SHAPIRO

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k Editorial E viva a diferença p.3

k Eliana Yunes Onde está o outro? p.4

k Gilberto Velho O ponto de vista da antropologia p.8

k Marina Colasanti Um desejo e dois irmãos p.10

k Entrevista:Yoshi Yoki p.11

k Vera Vidal Virtude da tolerância p.12

kJosé Durval Cavalcanti de Albuquerque Narciso p.13

k Joel Rufino Quem somos nós? Como se formou o povo

brasileiro p.14

k Daniel Munduruku Não somos donos da teia da vida p.15

k Celso Sisto O livro que mora em mim p.16

k Muniz Sodré Uma negra diferença p.18

k Jorge de Souza Araujo Singular e plural p.19

k Roseana Murray Espelho p.20

k Claudia Werneck Normal é o bicho-papão p.21

k Nilton Bonder Em nome do pai. Diferenças religiosas p.22

k Entrevista: Justine Shapiro p.26

k Ma Elizabeth G de Vasconcellos Pobres e ricos nos contos de

Charles Perrault p.28

k Laura Sandroni Um lugar para todos. O diferente na obra de

Monteiro Lobato p.30

k Lippi Oliveira Um inventário das diferenças p.32

k Nina Reis Saroldi Castigo na Alemanha, brincadeira no

Brasil p.34

k Nina Rabha Um encontro a cada esquina. As cidades e a

união das diferenças p.35

k Ma Aparecida Silva Ribeiro Eu, eu mesmo e meu texto.

Dois casos de semelhanças e diferenças p.36

k Charles Feitosa A questão da feiúra p.38

k Lígia Assumpção Amaral Pela voz da literatura, pensando

preconceitos em relação à diferença p.40

k Adolfo Lachtermacher O cinema e a diferença p.42

k Filmografia p.44

k Myriam Lins de Barros O curso da vida e as relações

intergeracionais p.46

k Pedro Luís Entrevista Arnaldo Antunes p.48

k Nei Lopes O povo, o pop e a diferença p.52

k José Mauro Brant O direito de ser diferente p.54

k Andréa B. Tigre e Elisa Teixeira Um olhar da psicanálise p.56

k Maria Helena Ribeiro De conversa em conversa p.58

k Livros abordando o tema diferenças p.60

GANESHA, DEUS HINDU.

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“No princ pio Deus criou os cØus e a Terra...

Entªo disse Deus: fa amos o homem nossa imagem,

conforme a nossa semelhan a.”(Gen 1,1-26)

Precisando explicar os mistérios da vida – e diminuir suas angústias,porque ninguém é de ferro – o homem criou os deuses à sua imageme semelhança: os gregos, belos e vingativos; os germânicos, práticos eheróicos; os hindus, misteriosos e ambivalentes e os judeus, um só,todo-poderoso.

Mãe das religiões monoteístas, o judaísmo sintetizou o universonuma dicotomia entre o bem e o mal, o certo e o errado, o positivo eo negativo.

Como a Europa – leia-se ‘o homem branco temente a Deus’ – con-quistou e dominou o mundo por milênios, tem-se por certo que asdiferenças se resumem ao sim e não da linguagem binária (aquela queos computadores usam para armazenar e processar informação), fazen-do da vida um grande e contrastante retrato em preto e branco.

Pois foi o próprio Deus dos hebreus quem introduziu as diferençasentre os homens: primeiro, ao dotá-los com vontade e, depois, puni-los por suas escolhas com a expulsão do paraíso. E, novamente, quan-do viu que os mortais ambicionavam invadir seu reino construindouma espécie de ponte entre o céu e a terra: confundiu suas línguas einterrompeu sua comunicação (e, por conseguinte, a paz), num episó-dio chamado de ‘A torre de Babel’.Por causa da liberdade de escolha (e porque os homens já nãocomungavam da mesma língua), as coisas foram piorando e estabele-ceram-se vários ‘rachas’ nas religiões, cada uma puxando pra si o direi-to da verdade sobre os mistérios do além-vida.

De lá pra cá a humanidade progrediu muito.Além de intérpretes, tradutores e outros mediadores, inventou-se a

imprensa, a fotografia, o cinema, e a televisão. Sempre com o objetivode melhorar a comunicação.

Grandes revoluções tentaram igualar os homens pela força emParis, Moscou e Pequim.

Também diminuíram as distâncias geográficas, miscigenaram-se ospovos, caíram as barreiras comerciais e introduziu-se a globalização, fazen-do de todos nós iguais e solidários nessa nave espacial chamada Terra.

Mas o ser humano nunca estranhou tanto suas diferenças.Não apenas as religiosas. Sejam raciais, sexuais, de idade, de opinião, sociais, culturais ou de

qualquer ordem particular ou coletiva, as diferenças justificam lin-chamentos, permitem massacres e provocam guerras.Lotam os consultórios psicanalíticos (os estádios de futebol também) esustentam templos de todas as seitas.

A moda no planeta é observar a privacidade do outro pela TV e dis-cutir (até agora com certo pudor) o final supremo de todas as dife-renças: a clonagem e os transgênicos.Nesse número de Leituras Compartilhadas queremos abordar a sin-gularidade dos seres humanos, naquilo que nos tornam únicos e aomesmo tempo tão iguais.

Por isso começamos com o livro do Gênesis, onde a Bíblia falada Criação.

Queremos abordar as diferenças pelo ângulo da identidade. Davisão do outro. Dos diversos papéis cabíveis e desempenhados peloshomens, sobretudo nas nuances e meios-tons.

Como programa de leitura, procuramos por elas na literatura.Há uma extensa bibliografia disponível sobre diferenças, a começarpelos clássicos infantis O patinho feio, A gata borralheira e A bela

e a fera. Junte-se a eles O corcunda de Notre Dame e temos a exac-erbação das diferenças. Mas elas nem sempre são tão explícitas – ou defácil compreensão – como nos caricatos três porquinhos, o Barão deMünchausen, Pinóquio e o fantástico Dom Quixote.

As diferenças são a matéria prima da literatura, porque é com elasque se constroem as personagens e grande parte das histórias.

Histórias como a de Romeu e Julieta, cujas famílias se detestavam.Ou a de Diadorim, que era ela. Ou onde quer que haja um velho, umnovo, um belo, um feio, um bom e um mau...

Buscamos, ainda, pelas diferenças nos filmes, na antropologia, napsicologia, na música, na arquitetura, na filosofia, na fotografia. Emcada lugar, enfim, em que pudéssemos usá-las para fazer este númerode Leituras Compartilhadas rico e plural.

E oferecê-lo a você, professor, para que ajude, através da leitura, afazer crescer seres humanos com os mais variados tons de individuali-dade possível.

Porque, como diz o professor Gilberto Velho, um de nossos convi-dados, ‘a sociedade se faz com as diferenças’.

E VIVA A DIFERENÇA!

Leituras Compartilhadas Ø umapublica ªo da ONG Leia Brasil dePromo ªo da Leitura, distribu dagratuitamente s escolas conveni-adas ONG.

Todos os direitos foram cedidospelos autores para os fins aquidescritos. Quaisquer reprodu ıes(parciais ou integrais), deverªo serauto-rizadas previamente.

Os artigos assinados refletem opensamento de seus autores.

Leia Brasil e Leituras

Editor: Jason PradoSubeditora: Ana ClÆudia MaiaPesquisa BibliogrÆfica: Maria HelenaRibeiro e Eliana YunesProjeto GrÆfico: Thiago PradoDire ªo de Arte e Produ ªo GrÆfica:Eneida Oliveira DØcheryTiragem: 5.000 exemplares

Leia Brasil - Organiza ªo NªoGovernamental de Promo ªo da Leitura. Rua Santo Cristo 148/150 parte, SantoCristo, Rio de JaneiroCEP 20220-300Tel/Fax: 21 [email protected] w w.leiabrasil.org.br

The Golden Rule de NormanRockwell, 1961, para o The Saturday Evening Post .Direitos Reservados The Curtis

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ELIANA YUNESEsta brincadeira de busca de

uma certa personagem é coisaséria. Imaginemo-nos sem umOUTRO, sem alguém que, indi-cando uma alteridade, ao mesmotempo indicasse nossa identi-dade. Faz tempo já, que a psi-canálise tomando o mito deNarciso, que só enxergava a

própria imagem, enamoradode si mesmo, assinalou os

riscos da tragédia. A li-teratura, como se vê,tratou do tema desdeos tempos da orali-

dade, antes que as teo-rias pós-modernas o

assimilassem.Mesmo em face da

chamada crise da literaturafrente à cultura, (a literatura

ainda tem vez para ‘re-presentar’ algo para a

variedade reconhe-cida dos homens?),talvez tenhamosalcançado, na pós-m o d e r n i d a d e ,alguns ganhos im-portantes. Uma

pequena reflexãonos ajudará a entender a

importância social do quevem ocorrendo em meio à

pressão da economiaglobalizada que, com

ela, arrasta tudo aquiloque, no mercado, pode sig-

nificar dividendos e/ou am-pliação de consumidores.

A literatura significou durantemilênios a referência cultural dospovos em busca de identidade,seja pela consolidação da língua,seja pela representação de valorese costumes com os quais a na-cionalidade se reconhecia. Coma invenção da imprensa porGutenberg e a produção industri-alizada do papel, o livro comosuporte da escrita logrou difun-dir a literatura de forma ágil eempurrou a sociedade em dire-ção à democratização da leitura,esperando que, pela alfabetiza-ção, populações marginais pu-dessem participar da cidadaniailustrada. O sonho iluminista foitragado pela burguesia, ao con-solidar o capital como senhordas mentes e corações e se sub-meter ao mercado que só identi-fica consumidores, os mais dóceise normatizados.

Apesar do mundo economi-camente globalizado, as desi-gualdades são gritantes. E tudopoderia ser somente muito ruimse, ao lado da fragmentação dasnações, dos povos e dos sujeitos,uma resistência surda, mas nãomuda, não impelisse as minoriasa uma expressividade própria,amparada nas mídias alternati-vas que se desenvolveram no ras-tro das comunicações de massa.Assim os saberes locais, deforma criativa e original, pouco

a pouco assomaram à cena,introduzindo diferenças ondeantes se buscava valorizar asimilitude, sob a capa da pre-tendida igualdade. Foi assim queos grandes relatos clássicos euniversalizantes, tipo epopéias enovelas exemplares, acabarampor ceder espaço a crônicas locaise a expressões comunicativasmais rápidas, tais como a músicapopular e o cinema, sobretudocom os curtas e os vídeos.

No bojo desta diversificaçãocultural, outras modificaçõesocorreram. A especificidade dasdisciplinas se viu compelida àinterdisciplinaridade, a subjetivi-dade arduamente construídadesde o romantismo ou se reco-nhece no âmbito das comuni-dades intersubjetivas ou galopaem um individualismo egoísta esocialmente destrutivo. E dentrodeste horizonte, os homens vãopercebendo que ‘o inferno nãosão os outros’ e que a identidadede uns só se desenha diante daidentidade de outros, isto é, que aalteridade é condição do conhe-cimento de si e do mundo.

A diferença visível nos pontosde vista das culturas sobre a vidarevela a riqueza da diversidade e aperspectiva do respeito que haviaobrigado pesquisadores a rede-finir os estudos antropológicosno final do século retrasado (XIX).Na literatura, ao longo dos tem-pos, não faltaram indícios destarealidade. Contudo, nem semprea condução ideológica das ques-tões apontou para a convivênciapacífica e respeitosa das dife-

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ONDEBORDADOS DE ANTÔNIA ZULMA DINIZ, ÂNGELA, MARILU, MARTHA, E SÁVIA

DUMONT SOBRE DESENHO DE DEMÓSTENES PARA O LIVRO ‘EXERCÍCIOS DE SER

CRIANÇA’ DE MANOEL DE BARROS ED.SALAMANDRA.

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ESTÁ O OUTRO?renças e – sinteticamente – dapluralidade na condição humana.

A literatura brasileira tidacomo infantil tem, desde Mon-teiro Lobato, exercitado esseolhar sobre a diferença, tomadacomo motivo para o enriqueci-mento das trocas e de valorização

da alteridade. Tanto assim que ahegemonia do adulto sobre a cri-ança, o absolutismo das verdadesindiscutíveis, o saber esvaziadode experiência são abalados nasrelações de D. Benta com os seusnetos e nas intervenções provoca-tivas de Emília – certamente oalter-ego de Lobato. A vívidalição de democracia do ‘Andersenda América Latina’, não copia oconformismo e a submissão dosmodelos da literatura infantilclássica.

Pelo contrário. Quando em OS tio do Pica-pau Amarelo, aspersonagens das histórias infantisde todo o mundo se reúnem nasterras da Vovó, é o respeito a estadiversidade de sujeitos e o direitoa seus próprios papéis, rede-finidos segundo uma contextua-lização necessária, que comandaa seqüência da narrativa em OMinotauro: a preta velha, Tia

Anastácia, por conta de seusdotes (= quitutes) se transformano objeto do desejo do Monstro– ao invés de qualquer das lindase jovens princesas, como no mitooriginal. Além de a voz infantilsoar ao longo destas novelas, danegra beiçuda assinar um livro(Hist rias de Tia NastÆcia), asfábulas e o conhecimento cientí-fico comparecem igualmentequestionados pelas curiosas per-sonagens do Sítio, apontando aalteridade sobre a qual se constróiuma concepção de mundo emque as diferenças deixam de serobstáculo à convivência para setornar defesa contra as hegemo-nias autoritárias ou excludentes.

Depois do mestre, em todauma segunda e uma terceira ge-ração de escritores dentro do

gênero, há os que se mantiveramfiéis a este princípio subjacente àescrita lobatiana. Com o mineiroBartolomeu Campos Queirós,uma história poética faz reluzir aalteridade no intuitivo amor do

menino pelos Ciganos. Ondetodos vêem perigo e ameaça,furtivamente, o coração memo-

rioso da personagem infantilrecupera o sonho e a arte perma-nente daquele povo nômade. Nadiferença, ele imagina uma possi-bilidade de (também) ser feliz. Éa falta da alteridade o que o nar-rador em Mais com mais dÆmenos denuncia: quem nãoreconhece o outro, nem a si(re)conhece; perde-se numa de-formidade caricata de sujeito deposses, despossuído no entanto,de qualquer identidade que nãosejam seus bens materiais.

Co-movida pelos anos derepressão e intolerância, a lite-ratura infantil surgida nos idos desetenta do século passado (XX), éexemplar desta disposição. A pre-miada Ana Maria Machado exerceuma crítica à ditadura do mesmo,(por oposição a alter/ outro)desde seu conto de fadas, declar-adamente às avessas (ou seriafábula política?) Hist ria meio

ao contrÆrio, em que ilustra o

comprometimento do reino pelodesconhecimento do outro. Coisaque Ruth Rocha, na mesma linha,discutirá em seus reizinhos, so-bretudo em O que os olhosnªo vŒem e O reizinho

mandªo. Pelo avesso, esta auto-ra ainda tocará o tema, em Doisidiotas, sentados cada qual

em seu barril..., em que a intol-erância gera não só o belicismo,mas ameaça a sobrevivência detodos. Ana Maria vai, por outromeca-nismo narrativo, valorizar aalteridade na aproximação sim-bólica entre um menino branco e

um preto velho em Raul da fer-rugem azul, que possibilita à cri-ança a con-dição de reconhecer ooutro que vive nele, reprimido.

Na procura deste reconheci-mento de si mesmo pelo contatocom o outro, Ziraldo vai inscre-ver sua obra para criança nesteuniverso das alteridades com olivro Flicts, em que, desde o títu-lo, sugere uma diferença incômo-da (o que é isto?), rejeitada e mar-ginalizada, até encontrar-se com

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continua

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continuaçãoseu alter-ego. Caminhado pelasdiferenças, pode encontrar suaidentidade. Na lúdica história de

uma cor estranha em busca deseu lugar, o escritor saúda naocasião da chegada à Lua, aextensão das possibilidades parao novo, para o diferente, para ogauche. O mesmo olhar vai con-templar o problema da cor nocuidadoso Menino marrom eremete a memória ao prece-dente Menino maluquinho,no qual a diferença podechamar-se felicidade.

Do mesmo modo, Joel Rufinojá havia tratado da rejeição àalteridade em Uma estranha

aventura em Talalai, seguindouma preocupação política que aincursão de Graciliano Ramosnas letras para crianças abordaraem A terra dos meninos pela-

dos. Ambos narram o perigo dasmarginalizações por conta dadiferença e a contaminação im-perceptível da ideologia, quandomudamos de espaço (do lugar daenunciação) e corremos o riscode repetir o gesto discriminadorde que fomos vítimas.

Quando O menino que car-

regava Ægua na peneira, deManoel de Barros nos surpre-ende, é porque traz o sinal de quea poesia resiste no cotidiano emque a cobrança de resultados nosacuam e de que o ócio pode serbem produtivo numa sociedadeque descarta a contemplação e aimaginação em favor do con-sumo irrefletido do supérfluo.Cecília Meireles em Duas velhi-nhas já brincara com a diversi-dade de Marina e Mariana.

Uma obra com muitos exem-plos desta postura é a de LygiaBojunga, desde o despretensiosoOs colegas, passando pelo jáclássico A bolsa amarela,seguindo por, Meu amigo pin-

tor, N s trŒs, refletindo sempre aintolerância à diferença comoCorda bamba um processo dedestruição ou de auto-destruição.É de tal ordem este enlace eu-e-o-outro que Paisagem, considerainseparáveis a escrita e a leitura,alegorizada na articulação entre aescrita do leitor e a narrativa de

seu autor favorito.As obras pessoalíssimas de

Marina Colasanti tematizam estadificuldade de lidar no plano pes-soal com a alteridade, com arelação assentada no reconheci-mento e acolhimento do outroque escapa ao controle e à posse,que se recusa à imitação, espelho,cópia ou apêndice e, cuja des-semelhança, se instala um des-conforto, pode ao mesmo tempocriar a percepção de que a com-plexidade das diferenças alarga oshorizontes do mundo: A mulher

ramada, Entre a espada e arosa e O œltimo rei servem dereferência para este apontamento.

Além disto, a literatura infan-til brasileira tem dado espaço emsuas obras para tratar sem mora-lismos, de preconceitos que en-volvem minorias étnicas, etárias,religiosas, políticas, culturais e degênero, discutindo as condiçõesde produção de saberes e modosde viver que não acompanhamnecessariamente a práxis coletiva.Há uma beleza tocante no conto

de Sérgio Capparelli, Vov

fugiu de casa e na mesmaordem de relações intergera-cionais está o inesquecível Amªe da mªe da minha mªe,de Therezinha Alva-renga. Nolivro de Mirna Pinsky, As

muitas mªes de Ariel, evitan-do sucumbir ao discurso de pola-rização, a questão do feminino édesviada habilmente do risco deum inverso simétrico no qual acondição da mulher se alçariapelo rebaixamento do masculi-no: mãe e filho vão se reco-nhecendo, aos poucos, no coti-

diano e assistem ao assomo desuas identidades.

Na novíssima geração, nãofaltam ricas ilustrações desta pre-ocupação pós-moderna que, semse explicitar metalinguisticamente,vai considerando no mundo con-temporâneo a necessária alteri-dade. Numa linha que recorda,por um lado, o alegre humor deSylvia Orthof, construído justa-mente ao surpreender as dife-

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ONDE ESTÁ O O

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renças de percepção do mundono olhar das personagens, – lem-

bremos dela em Se as coisasfossem mªes e Os bichos quetive –, Leo Cunha escreveu Pelaestrada afora; por outro,bebendo em fonte ‘queirosiana’,trata com de-licadeza a carênciado Outro em seu recente Te mmenina na varanda. Já LuciaFidalgo, no conto central da trilo-gia Amor, amor, amor, traz aapreciação feita por um neto davida dos avós através de suas car-tas – O tempo do amor dosdois –, e o leitor vai acompan-hando as dife-renças no modo deser e de amar de cada um.

A busca pelo outro,empreendida como umasuplementação de si ecomo condição dealcan-çar-se na difer-ença a realizaçãodo desejo deidentificação,a p a r e c e

ilustrada nas obras sem texto deRoger Mello, A flor do lado de

lÆ, e de Graça Lima, Noite decªo, relíquia poética para qual-quer idade. Livros de imagenscomo C ntico dos c nticos eOutra vez, de Ângela Lago játraziam este jogo das alteri-dades que se completam.

O espaço aberto à existênciado outro, pelo reconhecimentode seu direito à diferença, tem

uma dimensão ética e outra políti-ca, além da de natureza estética.Por conta de nos sabermos iguaisnos direitos e diferentes nos dese-jos e suas expressões, abre-se umaporta à compreensão da diversi-dade que, na condição humana,só a dignifica pela complexi-dade apresenta-d a ,

painel de pluralidade e dealternâncias.

Por outro lado, os sabereslocais, as mani-

festações cul-turais de gru-pos distin-tos, as vozesalternativasà voz domi-nan t e

do sistema (que nos tenta coibir aum modelo único de comporta-mento e pensamento), ex-pan-dem o nosso olhar sobre a alteri-dade e podem oferecer o con-traponto necessário ao auto-con-hecimento, como pessoa ougrupo. A existência de expressões,de va-lores, de pensamentos e depráticas diversas suscitou, é bemverdade, através dos tempos,histó-rias de repressão eperseguição que envergonham a

História. É chegado o tempoem que a co-ocorrência da

diversidade compõe umequilíbrio de ordem

pol í t ico-cul tura l ,previne as hegemo-nias e ensaia acidadania pelorespeito à ‘outri-

dade’.

ELIANA YUNES Doutora emLetras, Puc-Rio. Escreveu

com Glória PondéLeitura & Leituras daliteratura infantil.

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UTRO?QUADRINHOS DELUIS AUGUSTO GOUVEIA, ‘FALA MENINO VOL.3’ ED. FMP! WWW.FALAMENINO.COM.BR

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GILBERTO VELHOO desenvolvimento da Antropologia,

enquanto área do conhecimento, se dá apartir da noção de Cultura. O uso dessanoção se dá originalmente, diante dadescoberta, com maior ou menor perplexi-dade, de modos e estilos de vida, visões demundo, atitudes e comportamentos distin-tos dos que predominavam no mundo oci-dental, particularmente na Europa e nosEstados Unidos, nos séculos XIX e XX.Embora, de início, a idéia de Cultura fosseum esforço de conscientização de diferençasdentro da civilização ocidental, a diferençaimediata, às vezes chocante, que se estabele-cia no confronto com sociedades exóticas,africanas, asiáticas, americanas, apresentavaum desafio para a consciência ocidental.Tratava-se, então, de classificar, hierarquizare explicar, na medida do possível, as dife-renças entre povos e sociedades. A Culturatem sido definida como um conjunto com-plexo de códigos que asseguram a ação cole-tiva de um grupo. A noção de cultura comocódigo, conjunto de regras de interpretaçãoda realidade que permitem atribuição desentido ao mundo natural e social, implicafundamentalmente na idéia de sistema. Tratara cultura como sistema, significa admitiralgum tipo de coerência, onde cada costume,regra, crença ou comportamento faz parte deum conjunto que dá sentido às partes.

Deve-se observar que a ciência da diver-sidade cultural da humanidade não remon-tava apenas ao século XIX. Os canibais deMontaigne já tinham provocado um forteimpacto no pensamento europeu, mas agênese da Antropologia se faz numa conjun-tura histórica em que a relação das me-trópoles com as colônias muda de sentido.O objetivo, agora, era transformar as popu-lações coloniais, adequá-las ao sistema capi-

talista, não apenas como ocupantes indese-jáveis de território a ser predado, ou comofonte de mão-de-obra escrava, mas comoparticipantes em um grande mercado inter-nacional, onde também serão consumi-dores, tendo que, mal ou bem, adotar va-lores de uma cultura ocidental. A unidadedo gênero humano, assim, não deixava deencobrir, sob a capa piedosa do cristianismoou do cientificismo, uma necessidadehistórica da expansão colonial. No entanto,o destino da Antropologia não era o deserva fiel do colonialismo. Seu movimentohistórico pode ser resumido na idéia de umacrescente percepção da especificidade dasdiferenças culturais em si. O que melhorcaracteriza a posição antropológica é o es-forço de reconstruir os critérios internos quecada cultura utiliza para sua auto-reflexão.Não se tratava mais, superando uma pers-pectiva evolucionista mais estreita, de julgar,por exemplo, os aborígenes australianos, porsua discutível pobreza tecnológica, colocan-do-os numa hipotética ‘Idade da Pedra’,comum a toda Humanidade, mas sim deverificar em que domínio, esta sociedade,assim como outras, australianas, sul-africanas ou americanas, atingiram maiorelaboração.

Hoje a Antropologia já está voltada,retomando as primeiras discussões sobreCultura e Civilização e sem abandonar ointeresse pelas sociedades tribais e tradi-cionais, ao estudo das sociedades moderno-contemporâneas. Dessa forma, as diferençasdentro de cada sociedade tornam-se, cadavez mais, importantes temas de pesquisa. OBrasil tem aparecido como um caso espe-cialmente interessante para discussão dostemas das diferenças, das identidades e dopluralismo sócio-cultural. Sua complexidadetem sido um desafio para as diversas linha-gens e orientações do mundo das CiênciasSociais. As diferenças étnico-culturais, de

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O PONTO DE VISTA FASCÍCULO 4 | AGOSTO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR

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classe social, de região do país, de religião,são algumas das variáveis chaves que pro-duzem esse quadro em que a unidade ésempre relativa, apresentando sempre con-tradições, tensões e conflitos.

Por outro lado, o processo de globaliza-ção, na realidade, é muito mais antigo doque o senso comum contemporâneo acredi-ta. Sabemos, pela história e pela arqueolo-gia, como a humanidade desde as suas ori-gens sempre caracterizou-se por desloca-mentos, trocas e interações fazendo comque qualquer noção de ‘pureza’ e de ‘isola-mento’ precise ser relativizada. O desen-volvimento do que conhecemos comoCivilização Ocidental tem, na sua origem,períodos de particular intensidade de inter-câmbio cultural, como nas relações entreGrécia, Egito e Pérsia, o período Helenísticoe o Império Romano, entre outros. A mo-dernidade tem como um de seus eixos prin-cipais a expansão marítima que tem início,grosso modo, nos séculos XV e XVI, dandoorigem aos grandes impérios coloniais, asso-ciados ao mercantilismo. A expansão docapitalismo e desenvolvimento do imperia-lismo produziram novas e aceleradas formasde globalização. Vivemos, contemporanea-mente, uma experiência muitas vezes confli-tuosa entre uma expansão e aceleração decomunicação e intercâmbio entre todas asregiões do planeta e, por outro lado, umaforte consciência da particularidade dasidentidades culturais. Estas podem estarassociadas a diversas variáveis, mas semdúvida, a etnicidade e a religião têm sidoespecialmente significativas, como o movi-mento negro e a mobilização islâmica têmdemonstrado.

