Leituras sobre o Liberalismo

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    Detmar Doering e Rainer Erkens (Orgs.)

    LEITURAS SOBRE O LIBERALISMO

    Instituto Friedrich Naumann

    So Paulo - BrasilJulho de 2009

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    Leituras sobre o Liberalismo 2 Edio (revisada e ampliada) /Rainer Erkens e Detmar Doering (Orgs.) - So Paulo:

    Instituto Friedrich Naumann, julho 2009, 116 p.

    Reviso: Rainer Erkens

    Capa e diagramao: Beate Forbriger

    Todos os direitos reservados ao

    Instituto Friedrich NaumannRua Arand, 1544 - Ed. Itaver, cj.91/9204562-031 So Paulo - SP / Brasil

    Tel.: +55 11 5505-5740Fax: +55 11 5506-6909

    E-mail: [email protected] no Brasil: http://www.ffn-brasil.org.brSite na Alemanha: http://www.freiheit.org

    Impresso no Brasil, Julho 2009

    ISBN 978-85-61954-03-1

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    ndice

    Prefcio....................................................................................................................................... 5

    Introduo ................................................................................................................................. 11

    Karl R. Popper (1956)O Liberalismo Algumas Teses .................................................................................. 13

    Ludwig von Mises (1927)

    Liberalismo Um Balano de Sucessos ............................................................... 17

    John Locke (1689)

    Em Defesa da Tolerncia .............................................................................................. 27William Leggett (1834)

    Os Direitos do Povo ........................................................................................................ 31

    Wilhelm von Humboldt (1792)

    O Propsito do Homem ................................................................................................ 35

    Adam Smith (1776)

    Mercado e Indivduo ........................................................................................................ 41Frederic Bastiat (1849)

    Liberdade como Competio ....................................................................................... 45

    Edmund Burke (1790)

    O Princpio da Reforma ................................................................................................ 51

    John Stuart Mill (1859)

    Liberdade e Educao ..................................................................................................... 57

    David Hume (1739)

    Interesse Pessoal e Justia .......................................................................................... 61

    Friedrich August von Hayek (1976)

    A Fico da Justia Social .......................................................................................... 77

    John Gray (1986)

    Os Opositores do Liberalismo .................................................................................... 83

    John Prince-Smith (1860)A Liberdade do Comrcio ............................................................................................ 91

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    Jos Ortega y Gasset (1930)

    A Tirania da Massa .......................................................................................................... 99

    Robert Nozick (1974)

    A Utopia ................................................................................................................................. 105

    Rainer Erkens

    Liberdade e Desenvolvimento ..................................................................................... 111

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    Prefcio

    O economista britnico John Maynard Keynes, que comeou a sua carreiracomo liberal e acabou como profeta dos sociais-democratas e socialistas, que

    adoram a interveno do Estado na economia e na vida dos cidados, certa vezsublinhou a importncia e o impacto das idias no mundo. Conforme Keynes,idias governam o mundo mais do que os interesses que, nas cincias sociais,so sempre o centro das atenes. Porm, infelizmente, no importa se estasidias so corretas ou errneas.

    Conforme Keynes, alguns polticos servem-se de textos de acadmicos

    com pouca reputao Keynes at usa a palavra besuntes acadmicos e

    deixam-se guiar por teorias obscuras e secundrias de autores estranhos. Maso problema no consiste somente na influncia das idias estranhas e

    absurdas criticadas por Keynes. At mesmo idias que parecem pouco perigosos

    e mesmo razoveis podem ter um impacto claramente antiliberal.

    A histria dos ltimos sculos confirma, de uma maneira muito

    impressionante, a fora das idias no mundo. Ainda hoje, os vrios

    representantes da teoria socialista encontram simpatizantes, e mesmo

    crentes, em todos os continentes, apesar do fato de que, durante o sculo XX,

    muitos experimentos socialistas terminaram em desastres econmicos,

    desrespeito aos direitos humanos e at atrocidades. O ditador alemo Adolf

    Hitler baseou o seu anti-semitismo agressivo em obras de autores confusos do

    sculo XIX, que hoje, justificadamente, so esquecidos. A Bblia outro

    exemplo para um conjunto de idias que tm mantido a sua influncia sobre

    milhes de pessoas, apesar do comportamento de muitos dos seus adeptos, do

    abuso por parte de alguns sacerdotes, de pesquisas cientficas que

    contradizem uma grande parte dos textos bblicos e de muitas contradies

    dentro e entre os livros que formam a Bblia.

    Neste contexto, Ludwig von Mises, um dos grandes clssicos do liberalismo

    que est presente entre os autores deste livro, salientou o rol, muitas vezes

    fatal, dos intelectuais, que nas suas palavras sempre formam a base social das

    revolues, no as massas amorfas em cujo nome certos intelectuais gostam

    de falar. Dada a importncia das idias e dos intelectuais que divulgam estas

    idias, os grandes autores liberais sempre sublinharam que os liberais tm

    que ganhar tambm na batalha ideolgica que se d nas cabeas e coraesdos cidados.

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    A cada dia as estatsticas e as pesquisas empricas mostram a superioridade

    de uma economia livre sobre todas as verses do intervencionismo estatal,

    independentemente da sua justificativa. Uma economia livre produz mais

    riqueza, mais desenvolvimento, mais sade, mais bem-estar, mais igualdade

    e em geral mais felicidade do que uma economia em que o Estado o que emgeral significa nada mais do que um conjunto de representantes da classe

    poltica, burocratas e os grupos de interesses poderosos e bem organizados

    desempenha o papel de rbitro que privilegia ou prejudica certos setores

    da populao.

    Mas, enquanto os dados empricos provam o sucesso do mercado e a

    superioridade de uma economia livre sobre todas as alternativas, os liberais

    ainda no sabem conquistar a imaginao e o entusiasmo das pessoas.

    Para dar somente um exemplo: a esquerda gosta de atacar o lucro em uma

    economia de mercado como uma fonte de explorao que tem como a sua base

    a fraude, a agresso e um egosmo violento e frio. Assim, quem tem lucro

    supostamente rouba algo de outras pessoas. Deste ponto de vista antiliberal o

    lucro transforma-se em um vcio, em algo ilegtimo. No somente a teoria

    liberal, mas tambm a vida prtica mostra, com toda clareza, que essa

    interpretao no tem nada a ver com a realidade. Mas, apesar disso, o fato de

    que numa economia de mercado o lucro indispensvel e tem grande

    importncia provoca maus sentimentos e desperta antipatias mesmo entre

    pessoas que no se declaram esquerdistas.

    Assim, os liberais tm que lutar contra uma abundncia de preconceitos e

    erros e um verdadeiro mar de ignorncia. Mas, j que o liberalismo no

    conhece outras armas alm das armas da razo, os liberais no podem fazer

    mais nada a no ser iniciar a luta contra preconceitos, erros e contra a

    ignorncia que os alimenta.

    Para isso existe s uma possibilidade: temos que confrontar as idias dos

    nossos opositores com melhores idias porque nas palavras de Ludwig von

    Mises idias podem ser derrotadas por outras idias. Obviamente essas idias

    vencedoras so as idias liberais.

