Leituras Em Competição Roberto Schwarz

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  • Este livro resulta de quatro conferncias que dei na Universidadede Cambridge. () Ao falar de Borges precisamente ali e em ingls, tive umaimpresso curiosa. A estava uma argentina falando numa universidade inglesasobre outro argentino a quem hoje se considera universal.() A reputao mun-dial de Borges o purgou de nacionalidade.

    Beatriz Sarlo,Borges, um escritor na margem

    O renome internacional de Machado de Assis,hoje em alta,at mea-dos do sculo passado era quase nenhum.Para no fabricar um falso pro-blema, bom dizer que o mesmo valia para a literatura brasileira no seutodo,prejudicada pela barreira do idioma.Talvez a nica exceo fossemos romances de Jorge Amado,que se beneficiavam da mquina de propa-ganda e tradues do Realismo Socialista, atrelada poltica externa dafinada Unio Sovitica. Sem iluses, comentando uma tentativa oficialde divulgar os escritores brasileiros na Frana,Mrio de Andrade obser-vava que a nossa arte seria mais apreciada no mundo se a moeda nacio-nal fosse forte e tivssemos avies de bombardeio.1 Como no era o caso,amos criando uma literatura de qualidade at surpreendente, que parauso externo permanecia obscura.

    LEITURAS EM COMPETIO

    Roberto Schwarz

    RESUMO

    O artigo acompanha a recepo da obra de Machado de Assisno Brasil e no exterior. Em confronto com a noo corrente de universalidade, demonstra-se o prejuzo esttico conti-do na opo de ignorar as particularidades locais formalizadas pelo autor. Com base na crnica O punhal de Martinha,procura-se demonstrar a complexidade e a tenso da dialtica entre local e universal sugerida pela obra machadiana.

    PALAVRAS-CHAVE: Machado de Assis; literatura brasileira; literatura esociedade.

    SUMMARY

    The article traces the reception of Machado de Assis work inBrazil and abroad. It puts into question the current notion of universality, focusing on the aesthetical elements of thelocal particularities present on Machados narrative form. Taking the short text O punhal de Martinha as a guideline,it demonstrates the complex and tense dialectics between local and universal suggested in his work.

    KEYWORDS: Machado de Assis; Brazilian literature; literature andsociety.

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    [1] Mrio de Andrade, Feito emFrana (1939), O empalhador de pas-sarinho,So Paulo,Martins,1955,p 34.

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  • [2] Sergio Miceli, A desiluso ameri-cana, So Paulo, Editora Sumar,1990, p 13.

    [3] Susan Sontag, Afterlives: thecase of Machado de Assis (1990),Where the stress falls, Nova York, Pica-dor,2002,p 38.O romance de Sontag,The benefactor, de 1963. William L.Grossman, o tradutor das Memriaspstumas para o ingls (Epitaph for asmall winner, 1952), viera ao Rio deJaneiro em 1948,a convite do governo,para criar uma business school. Ver odepoimento na resenha de AlexanderColeman nova traduo do romance,em 1997, agora como Posthumousmemoirs of Brs Cubas,.

    [4] Ver Saturday Review, 19.3.1960, p.20,onde h uma resenha do romancede Cecil Hemley, The Experience, feitapelo mesmo William Grossman. Esteassinala a influncia de Machadosobre estrutura e estilo do livro.Acom-panha a resenha um comentrio deHemley, que transcrevo na ntegra,por tudo que antecipa. Devo admitira minha dvida com o grande escritorbrasileiro Machado de Assis, cujasobras venho admirando desde quetomei conhecimento delas oito anosatrs. Sempre fui um apaixonado deLaurence Sterne e, de fato, quandojovem, escrevi prosa muito influen-ciada por ele. claro que Sterne foitambm um dos escritores que abri-ram os olhos a Machado, de sorte queMachado e eu havamos sido prxi-mos antes ainda de nos encontrar-mos. Contudo, o significado do escri-tor brasileiro para mim esteve notanto naqueles elementos tcnicosevidentes tais como os captulosbreves e as interrupes sbitas danarrativa pelo autor que ele tomaraemprestado a Sterne.O que achei par-ticularmente estimulante foi a sua

    De l para c, o romance machadiano foi traduzido e os estudosestrangeiros a seu respeito vieram pingando, sobretudo em ingls. Emparte o empurro foi dado pela ampliao dos interesses norte-america-nos no ps-guerra,a qual se refletiu na programao da pesquisa univer-sitria. Voltada para regies que a Guerra Fria tornava explosivas, a cria-o de area studies facultava currculos mais adaptados ao presente, paramal e para bem. Assim, na esteira da Revoluo Cubana, o portugus foideclarado lngua estratgica para os Estados Unidos, com a suplemen-tao de verbas e os dividendos culturais do caso.2 J na parte propria-mente literria, o reconhecimento se deveu a intelectuais com antenapara a qualidade e a inovao. Por exemplo, Susan Sontag conta que oeditor de seu primeiro romance a cumprimentou pela influncia deMachado de Assis, cujas Memrias pstumas de Brs Cubas ele mesmohavia publicado h poucos anos. Era engano, pois ela no conhecia nemo livro nem o autor,mas logo os adotou como influncia retroativa.3 Asuposio,que no valia para Sontag,valia entretanto para o prprio edi-tor:Cecil Hemley era romancista por sua vez,e deixou um excelente tes-temunho de seu interesse por Machado. A anedota mostra o clima decumplicidades seletas que se estava formando em torno do escritor.4

    Para outro exemplo, veja-se o prefcio de John Barth a uma reedio deseus primeiros livros. O romancista National Book Award de 1972 lembra que tentava encontrar a sua maneira, com ajuda de Boccaccio,Joyce e Faulkner,quando o acaso fez que lesse Machado de Assis.Este lheensinou que as cambalhotas narrativas no excluam o sentimentogenuno nem o realismo,numa combinao la Sterne,que mais adian-te se chamaria ps-moderna.5

    Quanto academia, a pesquisa machadiana desenvolvida nos Esta-dos Unidos acompanhou as correntes de crtica em voga por l,como eranatural. O patrocnio terico vinha entre outros do New Criticism, daDesconstruo, das idias de Bakhtine sobre a carnavalizao em litera-tura, dos Cultural studies, bem como do gosto ps-moderno pela metafic-o e pelo bazar de estilos e convenes.A lista facilmente prolongvel eno pra de crescer.Mais afinada com a maioria silenciosa, indiferente snovidades,havia ainda a anlise psicolgica de corte convencional.A sur-presa ficava por conta do prprio Machado de Assis,cuja obra,originriade outro tempo e pas, no s no oferecia resistncia, como parecia feitade propsito para ilustrar o repertrio das teorias recentes. O ponto decontato se encontrava no questionamento do realismo ou da representa-o, e em certo destaque da forma, concebida como estrangeira histria. Haqui uma questo que vale a pena enfrentar: como entender a afinidadeentre um romancista brasileiro do ltimo quartel do sculo XIX e o con-junto das teorias crticas em evidncia agora,nas Metrpoles?

    O percurso da crtica brasileira no mesmo perodo foi distinto. Elano tinha diante de si um grande escritor desconhecido,mas,ao contr-rio, o clssico nacional andino. Embora fosse coisa assente, a grandeza deMachado no se entroncava na vida e na literatura nacionais. A sutileza

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  • ruptura radical com a tradio rea-lista./ claro que h muitas maneirasde escrever um romance e no desejodesmerecer romances e romancistascom tendncia diferente da minha.Machado mostrou-me um modo detornar contemporneo o romanceclssico.No quero dizer que o copiei.Sob alguns aspectos as minhas idiasesto em oposio at direta com asdele. No sou um niilista. Mas tenhome interessado pelo tratamentocmico de idias, bem como pormaneiras diferentes de lidar com aspersonagens, para fugir ao psicolo-gismo dos escritores busca do Zeit-geist (esprito de poca). Com efeito, aminha viso do universo no confereum lugar demasiado alto psicologia e sociologia, de sorte que a espcie deforma que desenvolvi estreitamenteligada a meu tema. O ser humanopreocupa-se com o Ser,quer queira,quer no, e por natureza uma cria-tura filosfica.Qualquer romance queno tenha dimenses metafsicas eontolgicas estar necessariamentetruncado. Devo a citao a AntonioCandido,a quem agradeo.