A pressão exercida por interesses eco-nômicos e políticos para a ocupação detodos os espaços, tem provocado reações àsvezes bastante radicais em defesa de valorese crenças secularmente constituídos. A ten-

tativa de incorporar conquistas científicas etecnológicas e, ao mesmo tempo, respeitar asingularidade cultural de cada sociedade ougrupo social é, certamente, um dos maioresdesafios do mundo contemporâneo.

BIBLIOGRAFIA SUGERIDA

BERGER, Peter e LUCKMAN, Thomas. 1973. A

cons-trução social da realidade: tratado de sociologia do

co- nhecimento. Petrópolis, Vozes.

GEERTZ, Clifford. 1978. A interpretação das culturas.

Rio de Janeiro, Zahar.

M ATTA, Roberto da. 1979. Carnavais, malandros e

heróis. Rio de Janeiro, Zahar.

FIRTH, Raymond. 1974. Elementos da organização

social. Rio de Janeiro, Zahar.

LARAIA DE BARROS, Roque. 1989. Cultura: um

conceito antropológico. Rio de Janeiro. Jorge Zahar.

L VI-STRAUSS, Claude. 1967. ‘Introdução à obra de

Marcel Mauss’. In: Estruturalismo. São Paulo, Martins

Fontes.

____. 1970. ‘Raça e História’. In: Raça e ciência. São

Paulo, Perspectiva. UNESCO.

SAHLINS, Marshall D. 1979. Cultura e razão prática.

Rio de Janeiro, Zahar.

VELHO, Gilberto (org.). 1974. Desvio e divergência:

uma crítica da patologia social. Rio de Janeiro, Zahar.

____. 1981. Individualismo e cultura: notas para uma

antropologia da sociedade contemporânea. Rio de

Janeiro, Zahar.

GILBERTO VELHO Professor Titular de Antropologia Social doMuseu Nacional/UFRJ. Em 1995, recebeu a comenda daOrdem Nacional do Mérito Científico e, em 1999, a da Ordemde Rio Branco. Entre seus livros estão: A utopia urbana;Individualismo e cultura; Nobres & anjos.

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“N s dois lemos a B blia dia enoite, mas tu lŒs negro onde euleio branco.

”WILLIAM BLAKE 1752-1827 Poeta inglês.

DA ANTROPOLOGIAFASCÍCULO 4 | AGOSTO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR

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MARINA COLASANTIDois príncipes, um louro, e um moreno.

Irmãos, mas os olhos de um azuis, e os dooutro verdes. E tão diferentes nos gostos e nossorrisos, que ninguém os diria filhos domesmo pai, rei que igualmente os amava.

Uma coisa porém tinham em comum:cada um deles queria ser o outro. Nos jogos,nas poses, diante do espelho, tudo o que umqueria era aquilo que o outro tinha. E dealma sempre cravada nesse desejo insatis-feito, esqueciam-se de olhar para si, de

serem felizes.Sofria o pai com o sofrimento dos

filhos. Querendo ajudá-los, pensouum dia que melhor seria dividir oreino, para que não viessem a lutar

depois da sua morte. De tudo oque tinha, deu o céu para

seu filho louro, quegovernasse junto aosol brilhante comoseus cabelos. E en-tregou-lhe pelas ré-deas um cavalo

alado. Ao moreno coube o verde mar, reflexode seus olhos. E um cavalo marinho.

O primeiro filho montou na garupa lisa,entre as asas brancas. O segundo filho firmou-se nas costas ásperas do hipocampo. A cadaum, seu reino. Mas as pernas que roçavam emplumas esporearam o cavalo para baixo, emdireção às cristas das ondas. E os joelhos queapertavam os flancos molhados ordenaramque subisse, junto à tona.

Do ar, o príncipe das nuvens olhou atravésdo seu reflexo, procurando a figura do irmãonas profundezas.

Da água, o jovem senhor das vagas que-brou com seu olhar a lâmina da superfícieprocurando a silhueta do irmão.

O de cima sentiu calor, e desejou ter o marpara si, certo de que nada o faria mais feliz doque mergulhar no seu frescor.

O de baixo sentiu frio, e quis possuir océu, certo de que nada o faria mais feliz doque voar na sua mornança.

Então emergiu o focinho do cavalo mari-nho e molharam-se as patas do cavalo alado.Soprando entre as mãos em concha os doisirmãos lançaram seu desafio. Alinhariam oscavalos na beira da areia e partiriam para alinha do horizonte. Quem chegasse primeiroficaria com o reino do outro.

– A corrida será longa, – pensou oprimeiro. E fez uma carruagem de nuvens queatrelou ao seu cavalo.

– Demoraremos a chegar, – pensou osegundo. E prendeu com algas uma carru-agem de espumas nas costas do hipocampo.

Partiram juntos. Silêncio na água. No ar,relinchos e voltear de plumas. Longe, a linhade chegada dividindo os dois reinos.

Os raios de sol passavam pela carruagemde nuvens e desciam até a carruagem deespumas. Durante todo o dia acompanharama corrida. Depois brilhou a lua, a leve sombrade um cobriu o outro de norte mais profun-da. E quando o sol outra vez trouxe sua luz,

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UM DESEJO E DOIS

PÉGASUS, DE ODILON REDON, 1900. ACERVO DO HIROSHIMA MUSEUM OF ART.

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CONTOS DO CANTO

ORIENTALENTREVISTA

Yoshi Hioki é um pintor japonês quefoi para Barcelona há dez anos para aper-feiçoar sua arte. Lá ele acabou desco-brindo outra arte, a de contar histórias.Em 1999 conheceu a contadora mexicanaMarta Escudero que se tornou sua amigae professora: ‘Fiquei tão emocionado aoescutar os contos do país de Marta quequis levar a beleza dos contos popularesjaponeses a todos os que quisessem com-partilhar dos nossos sentimentos, dasnossas diferenças e semelhanças’.

LC: No ocidente os contos sempre foramum meio de educar e transmitir a moral ea tradição da sociedade. Com o tempo,acabou se criando a noção de contoscomo algo para crianças. Também é assimno Japão?HIOSHI: Os contos tradicionais japonesesnão fazem essa diferenciação entreinfantis e adultos, originalmente eleseram contados reunindo toda a família,crianças e adultos. Alguns inclusive pos-suem temas fortes ou difíceis de serementendidos pelos menores, mas elesmesmo assim os escutam. Nunca com opensamento de educar os pequenos. Hávários tipos de contos no Japão, algunssimplesmente descritivos da natureza ede fenômenos da vida; outros, mais lon-gos, são antigos contos budistas paraeducar os corações e mentes de todos.Os contos japoneses só passaram a teruma classificação etária com a chegadada influência ocidental.LC: Como é contar histórias tradicionaisjaponesas na Europa? Afinal são duas cul-turas bem distintas. HIOSHI: Sempre me surpreendo quandoestou contando histórias aqui no oci-

dente, porque as pessoas não somenteentendem as palavras, mas podem com-preender a sensação, a emoção. Isto sig-nifica que os contos, apesar de seremdiferentes de origem, trazem em si umauniversalidade. Encontramos muitoscontos semelhantes nas tradições afri-canas, européias, sul-americanas e demuitos outros povos. Mudam-se osnomes dos personagens, mas a essência éa mesma. Mas seguramente existe a dife-rença, só que ela está mais na maneira denarrar. As técnicas de narração japonesase ocidentais são muito distintas.

Os contos japoneses são muitosuaves, e com temas a que os europeusnão estão acostumados. Os contos eu-ropeus têm muita ação, mudanças decenários, movimento. No Japão os con-tos são muito tranqüilos, calcados nadescrição da beleza e da força da na-tureza. Falando assim, para muitos pare-cerão aborrecidos, mas nós gostamos desaborear a palavra, e também o silêncioentre as palavras. As crianças japonesasestão habituadas inclusive com a tristeza.Noto na Europa que tudo para a criançadever ser carregado de alegria, mas noJapão a criança sabe que a tristeza tam-bém é parte da maravilha da vida.

SAMIRO YUNOKI, WWW.SAMIRO.NET

surpreendeu-se de ver o cavalo alado exata-mente acima do cavalo marinho. Tão acimacomo se, desde a partida, não tivessemsaído do lugar.

Galopava o tempo, veloz como os irmãos.Mas a linha do horizonte continuava igual-mente distante. O sol chegava até ela. A luachegava até ela. Até os albatrozes pareciamalcançá-la no seu vôo. Só os dois irmãos nãoconseguiam se aproximar.

De tanto correr já se esgarçavam as nuvensda carruagem alada, e a espuma da carruagemmarinha desfazia-se em ondas. Mas os doisirmãos não desistiam, porque nessa segundacoisa também eram iguais, no desejo de vencer.

Até que a linha do horizonte teve pena.E devagar, sem deixar perceber, foi chegan-do perto.

A linha chegou perto. E chegou perto.Baixou seu vôo o cavalo alado, quase

tocando o reflexo. Aflorou o cavalo marinhoentre marolas. As plumas, espumas setocaram. Céu e mar cada vez mais próximosconfundiram seus azuis, igualaram suastransparências. E as asas brancas do cavaloalado, pesadas de sal, entregaram-se à água, acrina branca roçando já o pescoço dohipocampo. Desfez-se a carruagem de nuvensna crista da última onda. Onda que inchou,rolou, envolvendo os irmãos num mesmoabraço, jogando um corpo contra o outro, jun-tando para sempre aquilo que era tão separado.

Desliza a onda sobre a areia, depositandoo vencedor. Na branca praia do horizonte,onde tudo se encontra, avança agora umúnico príncipe, dono do céu e do mar. Deolhos e cabelos castanhos, feliz enfim.

MARINA COLASANTI Poeta, contista, cronista, jornalista, publi-citária e artista plástica. Ganhou o Prêmio Jabuti (1993 e 1994)e prêmios internacionais como o do Concurso Latinoame-ricano de Cuentos para Niños (FUNCEF/UNICEF) 1994.Entre suas obras estão O leopardo Ø um animal delicado;Esse amor de todos n s; Longe como meu querer.

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IRMÃOS

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VERA VIDALA questão filosófica da identidade e da

diferença é uma das mais clássicas, problemáti-cas e constantes da História do Pensamento,sendo a base de discussões com ressonânciasprofundas em quase todos os segmentos donosso existir.

Afirmamos, com relativa simplicidade, quesomos iguais perante a lei, que certa pessoa éidêntica a outra, que uma experiência vividahoje nos remete a uma igual vivida no passado.Rebelamo-nos contra atitudes que discrimi-nam, que estabelecem diferenças sociais,econômicas, educacionais. Em nome da igual-dade de direitos, exigimos igualdade de trata-mento para todos os seres humanos.

Se não quisermos que nosso discurso sejameramente retórico ou um poético jogo depalavras com alta carga de emotividade prejudi-cial ao tratamento objetivo das questões queenvolvem as noções de igualdade e desigual-dade, identidade e diferença, precisamosesclarecer o significado destas noções.

A propriedade de ser igual ou diferente érelacional e relativa. Só em relação a um certocontexto será possível afirmar que a é ou não éigual a b. Assim, não se aplica a propriedade daigualdade com sentido absoluto, mas emrelação a um certo referencial.

Já a propriedade de identidade pode sertomada em sentido absoluto, independente-mente de qualquer contexto. A afirmação deque a é idêntico a a, ou melhor, que todo ser éidêntico a si próprio é uma tautologia, uma afir-mação tida como inquestionável a menos quese conteste o princípio de auto-identidade, oque gera muitas dificuldades teóricas e práticas.

Pode, então, ser concluído que tudo queé idêntico é igual, mas nem tudo que éigual é idêntico.

Quando nos revoltamos contra as dife-renças de tratamento que os sistemas socio-

econômicos aplicam às diversas camadas sociaise exigimos igualdade nos direitos que todospossuem a um tratamento homogêneo, nãoestamos pressupondo uma identidade dos sereshumanos. Sabemos que cada ser é único, indi-vidualizado por suas propriedades e vivências.Mesmo com homogeneidade de tratamento,cada um evoluirá de forma própria, diferencia-da. Nos seres humanos, a inteligência e o livrearbítrio de cada sujeito torna suas ações ereações quase imprevisíveis.

As diferenças são a marca comum aosseres, o que confere riqueza, dinamismo, cria-tividade ao existir. Sem elas, a natureza e ahumanidade seriam insuportavelmente mo-nótonas e o tédio se tornaria a característicamarcante da existência.

Respeitar as diferenças – de cor, sexo, idéias,cultura – é respeitar a essência mesmo do exis-tir. Só há crescimento no diálogo respeitoso dasdiferenças; só há emoção diante do mistério dodesconhecido que se revela paulatinamente; só

há grandeza no evoluir livre de diferenças quese justapõem sem se aniquilarem neste contato.

Tolerância é a virtude do respeito às dife-renças, da compreensão de que é diante de umaalteridade que pode até incomodar, que reafir-marei os contornos de minha identidade e aadmiração pelo que me é diferente.

Devemos ser intolerantes com qualquer ati-tude de desrespeito aos direitos fundamentaisde todo ser: o de sobreviver com dignidade,sem exclusões. No que concerne aos sereshumanos, estes precisam ter as condições míni-mas necessárias ao exercício de sua vontade,cidadania e crescimento pessoal. No caso detodos os seres vivos ou não que compõem anatureza, precisam ter a garantia à sua sobre-vivência e evolução natural.

Se assumirmos que as diferenças são a ca-racterística própria do existir e a tolerância a vir-tude que alicerça a paz entre as diferenças,como justificar que as leis devam aplicar-secomo se todos fôssemos iguais, ou que os go-vernos devam considerar todos os cidadãoscomo sendo iguais? Compreendendo que apropriedade de ser igual relativamente aos di-reitos, às leis, não implica em que se considereos cidadãos como sendo idênticos. Res-guardadas as necessárias diferenças individuais,deve ser exigida a igualdade de oportunidades etratamento para todo cidadão. O direito à ali-mentação, moradia, educação, trabalho, segu-rança pessoal, proteção à saúde, tem que serassegurado sem qualquer diferenciação de raça,sexo, cultura, ideologia, religião.

Tendo garantida esta igualdade de oportu-nidades e direitos fundamentais, cada pessoaevoluirá segundo suas diferenças peculiares e atolerância, o respeito e a valorização das dife-renças irá constituir a riqueza da humanidade,pluralista e variada, porém harmônica. Orespeito às diferenças é, portanto, o caminhonecessário a uma cultura da paz !...

VERA VIDAL é do Departamento de Pesquisa – COC – Fiocruz eConsultora da UNESCO

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VIRTUDE DA TOLERÂNCIADIVULGAÇÃO

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JOSÉ DURVAL CAVALCANTIDE ALBUQUERQUE

Em um desses contos bem antigos, semidade e sem autor, possivelmente nascido doesforço do homem para entender a suanatureza, vamos encontrar a história deNarciso, que nasceu dos amores de um riochamado Cefiso por uma mulher de rarabeleza, a ninfa Liríope. A mãe, encantadapor seu filho, procura o sábio Tirésias parasaber se ele teria vida longa. Como resposta,ouve que ‘Viverá muito tempo se ele jamaisse conhecer’. Bonito e orgulhoso disto,Narciso cresce indiferente ao amor. Todas asmulheres que dele se aproximam sãodesprezadas, inclusive a bela ninfa Eco, quepor ele apaixonara-se. Só que por contadeste repúdio a ninfa procura a deusaNêmesis, que punia os mortais insolentes,pedindo que ela castigue Narciso. A deusa ocondena a amar sem poder possuir o objetodo seu amor. Um dia, ao caminhar pelocampo, Narciso aproxima-se sedento deuma fonte onde animal ou homem jamaistinha tocado e debruça-se para beber. Nistocontempla sua imagem, por ela se apaixonae, sem saber, passa a desejar a si mesmo. Estedesejo, de intenso que é, desliga-o de qual-quer necessidade, fazendo com que seesqueça do que seja a fome ou o sono. Dá-se conta de seu apaixonamento por simesmo e deseja morrer. Morre, e aquelesque preparavam seu funeral reparam que ocorpo desapareceu e que, em seu lugar, surgeuma flor com um centro cor de açafrão cercadode pétalas brancas que veio a se chamar narciso.

O homem, em suas origens, encontra-seem esplêndido berço de isolamento onde omundo é ele, não existindo aí qualquerdiferença. Pouco equipado para sobreviversozinho, depende de um outro que o apre-sente ao sol da tarde, ao verde do campo,natureza inicialmente bela que vai descobrir

de consistência doída porque de qua-lidade diferente da sua. Como que derepente acorda deste suave ignorar,engano fácil, onde tudo parecereflexo do espelho, aturdido coma impressão de ter perdidoalguma coisa que desco-nhecia. Vai se dando contade que este sentimento quechegou para ficar tem a vercom este outro que ele não é.Narciso se recusa a amar para nãosaber deste outro diferente de si.Ó complicação, ó sofrer! Não que-ria saber deste mundo mas nãoqueria deixar de ser. Escolhe poristo o sono no qual, virado emflor, continuaria a ser. Assim seriasem conhecer nada ou ninguém.Então bastou ser flor, umlugar, nada mais.

JOSÉ DURVAL CAVALCANTI DE

ALBUQUERQUE Médico, psiquia-tra e psicanalista, membro da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle.

13NARCISO, DE CARAVAGGIO, 1594 . ACERVO GALERIA NACIONAL DE ROMA.

NARCISO

“Louvada seja, Diversidadedas criaturas, sereia

do mundo!

s vezes nªo escolhi

pois pareceu-me que, ao escolher,

eu estaria te excluindo,

Diversidade, maravilha perpØtua...”

D'ANUZZIO 1863-1938 Escritor italiano.

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JOEL RUFINOOs povos que nos habituamos

a chamar de ‘índios’ estavam aquihá pelo menos 40 mil anos. Sãoeles a origem do povo brasileiroatual. Falavam milhares de línguase constituíam milhares de cul-turas. O colonizador lhes deu umrótulo simplificador (índios) e ten-tou apagá-los de nossa genealogia,mas eles são os nossos avós. Todobrasileiro, mesmo o negro e obranco atuais, traz em si genes dasmoças indígenas que os portugue-ses engravidaram – por amor oupela força. E aqueles ‘selvagens’carregadores de pau-brasil emtroca de miçangas são a origem daclasse trabalhadora brasileira – sejaum metalúrgico do ABC paulista,um flanelinha carioca, um extra-tor de látex amazonense ou umpeão de charqueada gaúcho.

Os africanos vieram em segui-da. Não voluntariamente, comoos europeus. Uma tradição didáti-ca ensina que ‘os africanos foramescravos no Brasil porque osíndios não se submetiam àescravidão’. Se a escola brasileiraensinasse a pensar, ao invés dedecorar fórmulas, esta toliceestaria sepultada há muito tempo.A escravidão dos africanos foi umgrande negócio: o capitalismotransformou gente em mercadoriaglobal. O índio, sendo daqui, nãopodia ser comprado e vendido.

Nossa escola também nãoensina que os primeiros negros(africanos e brasileiros) são a basedo povo brasileiro atual. Tudo o

que existe foi feito por eles:lavouras, pecuárias, prédios,móveis, estradas, pontes, igre-jas... Tudo. Foram os burros decarga, os criados, as amas-de-leite, os moleques de recado, asmolecas-pra-fazer-sacanagem,asamantes, as mães de santo, ascozinheiras, as passadeiras...Todaprofissão era monopólio dosnegros escravos. Além disso, osnegros superam os brancos emnúmero de gente. Todo brasi-leiro, mesmo o branco de olhosazuis, tem por isso um pé nacozinha.

Os europeus (portugueses,espanhóis, italianos, alemães,eslavos, orientais) completaram a

formação étnica do povo bra-sileiro. No plano social sempreestiveram por cima: fazendeiros,comerciantes, industriais, colo-nos, profissionais liberais, políti-cos, intelectuais... É uma ano-malia: quem contribuiu maiscom o ‘sangue’ brasileiro (índiose negros), se beneficiou menosdo progresso brasileiro.

Ou corrigimos essa ano-malia ou um dia, quem sabe,ela nos devore.

JOEL RUFINO Historiador, romancista, professorda UFRJ e membro do Comitê CientíficoInternacional do Programa Rota do Escravo(UNESCO). Entre suas obras estão: Cr nicasde indomÆveis del rios; Gosto de f̀rica;Mania de trocar.

PRONOMINAIS

“DŒ-me um cigarroDiz a gramÆtica

Do professor e do aluno

E do mulato sabido

Mas o bom negro e o

bom branco

Da Na ªo Brasileira

Dizem todos os dias

Deixa disso camarada

Me dÆ um cigarro”

OSWALD DE ANDRADE 1890-1954Escritor, criador dos movimentos‘Pau-Brasil’ e ‘Antropofágico’.Escreveu entre outros: Pau-Brasil;Serafim Ponte Grande.

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QUEM SOMOS NÓS?Como se formou o povo brasileiro?

‘OPERÁRIOS’ DE TARSILA DO AMARAL, 1933. ACERVO DO PALÁCIO DO GOVERNO DO ESTDO DE SÃO PAULO.

©1999, PAUBRASIL / EDITORA GLOBO.

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DANIEL MUNDURUKUMeu avô costumava dizer que tudo está

interligado entre si e que nada escapa datrama da vida. Ele costumava me levar parauma abertura da floresta e deitava-se sob océu e apontava para os pássaros em plenovôo e nos dizia que eles escreviam uma men-sagem para nós. ‘Nenhum pássaro voa emvão. Eles trazem sempre uma mensagem dolugar onde todos nos encontraremos’, diziaele num tom de simplicidade, a simplicidadedos sábios. Outras vezes nos colocava emcontato com as estrelas e nos contava aorigem delas, suashi s tór ias .

Fazia isso apontando para elas como ummaestro que comanda uma orquestra.

Confesso que não entendia direito o queele queria nos dizer, mas o acompanhava paratodos os lugares só para ouvir a poesia presenteem sua maneira simples de nos falar da vida.

Numa certa ocasião ele disse que cadacoisa criada está em sintonia com o criador eque cada ser da natureza, inclusive o homem,precisa compreender que seu lugar nanatureza não é ser o senhor, mas um parceiro,alguém que tem a missão de manter o mundoequilibrado, em perfeita harmonia para que omundo nunca despenque de seu lugar. ‘Enquanto houver um único pajé sacudin-do seu maracá, haverá sempre a certeza deque o mundo estará salvo da destruição’.Assim nos falava nosso velho avô como sefôssemos – eu e meus irmãos, primos eamigos – capazes de entender a força desuas palavras.Só bem mais tarde, homem adulto,conhecedor de muitas outras culturas,pude começar a compreender a enor-

midade daquele conhecimento saído daboca de um velho que nunca tinha sequer

visitado a cidade ao longo de seus mais de80 anos. Percebi, então, que meu avô era umhomem com uma visão muito ampla da

realidade e que nós éramos privile-giados por termos convivido

com ele.Estas lembrançassempre me vêm àmente quandopenso na diver-sidade, na dife-rença étnica esocial. Pensonisso e medeparo coma compre-ensão demundo dos

povos tradicionais. É uma concepção ondetudo está em harmonia com tudo; tudo estáem tudo e cada um é responsável por esta har-monia. É uma concepção que não exclui nadae não dá toda importância a um único ele-mento, pois todos são passageiros de umamesma realidade, são, portanto iguais. Noentanto, não se pode pensar que esta igual-dade signifique uniformidade. Todos estes ele-mentos são diferentes entre si, têm uma per-sonalidade própria, uma identidade própria.

Através de minhas leituras e viagens fuicompreendendo, aos poucos, aquilo que omeu avô dizia sobre a sabedoria que existeem cada um e todos os seres do planeta.Descobri que não precisa ser xamã ou pajépara chacoalhar o maracá, basta colocar-sena atitude harmônica com o todo, como seestivéssemos seguindo o fluxo do rio, quenão tem pressa...mas sabe aonde querchegar. Foi assim que descobri os sábios ori-entais; os monges cristãos; as freiras deMadre Teresa; os muçulmanos; os evangéli-cos sérios; os pajés da Sibéria, dos EstadosUnidos, os Ainu do Japão, os Pigmeus; oseducadores e mestres...descobri que todasestas pessoas, em qualquer parte do mundo,praticando suas ações buscando o equilíbriodo universo, estão batendo seu maracá.Entendi, então, a lógica da teia. Entendique cada um dos elementos vivos segurauma ponta do fio da vida e o que fere,machuca a Terra, machuca também a todosnós, os filhos da Terra.

Foi aí que entendi que a diversidade dospovos, das etnias, das raças, dos pensamen-tos é imprescindível para colorir a Teia, domesmo modo que é preciso o sol e a águapara dar forma ao arco-íris.

DANIEL MUNDURUKU Índio da nação Munduruku, formado emfilosofia e licenciado em história e psicologia, com mestrado emantropologia social pela USP. Autor de: Hist rias de ndio;Meu v ApolinÆrio.

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NÃO SOMOS DONOS DA TEIA DA VIDA

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O LIVRO QUE

CELSO SISTOHá muitas maneiras de se encontrar com

um livro. Umas tão inesperadas e surpreen-dentes que não há jeito do livro não ficarmorando na nossa pele. E por mais que a genteresista, ele nos ronda a memória, salta pelaboca, desenha-se nos olhos, com todos os deta-lhes e palavras e letras, como se tivesse sidoescrito por nós. Aí não adianta lutar contra, olivro fica sendo seu mesmo!Comigo aconteceu assim: Era uma vez uma menina linda, linda. Os

olhos dela pareciam duas azeitonas pretas,

daquelas bem bri-lhantes. Os cabelos eram

enroladinhos e bem negros, feito fiapos da

noite. A pele era lustrosa, que nem o pŒlo da

pantera negra quando pula na chuva.

