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1 MARÇO * TEMA: Literatura e leitura Leituras em trânsito Por Elisa Andrade Buzzo Se o leitor não vai até o livro, o livro vai até o leitor. E vice-versa no caso de duas bibliotecas especiais que traçam caminhos diversos, mas com o mesmo intuito: facilitar o acesso ao livro. A biblioteca da estação Paraíso do metrô de São Paulo atrai o público em trânsito da própria estação. Entre uma troca rápida de trens, muitos passageiros podem desacelerar e conferir os livros disponíveis para empréstimo. O caminho inverso acontece na biblioteca volante do Programa Petrobras de Leitura na Baixada Santista. A bordo de um caminhão, a biblioteca se dirige às escolas, complementado ou mesmo iniciando o hábito da leitura entre os estudantes. Uma biblioteca inusitada Andando pra cá e pra lá diante de uma vitrine, Noêmia escolhe qual será o próximo livro a ser ‘‘devorado’’. Ela é uma dos mais de 6.500 sócios da biblioteca Embarque na Leitura da estação Paraíso do metrô de São Paulo. Sorridente, a camareira Noêmia Bernardo da Silva, de 42 anos, diz que está ‘‘adorando’’ a biblioteca e que perdeu a conta de quantos livros já pegou emprestados do acervo com cerca de 4 mil livros. Lá ‘‘tem tudo o que existe numa livraria de alto nível no Brasil’’, é o que diz William Nacked, diretor-geral do Brasil Leitor, instituto responsável pela execução e pelo gerenciamento da biblioteca inaugurada em setembro de 2004. Apesar de não ter o costume de ler, o técnico previdenciário do INSS Carlos Soares Cipriani, de 29 anos, procura um livro que lhe interesse na listagem de obras disponíveis na biblioteca -- literatura nacional e estrangeira, auto-ajuda, livros infanto-juvenis e das mais diversas áreas fazem parte do catálogo. Assim como Noêmia, que trabalha perto da estação Paraíso, Carlos tem facilidade em freqüentar a biblioteca do metrô, já que ‘‘o acesso é melhor porque é o caminho que eu uso para ir ao * Como parte das oficinas, os selecionados Rumos Jornalismo Cultural desenvolveram, periodicamente, reportagens ligadas por um eixo temático comum a todos os participantes.

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MARÇO *

TEMA: Literatura e leitura

Leituras em trânsito

Por Elisa Andrade Buzzo

Se o leitor não vai até o livro, o livro vai até o leitor. E vice-versa no caso de duas bibliotecas especiais

que traçam caminhos diversos, mas com o mesmo intuito: facilitar o acesso ao livro. A biblioteca da

estação Paraíso do metrô de São Paulo atrai o público em trânsito da própria estação. Entre uma troca

rápida de trens, muitos passageiros podem desacelerar e conferir os livros disponíveis para

empréstimo. O caminho inverso acontece na biblioteca volante do Programa Petrobras de Leitura na

Baixada Santista. A bordo de um caminhão, a biblioteca se dirige às escolas, complementado ou

mesmo iniciando o hábito da leitura entre os estudantes.

Uma biblioteca inusitada

Andando pra cá e pra lá diante de uma vitrine, Noêmia escolhe qual será o próximo livro a ser

‘‘devorado’’. Ela é uma dos mais de 6.500 sócios da biblioteca Embarque na Leitura da estação Paraíso

do metrô de São Paulo. Sorridente, a camareira Noêmia Bernardo da Silva, de 42 anos, diz que está

‘‘adorando’’ a biblioteca e que perdeu a conta de quantos livros já pegou emprestados do acervo com

cerca de 4 mil livros. Lá ‘‘tem tudo o que existe numa livraria de alto nível no Brasil’’, é o que diz

William Nacked, diretor-geral do Brasil Leitor, instituto responsável pela execução e pelo

gerenciamento da biblioteca inaugurada em setembro de 2004.

Apesar de não ter o costume de ler, o técnico previdenciário do INSS Carlos Soares Cipriani, de 29

anos, procura um livro que lhe interesse na listagem de obras disponíveis na biblioteca --- literatura

nacional e estrangeira, auto-ajuda, livros infanto-juvenis e das mais diversas áreas fazem parte do

catálogo. Assim como Noêmia, que trabalha perto da estação Paraíso, Carlos tem facilidade em

freqüentar a biblioteca do metrô, já que ‘‘o acesso é melhor porque é o caminho que eu uso para ir ao

* Como parte das oficinas, os selecionados Rumos Jornalismo Cultural desenvolveram, periodicamente, reportagens ligadas por um eixo temático comum a todos os participantes.

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trabalho’’, diz. Carlos e Noêmia representam a primeira e segunda faixa etária com maior número de

associados à biblioteca Embarque na Leitura, acumulados no final de fevereiro deste ano --- pouco mais

de 2.100 sócios têm entre 20 e 30 anos e 1.500 entre 30 e 40 anos.

Um Brasil de leitores

A bibliotecária do Instituto Brasil Leitor, Maria das Graças Monteiro de Araújo Garcia, acredita que a

localização da biblioteca Embarque na Leitura seja um ‘‘grande facilitador’’ para o público circulante

no local. Cerca de 200 mil pessoas passam todos os dias pela estação Paraíso do metrô. ‘‘Nós nos

deparamos no quiosque com pessoas com o hábito de ler e com pessoas que estão entrando’’, diz.

O espaço em torno da biblioteca, próxima a uma das plataformas da estação, também sedia eventos

de promoção da leitura. O escritor Ignácio de Loyola Brandão já bateu um papo com o público

circulante e Laé de Souza distribuiu mil exemplares do seu livro de crônicas Acredite se Quiser em outro

evento.

Além da Embarque na Leitura, o Instituto Brasil Leitor coordenou o lançamento de mais 248

bibliotecas em 119 municípios de São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Bahia e Rio Grande do Sul. O

instituto ainda espera, até o final deste ano, criar e manter 100 bibliotecas com o selo Ler é Saber, um

projeto de bibliotecas privadas de uso gratuito do instituto.

Um caminhão de livros em Santos

Os ‘‘barões e [as] baronesas’’ da Escola Municipal de Ensino Fundamental Barão do Rio Branco, em

Santos, passam por um dia especial. O pátio principal está coberto por bexigas coloridas, desenhos

feitos pelos alunos se enfileiram nos corredores. No pátio, dezenas de cabecinhas coloridas cantam o

Hino Nacional. Em seguida é a vez da professora Naia anunciar a apresentação do coral da 4ª série, o

jogral, uma peça de teatro encenada pelos próprios alunos. São as boas-vindas à chegada da

biblioteca volante, parte das ações do Programa de Leitura da Petrobras RPBC (Refinaria Presidente

Bernardes de Cubatão). A biblioteca fica no interior de um caminhão-baú e empresta livros aos alunos

de mais 52 escolas públicas da Baixada Santista (Santos, Cubatão, São Vicente e Guarujá).

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Dentro do caminhão, diversas prateleiras amarelas abrigam os 10 mil livros, em sua maioria títulos

recomendados pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Aos poucos, as crianças sobem a

escadinha que dá acesso à parte de trás do caminhão e começam a escolha dos livros. ‘‘Os Antigos

Egípcios. Ah, esse é legal!’’, se empolga um dos alunos da 4ª série, vasculhando o interior da biblioteca

volante. Os livros nas estantes mais baixas são mais indicados para as crianças das séries menores.