    [5] John Barth, Forword, The floa-ting opera and The end of the road, NovaYork,Anchor,1988,p vi-vii.Os roman-ces so respectivamente de 1956 e 1958.

    [6] Mrio de Andrade, Machado deAssis (1939), Aspectos da literaturabrasileira, So Paulo, Martins, s/d.Para o roteiro da recepo brasileira,ver Antonio Candido, Esquema deMachado de Assis, Vrios escritos,So Paulo,Duas Cidades,1970.Para arecepo norte-americana, DaphnePatai, Machado in English, inRichard Graham (ed.), Machado deAssis, Reflections on a Brazilian Master-writer, University of Texas Press, Aus-tin, 1999.

    [7] Antonio Candido, Formao daliteratura brasileira (1959),So Paulo,Martins, 1969, vol. 2, pgspp. 117-8.

    [8] Raymundo Faoro, Machado deAssis: a pirmide e o trapzio, So Paulo,C. E. Nacional, 1974.

    [9] O que lhe faltava,e isso o enqua-dra na linha dos moralistas, era acompreenso da realidade social,como totalidade,nascida nas relaesexteriores e impregnada na vida inte-rior. Raymundo Faoro,op. cit.,p 504.

    intelectual e artstica, muito superior dos compatriotas, mais o afasta-va do que o aproximava do pas. O gosto refinado, a cultura judiciosa, aironia discreta, sem rano de provncia, a percia literria, tudo isso eraobjeto de admirao, mas parecia formar um corpo estranho no contex-to de precariedades e urgncias da jovem nao, marcada pelo passadocolonial recente. Eram vitrias sobre o ambiente ingrato, e no expres-ses dele,a que no davam seqncia.Dependendo do ponto de vista,asperfeies podiam ser empecilhos. Um documento curioso dessa difi-culdade so as ambivalncias de Mrio de Andrade a respeito.Este ante-cipava com orgulho que Machado ainda ocuparia um lugar de destaquena literatura universal, mas nem por isso colocava os seus romancesentre os primeiros da literatura brasileira.6

    Pois bem, a partir de meados do sculo XX a tnica se inverte, comapoio numa sucesso de descobertas crticas. O distanciamento olmpi-co do Mestre no desaparece, mas passa a funcionar como um anteparodecoroso,que permite a relao incisiva com o presente e a circunstncia.O centro da ateno desloca-se para o processamento literrio da realida-de imediata,pouco notado at ento.Em lugar do pesquisador das cons-tantes da alma humana,acima e fora da histria, indiferente s particula-ridades e aos conflitos do pas, entrava um dramatizador malicioso daexperincia brasileira. Este no se filiava apenas aos luminares da litera-tura universal, a Sterne, Swift, Pascal, Erasmo etc., como queriam osadmiradores cosmopolitas. Com discernimento memorvel, ele estuda-ra igualmente a obra de seus predecessores locais, menores e menos doque menores,para aprofund-la.Mal ou bem,os cronistas e romancistascariocas haviam formado uma tradio, cuja trivialidade pitoresca elesoube redimensionar, descobrindo-lhe o nervo moderno e erguendouma experincia provinciana altura da grande arte do tempo.7 Quantoao propalado desinteresse do escritor pelas questes sociais, um dosprincipais explicadores do Brasil ps um ponto final controvrsia: sis-tematizou as observaes de realidade espalhadas na obra machadiana,chamando a ateno para o seu nmero e a sua qualidade, e com elasdocumentou um livro de 500 pginas sobre a transio da sociedadeestamental sociedade de classes.8 O trabalho escravo e a plebe colonial,o clientelismo generalizado e o prprio trpico,alm da Corte e da figurado Imperador,davam civilizao urbana e a seus anseios europeizantesuma nota especial. Compunham uma sociedade inconfundvel, comquestes prprias,que o romancista no dissolveu em psicologia univer-salista contrariamente ao que sups o historiador.9

    Nas etapas seguintes desta virada, que ainda est em curso, a compo-sio, a cadncia e a textura do romance machadiano foram vistas como for-malizao artstica de aspectos peculiares ex-colnia, apanhados ondemenos em falta e mais civilizada ela se supunha. Explorados pela inven-tiva do romancista,esses aspectos ganhavam conectividade e expunhama teia de suas implicaes, algumas das quais muito modernas, alm deincmodas. As peculiaridades prendiam-se a) ao padro patriarcal; b) a

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  • [10] O conjunto desses passos en-contra-se em Silviano Santiago, Re-trica da verossimilhana, Umaliteratura nos trpicos, So Paulo,Pers-pectiva, 1978; Roberto Schwarz, Aovencedor as batatas, So Paulo, DuasCidades, 1977 e Um mestre na periferiado capitalismo, So Paulo, Duas Cida-des,1990;Alfredo Bosi,A mscara e afenda,in Alfredo Bosi et al.,Machadode Assis, So Paulo, Atica, 1982; JohnGledson, The deceptive realism ofMachado de Assis, Liverpool, FrancisCairns, 1984 e Machado de Assis: ficoe histria, Rio de Janeiro, Paz e Terra,1986; Jos Miguel Wisnik, MachadoMaxixe: o caso Pestana, Sem receita,So Paulo,Publifolha,2004.

    [11] Michael Wood, Master amongthe ruins, The New York Review ofBooks, 18 de julho de 2002.Em portu-gus, Um mestre entre runas,Mais, Folha de S. Paulo, 21.9.2002.

    nosso mix de liberalismo, escravido e clientelismo, com os seus parado-xos estridentes; c) engrenagem tambm sui generis das classes sociais,inseparvel do destino brasileiro dos africanos; d) s etapas da evoluodesse todo;e e) sua insero no presente do mundo,que foi e um pro-blema (ou uma sada) para o pas, e alis para o mundo. De tal sorte queas questes estticas, de congruncia e dinmica interna, bem como deoriginalidade,passaram a envolver a reflexo sobre o vis prprio e o sig-nificado histrico da formao social ela mesma. Assim, embora notriapor desacatar os preceitos elementares da verossimilhana realista,a artemachadiana fazia de ordenamentos nacionais a disciplina estrutural desua fico.10 Sem prejuzo da diferena entre os crticos, a natureza com-plementar dos trabalhos que levaram a essa mudana de leitura se impe,sugerindo uma gravitao de conjunto. Passo a passo, o romancista foitransformado de fenmeno solitrio e inexplicvel em continuador crti-co e coroamento da tradio literria local;em anotador e anatomista ex-mio de feies singulares de seu mundo, ao qual se dizia que no presta-va ateno; e em idealizador de formas sob medida, capazes de dar figurainteligente aos descompassos histricos da sociedade brasileira.

    Recentemente, por ocasio de novas tradues das Memrias pstu-mas e do Dom Casmurro,a New York Review of Books publicou uma resenhaabrangente e consagradora do romance machadiano, assinada porMichael Wood.11 Note-se que o autor no especialista em Machado,nem brasilianista, mas um crtico e comparatista s voltas com a latitu-de do presente. O lugar da publicao e o rol dos autores sobre os quaiso crtico tem escrito Beckett, Conrad, Stendhal, Calvino, Barthes,Garca Mrquez parecem indicar que depois de cem anos o romancis-ta brasileiro entrou para o cnon da literatura viva. Alis, Machado nosEstados Unidos comea a ser ensinado tambm fora dos departamentosde literatura brasileira,na rea de literatura comparada,em cursos sobreos clssicos do romance moderno.