Pronto! Estava selado o acordo! A partir dodia em que essas palavras se fixaram na minhamemória, a Menina bonita do la o de fitapassou a ser minha história inseparavelmentepreferida. Eu queria ter escrito aquele texto, epor isso eu a contava. Eu queria dominar oexercício de contar com a mesma propriedadede sua autora, Ana Maria Machado; eu queriame devolver a fantasia e a alegria de ser criança

(sendo adulto!); eu queria anunciar para omundo que aquele livro marcava o meu

encontro com a literatura infantil, tan-tas vezes considerada coisa menor!

Era um encontro feliz!E quanto mais eu me apro-

priava deste texto, mais eu iapenetrando no não-dito, nas

entrelinhas, naquilo queestava por baixo daspalavras ditas aberta-mente... Fui desco-brindo outras possibili-dades de ler o texto:pelas imagens, atravésdas ilustrações(primeiro de WalterOno, na edição de1986 da Melho-ramentos; depoisde Claudius, na

edição de 1997, daÁtica) que me assi-

nala-vam coisas que otexto não dizia; pela sim-

bologia dos elementos que compõe a his-tória,como a pantera negra, o coelho branco, etc;pela psicologia, pensando naquele que quer serigual ao outro; pela estrutura da história, e suasrepetições, que me remetem para a estrutura dashistórias populares, construídas para ficarem nanossa memória sem muito esforço; enfim, era ojogo da leitura que me conquistava e fascinava!Um jogo que se renovava à cada nova leitura.

Mas, a Menina bonita do la o de fita,foi, pouco a pouco, me revelando outrasdimensões, certamente menos ingênuas. Acabeime deparando com uma leitura ideológica –que muitas vezes demoramos a perceber numtexto, mesmo que esteja escancaradamenteanunciada! Eu sabia que aquela história causa-va um certo frisson, que as pessoas ficavam mex-idas, encantadas, em estado de magia, mas nãoconseguia definir tão bem o porquê! O motivo!

ILUSTRAÇÃO DE CLAUDIUS PARA O LIVRO ‘MENINA BONITA DO LAÇO DE FITA’ DE ANA MARIA MACHADO, ED. ÁTICA.

“Um dia de chuva Ø tªo belocomo um dia de sol.Ambos existem; cada umcomo Ø.

”FERNANDO PESSOA COMO ALBERTO CAEIRO

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E como o livro me abriu as portas para aLiteratura Infantil (assim mesmo, com maiús-culas!), fui lendo tudo o que podia, o que mecaia nas mãos, o que eu supostamente tinhalido na infância, o que eu agora queria ler comoestudioso do assunto. E meu olhar foi amadure-cendo, à medida que eu ia voltando à Meninabonita do la o de fita. E aos poucos fuipercebendo (feliz!) que ia longe o tempo emque os personagens das histórias infantis eramcomportados modelos de virtudes, fi-guras‘cor-de-rosa’. E que longe de fechar-se numapretensa ‘fotografia’ para mostrar como as cri-anças deviam ser, a literatura infantil já havia sedistanciado dessa visão utilitarista e unívoca. Equal não foi minha surpresa quando comecei aconstatar que essa nova literatura infantil que-ria evitar rótulos, e romper com classificaçõesengessantes, e promover o de-bate, e chamaratenção para a diferença, expondo maneirasdiversas (e criativas!) de lidar com as situações,e quem sabe, até apontar soluções, mesmo queinusitadas, mesmo que no terreno das possibil-idades.

Quando voltei à Menina bonita do la o

de fita, pela enésima vez, vi que estavam alipontos de vista diferentes (o do coelho, o damenina, o da mãe da menina). E depois dissocomecei a me fazer muitas perguntas:. o que é ser bonito? Que modelos de beleza ahistória aponta? Ainda por cima, a mªe gostava de fazer

trancinhas no cabelo dela e enfeitar com

lao de fita colorida. Ela ficava parecendo

uma princesa das Terras da ̀ frica, ou uma

fada do Reino do Luar.

. o coelho é ingênuo ou embarca na brin-cadeira como possibilidade de se aproximar damenina que ele tanto admira? Mas nªo ficou nada preto. Entªo ele voltou

lÆ na casa da menina e perguntou outra

vez: Menina bonita do lao de fita, qual Ø

teu segredo pra ser tªo pretinha?

. a menina é má e engana o coelho com suas

respostas? Ou a maneira dela se relacionar como mundo é plena de fantasia e criatividade? A menina nªo sabia, mas inventou: Ah,

deve ser porque eu comi muita jabuticaba

quando era pequenina.

. quando a mãe aparece com sua explicaçãoquase ‘científica’ (de adulto) ela quebra afantasia? Amenina nªo sabia e jÆ ia inventando outra

coisa, uma hist ria de feijoada, quando a

mªe dela, que era uma mulata linda e rison-

ha, resolveu se meter e disse: Artes de

uma av preta que ela tinha...

. o coelho quer ser preto por estar insatisfeitocom a sua condição? O coelho achava a menina a pessoa mais

linda que ele tinha visto em toda a vida. E

pensava: Ah, quando eu casar quero ter

uma filha pretinha e linda que nem ela...

. o coelho age e busca respostas e soluções, epor isso não fica esperando uma mudança deforma passiva ? O coelho saiu dali e tomou tanto cafØ que

perdeu o sono e passou a noite toda fazen-

do xixi. Mas nªo ficou nada preto. Entªo ele

voltou lÆ na casa da menina e perguntou

outra vez: Menina bonita do lao de fita,

qual Ø teu segredo para ser tªo pretinha?

. quando nasce a coelha preta e a mãe a enfei-ta com laço de fita colorida isso significa umacontinuação de um modelo ou um alargamen-to das identidades? E quando a coelhinha sa a, de la o colori-

do no pesco o, sempre encontrava alguØm

que perguntava: Coelha bonita do la o de

fita, qual Ø teu segredo pra ser tªo pretinha?

E ela respondia: Conselhos da mªe da

minha madrinha...

Todas perguntas que o livro não responde,mas que me põe para pensar. Essas possibili-dades latentes que a história apresenta é que mefazem acreditar, cada vez mais, que a grandiosi-dade desse texto está exatamente em propalar abeleza da diferença, em assinalar a convivência

pacífica dos contrários, em propiciar a des-coberta e aceitação (ativa! Não como resultadode um conformismo pacífico e banal!) do quese é, de ‘chutar’ para longe toda espécie de pre-conceito, de ganhar o coração do leitor naforma lúdica da escrita.

Acreditem: penetrar cada vez mais nascamadas de um texto, perceber seriamente a(s)ideologia(s) que ele veicula, não destrói – comose pode pensar! – a beleza do texto, o frescor eaté mesmo a ingenuidade da primeira leitura.

O mais bonito é quando você vai fazendoconstatações, e quando as coisas vão saltandodo livro, coisas que sempre estiveram ali, no

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MORA EM MIM “O amor Ø a capacidade deperceber o semelhante nodessemelhante.

”THEODOR W. ADORNO, Filósofo alemão (1903-1969)

TÃO SUTILMENTE EMTANTOS BREVES ANOS

“Tªo sutilmente em tantos brevesanos

foram se trocando sobre os muros

mais que desigualdades, semel-

han as,

que aos poucos dois sªo um, sem

que

no entanto

deixem de ser plurais:

talvez as asas de um s anjo,

inseparÆveis.

Presen as, solidıes que vªo tecen-

do a vida,

o filho que se faz, uma Ærvore plan-

tada,

o tempo gotejando do telhado.

Beleza perseguida a cada hora,

para que nªo baixe

o p de um cotidiano desencanto.

Tªo fielmente adaptam-se as almas

destes corpos

que uma em outra pode se trocar,

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MUNIZ SODRÉAssociar o conceito de ‘dife-

rença’ ao de religião pode im-plicar muita coisa, mas a meu verimplica sobretudo o valor comoelemento de dinamização do agir.Valor é a dimensão onde se movi-menta o espírito para ir além daexperiência atual ou da ‘naturali-dade’ dos desejos (a simples satis-fação de necessidades, a pura von-tade de manutenção de si mesmo).

Mas é uma dimensão, assim comoa do infinito, que não podemosconhecer instrumentalmente.

Como assinala Alquié, ‘nósnão temos conhecimento positi-vo do infinito ou do valor: valore infinito estão, contudo, pre-sentes para nós, uma vez que apartir deles nós julgamos curtosdemais os instantes de nossa vida,baixos demais os instintos denossa natureza, pequenos demaisos objetos limitados e temporaisque são por nós encontrados’1.Valor é uma motivação profunda

da ação do homem, esse sujeitode um descontentamento

radical que o força a sem-pre transcender-se.

A moderna or-dem sócio-política, re-

gida pela esfera ima-nente dos direitos e

deveres, tem difi-culdade em lidarcom o valor. Ol i b e r a l i s m opolítico, porexemplo, nãoconsegue bem

associar

valor e dever, o que culmina porretirar das estruturas e das açõessociais as possibilidades de orien-tação finalística e de relaciona-mento com a transcendência.

Entretanto, nada obsta a que ovalor (sem a pretensão de abso-lutismo) e o dever possam com-patibilizar-se com a política, desdeque esta não seja entendida comoa Realpolitik de Estado, e simcomo livre-agir humano. Claroexemplo disso oferece a históriados cultos afro-brasileiros, queimplicaram na vida nacional umareinterpretação da singularidadecivilizatória africana, traduzindo arealidade original (africana) emrepresentações adequadas à especi-ficidade do território da diáspora.que comporta a descendência fic-tícia ou a linhagem putativa’2.

A reinterpretação afro-brasi-leira sempre foi, ao mesmo tempo,ético-religiosa e política. A tra-dição negra inseriu-se historica-mente na formação social bra-sileira para orientar os rumos civi-lizatórios do escravo e seus descen-dentes. Os símbolos, os desdobra-mentos culturais de um paradig-ma (a Arkhé africana, manifesta-da num sistema axiológico, em

que se articulam va-lores éticos,

cerimônias, sacrifícios e hierarquia)eram e são representações capazesde atuar como instrumentos di-nâmicos no jogo social de estratoseconomicamente subalternos.

De natureza política sempre foia luta para instituir e fazer aceitar arealidade interpretada ou traduzi-da, que se apresentava publica-mente como a fé nos princípioscosmológicos, as entidades sagra-das ou orixás, assim como nosancestrais ilustres ou eguns. Osaspectos políticos dessa movi-mentação histórica costumamescapar à etnologia desavisada,geralmente centrada na des-crição das tradições e dosritos, como se fossem ‘sobre-vivências’ culturais, senão ana-cronismos místicos.

Nesses e noutros aspectos, aexperiência coletiva da religiosi-dade negra faz enormediferença frente à culturaeuropéia.

MUNIZ SODRÉ Doutor em Comunicação, UFRJ.Autor, entre outros, de: O impØrio dogrotesco (com Raquel Paiva); Mestre Bimbacorpo de mandinga; Antropol gica doespelho.

1. AlquiØ, Ferdinand. Le désir d´éternité.Quadrige/ PUF, 1990, p.9.2. SodrØ, Muniz. Claros e escuros – identi-dade, povo e mídia no Brasil. Vozes, 1999, p.167.s

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UMA NEGRA DIFERENÇA

OM

A, P

OER

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OVO

, BEN

IN, 1

948-

1958

.

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JORGE DE SOUZA ARAUJO

A palavra diferença, em seussentidos dicionarizados, poderepresentar um monte de coisas.Segundo o Aurélio, ‘qualidade dediferente; falta de semelhança; alte-ração; desconformidade; divergência;diversidade; prejuízo; transtorno;intervalo; distância entre doisnúmeros; subtração indicada;’ emais, no plural, ‘desavenças’ e‘contendas’.

O artigo do professor MunizSodré, que é especialista emAntropologia Cultural e Ciên-cias da Comunicação, escolhepara diferença sinônimos comodiversidade, distinção, desseme-lhança, singularidade, centrandosua análise no conceito de dife-rença aplicado à formação reli-giosa dos povos afro-brasileiros,particularizando os seus cultos eoutras referências culturais ecompreendendo, de forma demo-crática e sincrética, as mais distin-tas contribuições do elementoafricano à civilização brasileira.A diferença então localizada asso-cia modelos intrínsecos de etnia,cultura religiosa, potencialidadese motivações dos indivíduos,reunidos no desejo profundo deperenizar a existência de basehumanista, que a modernidadesocial e política parece esquecer.Os valores transcendentes da cul-tura são realçados no artigo doprofessor Muniz Sodré, buscan-do conciliar a liberdade de pensare de agir e o dever social e asresponsabilidades de todos narealidade contemporânea.

Respeitar as diferenças de cadaum em função da construção dadignidade ética no conjuntosocial é a principal preocupaçãodo artigo do professor MunizSodré, que defende a integraçãodos negros e seus cultos em umanova sociedade, organizada se-gundo instrumentos de libertaçãodinâmica pacífica através dosritos e cerimônias dos orixás –entes sagrados do candomblé,intérpretes de um espírito de paze concórdia produzindo a confra-ternização dos povos, libertos daopressão e do preconceito.

JORGE DE SOUZA ARAUJO Escritor, professor dapós-graduação em Letras nas universidadesestaduais baianas.

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SINGULAR E PLURALBUMBA-MEU-BOI, RECIFE, BRASIL, 1947

PIERRE VERGER“Mas teve uma vez que nªo me senti branco. Foi uma festa

geledØ em plena floresta do atual Benin.Era uma noite escura, sem lua, e o pessoal bailava ao redor de

certas Ærvores. Nªo tinha luz nenhuma; entªo conheci uma liberdadeque nªo havia conhecido antes.

Nªo era um branco entre os negros.A escuridªo da floresta africana apagou a diferen a.

”1

“(...) Quando cheguei ao Brasil (...) as comunica ıes eram dif -ceis. S se viajava de navio. Os aviıes come avam; nªo haviacaminhos nos interiores. A gente era mais isolado talvez, porØm,cada lugar tinha o seu sabor, sua identidade.

”2

PIERRE VERGER 1902-1996 Fotógrafo e pesquisador francês. Sua obra é centrada na história, nos costumes e na religião dos povos deorigem iorubá na África Ocidental e na Bahia.

O texto e as fotos pertencem à Fundação Pierre Verger, Salvador (www.pierreverger.org.br), e foram retirados do livro O olharviajante de Pierre Fatumbi Verger.

1. Pierre Verger, ‘Coco be lefó’, Bric a Brac nº 4, Brasília, 1990, p. 792. Pierre Verger, Revista da Bahia, encarte especial, Salvador, 1990, p.11.

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ESPELHOLEITURASCOMPARTILHADAS

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ROSEANA MURRAYOlho o mar. O horizonte le-

vemente pousado na água. Ondecéu e mar se encontram: ter-ritório de sonhos.

Onde eu termino e o outrocomeça: território de sonhos.Por que desde sempre quisemosreduzir o outro a nós mesmos?Por que temos tanto medo dadiferença, da dissonância, do queexiste atrás de uma porta?

Nós, humanos, somos ani-mais repetitivos. Sempre andamospelo mesmo lado da calçada,comemos a mesma comida, faze-mos os mesmos gestos, usamossempre as mesmas palavras. Queo outro seja igual a mim, o meuespelho, amém.

A diferença é o que pode nosemocionar, mudar nossos gestos,nosso olhar sobre as coisas. E issoé muito perigoso, pois estranhascantigas acordam conteúdos ador-mecidos ou esquecidos.

Em muitas civilizações o dife-rente era aniquilado. Povos in-teiros eram e ainda são aniquila-dos. A história nos fala todo otempo desta destruição.

Ouvir as diferenças é alargaro território do sonho. Abrir aporta que dá para o outro eaceitá-lo no que ele tem de diver-so é a única ponte possível para aconvivência humana.

Que o outro seja o espelho queme enriquece.

ROSEANA MURRAY Poeta. Entre suas obras estão:Manual da delicadeza; Jardins; Caminhosda magia; Paisagens.

FONTE

“Como trapezistaalcan ar o outro

num salto:

mergulhar em seus

olhos,

navegar atØ o fundo.

Alcan ar o outro

no que ele tem

de mais belo,

de luz e mel,

delicadeza e mistØrio.

E, entªo, beber a Ægua

limpa

dessa fonte.”

OLHAR

“O olhar feito c ntarocheio atØ a borda

de puro mel.

O olhar como favo

ou quem sabe

uma teia de ternura

abra ando o mundo.

O olhar feito barco

de carregar o outro

atØ a outra margem,

atØ um porto seguro.

O olhar feito carruagem

macia

de conduzir o outro,

com delicadeza,

pelos labirintos da vida

atØ seu pr prio

cora ªo.”

ENEIDA OLIVEIRA DÉCHERY

“N s, porØm, quando pen-samos totalmente o Uno,logo sentimos o lastro doOutro.

”RAINER MARIA RILKE 1875-1926 Poeta tcheco.

“Cada alma Ø um mundo parte em cada peito...

”OLAVO BILAC

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CLAUDIA WERNECKO que existe entre o feio e o bonito? O

gordo e o magro? O melhor e o pior aluno?Entre o menino que corre comoum foguete e aquele que andaem uma cadeira de rodas?Errou se você respondeu queentre tais extremos está o nor-mal, o padrão, a média... Emum mundo de pessoas que secaracterizam por diferenças onormal não existe.

Somos mais iguais ou mais dife-rentes? Diferentes, é lógico! Assim como asartes, a humanidade encontra infini-tas formas de se mani-f e s t a r .I g u a i ssão osdire i tos ,mas é impossível trabalhar por justiçasocial sem reconhecer o quanto somosdiferentes e, portanto, necessitamos derecursos absolutamente diversos paraalcançar os mesmos objetivos, sendo queesses recursos variam a cada minuto de nos-sas vidas. Um aluno deve acompanhar aturma? Jamais, pois se acreditamos quesomos absolutamente diferentes os modelosinexistem e tudo que construímos até hoje caipor terra, como um frágil castelinho deareia. Em seguida a este despertar para aconvicção de que é a diversidade humanaque nos legitima como espécie, o que senti-mos? Medo, ansiedade, angústia, desam-paro. Tudo isso e muito mais porque a liber-dade é assim; assusta.

Acabou o tempo de insistirmos em arru-mar gente em caixinhas, hierarquizar cri-anças, adolescentes e jovens do melhor parao pior, como se isso fosse possível ou digno.A prática da segregação, a qual nos acostu-

mamos sem sentir, é incompatível com oconceito de inclusão que propõe justamenteum olhar sobre aqueles que nasceram ouque ficaram de algum modo deficientes?Não. A inclusão propõe um novo olharsobre o conjunto humanidade, instiga-nos,assim, a assumir uma nova ética, a da diver-sidade. Nela, a competição dará lugar ao

desafio, o modelo ao não-modelo, o co-nhecido ao desconhecido, o esperado aosurpreendente. Quem se arrisca?

Quando um professor aponta o melhordesenho ou trabalho da turma, mesmo queseja um singelo Coelhinho da Páscoa depapel celofane, ele automaticamente apontapara o grupo a existência do pior coelhinho.Isso é percebido e confirmado se os coe-lhinhos mais lindos, mais bem coloridos erecortados vão para um mural enfeitar asala. Sutilmente, a turma de crianças, ainda

tão pequenas, começa a se exercitar na práti-ca da discriminação e da competição quetanto caracterizam nossa vida escolar, pro-piciando a quase todos nós, por gerações egerações, a dor de se sentir feio, burro,

pobre, lento. Crescemosacreditando ter o direitode qualificar gente, sim.A escola ensina. E quan-do nos sentimos ‘acimada média’, com a auto-

estima em dia, assumi-mos uma posição muito

generosa, a de respeitar ou ade tolerar a diferença de quem

está no final do ranking, o que jápressupõe uma atitude autoritária. Lamentoinformar que não temos o direito derespeitar ou de tolerar a diferença deninguém. Se todos nós, nascidos e inte-grantes, portanto, do conjunto humanidade,somos intrinsicamente diferentes, em nomede que modelo de gente vamos avaliar a diver-sidade do outro?

Não existem os diferentes, os especiais,os excepcionais. Cada criança tem a suadiferença, sua especialidade, sua excep-cionalidade. Diversidade humana deveriaser nossa palavra de ordem, estampada emletras garrafais em cartazes espalhados pelomundo no Dia das Crianças, no Dia dosProfessores, no Dia das Mães, dos Pais etc.Aí reside o paradigma da liberdade. Buscar onormal é como acreditar em Mula-sem-cabeça, em Bicho-papão, em Curupira, emsereia encantada.

CLAUDIA WERNECK Jornalista, escritora e diretora da ONG Escolade Gente – comunicação em inclusão. Entre seus livros está asérie Meu amigo Down.

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NORMAL É O BICHO-PAPÃO

DIVULGAÇÃO

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DIV

ULG

AÇÃ

O

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NILTON BONDERA questão das diferenças é

outra forma de abordarmos aquestão das identidades.

Esta é uma questão tão bási-ca em nossas vidas que acabarespondendo por patologias,ideais de vida, visões de mundo,enfim, por nosso destino. Portrás de racionalizações estão ele-mentos de ordem psíquica ele-mentares. Quem somos aosolhos de nossos pais? Como elesnos distinguem de nossos irmãos?Como será que a história doamor deles pelos outros ou ahistória de realizações dos ou-tros – seus sucessos ou fracassos– determina o seu amor por nós?Estas são questões primárias dapsique humana que são projetadassobre o Pai/Mãe celeste. E este é oponto de partida para qualquerreflexão sobre as diferenças reli-giosas em nosso mundo.

Em particular no Ocidente,no Meio Oriente e em ramifi-cações africanas e asiáticas queadotaram religiões baseadas narelação ser humano-Deus estaquestão aparece de forma cen-tral. A relação do homem comDeus é baseada na relação depaternidade e maternidade. Essaé uma associação direta: Pai docéu, Mãe do céu. Nestas partesdo planeta a questão é mais pro-fundamente psíquica dada àadoção do Monoteísmo Hebreu.Este é um passo de sumaimportância para a questão datolerância religiosa. Enquanto

existiam muitos Pais, muitosdeuses, a intolerância acompa-nhava as relações de interessesobjetivos da sobrevivência. Opoliteísmo conhecia o ciúme,ou seja, a vontade de obter oque o outro tinha e daí decorriaa violência desse conflito deinteresses. O monoteísmo trouxea novidade de relações invejosasque acredito sejam hoje o cerneda questão da intolerância. Asrelações invejosas representam aperda de um interesse objetivoque muitas vezes misturou apolítica e a economia com asreligiões, passando a integrar umcomplexo conjunto de ‘senti-mentos’ e irracionalidades querespondem por boa parte daintolerância religiosa de nos-sos tempos.

A identidade que se constróina não-identidade do outro éuma identidade falsa, resguarda-da apenas pelo sentimento inve-joso. As relações entre Cristia-nismo, Judaísmo e Islamismosão particularmente explosivas.Não só entre elas se estabeleceuma simbologia de Paternidadeúnica, mas a própria percepçãouma da outra é baseada numarelação admitida de fraternidade.E por fraternidade não me refiroao comum senso de convergên-cia e amizade que caracterizamessa palavra, mas ao contrário,profundas relações de violênciae competitividade que se esta-belecem nesta relação. A obses-são por definir qual das tradiçõesé a verdadeira, a legítima, aamada pelo Pai-Mãe acima de

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EM NOME DO PAIDiferenças religiosas

DETALHE DO CORÃO, ARTE OTOMANA, SÉCULO XVIII.

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qualquer outra, está na raiz senão de violência explícita, noolhar controlador para a sortedo outro.

O problema das diferençasnão são as diferenças, estas alivi-am as tensões. O problema dasdiferenças são as semelhanças, asprofundas seme-

lhanças no que dizrespeito à essência destastradições. Aliás, esta tem sido agrande solução do final do sécu-lo XX e do início deste século –fugir das essências. O mundo detempo real, de comunicação pla-netária instantânea, trouxe ooutro para perto, perto demais.E de perto fica muito difícil esta-belecer qualquer diferença entreas tradições Monoteístas, emparticular as bíblicas. A saídapara todas foi fugir da essência eapostar na forma, nos funda-mentos.

No que diz respeito àsquestões mais relevantes para onosso mundo, seja em posturasquanto à convivência entre osseres humanos, seja nas questõeséticas básicas – bio, psico esócio-éticas – as religiões mono-teístas bíblicas tem mensagensmuito semelhantes a transmitir.Suas diversidades, suas diferen-ças, ficam muito mais expostasnas correntes ou denominaçõesinternas a cada tradição do queentre elas. Ora, isto não seria desurpreender. Elas usam uma

mesma metodologia de análiseda realidade e com exceção dealgumas nuances que lhes são es-pecíficas (mais marcas da expe-riência histórica do que teológi-ca), dizem, pensam e agem de

f o r m as e m e l h a n t e .

Sua grande dificul-dade de tolerar se manifesta

nesta semelhança.Confesso que este muitas

vezes é o aspecto mais hipócritada noção de tolerância. Apalavra em si já revela: tolerar éalgo que fica na medida dosofrível. Até aqui posso sofrersua existência. Ou seja, denotauma relação sempre no limiar doinsuportável. A razão desta pos-tura que muitas vezes tornamovimentos ecumênicos insípi-dos é a dificuldade de demarcarfronteiras claras nas questões deessência. A necessidade destasfronteiras acaba forçando astradições a buscarem na forma asua identidade. Sua fraternidadefica exposta pelo fato de quehonram sua origem comum, mastambém por seu trato indulgenteque esconde mágoas e questõesde auto-estima.

Se todo este retrato familiarparece complexo em si, adi-cione-se o fato de que o irmãomais velho destas teologias setornou o irmão mais fraco, tantonumericamente como politica-

mente. Não só isso, mas este é oirmão que muitas vezes fez pas-sar sua teologia, ou foi esta com-preendida como tal, de ser ofilho escolhido, predileto. Ce-nário este que levou o judaísmo

a experimen-tar no anti-s emi t i smo,pelo menos

em seu aspecto religioso, amais fragorosa manifestaçãodeste ódio fraterno. É verdadeque as três tradições alternaramdisputas. No início do Cristia-nismo, o Judaísmo não se con-formava com a semelhança. Doséculo IV em diante o Cristia-nismo por mais de um milênio emeio não se conformou. NaIdade Média essa questão frater-na ficou centralizada na disputaentre Islã e Cristãos. No final doséculo XX, surge travestida deguerra entre Islã e Judaísmo,quando na verdade é uma guer-ra maior pela sobrevivência doIslã em si.