    Temos que confrontar todas as idias baseadas em coero e em

    dependncia do Estado, as idias que prejudicam a redistribuio arbitrriade recursos em nome de uma justia social falsa. Temos que ganhar a

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    concorrncia pacfica e superar a confuso que as idias opostas liberdadetm produzido nas cabeas e nos coraes das pessoas.

    O sucesso relativo dos nossos opositores tem vrias razes. Muitas pessoas

    tm problemas com a nossa mensagem de liberdade. Elas sentem medo defazer uso da liberdade. Existem pessoas que preferem a sua segurana, o seuconforto e a sua rotina corriqueira ao risco, inovao e qualquer desafioque possivelmente a liberdade traz. Outros no querem ouvir a mensagem deliberdade porque vivem bem e se beneficiam da coero e da ausncia deliberdade. Tm medo da liberdade porque ela ameaa os seus privilgios evantagens. Tm medo da concorrncia porque ela d chances s pessoas atagora desprivilegiadas.

    Mas em cada sociedade existem tambm pessoas que so abertas nossamensagem. Pessoas que gozam de liberdade e odeiam qualquer forma decoao. Pessoas que compartilhariam as nossas idias mas que precisamter conhecimento delas. Porque este um fato triste: dada a forte propagandados nossos opositores, mesmo pessoas que so liberais, sem sab-lonecessariamente ou sem denominarem-se liberais, so expostas s posiesantiliberais porque os liberais no fazem o suficiente para divulgar a suacausa. Devemos alcanar e convencer estas pessoas.

    Porm, para fazer isso temos que ser capazes de exprimir o que queremos.Tambm devemos ter a coragem de apresentar e defender as nossas posiesem encontros, artigos e discusses. Isso, contudo, s possvel se tivermosconhecimentos bsicos sobre o liberalismo. S possvel se soubermos o que o liberalismo e por que vale a pena defend-lo.

    Este livro da Friedrich-Naumann-Stiftung fr die Freiheit(Fundao Friedrich

    Naumann para a Liberdade - FNF) contm uma coleo de textos de alguns dosmelhores e mais famosos autores liberais dos ltimos trs sculos. Expetemas to diversos como a tolerncia, um dos princpios mais nobres doliberalismo, a educao, a justia e o livre comrcio.

    Obviamente, a grande maioria das contribuies so extratos de obrasmuito mais abrangentes e amplas. Para os que querem saber mais, sempreresta a alternativa, muito enriquecedora, de ler os textos completos. Neste

    caso, esta publicao deve servir como um tipo de aperitivo, que abre as portas leitura do respectivo texto integral.

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    Mas sabemos que hoje, na era da globalizao, com uma economia cada vez

    mais tica, com a internet dominando a comunicao, a leitura de autores

    clssicos talvez seja um privilgio permitido a poucas pessoas. Por isso, a FNF

    apresenta uma seleo de textos bsicos curtos que possibilitam conhecer

    algumas das idias principais dos autores clssicos do liberalismo, at parapessoas que tm pouco tempo. Mas no se trata de uma verso light do

    liberalismo. Os leitores vo rapidamente descobrir que os textos podem ser

    bastante curtos, mas com certeza eles no carecem nem de substncia nem de

    contedo. Oferecem muito material para pensamentos e controvrsias.

    Os textos foram escolhidos por um dos meus colegas na Alemanha, Detmar

    Doering, o diretor do Instituto Liberal da FNF. Graas ao seu trabalho este

    pequeno livro, que se apresenta com o modesto ttulo Leituras sobre oLiberalismo, reflete tanto a riqueza como a profundidade do pensamento

    liberal. Deve ajudar as pessoas que tm interesse em conhecer as bases

    do liberalismo e procuram uma primeira orientao geral. Deve ajudar as

    pessoas que querem familiarizar-se com alguns dos temas especficos e

    autores principais da idia de liberdade. Deve ajudar as pessoas que

    buscam bons argumentos na confrontao com correntes polticas opostas

    liberdade.

    A minha experincia de que no Brasil existem muitas pessoas que

    pertencem a um destes trs grupos. Mas o livro Leituras sobre o Liberalismo

    tambm pode ser til para pessoas que j sabem, ou pensam que j sabem,

    muito sobre o liberalismo.

    O livro original foi publicado na Alemanha no comeo dos anos noventa do

    sculo passado. Foi ento traduzido par o portugus para ser usado no trabalho

    da Fundao no Brasil.

    Essa nova edio, de 2009, contm algumas alteraes. Como Diretor

    Executivo da Friedrich-Naumann-Stiftung fr die Freiheit no Brasil desde o

    incio de 2007, escrevi este novo prefcio, mas mantive na nova edio a

    introduo original de Detmar Doering. Acrescentei tambm um novo artigo

    sobre o tema Liberdade e Desenvolvimento, sobre cujo tema j falei em

    vrias ocasies em conferncias e seminrios. No Brasil existe grande

    interesse nesse aspecto da liberdade que, com certeza, um dos pontos mais

    fortes do liberalismo: o de que ele estimula o desenvolvimento.

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    Tambm o exterior da antiga edio foi substitudo por uma capa mais

    atraente. Por fim, alguns erros de traduo e de ortografia na antiga edio

    foram corrigidos.

    Espero que, como a sua antecessora, a nova edio de Leituras sobre oLiberalismo seja til para todos os brasileiros que, juntos com a FNF, desejam

    difundir a nossa idia de liberdade neste pas e em todo o mundo.

    Rainer Erkens

    Diretor Executivo

    Fundao Friedrich Naumann para a Liberdade

    So Paulo, julho de 2009

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    Introduo

    Quase no h orientao poltica que possa indicar uma tradio intelectualto importante quanto a do liberalismo. Sob sua bandeira, os maioresintelectos do Ocidente se reuniram, podendo recorrer a tradies de liberdadeantigas e medievais. Ainda assim, a concepo de liberdade somente foiformulada de maneira coerente nos ltimos 300 anos como fundamento detodo um sistema poltico. O liberalismo, assim, , simultaneamente, aincorporao do melhor que a tradio ocidental produziu, e do melhor que amodernidade representa.

    Faz parte da natureza desta concepo de liberdade liberal que abra mo

    da formao de verdades definitivas. Isto tambm diz respeito a ela prpria.No h uma definio concluda do liberalismo. Provavelmente, nunca existir.Isto no se deve apenas ao fato de que, em poltica, sempre surgem novosdesafios que demandam novas respostas liberais. Isto se deve sobretudo aofato de que o liberalismo no foi inventado de uma hora para outra, e simrepresenta a obra de muitos indivduos isolados. Cada um deles contribuiu desua maneira para esta evoluo.

    Esta pequena coletnea de textos clssicos liberais dever mostrar esteriqueza do pensamento liberal. evidente que nenhuma coletnea de textopoderia reclamar para si o cumprimento completo desta tarefa. A fim deprevenir este tipo de crtica, esta coletnea nem levanta esta pretenso. Trata-se, antes de mais nada, da tentativa de despertar o interesse por uma grandetradio de pensamento poltico, apresentando alguns poucos exemplos parasua variedade.