    A certa altura de seu ensaio, que leva em conta a crtica brasileira,Wood prope uma dissociao sutil.As relaes com a vida local podemexistir, tais como apontadas, sem entretanto esclarecer a maestria emodernidade do escritor. Ou, noutro passo: seria preciso interessar-sepela realidade brasileira para apreciar a qualidade da fico machadiana?Ou ainda,a peculiaridade de uma relao de classe,mesmo que fascinan-te para o historiador,no ser um tpico demasiado montono para darconta de uma obra-prima? E, finalmente, faltaria saber por que osromances so mais do que documentos histricos. No h respostafcil para essas questes, que no recusam as ligaes entre literatura econtexto, mas situam a qualidade num plano parte. As perguntas tma realidade a seu favor, pois fato que a reputao internacional deMachado se formou sem apoio na reflexo histrica. Tomando recuo,digamos que elas,as perguntas,resumem a seu modo a situao atual dodebate, em que se perfilaram uma leitura nacional e outra internacional(ou vrias no-nacionais), muito diversas entre si.

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  • [12] Acompanho aqui as grandeslinhas do livro de Pascale Casanova,La Rpublique Mondiale des Lettres,Paris, Seuil, 1999. Numa boa discus-so a respeito, Christopher Prender-gast salienta o interesse dos esque-mas de Casanova, sem ocultar que asanlises propriamente literrias dei-xam a desejar. Ver Introduction,em Christopher Prendergast (ed.),Debating World Literature, Londres,Verso, 2004.

    A divergncia tem base em linhas de fora da cena intelectual con-tempornea e no h por que esquiv-la.Para prevenir o primarismo,quesempre ronda essas diferenas, no custa lembrar que vrias contribui-es para a linha nacional vieram de estrangeiros, e que boa parte da cr-tica brasileira acompanhou a pauta dos centros internacionais. Con-tudo, se a cor do passaporte e o local de residncia dos crticos no sodeterminantes, certo que as matrizes de reflexo a que a divergncia seprende tm realidade no mapa e dimenso poltica,alm de competirementre si, como partes do sistema literrio mundial.12

    Uma das matrizes a luta inconclusa agora em xeque pela for-mao de uma nacionalidade moderna,quer dizer, integrada sob o signodos direitos civis.Do ngulo da histria,seria a dialtica entre a nao e oseu fundo de segregaes coloniais, processada no campo de foras regi-do pelos pases adiantados e pelo Imperialismo.No ponto de partida esto enigma esttico-social representado pelo surgimento de uma obra deprimeira linha em meio ao despreparo, falta de meios e ao anacronismogerais. Como possvel que nessas condies de inferioridade se tenhaproduzido algo de equiparvel s grandes obras dos pases do centro?Trata-se de um acontecimento que sugere,por analogia,que a passagem dairrelevncia relevncia,da sociedade anmala sociedade conforme,dacondio de periferia condio de centro no s possvel, como pormomentos de fato ocorre.Assim,a obra bem sucedida vai ser interrogadasob o signo da luta contra o subdesenvolvimento. A reflexo busca iden-tificar nela os pontos de liga entre a inveno artstica, as tendnciasinternacionais dominantes e as constelaes sociais e culturais do atra-so, com as sinergias correspondentes.Estas ltimas so a prova viva de possi-bilidades reais, devidas a conjunes nicas algo de agudo interesse,cuja anlise promete conhecimentos novos,autoconscincia intensifica-da,alm de graus de liberdade imprevistos em relao aos determinismoscorrentes. Entretecidas com o desejo coletivo de alavancar um salto his-trico, as observaes estticas adquirem conotao peculiar. Combi-nadas a observaes e categorias econmicas e polticas, bem como aaspiraes prticas, elas fazem figura de recomendao oblqua ao pas.Tomam a contramo da teoria da arte nos pases centrais, a qual v nosaspectos referenciais ou nacionais da literatura uma velharia e um erro.

    Dito isso, claro que a integridade prpria grande obra sempreum enigma que cabe crtica elucidar, seja onde for. No quadro de umasociedade inferiorizada, entretanto, a explicao adquire relevncianacional, como parte de um discurso crtico sui generis. Trata-se de um pro-grama tcito, bastante difundido, meio impensado, raramente cumpri-do na ntegra, cujo significado esclarecido, veleitrio ou desdiferencia-dor est em aberto. Assim por exemplo lugares-comuns da histria daarte mudam de conotao.A dialtica entre acumulaes artsticas loca-lizadas e viravolta com potncia estrutural,entre emprstimo estrangei-ro e ecloso da originalidade nativa, entre vanguardismo artstico eincorporao de realidades sociais relegadas, entre acentuao de ten-

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  • [13] Mas tanto Marx quanto os teri-cos do subdesenvolvimento no eramevolucionistas. Francisco de Oliveira,Crtica razo dualista / O ornitorrinco,So Paulo,Boitempo,2003,p 121.Para oestudo em grande escala dessa ordemde movimentos na literatura nacional,ver Antonio Candido, Formao da lite-ratura brasileira (momentos decisivos),So Paulo, Martins, 1959. A possibili-dade de retomar esses mesmos esque-mas noutras esferas da cultura nacionale de entronc-los na dialtica geral domundo moderno est esboada no con-junto da obra de Paulo Arantes. Verespecialmente Otilia e Paulo Arantes,Sentido da formao, So Paulo, Paz eTerra,1997.

    [14] Casanova, op. cit., pp. 37-40.

    dncias,exploso das coordenadas e elevao do patamar,assim como acriao genial de nexos e sadas onde s parecia existir descontinuidadecultural e descalabro na relao de classes, tudo isso compe um dese-nho imprevisto,que foge aos esquemas do evolucionismo e do progres-so lineares.13 Com risco evidente de regresso, o anseio retardatrio deintegrao nacional ajudaria o pas a se revolucionar,ou a se reformar,oua vencer a distncia que o separa dos pases-modelo,ou a se refundar cul-turalmente (e em todo caso,se tudo falhasse,permitiria refletir a respei-to). Sejam quais forem os resultados para o futuro, a discusso dessasdefasagens histricas e dessas solues artsticas,prprias a nossa inte-grao social precria, responde ordem presente do mundo, de cujodesenvolvimento desigual e combinado fixa aspectos substantivos.

    Na outra matriz,com sede nos pases do centro,uma guarda avanadade leitores os intermedirios poliglotas e peritos a que se refereCasanova empenha-se na identificao de obras-primas remotas eavulsas, em seguida incorporadas ao repertrio dos clssicos internacio-nais.14 nesse esprito cosmopolita que Susan Sontag conclui a sua apre-sentao das Memrias Pstumas, desejando aos leitores que o livro de umlongnquo romancista latino-americano os torne menos provincianos.

    Como parte dessa segunda matriz, o trabalho acadmico dos pasesdo centro coloca-se ele tambm as tarefas de reconhecimento e apropria-o. As teorias literrias com vigncia nas principais universidades domundo, hoje sobredeterminadas pelas americanas, buscam estender oseu campo de aplicao, como se fossem firmas. O interesse intelectualno desaparece, mas combina-se ao estabelecimento de franquias.Nessa perspectiva, uma obra de terras distantes, como a de Machado deAssis, na qual se possam estudar com proveito suponhamos osprocedimentos retricos do narrador, as ambigidades em que se espe-cializam os desconstrucionistas, a salada estilstica do ps-modernis-mo etc.,estar consagrada como universal e moderna.A natureza sum-ria desse selo de qualidade,que corta o afluxo das conotaes histricas,ou seja,das energias do contexto,salta aos olhos. claro que no se tratade desconhecer o bom trabalho feito no interior de cada uma dessaslinhas crticas, que s pode ser discutido caso a caso, mas de assinalar oefeito automtico e conformista das assimetrias internacionais depoder. Por outro lado, a cesta de teorias literrias em voga nas ps-gra-duaes dos Estados Unidos heterognea por sua vez, originria emboa parte de lugares to pouco americanos quanto a Unio Sovitica,Paris ou Nova Dli, e neste sentido no parece uniformizadora. Con-tudo, o caldeamento no mercado acadmico local, este ltimo umanovidade histrica,distancia as teorias de suas motivaes de origem.Omecanismo lhes sobreimprime uma involuntria feio comum,mediante a qual passam a exercer as suas funes de hegemonia,se pos-svel em escala planetria, e dentro de muito desconjuntamento. Oslados incongruentes dessa neo-universalidade talvez sejam mais vis-veis para crticos perifricos,ao menos enquanto no a tratam de adotar.