A saída para lidar com asdiferenças escassas, tem sidoaprofundá-las através dos funda-mentos. Marcar as diferenças delinguagem, os detalhes ao invésdas questões maiores é a marcado fundamentalismo e do fana-tismo. Já diz a máxima: o fa-natismo é a arte de tornar o rele-vante, irrelevante e o irrelevante,relevante. Ou como Gorge San-tayana colocou: o fanatismoconsiste do ato de redobraresforços por conta de se teresquecido dos objetivos. O queem si é uma descrição de uma

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EM NOME DO PAI

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relação invejosa. Não conhecemmais objetivos específicos na di-ferença, que não sejam apenas asua preservação.

Não estou querendo dizer,com isso, que as tradições reli-giosas perderam sua razão de ser.Acredito que a forma altera aessência, ou melhor, enriquece aessência. Compreender que umaessência comum não impedeque haja competências e funçõesespecíficas é algo ainda por serdescoberto pelas tradições reli-giosas. Como o próprio organis-mo humano: nele há coração,fígado, rins, pulmões, etc. Cadaum destes órgãos em essênciavem ao mesmo fim e hoje sabe-mos, são originados apesar dadiferença, de células idênticas.Como irmãos, são criados gene-ticamente de maneira muitosemelhantes.

As tradições religiosas sabemque devem amadurecer sob apena de inviabilizarem sua con-tinuidade. Um mundo mais in-formado desmascara com maiorfacilidade as fachadas que nãorepresentam um conteúdo real. Ese as religiões se refugiarem nofundamentalismo estarão aban-donando um lugar de sabedoria eocupando outro de ignorâncianum mundo de tantas alternati-vas e competição e acredito,estarão promulgando, pelo menosa longo prazo, sua falência.

Este amadurecimento tirariaas tradições deste lugar infantilde tolerar que hoje mais pareceuma aprendizagem de conten-ção de esfíncter com eventuais

incontinências, para um lugar deapreciação verdadeira do outro.Quanto mais o outro for ooutro, mais espaço para cada umpoder ser a si próprio e maior oespaço de diálogo. Quanto maisas identidades se fortaleceremsem depender do outro, mais sedescobrirão irmãs com objetivosem comum.

O triunfalismo e o convenci-mento infelizmente ainda impe-ram na esfera das religiões.

Há neste mundo, portanto,os que ‘vivem e deixam viver’ ehá os que precisam afirmar suascertezas provando e apontandoo ‘outro’ como errado. Um diairemos concordar que só existeum parâmetro externo para

definir o ‘certo’ e o ‘errado’. Certoé qualquer coisa que não queiraconvencer ou impor a vontade deum sobre o outro. Errado é a pos-tura do convencimento.

Tanto convencido quanto oque convence são perdedores. Ojulgamento da vida se baseia emduas listas de acusação: as oca-siões em que fomos convencidose as ocasiões em que convence-mos. Nossa identidade e nossosenso de presença só podem serusufruídos quando não estamosnem na condição de convenci-dos ou de convencer. A própriaalegria depende do quantosomos convencidos pelos outrose do quanto convencemos osoutros. Quanto mais convenci-

dos e convencemos, mais tristese insatisfeitos nos tornamos;maior nosso senso de inade-quação; maior nossa insegurançae maior o nosso medo.

Já diziam os mestres chassídi-cos: ‘Se eu for eu porque você évocê; e você for você porque eusou eu – então eu não sou eu evocê não é você. Porém se eu foreu porque eu sou eu; e você,você, porque você é você – entãoeu sou eu e você é você e temos oque conversar.’ Enquanto espe-ramos por esta descoberta e rea-lização, as diferenças religiosasserão apenas mais um retratodesta relação de fraternidadeconturbada entre os seres hu-manos. Somos todos tão seme-lhantes (assim nos tratamosinclusive) que a diferença serve àcausa da pouca auto-estima queem si mascara desejos de gran-diosidade.

Semelhantes, mas não iguais,passamos ao largo da percepçãode sermos únicos ainda por cimaregados com a bênção de nãoestarmos sós, mas cercados porpessoas que podem partilharconosco e entender-nos. Aindaestamos por ver não a convivên-cia entre diferentes que em sinão é tão difícil, mas a con-vivência entre semelhantes.

NILTON BONDER Rabino da Congregação Judaicado Brasil e escritor. Entre suas obras estão: Ocrime descompensa; A alma imoral;Juda s-mo para o sØculo XXI.

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CALIGRAFIA DO NOME DE ALLAH, EM ÁRABE.

Diferenças religiosas

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ENTREVISTA:JUSTINE SHAPIRO

Como será o conflito israelense-palestinona visão das crianças da região? Desta simplespergunta nasceu um dos melhores documen-tários dos últimos anos, ganhador de prêmiosnos festivais de cinema de Roterdã, Munique,São Paulo, Locarno e São Francisco, e concor-rente ao Oscar de 2002. Promessas de umNovo Mundo (Promises) acompanha sete cri-anças palestinas e judias, que moram emJerusalém ou nos seus arredores, e registra seusdepoimentos dramáticos, emocionantes, e porvezes hilários. Por fim, promove o encontrode algumas dessas crianças, demonstrando quepor trás de raças, culturas e religiões, a infâncianão perdeu sua universalidade.

Realizado pelos americanos B.Z. Goldberg(jornalista judeu que morou em Israel) e JustineShapiro e pelo mexicano Carlos Bolado, ofilme foi rodado em uma época relativamentetranqüila nessa parte do Oriente Médio, após oprimeira intifada israelense, o Acordo de Oslo eantes dos atentados de 11 de setembro de 2001.

Conversamos com Justine Shapiro que noscontou como o filme deu origem a um projetoque procura levar a cultura da paz às escolas, esuas esperanças para as sete crianças do filme:os gêmeos Yarko e Daniel, Mahmoud, Shlomo,Faraj, Moishe e a adorável menina Sanabel.Crianças que nasceram e crescem convivendocom a perda, o medo e o ódio, mas que car-regam consigo a promessa de entendimento.

LC: Promessas de um Novo Mundo é maisdo que um filme, é um projeto que visa auxil-iar crianças vítimas dos conflitos entre judeus epalestinos. Como funciona este projeto, aindamais agora com o acirramento do conflito?Vocês ainda mantêm contato com as sete cri-anças do filme e elas têm noção de que suashistórias estão emocionando milhões de pes-soas no mundo inteiro?

JUSTINE: Sim, mantemos contato. Por enquantoestão bem apesar do aumento da violência doconflito. Sabem que o filme está sendo exibidopelo mundo mas não têm a noção do númerode pessoas que o viram. Nosso objetivo agora édistribuir o filme para que um número aindamaior de pessoas o possa assistir. Nossa organi-zação está à procura de fundos para que o pro-jeto seja acessível para as crianças de idade esco-lar e também para desenvolver um guia de estu-do para os professores. Quem quiser saber maispode visitar a nossa página na internetwww.promisesproject.org

LC: No Brasil não possuímos grandes conflitosétnicos e religiosos, mas sofremos com umagrande desigualdade social entre as regiões dopaís e também dentro das cidades, onde cri-anças com padrão de vida semelhante ao depaíses ricos vivem literalmente ao lado demenores abandonados, muitos ligados ao crimee ao tráfico de drogas. Mas a atitude de grandeparte da população economicamente estável éum misto de medo com a tentativa de ignorarpor completo essas crianças. Talvez por isso ofilme emocione tanto os espectadores brasi-leiros, mesmo se tratando de um conflito dooutro lado do mundo. No Brasil o título foiPromessas de um Novo Mundo. Será querealmente a chave para o início de um entendi-mento entre os diferentes conflitos no mundoé a tentativa de melhor conhecer quem é dife-rente, e não simplesmente distanciá-lo?

JUSTINE: As pessoas vêm filmes para abrir suasmentes e conhecer outras realidades. Acho quegostam de Promessas porque encontramuma realidade que de outra forma não con-heceriam. É difícil mudar o conflito com acabeça, é preciso que o coração esteja aberto.Promessas parece dar certo porque abre ocoração das pessoas para o que está acontecen-do naquela região. Não fizemos um filme paramostrar quem está certo ou errado ou para fazer

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PROMESSAS DE U

JUST

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SANABEL

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YARKO

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UM NOVO MUNDOjustiça. Nós queríamos apenas abrir umajanela. Li há 15 anos atrás um livro sobre umacatadora de lixo que vive em uma favelabrasileira e, desde então, quando penso naspessoas que vivem em favelas penso nela, e navida dela. Penso em pessoas, com compaixãoe não como um bando de pobres juntos. Éfácil categorizar. As pessoas pensam muito,complicam as coisas, e dividem tudo em bomou mau. Bons livros e bons filmes nos fazemlembrar que todos somos uma família, e quequeremos ser felizes... Se acreditarmos que omundo é só o que lemos nos jornais, acred-itaremos que o mundo é cheio de monstros.Não creio que o mundo seja cheio de mon-stros, mas que há muitas pessoas erradas eignorantes.

LC: Algo que chama muito a atenção no filmeé que os lados diferentes, das duas culturas ereligiões diferentes (islâmica e judaica), res-pondem da mesma maneira, têm as mesmasatitudes. Ambos acreditam que possuem aterra e que o podem provar, se apóiam emsuas religiões. Ambos usam a violência e so-frem imensas perdas com essa violência. Nofinal, não fica a idéia de que há tanto conflitoe tanta intolerância, não pela desigualdade deculturas, mas pela igualdade de atitudes?

JUSTINE: Somos todos humanos e queremos asmesmas coisas: segurança para nossa família,dinheiro para nosso sustento, viver com dig-nidade, viver sem medo. Todos queremos serfelizes, e temos as mesmas idéias sobre o que éser feliz. Quando uma pessoa pratica violênciacom outra é apenas o início de um ciclo muitodifícil de ser quebrado. Gerações são necessáriaspara curar os danos da guerra. Seria inteligentepara israelenses e palestinos começarem com ohoje, mas é impossível porque os sereshumanos estão presos ao passado. Os doislados acham razões para agirem violentamentecom o outro. É rara a pessoa que perdoa. Não

existem muitos Nelson Mandela no mundo.LC: Uma cena emblemática do filme é o campe-onato de arroto entre o menino judeu e opalestino, que nos mostra toda a animosidade,mas também toda curiosidade que um tem pelooutro. É fantástico como o discurso teórico deShlomo (um menino israelense) cede ao jogoinfantil. Como foi presenciar essa cena? Poiscertamente é uma cena totalmente espontâneae, por essa razão, tão significativa.

JUSTINE: Estávamos andando com Shlomo pelacidade velha. Ele e as irmãs estavam nos ofere-cendo um tour pela vizinhança. Nosso câmerareclamava do peso do equipamento que ele car-regara o dia todo. De repente paramos numaespécie de parque e perguntamos a Shlomo seele havia entrado em muitas brigas com osmeninos palestinos. As irmãs dele já haviamnos contado que sim e escolhemos aquelemomento para fazer a pergunta. Estávamosrodando quando uma criança palestina veio emdireção à câmera e começou a arrotar. Ficamosali vendo essa estranha competição de arrotos.São momentos mágicos que ocorrem quandose faz um filme. Gravamos quase 200 horas defita durante os anos que fizemos Promessas.Também temos muita coisa chata. Agradeçopelos momentos mágicos.

LC: É impressionante a maneira como as cri-anças falam sem autocensura, e que apesar dereceberem uma forte doutrinação, de teremsofrido perdas dolorosas de parentes e amigos,de viverem num ambiente de ódio e medo, semostram dispostas a conhecer o ‘inimigo’, aconversar, a brincar. O pequeno radical muçul-mano desconcertado ao descobrir que está demãos dadas com um judeu de quem ele real-mente gosta. Atitudes quase impossíveis departirem de adultos. A idéia que fica é que,longe de qualquer demagogia, a partir domomento que o diferente se mostra seme-lhante, nesse caso uma criança, passa a ser um

pouco mais difícil odiar simplesmente. O filmefoi exibido para outras crianças muçulmanas ejudias e quais as reais esperanças de vocês paraos muitos Yarkos, Farajs e Sanabels quehabitam aquela região?

JUSTINE: Como você viu as crianças falam livre-mente. Crianças palestinas são muito politi-zadas e capazes da falar sobre questões com-plexas desde cedo. Às vezes parece que estãosimplesmente repetindo seus pais, outras vezesdemonstram o que parece ser uma visão pes-soal. As crianças do filme tem entre 9 e 13 anose falam de uma maneira doce. Ainda não sãoadolescentes preocupados com a imagem, emparecer ‘antenados’. Também não têm a pre-ocupação dos adultos de dizer coisas sofisti-cadas e inteligentes. Sem esse tipo de preocu-pação, as crianças falam o que pensam. Esperoque elas cresçam e vivam muito, e que encon-trem paz durante suas vidas. As pessoas sentempena dos palestinos que vivem em campos derefugiados. Eu também. Mas eles não se vêmcomo coitados, nem um pouco. E são dife-rentes das crianças que crescem nos EUA. Elastêm uma identidade muito forte, sabem o quesão. As crianças americanas só se preocupamcom pop stars e videogames. As crianças palesti-nas sabem sobre seu país, têm cultura e co-nhecem o que se passa no resto do mundo.Aqui, as crianças não têm idéia do que fazer nofuturo, quando crescerem. Lá elas sabem:querem ser advogadas, jornalistas e pediatras; osmeninos querem ser principalmente jornalistas.

A N A

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DIVULGAÇÃO

B.Z. GOLDBERG, JUSTINE SAHPIRO E CARLOS BOLADO

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MARIA ELIZABETH G. DE VASCONCELLOS

“ pois verdade que o homem mis-erÆvelCego, imprudente, inquieto e variÆvel,Nªo tem direito algum a desejar.Raro Ø o que se mostra hÆbilE o celeste dom aprende a utilizar.

”Charles Perrault

As palavras de Perrault refletem o precon-ceito com que a pobreza é encarada. Asso-ciada à ignorância, à ausência de boasmaneiras, à imprudência e, muitas vezes, àfeiúra e à falta de higiene, a pobreza tem sidoencarada quase como uma marca moral inde-sejável. Tal postura tem suas raízes na IdadeMédia, período em que se forja, de maneiraindelével, a mentalidade do ocidente cristão.

Fortemente marcada por diferenças, asociedade medieval do ocidente cristão estru-tura-se em três ordens: os que oram, os queguerreiam – ordens às quais pertencem osricos e poderosos – e os que trabalham,ordem que abarca os pobres. A partir do sécu-lo XI, tal polarização vai ganhando contornosmais nítidos e as diferenças entre as ordensvão ficando mais acentuadas. Enquanto osricos vão ficando mais refinados (no comer,no falar, no vestir), os pobres passam a ser iden-tificados como rústicos e ignorantes, imagemque reflete o desprezo com que eram vistos.

Detentores da sabedoria e cortesia, ospoderosos reivindicam para si o papel de con-dutores e protetores da sociedade. Ideali-zados, o perfil do bom rei (de quem os pobresesperam paz e justiça) e o modelo do nobre eelegante senhor (a quem os pobres devemrespeitar e, na medida do possível, imitar)serão desenvolvidos, durante séculos, porcontos e hagiografias.

Nessa esteira é que inscrevem os contos deCharles Perrault (1628-1703). Pequenas célulasnarrativas, os contos constituem o palco idealpara a encenação das eternas diferenças quecaracterizam as sociedades; de fácil recitação,atingem o ouvinte de maneira rápida e eficaz.

Contemporâneo de Luís XIV, o Rei-Sol,(1643-1715), Perrault pinta, com aguda per-cepção, a sociedade de então. Marcada porgrandes diferenças, a França do século XVIIvive o contraste entre o fausto de Versailles e apobreza do campo.

Observando o tratamento dado à tensão(eterna e sempre atual) entre ricos e pobres,constatamos que o autor apresenta a pobrezaora de maneira paternalista (o pobre é ingê-nuo, merece proteção e recompensa), oracomo espécie de mal incurável (o pobre éestúpido e ignorante, sendo incapaz dediscernir o que é bom para si próprio),ora ainda como condição que natural-mente leva a um desvio de conduta (opobre é mentiroso, ardiloso e ine-scrupuloso).

Espelhos do momento, os contosvão revelar, então, as áreas do com-portamento dos dois estratos soci-ais: os ricos e os pobres. No casodos primeiros, há cenas que redu-plicam o fausto e a etiqueta dacorte: o baile a que a Gata

Borralheira comparece (aqui é significativo ofato de as damas quererem copiar elegantestrajes da desco-nhecida: afinal estar na modaé uma questão de distinção...) e o festim dobatizado da Bela Adormecida. Neste último, adescrição dos ta-lheres destinados às setesfadas demarca o grau de importância dado àsconvidadas. Não é à toa que a velha fada,que fora esquecida, enfurece-se por nãoreceber também ta-lheres de ouromaciço. Numa leitura atenta, o quefica em questão é o fato de a teremigualado aos menos ricos e refina-dos...

Por outro lado, também a po-breza não escapa ao olhar de

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POBRES E RNOS CONTOS DE CHARLES

ILU

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(175

6-18

33)

“Eu sou pobre, pobre, pobre,de marrØ, marrØ, marrØ... eu sou rico, rico, rico, de marrØde si.

”CANTIGA POPULAR

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À CIDADE DA BAHIA

“Triste Bahia! quªo dessemel-

hante

EstÆs e estou do nosso antigo esta-

do!

Pobre te vejo a ti, tu a mi empen-

hado,

Rica te vi eu jÆ, tu a mi abundante.

A ti trocou-te a mÆquina mercante,

Que em tua larga barra tem entrado,

A mim foi-me trocando, e tem troca-

do,

Tanto neg cio e tanto negociante.

Deste em dar tanto a œcar exce-

lente,

Pelas drogas inœteis, que abelhuda,

Simples aceitas do sagaz Brichote.

Oh se quisera Deus, que de

repente,

Um dia amanheceras tªo sisuda

Que f ra de algodªo o teu capote.”

GREGÓRIO DE MATOS 1633/36-1695/96 Poeta, sua obra teminteresse não só artístico, mas também como documen-to social do século XVII.

O MULATO (trecho)

“ Nªo! Nªo! Ao contrÆrio, meu

amigo! Eu atØ levaria muito em gosto o

seu casamento com a minha filha, no

caso de que isso tivesse lugar!... E s

pe o a Deus que lhe depare a ela um

marido possuidor das suas boas qual-

idades e do seu saber; creia, porØm,

que eu, como bom pai, nªo devo , de

forma alguma, consentir em semel-

hante uniªo. Cometeria um crime se

assim procedesse! ...

...Manuel sacudiu os ombros e

resmungou depois, em ar de confidŒn-

cia:

Recusei-lhe a mªo de minha

filha, porque o senhor Ø... Ø filho de

uma escrava...

Eu?!

O senhor Ø um homem de cor!...

Infelizmente esta Ø a verdade...”

ALUÍSIO AZEVEDO 1857-1813 Romancista. Em 1881 escreveu Omulato, romance naturalista que mostra a hipocrisia e o pre-conceito da sociedade maranhense da época.

DUALISMO

“Nªo Øs bom, nem Øs mau: Øs triste ehumano...

Vives ansiando, em maldi ıes e pre-

ces,

Como se, a arder, no cora ªo tivesses

O tumulto e o clamor de um largo

oceano.

Pobre, no bem como no mal, padeces;

E, rolando num v rtice vesano,

Oscilas entre a cren a e o desengano,

Entre esperan as e desinteresses.

Capaz de horrores e de a ıes sub-

limes,

Nªo ficas das virtudes satisfeito,

Nem te arrependes, infeliz, dos crimes:

E, no perpØtuo ideal que te devora,

Residem juntamente no teu peito

Um dem nio que ruge e um deus que

chora.”

OLAVO BILAC 1865-1918 Poeta parnasiano e contista, um dosfundadores da Academia Brasileira de Letras.

ISOLABELLA

“Quero levar-te quela ilhaonde serÆs amado,

onde serÆs aceito

do jeito

ICOSPERRAULT

Perrault. Oprimido, o camponês só encontrana esperteza a via que lhe possibilita a ascensãoa uma condição social melhor. Assim, person-agens como o Gato de Botas e o PequenoPolegar – ambos mentirosos e inescrupulosos –conseguem o que desejam. São malandros;simpáticos é verdade. E simpáticos porquerespondem ao desejo que o fraco tem de ludib-riar o forte e o rico. ‘Ladrão que rouba ladrãotem cem anos de perdão’ diz o ditado, quequanto mais é repetido e concretizado por umgrupo, mais revela o grau de corrosão a que talgrupo pode chegar.

Mas se a esses dois personagens é dada apossibilidade de sucesso, isso nem sempreconstitui regra. Estúpido por natureza, o pobrenão consegue aproveitar as oportunidades quelhe são dadas: é o que de maneira cruel apre-senta Perrault no conto Os desejos rid cu-

los em que o lenhador, pela sua tolice e insen-satez, desperdiça os três dons que lhe deraJúpiter.

Finalmente, por oposição ao pobre ardi-loso, é apresentado o perfil do pobre ingênuoe manso que, por sua bondade, alcança ariqueza. É o caso de Griselda – em A paciŒn-

cia de Griselda – que, pobre camponesa, aocasar-se com um príncipe, suporta toda sortede humilhações e provações para mostrar aomarido que é honesta e merecedora de estarcom ele na corte.

Concluído este breve passeio pelos contosde Perrault, fica patente que toda condiçãohumana depende da maneira como é sentidae considerada por aqueles que a vivem e tam-bém pelo meio em que vivem. Nos contos emquestão, as soluções dos problemas dospobres não constituem soluções para o grupo:são apenas desfechos favoráveis para situaçõesindividuais. Não há personagens engajadosem reformas sociais. Os contos pregam o‘cada um por si’. E assim as histórias continu-am e a História continua.E continuam também as diferenças...

MARIA ELIZABETH G. DE VASCONCELLOS Professora de LiteraturaMedieval e Doutora em Letras pela UFRJ.

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POESIA DIVERSA

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LAURA SANDRONI Autor engajado, comprometido com osproblemas do seu tempo, Monteiro Lobato

foi o primeiro escritor brasileiro aacreditar na inteligên-

cia da criança, na sua curiosidade intelectual ena sua capacidade de compreender o dife-rente. As narrativas lobatianas estão plenas depersonagens com características peculiares,onde o conflito de concepções é permanente,e citações que remetem a personagens de ou-tras épocas, com costumes diferenciados eoutras visões do mundo.

Os estudiosos de sua obra costumam dizerque o Sítio do Pica-pau Amarelo é umresumo do universo. Enquanto o sítio sesitua no tempo e no espaço por dados refe-

renciais imprecisos, seus habitantes, ao con-trário são descritos minuciosamente a partir doprimeiro capítulo de Reina ıes de

Narizinho.Dona Benta detém a autoridade e a exerce

de forma sábia e democrática. Ela não é apenasuma espectadora das aventuras dos seus netos,mas também participante ativa em várias delas.Sua visão equilibrada e medianeira se confundecom o papel de avó carinhosa que contahistórias a cada noite, alimentando a fantasia eo sonho, matéria da vida no sítio.

Tia Nastácia representa o povo, pleno desabedoria intuitiva e experimentada da tra-dição. Ela supre o sítio de todas as necessidadesmateriais e ainda dá vida a alguns personagens,já que Emília e o Visconde saíram de suas mãos.Participa de várias aventuras com certa relutân-cia, mas sempre alertando para os perigos e asincertezas que os esperam pelos caminhos queeles percorrem.

Narizinho e Pedrinho são todas as criançasdo mundo. Ávidas de conhecimento e de aven-turas, descobrem a vida por intermédio dapalavra de Dona Benta, da bondade de TiaNastácia e de sua própria experiência, reelabo-

rando as informações recebidas nesse univer-so idealizado.

O Visconde de Sabugosa, um bonecofalante feito de sabugo de milho, sempre de car-tola na cabeça, símbolo de um saber acadêmicoe por vezes anacrônico, além de impressionante

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UM LUGAR PARA TOO diferente na obra de Monteiro

ILUSTRAÇÃO DE J.U. CAMPOS PARA O LIVRO ‘VIAGEM AO CÉU’ DE MONTEIRO LOBATO, COMPANHIA EDITORA NACIONAL.

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conhecimento científico é figura importanteem todas as aventuras do bando. Seu saber ori-enta, mas nem sempre acompanha as ousadiasde quem quer saber mais – e portanto avançamais, como Emília e Pedrinho.

Entre esses personagens Emília é o maissignificativo. Visto por muitos como o alter-ego de Lobato, por intermédio de quem eleemite seus pontos de vista, denuncia os absur-dos do mundo civilizado, ri da empáfia doEstado e dos poderosos. Sendo uma boneca,embora vire gente de verdade, ela está livre dasobrigações sociais impostas pela educação àcriança e pode dizer o que pensa sem nenhumtipo de coerção.

Além desses protagonistas humanos ouquase, vivem no sítio alguns animais que falame agem como seres pensantes na melhortradição das fábulas. São eles, pela ordem deaparecimento na narrativa, Rabicó, um leitãomuito guloso, mau-caráter, medroso e interes-seiro. O Burro Falante, batizado de Conse-lheiro, é bom, pacato e nunca faz mal aninguém. Há ainda o rinoceronte Quindim,que foge do circo e aparece no sítio onde setorna protegido da Emília e amigo de todos. Dealguma forma eles representam virtudes edefeitos do caráter humano, com os quais, emmenor ou maior grau, temos todos que conviver.

É com esse conjunto de personagens,acrescido de inúmeras outras coadjuvantes, queMonteiro Lobato cria o seu universo ficcional enos remete a uma paisagem idealizada: a visãode um Brasil ou de um mundo onde reinam apaz, a sabedoria, a liberdade. Nele as diferençasindividuais são respeitadas e cada um contribuina medida de suas possibilidades para o bem-estar geral. No conhecimento dessas diferençase contradições, a criança, além de se divertir,aprenderá a diversidade do mundo e poderá,mais tarde, compreendê-lo mais facilmente.

LAURA SANDRONI Mestra em Literatura Brasileira (UFRJ), mem-bro do Conselho Diretor da Fundação Nacional do LivroInfantil e Juvenil e autora do livro De Lobato a Bojunga, asreina ıes renovadas.