Assim como os mais encorpados ficam nas prateleiras mais altas.

Com a passagem da biblioteca na Barão do Rio Branco ‘‘há uma maior circulação de livros na escola’’,

diz a professora Naia Maria Silva Vasques, gerente local do Programa de Leitura Petrobras. A escola

também tem uma biblioteca própria com cerca de 6 mil livros, entre didáticos, de referência e infanto-

juvenis. E incentiva os alunos a pegarem um livro toda semana. Naia acha que ‘‘o Programa da

Petrobras envolve uma cobrança na escola inteira’’ na promoção da leitura entre alunos e professores.

Cada turma a entrar no caminhão pode pegar até cinco livros (da 5ª série até o ensino médio o

empréstimo é de dez livros por turma). Os livros, por sua vez, vão circular entre as outras salas. ‘‘Há

tempo suficiente para que uma classe leia e seja feito um empréstimo para outra classe’’, diz Sueli de

Oliveira Rocha, assessora pedagógica e coordenadora regional do Programa de Leitura da Petrobras

RPBC. Depois de um ou dois meses, a biblioteca volante estaciona novamente na porta da escola para

buscar os livros e emprestar mais às crianças.

A formação do professor-leitor

‘‘Em 2001, com a mudança gerencial da Petrobras, o Leia Brasil deixou de ser um programa

corporativo da empresa e se transformou num programa de relacionamento comunitário’’, explica

Sueli, a coordenadora da Baixada Santista. Foi apenas em 2003 que o programa foi retomado com a

criação da ONG Leia Brasil no ano anterior. Dessa forma, a ONG coordena o Projeto de Leitura

Petrobras, também desenvolvido ‘‘em parceria com as próprias unidades da Petrobras na Bacia de

Campos e no Paraná, além de entidades como o Sesc Rio e a Obra Social da Cidade do Rio de Janeiro’’,

diz Ana Claudia Maia, da Leia Brasil. Ela conta que as bibliotecas volantes circulam desde 1992. ‘‘Já

foram 17 [bibliotecas volantes], no auge do programa, em 1997’’, afirma. Atualmente uma atende a

Baixada Santista e outras quatro ficam na Bacia de Campos, passando por 13 municípios do norte

fluminense e atendendo 250 escolas.

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‘‘Depois, se percebeu que simplesmente dar acesso ao livro não bastava para incentivar a leitura na

comunidade escolar’’, explica Ana Claudia. É nesse ponto que entra a formação, em cada escola, do

professor-leitor, com seminários, reuniões periódicas com os professores envolvidos no projeto e

cursos dirigidos para a capacitação. Também é oferecida aos professores a revista Leituras

Compartilhadas, cadernos monotemáticos com artigos de diversas áreas do conhecimento. Sueli

acredita na importância do professor-leitor, pois ‘‘a premissa que diz que o professor que não é leitor

não forma alunos leitores é sempre verdadeira’’.

A questão do patrocínio

A dificuldade em conseguir patrocínio deixa projetos tanto do Leia Brasil quanto do Brasil Leitor ainda

só no papel. A Brasil Leitor, por exemplo, tem um convênio de cinco anos com a Companhia do

Metropolitano de São Paulo (Metrô) para a instalação de bibliotecas. Para ser viabilizada, a biblioteca

da estação Paraíso teve patrocínio da Cosipa, da empresa do sistema Usiminas Duffer, e contou com o

apoio do Ministério da Cultura. Segundo Aluizio Xavier Gibson Neto, do departamento de marketing

do Metrô, está prevista a construção de mais dez bibliotecas em estações do metrô paulistano. Mas

ainda não foi fechado patrocínio para a próxima. William Nacked, do Brasil Leitor, diz que a instalação

de bibliotecas nos metrôs do Rio de Janeiro, de Recife e de Belo Horizonte já está em ‘‘fase de

desenvolvimento técnico’’. No entanto, ainda não há patrocínio.

Já no Projeto de Leitura da Petrobras, como o patrocínio é local, as bibliotecas volantes chegam

apenas às cidades próximas ao patrocínio. ‘‘Adoraríamos voltar para a região Nordeste, onde a

carência é muito grande, mas não temos patrocinadores. Sempre recebemos pedidos do retorno do

caminhão e do treinamento e é duro não poder atendê-los. Ainda mais partindo de comunidades onde

o programa foi amplamente recebido e teve um real poder de transformação. No Nordeste, o

caminhão era, às vezes, o único contato da população com os livros’’, diz Ana Claudia, da Leia Brasil. A

ONG estuda ampliar o programa no estado de São Paulo e em outras regiões, ‘‘principalmente Norte e

Nordeste, mas infelizmente são os estados onde há menos patrocinadores locais’’.

ABRIL

TEMA: Sincretismo

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O imprevisível sincretismo na cerâmica brasileira

Em Jandira, um ateliê desenvolve peças de cerâmica misturando e remodelando formas e desenhos da

arte marajoara e técnicas italianas, criando uma arte imprevisível

Por Elisa Andrade Buzzo

Da plataforma do trem já se vê a igreja, alta, acima das casas próximas à estação Sagrado Coração, na

cidade paulista de Jandira. Numa construção logo abaixo da escadaria que dá acesso à entrada da

igreja fica o ateliê de cerâmica ArtEVida. Vasos e pratos feitos de argila secam ao sol que cai em sua

larga sacada.

O ar dentro do ateliê está repleto de minúsculas partículas brancas de pó, resultado das lixações

constantes das peças de cerâmica. Há dezenas de vasos coloridos, luminárias, esferas, bustos e pratos

dispostos em longas prateleiras. O nome de algumas peças, como Busto Marajó e Vaso Belém, ao lado

do Prato Roma, por exemplo, é indício de uma apropriação sincrética de estilos e culturas.

O conceito de sincretismo --- voltado à cultura --- ainda está em aberto por causa da ‘‘incapacidade dele

próprio se regular ou de ser regulado’’. É o que diz o antropólogo Massimo Canevacci no livro

Sincretismos. Essas experiências de cruzamentos culturais, ainda que de forma aparentemente

desordenada, acontecem na cerâmica do ArtEVida.

‘‘O Brasil e sua gente é uma terra que fala de cores e transmite cores e sensações. Por isso, as nossas

peças são todas muito coloridas, muitas vezes não precisam seguir um modelo-padrão e se

desenvolvem com mais liberdade’’, diz Cláudio Melioli, artista italiano que incentivou e orientou a

abertura do ateliê em Jandira, em setembro de 2000.

Astrônomo de formação, Cláudio resolveu sair da Itália porque queria ‘‘fazer algo de novo, que não

tivesse nada a ver com astronomia e também realizar algo em que acreditava’’. Exatamente o Brasil foi

escolhido porque ele ouvia desde criança histórias da viagem que seu pai, o artista plástico Giuliano

Melioli, fizera até aqui.

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As primeiras peças desenvolvidas pelos artesãos brasileiros foram a partir de catálogos do ateliê de

Giuliano em Reggio Emilia. Lá funciona o ateliê dos Melioli e de Cesare Ferrari, chamado Tarsíe, onde

são produzidas peças artísticas de cerâmica.

Os artesãos do ArtEVida aprenderam técnicas italianas com Cláudio --- a cerâmica embutida e o

cocciopesto. ‘‘A maioria das peças hoje é criada e pensada por eles [os artesãos], eu só aconselho um

pouco’’, conta.