    Os textos escolhidos para este volume abrangem no apenas o grande

    perodo dos escritos de John Locke no sculo XVII, sobre o pice do liberalismono sculo XIX (representado, por exemplo, por Frederic Bastiat), mas tambmautores contemporneos como Popper, Gray ou Nozick.

    Abrangem igualmente um grande nmero de temas. John Stuart Mill sobreeducao, David Hume sobre justia, Wilhelm von Humboldt sobre o objetivodo homem, John Prince-Smith sobre o livre comrcio estes so apenasalguns exemplos.

    Grandes nomes como Adam Smith esto lado a lado com pensadoresinjustamente relegados a um segundo plano, como o americano William Leggett.

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    Sobretudo, porm, apresentada uma srie de posies fundamentaisfilosficas diferentes e, em parte, antagnicas, todas elas prestando-se afundamentar a idia liberal de liberdade.

    Ao passo que Locke emprega direitos do indivduo anteriores formao doEstado, Hume, por exemplo, baseia seu pensamento poltico na suposio deque liberdade e justia somente seriam produtos de desenvolvimento cultural,que encontra sua dinmica nos esforos do indivduo por utilidade. Estaposio desenvolvida de forma extrema por Ludwig von Mises, para quemapenas o indivduo e sua capacidade de clculo econmico so importantes ea rejeita todo pensamento de um direito natural estatizado. Todos os trs, nofinal, porm, chegam mesma concluso, de que a proteo da propriedade

    est entre as mais importantes tarefas do Estado de direito liberal.

    Ao passo que Mill e Ortega y Gasset vislumbram na democracia tambmum possvel risco para a liberdade, para Leggett ela se torna o seu fundamentofilosfico em si.

    Porm, todos estes pontos de partida tm algo em comum: prestam-se idia de liberdade do liberalismo. Prestam-se idia de que todo poder precisaestar atado pela liberdade do indivduo. Prestam-se luta contra toda formaaberta de totalitarismo, bem como ao alerta contra a destruio disfarada daliberdade atravs do intervencionismo estatal bem-intencionado.

    Muitos caminhos se tornam visveis, levando todos a um mesmo objetivo.Este objetivo a sociedade aberta e liberal, baseada no ideal da liberdade decada um e nos princpios do estado de direito e da economia de livre mercado.Refletir sobre os fundamentos desta sociedade (o que esta coletnea de textosprocura incentivar) uma tarefa sempre atual; ou, como formulou Friedrich

    August von Hayek certa vez:

    O principio mais importante, que uma poltica da liberdade para oindividuo a nica poltica verdadeira para o progresso, continua toverdadeiro hoje como o foi no sculo XIX.

    Detmar Doering*

    * Detmar Doering, nascido em 1957, Dr. phil., diretor do Instituto Liberal (Liberales Institut) daFundao Friedrich Naumann para a Liberdade (Friedrich- Naumann-Stiftung fr die Freiheit).

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    Karl R. Popper

    O Liberalismo Algumas TesesO Liberalismo Algumas TesesO Liberalismo Algumas TesesO Liberalismo Algumas TesesO Liberalismo Algumas Teses

    (Sir) Karl Raimund Popper (19021994), com o seu livro Lgica da Pesquisa, publicado em1934, fundou a direo filosfica do racionalismo crtico. De acordo com esta, no existemltimas verdades. O conhecimento humano somente progride atravs da contestao poretapas de hipteses erradas. No seu livro A sociedade aberta e seus inimigos (1945) quese tornou um clssico liberal -, escrito no exlio na Nova Zelndia, por causa dos nazistas,empregou esta idia para uma crtica epocal de todos os modelos de sistema totalitrios, deacordo com sua poca. A teoria cientfica na qual se baseia seu pensamento tornou-se slidofundamento de numerosas obras econmicas e sociolgicas. Entre seus discpulos ecorreligionrios esto, entre outros, Friedrich August von Hayek, Hans Albert e Ralf

    Dahrendorf alguns dos mais importantes pensadores liberais do sculo XX.

    1. O Estado um mal necessrio. Suas competncias de poder nodeveriam ser ampliadas alm do necessrio. Este princpio poderia serchamado de navalha liberal (em analogia navalha de Ockham, ou seja, ofamoso princpio de que seres metafsicos no deveriam ser multiplicados almda medida necessria).

    A fim de demonstrar a necessidade deste mal do Estado -, no me reporto opinio de Hobbes, homo homini lupus. Pelo contrrio: esta necessidade podeser demonstrada at mesmo quando assumimos a opinio homo homini felis,ou at, homo homini angelus em outras palavras, a opinio de que, emvirtude de tamanha brandura ou talvez por bondade angelical, ningumprejudique outrem. Tambm num tal mundo haveria sempre indivduos maisfracos e mais fortes, e os mais fracos no teriam o direito de ser toleradospelos mais fortes; teriam, portanto, uma dvida de gratido para com estes por

    sua bondade em toler-los. Aqueles ento (fortes ou fracos) que consideraminsatisfatrio um tal estado de coisas e acreditam que todos devam ter umdireito de viver e reivindicar a proteo contra o poder dos fortes, reconhecerotambm a necessidade de um Estado que proteja os direitos de todos.

    Porm no difcil demonstrar que o Estado um perigo constante e, sobeste aspecto, um mal, ainda que um mal necessrio. Porque se o Estado devecumprir sua tarefa, ele precisa deter mais poder do que cada cidado

    individual; mesmo quando inventamos instituies que delimitam, na medidado possvel, o abuso deste poder, ainda assim nunca podemos banir

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    completamente este perigo. Ao contrrio, parece que sempre precisamos pagarum preo pela proteo jurdica do Estado, e no apenas sob forma deimpostos, mas at mesmo sob forma de humilhao que temos de suportar (aarrogncia da burocracia). Mas tudo isto uma questo de graduao: tudo

    depende de no pagar um preo alto demais pela proteo jurdica.

    2. A diferena entre uma democracia e um regime dspota consiste em,numa democracia, as pessoas poderem livrar-se do seu governo semderramamento de sangue, mas no num regime dspota.

    3. A democracia no pode (nem deve) fazer caridade a seus cidados. Naverdade, a democracia, por si prpria, nada pode fazer somente os cidados

    de um Estado democrtico podem agir (inclusive, claro, o governo). Ademocracia nada mais do que uma moldura, na qual os cidados podem agir.

    4. No somos democratas porque a maioria sempre tem razo, e simporque instituies democrticas, quando esto arraigadas em tradiesdemocrticas, so de longe as mais inofensivas que conhecemos. Quando amaioria (a opinio pblica) decide em favor de um regime dspota, um democratano precisa, por isso, renunciar s suas convices; mas ter conscincia de que,no seu pas, a tradio democrata no era suficientemente forte.