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  • Assim, a consagrao atual de Machado de Assis sustentada porexplicaes opostas. Para uns, a sua arte soube recolher e desprovincia-nizar uma experincia histrica mais ou menos recalcada, at entoausente do mapa do esprito. A experimentao literria no caso arqui-tetaria solues para as paralisias de uma ex-colnia em processo de for-mao nacional.A qualidade do resultado se deveria ao teor substantivodas dificuldades transpostas,que so de vrias ordens,no s artsticas.Para outros,a singularidade e a fora inovadora no se alimentam da vidaextra-literria, muito menos de uma histria nacional remota e atpica.Observam que no foi necessrio conhecer ou lembrar o Brasil para reco-nhecer a qualidade superior de Machado, nem para apontar a sua afini-dade com figuras centrais da literatura antiga e moderna,ou com as teo-rias em evidncia no momento,ou,sobretudo,com o prprio esprito dotempo. A idia aqui, salvo engano, de diferenciao intra-literria, ouseja, endgena, no mbito das obras-primas: Machado um Sterne queno um Sterne, um moralista francs que no um moralista francs,uma variante de Shakespeare, um modernizador tardo-oitocentista eengenhoso do romance clssico, anterior ao Realismo, alm de ser umprato para as teorias do ponto de vista, embora muito diferente de seucontemporneo Henry James. Em suma, um escritor plantado na tradi-o do Ocidente,e no em seu pas.A figura no impossvel emboraa exclusiva seja tosca e cabe crtica decidir.No custa notar entretan-to a semelhana com o clssico andino de que falvamos pginas atrs,cujas superioridades cosmopolitas,ou dessoradas,a crtica com refern-cia nacional tentou contestar.

    A oposio se presta querela de escolas e convida a tomar parti-do. Mas ela assinala tambm o movimento do mundo contempor-neo, uma guerra por espao, movida por processos rivais, que no seesgota em disputas de mtodo. As relaes entre os adversrios, cadaqual desqualificando o outro, embora apresentando tambm algo quelhe faz falta, no so simples. Para dar uma idia, note-se que dificil-mente um adepto do Machado brasileiro reclamar da nova reputa-o internacional do romancista, por mais que discorde de seus ter-mos. Com efeito, que machadiano no se sente enaltecido com oreconhecimento enfim alcanado pelo compatriota genial? A notaalgo ridcula da pergunta faz eco ao amor-prprio insatisfeito dos bra-sileiros, que em princpio no teria cabimento num debate literrioque se preze, para o qual essa ordem de melindres letra vencida. Maso ridculo no caso o de menos, pois nada mais legtimo que a vaida-de de ver refletidos os expoentes nacionais naquelas teorias novas emfolha, que so depositrias da conversao crtica internacional e, malou bem,do presente do mundo de que preciso participar,mesmo queao preo de algum auto-esquecimento. Adotando a pergunta docampo oposto, por que diabo enterrar um autor sabidamente univer-sal no particularismo de uma histria nacional que no interessa aningum e no tem interlocutores?

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  • [15] Helen Caldwell, The BrazilianOthello of Machado de Assis, Berkeley,University of California Press, 1960,pgs V e 1.

    Nessa linha,o sucesso internacional viria de mos dadas com o desa-parecimento da particularidade histrica, e a nfase na particularidadehistrica seria um desservio prestado universalidade do autor. Oartista entra para o cnon, mas no o seu pas, que continua no limbo, ea insistncia no pas no contribui para alar o artista ao cnon. Parece-ria que a supresso da histria abre as portas da atualidade,ou da univer-salidade, ou da consagrao, que permanecem fechadas aos esforos daconscincia histrica, enfurnada numa rua sem sada para a latitude dopresente. Veremos que a disjuntiva est mal posta e que no h por quelhe dar a ltima palavra.Mas certo que no estado atual do debate ela car-rega alguma verdade,pois a falta de articulao interna,de trnsito inte-lectual entre histria nacional e histria contempornea um fato, comconseqncias polticas tanto quanto estticas. Quanto aos trabalhosartsticos de primeira linha produzidos em ex-colnias,a tese da inutili-dade crtica das circunstncias e da particularidade nacional talvez nosaiba o bastante de si. Falta-lhe a conscincia de seus efeitos, que so demarginalizao cultural-poltica em mbito mundial. Ou ainda, desco-nhece a construo em muitas frentes, coletiva e cumulativa, em parteinconsciente,sem a qual no se constelam a integridade esttica e a rele-vncia histrica, as quais pretende saudar. Seja como for, a neo-univer-salidade das teorias literrias poderia tambm ser bem-vinda a seuadversrio,que ao critic-la sairia do cercadinho ptrio e colocaria um pno tempo presente, ou melhor, num simulacro dele. O reconhecimentointernacional de um escritor muda a situao da crtica nacional, quenem sempre se d conta do ocorrido.

    Helen Caldwell comea The Brazilian Othello of Machado de Assis oprimeiro livro americano sobre o romancista com uma afirmaosonora. O escritor seria um diamante supremo, um Kohinoor brasilei-ro que cabe ao mundo invejar.Logo adiante,Dom Casmurro considera-do talvez o melhor romance das Amricas. No pouca coisa, aindamais se lembrarmos que eram os anos da revalorizao de Hawthorne eMelville,e sobretudo da imensa voga crtica de Henry James. Dito isso,prossegue Caldwell, possvel que s ns de lngua inglesa estejamosem condies de apreciar devidamente o grande brasileiro, que cons-tantemente usava o nosso Shakespeare como modelo. Assim, ao reco-nhecimento e cortesia segue-se a surpreendente reivindicao decompetncia exclusiva, ainda que envolta em humorismo (com per-do da megalomania).15

    Mas fato que a intimidade com Shakespeare permitiu a Caldwellvirar do avesso a leitura corrente de Dom Casmurro, tributria at entodos pressupostos masculinos da sociedade patriarcal brasileira. Maisimersa nos clssicos da tragdia que na idealizao de si de nossas fam-lias abastadas,a crtica americana professora de literatura grega e lati-na estava em boa posio para notar algumas das segundas intenesde Machado. A uma shakespeariana no podiam passar despercebidas aconfuso mental e a prepotncia de Bento Santiago,o amvel e melanc-

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  • [16] Machado de Assis, Dom Cas-murro, cap. CXXXV.

    [17] Helen Caldwell, op. cit., p. 72.

    lico marido-narrador do romance. A lio barbaramente equivocada queele, o Casmurro, tira do desastre de Otelo era a indicao segura, entremuitas outras,de que seria preciso desconfiar de suas suposies sobre ainfidelidade da mulher. Veja-se a respeito o captulo decisivo em queBento,agoniado pelo cime,vai espairecer no teatro,onde por coincidn-cia assiste tragdia do mouro. Em vez de lhe ensinar que os cimes somaus conselheiros, esta o confirma na sua fria e lhe d a justificao doprecedente ilustre: se por um leno Otelo estrangulou Desdmona, queera inocente, o que no deveria ter feito o narrador sua adorada Capitu,que com certeza tinha culpa?16 O curto-circuito mental, quase uma gag,no deixa dvida quanto inteno maliciosa de Machado, que escolhiaa dedo os lapsos e contra-sensos obscurantistas que derrubariam seno fossem passados por alto o crdito de seu narrador suspeitoso,transformando-o em figura ficcional propriamente dita, que contracenacom as demais e to questionvel quanto elas. maneira do estranha-mento brechtiano, so pistas para que o leitor se emancipe da tutela nar-rativa, reforada pela teia dos costumes e dos preconceitos sancionados.Se a campainha artstica for ouvida, ele passa a ler com independncia,quer dizer, por conta prpria e a contrapelo, mobilizando todo o espritocrtico de que possa dispor, como cabe a um indivduo moderno. A con-fiana singela e alis injustificvel que at segunda ordem os narradorescostumam merecer fica desautorizada. A inverso de perspectivas nopodia ser mais completa: o problema no estava na infidelidade femini-na,como queria o protagonista-narrador,mas na prerrogativa patriarcal,que tem o comando da narrao e est com a palavra, que no fivel nemneutra.Graas a esse dispositivo formal,que desqualifica o pacto narrati-vo, a disposio questionante engolfa tudo, da precedncia dita normaldos maridos sobre as mulheres o foco da polmica de Caldwell aocrdito devido a um narrador bem-falante, virtude patritica do encan-tamento romanesco, respeitabilidade das elites ilustradas brasileiras.De padro nacional de memorialismo elegante e passadista,o livro passaa experimento de ponta e obra-prima implacvel.