Como as primeiras peças feitas pelo ArtEVida foram baseadas na cerâmica marajoara, que por sua vez

fora apropriada e interpretada em peças italianas, ‘‘em seguida, o laboratório desenvolveu peças

novas, com uma certa influência [marajoara], em algumas delas, mas mesmo sem saber exatamente se

o que se está fazendo é um animal ou algo de abstrato’’, revela Cláudio.

Dessa forma, ‘‘os desenhos inspirados na arte marajoara são reproduzidos mais com um sentido

abstrato e de harmonia de formas’’, completa.

Denise Schaan, arqueóloga e pesquisadora do Museu Paraense Emilio Goeldi, afirma que ‘‘os motivos

decorativos na cerâmica marajoara são em geral geométricos na forma e parecem abstratos para a

maior parte dos observadores. No entanto, eles representam seres mitológicos, espelhados na fauna

local’’.

Ela explica que ‘‘esta estética inspirada na arte nativa tem excelente aceitação, especialmente porque

os motivos decorativos prestam-se a interpretações diversas, acomodação de desenhos a novas

formas de suporte, e permitem novas combinações de formas sem perder ritmo e simetria’’. É o que

pode ter acontecido na formação das cerâmicas em questão.

Cláudio acredita que o ‘‘design [da ArtEVida] começou misturando a arte italiana com aquela

marajoara, mas hoje a mistura, em algumas peças, é tão grande que não dá pra entender de onde vem

o estilo’’. Como diz Canevacci, os sincretismos ‘‘brotam indisciplinados e incoerentes, de cada aspecto

de nossa contemporaneidade; para subvertê-la ou, ao menos, surpreendê-la, às vezes também para

confundi-la ou simplificá-la’’. As peças do ArtEVida, nesse mix de técnicas, formas e motivos moldados

em mãos brasileiras, revelam um precioso sincretismo em formação.

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JUNHO

TEMA: Identidade

Chama flamejante: oscilações da dança

Por Elisa Andrade Buzzo

O malandro sambista e a bailarina juntos no palco em Isto É Brasil. Pop art e cultura popular brasileira

numa reflexão contemporânea da dança em Outras Formas. Encontros inusitados em dois espetáculos

de dança, com diferentes propostas, avivam a chama da discussão sobre o erudito e o popular na

identidade brasileira.

Com participação especial de Ana Botafogo, o espetáculo Isto É Brasil, de Carlinhos de Jesus e

companhia, estreou em São Paulo em junho de 2005. Trouxe consigo a idéia de encenar a história do

samba e a trajetória da dança popular brasileira. Carlinhos e sua companhia interpretam diversos tipos

de samba, como a gafieira e o samba de roda. ‘‘Aí, eu fui até o Nordeste com a lambada, com o

chorinho, com o frevo’’, explica Carlinhos.

Ana Botafogo, com terno e tênis brancos, camiseta listrada, é conduzida ao palco pelo chapéu-panamá

do malandro, como se aceitasse a possibilidade de fusão entre sua dança e o samba. No final do

espetáculo, já com figurino de bailarina clássica, rouba a cena sambando na ponta da sapatilha. E

ainda encarna uma ‘‘Garota de Ipanema’’ urbana, num duo com Carlinhos. O corpo de Ana contorce a

dança, tecendo algo que não é mais nem balé, nem samba. Balé-samba.

‘‘Eu queria fazer um popular mais erudito, mais respeitável. Agora, indiscutivelmente eu queria juntar

esses dois como possibilidade de Brasil. Tirei a dança de salão do salão e levei para o palco’’, diz

Carlinhos de Jesus a respeito da concepção do espetáculo, poucas horas antes de começar a ensaiar

para mais uma apresentação no Teatro Shopping Frei Caneca.

A complexidade de uma suposta identidade na dança brasileira é problematizada pela bailarina Ana

Catarina Vieira, do Outras Formas. ‘‘Pra você falar em identidade [na dança brasileira] você tem que

pensar que existe algo original, que existe algo que é autêntico. Só que o que acontece é o seguinte,

não existe esse autêntico, esse original. Isso daí é uma ilusão. Porque não existe uma coisa parada, as

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coisas estão o tempo todo em mutação’’, diz. A conversa com a bailarina é na sala de dança da Escola

Brasílica Música e Dança, braço paulistano do Balé Popular do Recife.

A Brasílica de São Paulo, fundada em 2000 por Ana Catarina e pelo bailarino Ângelo Madureira,

oferece aulas de dança popular, como maracatu, caboclinho, frevo, coco, passando pelo balé clássico e

pela dança contemporânea.

Ana Catarina e Ângelo protagonizaram o espetáculo Outras Formas, premiado no 9º Cultura Inglesa

Festival, em maio e junho deste ano. Pinturas do artista inglês Richard Hamilton, criador da pop art na

década de 1950, são reproduzidas na iluminação do espetáculo. A coreografia é baseada em danças

populares brasileiras como o frevo e o maracatu.

A apresentação de dança contemporânea da dupla é baseada na obra O que Faz os Lares de Hoje Tão

Diferentes e Atraentes?, de Richard Hamilton. Nesse quadro, um casal é representado junto com

utensílios domésticos e outros produtos, numa composição de colagem em que arte e outra arte

considerada mais comercial interagem.

Segundo Ana Catarina, ‘‘o trabalho que a gente faz não é mistura de erudito com popular, o que a

gente faz é uma confluência do erudito com o popular’’. Essa confluência se origina do histórico dos

dois bailarinos. Ana vem do balé clássico, fez parte da companhia Cisne Negro, e Ângelo já foi

bailarino, coreógrafo e diretor do Balé Popular do Recife. Ambos foram premiados no Rumos Itaú

Cultural Dança com Sontir, em 2003.

‘‘O Outras Formas realmente é exatamente o que o título está dizendo. Em cima daquilo que já existe,

você está colocando outras possibilidades dentro daquele tema’’, explica Ângelo.

O bailarino ainda ressalta que o tema ‘‘dança popular, dança brasileira ou danças brasileiras’’ tem uma

complexidade que não pode se deixar levar por uma dança estereotipada para turista ver. ‘‘Sempre

todo mundo tem aquela idéia do lúdico, do colorido, da brasilidade, da festividade. Isso é muito

bonito também. Mas todo mundo vai sempre por esse mesmo caminho, um caminho até um pouco

óbvio.’’

Carlinhos de Jesus acredita que explora uma nova possibilidade, no caso para a dança de salão,

levando-a para os palcos revestida de ‘‘espetáculo narrativo, com roteiro, contando uma história’’. E

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desabafa: ‘‘Chega de dizer que isso é brega, que isso é para dançar nos guetos. A nata da cultura

carioca freqüenta gafieira, a nata da cultura dança. É a mesma coisa que dizer que candomblé é coisa

pra ignorante’’.

A narração final de Isto É Brasil mostra certa lucidez na representação de identidade no espetáculo:

‘‘Nem é tudo Brasil, nem é só Brasil, mas isto é Brasil’’. Como o próprio Carlinhos de Jesus diz, ‘‘a ênfase,

o tema é o samba, anunciando o Brasil. E não também pretensiosamente dizer que o Brasil é só samba.

Não tenho essa pretensão. Mas eu quero dizer que samba é Brasil’’.