ODOSo Lobato

. Apoio Didático

. Didáticos

. Língua Estrangeira

. Literatura

. Salamandra

EDITO R AMODERNACAT`LOGOS 2002

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O que é a diferença? Podemos falar dadiferença de traços físicos, de temperamentos,de trajetórias, entre os seres humanos.Igualmente é possível notar diferenças deidade, de gênero, de etnia, de nacionalidade,de cultura. Estaremos sempre nos referindo à

‘fenda que nos separa’ como diz o com-positor Moska na letra da música U m

e outro.Assim, quem fala de dife-

rença fala, ao mesmo tempo,de semelhança. Quando

mencionamos a distânciaestamos falando também

da proximidade. Ouseja, o relato do estra-nhamento constrói aidentidade daquelesque falam. As distâncias e di-ferenças foram tor-nadas conscientes apartir de desloca-mentos, de viagens,que juntaram gru-pos e pessoas atéentão vivendo sepa-

radas. Um grupo queviva isolado dos demais

só notará diferenças in-ternas, como as da idade

ou do gênero. A existênciade códigos particulares a um

grupo permite que se fale delecomo uma ‘tribo’ ou, hoje em

dia, como uma ‘galera’. Foram oscontatos derivados dos deslocamentos

que permitiram conhecer diferenças namaneira de falar, na forma de comer e de sevestir, na forma de escolher parceiros matri-moniais, de educar filhos e lidar com os ve-lhos, na forma de enterrar os mortos.

A experiência da imigração produziu umgrande inventário das diferenças. A condição

de imigrante está agregada à experiência de serestrangeiro. Isto significa se sentir e ser consi-derado diferente. O grau de estranhamentodepende de muitas variáveis: o lugar de ondese veio, as razões da imigração, a situação deviajar em família ou só, a existência de contatoscom patrícios que já moram na nova terra.

O contato entre grupos distintos produzsurpresas que, por sua vez, podem gerarrecusa ou encantamento. Se o diferente forvisto como inferior, atrasado, arcaico, será dis-criminado. Se, ao contrário, for visto comosuperior, avançado, moderno, será adulado emuito bem recebido.

O Brasil, até o final do século XIX, tinhasido uma sociedade onde os brancos, em suamaioria portugueses, dominavam. Foi essegrupo conquistador que desalojou os indígenasdo litoral e trouxe povos africanos para traba-lhar como escravos. Essa sociedade se organi-zou sob o domínio da cultura ibérica, católica,ainda que os negros fossem maioria e que hou-vesse miscigenação entre os diferentes.

A massa de imigrantes que foi chegandoao país após 1870 mudou o quadro existente,principalmente na Região Sul. O contato comas diferenças dos grupos que então foramchegando produziu estereótipos do tipo: osportugueses são burros e trabalhadores; osespanhóis são sujos e gostam de festas; os ita-lianos são ladrões e espertos; os libaneses sãoperdulários, são os ‘turcos da prestação’; osjudeus são gananciosos e cultos; os japonesessão todos iguais e não se misturam.

Essas são estratégias inventadas pelasociedade para se proteger dos recém-chega-dos e procurar mantê-los em posição subordi-nada. Todos os povos, grupos e pessoaspodem ser acusados desses e de outros traços,dependendo da situação que estão enfrentan-do – inclusive os brasileiros, que estão, pelaprimeira vez em sua história, vivendo a situ-ação de imigrantes fora do país. Certamentetambém passarão a ser classificados por

UM INVENTÁRIO DLUCIA LIPPI OLIVEIRA

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atributos pouco honrosos se ameaçarem adivisão do trabalho existente nos lugaresonde estão chegando.

Pessoas que chegam a um novo país con-seguem conservar mais e melhor sua culturaquando viajam e vivem em grupo. A culturade origem é mantida na vida social de seusbairros, festas, igrejas, escolas. Por outro lado,é a escola pública que dissolve as diferenças efaz as crianças trazerem para a vida familiar oscostumes e comportamentos da sociedademais ampla.

Lidar com as diferenças, respeitando-as,sem querer que elas se dissolvam na culturadominante é uma demanda da cultura glo-bal do fim do século XX. Antes não eraassim. No Brasil, aceitava-se melhor aquelesgrupos que, por sua raça, religião e hábitos,pudessem ser mais facilmente assimiladospela cultura nacional.

A história dos imigrantes que chegaramao Brasil vem dando ocasião a novelas de tele-visão como Terra Nostra, e a relatos comoos dos livros Anarquistas, gra as a Deus,de Zélia Gattai, N r na escuridªo, de Salim

Miguel, Neg cios e cios, de Boris Fausto. No filme Gaijin, de Tizuka Yamazaki, por

exemplo, há uma maravilhosa cena em queum nordestino ensina aos japoneses como

colher café. Um nacional, também estra-nho ao universo do cultivo do café, se

comunicando com um estrangeirocompleto – outra língua, outra cul-tura, outra religião, outros hábitos eformas de lidar com a terra. Apela paragestos, para a mímica, mostrando que

é possível uma comunicação pré-verbal.Ou seja, sempre é possível usar pontes

para atravessar as fendas que nos separam...

LUCIA LIPPI OLIVEIRA Socióloga, estuda questões da identidadenacional. Autora de Americanos: representa ıes da iden-tidade nacional no Brasil e nos EUA (UFMG, 2000) e de OBrasil dos imigrantes (Jorge Zahar, 2001).

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DAS DIFERENÇASCANÇÃO DO EXÍLIO

“Minha terra tem palmeiras, Onde canta o SabiÆ;

As aves, que aqui gorjeiam,

Nªo gorjeiam como lÆ.

Nosso cØu tem mais estrelas,

Nossas vÆrzeas tŒm mais flores,

Nossos bosques tŒm mais vida,

Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, noite,

Mais prazer eu encontro lÆ;

Minha terra tem

palmeiras,

Onde canta o SabiÆ.

Minha terra tem primores,

Que tais nªo encontro eu cÆ;

Em cismar sozinho, noite

Mais prazer eu encontro lÆ;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o SabiÆ.

Nªo permita Deus que eu morra,

Sem que eu volte para lÆ;

Sem que desfrute os primores

Que nªo encontro por cÆ;

Sem qu’inda aviste as palmeiras,

Onde canta o SabiÆ.”

GONÇALVES DIAS 1823-1864 Poeta romântico.Principais obras: Ainda uma vez adeus!;Cantos e recantos; DiÆrio de viagem ao RioNegro.

UM E OUTRO(Moska)

“Um fala o outro escutaUm cala o outro mutaUm grita o outro olhaUm habita o outro desfolhaUm aperta o outro soltaUm liberta o outro voltaUm salta o outro pousaUm falta o outro ousaEntrar na fenda que nos sep-araDa ponte que nos aproximaQuem retirou a œltima pedraDo muro que estÆvamosvivendo em cima?

”(Faixa do CD Eu falso da minha vida o quequiser.)

MOSKA Músico, compositor e ator.

Anote o novo endereço do Leia Brasil:

www.leiabrasil.org.brSeja benvindo!

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NINA REIS SAROLDIAcredito que todos já tenham

ouvido falar das diferenças entreo Brasil e a Alemanha. Nesta sisu-da terra situada bem no meio daEuropa, os trens chegam pontual-mente em horários irreais paranós, brasileiros: 8:24, 19:46,10:55... A língua alemã, com suasmuitas regras e inúmeras exce-ções, possui características quedenotam o quanto o própriomodo de pensar deste povodifere do nosso. Afinal, quemprecisa de três gêneros, masculi-no, feminino e neutro?

Que o diga Ina von Binzer,preceptora alemã que no séculoXIX veio parar numa fazenda decafé no interior do estado do Riode Janeiro imbuída da missão(quase) impossível de ensinar sualíngua-mãe para os filhos do casalque a hospedava. Para esta moçabem-educada de 22 anos, cedo serevelou que os métodos de ensinotipicamente germânicos do peda-gogo Bormann – a quem se referecomo sendo seu mestre – de nadaserviriam na lida com seus malcri-ados e voluntariosos alunos.

Tudo no Brasil – do calor àescravidão, passando pelas rui-dosas refeições e pela empáfia dosaristocratas que não perdiam umachance de demonstrar sua eru-dição à alemãzinha – fazia umefeito terrível sobre seus nervos‘alemães’.

O que mais chama atençãonos relatos desta professora é omodo como as elites da época

tratavam os educadores: comocriados de luxo. Nossa desafortu-nada colega revela, em relatospungentes, o quanto a aviltavareferir-se às alunas, cujas idadesvariavam entre 19 e 22 anos, como ‘Dona’...

Ao deixar o emprego em buscade melhores condições de traba-lho, surpreendeu-se ao verificarque os anúncios onde se pediam‘professoras com imensa capacidade einúmeras perfeições’ encontravam-selado a lado, no Jornal doCommercio, aos anúncios de‘pretos fugidos e venda de escravos’.

Para terminar, contamos aquio episódio que fez com queFraülein Binzer jogasse o manualdo velho Bormann, definitiva-mente, no fundo da mala: um dia,chegando à classe onde lecionavanum colégio para moças no Rio,encontrou-a especialmente inqui-eta e barulhenta. Como últimorecurso, lançou mão de um casti-go considerado humilhante emsua terra natal. Ordenou ‘levantar,sentar’ cinco vezes seguidas. Parasua surpresa, assim que compreen-deram do que se tratava, as cri-anças começaram a pular ‘perpen-dicularmente como um prumo, paracima e para baixo, feito autômatos,divertindo-se regiamente’...

As cartas nas quais Ina von Binzer relata suaexperiência no Brasil encontram-se publicadasem edição bilíngüe sob o título Os meusromanos alegrias e tristezas de umaeducadora alemª no Brasil, tradução deAlice Rossi e Luisita Cerqueira, editora Paz eTerra, Rio de Janeiro. Todas as citações foramextraídas desta edição.

NINA REIS SAROLDI Mestre em Filosofia pelaPUC/Rio de Janeiro, doutoranda em TeoriaPsicanalítica na UFRJ.

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CASTIGO NA ALEMANHA,BRINCADEIRA NO BRASIL

DETALHE DE HÉLÈNE ROUART, DEGAS 1886.

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NINA RABHAExperimente circular pelas

ruas de uma cidade. Não importaa dimensão ou o país onde estejalocalizada, logo de imediato vocêvai perceber que ela é um lugar demuitas histórias. Os prédios nãotêm o mesmo estilo, altura ouépoca. Os bairros possuem carac-terísticas diferenciadas por for-mas de uso, atividades ou valores.Do mesmo modo, podem serdescritas as relações entre suapopulação.

E quanto maior e mais cos-mopolita for essa cidade, cadavez mais existirão distinçõesentre os pequenos fragmentosque, reunidos vão compor oespaço urbano.

Afinal, não é novidade quedesde que surgiram, há muitos milanos, as cidades são lugares dereunião de diferenças. Como pon-tos de encontro num vasto mundoainda pouco povoado, juntavamrotas, mercadorias, distintas raçasque promoviam através de trocas,o conhecimento e a própria sobre-vivência. Desde então, a capaci-dade de aglutinar contrastes sobreum mesmo chão, marcou ascidades. E, não podia ser de outromodo. Foi através delas que ohomem construiu sua históriasocial. Criou formas de viver.Deixou suas heranças e crenças.Produziu monumentos e valores.E pelo intercâmbio de experiên-cias, promoveu transformaçõesque nos fizeram chegar até aosdias de hoje.

No entanto, o que mais chamaa atenção dos que pretendementender a natureza humana é oenorme desejo de apagar os vestí-gios que permanecem dos proces-sos que promoveram a formaçãodas cidades. Na aparência, a pai-sagem construída valorizada éaquela que retrata característicashomogêneas. Edifícios produzidos

ao mesmo tempo e estilo. No con-teúdo, vale o critério de igualdadeentre pessoas e atividades que esta-belecem afinidades e se reco-nhecem como semelhantes.

E para conseguir esse objetivo,os espaços não adequados sãodestruídos e as pessoas não dese-jadas, afastadas. Os métodos uti-lizados variaram ao longo da

história, dos mais concretos aosmais simbólicos, porém se forameficientes para arrasar várias partescomponentes, lugares ou gente,não foram suficientes para destru-ir o processo que garante a própriasobrevivência das cidades.

É da gênese das cidades, a con-vivência dos contrastes. São elesque instigam a observação e acobiça. As trocas e as descobertas.A dominação e o domínio. Assimelas cresceram, transformaram-se enunca morreram. Recriam-se paraviver outros tempos e escalas. Osexemplos aí estão, de Babel àNova York.

Por isso se você realmentequiser compreender uma cidade,amplie seu roteiro e parta embusca de suas múltiplas facetas,que mesmo residualmente aindaresistem. Com enorme carinho,descubra de alma. Ela apenas lheserá revelada quando todas aspartes de um gigantesco quebra-cabeça, de muitas cores e todas asformas, conseguirem ser unidasnum grande mosaico.

Daí você escolhe a maneiracomo quer entender essa cidade.Por seus pequenos fragmentos,dispersos e diferentes que se unempara construir o conjunto ou ape-nas pelo desenho pronto, acaba-do, um objeto único.

Com certeza, se a últimaforma for a escolhida, fiquecerto que você perdeu a maiorparte da história.

NINA RABHA Arquiteta e urbanista, gerente de pro-jetos da Diretoria de Urbanismo do InstitutoPereira Passos/RJ.

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UM ENCONTRO A CADA ESQUINAAs cidades e a união das diferenças

IMAGENS DA AVIAÇÃO NAVAL, EDITORA ARGUMENTO.

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MARIA APARECIDA SILVA RIBEIRO

“Abancado escrivaninha em Sªo Paulo

Na minha casa da rua Lopes Chaves

De sopetªo senti um friœme por dentro.

Fiquei trŒmulo muito comovido

Com o livro palerma olhando pra mim.

Nªo vŒ que me lembrei lÆ no norte, meu

Deus!

muito longe de mim

Na escuridªo ativa da noite que caiu,

Um homem pÆlido, magro,

de cabelo escorrendo nos olhos

depois de fazer uma pele com a borracha

do dia,

faz pouco se deitou, estÆ dormindo

esse homem Ø brasileiro que nem eu.”(Descobrimento, Mário de Andrade)

Quem é esse outro que não conheço, masdo qual – mais do que notícias – quero darconta? Quem é você, de quem sei tão pouco,mas sobre quem quero contar histórias, dar voza conflitos, povoar minha escrita dos objetos deseu desejo, na verdade, estranhos para mim?

Falar de diferenças na literatura é um traba-lho que não se esgota nunca. As histórias todasestão recheadas de diferenças. A literaturabrasileira, como a universal, em todas asépocas, sempre foi produzida a partir damesma diversidade de que são constituí-dos os grupos humanos. As lutas pelopoder, os embates amorosos, o question-amento do ser, toda a substância dofazer li-terário encontra nas diferençassua origem mais remota.

O artista da palavra quer trazer paradentro de sua obra os signos dessa diver-sidade e o projeto modernista acaba trans-formando essa meta num novo sentidopara a arte. Como alguém que persegue ocaráter vário das coisas, se sabendo, antes detudo, também diverso, diferente, outro, emrelação aos seres que cria – ou recria – em seu

texto. O seringueiro de Mário de Andrade é tão

diferente do poeta paulista que se propôs aentoar-lhe um acalanto, quanto o é de outrosbrasileiros que, ainda hoje, têm na florestaamazônica sua fonte de renda e de esperanças.O Brasil da PaulicØia Desvairada, do pro-gresso e do futuro, redesenhado pelos traços ecores das vanguardas artísticas do início doséculo vinte, não parece ser o mesmo Brasil,ainda mais arcaico e primitivo no século vinte eum, esfolado e vendido aos pedaços por sis-temas econômicos que confundem, nummesmo movimento desordenado, a exploraçãod o homem e a do meio.

A função do artista é surpreender e produzirafinidades, ensinou o poeta Paul Valéry. Nocaso de Mário, o desafio era o de encontrá-lasem meio às diferenças. Como se ele mesmofosse um filho desse gigante mole e indecisochamado Brasil, buscando reunir os irmãosespalhados pelos quatro cantos do mapa.

Não foi por acaso que o mesmo Mário deAndrade, que se considerava feio como odiabo, colecionava retratos que dele faziamartistas como Lasar Segall, Di Cavalvanti,Portinari, Tarsila do Amaral, dentre muitos out-ros. Era, na verdade, espelhos o que Mário cole-cionava. Espelhos feitos de cores e traços, mastambém de palavras. Seus personagens, tão

diversos quanto as imagens que dele faziamseus amigos artistas (também modernos ediferentes entre si, como ele próprio – oMário trezentos, trezentos e cinqüenta) eramos espelhos por onde esse Narciso às avessasmirava, em busca de respostas para sua

curiosidade faminta de mundos, eram assuperfícies planas por onde buscava enxer-gar a alma do Brasil. De fato, foi a diversi-dade essencial do ser, e do ser brasileiro, oque mais comoveu esse leitor de si mesmo

e de nossas culturas. O produto dessacomoção aparece, de fato, nas andanças deseu mais célebre personagem e de nosso maisinstigante espelho, a encarnação de nossasdiferenças todas, as manifestas e as potenciais,as exibidas e as recalcadas, o herói sem caráterou de muitos caracteres – Macunaíma.

Da escolha dos temas até o modo comomanipulam os conflitos dos seus person-agens, as diferenças convertidas em textoliterário parecem ser um jeito encontrado pormuitos autores para resolver suas próprias

diferenças pessoais. É o caso de Franz Kafka –para fecharmos o foco sobre esse recorte tem-poral que compreende a virada do já passado

século vinte e, ao mesmo tempo, reunir-mos, sob a clave da mod-

ernidade, algumas obras

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EU, EU MESMO E Dois casos de semelhança

CARICATURA DE MARIO DE ANDRADE DE CASIO LOREDANO.

“As uniıes dos homens, suas razıes,sªo determinadas por um œnico objetivo:conquistar o direito dos homens a serdiferente.

”V.S. GROSSMAN 1905-1964 Escritor soviético

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MEU TEXTOas e de diferenças

produzidasem reali-dades cultur-ais tão diversasentre si. Aqui, o senti-do de povo, nação, país,coletividade, importa menosque o do ser que busca sentidopara sua existência singular. Eu sou minhashistórias – confessa o escritor tcheco, em carta,à senhorita Félice, a jovem de quem ficounoivo duas vezes, sem nunca ter desposado, e aquem de-dica a novela O veredicto, consider-ada uma de suas obras-primas. Em suashistórias, as dife-renças nunca resolvidas entre oautor e seu próprio pai atormentam incessante-mente o mesmo personagem que se faz outro acada texto. É assim, de forma mais explícita, emOnze filhos. Nesse conto, o autor multiplicapor onze a incompreensão do pai em relação aofilho, ou antes, divide por onze sua compreen-são inevitável de um declarado desamor. Otexto, pela exacerbada descrição dos person-agens, vai construindo o conflito sem neces-sariamente passar pela ação. Ao tratar das dife-renças entre seus filhos, o pai narrador, efetiva-

mente, dá conta de suas próprias desavençascom a figura de um filho em monobloco. Acontundência do discurso do pai vale pormuitos golpes de palmatória, ou de cinturão,ou de outros castigos físicos, cárcere privado,humilhação pública, todas aquelas grandes epequenas crueldades que muitos pais imputamaos filhos sob a desculpa da chamada educaçãorígida. Aqui, a máquina de fazer sofrer, já nossaconhecida de A col nia penal, é a verborragiacruel de um pai excessivamente lúcido emetódico no desenho de sua prole. Os traçosde suas personalidades díspares são enumeradosnum tom ora irônico, ora enfastiado, ora sutil-mente perverso, quase nunca complacente. Osinescapáveis elogios aos filhos são calculados namedida justa de os fazer ainda menores do que

são. Comose ao pai

coubesse todo omérito por encontrar

algum valor naquelesseres. Nenhuma palavra

boa sobre cada um dos filhosescapa de uma conclusão adversa-

tiva: mas, apesar disso, no entanto sãotermos que fatalmente acompanham a fala, aprincípio elogiosa, desse pai carrasco. Como napraga paterna de O veredicto, os filhos nãoescapam à maldição de sua origem: estãotodos condenados à morte por afogamento.Nas palavras.

É ainda o caso de um autor diante de seutexto-reflexo. Só que, em se tratando deKafka, o espelho vem estilhaçado em milpedaços cortantes, com as pontas afiadasespetando até mesmo os leitores que seatrevem a surpreender, nessas diferenças,alguma afinidade com suas próprias rela-ções familiares.

MARIA APARECIDA SILVA RIBEIRO Doutora em Letras pela PUC-RIO, Professora de Oficina Literária e Coordenadora doEspaço Cultural do CEC-Barra. Autora de MÆrio deAndrade e a Cultura Popular.

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FKA

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ULG

AÇÃ

O.

“Consideramos como verdades sagradas e inegÆveis: que todosos homens sªo criados com igualdade e independŒncia, que dessa igualdadena cria ªo os homens derivam direitos inerentes e inalienÆveis, dentre osquais a preserva ªo da pr pria vida, a liberdade e a busca dafelicidade.

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A QUESTÃO DA CHARLES FEITOSA

Como lidar com a diferença?Eis aí o desafio mais crucial dohomem em sua história e aquestão mais fundamental dafilosofia. Como se manifesta adiferença na estética? Trata-se dofeio, do disforme, do grotesco,aquilo que não corresponde àperfeição, ao equilíbrio e à har-monia de formas, devendo por-tanto ser corrigido e controladoou escondido e ignorado.

Etimologicamente o termo‘feiúra’ remete ao latim foeditas,que quer dizer ‘sujeira’, ‘ver-gonha’. Em francês laideur deriva-se do verbo laedere, que significa‘ferir’. Em alemão feiúra éHässlichkeit, um termo derivadode Hass, que quer dizer ‘ódio’.Porque nos envergonhamos como feio? O que há no feio que nosfere tanto? O que tememos ouodiamos nele? A feiúra possuidiversos graus, pode provocarrisos, na sua forma mais amena,nojo e asco, nas suas manifes-tações mais agressivas. Em umsentido estrito o feio é aquilo quesobra quando o belo se ausenta.Se a beleza se mostra na pro-porção, a feiúra está relacionada àdesmedida. Se a beleza é o es-plendor da ordem, a feiúra é ainstância da assimetria e do exces-so. Se o belo está do lado da luze do bem, o feio está do lado daescuridão e do mal. Tais dis-tinções pressupõem uma conde-nação do feio que não se baseiaapenas em critérios de agrado ou

desagrado, mas está associadatambém a certos aspectos morais.A acusação mais freqüente é a deque a feiúra seria o reflexo imedi-ato de desvios de conduta. Opoeta grego Homero descreve naIl ada a figura de Thersites comoo homem mais feio a participarda ocupação de Tróia: ‘vesgo,manco, corcunda, careca’ (Il ada;II,

217-219). Essa feiúra seria aexpressão sensível de sua atitudeblasfema diante dos deuses, dafalta de nobreza de seu caráter. Acultura grega antiga seguia omodelo da correspondência ime-

diata entre virtude moral e belezafísica. A crença de que a deformi-dade física reflete distorções deconduta contaminou durante umcerto tempo até às ciências, comopor exemplo, a frenologia e afisiognomia, que buscavam iden-tificar os criminosos apenas atra-vés do formato de suas faces ecrânios. Esse preconceito, que é

a base da política de purezaracial do nazismo, vigora atéhoje no cinema comercial norte-americano e nas novelas da tv.

Para o pensador antigo Platãoa feiúra não revela apenas uma

imperfeição da conduta, mas tam-bém uma imperfeição ontológica.No diálogo H pias Maior (289a)ele insinua que, comparada comos deuses, a espécie humana não ébela, ao passo que o mais belomacaco não passa de feio se com-parado aos homens. A feiúrahumana também era interpretadacomo o sinal de irrupção do irra-cional, da perda de identidade.Uma pessoa em estado de em-briaguez, de perturbação afetiva(de prazer ou dor) ou ainda deloucura tende a ter suas feiçõesembrutecidas e animalizadas. Deuma maneira mais indireta o feiotambém estava associado ao bár-baro e ao estrangeiro, enfim, atudo que não se conformasse àsregras da pólis.

Todas essas condenações esuspeitas indicam que a repulsapelo feio parece estar associada àdificuldade de lidar com o dife-rente de maneira geral. Se o filó-sofo alemão Hegel (1770-1831)tiver razão ao determinar, nasLi ıes sobre estØtica, o praz-er com o belo como um deleitenarcísico do espírito humano, oprazer em ver a si mesmo refleti-do tanto na arte como nanatureza, então o desprazer dofeio tem origem justamente nodesconforto em lidar com o que éoutro e estranho. Em últimainstância o feio provoca repulsaporque toca a ferida essencial,nossa incapacidade de lidar comesse outro absoluto que é amorte. Em geral não gostamos defalar ou de pensar na morte, masa feiúra lembra-nos, contra a

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ILUSTRAÇÃO DE RUI DE OLIVEIRA PARA SEU LIVRO ‘A BELA E A FERA’, ED. FTD.

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nossa vontade, que vamos enve-lhecer e morrer. A feiúra pareceemergir inexoravelmente noprocesso de corrosão temporaldo corpo. O cadáver em decom-posição é tão repelente, poisaponta impiedosamente paranosso futuro. A filosofia ensinaque é preciso saber aceitar amorte sem leviandade, mas tam-bém sem desespero. O que fazerentão com a feiúra do homem edo mundo?

Tradicionalmente a feiúra foisempre evitada na arte e nafilosofia, pois era vista como umsinal de imperfeição. Na moder-nidade, ao contrário, diversosartistas e pensadores (tais comoBaudelaire, Vitor Hugo, Sade ouOscar Wilde) fizeram da feiúra edo grotesco o tema central deseus trabalhos. Tudo se passaentão como se a arte não con-seguisse mais atingir o públicoatravés dos padrões antigos dabeleza clássica e precisasse inven-tar novos meios de causarimpressão, mesmo que para issotivesse que recorrer ao repulsivo.

Na era contemporânea vivemosem um estado de indetermi-nação, pois não sabemos mais aocerto o que é belo ou feio. Essaindeterminação tem um aspectopositivo, na medida em queimpede todo e qualquer norma-tivismo estético e político (comoo fascismo, por exemplo). Maspode ser perigosa também, já quecorremos o risco de ficarmos irre-mediavelmente insensíveis emrelação ao feio, graças a suasuper-exposição nos meios decomunicação em massa. Talvezseja necessário agora um movi-mento de preservação ecológicada feiúra.