    A descoberta crtica no caso eleva muito a voltagem intelectual doromance.J notamos o que ela deveu familiaridade com os clssicos,oumelhor, estranheza causada por um desvio clamoroso na compreensode um deles, independente de consideraes de contexto. Ou por outra,o seu contexto efetivo foi a prpria tradio cannica, cujas luzes servi-ram de revelador das hipocrisias entranhadas na ordem social. Alis, aintimidade com esta podia at atrapalhar,como de fato atrapalhou a cr-tica brasileira durante sessenta anos, entre a publicao do romance em1899 e o estudo de Caldwell em 1960. Foi com justa satisfao que estesaiu a campo para corrigir trs geraes de crticos,a quem as insinua-es do ex-marido,hoje um vivo amalucado no papel de pseudo-autor,convenceram da culpa de Eva/Capitu.17 claro que muitos brasileiroshaviam lido Otelo e provvel que tivessem notado que o Casmurro tirauma concluso aberrante da morte de Desdmona.Contudo,filiados ao

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  • 70 LEITURAS EM COMPETIO Roberto Schwarz

    universo ideolgico do narrador, no deram ao deslize a importncianecessria para questionar o fundamento de poder da situao narrati-va. Inclinados a acatar o ponto de vista patriarcal e a veracidade dosmemorialistas, ou, tambm, despreparados para duvidar da boa-f deum narrador de boa sociedade,dono de uma prosa sem igual na literatu-ra brasileira,bem como de aplices,escravos e casas de aluguel,no acha-ram que fosse o caso de suspeitar uma personagem to bem recomenda-da. Ficavam aqum da vertigem inscrita no dispositivo literriomachadiano, que atrs dos traos de um memorialista fino e potico,cidado acima de quaisquer suspeitas, fazia ver, primeiro, o marido dis-cretamente empenhado na destruio e difamao de sua mulher, e, emseguida, o senhor patriarcal na plenitude de suas prerrogativas incivis.

    Cotejado com seu modelo, o Casmurro aparece como uma varianteoriginal,seja porque recombina Otelo e Iago em uma s pessoa,seja por-que mistura as condies de personagem e de narrador, tornando incer-ta uma distino importante. No que respeita ao enxadrismo das situa-es literrias, a inveno machadiana diablica. Investido dacredibilidade que a conveno realista associa funo narrativa, BentoSantiago no obstante parte parcialssima do drama. O garante doequilbrio expositivo no tem equilbrio ele prprio: o memorialistahonesto e saudoso um marido desgovernado, que trata de persuadir asi mesmo e ao leitor de que fizera bem ao expulsar de casa e desterrar paraoutro continente a sua Capitu/Desdmona. A esto, com raio de gene-ralidade to supranacional quanto as instituies do casamento ou danarrao, os estragos causados pelo cime, pela prerrogativa masculina e pelaautoridade inquestionada de quem detm a palavra.So resultados de tipo uni-versal, obtidos por Caldwell no espao como que atemporal e homog-neo das obras-primas do Ocidente,por meio da comparao abstrata decaracteres ou situaes, e de anlises tambm elas universalistas. Osparalelos com Shakespeare,a Bblia e a mitologia,as especulaes sobreo significado dos nomes prprios das personagens machadianas, nocampo geral da onomstica,o estudo da consistncia funcional de com-plexos imagsticos, maneira de Freud e do New Criticism shakespearea-no, a revelao da duplicidade do Otelo narrador, que um feito crticonotvel nada disso requereu o recurso configurao peculiar do pas,que noconta para efeitos de interpretao.

    Isso posto, Bentinho no Otelo, Capitu no Desdmona, JosDias e o Pdua no so Iago e Brabantio, nem o Rio de Janeiro oitocen-tista a Europa renascentista. O sculo XIX e seu sistema de sociedadesdistintas entre si e no tempo entram pela outra porta, e mal ou bem acegueira do universalismo para a historicidade do mundo fica patente,sem prejuzo de eventuais descobertas sensacionais.As diferenas entreMachado, Shakespeare e demais clssicos importam, pois tm desem-penho estrutural-histrico,sugerindo mundos correlativos e separados,que esteticamente seria regressivo confundir. A presena ubqua da cor localno pode ser mera ornamentao,sob pena de rebaixamento artstico.A

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  • prpria desautorizao do narrador masculino, to esclarecedora, satinge a plenitude de sua irradiao quando combina os atropelos docime uma paixo relativamente extraterritorial s particularida-des do patriarcalismo brasileiro do tempo, vinculado a escravido eclientelismo, assim como auto-complacncia das oligarquias, alm devexado pela sombra do progresso europeu.

    Pensando em vantagens comparativas, ou no que as leituras podemoferecer ou invejar uma outra,observe-se que a interpretao universa-lista d como favas contadas a grandeza que a interpretao com basenacional quereria demonstrar. Ser uma superioridade? uma inferiori-dade? claro que grandeza no caso tem dois significados que brigamentre si.Semelhanas e diferenas com Otelo,Romeu e Julieta,Hamlet, Mac-beth etc., alm de convergncias com teses do New Criticism, decidem aquesto da estatura artstica pela simples indicao dos patronos ilus-tres, que no deixam de constituir um establishment. Assim, o procedi-mento que faz admitir Dom Casmurro entre os seus pares no campo dasobras universais tem algo de cooptao,ou de reconfirmao de protti-pos (de cera?) no ultramar.Graas a um sistema de menes cultas,meioescancaradas e meio escondidas alis escolhidas por Machado comdeliberao meticulosa um romance que no constava como canni-co troca de estante. Por outro lado, embora ponha o livro nas alturas e osubtraia ao acanhamento provinciano,com ganho inegvel,essa univer-salidade no satisfaz a outra leitura,ainda que a possa ajudar muito.Paraesta, o caminho para a qualidade passa pelo aprofundamento crtico deuma experincia esttico-social precria,em boa parte inglria,at entomantida margem, cuja densidade interna se trata de consolidar e cujarelevncia se trata de argir e,mesmo,construir.No h como desconhe-cer o papel que a tradio clssica tem na obra de Machado, mas o queinteressa identificar o redirecionamento nada universal que, graas aoAutor,a problemtica particular do pas lhe imprime.A nota de reivindi-cao, bem como o esboo de um contra-establishment, ou a reconsidera-o a nova luz do establishment anterior, no existem na outra leitura.

    Ainda nesse captulo da ajuda entre adversrios,veja-se que o Brazil-ian Othello causou uma viravolta memorvel em nosso meio, sem serforte em seu prprio terreno: conforme entra pelas semelhanas e dife-renas de personagens machadianas, shakespearianas e outras, postaspara flutuar na regio comum das obras universais,onde tudo se compa-ra a tudo, Caldwell vai se perdendo no inespecfico, para no dizer arbi-trrio. A verdade que o melhor de sua interveno o tino para a m-f do pseudo-autor no frutifica no mbito comparatista,e sim no dareflexo nacional. Esta ltima, demasiado bloqueada para enxergar oartifcio machadiano, fizera um papelo. Por isso mesmo, entretanto,uma vez esclarecida a respeito, era ela quem tinha mais elementos paralhe apreciar o gume e explicitar o alcance, seja artstico, seja de crtica decostumes, seja poltico. Em suma, o resultado substancioso do livro foia inviabilizao da leitura conservadora de um clssico nacional, at

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  • [18] Machado de Assis, O punhalde Martinha (5 de agosto de 1894),Obra completa, Rio de Janeiro, Agui-lar, 1959, vol. III, p 638. Como a cr-nica breve, as citaes vo sem indi-cao de pgina.

    ento assegurada por uma aliana tenaz de convencionalismo esttico epreconceitos de sexo e classe. A solidez social dessa liga conferiu aosnovos argumentos um valor de contestao inesperado, que escapa imaginao das teorias literrias universalistas.Invertendo a blague ini-cial da Autora, segundo a qual s anglfonos e shakespearianos teriamcondies de apreciar Machado de Assis, digamos que foi no ambientesaturado de injustias nacionais e de histria que o achado universalistaadquiriu a densidade e o impulso emancipatrio indispensveis a umaidia forte de crtica.