Se a chama da dança oscila ao sabor de diversos brasis, só não vale assoprar.

JULHO/AGOSTO/SETEMBRO

Cobertura do Festival Cultura da Nova Música Popular Brasileira

Mistura e variedade marcam primeira eliminatória do Festival Cultura

Saudosismo + tradição + rock + linguagem MTV: no ar, a versão 2005 dos grandes festivais

Por Elisa Andrade Buzzo e Júlia Tavares

A canção ‘‘Misturada’’, do paulista Flávio Marchesin, não poderia ter sido melhor para abrir o Festival

Cultura na noite da primeira eliminatória, dia 3 de agosto. A mescla de ritmos, estilos, temas e

influências dos compositores e intérpretes foi a marca do show no teatro do Sesc Pinheiros, que

apresentou 12 músicas e selecionou seis delas para as semifinais: ‘‘Choro Alegre’’ (João Cristal),

‘‘Maracatu’’, ‘‘Samba e Baião’’ (Ito Moreno), ‘‘Guri de Acampamento’’ (Luiz Carlos Borges), ‘‘Que Bom

Seria!’’ (Márcio Proença), ‘‘Um Sonhador’’ (Toninho Horta e letra de João Samuel) e ‘‘Barco Negreiro’’

(Val Milhomem e letra de João Batista).

A escolha do júri --- composto por Carlos Calado, Hugo Suckman, Pedro Alexandre Sanches, Ricardo

Alexandre e pelos músicos Eduardo Gudin, Joyce, Théo de Barros, Rudá Duprat e Hermelino Neder ---

pareceu agradar ao público, ainda que não tenha se manifestado muito entusiasticamente. A exceção

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foi ‘‘Maracatu, Samba e Baião’’, que aumentou o volume das palmas e teve até torcida com direito a

uma faixa na platéia.

Algumas surpresas ficaram por conta de duas músicas que não foram classificadas: ‘‘Bossanet’’ (Sérgio

Augusto), com o refrão ‘‘Misturo pandeiro e disquete / Tudo virtual / Que isto é bossanet / Isto é muito

natural’’, apresentada com mixagem eletrônica ao vivo de DJ e coral de sete integrantes, e a heavy

metal ‘‘Samba Russo’’ (Paulo Carvalho), com uma interpretação de peso da banda Coelho de Alice.

Nova música?

O resultado da escolha do júri revela que o tradicional da cultura regionalista brasileira tem seu lugar

garantido. Quem prova é o veterano gaúcho Luiz Carlos Borges, selecionado com ‘‘Guri de

Acampamento’’. Borges foi acompanhado no vocal por Daniel Torres, da fronteira do Rio Grande do

Sul com o Uruguai: os dois não dispensaram as bombachas, nem os chapéus.

O espaço do romantismo e do intimismo na canção também segue para as semifinais com ‘‘Que Bom

Seria!’’, de Márcio Proença, interpretada pela cativante Lúcia Helena.

Leila Pinheiro coroou o tom saudosista do festival, assumido nas peças publicitárias, no site da

internet e nos programas da TV Cultura, cantando ‘‘A Banda’’, ‘‘Saveiros’’, ‘‘Arrastão’’ e ‘‘Verde’’. Todas

elas ficaram consagradas nos festivais das décadas de 1960 e 1970 e marcaram definitivamente a

história da canção brasileira.

Do outro lado da tela...

Nos bastidores, era possível conferir a megaestrutura para a gravação ao vivo do show. A transmissão

foi feita do caminhão na Rua Paes Leme, em frente à entrada do Sesc Pinheiros, de onde saíam quilos

de fios devidamente protegidos até o palco do teatro.

Perto das 22 horas, a equipe de produção já não disfarçava a adrenalina da grande estréia. Técnicos de

câmera e som, produtores, diretores e o próprio Solano Ribeiro, diretor-geral, faziam os últimos

acertos, brincavam no microfone, testavam os pontos eletrônicos.

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O primeiro contato com o público aconteceu poucos minutos antes da entrada do programa no ar: a

apresentadora Cuca Lazarotto pediu que a platéia se aproximasse das cadeiras vazias mais à frente do

palco. Uma onda humana, julgando-se com sorte, correu para as poltronas mais privilegiadas. Cuca

voltou a ‘‘conversar’’, pedindo um teste de som com as palmas e lembrou: ‘‘Quando vocês gostarem de

alguma música, fiquem à vontade para aplaudir mais, façam barulho!’’.

Dali para a frente, a atenção com o público virou tarefa de Rodrigo Rodrigues, que gravou

espontâneas enquetes com a platéia, contrastando com as observações não tão profissionais dos

‘‘comentadores’’ Wandi Doratiotto e Magda Pucci. Já a recepção de Sabrina Parlatore aos artistas, logo

na coxia do palco, trouxe graça e leveza ao Festival Cultura, além de identificação com a geração MTV.

Impressões expressas --- As preferidas do público

‘‘’Maracatu, Samba e Baião’’’ teve energia, foi a mais animada’’ para José Serafim Martinho, tecnólogo

de 41 anos que lembra com saudades da era dos festivais promovidos pela TV brasileira nas décadas

de 1960 e 1970. ‘‘Eu era uma criança, mas os antigos festivais me marcaram muito. Lamento a longa

ausência de festivais.’’

Os olhares --- e ouvidos --- atentos do músico Paulo Sérgio Chaves, 36 anos, destacaram no show da

quarta-feira a romântica canção ‘‘Que Bom Seria!’’, marcada pelo tom intimista e suave da

interpretação de Lúcia Helena. Mas, ‘‘pela idéia de misturar bossa nova com a vanguarda da

tecnologia’’, Carvalho destacou ‘‘Bossanet’’.

A escolha da vendedora Rita de Cássia, 30 anos, mostra que os critérios técnicos das músicas nem

sempre são aqueles que mais contam. ‘‘Eu escolheria ‘Sonhador’ pelo momento que estou passando

na minha vida, me identifico com ela, que fala de fé e de sonhos.’’

Ao fim do show, Thiago Biagini, 14 anos, que burlou a segurança do palco para ganhar uma foto ao

lado de Sabrina Parlatore, estava decepcionado com a desclassificação de ‘‘Samba Russo’’. Não à toa: o

garoto de cabelos compridos faz parte de uma banda de metal. Estava acompanhado do pai, Nilton,

também músico e fã de rock pesado: ‘‘’Samba Russo’ merecia estar entre as seis finalistas’’.

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‘‘O som do Toninho Horta é maravilhoso’’, comentou Paulo Sérgio Natali, 55 anos, exportador, mais

uma vez sobre a canção ‘‘O Sonhador’’. ‘‘’Bossanet’ é uma idéia bacana’’, completou.

Torcidas avivam Festival Cultura na primeira semifinal

Por Elisa Andrade Buzzo

Narizes e babadores de palhaço correndo rapidamente de mão em mão. Cartazes com um grande ‘‘Ai’’

vermelho impresso, como que manchado de sangue, distribuídos a quem na platéia tivesse vontade

de pegar. Outros torcedores buscavam o melhor posicionamento possível para suas faixas minutos

antes de começar a primeira semifinal do Festival Cultura, no teatro do Sesc Pinheiros, em São Paulo.