Não se trata de fazer apologiado feio, mas apenas de aprender aconviver com a diferença e com aalteridade, mesmo que ela seapresente como desarmonia eincompletude ou até mesmocomo incorreção.

CHARLES FEITOSA Doutor em Filosofia pelaUniversidade de Freiburg i.B./Alemanha e real-iza atualmente uma pesquisa sobre asEstØticas do Feio na UNIRIO (UniversidadeFederal do Estado do Rio de Janeiro).

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FEIÚRA “ poca triste a nossa em que Ø maisdif cil quebrar um preconceito do queum Ætomo.

”ALBERT EINSTEIN 1879-1955 Físico alemão.

“Falas de civiliza ªo, e denªo dever ser,

Ou de nªo dever ser

assim.

Dizes que todos sofrem,

ou a maioria de todos,

Com as cousas humanas

postas desta maneira.

Dizes que se fossem difer-

entes, sofreriam menos.

Dizes que se fossem como

tu queres, seria melhor.

Escuto sem te ouvir.

Para que te quereria eu

ouvir?

Ouvindo-te nada ficaria

sabendo.

Se as cousas fossem

diferentes, seriam difer-

entes: eis tudo.

Se as cousas fossem

como tu queres, seriam

s como tu queres.

Ai de ti e de todos que

levam a vida

A querer inventar a

mÆquina de fazer felici-

dade!”

“Bendito seja o mesmosol de outras terras

Que faz meus irmªos

todos os homens

Porque todos os homens,

um momento do dia, o

olham como eu.

E nesse puro momento

Todo limpo e sens vel

Regressam lacrimosa-

mente

E com um suspiro que mal

sentem

Ao homem verdadeiro e

primitivo

Que via o sol nascer e

ainda o nªo adorava.

Porque isso Ø natural

FERNANDO PESSOA

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LÍGIA ASSUMPÇÃO AMARALConsidero que tudo se inicia com as

emoções, uma vez que a diferença significati-va em relação a um ‘tipo ideal’ (por razõesétnicas, corporais, de gênero etc.), de umoutro com o qual nos defrontamos, jamais‘passa em brancas nuvens’; assim, é usual odesencadeamento de uma dinâmica psicoló-gica fortemente matizada por sentimentos/emoções, caracterizando uma ‘hegemonia’ doemocional sobre o racional. Constituidorasde nossas atitudes, as emoções – em impor-tante aliança com mensagens culturais – lhesdarão o sentido negativo ou positivo que, emúltima instância, definirão nosso posiciona-mento frente a dada pessoa ou grupo – e éaí que se inscreve o preconceito, umas dasmais vigorosas barreiras psicossociais.

A Psicologia Social e a Antropologiaforam importantes ferramentas no enca-minhamento da questão. Nelas apoian-do-me, direcionei minhas reflexões epesquisas no sentido de conhecermais a fundo o motivo da existênciadessas barreiras: mecanismos psi-cológicos de defesa e re-traduçõessociais, suas formas de cristaliza-ção, bem como sua disseminaçãoe perpetuação – quer incons-cientes ou inconfessas, proposi-tais ou inadvertidas.

Claro está que muitas são aspossibilidades de se estudaresses aspectos – e uma delasé a análise de produtos cul-turais. Assim, por exemplo,a imagem da pessoa signi-ficativamente diferente na

mídia, no cinema, nas artesplásticas, na literatura, na pu-

blicidade, etc, considerando-sesua condição de eventuais perpe-

40

PELA VOZ DA

EM RELILU

STR

AÇÃ

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.LEITURASCOMPARTILHADAS

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tuadores de crenças e valores. A perguntanorteadora pode ser: como os porta-vozes(produtos e produtores) desses diferentesveículos ‘olham’ para a diferença significati-va? Dentro desse vasto universo, um dos pos-síveis recortes é o da Literatura Infanto-Juvenil – recorte que explorei mais detalhada-mente em minha tese de doutorado, quandoanalisei 47 histórias, escritas por autoresbrasileiros e editadas entre os anos 70 e 90,com personagem significativamente diferenteno aspecto corporal, a partir de grade analítica.

A partir dessa pesquisa, e para consubs-tanciar as subseqüentes, essa grade, mesmoquando simplificada, orienta a leitura quefaço de diferentes produtos culturais, nabusca de elementos indicadores de eventualperpetuação de preconceitos e estereótipos –que sinteticamente aqui compartilho:

a) Observa ªo de trŒs eixos bÆsicos,

afeitos ao personagem com deficiŒn-

cia:

•GŒnese da diferen a – presença, ou não,de elementos de culpabilização que prop-iciem uma interpretação do leitor no sentidode atribuir a diferença a ações ‘negativas’,como traquinagem, desobediência,imprudência, ‘esquisitice’, etc.•Status do personagem – características,traços de caráter, comportamentos, funçõesna história, estereotipia em vítima, herói ouvilão, etc.; como exemplos: presença cons-tante de sentimentos de tristeza, desgostosolidão, conformismo, desamparo, desespe-rança...; presença de características nitida-mente compensatórias, como alta competên-cia em alguma área, extrema sensibilidade,coragem exacerbada, talentos especiais...; pre-sença de atitudes e ações condenáveis doponto de vista da moral vigente, como into-lerância, agressividade, criminalidade...• Desfecho da hist ria – eliminação dadife-rença ou do diferente: pela ‘cura’ ou

norma-lização; por isolamento do mundo,individual ou em gueto; poreliminação/morte – real ou simbólica; pelainserção no lugar do exótico.b) Observa ªo do eventual carÆter de

am-big idade no discurso, seja ele

imagØtico ou textual, como indicador

de ambivalŒncia do artista em rela ªo

diferen a.

c) Observa ªo de presen a de mecanis-

mos de defesa, por parte do criador,

estejam os mesmos projetados ou nªo

nas a ıes do personagem; com espe-

cial Œnfase na nega ªo.

Mediante a utilização dessa grade analítica,freqüentemente, é possível distribuir os pro-dutos culturais em três grandes grupos:• livres de preconceitos – nos quais aquestão não é colocada: o diferente faz parteda trama e ponto final;• denunciadores de preconceitos – nestegrupo há um desdobramento importante,pois muitas vezes a análise pode revelar duaspossibilidades: a) os que denunciam precon-ceitos mas eles próprios são ‘imunes’ e b) osdenunciadores e simultaneamente perpetu-adores (mesmo que sem ‘percepção’ ou‘intenção’ disso) de preconceitos e estereótipos;• altamente preconceituosos – presençade duas ou mais das características da gradeanalítica ou apenas uma delas, mas com fortecolorido.

Enfim, essa forma de análise pode levantarmuitos aspectos relacionados às diferençassignificativas, propiciando aos leitores, sejamcrianças, jovens ou adultos, uma segundaleitura (crítica), que chamo, parafraseandoMarisa Lajolo, de ‘leitura do mundo’.

Gostaria, porém, de enfatizar que a pre-sente proposta está longe de caracterizar uma‘caça às bruxas’ ou a elaboração de um index– razão pela qual sublinho o profundo res-

peito que as obras de arte merecem, assimcomo seus criadores que, tão generosamente,nos oferecem seu talento e sensibilidade. Maspenso, também, que as linhas-mestras aquidelineadas, de identificação de preconceitos eestereótipos – através do tripé que constitui agrade analítica – possam vir a subsidiar o tra-balho de pais e educadores, no sentido defavorecer a ‘leitura do mundo’ por parte deseus jovens leitores.

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LITERATURA, PENSANDO PRECONCEITOS

LAÇÃO À DIFERENÇA

DISCURSO SOBRE A ORIGEM E OS FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS(trecho)

“Concebo na espØcie

humana duas espØcies de

desigualdade: uma, que chamo

de natural ou f sica, porque Ø

estabelecida pela natureza, e que

consiste na diferen a das idades,

da saœde, das for as do corpo e

das qualidades do esp rito, ou da

alma; a outra, que se pode

chamar de desigualdade moral

ou pol tica, porque depende de

uma espØcie de conven ªo, e

que Ø estabelecida ou, pelo

menos, autorizada pelo consenti-

mento dos homens. Consiste

esta nos diferentes privilØgios de

que gozam alguns com preju zo

dos outros, como ser mais ricos,

mais honrados, mais poderosos

do que os outros, ou mesmo faz-

erem-se obedecer por eles.”

JEAN-JACQUES ROSSEAU 1712-1778 Iluminista francês

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ADOLFO LACHTERMACHER Para abordar o tema da diferença em sua

representação cinematográfica, vamos levar emconta que o cinema, além de ser a arte quemais contribuiu para o imaginário do homemmoderno, é também uma complexa indústriado entretenimento, envolvendo a produção,distribuição e exibição de filmes.

Um dos pequenos filmes do primeiro anodo cinematógrafo é conhecido como AChegada do Trem Esta ªo Ciotat. Narealidade, trata-se apenas de uma tomada, feitacom a câmera estática na plataforma daestação, angularmente voltada à direção deorigem do trem. Freqüentemente este fragmen-to é citado ao se abordar as reações dos espec-tadores daquele cinema primitivo, pois otemor causado por uma locomotiva queavançava pela tela, projetando-se em direção auma platéia assustada, já é um caso tão célebrequanto risível à nossa sensibilidade con-temporânea.

A simples consideração de queaquela imagem em preto e branco,pouco definida, fantasmagóricamesmo, que nem ao menos eraacompanhada de qualquer ruídoque remetesse ao ambiente daestação, pudesse causar talreação, já indicava, como indicoupara os que puderam ler essas pis-tas, que aquele artefato capaz desimular o movimento poderia vir aser um poderoso manipulador de nos-sos desejos.

A força persuasiva daquela apariçãodizia muito do que a história do século docinema iria provar. E este nem havia aindase constituído enquanto linguagem propri-amente. Ali, nas primeiras décadas de suaexistência, os filmes não eram capazes decontar histórias com um grau mínimo de

complexidade, mas já encantavam e espan-tavam os espectadores.

Durante o período que vai da primeirasessão promovida pelos irmãos Lumiére atémeados da década de 1920, vários foram oscaminhos propostos pelos realizadores pio-neiros, até que ‘uma certa concepção ‘industrial’ decinema que, todavia, só se impôs a partir da segun-da década deste século’ 1, viesse a predominar emdetrimento de outras formas, narrativas ou não,que também buscavam seu espaço no campodas imagens em movimento.

Logo, os primeiros cineastas tornam-setambém produtores e exibidores e percebem aconvergência do fascínio que aquela técnicarepresentava com a demanda por histórias deum público familiarizado com os romances e oteatro realista-naturalista do sécu- lo XIX.

Realizadores e espectadores que, juntos, se alfa-betizavam naquela nova língua das imagensem movimento. Assim, criou-se e consolidou-se uma gramática da narrativa cinematográficaque, em suas premissas básicas, prevalece atéhoje. Com ela, o cinema torna-se capaz de con-tar histórias cada vez mais complexas, comsituações que passaram a envolver muitos per-sonagens e pontos de vista diversos, em filmes‘que começam a decompor a ação em uma cadeiasintagmática, produzindo uma ilusão de contigüi-dade por meio, principalmente, da introdução doconceito de montagem’.2

Será com base nessa estrutura, reiteradapelos elementos significantes próprios a cadagênero, que os filmes de longa-metragem nar-rativos disseminam-se através de cópias pelomundo afora, afirmando, de maneira inequívo-ca, os valores da sociedade que os concebeu.Portanto, se compreendemos que na arte os

conteúdos expressos não se dissociam dosprocedimentos formais, veremos que a inter-

dição do diferente será praticada pelaindústria do cinema menos através

da censura temática do que pela dificul-dade à circulação das obras que

destoam daquele padrãohegemônico que se impõe já em

mea-dos dos anos 1920.Na década de 60, aproveitan-

do lições de movimentos como oNeo-Realismo italiano, a Nou-

velle Vague francesa e agili-dade do cinema documental, o

Cine-ma Novo brasileiro buscoures-ponder a essas questões: fil-

mar com liberdade, quase sempre emlocações, rompendo as amarras dos

filmes de estúdio, que impunham sua estéti-ca através dos movimentos de câmerasuaves, da fotografia nuançada e das tramasprevisíveis e catárticas.

Em seu lugar, o Cinema Novo propõe acâmera na mão, que incorpora os movimen-

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O CINEMA E

DIVULGAÇÃO

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tos do corpo do fotógrafo à cena, o plano delonga duração, que recorta o espaço de formanada convencional, a fotografia contrastada,cuja intensidade da luz é característica de nossoterritório, traduzindo tudo isso através de ima-gens muitas vezes agressivas, apresentadas a umpúblico ainda pouco acostumado a olhar parao próprio país.

No manifesto intitulado Uma EstØticada Fome, de 1964, Glauber Rocha afirmasua luta contra o cinema industrial, incapaz,segundo ele, de expressar essa fome, tanto areal, como aquela simbólica, relacionada àescassez geral de recursos, que caracteriza ospaíses periféricos:

‘Aí reside a trágica originalidade do CinemaNovo diante do cinema mundial: nossa originali-dade é nossa fome e nossa maior miséria é que estafome, sendo sentida, não é compreendida. (..) não éum filme, mas um conjunto de filmes em evoluçãoque dará, por fim, ao público, a consciência de suaprópria existência. Não temos por isto maiores pon-tos de contato com o cinema mundial. O CinemaNovo é um projeto que se realiza na política da fomee sofre, por isto mesmo, todas as fraquezas conse-qüentes de sua existência.’ 3

Se o cinema é a linguagem por excelênciado século XX, no qual consolidaram-se os con-ceitos de pluralidade, diversidade e respeito àsdiferenças culturais, o cinema do final do sécu-lo e do limiar do século XXI tem procurado seposicionar frente ao desafio do retorno deidéias e práticas de ódio e intolerância.

Nas duas últimas décadas, temos assistido auma ampla oferta de obras que dão seqüênciaàquela busca anunciada por Glauber Rocha,uma luta que é estética, política e comercial, jáque também diz respeito à ocupação das salasde exibição. São filmes com temáticas e tex-turas peculiares, que vêm de lugares cultural-mente tão distantes como a Finlândia, o Irã, oVietnã ou, tão próximos, como a Argentina e oMéxico, ou mesmo do próprio cinema inde-pendente americano. Filmes que chegam

impulsionados pelos novos meios técnicos deprodução e distribuição de imagens que per-mitem a expansão da produção alternativa.

Diante da impossibilidade de relacionaressas obras, vamos citar apenas dois filmes docineasta alemão Wim Wenders, um dos princi-pais nomes do cinema mundial, principal-mente a partir dos anos 1980. Dois filmes mar-cados pela presença de personagens imigrantes,recém-chegados ou estrangeiros, figuras recor-rentes em sua obra e que têm como caracterís-tica principal a sua própria condição de ‘dife-rente’, exatamente por não estarem ainda con-taminados pelos valores culturais dominantes.

Em primeiro lugar, o solitário Travis, deParis, Texas (1984). Travis é o homem queanda pelo deserto, este lugar sem referências,que chega de lugar nenhum, para quem tudoé novo, diferente. Aparentemente sem rumo,em busca de algo com que possa afirmar suaidentidade, ele tenta recuperar sua históriapessoal a partir da única lembrança que guar-da da infância, uma foto da placa da cidadeonde teria sido concebido, a Paris do título;referência desde já plena de incerteza e falsi-dade, como lhe diz um personagem a certaaltura: ‘uma Paris no meio do Texas, veja só’.Naquela que talvez seja a sua obra maisemblemática, O CØu sobre Berlim (1987),tradução literal do original que por aqui ga-nhou o título de Asas do Desejo, WimWenders filma, em preto e branco, a cidadede Berlim ainda dividida pelo Muro, cidadecheia de cicatrizes de um passado de destru-ição. Eis que no lugar aparecem alguns anjos,personagens recuperados do repertório damitologia fabular, seres sem corpo e, portan-to, sem marcas de qualquer história, pessoalou coletiva. Assim como as crianças, apenasesses anjos serão capazes de olhar para ascoisas com olhos livres e, por sobre o pre-conceito e a intolerância, dali extraírem umanova mirada, um novo ângulo ou um novoconceito, em outras palavras, enxergar e to-

lerar a diferença.Em meados da década de 1990, no

chamado ‘renascimento do cinema brasi-leiro’, Walter Salles e Daniela Thomas rea-lizam Terra Estrangeira (1995), declarada-mente influenciados pelo cineasta alemão.Um filme também em preto e branco, noqual o conceito de estrangeiro afirma-se jáno título e que, em sua mistura de gêneros –drama familiar com contextualização políti-ca, filme de estrada com elementos de sus-pense –, acaba por embaralhar essas noções econtribuir para um olhar distanciado daexpectativa tradicional. Uma obra que tra-duz a insatisfação daqueles que não se reco-nheciam no cenário político-cultural doBrasil na virada dos anos 90, vivendo umarealidade inerte a suas aspirações e desejos,na qual tornar-se estrangeiro era tanto umcaminho de fuga como o da possível recon-ciliação com o país almejado.

Essas são apenas algumas indicações.Muitas outras aqui caberiam, pérolas dehumanismo e sensibilidade que devemosprocurar assistir e prestigiar. Pois todos osque trabalhamos norteados pela luta contra adiscriminação e a cultura excludente sabe-mos que o papel do educador atual não podeprescindir do maior contato possível comessas imagens ‘estranhas e estrangeiras’. Umtrabalho que passa por uma reeducação donosso olhar, objeto das artimanhas da domi-nação, tanto em direção ao outro como anós mesmos, cidadãos de um país que sequer capaz de forjar o seu próprio imagináriocoletivo e, através dele, se reconhecer e semostrar ao Mundo.

1.Machado, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas:Papirus, 1997, p.152.Machado, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas:Papirus, 1997, p.983.Rocha, Glauber. Uma Estética da Fome. Rev. CivilizaçãoBrasileira, AnoI, no.3, julho de 1965.

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A DIFERENÇA

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CULTURAIS

ANNA E O REI (Anna and the King),1999, EUA, de Andy Tennant. Annaé uma viúva inglesa que vai para oSião com o filho para trabalhar comopreceptora dos filhos do Rei.

AS VIAGENS DE GULLIVER (Gulliver's trav-els), 1996, EUA, de Charles Sturridge.Baseado na obra de Jonathan Swiftque narra as viagens de Gulliver porterras estranhas, até sua chegada àLilliput, habitada por minúsculoshomens.

FURYO – EM NOME DA HONRA (MerryChristmas, Mr. Lawrence), 1983,Inglaterra/Japão, de Nagisa Oshima.Em campo de concentração durante aSegunda Guerra Mundial, oficiaisbritânicos prisioneiros têm tensa con-vivência com os oficiais japoneses.

GAIJIN – OS CAMINHOS DA LIBERDADE,1980, Brasil, de Tizuka Yamazaki.Narra a trajetória dos imigrantesjaponeses que vieram trabalhar emfazendas no Brasil, suas dificuldadescom uma cultura estranha e asaudade de seu país. Atualmente adiretora está rodando Gaijin 2.

HANS STADEN, 1999, Brasil/Portugal, deLuiz Alberto Pereira. Baseado nolivro Duas viagens ao Brasil, doviajante alemão Hans Staden, queem 1550 naufragou no litoral deSanta Catarina e foi capturado portupinambás que planejavam devorá-lo em ritual de antropofagia.

IMPÉRIO DO SOL (Empire of the Sun),1987, EUA, de Steven Spielberg.Durante a Segunda Guerra, meninoinglês que vive no Japão se perde dospais e vai parar em um campo deconcentração. Baseado no romancede J. G. Ballard.

LAWRENCE DA ARÁBIA (Lawrence ofArábia), 1962, Inglaterra, de David

Lean. Durante a Primeira GuerraMundial, um jovem oficial britânicoempenha-se em unir facções árabesinimigas como única maneira dederrotar o Império Turco.

O CÉU QUE NOS PROTEJE (The shelteringsky), 1990, EUA, de BernardoBertolucci. Nos anos 20 casal ameri-cano em crise e um amigo viajampela África sem nenhuma intençãoespecífica. O contato com uma cul-tura diferente acaba por transformara viagem em uma jornada de auto-conhecimento.

O HOMEM QUE QUERIA SER REI (The manwho would be king), 1975, EUA, deJohn Huston. Dois trapaceiros per-correm a Índia a procura de fortuna.Quando são capturados por umatribo isolada, um deles é tomadocomo deus. Baseado no livro deRudyard Kipling.

OS DEUSES DEVEM ESTAR LOUCOS (The godsmust be crazy), 1981, África do Sul/Inglaterra, de Jamie Uys. Nativoafricano encontra garrafa de Coca-colajogada de um avião e julga que o obje-to pertence aos deuses. Na aldeia a gar-rafa causa muita confusão e o nativoresolve devolver o ‘objeto sagrado’.

TERRA ESTRANGEIRA, 1995, Brasil, deDaniela Thomas e Walter Salles Jr.Espanhola que vive no Brasil morrecom o sonho de retornar a sua terranatal. Seu filho decide entãorealizar a viagem.

UM HOMEM CHAMADO CAVALO (The mancalled Horse), 1970, EUA, de ElliotSilverstein. Em 1825, nobre inglêsviaja para a América onde é capturadopelos índios Sioux e passa por durasprovas para provar que é um guerreiro.

VERGER: MENSAGEIRO ENTRE DOIS MUNDOS,1999, Brasil, de Lula Buarque deHolanda. Documentário apresenta-do por Gilberto Gil sobre a vida e aobra do fotógrafo e etnógrafo fran-cês Pierre Verger. Radicado em Sal-vador, Verger correlacionou Brasil eo Golfo de Benin e suas mútuasinfluências culturais.

GÊNERO

ASSÉDIO (Besieged), 1998, França/Itália, de Bernardo Bertolucci. Jason éum pianista inglês que vive reclusoem si mesmo. Sua única abertura parao mundo é o amor que nutre por suaempregada africana Shandurai.

ELE DISSE, ELA DISSE (He said, she said),1991, EUA, de Ken Kwapis e MarisaSilver. Dois jovens jornalistas dis-putam coluna em jornal. O editordecide manter ambos e logo suasopiniões divergentes são um sucesso.

HARRY E SALLY – FEITOS UM PARA O OUTRO(When Harry met Sally...), 1989, deRob Reiner. Ao longo dos anos Harrye Sally se encontram diversas vezes.Sempre com pontos de vista diver-gentes no que se refere a relaciona-mentos eles brigam, se tornam ami-gos, até o dia em que se apaixonam.

THELMA E LOUISE, 1991, EUA, de RidleyScott. Duas amigas – uma garçonetee uma dona de casa – resolvem pas-

sar um final de semana fora, masapós uma tentativa de estupro quetermina em assassinato, as duas sãoperseguidas como criminosas pelasestradas do Texas.

TOOTSIE, 1982, EUA, de SydneyPollack. Ator nova-iorquino desem-pregado se passa por mulher paraconseguir papel em novela de TV.

DIFERENÇAS MUITO ESPECIAIS

MELHOR É IMPOSSÍVEL (As good as it gets),1997, EUA, de James L. Brooks.Escritor neurótico e mal-humoradotem sua vida modificada quando éforçado a conviver com uma simpáti-ca e batalhadora garçonete e com seuvizinho gay.

MEU PÉ ESQUERDO (My left foot), 1989,Irlanda, de Jim Sheridan. A históriareal do escritor e pintor ChristyBrown, que nasceu com paralisiacerebral, e superou suas dificuldadescom inteligência e talento.

MUITO ALÉM DO JARDIM (Being there),1979, EUA, de Hal Ashby. Jardi-neiro viciado em TV que nunca saiuda mansão onde trabalha tem deenfrentar o mundo após a morte deseu patrão.

O CORCUNDA DE NOTRE DAME (TheHunchback of Notre Dame), 1996,EUA, de Gary Trousdale e KirkWise. Animação. Corcunda quehabita a Catedral de Notre Damemostra sensibilidade, nobreza evalentia ao se apaixonar pela ciganaEsmeralda. Inspirado na obra imor-tal de Victor Hugo.

SEMPRE AMIGOS (The Mighty), 1991,EUA, de Peter Chelson. Max é umgaroto de 13 anos grande e forte,mas considerado pouco inteligente.Sua solidão termina quando ele fazamizade com o novo vizinho Kevin,menino super-dotado mas seri-

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FILMODIVULGAÇÃO

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amente enfermo que não conseguese locomover.

RAIN MAN, 1988, EUA, de BarryLevinson. Charles descobre que seupai, de quem estava afastado hámuito, deixou uma enorme herançapara seu desconhecido irmão autista,Raymond. Para se apoderar da fortu-na, Charles pretende internar o irmão.

UM ESTRANHO NO NINHO (One flew overthe cuckoo's nest), 1975, EUA, deMilos Forman. Condenado simulaloucura para ser transferido paramanicômio. Premiado filme baseadono livro de Ken Kesey.

GERACIONAIS

BICHO DE SETE CABEÇAS, 2000, Brasil, deLaís Bodanzky. Neto é um estudanteque acaba internado em um mani-cômio pela total incomunicabilidadee intolerância familiar. O filme ébaseado no livro Canto dos

malditos de Austregésilo CarranoBueno.

ENSINA-ME A VIVER (Harold & Maude},1971, EUA, de Hal Ashby. Harold éum adolescente rico e obcecado coma morte, cujo passatempo favorito ésimular suicídio, que torna-se amigoda excêntrica octogenária Maude.

RAPSÓDIA EM AGOSTO (Rhapsody inAugust), 1991, Japão, de AkiraKurosawa. Anciã japonesa sobre-vivente de Nagasaki recebe a visita desobrinho americano. O contato como parente distante traz lembrançasdolorosas, mas conscientiza seusnetos sobre o passado de sua famíliae de seu país.

DIFERENTES DIRERENÇAS

ASAS DO DESEJO (Der himmel überBerlin/Les ailes du désir), 1987,Alemanha/França, de Wim Wenders.Em uma Berlim ainda dividida e

marcada pela intolerância do passa-do, circulam anjos invisíveis à maio-ria dos mortais. Eles escutam os pen-samentos e angustias humanas, masnão podem interferir.