    Por que supor, mesmo tacitamente, que a experincia brasileiratenha interesse apenas local,ao passo que a lngua inglesa,Shakespeare,o New Criticism, a tradio ocidental e tutti quanti seriam universais? Se apergunta se destina a encobrir os nossos dficits de ex-colnia, no valea pena coment-la.Se o propsito duvidar da universalidade do univer-sal, ou do localismo do local, ela um bom ponto de partida. A questotem importncia para a arte de Machado,que a dramatizou numa crni-ca das mais engenhosas,chamada O punhal de Martinha.18 Trata-se daapresentao, em prosa clssica pastichada, dos destinos paralelos dedois punhais. Um lendrio e ilustre, que serviu ao suicdio de Lucrecia,ultrajada por Sexto Tarqunio. Outro comum e brasileiro, mas destina-do ferrugem da obscuridade, que permitiu a Martinha vingar-se dasimportunaes de um certo Joo Limeira. A moa, diante da insistnciadeste, previne: No se aproxime, que eu lhe furo. Como ele se aproxi-ma, ela deu-lhe uma punhalada, que o matou instantaneamente. Anotcia, pescada num jornal da Cachoeira, do interior da Bahia, postalado a lado com o captulo clebre da Histria Romana de Tito Lvio.Desenvolvendo os contrastes, o cronista concede que a gazeta baianano pode competir com o historiador insigne;que Martinha ao que tudoindica no um modelo de virtude conjugal romana, antes pelo contr-rio; e que Joo Limeira no tem sangue rgio nas veias. As comparaes,todas desabonadoras, so feitas do ngulo do literato ultra-afetado doRio de Janeiro,que diverte os leitores custa de uma cidade modesta,quea ningum ocorreria comparar ao padro da Antigidade. Dito isso,Machado inverte a ironia sem o que no seria quem e observa quea cachoeirense no fica a dever romana em bravura: Martinha vinga-secom as prprias mos onde a outra confia a vingana ao marido e ao pai,sem contar que pune uma simples inteno, e no o ultraje consumado.Entre parnteses, vindo de um retificador de injustias, a nota cafajesteda segunda distino, destinada a pr defeito na honestidade de Lucre-cia, abre uma perspectiva infinita Seja como for, por um momento Lucrecia quem se deve mirar no exemplo de Martinha, e no vice-versa,uma viravolta de alcance quase inconcebvel. claro que essas superiori-dades, tanto quanto as inferioridades, no so para levar a srio. Elasresultam da comparao abstrata,termo a termo,perfil contra perfil,queprefere o engenho retrico inteligncia histrica uma opo que otempo havia tornado burlesca.Assim,depois de rir da Cachoeira,porque

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  • ela no se compara a Roma, ri de Roma, que talvez no passe de umaCachoeira revestida de belas palavras. Atreladas uma outra, a localssi-ma Cachoeira e a universalssima Roma funcionam como uma dupla decomdia. Os clichs se relativizam mutuamente, para gozo dos finos, eno deixam resto.O dualismo artificioso e tem certa esterilidade enjoa-tiva, que no vai a lugar nenhum.

    Apesar da eqidade ostensiva da argumentao, o esprito do parale-lo de troa e tem rano de classe inconfundvel.O cronista deplora a sorteobscura dos compatriotas pobres e provincianos,mas a comparao cultana verdade lhe serve para sublinhar a distncia que o separa deles e denossa hinterlndia cheia de facadas. Serve-lhe tambm para figurar nainternacional dos cosmopolitas fim-de-sculo, que no se iludem comRoma e a discurseira clssica,embora disponham de seu repertrio.Numcaso busca diferenar-se da barbrie popular; no outro, integrar-se elitemundial, sempre em linguagem para poucos o leitor tratado naempolada segunda pessoa do plural,com subjuntivos e condicionais dif-ceis , que marca uma superioridade meio caricata. Talvez espersseisque ela se matasse a si prpria.Esperareis o impossvel,e mostrareis queme no entendestes. Sem prejuzo da pirotecnia, so aspiraes medo-cres,que no entanto adquirem altura artstica ao participarem de um con-texto de ambivalncias e impasses que as conota historicamente.

    Precedida do artigo definido e singularizador,a Cachoeira passa a seruma localidade familiar, que fica logo ali, mesmo para quem no tenhaconhecimento dela.Algo anlogo se d com Martinha,que possivelmen-te seja um tanto brbara,de m-vida e culpada de homicdio,mas a quemo diminutivo afetuoso traz para perto em idia, incluindo-a na esfera dacordialidade brasileira,ou do sentimento nacional,desdizendo as segre-gaes anti-sociais trazidas da Colnia.Noutras palavras,alguns indica-dores gramaticais funcionam na contracorrente da dico emproada, decujas presunes de exemplaridade,estilo elevado e civilizao destoam,ou,ainda,a cujas parties se opem.Digamos ento que o paralelo cls-sico milita,enquanto forma,pela separao dos espaos que compara.Doponto de vista de classe, alinha o escritor na franja europeizada e culta,estranha s circunstncias cruas e remotas da vida popular no interior dopas. Estamos prximos da posio do letrado colonial, vivendo nestasbrenhas a contragosto, na companhia consoladora de ninfas e pastoresde conveno.Ao passo que as descadas chs e familiares da prosa,maisdiscretas mas no menos definidoras,fazem supor um alinhamento pol-tico diverso,em que aquelas separaes no so ponto pacfico.Aqui e ali,a despeito da couraa retrica, o escritor parece reconhecer como suas agente e as localidades da ex-colnia,agora o Brasil.Implcita,h tambma recproca, segundo a qual essa gente e essas localidades poderiam con-tar com ele nalgum grau.Est a a posio do intelectual posterior Inde-pendncia, impregnado de tradio europia e bloqueado por ela. Comoexemplo da dificuldade,observe-se o apreo dbio pela bravura de Mart-inha, com a sua pitada de maledicncia. Pois bem, mesmo quando so

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  • verdadeiras, as boas palavras no tm como alcan-la, pois o paralelocom Lucrecia, que d visibilidade e universalidade moa, a priva de seucontexto e a faz perder de vista. como se enredado em sua cultura deaparato o escritor estivesse do lado contrrio ao que deseja defender, eocultasse o mundo diferente que quer revelar. As boas letras no funcio-nam apenas como trunfo, mas tambm como obstculo, ao passo que aexperincia local, sendo um ncleo de identidade, tanto impulsionacomo desmerece e empareda o seu portador.A mescla das dices interio-riza e encena a crise, que se resolve nas linhas finais, pela derrota: depoisde indignar-se com a desigualdade dos destinos,que s recolhe e trans-mite o que est nos livros cannicos e ignora o que existe na realidade leia-se o Brasil , o escritor joga a toalha e toma o partido do opositor, obeletrista amestrado que ele tem dentro de si.Mas no falemos mais emMartinha, quer dizer, no falemos do Brasil.