Um casal sentado na fileira F iniciava uma rápida transformação vestindo no pescoço babadores de

tule colorido. Wilsiana Gondim de Castro e seu marido se preparavam para assistir à performance no

palco de seu filho, Flávio Gondim de Castro, na música ‘‘Pra Onde Vamos Nós?’’. Ela mostrava o filho no

palco, com nariz de palhaço, peruca e babador verdes. ‘‘Ele trabalha com mixagem.’’

Wilsiana já acompanhou muitos festivais de música nas décadas de 1960 e 1970, pela televisão ou ao

vivo, como o Festival Internacional da Canção. ‘‘Acompanhei toda a trajetória de Chico Buarque,

Milton Nascimento...’’ A lista é grande. Ela comenta que um diferencial dos antigos festivais era a

presença em massa de estudantes. ‘‘Eram festivais maravilhosos. O pessoal vibrava, pulsava, chegava

ao delírio.’’ E hoje, apesar do filho estar no palco, ela diz não torcer apenas por ele, ‘‘mas por todos’’.

‘‘Estou torcendo porque a música é muito boa, é uma letra muito bem-feita.’’ Efusivamente, ela bate

palmas e suspende o cartaz na hora do refrão ‘‘Ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai’’, na apresentação de Thomas

Roth, Mamma Monstro e Orbital, segunda música da noite. A indignação expressa na melodia sobre

violência e impotência do homem diante do mundo levanta a platéia do teatro.

’’Era pra ser só mais um samba a dois / Um samba a sós / À meia luz’’ cantarolava na platéia Sandra, ao

mesmo tempo em que, no palco, Paula Santoro interpretava a música. ‘‘Eu gosto muito de samba’’,

falava Sandra Regina Ignácio. ‘‘Disseram que era bossa, o que não é o caso; a música é samba mesmo.’’

Muita gente que ficou na torcida por uma música, como Sandra, ou mesmo aqueles que vieram em

massa, com alvoroço de cartazes, acabou descontente com o resultado do júri. As músicas

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selecionadas para a final foram: ‘‘Um Sonhador’’, de Toninho Horta; ‘‘Contabilidade’’, de Danilo

Moraes; ‘‘A Moça na Janela’’, de Zé Renato; ‘‘Lama’’, de Douglas Germano; ‘‘Startrek de Tacape’’, de

Chico Saraiva; e ‘‘Achou!’’, de Dante Ozzetti.

‘‘Sai da Cruz’’, por exemplo, contava com uma grande torcida no balcão do teatro. Houve até chuva de

balões verdes e amarelos ao final da apresentação da música.

Uma das torcidas mais atuantes da noite urrava no balcão, parte superior do teatro, ‘‘A-chou, a-chou!’’.

A leve canção de amor ‘‘Achou!’’, de Dante Ozzetti e Luiz Tatit, foi uma das músicas que mais

empolgaram a platéia. Muitas pessoas cantavam os versos ‘‘Quem estiver atrás de um grande amor /

Achou!’’, levantando-se da cadeira e alçando os braços ao ar. Ceumar, intérprete da música, segurou a

onda, rodopiando sua saia bordada.

Ao ser anunciada pela apresentadora Cuca Lazzarotto como finalista, ‘‘Um Sonhador’’, de Toninho

Horta, recebeu vaias. ‘‘Contabilidade’’ foi um misto de aplausos e vaias, enquanto ‘‘Startrek de

Tacape’’, ‘‘Lama’’ e ‘‘Achou!’’ foram muito aplaudidas.

Depois do show de encerramento com Paulinho da Viola houve, literalmente, uma divisão de torcidas

na platéia do teatro, enquanto o público já estava indo para casa. O lado direito da platéia gritava ‘‘É

Achou!’’, enquanto o lado esquerdo respondia ‘‘É Lama!’’. A cena vista no Sesc Pinheiros até lembrou a

torcida dividida entre ‘‘A Banda’’, de Chico Buarque, e ‘‘Disparada’’, de Jair Rodrigues, no II Festival da

TV Record, em 1966.

Personagem da platéia --- a opinião do público no festival

Por Elisa Andrade Buzzo

Ela foi a ‘‘vítima’’ do repórter Rodrigo Rodrigues por duas vezes. Ela se empolgou no memorável show

de encerramento com Paulinho da Viola na primeira semifinal. Sobre rodas, Leandra Migotto Certeza,

jornalista e consultora em inclusão social de 28 anos, dá seus primeiros passos no Festival Cultura.

Rumos --- Quais foram suas músicas preferidas?

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Leandra --- Grande parte das músicas eu gostei muito porque me tocou a alma. Não estive

acompanhando pessoalmente todas as eliminatórias, mas assisti a tudo pela TV. A qualidade das

melodias e principalmente das letras é ótima! Temos muitos talentos musicais que precisam de espaço

para mostrar ao público suas idéias. É muito difícil escolher algumas músicas de que mais gostei,

porque os estilos são totalmente diferentes, além do que existem aquelas que se destacam mais pela

letra e outras pela melodia, sem contar as belíssimas interpretações dos cantores. Além disso, eu

também sou bastante eclética. Mas algumas me tocaram mais no momento, como ‘‘Contabilidade’’, de

Danilo Moraes e Ricardo Teperman; ‘‘Barco Negreiro’’, de Val Milhomem e Joãozinho Gomes; ‘‘Achou!’’,

de Dante Ozzetti e Luiz Tatit; ‘‘Startrek de Tacape’’, de Chico Saraiva; ‘‘Arranca de Dá no Pé’’, de Sérgio

Santos; ‘‘Maracatu, Samba e Baião’’, de Ito Moreno; ‘‘Lama’’, de Douglas Germano; ‘‘Sai da Cruz’’, de Élio

Camalle; ‘‘Hotel Maravilhoso’’, de Flávio Henrique e Chico Amaral; ‘‘Pra Onde Vamos Nós?’’, de Thomas

Roth; e ‘‘Sem Lugar’’, de Carlos Meneses Júnior e Juliana Penna, entre outros.

Rumos --- Você, que esteve presente aqui no Sesc na primeira eliminatória e agora na primeira

semifinal, já sentiu alguma diferença no clima do festival?

Leandra --- Nossa, a diferença é enorme! Na primeira eliminatória a platéia era um terço do que nesta

primeira semifinal, e estava totalmente apática. Hoje as torcidas estão animadíssimas! Além disso, a

equipe da TV Cultura também não tinha achado o tom das apresentações e comentários. Agora está

redondinho. Parabéns a todos! Espero que até a grande final a platéia esquente ainda mais.

Rumos --- Na sua opinião, quais são as características de uma música vencedora de festival? O que o

público teria de ouvir para sentir que ‘‘é essa a música’’?

Leandra --- O Brasil é um dos países mais ‘‘misturados’’ do planeta. Ouve de tudo e produz sons

completamente diferentes e com muita qualidade. Para falar a verdade, acho que os festivais não

devem ser competitivos desta forma, pois não há critérios para julgar uma música que tem um estilo

totalmente diferente da outra. É claro que qualidades básicas para ser classificada ela tem de ter, mas

como dizer se um samba é melhor do que um rock? É um critério totalmente subjetivo! Mas, para dar

um palpite, acho que grande parte do público vai preferir nesse momento escolher um samba como

vencedor do festival, porque representa mais a cara do Brasil.

Rumos --- Acha importante a iniciativa da TV Cultura de reviver os grandes festivais?