BILLY ELLIOT, 1999, Inglaterra, deStephen Daldry. Billy é um meninode 11 anos que mora numa comu-nidade mineira da Inglaterra e divideseu tempo entre a escola e atividadesditas masculinas. Por acaso ele desco-bre que tem uma grande vocaçãopara o balé.

A BELA E A FERA (Beauty and the Beast),1991, EUA, de Gary Trousdale e KirkWise. Animação. Bela jovem é apri-sionada em castelo por horrenda fera.

EDWARD MÃOS DE TESOURA (EdwardScissorhands), 1990, EUA, de TimBurton. Um inventor cria um garotoperfeito, com um grande coração,mas morre antes de terminá-lodeixando o jovem com tesouras nolugar de mãos.

GATTACA – A EXPERIÊNCIA GENÉTICA(Gattaca), 1997, EUA, de AndrewNiccol. No futuro seres humanos sãomanipulados geneticamente e todosos nascidos de maneira natural sãoconsiderados inferiores.

MORTE EM VENEZA (Morte a Venezia),1971, Itália/França, de LuchinoVisconti. Compositor em estadodepressivo vai para hotel em Veneza,lá ele se apaixona pelo jovem Tadzio,símbolo de sua busca pela beleza per-feita e um grande contraste com adoença e a pobreza que se espalhampela cidade.

NELL, 1994, EUA, de Michael Apted.Em um local isolado da Carolina doNorte vive Nell, garota que cresceuisolada da civilização e que fala umalíngua própria.

PARIS, TEXAS, 1984, Alemanha/ França/

EUA, de Wim Wenders. Um anti-épico sobre o esforço de um homempara encontrar a si mesmo e refazersuas relações.

SHREK, 2001, EUA, de AndrewAdamson e Victoria Jenson. Ani-mação. O mal-humorado ogro Shrektem que libertar a linda e volunta-riosa princesa Fiona.

RELIGIOSAS

SANTO FORTE, 1997, Brasil, de EduardoCoutinho. A equipe do documen-tário foi à favela Vila Parque daCidade, no Rio de Janeiro, e registroua diversidade religiosa local e a mis-celânea de fé e crenças.

SOCIAIS

BABILÔNIA 2000, 2000, Brasil, deEduardo Coutinho. O documentárioconvida os moradores de duas favelasde Copacabana a fazer um balanço desuas vidas e revelar suas esperanças naúltima noite de 1999.

O PRÍNCIPE E O MENDIGO (The prince andthe pauper), 1990, EUA, de GeorgeScribner. Adaptação dos EstúdiosDisney para o clássico de Mark Twain.

RACIAIS

ADIVINHE QUEM VEM PARA JANTAR (Guesswho's coming to dinner), 1967, EUA,de Stanley Kramer. Casal de classemédia americana se considera extre-mamente liberal, até que sua filhaapresenta-lhes o noivo: rapaz bonito,inteligente, com um futuro promis-sor... e negro.

A OUTRA HISTÓRIA AMERICANA (Americanhistory X), 1998, EUA, de TonyKaye. Jovem líder de gangue racistapassa três anos na cadeia por assassi-nato. Lá ele revê seu ódio, mas aosair encontra seu irmão menor tri-lhando o mesmo caminho de vio-

lência e preconceito.FAÇA A COISA CERTA (Do the rightthing), 1989, EUA, de Spike Lee.Durante quente dia de verão, a ten-são entre a comunidade negra e ita-liana explode em tragédia. A causa: oboicote a pizzaria que mantém emsuas paredes fotos de astros ítalo-americanos.

FEBRE DA SELVA (Jungle fever), 1991,EUA, de Spike Lee. Bem-sucedidoarquiteto negro inicia romance extra-conjugal com sua secretária, jovembranca descendente de italianos. Aoser descoberto, o caso coloca as duasfamílias em conflito revelando pro-fundas diferenças étnicas.

TENDA DOS MILAGRES, 1977, Brasil, deNelson Pereira dos Santos. Baseado nolivro de Jorge Amado. Acompanha asinvestigações de um jornalista e de umpesquisador americano sobre a vida doantropólogo Pedro Arcanjo.

ZELIG, 1983, EUA, de Woody Allen.Pseudodocumentário sobre o cama-leônico Zelig, capaz de alterar suaaparência na busca de ser aceito portodos. Assim Zelig se passa pornegro, judeu, asiático, etc., mas semnunca encontrar sua verdadeira

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GRAFIADIVULGAÇÃO

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MYRIAM LINS DE BARROSQuando pensamos em adolescência, nasci-

mento do primeiro filho, saída dos filhos dacasa dos pais, entrada na velhice, entre outrosmuitos momentos da vida, associamos à idéiade crise. A crise da juventude, a crise da meia-idade. O casamento é visualizado por umalinha pontuada por crises periódicas e esperadasque devem ser superadas. São marcas que, aolongo do curso da vida, a sociedade contem-porânea apresenta como momentos-chave dastrajetórias de vida dos indivíduos.

Mas nem sempre as passagens de ummomento a outro do curso da vida, assim comoos diferentes papéis sociais que assumimos nasociedade, foram entendidos da maneira quehoje os percebemos. Se nos voltamos para aIdade Média, por exemplo, vemos que o temadas idades da vida é tratado em textos, repre-sentado por imagens e fazia parte das formas deconceber as mudanças físicas do ser humano eas diferentes funções sociais que correspondiama estágios distintos e consecutivos da vida.Terminando, muitas vezes, com a representaçãoda morte, as imagens deste período vão apre-sentar a vida como um ciclo inserido numaordem natural e cósmica mais ampla. Sem pre-cisar ir muito longe, encontramos, no nossofolclore brasileiro, imagens das idades da vidarepresentadas por uma escada ascendente donascimento à vida adulta e descendente destemomento até a morte.

Portanto, as diferentes culturas sempre cons-truíram significados para a vida, elaboraramperiodizações e desenvolveram sentidos e práti-cas próprios para cada etapa e cada passagem davida. Mas é na sociedade moderna que a peri-odização do curso da vida é institucionalizada epensada a partir da concepção individualista dohomem. Existimos socialmente porque temosuma identidade civil definida basicamente pelosexo e pelo dia, mês e ano de nascimento.

Temos um Estado Nacional com legislaçõesque estipulam datas para a escolarização, para ocasamento, para a entrada e saída do mundo dotrabalho. Mas também só existimos social-mente se percebemos que, embora estejamosinseridos na sociedade, a compreensão quetemos de nós mesmos parte do valor queatribuímos ao mundo interior, à nossa subje-tividade, a nossos sentimentos e emoções quedefinem nossa identidade psicológica e nossasingularidade. Nos entendemos como umabiografia impar e avaliamos o percurso de nos-sas vidas baseados em concepções como a feli-cidade pessoal, o desenvolvimento e aprimora-mento de nós mesmos.

É no contexto desta cultura individualista eda institucionalidade do curso da vida que asnoções de crise de idade e de conflito derelações intergeracionais ganham sentido. Aspassagens de um momento para o outro sãopercebidas como dramas individuais que em-bora se tornem presentes para todos queatingem determinadas etapas da vida (a vulga-rização de explicações psicológicas têm aí umlugar fundamental), são vividas como experiên-cias únicas. Para estas experiências, a culturaindividualista da sociedade contemporâneaconstrói uma rede de significados que dá aosindivíduos, ao mesmo tempo, modelos de açãoe condições de interpretação da realidade. Ascrises e os conflitos são, assim, internalizadoscomo fatos individuais, de ordem privada.

Para os conflitos intergeracionais haveriacomo que um script que deveria ser representa-do por aqueles que vivem uma situação já clas-sificada socialmente como crise. A adolescênciaé, em nossa sociedade, um dos momentos emque crise e conflito estão presentes. Construiu-se uma representação em que este momento davida é carregado de problemas provenientes dodesenvolvimento físico e, sobretudo, psicológi-co. É na família, espaço das emoções, da pri-vacidade e da intimidade, que estes dramas sedesenrolam fundamentalmente. As relações

entre os avós, seus filhos e seus netos podem serinteressantes para se perceber este quadro socialde interações.

A contemporaneidade dessas três geraçõesnão impede que cada uma delas desenvolvainterpretações específicas sobre a vida familiar.A visão dos avós, por exemplo, é marcada pelapresença de dois aspectos da família: a autori-dade e o afeto.

Expressões das mudanças históricas e cul-turais como a inserção da mulher no mercadode trabalho, as alterações nos papéis de gênero,as separações conjugais e os novos casamentosaparecem na cena familiar e dão margem aconflitos e a constantes negociações entre astrês gerações. Nas relações entre as avós e suasfilhas e, às vezes noras, surgem, inevitavel-mente, as questões do cuidado com os netospequenos e as interferências das avós nasdecisões educacionais e das filhas na organiza-ção da vida cotidiana da mulher mais velha edo casal de avós. A queixa das avós que se sen-tem usadas como babás e os conflitos queadvêm deste desconforto são formas de lin-guagem que permitem expressar os papéis nafamília e sua hierarquia.

Nas relações com os netos surge, em con-traste, a linguagem do afeto. Constrói-se, nafamília, um modelo de relação de cumplicidadeentre as duas gerações, permitindo que avós enetos desfrutem da liberdade de expressões decarinhos e de brincadeiras. Mas esta relaçãoentre avós e netos só adquire, de fato, sentidoquando os avós se colocam no lugar de trans-missores de um conhecimento adquirido natrajetória de vida, portanto, como porta-vozesde uma geração que tem a família como umvalor social que deve ser preservado, sobretudo,quando as transformações sociais e culturaiscolocaram para as gerações mais jovens aquestão da permanência ou não da importânciadas relações familiares.

MYRIAM LINS DE BARROS Doutora em Antropologia Social, profes-sora adjunta da Escola de Serviço Social da UFRJ.

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O CURSO DA

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E AS RELAÇÕES INTERGERACIONAISVIDA

FOTOS DE ARQUIVOS PESSOAIS

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PEDRO LUÍS Confira abaixo uma entrevista feita pelo

músico Pedro Luís, do Monobloco e dogrupo A Parede, com Arnaldo Antunes (ex-Titã) que seguiu carreira solo e se destacatambém como poeta e compositor. Sua obrapossui inúmeros trabalhos dedicados àsdiferenças, desde Eu nªo sou da sua rua,celebrizada por Marisa Monte, até a impu-blicável Macha fŒmeo.

PEDRO LUÍS: Como as diferenças no Brasilpodem se traduzir em adjetivo?ARNALDO: Como adjetivo não sei, maspodem se traduzir em substantivo, mesti-çagem, do adjetivo mestiço. A forma comoaqui se deu o convívio das diferenças édiferente de qualquer outro lugar domundo. O Brasil tem essa coisa mestiçacultural, racial, culinária, religiosa, e isso émuito próprio. Na hora que o DarcyRibeiro fala ‘o Brasil é uma nova Roma, umacivilização’ a gente fica na esperança de queisso realmente reverta em algo visível parao mundo todo. Nós conhecemos o poderdessa originalidade que vem da formacomo as diferenças se deram aqui, comofruto de uma colonização, e como isso foipositivado pela própria cultura, que olhan-do pra isso soube como fazer dar frutos.Qualquer contribuição original que o Brasiltenha pra dar ao resto do mundo passa poresse sincretismo, por essa característica dacoisa miscigenada, da coisa mestiça. O adje-tivo é esse: como as diferenças vivem aqui.

PEDRO LUÍS: Que expressões artísticas contem-porâneas aproximam as diferenças? ARNALDO: Existe uma tradição de positivaçãodessa riqueza. Nós falamos em MisØria(música dos Titãs) ‘riquezas são diferenças’, masa positivação da riqueza dessas diferenças em

vários planos vem de diversas manifestaçõesimportantes no Brasil. Eu destacaria a Antro-pofagia, que tinha muito esse caráter não sóde juntar primitivo com futuro e moder-nidade, mas o caráter de você deglutir, usar ocanibalismo como metáfora de devoração cul-tural para gestar, para digerir e devolver aqui-lo como uma contribuição original. Eu achoque aí tem isso de reciclar internamente asreferências. A Antropofagia traz muito essaidéia, que foi depois também positivada pelaTropicália e que ali se definiu muito clara-mente: ‘no pulso esquerdo o bang bang, mas meucoração balança um samba de tamborim’(TropicÆlia, de Caetano Veloso). O hibridis-mo orgânico já do convívio das diferenças, algoque atualmente entrou na corrente sanguíneada cultura. Convivemos com essa diversidadea priore. Se cria a partir disso, não é uma metafalar ‘ah, vamos fazer uma coisa fundindo’, agente já cria meio assim, isso virou um pontode partida de criação pras gerações que vieramdepois. Cotidianamente, convivemos comum estado de diversidade cultural que setornou natural.

PEDRO LUÍS: Mas, independente de ser na músi-ca: nas artes em geral, porque na música nósidentificamos isso mais claramente, não? ARNALDO: Eu estou falando de música, mas aAntropofagia partiu mais da literatura porcausa do Oswald de Andrade, dos manifestos.A Tropicália também teve sua extensão para ocinema, pra várias manifestações que tinhama ver naquele momento. Sinto que a maneiracomo se age hoje em relação à literatura, àsartes plásticas tem esse espírito de pesquisa epotência diante das diferenças. Eu sinto issocomo um ambiente cultural genérico. É claroque nós falamos da música com mais pro-priedade por ser a área onde trabalhamos.

PEDRO LUÍS: Eu não sei se é por estar envolvidocom a música mas sinto que ela opera me-

lhor esta mistura, não sei se você concorda,especialmente dos anos 90 para cá. O rocknacional dos anos 80, que foi a principalexpressão musical na indústria daquela déca-da, depois se aproximou da dita MPB e dascoisas mais identificáveis como raízes na-cionais. Não sei se você percebe isso nasoutras artes.ARNALDO: Eu acho que isso é mais explícito namúsica por viver dentro dela. Não tenho umavisão panorâmica sobre as outras áreas tãonítida, sinto é que esse convívio das dife-renças por causa da tecnologia acaba ecoandotambém numa certa mistura de linguagens, decódigos, e isso é latente na música. A gentetrabalha com vídeo-clip, com cenário, comcapa de disco, a própria linguagem já envolvemúsica com letra, que é a coisa da poesia can-tada que no Brasil tem uma tradição muitosofisticada, na verdade. Se você pega apesquisa que os modernistas de 22 estavamfazendo e compara com a poesia de Noel, deLamartine, acha a busca de uma coloquiali-dade muito parecida, e acaba sendo curiosocomo essas coisas não se encontraram maisnaquela época. Coisa que o Júlio Bressane fezficticiamente no filme Tabu, que é o encon-tro de Lamartine com Oswald de Andrade.Com o avanço da tecnologia, o convívio dasdife-renças acabou sendo o convívio entre oscódigos. A modernidade trouxe isto, primeirocom o cinema, com a televisão e depois foiradicalizado na nossa época. A música popu-lar vive muito isso. A gente trabalha comvídeo, faz show, show envolve comportamen-to, performance, atitude, tem todo um baratode viver no meio de um turbilhão de lingua-gens, se torna inevitável que seja difícil distin-guir muito as épocas. Mas você falou algo queeu acho muito real: principalmente nos anos90 se tornou muito orgânica a mistura dasdife-renças, no som que você faz, que Leninefaz, que Carlinhos Brown, Nação Zumbi, aFernanda Abreu e muitos outros também

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ARNALDO

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ANTUNESLEITURASCOMPARTILHADAS

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fazem. Uma série de coisas que vem aconte-cendo dentro daquele processo da antropofa-gia. Que quando você tinha a Tropicália issoera como se fosse uma sugestão, uma meta,mas não acontecia muito no som. Talvez apessoa em que isso acontecesse de um jeitomais orgânico mesmo fosse Jorge Ben (hojeBenjor), pela coisa da pegada mesmo, a mãodele já tinha...

PEDRO LUÍS: E parece que não é algo racional,intelectualizado, ele não estava buscandofazer aquilo, ele era aquilo.ARNALDO: É verdade, no release que eu fiz dodisco do Lenine, Na Pressªo, eu contavauma história que o Caetano citou uma veznuma entrevista, que era uma frase do JoséAgripino de Paula: ‘o Oswald de Andrade já dissetudo, agora a gente tem que viver o que ele disse’.Que é mais ou menos o que a Tropicália foi.Achei isso revelador: que, de certa forma,aquilo era viver algo que o Oswald tinhaapontado como uma direção. Agora a gente jáincorporou isso a tal ponto que a expressãodas diferenças de uma maneira orgânica, fisi-oló-gica, aconteceu de uma forma muitovisível na música dos anos 90.

PEDRO LUÍS: Num mundo de tendências seg-mentadoras e setorizadas, como as diferençaspoderiam atuar para compor um quadro maisequilibrado?ARNALDO: Nós falamos do Brasil como umexemplo de algo original que vem disso, masesse discurso ainda é muito utópico, porquenós convivemos com uma desigualdade socialbrutal, com a miséria. Ao mesmo tempo vocêpercebe vários projetos sociais que dão certo,através da opção cultural. Eu tenho contatoem São Paulo com o Ferréz que escreveu olivro Capªo Pecado, falando sobre o CapãoRedondo (uma das maiores favelas de SãoPaulo) de onde veio os Racionais e toda umamovimentação de rap. Ele fala muito o verbo

resgatar. Resgatar uma pessoa é tirar ela docrime, do tráfico e trazer ela para a cultura,para o rap, para o trabalho artesanal, paraa área da literatura. Ele edita aquele ca-derno de literatura marginal que a CarosAmigos lança uma ou duas vezes por ano,não tenho certeza... Resgatar as pessoas é dardignidade e cidadania através da cultura. Criaropções culturais acaba se tornando atraente,assim como a criminalidade pode ser atraente,pra um garoto que está crescendo na periferia,sem opção de emprego ou educação. Então acultura muitas vezes é uma saída pra essaquestão. Agora, a desigualdade no Brasil évisível e passa por uma série de questões, nãosó distribuição de renda, mas por questõeseducacionais e muitas outras coisas quevemos que podem e que devem ser feitas, masque não resolvem tudo. Sinto que é umaquestão do mundo. Pensamos na positividadeda globalização, que é a convivência das dife-renças culturais no mundo, o fato de poder-mos ter informação via satélite ou via inter-net, via cabo, uma informação que está acon-tecendo ao mesmo tempo do outro lado domundo. Isso é muito positivo como criação egeração de atrito cultural.

PEDRO LUÍS: O Brasil é um país complexo eextremamente diversificado; O país se for-talece na diferença? E a globalização não con-tribui para o desaparecimento das diferenças? ARNALDO: Não, de jeito nenhum, muito peloadverso. Eu não acho que nivela, eu nãoacredito nisso. A gente toma contato comaquilo e coisas híbridas podem surgir a partirdaquilo, mas eu acho que as diferençasacabam se preservando dentro. Nós não que-remos extinguir diferenças, nós queremos quecada vez mais elas possam aparecer para con-versarem, para gerarem misturas. Quando sefala de globalização nesse sentido, o de con-vivência de diferenças é muito diferente daidéia de globalização no terreno da economia,

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ARNALDO Acontinuaçãoque é essa união dos países ricos paraexclusão dos pobres, de acentuar cada vezmais essa diferença da riqueza e da miséria

no mundo. Isso é o lado terrível da globa-lização. Mas em relação à tecnologia e à cul-tura eu sou muito otimista. Nós esperamos,na verdade, que isso possa reverter nainclusão da voz dos miseráveis, dar-lhes visi-bilidade. Por exemplo, com os atentados e aGuerra contra o Afeganistão os povos palesti-no e afegão ganharam visibilidade na mídia.Algo terrível gerou uma quantidade de infor-mação que ninguém sabia como era, comoaquelas pessoas viviam, isso tudo apareceu derepente. É claro que não a curto prazo, masna consciência das pessoas, a longo prazo,isso vai reverter de alguma maneira em umatransformação que a gente não sabe qual vaiser. Eu sou otimista. Tem essa idéia doMacLuham, quase profética, de AldeiaGlobal, que junta a idéia de aldeia primitivacom a tecnologia de ponta, para propiciaruma integração que não signifique nivela-mento, mas sim uma forma de convivêncianão traumática com as diferenças. Ao mesmotempo a gente vê muito exemplo de into-lerância, vê a extrema direita crescendo naEuropa, vê os Estados Unidos quererem decerta forma impor um tipo de regime, essapresença no Oriente Médio... Então a into-lerância também aflora o tempo todo e a

gente vê mostras disso. Nós brasileiros queconvivemos dessa forma com as diferenças –o racial do jeito como é aqui – para nós é tãoincompreensível isso das guerras étnicas, dasguerras religiosas. Claro que tem sempre mo-tivos econômicos misturados, mas a into-lerância é tão incompreensível pra gente. EmSão Paulo, por exemplo, vemos um restau-rante árabe em frente a um judeu, convive-mos de uma forma totalmente diferente daforma como eles convivem lá, e esse jeitopróprio é algo positivo.

PEDRO LUÍS: Acho que aqui, se podemos identi-ficar guetos, são mais guetos de condiçõessociais. Mesmo assim você vê uma favela mis-turada no meio da burguesia da zona sul cari-oca, por exemplo.ARNALDO: Penso que no Rio isso acontece deuma forma mais interessante talvez do queem São Paulo onde realmente essa periferia émeio isolada, um mundo muito à parte. NoRio, a própria topografia da cidade propiciaum convívio da favela com o resto da cidadee gera coisas interessantes.

PEDRO LUÍS: E você vê o bicho pegar também,né? Quando o bicho pega na favela você vê.Não tem distância. Tá todo mundo partici-pando. Não é uma vantagem, mas é uma ca-racterística.ARNALDO: Não dá pra ignorar essa guerra civilque está rolando. Em São Paulo também nãodá, mas é um pouco mais separado. É bomque possa ser visto, pois obriga as pessoas alutarem por algumas soluções para que sepossa melhorar isso. É como nós falamos antes,essas alternativas culturais nós sabemos queexistem, como os projetos da Mangueira, etc.A questão da violência não passa só por polí-cia, por prisão, é claro que passa também, masé uma questão de educação. Está totalmente‘linkada’ com a educação da criança que estácrescendo no meio da violência, com ela teropção de escola, de merenda, de emprego, dedireito à cidadania, de lazer, de cultura. Voucitar novamente o Ferréz que fala ‘cabeça para-da, oficina do diabo’.

PEDRO LUÍS: Na música (ou nas artes em geral)o que você vê de diferente acontecendo nomomento?ARNALDO: Acho que aí já é um outro sentido dediferença, né?

PEDRO LUÍS: Sim, daqui pra frente eu vou usaroutras acepções da palavra diferença.

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ARNALDO: Diferente nesse sentido seria o quehá de mais original, de mais novo, em relaçãoao padrão convencional. Essa música quevocê, Lenine, Nação Zumbi vêm fazendo écom a qual mais me identifico. É semelhanteao que faço e tem essa questão das misturasmuito explícita.

PEDRO LUÍS: Qual a diferença entre ser umartista de grupo e um artista solo?ARNALDO: A liberdade de ação. Poder escolher omeu repertório, sem estar sempre sujeito aoconsenso daquele grupo de oito pessoas. Maisimportante que o fato de não dividir o traba-lho com outros quatro crooners, é a liberdadede direcionar meu trabalho pra onde eu qui-ser. A coisa consensual também é muito inte-ressante, porque um é parâmetro crítico dooutro, e isso acaba gerando coisas que sozi-nho você não faria. Mas o solo te dá liberdadede escolha, o que é muito legal também. Oque eu queria quando sai dos Titãs era umpouco isso, não ter tudo o tempo todo sub-metido aos anseios de todos.

PEDRO LUÍS: Quais os artistas mais diferentes devocê com quem você gostaria de trabalhar?ARNALDO: Não sei, com quem a gente quer tra-balhar acaba acontecendo. Uma hora ououtra, a gente acaba se aproximando e fazendocoisas juntos. Acabo compondo com muitosparceiros diferentes. Eu gosto de compor emparceria, acho excitante o desafio da adequa-ção à linguagem de outra pessoa, porque vocêtem que dar sua contribuição, mas ao mesmotempo conversar. Tem um monte de músicasque eu não teria feito sozinho, que o incenti-vo, a faísca da parceria é que gerou. Isso acabaacontecendo naturalmente. Mas tem as sur-presas. Por exemplo, quando o grupo Molejogravou Fam lia, eu achei a versão deles mara-vilhosa. Totalmente imprevisível pra mim: umgrupo de pagode gravar um reggae de umabanda de rock que é os Titãs. Aquilo foi ma-

ravilhoso! Esse tipo de surpresa é muitobacana, como quando Nelson Gonçalvesgravou uma parceria minha com a MarisaMonte. Não eu que tenha um anseio: ‘queriaque tal pessoa gravasse’, nada disso. Mas acon-tecem surpresas que são muito legais, e vêemde áreas que a gente às vezes não espera.Também quando o Odair José gravou umamúsica minha. São coisas que não esperamos,de áreas com as quais não temos um diálogocriativo cotidiano, muitas vezes nem temosuma identidade. Mas aquilo surpreende, e euadoro ver o que eu faço poder ser relido porum artista de outra área, isso é muito bom.

PEDRO LUÍS Músico, compositor e apresentador do programaParede 800 na Rádio MEC do Rio de Janeiro

INCLASSIFICÁVEIS(Arnaldo Antunes)

Que preto, que branco, que ndio oquŒ?Que branco, que ndio, que preto oquŒ?Que ndio, que preto, que branco oquŒ?

Que preto branco ndio o quŒ?Branco ndio preto o quŒ?n̋dio preto branco o quŒ?

Aqui somos mesti os mulatoscafuzos pardos mamelucossararÆscrilouros guaranisseis e judÆrabes

orientupis orientupisameriqu talos luso nipo caboclosorientupis orientupisiberibÆrbaros indo ciganog s

Somos o que somosInclassificÆveis

Nªo tem um, tem dois,nªo tem dois, tem trŒs,

nªo tem lei, tem leis,nªo tem vez, tem vezes,nªo tem deus, tem deuses,

EU NÃO SOU DA SUA RUA(Branco Mello e Arnaldo Antunes)

Eu nªo sou da sua rua,eu nªo sou o seu vizinho.Eu moro muito longe, sozinho.Estou aqui de passagem.

Eu nªo sou da sua rua,eu nªo falo a sua l ngua,minha vida Ø diferente da sua.

Estou aqui de passagem.