    A concluso no para ser acatada.O procedimento machadiano dofinale em falso convida ao reexame crtico da persona que est com a pala-vra. No ato, o literato consumado que no se anima a romper com amquina literria culta se transforma em figura negativa. Deve ceder opasso a seu alter ego recalcado, este sim capaz de reconhecer a poesia queexiste em Martinha e na Cachoeira uma poesia desafetada, sem fr-mulas de Tito Lvio, sem atitudes de tragdia, sem gestos de oratria,sem quinquilharia clssica,mas com valor natal e popular,includas aas afrontas gramtica, e valendo todas as belas frases de Lucrecia.Assim, o prosador hesita entre atitudes opostas, muito representativas,em confronto dentro dele. Numa, a anedota local marcada pela notaprimitiva e por vestgios da Colnia,que so a substncia efetiva do pito-resco conferida luz dos modelos ditos universais. Na outra, amesma matria seria valorizada nos seus prprios termos, liberta dasconvenes literrias que nos separam e escondem de ns mesmos,embora nos identifiquem como civilizados. O que seria essa prosa vol-tada para o tangvel e o popular, sem guarda-roupa clssico, e aindaassim capaz de merecer um lugar na memria dos homens? Note-se queo ideal da auto-suficincia esttica, ligado ao nacionalismo romntico,bem como a uma idia mtica da Independncia, que inclui a quebra dahierarquia entre as naes,no deixa de convergir a seu modo com a ten-dncia moderna para a desconvencionalizao. Mas seria uma possibi-lidade efetiva? Mesmo que s imaginria,essa verdadeira revoluo cul-tural e a correspondente redefinio das repugnncias e das simpatias,das diferenas e das alianas de classe internas e externas, fazem recuaro cronista, que volta s garantias tradicionais da posio anterior.

    Em resumo,o paralelo com Lucrecia comea como uma piada de lite-rato bem-posto e rebuscado, conformista no fundo. Em seguida a brin-cadeira toma um rumo menos convencional,mas ainda assim enquadra-do pela auto-satisfao das classes cultivadas. num terceiro passo queo punhal de Martinha e o esquecimento inglrio que o espera adquirema vibrao notvel.Como a familiaridade da linguagem indica,Martinha

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  • no apenas uma representante de costumes brbaros, que os civiliza-dos de todos os quadrantes,entre os quais o cronista,olham com curio-sidade, de fora e do alto. Ela faz parte tambm do povo brasileiro e, por a,da problemtica interior do mesmo cronista. O homem ilustrado, sem-pre um conselheiro da ptria em formao,sente que o destino dos com-patriotas pobres e relegados menos extico e mais representativo doque parecia. Mal ou bem, a falta de reconhecimento em que vivem nodeixa de lhe dizer respeito.Alis,a inadequao literria do cronista noteria parte na condio apagada que os diminui? E no haveria tambmnele prprio algo da marginalizao histrica,para no dizer da barbriee at do exotismo de Martinha? Sem contar que a simplicidade clssicada punhalada em Joo Limeira revela riquezas inexploradas da nao,aomenos quanto s possibilidades literrias. Como indicam essas inern-cias distncia, suscitadas pelos descompassos do processo nacional,deixamos o mbito retrico das oposies abstratas e maniquestas,alm de vagamente colonialistas, do tipo civilizao vs. barbrie, parapassarmos ao campo da dialtica social, com as suas interligaesimprevistas e significados instveis. Sob a forma ostensiva, a formalatente:a bravura ou braveza da moa d assunto a comparaes cmicase fora do tempo, mas veicula tambm a situao esttico-poltica dequem escreve, imprimindo prosa uma nota de inquietao e culpa his-tricas.Dentro do cronista coexistem e lutam o cosmopolita empertiga-do e o escritor mordido pela matria brasileira,com todas as ambivaln-cias do caso. Assim, o esquecimento em que desaparecer a moa daCachoeira merece as lgrimas de crocodilo do humorista de salo, bemcomo as lgrimas sentidas mas confusas do escritor nacional, que lasti-ma nela a obscuridade em que vegetam o seu pas e ele prprio. Paraentender a natureza de classe desse vaivm da imaginao, basta imagi-nar-se na posio social oposta, ou melhor, imaginar a ducha escocesa aque no caso submetido o destino popular, que pode ser enaltecido eservir de bandeira regeneradora,e pode ser simplesmente posto de lado.

    Dito isso,a nossa apresentao vem forando a nota num ponto deli-cado: palavras como ptria, nao, Brasil etc., e tambm os raciocniossobre a questo nacional,em que insistimos,no tm presena no argu-mento explcito da crnica. Este se concentra de modo exclusivo, aoexplicar as injustias cometidas pela fama, na preterio da existnciamaterial. A crer nas indicaes do cronista, que tanto orientam comodesorientam, Martinha vai rio abaixo do esquecimento porque umacriatura tangvel,como alis todo mundo,e no por ser brasileira e popu-lar. A parcialidade dos tempos, da qual ela vtima, consiste em reco-nhecer tudo aos clssicos, e nada ao seu contrrio, que no caso a vidareal, em carne e osso, e no o Brasil. Ora, como os clssicos so puralenda e fico, ou mentira, tudo conservado em livros recomenda-dos,notveis pelo apuro da gramtica, claro que no deixam lugar paraa mocinha da Cachoeira, que tem endereo e ofcio conhecidos, erra nacolocao de pronomes e no foi celebrada pelos poetas. A concluso

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  • [19] Machado de Assis, Notcia daatual literatura brasileira: instinto denacionalidade,Obra completa, Rio deJaneiro, Aguilar, 1959, vol. III, p. 817.

    [20] Charles Baudelaire, MadameBovary, LArt Romantique, OeuvresCompltes, Bibliothque de la Pliade,1951, p 1000.

    acaciana do cronista filsofo,que medita sobre o destino das coisas tan-gveis em comparao com as imaginrias, que os humanos s dovalor ao que no existe. Grande sabedoria inventar um pssaro semasas, descrev-lo, faz-lo ver a todos, e acabar acreditando que no hpssaros com asas

    Ainda aqui, Machado est compondo uma literatura do seu tempoe do seu pas para citar a frmula programtica famosa custa dapersonagem que tem a palavra e se cr acima das circunstncias.19 Cabeao leitor, armado de implicncia e antena histrico-social, contrapor afeio pronunciadamente brasileira das matrias sua reduo a umageneralidade vazia,sem tino para o que se configurou. certo que pos-svel sujeitar a lista de nossos traos de ex-colnia categoria dos tan-gveis, por oposio aos imaginrios, preferidos pela fama. Contudo possvel tambm enxergar nessa operao do esprito mais outroexemplo de defeito nacional,pronto para figurar naquela mesma lista deatrasos, qual a mania de transformar em pontos de filosofia as nossasmazelas histricas se integra perfeio. Entrando em matria, a estoa Martinha,entre familiar e desconhecida,como o povo a que pertence;acondio social de z-ningum, sem nome de famlia nem proteo dalei,e com prenome no diminutivo;a facada meio urbana meio sertaneja,e a Cachoeira, que um faroeste com feies locais; no campo dos ins-trudos, h o exibicionismo retrico e gramatical, que compensa o com-plexo de inferioridade herdado da Colnia; o sentimento geral de irrele-vncia e de vida de segunda classe,alm do ressentimento com a falta derepercusso de nossas coisas; h ainda as provncias remotas como umultramar, envolvidas em certo apego sentimental etc. A disparidadeentre isso tudo e os termos filosficos do cronista incita reflexo hist-rico-social,desafiada a completar e denominar o que est configurado,adisparidade inclusive. O procedimento vertiginoso, mas efetivo: aacuidade mimtica para os problemas brasileiros combina-se inclusomaliciosa de raciocnios inadequados ,e excluso,tambm deliberada,do vocabulrio e dos argumentos ligados questo nacional. Esta, cujaausncia estridente, passa a ter a presena que o leitor insatisfeito sejacapaz de lhe dar por conta prpria, com as matrias mo e longe doschaves romnticos e naturalistas ento disponveis. O movimentoexcede e arrasta o seu marco explcito,colocado pelo explicador da fbu-la, e cabe ao leitor tirar as concluses da concluso.20