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Leandra --- É fundamental. Já estava mais do que na hora de voltarmos aos grandes festivais que tantos

talentos trouxeram ao país. Fico torcendo para que o governo federal, junto com a inciativa privada e

toda a sociedade, realmente invista pesado na cultura de seu povo. Música alimenta a alma. Que

venham muitos festivais sempre, que outras emissoras de TV invistam em qualidade e produção de

eventos tão importantes como este para a música do Brasil. A TV Cultura, como sempre, está de

parabéns pela belíssima cobertura. A qualidade técnica e humana está impecável. Torço para que eles

continuem com a bola toda e preparem o próximo festival. Eu vou estar novamente assistindo na

primeira fila. Só tenho algumas sugestões: fazer o festival em um local maior, mais popular e de fácil

acesso, diminuir o valor do ingresso, e principalmente mudar o horário das transmissões das 20 às 23

horas, assim mais pessoas poderão assistir e conseguir condução para voltar para casa, além de

acordar no dia seguinte para trabalhar. É preciso tirar da elite brasileira o privilégio de participar do

festival.

Solano Ribeiro fala sobre a nova música do Festival Cultura

Por Elisa Andrade Buzzo

Largos corredores levam à sala B-3, na sede da TV Cultura, em São Paulo. Cada um deles é dividido por

um jardim, onde, de uma das janelas, se vê Solano Ribeiro de costas, em frente ao computador, em

mais uma manhã de trabalho. Diretor-geral do Festival Cultura A Nova Música do Brasil, sua história de

vida está entrelaçada com a história dos festivais das décadas de 1960, 70 e 80.

Solano esteve à frente do 1º Festival Nacional da Música Popular Brasileira, em 1965, na TV Excelsior.

Depois, seguiram-se outros tantos festivais, como o 2º Festival da MPB da TV Record, de 1966, quando

‘‘A Banda’’ e ‘‘Disparada’’ empataram, e o Festival dos Festivais, da TV Globo, em 1985. ‘‘Este festival

aqui [Festival Cultura] poderia ter acontecido há cinco anos’’, diz Solano ao relembrar o inexpressivo

Festival da Música Popular Brasileira de 2000, da Rede Globo.

O Festival Cultura foi lançado em março de 2005. Depois de quatro eliminatórias e duas semifinais no

teatro do Sesc Pinheiros, em São Paulo, nesta quarta-feira será a grande final. Foram 5.198 músicas

inscritas e 12 selecionadas para concorrerem na final, que vai premiar, além das três melhores músicas,

melhor intérprete, melhor letra e melhor arranjo. Serão mais de R$ 250 mil em prêmios para os três

primeiros colocados, incluindo o melhor intérprete, letra e arranjo.

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Ainda haverá prêmio para melhor clipe, melhor fotografia e melhor roteiro. ‘‘O objetivo é mostrar que

o festival enxerga que a música na televisão hoje em dia é o clipe, mais do que a apresentação do

cantor’’, diz Solano a respeito dos clipes que serão produzidos das músicas finalistas do festival.

Confira a entrevista que ele concedeu ao programa Rumos Itaú Cultural Jornalismo Cultural.

Rumos --- Como surgiu o convite da TV Cultura para reviver os festivais?

Solano Ribeiro --- O convite da Cultura veio há muito tempo. Uma vez eu encontrei o Marcos Mendonça

em um jantar. As pessoas olham pra mim e pensam em festival. O meu passado me grava isso. Então

ele me perguntou se eu achava que a Cultura seria um lugar pra fazer um festival. E eu falei que é o

melhor lugar atualmente pra fazer um festival. Porque a Cultura está completamente liberada de

jogadas de marketing, de gravadoras, essa coisa toda. Então nós podemos fazer um festival isento. E o

Marcos Mendonça me deixou com total liberdade pra fazer o que eu achar. Essa conversa que ele teve

comigo foi bem antes de ele ser eleito presidente da Fundação Padre Anchieta e da TV Cultura. Depois,

quando ele veio pra cá, me chamou pra conversar.

Rumos --- Como você recebeu as críticas dirigidas ao festival sobre a presença, num festival de ‘‘nova

música’’, de compositores e intérpretes já com anos de estrada?

S.R. --- Quando se revelou o grupo de compositores, a gente teve algumas surpresas, tipo Marília

Medalha, Toninho Horta. Só que era o trabalho classificado e era um bom trabalho e a gente não tinha

justificativa para não deixá-los participar, não é proibido para maiores o festival. Então, o que

aconteceu foi que toda uma geração de compositores que vem trabalhando já há algum tempo, que

participa de muitos festivais, que tem trabalhos feitos e gravações entrou também no festival.

Evidentemente seu trabalho é um pouco mais consistente. Agora, eu acho que a nova música de um

compositor velho é a nova música do Brasil, sim. A fórmula do festival é uma fórmula que foi

interrompida por razões políticas. Agora, o Festival de San Remo existe há 55 anos, Viña del Mar há

muito mais de 40 anos. Essa interrupção fez com que deixasse de existir uma janela aberta para o

novo, para o novo compositor, para o novo intérprete e tudo o mais. Então, a gente resolveu

recomeçar. Quando fiz o primeiro festival, há 40 anos --- inclusive eu até questiono: seria eu a pessoa

certa para recomeçar o processo de festivais?, --- eu, que queria fazer um bom programa musical de

televisão, jamais poderia imaginar que aquilo seria um processo que nos seus desdobramentos iria

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fazer parte da história do país, não só da música, da televisão, como do próprio país. Hoje em dia,

depois de não existir festival há tantos anos, nós estamos de novo querendo fazer um bom programa

musical de televisão. Acho que, se os desdobramentos levarem a fazer com que o festival volte a ser

um local de manifestação política e musical, e uma janela para o novo, isso é coisa que nós temos de

deixar o tempo passar um pouco pra poder avaliar as reais implicações e as reais influências e o

resultado do festival em si. Quem sabe daqui a 40 anos a gente converse de novo? [risos]

Rumos --- O que você está achando do comportamento da platéia neste festival?

S.R. --- Quando a gente resolveu fazer o festival, depois de muito avaliar a sua pertinência, uma das

coisas que me ocorria era a necessidade de criar uma platéia que surgisse espontaneamente, que não

fosse uma coisa forjada, que não fosse uma coisa produzida pela emissora. Ou simplesmente uma

coisa que acontecesse a partir das torcidas de determinados compositores. Então, isso era uma das

minhas grandes preocupações porque tantos anos depois a gente não sabe mais o que seria, como

seria, uma platéia de um festival porque não se tem referência, a não ser histórica. Nós fizemos uma

série de documentários em que mostramos a participação da platéia da Record, essa coisa toda, mais

pra de certa maneira explicar o que seria uma nova geração de participantes de festival. E eu não sabia

o que iria acontecer. Fiquei com medo em determinado momento de que a platéia fosse dominada por

torcidas, o que iria distorcer um pouco o comportamento dela. E agora eu estou percebendo que está

acontecendo aquilo que eu esperava: nós estamos tendo uma platéia que começa a ouvir as outras

músicas, a aplaudir as outras músicas e a escolher a sua música favorita e torcer por ela. É claro que

tem sempre grupos que vão lá torcer para determinados compositores e tudo mais, mas isso é uma

coisa inevitável. O que está acontecendo é que a platéia, até quanto eu posso avaliar, está crescendo.