    5. Simples instituies nunca so suficientes quando no se baseiam emtradies. Instituies so sempre ambivalentes, no sentido de que sem oauxlio de uma slida tradio freqentemente podem atuar justamente nosentido oposto daquele no qual deveriam atuar. Por exemplo, a oposio noparlamento deve grosso modo evitar que a maioria roube o dinheiro doscontribuintes. Porm, lembro-me de um pequeno escndalo num pas doSudeste europeu que foi ilustrativo da ambivalncia desta instituio. Foi o

    caso em que uma quantia maior de suborno foi dividida de maneira justaentre a maioria e a oposio.

    Tradies so necessrias, a fim de criar um elo entre instituies e asintenes e as definies de valores dos indivduos.

    6. Uma utopia liberal, ou seja, um Estado planejado de maneiraracionalista numa tbula rasa sem tradies, uma coisa impossvel. Porque o

    princpio bsico do liberalismo exige que aquelas restries da liberdadeindividual que so inevitveis em virtude do convvio social sejam distribudas,

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    na medida do possvel, por igual (Kant) e, se possvel, sejam reduzidas. Como,porm, podemos aplicar na prtica um tal princpio a priori? Ser quedevemos impedir um pianista de ensaiar, ou seu vizinho de apreciar umatarde tranqila? Todos estes problemas somente podem ser resolvidos

    apelando para tradies e costumes existentes apelando para o sentimentode justia tradicional, ao direito comum, como chamado na Inglaterra - eapelando para aquilo que um juiz imparcial reconhecer como justo. Comotodas as leis somente podem estabelecer princpios gerais, elas precisam serinterpretadas para poderem ter aplicao; no entanto, uma interpretaonecessita, por sua vez, de certos princpios da prtica do dia-a-dia que somenteuma tradio viva pode desenvolver. Isto tudo vale especialmente para osprincpios extremamente abstratos e gerais do liberalismo.

    7. Os princpios do liberalismo podem ser descritos como princpios, comcujo auxlio as instituies vigentes podem ser avaliadas e, se necessrio,limitadas ou alteradas. Eles no so capazes de substituir instituies vigentes.Em outras palavras: o liberalismo uma convico antes evolucionria do querevolucionria (a no ser em relao a um regime dspota).

    8. Entre as tradies, devemos contar entre as mais importantes aquelasque formam o quadro moral (correspondente ao quadro legal dasinstituies) de uma sociedade, e que incorporam o seu senso de justia edecncia tradicional, bem como o grau da sensibilidade moral por elaatingindo. Este quadro moral serve como fundamento, sobre o qual se tornapossvel fazer uma comparao justa entre interesses opostos, ondenecessrio. Este quadro moral evidentemente no imutvel, mas altera-se deforma relativamente lenta. Nada mais perigoso do que a destruio destequadro, desta tradio. (Esta destruio foi pretendida conscientemente pelonazismo.) Em ltima anlise, ela leva a um niilismo cnico violao e

    dissoluo de todos os valores humanos.

    Extrado de: Karl R. Popper. Die ffentliche Meinung im Lichte der Grundstze desLiberalismus (1956); in: ibidem, Auf der Suche nach einer besseren Welt, 6 edio,Mnchen/Zrich 1991 (srie Piper), pgs. 169-172 (com permisso do autor a da

    editora Verlag R. Piper GmbH & Co. KG).

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    Ludwig von Mises

    Liberalismo Um Balano de SucessosLiberalismo Um Balano de SucessosLiberalismo Um Balano de SucessosLiberalismo Um Balano de SucessosLiberalismo Um Balano de Sucessos

    Ludwig von Mises (18811973), um dos principais representantes da escola austraca daeconomia nacional. Seu liberalismo parte quase que exclusivamente da teoria tpica destaescola das consideraes de utilizao individuais. Toda interveno estatal prejudica acapacidade de captar os preos como sinal para escassez. Isto leva contestao cientficado socialismo durante muito tempo ignorada por muitos intelectuais, mas que no final secomprovou como verdadeira que necessariamente fracassa economicamente por suaincapacidade para o clculo racional dos custos. Numa poca em que a idia de liberdadeestava quase que totalmente extinta nos Estados em que se fala alemo, seu livro redigidoem 1927, Liberalismus, representa uma das poucas tentativas corajosas para sua

    justificao. O trao extremamente individualista e marcado por antiestadismo de seupensamento fez com que encontrasse muitos correligionrios, sobretudo nos Estados

    Unidos, onde lecionou aps sua fuga dos nazistas.

    O liberalismo

    Os filsofos, socilogos e economistas do sculo XVIII e do incio do sculo XIXelaboraram um programa poltico que, primeiro na Inglaterra e nos Estados

    Unidos, depois em todo o continente europeu, e finalmente tambm em outraspartes habitadas do globo tornou-se mais ou menos a linha-mestra da polticaprtica. Este programa no foi realizado na ntegra em nenhum lugar e nunca.At mesmo na Inglaterra, considerada a ptria do liberalismo e modelo liberal,jamais se logrou impor todas as exigncias do liberalismo. No resto do mundoem geral, sempre foram assumidas apenas parcelas do programa liberal;outras no menos importantes, porm, foram rejeitadas desde o incio ou pelomenos renegadas depois de pouco tempo. Na verdade, s com algum exagero

    que se pode dizer que o mundo alguma vez tenha atravessado uma era liberal.O liberalismo nunca pde desenvolver seu efeito pleno.

    Pelo menos, a durao infelizmente curta demais do domnio de idiasliberais foi suficiente para alterar a face da terra. Um desenvolvimentoeconmico estupendo iniciou-se. O desencadeamento das foras produtivas dohomem multiplicou a qualidade dos meios de subsistncia. Na vspera daGuerra Mundial ela prpria j o resultado de uma luta agressiva de muitos

    anos contra o liberalismo e que introduz uma poca de combate ainda maisagressivo concepo bsica liberal - o mundo estava incomparavelmente maisdensamente povoado do que jamais em eras anteriores, e cada um destes

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    habitantes podia viver incomparavelmente melhor do que havia sido possvelem sculos precedentes. A prosperidade criada pelo liberalismo reduziuconsideravelmente a mortalidade infantil, que grassava impiedosamente nossculos anteriores, e atravs da melhoria das condies de vida, aumentou a

    mdia de anos de vida. Esta prosperidade no se concentrava apenas numacamada estreita de escolhidos. vspera da Guerra Mundial, nos pasesindustrializados, nos Estados Unidos da Amrica e nos domnios ultramarinosda Inglaterra, o operrio vivia melhor e mais agradavelmente do que aindapouco tempo atrs vivia o nobre. No s podia comer e beber vontade; podiatambm proporcionar uma educao melhor aos seus filhos, podia, se quisesse,participar da vida intelectual de seu povo, e podia, se dispusesse de suficientetalento e fora, ascender s camadas mais altas sem dificuldades. Entre os

    homens que se encontravam na ponta da pirmide, justamente naquelespases que mais haviam avanado no liberalismo, no eram maioria aqueles jprivilegiados atravs do seu nascimento de pais ricos e de alta extraosocial, e sim aqueles que, por fora prpria e favorecidos pelas circunstncias,tinham comeado de baixo, de condies modestas. As barreiras que emtempos passados separavam senhores e servos haviam desaparecido. Somentehavia cidados com direitos iguais. Ningum era discriminado ou mesmoperseguido em virtude de sua nacionalidade, sua etnia, sua convico ousua crena. Internamente, haviam acabado as perseguies polticas ereligiosas, e, externamente, as guerras comearam a espaar-se. Os otimistasj acreditavam que se iniciaria a era da paz permanente.