    Enquanto o cronista se queixa do pouco sucesso de Martinha, claroque ela est mais que imortalizada graas a essa mesma queixa, quecompe uma circunstncia indireta de grande qualidade. Para ele, inde-ciso entre os plos do clssico e do autctone,ambos incapazes de asse-gurar moa um lugar de honra na histria,no h como sair do impas-se.J para Machado que inventava a situao narrativa o impasse eo prosador dividido so eles prprios a soluo: uma vez includos nojogo literrio, conferem cena uma complexidade de nova ordem.Deixam entrever outra histria mais real,em curso mas informulada,da

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  • [21] Oswald de Andrade, Mani-festo da Poesia Pau-Brasil, Do Pau-Brasil Antropofagia e s Utopias, Civi-lizao Brasileira, Rio de Janeiro,1978, p. 5.

    qual so parte involuntria,onde a escolha entre localismo e universalis-mo funciona de modo historicamente particular, com as noes trocan-do e destrocando de posio,em discrepncia com o seu conceito abstra-to. Olhando bem, Martinha no se tornou imortal porque um literatonativista se tivesse atido aos termos dela e da Cachoeira,recusando a tra-dio que as impede de brilhar. Pelo contrrio, na ausncia do paraleloilustre o episdio ficaria reduzido a uma facada obscura. Na verdade, areferncia dona celebrada que tira da vala comum a mocinha do mere-trcio local,transformando-a em tema para a tribuna,para a dissertao,para a palestra no porque seja uma igual de Lucrecia,como quereriao cronista, mas porque a comparao no se aplica, fazendo girar emfalso a cultura cannica e indicando algo que lhe escapa,que fica atraves-sado e seria o principal. Isso sem esquecer os usos locais e nada univer-sais a que na ocasio submetida a prpria Lucrecia.

    Um deslocamento anlogo desuniversaliza a forma do paralelo,tornando-a local, pitoresca e arbitrria. Em tom solene, ela deixa mostra uma poro de realidades entre indesejadas e risveis,vexamestais como o nosso reflexo estrangeiro diante dos patrcios pobres,des-providos de existncia civil, as veleidades de requinte dos educados, asua avidez de reconhecimento, o papel anti-popular da cultura clssi-ca, a adoo semi-culta e pernstica desse mesmo papel e assim pordiante, que adquirem tessitura literria, alm de darem a Martinha ocontexto adensado, propriamente brasileiro, que parecia faltar. Comodispositivo formal, a comparao dos punhais um cenrio de carto-lina, mas com a fora de revelao dos achados oswaldianos: O ladodoutor, o lado citaes, o lado autores conhecidos. Comovente. RuiBarbosa: uma cartola na Senegmbia. Tudo revertendo em riqueza.21

    Sem nada de antiqurio, a segunda inteno do paralelo satrica evisa o presente,em conivncia maliciosa com o Realismo oitocentista.A sua lio de coisas depende da inadequao da forma ela mesma,quesupre o estado rudimentar das anedotas locais, insuficientementedesenvolvidas para subir cena com fora prpria. Com o recuo devi-do, a desigualdade dos destinos lamentada na crnica se despega deMartinha e Lucrecia, que no tm porque ser iguais, para aludir con-dio inferiorizada e moderna de pas perifrico,atolado na conforma-o e nas privaes da ex-colnia, estas sim difceis de assimilar.

    Em suma,universalismo e localismo so plos equvocos,ideologiasde que Machado se vale como de materiais.A parafernlia da retrica e doHumanismo lhe serve, desde que faa figura imprpria e configure umdesconcerto particular, com ingrediente de classe e coeficiente histricoprecisos,tudo sem prejuzo da ambincia de universalidade.Idem para oanseio patritico de libertar a matria local dos enquadramentos precon-ceituosos da cultura dita alta, naturalmente estrangeira. Tambm eleserve,desde que seja para mostrar um caminho contra-indicado,que con-duz ao isolamento e insignificncia, a que o motivo nacional imprimeressonncia contempornea. Com os desacertos de uns e outros, que o

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  • [22] Sobre a textura histrico-mun-dial dessa ordem de ressentimentos,ver Paulo Arantes,Ressentimento da dia-ltica, Rio de Janeiro,Paz e Terra,1996.

    [23] A propsito de O cortio, quedeve muito a Lassommoir de Zola, eacerta tambm muito em relao aoBrasil, Antonio Candido mencionaum problema de filiao de textos ede fidelidade aos contextos. A fr-mula resume um programa crtico.Antonio Candido, De cortio a cor-tio, O discurso e a cidade, So Paulo,Duas Cidades, 1993, p 124.

    que tm de mais verdadeiro, Machado d figura artstica s anomaliasda integrao interna e da articulao externa da ex-colnia, agora umaquase-nao.No ponto de partida,que no ingnuo,esto os resultadoslocais e indesejveis de grandes tendncias em voga,os quais a seu modoso aclaraes: cultura hegemnica em quantidade, mas qualificada pelapaisagem social diferente; e vida popular a que no falta poesia, mas noespelho da norma burguesa,que impede de idealiz-la.So materiais comfeio muito prpria, saturados de intenes truncadas, que pem de puma problemtica nova,difcil,de classes e de insero internacional,queno cabe na oposio entre local e universal.

    A referncia de fundo a formao da nacionalidade nas condiesherdadas da colonizao, inevitavelmente fora de esquadro, se o esqua-dro forem as auto-idealizaes da Europa adiantada.Traduzindo os termospelo seu desempenho, local a falta de mediaes, a descontinuidadeentre o dia-a-dia semi-colonial e a norma do mundo contemporneo; euniversal o consagrado e obrigatrio, que se torna um despropsitoou uma brutalidade quando aplicado sem mais mesma circunstncia.As mediaes no se podem fabricar do dia para a noite. Ao desenvolveruma escrita em que os dois mbitos contracenam a seco, naturalmentecom ironia,Machado criava um equivalente dessa constelao histrica,alm de coloc-la em movimento, com seus fortes momentos de verda-de.O universal falso,e o local participaria do universal se no estivesseisolado. Enquanto outros escritores buscavam a cor local em regies eclasses pouco tocadas pelo progresso,Machado foi detect-la em nossasclasses mais civilizadas, ou universais: o freqentador carioca de TitoLvio, que zomba dos compatriotas desfavorecidos e no ntimo se ofen-de com o seu destino margem do mundo,no menos pitoresco do queMartinha.Mas no se pode dizer que seja uma figura localista,pois o sis-tema de seus ressentimentos faz parte clara da histria contemporneae de seu quadro de desigualdades internacionais.22 Com grande inteli-gncia artstica, Machado desmanchava o confinamento que sufocava amatria brasileira.Atrs dos rtulos estticos e lgicos h luta de classes,luta entre naes, desproporo entre as acumulaes culturais respec-tivas, alm de luta crtica.

    O objeto ltimo da queixa, se estivermos certos, a ordem mundialdesequilibrada. Esta reconhece s o que est consagrado na culturahegemnica,ou que se parea com ela.E deixa a um canto as ex-colnias,que no correspondem ao padro.Era o prprio desequilbrio que impu-nha aos escritores a dvida angustiosa: o esprito vale porque se acolheao repertrio dos modelos europeus? ou vive do apego ao vis peculiar,muitas vezes constrangedor,para no dizer impublicvel,do pas em for-mao?23 Machado de Assis,que era avesso unilateralidade,no s notomou partido no caso, como tomou o partido de assumir e acentuar asdecalagens, fazendo delas uma regra de sua prosa, que mais tensiona-da do que se diz.Para ele o dilema no comportava soluo imediata,mastinha possibilidades cmicas e representatividade nacional, alm de

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  • funcionar como caricatura do presente do mundo, em que as experin-cias locais deixam mal a cultura autorizada e vice-versa, num amesqui-nhamento recproco de grande envergadura, que um verdadeiro uni-versal moderno.

    (continua)

    Roberto Schwarz crtico literrio e professor aposentado da Unicamp.

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    Recebido para publicao em 01 de junho de 2006.

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    75, julho 2006pp. 61-79

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