Esse mundo nªo Ø meu,Esse mundo nªo Ø seu.

nªo hÆ sol a s s

Aqui somos mesti os mulatoscafuzos pardos tapuias tupinamboclosamericarata s yorubÆrbaros

Somos o que somosInclassificÆveis

Que preto, que branco, que ndio oquŒ?Que branco, que ndio, que preto oquŒ?Que ndio, que preto, que branco oquŒ?

Nªo tem um, tem dois,nªo tem dois, tem trŒs,nªo tem lei, tem leis,nªo tem vez, tem vezes,nªo tem deus, tem deuses,nªo tem cor, tem cores,

nªo hÆ sol a s s

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NTUNESQUADRINHOS DELUIS AUGUSTO GOUVEIA, ‘FALA MENINO VOL.3’ ED. FMP! WWW.FALAMENINO.COM.BR

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NEI LOPESA música do povo brasileiro é uma das

mais diversificadas do mundo, sua diversi-dade só encontra paralelo, talvez, na músicacubana. No seu amplo salão (ou terreiro),bailam formas tão distantes entre si quanto,por exemplo, a música africana em relação àda Europa Central, como é o caso do mara-catu diante do xote; do vanerão gaúcho diantedo samba de roda baiano; ou da ciranda per-nambucana em relação ao calango flumi-nense. Entretanto, os grandes grupos que

dominam a indústria da música em escalaplanetária trabalham contra essa diversidade,fazendo crer que existe uma única músicabrasileira ou, quando muito, segmentando-a,para fins comerciais e, a partir dessa segmen-tação, tentando fusões absurdas, com opropósito de diluir os conteúdos nacionaisdessa música e afinal servi-la na grande ban-deja do pop transnacional.

Originária da expressão anglo-americanapopular music (música popular) o pop musicaltraduz-se numa forma específica, surgida nosanos de 1960. Nascida juntamente com os

discos de 45 rpm, que continham um fono-grama de cada lado, sua forma implica curtaduração dos registros (três minutos emmédia), breve como em geral a carreira co-mercial de cada canção, criada em princípiopara chegar ao topo das paradas de sucesso elá permanecer por algumas semanas, até serdescartada para dar lugar a outras.

Universalmente difundida através do disco,do rádio, da TV e dos videoclips, a música popé uma produção industrial que privilegia aforma em detrimento do conteúdo (daí aimportância dos produtores e engenheiros desom), sendo feita para atingir uma massa indis-tinta: sem cor, sem sexo, sem condição social,sem religião, sem nacionalidade. Então, sualinguagem é a do amor idealizado, infantiliza-do, abastardado pela sensualização inconse-qüente. Porque esse ‘amor’ medieval, de contode fadas, é, ao lado do ódio, o sentimento maisuniversal que existe e, por isso, mais utilizávelcomo mercadoria. Porque o ódio, intrinseca-mente anti-social e destrutivo, só cabe mesmona prateleira onde se vende rap, hip-hop, essas‘negritudes juniors’.

É, então, através do pop que a indústria doentretenimento rejeita as diferenças e trabalhao estabelecimento de uma linguagem únicaem música popular, em escala planetária.

Repita-se, pois, que a música do povobrasileiro, dentro do amplo espectro que aidentifica, distingue-se por peculiaridades etraços específicos. E, mesmo em algumasregiões localizadas, suas expressões evidenci-am grande diversidade, como é o caso, nonordeste, de coco, xaxado, baião, xote, qua-drilha – conjunto heterogêneo mas hoje em-balado para consumo na mesma caixa onde selê ‘forró’; e que a ‘global alisação’, metendo láumas guitarras, ainda intenta vender comoforrock ou mangue-beat.

Lá fora, é assim que a ampla diversidadeda música caribenha, que só em Cuba se ra-mifica em són, rumba (braba, colúmbia,

guaguancó), guajira, guaracha, mambo, cha-cha-cha etc.; e que nos demais países se des-dobra em cúmbia, merengue, plena, pachanga,beguine e tantas outras formas; é assim queessa enorme diversidade costuma ser embola-da no mesmo balaio da ‘salsa’ (rótulo que osbons músicos cubanos repudiam). E é assim,também, no Brasil.

Mas a extrema variedade da música dopovo brasileiro tem sido o grande entravepara a imposição ao Brasil desse padrão únicode música popular, o pop, como parece já teracontecido em nações de larga tradição musi-cal, como a Itália e a França.

Nos anos 70, os festivais de música e prin-cipalmente os FIC (sigla para cada um dos‘festivais internacionais da canção’, realizadosno Rio de Janeiro), embora o engajamentonacionalista expresso nas letras de algumascanções concorrentes, representaram a maiorinvestida então feita no sentido dessa domi-nação estética. Investida que culminou nochamado ‘rock Brasil’ dos anos 80, cujo suces-so comercial mereceu a seguinte declaraçãodo letrista Bernardo Vilhena, parceiro do co-nhecido cantor Lobão, estampada em Brasil500 (SESC-RJ, 2000 – nº. 29) publicação em

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O POVO, O POP

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E A DIFERENÇAfascículos, lançada por ocasião do quinto cen-tenário do Descobrimento: ‘A música brasileiraestava chata, defasada em relação ao resto domundo. O rock veio atualizar o Brasil, interna-cionalizar o país’.

Mas já a bossa-nova inicial, decodificandoa complexa polirritmia do samba, incom-preensível para a sensibilidade anglo-saxônica,trabalhara no sentido dessa internacionaliza-ção. Tanto que, em um dos fascículos da pu-blicação acima mencionada (nº. 25), era apre-sentada como ‘uma nova linguagem para agramática do pop’.

Com o primado da ideologia da ‘globa-lização inevitável’, esse afã internacionali-zador chega ao auge. E, aí, os conglomeradostransnacionais atacam de todas as formas epor todos os lados.

Em setembro de 2000, o pequeno jornalda AMAR-

SOMBRÁS, a única dentre as diversassociedades de gestão autoral musical brasileiradirigida exclusivamente por autores e músicos,em um texto assinado por seu presidenteMarcus Vinícius de Andrade (O MassacreMusical do Brasil, Direitos JÆ, nº 55, Rio,jul-set., 2000), fazia a seguinte denúncia:‘Embora possua uma música rica, criativa emundialmente respeitada, há alguns anos o Brasilvem sofrendo um verdadeiro massacre por parte dasgrandes corporações da indústria musical interna-cional. Mas este tema, ao contrário da devastaçãoda Amazônia e da ameaça de extinção de certasespécies animais, não vem recebendo a devidaatenção da opinião pública internacional, muitoembora ele trate da devastação do patrimônio cul-tural de uma nação e da extinção do espírito criadorde todo um povo’.

O massacre musical do Brasil, referidopelo presidente da AMAR-SOMBRÁS, dizmais especificamente da ‘dominação mono-

polista do mercadomundial brasileiro pelosgrandes conglomerados

industriais interna-cionais’. Mas,

e m b u t i d o

nele, está também, é claro, um massacre estéti-co, tendo como arma a música pop e articu-lado de duas formas: primeiro, pela dissemi-nação de uma espécie de ‘ideologia da jovial-ização’ , mediante a qual o que não é ‘jovem’não conta; segundo, procurando passar aidéia de que a música pop (a exemplo do queo eurocentrismo faz, comparando a arte gregaàs ditas primitivas, como a africana) represen-taria uma evolução em relação a outras formasde música popular.

A recusa, então, da indústria musicaltransnacional em admitir as abissais dife-renças existentes nas várias formas da músicado povo brasileiro não é fruto de ignorânciaou ingenuidade. Ela obedece a uma estratégiamuito bem pensada. E tão significativa quan-to a exploração da região das Minas, no sécu-lo XVIII, ou, em nossos dias, a anunciadainternacionalização da Amazônia.

NEI LOPES Compositor de música popular e escritor. Publicou,entre outros: O samba na realidade; O negro no Rio deJaneiro e sua tradi ªo musical; 171 Lapa-IrajÆ.

MÚSICA BRASILEIRA“Tens, s vezes, o fogo soberano

Do amor; encerras na cadŒncia,

acesa

Em que requebros e encantos de

impureza,

Todo o feiti o do pecado humano.

Mas sobre essa volœpia , erra a tris-

teza

Dos desertos, das matas e do

oceano:

BÆrbara poracØ, banzo africano,

E solu os de trova portuguesa. s

samba

e jongo, chiba e fado, cujos

Acordes sªo desejos e orfandades

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JOSÉ MAURO BRANTDifícil saber a natureza dos nossos desejos

mais íntimos. Na infância, onde o futuro é

um livro em branco, e os desejos e os sonhosainda parecem possíveis, somos submetidos auma mesma pergunta:

O que você quer ser quando crescer?E os ouvidos dos pais se enchem de orgu-

lho ao ouvir respostas como: engenheiro,piloto de avião, astronauta. Acham certa graçaquando ouvem coisas como, astro de tele-visão, cantor de rock. Mas, e quando o meni-no diz que quer ser menina?

Esta é a história de Dudu, personagem dolivro O menino que brincava de ser, que,como diz o título, tinha como diversãopredileta, brincar de ser outras pessoas. Duduensaiava seus desejos mais sérios, projetando-se em personagens de histórias. Ao contráriodos outros meninos, Dudu sempre preferia seras bruxas, fadas e princesas.

‘Um dia, Dudu estava com um vestido de suamãe, um sapato de sua tia, e uns brincos que suaavó havia esquecido em sua casa. Brincava dis-

traído com o espelho...’Dudu, no espelho, parecia adivinhar que

tinha todas as possibilidades pela frente. Noquarto, sozinho, ele não era diferente, nin-guém é diferente sozinho, ele apenas era o

que ele desejava ser.Mas, no convívio social, Dudu era a

pró-pria imagem da diferença. No colégioele era chamado de mulherzinha e em casa,

sua família ficava horrorizada. A possibilidadede Dudu ser um ‘invertido’ assustava a todosque logo tentavam buscar os culpados: ‘Tudoculpa sua que não dá atenção pro Dudu.’ Disse aavó ao pai. ‘Eu não falei que você estragava esse

menino com cuidado demais?’ Disse o pai à mãe.‘Tudo culpa dessa professora que fica incentivandoessas coisas!’ Pensava a mãe.

Muitas foram as tentativas para curarDudu daquele dito ‘desvio’. A mãe procuraum psicólogo que diz que ele é normal. Nãosatisfeita, ela procura um psiquiatra que diz amesma coisa. O pai força Dudu a jogar fute-bol e ele detesta! Como aceitar essa diferença?Todos os meninos gostam de futebol! E fazen-do este tipo de comparação, Dudu pareciaainda mais ‘anormal’.

Mesmo num tempo em que a homossexu-alidade já deixou de ser encarada comodoença, o fantasma de se ter um filho gayainda atemoriza muitos pais, que, distantesdeste universo, enxergam esta possibilidadecomo algum erro na educação dos filhos. Aidéia de ‘bem educar’ sempre leva em consi-deração um certo enquadramento em padrõese conceitos que a sociedade impõe como cer-tos. Mas essa não é a história só de Dudu e simde muitos meninos e meninas que não seenquadram nestes padrões, e às vezes se tor-nam muito infelizes porque são obrigados a sedistanciar de suas próprias individualidades.

É muito difícil para a família aceitar que,apesar dos seus seis anos, Dudu já tivesse seuspróprios desejos e fantasias. E ninguém é cul-pado disso. Dudu é apenas diferente.

Felizmente Dudu tinha uma outra avóque via com olhos generosos as idiossin-crasias de Dudu.

– Vó, eu queria muito ser menina. – É, meu filho? Por quê?

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O DIREITO DE SER DIF

ILUSTRAÇÃO DE PINKY WEINER PARA O LIVRO O MENINO QUE BRINCAVA DE SER DE GEORGINA DA COSTA MERTINS, ED. DCL.

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FERENTE A CANÇÃO DO AFRICANO“LÆ na œmida senzala,Sentado na estreita sala,

Junto ao braseiro, no chªo,

Entoa o escravo o seu canto,

E ao cantar correm-lhe em pranto

Saudades do seu torrªo ...

De um lado, uma negra escrava

Os olhos no filho crava,

Que tem no colo a embalar...

E meia voz lÆ responde

Ao canto, e o filhinho esconde,

Talvez pra nªo o escutar!

Minha terra Ø lÆ bem longe,

Das bandas de onde o sol vem;

Esta terra Ø mais bonita,

Mas outra eu quero bem!

0 sol faz lÆ tudo em fogo,

Faz em brasa toda a areia;

NinguØm sabe como Ø belo

Ver de tarde a papa-ceia!

Aquelas terras tªo grandes,

Tªo compridas como o mar,

Dªo vontade de pensar ...

LÆ todos vivem felizes,

Todos dan am no terreiro;

A gente lÆ nªo se vende

Como aqui, s por dinheiro .

CASTRO ALVES 1847-1871 Maior poeta doRomantismo Brasileiro, fervoroso defensor doabolicionismo. Autor de: Espumas flutu-antes; Vozes D f̀rica.

O escravo

calou a fala,

Porque na œmida sala

O fogo estava a apagar;

E a escrava acabou seu canto,

Pra nªo acordar com o pranto

O seu filhinho a sonhar!

O escravo entªo foi deitar-se,

Pois tinha de levantar-se

Bem antes do sol nascer,

E se tardasse, coitado,

Teria de ser surrado,

Pois bastava escravo ser.

E a cativa desgra ada

Deita seu filho, calada,

E pıe-se triste a beijÆ-lo,

Talvez temendo que o dono

Nªo viesse, em meio do sono,

De seus bra os arrancÆ-lo!”

– Menina pode passar batom pode colocarenfeites no cabelo...

– ...Mas você sabe de uma coisa? Antigamente,homem não usava brincos; hoje já usa. Quem sabe,um dia, também não vai usar batom?

Com essa cumplicidade amorosa, a avó deDudu, sua melhor amiga, concorda em levá-lo até um arco-íris, afinal dizem que quempassa em baixo de um, vira menina. Mas antesdisso, num desfecho surpreendente, ela leva omenino para um encontro com a arte indoassistir a uma peça de teatro.

– Aqui homem pode passar batom? (...) homempode brincar de ser mulher e mulher pode brincar deser homem que ninguém liga?

... e é a arte que possibilita que Dudu sesinta menos diferente. Ali ele entende assutilezas do brincar e do ser. O teatro, a músi-ca, a leitura são espaços livres que possibili-tam uma viagem sem limites nem censuras,onde as nossas fantasias e desejos, quaisquerque sejam, sempre encontram lugar.

Bom, nessa história, Dudu tem seis anos. Seele vai se tornar gay, eu não sei. Talvez ele sejamesmo ator de teatro, romancista, poeta oucompositor como Chico Buarque, que nas suascomposições brinca de ser mulher comoninguém. Mas isso pouco importa.

O corajoso livro O menino que brinca-va de ser prova que não existe idade paratocar em assuntos tão delicados e abre umcaminho para muitas crianças e pais que estãodispostos a vencer os preconceitos e olharpara o outro, compreendendo e aceitando anatureza humana como ela é, múltipla. Cadaum tem o direito de ser como é, nem melhornem pior. Diferente.

JOSÉ MAURO BRANT Ator, cantor e contador de histórias.

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ANDRÉA BASTOS TIGRE

ELISA TEIXEIRA

“Nªo sou idŒntica a mimmesma sou e nªo sou ao

mesmo tempo, no mesmo

lugar e sob o mesmo ponto

de vista.”ANA CRISTINA CÉSAR*

Abordar a diferença sob oolhar da psicanálise leva àquestão da singularidade. A psi-canálise revela o impossível deuma ‘clonagem-toda’, de fazerdo outro um igual ou mesmouma ‘alma gêmea’ que noscompletaria. O sujeito, nopercurso de uma análise, éretirado da alienante cap-tura especular, própria doregistro ima-ginário,para construir sua sin-gularidade. Dito deoutra forma, a psica-nálise aponta que é ape-nas no registro do ‘pa-recer’, e não do ‘ser’, quepodemos viver o engododa promessa de nos tornaro outro.

A experiência do in-con-sciente traz à tona a vivênciada alteridade em nós, do estran-ho em cada um, daquilo quenos surpreende e nos escapa, deum saber ‘não sabido’ que cabea cada um conquistá-lo parafazê-lo seu. No exercício de ree-screver sua pró-pria história, osujeito constrói, num processoanalítico, sua singular resposta

ao que ele supõe que o Outroquer dele.

Freud marca a ambivalênciainerente a qualquer investimen-to libidinal como parte constitu-

inte da ‘natureza original’ hu-mana. Assim, observamos no ho-mem tanto uma inclinação aoamor como ao ódio.

Analisando as formações de

grupos Freud descreve como talambivalência encontra seu equi-líbrio no interior deles. Umgrupo se define a partir da ne-cessária exclusão de um elemen-

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UM OLHAR DA PSIC

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CANÁLISEto que dele difere. A agressivi-dade inerente a qualquer laçosocial é desviada para esse outroexcluído, para aquele que ficoude fora, preservando desta ma-neira os membros do grupo deseu efeito desagregador.

Se o igual apazigua e é vistocomo ideal, o diferente causaangústia. Mas o que causa hor-ror não é deparar-se simples-mente com a diferença, mas,como Freud bem marcou, de-parar-se com o estranho justa-mente naquilo que era até entãofamiliar, semelhante. Neste sen-tido, o que o sujeito precisa ata-car no outro é o que este revelade mais íntimo e escondido deseu próprio ser e, portanto,daquilo que não quer saber.

Toda sociedade produz ideaisque se transformam em seusalicerces. Comungar desses ideaispromove o sentimento de per-tencimento a ela. Vivemos atual-mente numa sociedade narci-sista, ou seja, numa sociedadeque produz mais ‘imagens-ideais’ do que ideais. E que ima-gens seriam essas? Imagens quecultuam a juventude, a eficiên-cia, a perfeição, a beleza e osucesso. A competitividade sub-jacente a tais ‘imagens-ideais’corrobora a lógica excludentedo ‘ou’, do ‘um ou outro’, do ‘euou você’ em detrimento da lógi-ca do ‘e’, do ‘um e outro’", do‘eu e você’.

Numa sociedade orientadapelo imperativo decorrente detais ideais, qual destino é reser-vado, senão o de resto, àquilo

que não obedece a tal imperati-vo? Qual o lugar para, o fracas-so, o feio e a deficiência? Nesse contexto o que poderí-amos esperar de uma escola?Será papel da educação promo-ver a produção de outros ideaisque respeitem a lógica inclu-dente do ‘e’, do ‘eu e você’?

Freud chama a atenção parao fato de que todo educador, àsua revelia, é um modelo identifi-catório para as gerações futuras.O que um educador transmitenão é tanto seu enunciado, masalgo que pertence ao nível deuma enunciação – aquilo queestá ‘entrelinhas’ – de sua posiçãode sujeito diante do mundo. Noque concerne à questão da dife-rença, o que um educador podetransmitir é que aceitar o dife-rente é da ordem de um certoexercício da tolerância.

Uma escola vive o desafio deser uma para todos, o desafio denão reproduzir no âmbito esco-lar o movimento tão prememteem nossos tempos de homo-geneização dos seres, de abafa-mento das singularidades e dasdiferenças. Resta hoje a cada es-cola construir, ao seu modo, suaresposta ao paradoxo de ser aomesmo tempo igual para todos eúnica para cada um.

ANDRÉA BASTOS TIGRE Psicanalista, membro daEscola Letra Freudiana

ELISA TEIXEIRA Psicanalista, membro da EscolaLetra Freudiana e professora de psicologia daEscola de Moda da Universidade CândidoMendes – RJ e de cursos livres de psicanálise epsicopedagogia na Puc-Rio.

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No próximo número deLEITURASCOMPARTILHADAS

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DE CONVERSA MARIA HELENA RIBEIRO

Como diziam Lúcio Alves e HaroldoBarbosa na música de sua autoria, é de conversaem conversa que se aprende as melhores dicasde promoção da leitura e de como formarleitores ‘críticos, criativos e autônomos’.

Nos intervalos dos seminários ou simpósios,nos encontros informais, no convívio nas

famílias, nas salas de aula, nosbate-papos de

bares e cafés, nos encontros em livrarias e emoutros tantos momentos informais é quesurge todo o repertório da experiência humanaconstruído pelos próprios homens em inte-ração com outros homens, com o mundo emque vivem, com os livros que lêem, com osfilmes que vêem e tudo mais que expe-rimentam e vivenciam no seu cotidiano. Édisso que vamos nos valer para nossa tarefa deestímulo à leitura.

Usamos a conversa nesse número da revistaLeituras Compartilhadas, para falar decomo, desse banquete de textos, histórias eexperiências que ela contém, podemos tirar anossa prática para transformar nossos alunosem leitores pelo menos apaixonados, encan-tados e curiosos em cada vez saber mais.

Curiosidade é a palavra-chave. Toda a nossaprática vai por água abaixo se não despertarmosnos nossos alunos a curiosidade de seconhecerem, de conhecerem os outros, o

mundo em quevivem, o

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EM CONVERSA novo, o atual, o estético, o gostoso, ocomplexo, o verso e o reverso das coisas.

O tema ‘Diferenças’ já traz no seu bojouma série de questionamentos. Ele por si sójá desperta a curiosidade, portanto requer sermuito pensado, muito debatido e muitoconversado ... e é de conversa em conversaque lançamos o tema desse número darevista, iniciando um longo percurso depráticas leitoras.

A melhor atividade de práticas leitoraspara trabalhar a questão das ‘Diferenças’ é aRoda ou Círculo de Leitura: são diferentesleituras, diferentes histórias de vida, diferentesrepertórios e diferentes posturas e atitudesfrente aos textos lidos pelo leitor-guia quecirculam nessa roda. A troca constante dessasleituras, o saber ouvir diversos pontos de vistae diversos olhares sobre o mesmo texto sãofundamentais para se exercitar a ‘tolerância’ ecom isso, estar disponível para acolher outrasopiniões, para acolher as diferenças.

O próprio título da revista, LeiturasCompartilhadas, aponta para uma daspráticas mais eficientes para se trabalhar asdiferenças humanas: compartilhar seus acer-vos pessoais: memórias de infância na família,na casa, na rua, na escola, seus sentimentos eemoções, seus traumas e suas paixões, asvozes que contribuíram para a construção dasua identidade. É por meio da leitura querecuperamos essas memórias. Nas históriasdos outros, escritas ou narradas, é que iden-tificamos nossas próprias histórias.

Contar histórias, ler ou falar poesias,ouvir histórias, histórias que falem daconstrução da identidade é perfeito paraentender porque somos diferentes. Essasdiferenças aparecem nos textos dos livros, dasrevistas, dos jornais que lemos.

Ampliando essas leituras, podemos visitarou revisitar fotos, vídeos, filmes, gravuras epinturas que resgatem a memória afetiva,estímulo indispensável para sermos leitores.

O grande prazer no nosso percurso deleitores é conseguir relacionar os textos dessasvariadas linguagens e formar uma leituranossa, nova e original..

Após a prática de auto-conhecimento e deauto-reconhecimento, o próximo passo éconhecer o outro.

Quem é esse outro que convive conosco? Quem é esse outro que anda nas ruas, quesenta nas praças, que vai à escola, que vai àscompras, que entra nas filas? Quem é esseoutro que dorme nas calçadas, que não come,que rouba ou mata e que faz nossas notícias?Quem é esse povo que canta, dança, reza e sefantasia e se pinta de todas as cores? Quem sãoessas pessoas que eu vejo, que eu sinto, que eubeijo, abraço e que choram e riem comigo?

Nesse momento é importante, além dostextos de ficção, estar aproximando nossosalunos também dos jornais (escritos, falados etelevisados), de filmes auto-biográficos, decrônicas do cotidiano, relacionando e com-parando a realidade com a ficção.

Quantas mães perversas, pais amantes,quantos feios amados e belos solitários,quantos sonham com uma vida melhor equantos não conseguem, quantos perseguemo mal e a corrupção? São homens e mulheres,pessoas negras ou brancas, ricas ou pobres,novas ou velhas que transitam nos textosliterários para nos mostrar que tambémexistem na vida real. É importante esseconhecimento. A intimidade com essesdiferentes personagens da literatura e da vida,diminui as tensões e os conflitos e promove asnossas próprias escolhas.

Identificando esses personagens nos di-versos textos que apresentamos, conversandosobre eles, buscando diferenças e semelhançasem outros textos, criando novos personagenspara as histórias que contamos, estamoscontribuindo fortemente para que nossosalunos elaborem melhor no seu íntimo asmisérias e injustiças do mundo e tornem-se

mais capazes para enfrentá-las e modificá-las. Quanto mais se lê e debate o cotidiano do

homem, mais se está ampliando a nossacapacidade de compreensão do outro e deaceitação daqueles de quem normalmentetendemos a nos afastar. Nos diversos textosque lemos esses personagens estão nosdizendo como se movem, falam, se relacio-nam e como se inscrevem no mundo,encarando e vencendo seus problemas. Esta éa dimensão que a leitura nos dá: afina eamplia nosso olhar para a diversidade.

Por último, ficam as perguntas: em quecontexto essas diferenças acontecem? Que fatosderam origem a constatação dessas diferenças?Quem participou desse processo e desdequando acontece? Onde estão localizadas asresistências, os preconceitos, os radicalismos efundamentalismos? Em que áreas acontecem?Em que lugares são mais identificados?

É um processo natural ou artificial?A leitura coletiva, compartilhada, é fun-

damental nesse momento. A utilização depesquisas, entrevistas ou mesas de debates comhistoriadores, antropólogos, psicólogos, soció-logos, jornalistas, articulistas e outros; apluralidade de informações à disposição emmurais, álbuns de recortes; a promoção de júrissimulados sobre fatos acontecidos (ontem ehoje); debates entre grupos que pesquisam erecolhem materiais devem constituir o rol deatividades que facilitam essas diferentes leituras.Quanto maior o número de abordagens, maisamplas são as possibilidades de leitura.

A seleção dos materiais de leitura para essemomento é crucial. Todo cuidado é pouco!É preciso ter o olhar atento para criticamenteidentificar as diferentes tendências e ospreconceitos embutidos nos discursos dequem fala ou escreve. É a hora de se trabalhara análise do discurso. O que está nas entre-linhas, no sub-texto.

MARIA HELENA RIBEIRO Promotora de leitura.

LEITURASCOMPARTILHADASFASCÍCULO 4 | AGOSTO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR

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