    No foi o que aconteceu. No sculo XIX, o liberalismo criou opositoresviolentos e fortes, que conseguiram anular novamente uma grande parte dasconquistas liberais. O mundo atualmente no quer mais saber do liberalismo.Fora da Inglaterra, a designao liberalismo at mesmo proscrita; emborana Inglaterra ainda existam liberais, uma grande parte s o no nome, na

    verdade so antes socialistas moderados. Em toda parte, o podergovernamental hoje em dia encontra-se nas mos de partidos antiliberais. Oprograma do antiliberalismo desencadeou a Guerra Mundial e levou os povosa se fecharem atravs de proibies mtuas de importao e exportao,atravs de taxas aduaneiras, proibies de locomoo e medidas similares. NoInterior dos pases isto levou a experincias socialistas, cujo resultado foi areduo da produtividade do trabalho e, assim, o crescimento da penria emisria. Quem no cerrar propositadamente os olhos precisa reconhecer em

    todos os lugares os sinais de uma catstrofe prxima da economia mundial. Oantiliberalismo est conduzindo a um colapso geral da moralidade.

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    Esta posio puramente externa e materialista voltada para as coisas

    mundanas e efmeras muitas vezes foi motivo de recriminao contra o

    liberalismo. A vida do homem, diz-se, no se limita a comer e beber. Haveria

    necessidades mais elevadas e importantes do que comida e bebida, habitao

    e vesturio. Tambm a maior riqueza no daria ao homem a felicidadedeixando seu ntimo, sua alma, insatisfeitos e vazios. Teria sido o maior erro do

    liberalismo o fato de no ter sabido oferecer nada aos anseios mais profundos

    e nobres do homem.

    Porm, os crticos que externam esta opinio, com isto apenas demonstram

    que tm uma viso muito incompleta e materialista destes anseios mais

    elevados e nobres. Com os meios disposio da poltica humana, pode-se

    muito bem tornar as pessoas ricas ou pobres, mas nunca se conseguir torn-las felizes e satisfazer seus anseios mais ntimos e profundos. A, todos os

    meios auxiliares externos esto fadados ao insucesso. Tudo o que a poltica

    pode fazer eliminar as causas externas de dor e sofrimento; ela pode

    estimular um sistema que alimenta os famintos, vista os despidos e abrigue os

    desabrigados. Mas felicidade e satisfao no esto ligados a alimento,

    vesturio e habitao, mas sim sobretudo quilo que o homem preza em seu

    ntimo. No por menosprezar os bens intelectuais que o liberalismo dirige

    sua ateno exclusivamente para o aspecto material, e sim porque est

    convencido de que o que h de mais elevado e mais profundo no homem no

    pode ser atingido atravs de regulamentao externa. Procura apenas criar

    bem-estar exterior porque sabe que o interior, a riqueza da alma, no chega ao

    homem de fora, e sim apenas do prprio peito. No deseja criar nada mais do

    que as condies exteriores para o desenvolvimento da vida interior. E no

    pode haver dvidas de que o cidado do sculo XX, que vive num certo bem-

    estar, possa satisfazer mais facilmente suas necessidades interiores do que,

    por exemplo, o cidado de sculo X, o qual no encontrava sossego em virtude

    da preocupao com a manuteno insuficiente da sua existncia e os perigosque o ameaavam por parte de inimigos.

    Evidentemente, quem juntamente com os correligionrios de algumas

    seitas asiticas e crists de Idade Mdia compartilha o ponto de vista do

    ascetismo completo, quem coloca a ausncia de necessidades e a pobreza dos

    pssaros na floresta e dos peixes na gua como ideal para o comportamento

    do homem, a este, claro, nada podemos responder quando recrimina o

    liberalismo por sua posio materialista. Apenas podemos pedir-lhe que nosdeixe seguir tranquilamente nossos caminhos, assim como tambm no o

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    impedimos de tornar-se feliz sua maneira. Que ele se enclausure ento emsua ermida, longe do mundo e da humanidade.

    A grande maioria da massa de nossos contemporneos no tem

    compreenso para com os ideais ascticos. Aquele que, no entanto, tenharejeitado o princpio de modo de vida asctico, no poder recriminar oliberalismo por seu empenho no sentido de bem-estar exterior.

    O objetivo do liberalismo

    muito difundida a opinio de que o liberalismo se distingue de outrasdirees polticas pelo fato de que colocaria e defenderia os interesses de uma

    parcela da sociedade dos proprietrios, dos capitalistas, dos empresrios -acima dos interesses das outras camadas. Esta afirmao est totalmenteerrada. O liberalismo sempre se voltou para o bem do todo, e nunca o bem dequaisquer grupos especiais. Era isto o que queria expressar a famosa frmulados utilitrios ingleses: A maior felicidade para o maior nmero, de umamaneira, porm, pouco hbil. Historicamente, o liberalismo foi a primeiradireo poltica que desejava servir ao bem de todos e no ao de camadasespeciais. Distingue-se do socialismo, que tambm pretende empenhar-se pelo

    bem de todos, no pelo objetivo que visa, mas pelos meios que escolhe paraatingir este objetivo ltimo.

    Se algum afirmar que o sucesso da poltica liberal seja ou tenha que sero favorecimento de interesses especiais de determinadas camadas dasociedade, ento isto uma questo sobre a qual se pode discutir. uma dastarefas que se coloca a nossa representao do programa liberal a de mostrarque esta recriminao no tem absolutamente nenhuma justificativa. Mas no

    se pode acusar aquele que o recrimina de deslealdade, j de antemo; poderiaser que ele coloque sua afirmao errada, segundo a nossa concepo deboa f. Em todo caso, aquele que se levanta contra o liberalismo dessa maneiraadmite que os propsitos do liberalismo so puros e que nada mais deseja doque o que afirma desejar.

    Bem diferente o caso daqueles crticos do liberalismo que acusam-node querer servir aos interesses no da coletividade, e sim aos interesses especiaisde camadas isoladas. Estes crticos so simultaneamente desleais e ignorantes.Com a escolha deste tipo de luta, demonstram que intimamente tm conscincia

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    da fragilidade de sua prpria causa. Utilizam armas envenenadas porque no

    podem esperar obter sucesso de outra forma.

    Quando o mdico mostra ao doente que pede um alimento nocivo para si,

    que a satisfao deste desejo seria desacertada, ningum ser tolo a pontode dizer: O mdico no quer o bem do doente; aquele que quiser o bem dele,

    deve conceder-lhe o prazer do alimento que aprecia. Todos compreendero

    que o mdico recomenda ao doente renunciar ao conforto que a ingesto

    do alimento nocivo concede, a fim de evitar danos ao corpo. Porm, na vida

    social, o querem diferentemente. Quando o liberal faz uma recomendao

    contra determinadas medidas populares porque delas espera conseqncias

    danosas, a xingam-no de inimigo do povo e elogiam o demagogo, o qual

    recomenda aquilo que parece ajudar no momento, sem considerarconseqncias futuras danosas.