Por incrível que pareça, o que você encontra de lugares vazios lá no Sesc são de convidados do Sesc e

da TV Cultura que não comparecem. Porque, em determinado momento, o Sesc pára de vender. A

partir do momento em que os computadores acusam que os lugares estão todos tomados --- e eles são

muito rigorosos nisso ---, eles param de vender e a gente tem deixado de vender centenas de entradas.

O que me deixa altamente decepcionado, mostrar vazios que podem parecer, para quem estiver

assistindo, que as pessoas não foram. Se a gente deixasse à venda, estaria lotadíssimo.

Rumos --- Sinto falta das músicas do festival tocando no rádio. Você não acha que o público ficaria mais

ligado no festival se tivesse a oportunidade de ouvir mais vezes as músicas?

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S.R. --- O que acontece é que nós temos aqui algumas limitações, pelo próprio volume de audiência da

TV Cultura. E nós temos certa limitação pela própria inexistência hoje de um grande movimento

musical que faça com que as rádios tenham um maior interesse em botar isso no ar e colaborem com

esse festival. Agora, isso não é uma coisa cuja resposta vai ser imediata. O resultado do festival nós

vamos saber de fato depois, com o que acontecer com as músicas, com essas pessoas que a gente

revelou. Nós estamos revelando muita gente nova, muita gente talentosa e que vai fazer carreira.

Tudo isso é um recomeço e esse recomeço eu estou achando que está cercado, a TV Cultura nos deu

condições de cercá-lo com uma infra-estrutura profissional que raras vezes se viu na televisão

brasileira. A qualidade do som, a qualidade da imagem, a experimentação daquelas projeções que a

gente faz. Tudo aquilo é uma coisa criada pelos artistas de computação gráfica da TV Cultura e que

estão fazendo um trabalho extraordinariamente interessante, integrado com a música que está sendo

apresentada. O festival, como programa de televisão, eu não digo que me satisfaz porque tem muitas

coisinhas ainda a ser corrigidas. A gente está evoluindo, cada programa você percebe que é um pouco

melhor do que o outro. Na final nós teremos aprendido a fazer e acabou [risos].

Rumos --- O júri está conservador neste festival?

S.R. --- Todo júri é conservador. Mesmo no passado, se você pegar os exemplos, vai ver que ele sempre

tem medo do novo. E esse, particularmente dada a conjugação que aconteceu em função de algumas

falhas de última hora na composição do júri, ficou um pouco conservador demais. Então o festival

ficou com um perfil mais velho do que eu gostaria. Ele deixou pra trás músicas que eu acho que seriam

de bom apelo popular e bom apelo para um espectador mais jovem, tipo ‘‘Misturada’’, ‘‘A Moda’’,

‘‘Samba Russo’’, por exemplo. Eu preferiria qualquer uma dessas a uma música que me leve à bossa

nova. Eu acredito que entre as cinco primeiras vão estar as melhores cinco músicas. Pode ter certeza, a

melhor música vai ganhar o festival.

Rumos --- Como é sua relação com o júri?

S.R. --- Somo inimigos íntimos [risos]. Eu tenho de prestigiar o trabalho deles, afinal de contas eu os

convidei e tenho de deixar que cada um deles manifeste a sua opinião, e não a minha. Só que de

repente tem muita opinião contra a minha. E eu vejo o festival não só como um evento musical, eu

vejo o festival como um evento de televisão. Então algumas coisas que são números interessantes, e

que são números que talvez possam significar até uma rejeição por parte do público, mas um passo à

frente, eu prefiro esse tipo de música. Vou te dar um exemplo: ‘‘Romance Pós-Moderno’’. Pra mim

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aquilo foi a coisa mais bonita que eu vi no festival. Como música ela está dentro de uma corrente, que

é a música eletrônica. Eu gostei também daquela música que se chama ‘‘Contrapeso’’, que tinha

aqueles tambores ali. Era uma coisa minimalista e interessante e que significava uma fuga da mesmice,

uma fuga da canção. Às vezes eu penso que esse júri está à procura da canção perdida. E eu quero que

o festival ande, a gente tem de abrir a porta.

Rumos --- Do que você sente falta neste festival?

S.R. --- Eu sinto muita falta de certos movimentos que existem e que não vieram com uma música que

os representasse com suficiente qualidade para estar no festival. Eu estou querendo dizer, por

exemplo, esse movimento de Pernambuco, que hoje em dia é fortíssimo. Mas tem outras coisas, nós

tivemos surpresas, de repente entrar uma música do Amapá, que eu acho interessante a gente

conhecer o ‘‘mar abaixo’’.

Rumos --- O que é uma música de festival hoje? Quais são as características dela, se é que ela existe?

S.R. --- Antigamente tinha. Existe muita descrição de que música de festival é música que tem um efeito

que vai causar na platéia uma reação. Ou seja, às vezes é uma subida de tom, às vezes é uma pausa, às

vezes é uma quebrada de ritmo, às vezes é uma acelerada no ritmo. Então, isso é uma música feita, ou

pelo menos na sua elaboração, no seu arranjo, com o objetivo de causar algum impacto na platéia.

Agora, nós tivemos o cuidado de evitar que músicas desse tipo entrassem, embora algumas tenham

passado, sim. Quando era música que a gente percebia que o cara construiu para que tivesse efeito na

platéia de um festival, a gente já tirava fora. Além do que você precisa reparar que a gente conseguiu

um painel muito rico de representatividade da música do Brasil. Nós tivemos essa música do Amapá,

que eu já citei, a música do gaúcho, que está até classificada, ‘‘Guri de Acampamento’’. Um amigo falou

‘‘pôxa, Solano, o festival já é histórico!’’. Eu falei ‘‘histórico não, mas geográfico ele já é’’, porque do

Oiapoque ao Chuí nós temos música [risos]. Temos música praticamente do Brasil inteiro. E isso não

aconteceu com uma intenção. As músicas foram sendo classificadas e, quando vimos, tínhamos um

painel muito rico.

OUTUBRO

TEMA: Novos meios

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Ecos digitais

Por Elisa Andrade Buzzo

Subindo os altos degraus da escada em caracol, era irresistível tocar os enovelados gatos de mosaico

colorido. Petrificados nas muretas ascendentes, esses leões-de-chácara em miniatura davam as boas-

vindas a quem chegasse na casa.

--- Estou esperando uma amiga minha, ela já deve estar chegando...

Annita justificava o atraso da apresentação do ‘‘poema-em-música’’ a um grupo de amigos que se

reunia ao redor de uma mesa branca de plástico, logo que me aproximava do alpendre. O saxofonista,

que se apresentaria especialmente naquela noite, precisava ir embora o quanto antes. Felizmente, os

convidados encaravam com bom humor a demora. Passava das 21 horas no Terraço Poético da Oficina

de Criação Literária, ministrada por Regina Gulla.

Com as luzes da sala desligadas, a iluminação provinha unicamente de um abajur num canto do

cômodo, proporcionando uma claridade amarelada difusa no ambiente. As cadeiras brancas do

alpendre rapidamente foram transportadas até lá, onde já estava Rogério sentado com seu saxofone.

Ao seu lado, Silvio se preparava atrás de um laptop. Annita, por sua vez, colocou-se junto a Silvio,

portando numa das mãos um maço de papel sulfite, na outra, um microfone.