    O modo de agir sensato distingue-se do modo de agir insensato atravs do

    fato de que traz sacrifcios provisrios; estes sacrifcios provisrios so apenas

    sacrifcios aparentes, j que so compensados pelo sucesso que surge

    posteriormente. Aquele que evita o alimento saboroso, mas nocivo, faz apenas

    um sacrifcio provisrio, aparente; o sucesso a no-incidncia do dano

    demonstra que ele no perdeu, mas sim ganhou. Porm, para agir desta forma

    necessrio o reconhecimento das conseqncias da ao. Disto se aproveita

    o demagogo. Ope-se ao liberal, que exige o sacrifcio provisrio aparente,

    destrata-o como tendo o corao duro e sendo inimigo do povo. A si mesmo, o

    demagogo louva como filantropo e populista. Ele sabe como comover o corao

    dos ouvintes at as lgrimas quando recomenda suas propostas atravs da

    meno de misria e necessidade.

    A poltica antiliberal uma poltica de dilapidao de capital. Recomenda

    que se cuide do presente custa do futuro. Isto justamente o mesmo queocorre no caso do doente do qual falvamos antes; em ambos os casos, ao

    prazer mais substancial no momento ope-se uma grave desvantagem no

    futuro. Quando em vista deste dilema se fala que a dureza de corao se ope

    filantropia, ento isto desonesto e mentiroso. Esta nossa recriminao

    dirige-se no apenas contra os polticos do dia-a-dia e contra a imprensa dos

    partidos antiliberais. Quase todos os escritores poltico-sociais utilizaram

    este modo de luta desonesto.

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    O fato de haver privao e misria no mundo no um argumento contra

    o liberalismo, como est disposta a assumir a limitao intelectual do leitor de

    jornais comum. O liberalismo quer justamente eliminar a privao e a misria.

    Considera os meios que prope como os nicos que se prestam a atingir esta

    meta. Quem acredita que conhece um caminho melhor ou tambm apenas umoutro caminho para esta meta, que o comprove. Porm, a mera afirmao de

    que os liberais no almejam o bem de todos os segmentos da sociedade e sim

    o de um grupo especial, no substitui de maneira alguma esta comprovao.

    O fato de haver privao e misria tambm no seria uma prova contra o

    liberalismo at mesmo se o mundo hoje em dia seguisse uma poltica liberal.

    Pois ainda assim permaneceria em aberto a questo, se com outra poltica no

    haveria mais privao e misria. Em vista do fato de que atualmente, em todolugar, atravs de poltica antiliberal, o funcionamento da instituio da

    propriedade particular restringido e obstrudo, naturalmente

    completamente errado querer concluir qualquer coisa contra a exatido dos

    princpios liberais a partir do fato de que no presente nem tudo est como se

    desejaria. O que liberalismo e capitalismo atingiram se reconhece ao comparar

    o presente s condies da Idade Mdia ou do sculo I da Idade Moderna. O

    que poderia alcanar, se fossem perturbados, somente pode ser entrevisto

    atravs de consideraes tericas.

    Liberalismo e capitalismo

    Uma sociedade na qual os princpios liberais so realizados, normalmente

    chamada de sociedade capitalista, e o regime da sociedade, de capitalismo.

    Como em todos os lugares na poltica econmica somente temos uma

    aproximao mais ou menos ao liberalismo, ento a situao que hoje em dia

    impera no mundo somente nos fornece uma imagem incompleta daquilo quesignificaria e poderia alcanar o capitalismo plenamente desenvolvido. Mas

    ainda assim perfeitamente justificado chamar a nossa era de era do

    capitalismo porque tudo aquilo criado pela riqueza da nossa poca

    decorrente das instituies capitalistas. Somente quilo que h de idias

    liberais vivas na nossa sociedade, quilo que a nossa sociedade contm do

    capitalismo, devemos que a grande massa de nossos contemporneos pode

    levar uma vida que est muito acima daquela que ainda h poucas geraes

    era possvel aos ricos e privilegiados.

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    A frase demaggica usual evidentemente coloca esta questo de maneira

    completamente diferente. Ao escut-la poderamos crer que todos os

    progressos da tcnica de produo beneficiam exclusivamente uma pequena

    camada, ao passo que as massas empobrecem cada vez mais. No entanto, basta

    um curto momento de reflexo para reconhecer que os resultados de todas asnovidades tcnicas e industriais produzem uma melhoria da satisfao das

    necessidades das massas. Todas as grandes indstrias que produzem produtos

    finais trabalham diretamente, todas as indstrias que produzem produtos

    semi-acabados e mquinas, indiretamente para o bem das grandes massas. As

    grandes revolues industriais das ltimas dcadas, tanto quanto as grandes

    revolues industriais do sculo XVIII que so descritas com a expresso no

    muito feliz de revoluo industrial, em primeira linha levaram a uma melhor

    satisfao das necessidades das massas. O desenvolvimento da indstria deconfeco, da produo mecnica de calados e da indstria alimentcia, por

    sua natureza como um todo beneficiou as grandes massas; foram elas que

    fizeram com que as massas atualmente estejam mais bem nutridas e vestidas

    do que jamais antes. Mas a produo em massa no cuida apenas da

    alimentao, moradia e vesturio, mas tambm de outras necessidades da

    grande massa. A imprensa uma indstria de massa, assim como a indstria

    de filmagem, e at mesmo os teatros e outros centros culturais cada dia mais

    se tornam locais de freqncia das massas.

    Ainda assim, hoje em dia graas a uma agitao intensa dos partidos

    antiliberais que distorcem os fatos -, relaciona-se viso de um aumento de

    misria e uma pauperizao generalizada do mundo s definies liberalismo

    e capitalismo. Toda essa demagogia no conseguiu desvalorizar de todo os

    termos liberais e liberalismo na medida em que gostaria de t-lo feito. Afinal,

    ainda no possvel ignorar que, nestes termos, apesar de todos os esforos da

    agitao antiliberal, ainda est contido algo daquilo que cada pessoa s sente

    quando ouve a palavra liberdade. Por isso, a agitao antiliberal renuncia aouso excessivo da palavra liberdade e prefere relacionar as infmias que inventa

    para o sistema com o termo capitalismo. Na palavra capitalismo encerra-se a

    concepo de um capitalista duro, que no pensa em nada alm do seu

    enriquecimento, ainda que este seja possvel somente atravs da explorao

    de seus concidados. O fato de que uma ordem social organizada de maneira

    verdadeiramente liberal estruturada de tal forma que para o empresrio e

    capitalista o caminho para a riqueza leva exclusivamente atravs do

    abastecimento melhor de seus concidados, com aquilo que eles prprioscrem ser necessrio, torna-se evidente apenas para muitos poucos, quando

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    criam sua imagem do capitalista. Ao invs da falar de capitalismo, quando so

    mencionados os imensos progressos na manuteno e abastecimento das

    massas, a agitao antiliberal sempre fala apenas do capitalismo ao

    mencionar aqueles fenmenos que somente se tornaram possveis porque o

    liberalismo foi passado para trs. O fato de o capitalismo ter colocado disposio das grandes massas um gnero alimentcio e estimulante saboroso

    sob forma do acar nunca dito. Do capitalismo somente se fala em relao

    ao acar quando num pas o preo do acar aumentado acima do preo de

    mercado mundial, atravs de um cartel. Como se isso pudesse at mesmo ser

    imaginado com realizao dos princpios liberais! Nos Estados de administrao

    liberal nos quais no h taxas alfandegrias, tambm no seriam imaginveis

    cartis que poderiam impelir o preo de uma mercadoria para um nvel acima

    do preo do mercado mundial.

    O raciocnio atravs do qual a demagogia antiliberal chega a imputar

    justamente ao liberalismo e ao capitalismo todos os excessos e ms

    conseqncias da poltica antiliberal o seguinte: parte-se da afirmao de

    que os princpios liberais visam o incentivo dos interesses dos capitalistas e

    empresrios contra os interesses das demais camadas da populao;

    liberalismo seria uma poltica em favor dos ricos contra os pobres. Mas

    observa-se que numerosos empresrios e capitalistas, sob certas condies,

    defendem taxas protecionistas; outros, por sua vez, ou seja, os fabricantes de

    armamentos, defendem os armamentos de guerra, e assim, rapidamente se

    declara isto como poltica capitalista. Na verdade, a coisa bem outra. O

    liberalismo no uma poltica no interesse de qualquer camada social

    especial, e sim uma poltica no interesse da comunidade. Assim, no correto

    afirmar que os empresrios e capitalistas teriam qualquer interesse especial

    em defender o liberalismo. Seu interesse em defender o liberalismo

    exatamente o mesmo de qualquer outra pessoa. Pode ser que em casos

    isolados o interesse especial de alguns empresrios e capitalistas seja idnticoao programa do liberalismo; porm, sempre h interesses especiais de outros

    empresrios ou capitalistas contrrios. A situao no to simples como

    aqueles que suspeitam de interesses e interessados por todo canto

    imaginam. O fato, por exemplo, de um Estado introduzir taxas alfandegrias

    para o ferro no pode ser explicado simplesmente com base na constatao de

    que isto auxilia os industriais do ferro. H no pas ainda outros interessados,

    tambm entre os empresrios, e de toda maneira, os beneficirios da taxa do

    ferro so uma nfima minoria. Tambm no pode ter sido suborno, porquetambm os subornados podem ser somente uma minoria, e ento: por que

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    razo apenas os partidrios das taxas protecionistas subornam, e no tambm

    seus opositores, os partidrios do livre comrcio? A ideologia que possibilita as

    taxas protecionistas no criada nem pelos interessados nem por aqueles

    que so subornados, e sim pelos idelogos que do idias ao mundo, pelas

    quais todos se orientam.

    Na nossa era, em que imperam as idias antiliberais, todos pensam de

    maneira antiliberal, assim como h cem anos a maioria pensava de forma

    liberal. Se atualmente muitos empresrios defendem as taxas protecionistas,

    ento isso nada mais do que a imagem que o antiliberalismo assume para

    eles. Isto no tem nada a ver com liberalismo.

    De: Ludwig von Mises, Liberalismus, Jena 1927, pgs. 1-11.

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    John Locke

    Em Defesa da TolernciaEm Defesa da TolernciaEm Defesa da TolernciaEm Defesa da TolernciaEm Defesa da Tolerncia

    O filsofo ingls John Locke (1632-1704) considerado por muitos historiadores overdadeiro pai do liberalismo. Sua filosofia poltica baseia-se na idia de um contrato socialfirmado com o objetivo de proteger direitos individuais e a propriedade individual. Com estafilosofia, inspirou principalmente o texto da Declarao de Independncia americana. Almdisso, foi um defensor da tolerncia religiosa numa poca em que isto era ainda a exceo,o que se torna evidente no extrato de texto abaixo, de sua Carta sobre a Tolerncia (1689).

    A coletividade a mim parece uma sociedade humana, cuja constituio

    tem por fim somente a satisfao, manuteno e o estmulo dos interessesdos cidados.

    Os interesses dos cidados o termo com que designo vida, liberdade,sade, ausncia de dor fsica e a propriedade de coisas exteriores tais comodinheiro, terras, casas, objetos de decorao e outras similares.

    a obrigao de autoridade governamental, atravs da aplicao imparcial

    de leis iguais para todos, garantir ao povo em geral, e a cada um de seussditos em especial, a propriedade justa destas coisas que fazem parte da vida.Se algum pretendesse atrever-se a violar as leis da justia e eqidadepblicas, estabelecidas para a manuteno destas coisas, ento sua presunodeveria ser inibida pelo temor de um castigo que o prive daqueles interessesou bens ou reduza estes, dos quais, de outra maneira, ele poderia e deveriausufruir. Mas v-se que ningum aceita voluntariamente um castigo que oprive de qualquer parte de seus bens ou at mesmo de sua liberdade ou de sua

    vida. Por isso, a autoridade est armada do poder e da fora de todos os seussditos para castigar aquele que fere os direitos de outro.

    O fato de ento o poder legal da autoridade em sua ntegra apenas seestender a estes anseios dos cidados, e de o poder do Estado em suatotalidade, seu direito e seu domnio estar atado e limitado pela preocupaoexclusiva com o incentivo a estas coisas faz que ele no possa, de maneiraalguma, ser amparado para englobar a salvao das almas isto o que asconsideraes a seguir me parecem demonstrar em abundncia.

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    Primeiramente, porque a preocupao com as almas no foi atribuda nem

    um pouco a mais autoridade do Estado do que a outras pessoas. Quero dizer,

    no lhe foi atribuda por Deus, porque no parece que Deus tenha jamais

    outorgado a uma pessoa tal autoridade sobre outro individuo como a de forar

    algum a aceitar sua religio. Um tal poder tambm no pode ser atribudo autoridade por aprovao do povo, porque nenhum homem pode abrir mo de

    sua prpria salvao a ponto de ceder cegamente escolha de um outro, seja

    soberano ou sdito, de prescrever-lhe qual credo ou servio religioso ele deva

    aceitar. Porque ningum pode, ainda que o deseje, adaptar sua crena aos

    ditados de outros. Toda a vida e todo o poder da verdadeira religio residem na

    certeza interior e absoluta do julgamento, e nenhuma crena crena sem

    acreditar na sua veracidade. Qualquer que seja a profisso de f que

    declaremos, qualquer que seja o servio religioso exterior ao qual nosassociemos, se em nosso prprio julgamento no estivermos inteiramente

    tranqilizados de que ele verdadeiro e agradvel a Deus, ento uma tal

    profisso de f e uma tal ao, longe de estimular a nossa salvao, na

    verdade so grandes obstculos a ela. Pois quando o fazemos desta maneira,

    ao invs de expiarmos outros pecados atravs do exerccio da religio quero

    dizer, quando louvamos o Todo Poderoso desta maneira, que consideramos no

    lhe seja agradvel acrescentamos ao nmero de nossos outros pecados ainda

    o da hipocrisia e o do desprezo de sua majestade divina.