É com leves meneios de cabeça que Silvio vai comunicando a Annita suas entradas na performance:

‘‘Não suporto a visão dos acidentes que se distribuem pela auto-estrada

sigo acumulando desculpas justificativas convincentes por mais um [atraso ou ausência

Tenho náuseas ao tentar olhar a cena do desastre

ao mesmo tempo amoleço ao mesmo tempo me esforço para acelerar --- [o carro não obedece

mas sei que nada pode passar de um delírio passageiro

as manhãs nunca passam como gostaríamos’’ (*)

A voz de Annita, ao ler seu poema, é ofegante, resultado da transformação da voz por softwares no

computador feita por Silvio. O compositor diz que no poema ‘‘Desalinhamentos’’ o que acontece é que

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‘‘a voz é fragmentada e ao mesmo tempo encavalada à voz original; isso dá a sensação de que a

respiração está fora de lugar’’. O software utilizado foi desenhado em um ambiente de programação, o

MAX/MSP. ‘‘Cada software que desenhamos é compreendido como um patch, um pedaço que pode

ser acoplado a outros softwares (outros patches ou subpatches), como nas colchas de retalhos

(patchwork). São simulações de instrumentos eletrônicos de transformação de áudio, só que agora

mais versáteis, e totalmente interligáveis’’, explica Silvio Ferraz Mello, que também é professor do

Departamento de Música da Unicamp e da pós-graduação em semiótica da PUC/SP.

Como as alterações produzidas na voz ‘‘são quase que casuais’’, sua capacidade de experimentar e

intuir estão em jogo nesse processo. ‘‘Não existe este elo sentido-efeitos sonoros empregados. O que

acontece é que o texto recebe um impacto do som e se fragmenta de um modo como se fosse leitura.

A idéia primeira era imaginar um jeito de ler para os outros como se os outros é que estivessem

lendo’’, conta.

Do alto da escada na sala ouve-se um barulho de descarga durante a apresentação. Segundos depois,

um menino vai descendo os degraus de madeira, chega até a metade da escada e permanece com a

cabeça pendida. Estático, sem entender muito bem o que estava vendo e, principalmente, ouvindo.

Depois, continua a descer, passa espremendo-se entre as cadeiras, até que se senta numa delas. O

boné vermelho chamuscando o ar.

‘‘Peço que não toquem mais em mim

e fico citando a tarde em um misto de amarelo e medo inconsistente

fico citando a tarde decomposta em palavras esquisitas,

cansado que estou de tratos, e maus tratos, à beira da cama

não tenho mais como esconder a fragilidade dos meus ossos

nem as cavernas que se aprofundam sob os olhos

então o que fazer

onde resgatar um resquício de dignidade

onde encontrar um lapso de vida nesta vida esfacelada?

fico citando a tarde, cavoucando a tarde entre os dentes, entre os dentes

subdivido minhas vértebras ao infinitesimal

multiplico minhas vértebras perfurando o abismo’’ (**)

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Neste poema, ‘‘A Última Tarde’’, Annita conta que o efeito pretendido foi ‘‘fazer uma espécie de

mantra no jeito de ler, como uma reza. Eu tento manter a mesma nota na leitura’’. Annita Costa Malufe

também é jornalista, publicou o livro Fundos para Dias de Chuva (7 Letras, 2004) e prepara sua tese de

doutorado no Departamento de Teoria e História Literária da Unicamp. A leitura dos textos na

performance deixa artificialidade e grandiloqüência de lado, e opta por ‘‘manter uma mesma

entonação, sem enfatizar sílabas, sem enfatizar musicalidade, uma coisa mais lisa’’. Mesmo a voz da

poesia contemporânea, para ela, é mais próxima do cotidiano, coloquial.

A explicação técnica dada por Silvio nesse caso é que ‘‘um outro sinal é gerado pelo computador e

multiplicado pelo sinal da voz, o que acaba a distorcendo levemente, mas mantendo um som

contínuo, como uma espécie de eco afinado’’.

O professor e artista plástico Edgardo Arenas, presente pela primeira vez naquela desconhecida

‘‘confraria’’, comentou na rodinha que se formou pós-performance:

--- Uma passagem para uma coisa diferente. Não é poema, não é música, não é arte tecnológica.

Ou, então, nas palavras da poeta: ‘‘Uma coisa que fica no meio do caminho entre música e poesia’’.

Já Silvio distingue o ‘‘poema-em-música’’ de uma vertente da poesia chamada poesia sonora. Esta

‘‘tem o foco na poesia, é uma poesia de palavras que se tornaram sons’’. Comparando com a poesia

sonora, o poema-em-música ‘‘não subentende uma união, uma coerência entre forma do texto e forma

da música, entre sonoridades do texto e sonoridades musicais, é simplesmente a ampliação do

potencial dramático de uma leitura de poema através de sua transformação em música, música aqui

entendida como história, ou processo, de transformação de um som’’.

‘‘Poesia sonora é hoje um nome genérico que designa uma espécie de experimentalismo poético

baseado na voz humana e suas possibilidades expressivas’’. A definição é de Philadelpho Menezes, no

encarte do CD Poesia Sonora --- Do Fonetismo às Poéticas Contemporâneas da Voz (1996). Philadelpho foi

professor do programa de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC/SP até sua morte, em

2000, e grande divulgador e realizador de poesia sonora no Brasil, o que aconteceu a partir da década

de 1990 com o lançamento do seu livro Poesia Sonora - Poéticas Experimentais da Voz no Século XX.

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Nessa tradição concretista, Annita acredita que se perde o ‘‘recheio do discurso’’, por ser ‘‘uma poesia

mais seca, mais fragmentária’’. Assim, há cerca de um ano, quando se apresentou com Silvio,

inaugurando o ’’poema-em-música’’ no Centro Cultural Fiesp (O Livro das Sonoridades), Annita

começou a escrever mais influenciada pela oralidade. Agora, ela diz que pensa ‘‘poemas maiores ao

invés de pensar nas palavras, eu penso mais no fluxo todo de palavras’’.

Esses poemas levam o ouvinte-leitor a movimentos circulares, através do recurso da repetição. Nas

leituras para a performance, Annita tenta encontrar o que estaria ‘‘embutido’’ em cada poema, ‘‘mas

de repente você lê e encontra outra voz’’. Por isso sua leitura é ‘‘lisa’’, a fim de que ‘‘não seja uma voz

que imponha muito, que direcione muito a escuta’’, e deixa ‘‘um espaço para você poder ouvir outras

vozes até’’. Dessa maneira, ‘‘o significado vai entrando de uma forma mais sensorial’’.

Silvio lembra que ‘‘poema-em-música é o poema virando música e a música, esta nova música de sons,

virando poema’’. Nesse trâmite, a voz da poeta alinhavada pelo computador pode ser clara-ecoada,

fina-fibrosa. E o menino de boné vermelho aplaude a música. Ou o poema? Não importa, o espaço é de

livres releituras do novo espectador nesta nova poética da voz.

‘‘preciso prever os limites do corpo o quanto antes

os limites do corpo; os limites das minhas mãos; os limites da mesa e a [beira da cabeceira;

minha língua à beira do limite’’ (***)

(*) trecho do poema ‘‘Desalinhamentos’’, de Annita Costa Malufe

(**) trecho do poema ‘‘A Última Tarde’’, de Annita Costa Malufe

(***) trecho de ‘‘Transições’’, de Annita Costa Malufe