    Em segundo lugar, a preocupao com as almas no pode ser da

    competncia da autoridade do Estado, porque o poder desta est contido

    somente na obrigatoriedade exterior; porm, a religio verdadeira e salvadora

    est na certeza interior do julgamento, sem a qual nada pode ser aceitvel

    para Deus. E tal a natureza da capacidade de julgamento que no possvel

    for-la a crer em algo atravs da violncia. Confisco dos bens, masmorra,

    tortura, nada disso pode ter qualquer efeito sobre a alterao do julgamento

    que os homens formaram sobre as coisas.

    Por ltimo, queremos examinar o que a obrigao da autoridade nas

    questes relativas tolerncia; certamente, ela considervel.

    J demonstramos que a preocupao com as almas no da competncia

    da autoridade, quero dizer, no uma preocupao inerente autoridade, se me

    permitem express-lo dessa forma, que existe em disposies atravs de leis

    ou obrigatoriedade atravs de punies. Pois uma preocupao benevolente,que consiste em ensinamento, advertncia e convico, no pode ser vedada a

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    ningum. Por isso, a preocupao pela salvao da alma de cada um competea ele mesmo e deve ser deixada a seu critrio. Mas o que fazer, se ele sedescuidar da salvao da sua alma? Respondo: o que fazer, se ele se descuidarde sua sade ou de suas posses coisas mais prximas ao regimento da

    autoridade do que a anterior? Dever a autoridade, atravs de uma leiexplcita, tomar providncias para que um tal indivduo no se torne pobre ouenfermo? Leis, na medida do possvel, procuram providncias para que os bense a sade dos sditos no sejam violados atravs de fraude ou ato de violnciade terceiros; no os guardam contra descaso ou m administrao dos prpriosproprietrios. Ningum pode ser obrigado a ser rico ou saudvel, semconsiderar se ele mesmo o deseja ou no. Sim, at mesmo Deus no salvar oshomens contra a sua vontade. Suponhamos que um soberano desejasse acima

    de tudo obrigar seus sditos a amontoarem riquezas ou a manterem a sadee a fora de seus corpos. Ento, atravs de uma lei, deveria ser previsto quedevessem consultar apenas mdicos romanos, e que todos fossem obrigados aviver de acordo com as prescries destes? Ou ento no dever ser ingeridonenhum medicamento, nenhum caldo que no tiver sido preparado noVaticano ou em Genebra, por exemplo? Ou estes sditos deveriam, a fim deenriquecerem, ser todos obrigados por lei a se tornarem comerciantes oumsicos? Ou algum deveria tornar-se comerciante de produtos alimentciosou ferreiro, porque alguns, nestas profisses, tm boa renda com suas famliase at mesmo enriquecem? Porm, poder-se-ia dizer, h mil caminhos para aprosperidade, mas apenas um caminho para o cu. Bem dito, realmente,sobretudo por aqueles que so partidrios de obrigar as pessoas a tomarem umoutro caminho. Pois se houvesse vrios caminhos que levassem para l, entono restaria sequer um pretexto para obrig-los. No entanto, se avano sobextremo esforo no caminho que, de acordo com a geografia santa, leva emlinha reta a Jerusalm, por que ento sou surrado e maltratado por outros, emvirtude de no usar botas de cano alto, de cabelo no apresentar o corte

    adequado, de eu talvez no ser submergido em gua da maneira correta, decomer carne ou qualquer outro prato em viagem que faz bem ao meuestmago, de evitar certos caminhos errados que me parecem levar a moitasespinhosas ou abismos, de escolher trilhar dentre os diversos caminhos quetm a mesma direo aquele que me parece ser o mais direto e limpo, de evitara companhia de alguns viajantes que so menos srios, e de outros que somais taciturnos do que deveriam ser, ou finalmente, em virtude de eu seguirum lder que se veste ou de branco e est corado com uma mitra, ou no. Se

    refletirmos bem, certamente descobriremos que so geralmente coisas topouco importantes como estas que (sem prejuzo para religio e salvao da

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    alma, se no so at acompanhadas de superstio e hipocrisia) tanto podemser observadas quanto ignoradas. Quero dizer, so coisas como estas que criaminimizades irreconciliveis entre irmos cristos, embora estes na verdadeconcordem quanto parte verdadeiramente fundamental da religio.

    Porm, concedamos a estes fanticos, que condenam tudo o que nocorresponde sua moda, que destas circunstncias se originam caminhosdistintos que indicam direo diferente. O que isso nos leva a concluir? Hapenas um destes que o verdadeiro caminho para a salvao eterna, mas emvista da grande variedade de caminhos que os homens trilham, ainda duvidoso qual seria o acerto. A, nem a preocupao com a natureza vil nem odireito da legislao da autoridade revelam o caminho que leva ao cu com

    maior certeza do que o revelam a pesquisa e o estudo de cada indivduo. Tenhoum corpo frgil que desmoronou sob uma molstia consumptiva, para a qual,suponho, s h um remdio mas um remdio desconhecido. Seria isto entoda competncia da autoridade, prescrever-me um medicamento, porque s hum e porque desconhecido? Por s haver um caminho para que eu escape damorte estarei eu seguro, se fizer o que quer que a autoridade ordene? Taiscoisas, que cada um deve examinar com sinceridade em si mesmo e cujoconhecimento ele deve atingir atravs de reflexo, estudo, pesquisa eempenho prprio, no podem ser consideradas a profisso especial dequalquer tipo de pessoa. Soberanos, entretanto, detm maior poder sobreoutras pessoas por nascena, mas so iguais em sua natureza. Nem o direitonem a arte de governar necessariamente acarretam o conhecimento seguro deoutras coisas e, muito menos, da verdadeira religio. Porque, se assim fosse,como poderia ter acontecido que os senhores da Terra divergem tanto entre siem questes religiosas?

    Extrado de: John Locke, Uma Carta sobre a Tolerncia (1689), al./ingl. trad. e publ. p.J. Ebbinghaus, Hamburgo 1957. pgs. 13-15, 43-47.

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    William Leggett

    Os Direitos do PovoOs Direitos do PovoOs Direitos do PovoOs Direitos do PovoOs Direitos do Povo

    William Leggett(1801-1839), como editor de duas revistas nova-iorquinas, a Evening Poste a Plaindealer, foi o mais influente publicista da ala do laissez-faire dos partidrios dopresidente americano Andrew Jackson (1829-1837). O mandato deste presidente tidocomo o verdadeiro apogeu do liberalismo clssico nos EEUU, no qual se conseguiu reduzirdrasticamente o poderio do Estado. Leggett, nos seus ensaios escritos num estiloextremamente elegante, defendia o livre comrcio, os direitos individuais dos estados e umademocracia radicalmente limitada atravs de barreiras constitucionais, e era um dos mais

    ferozes opositores da escravido nos estados sulistas.

    Em seu ltimo discurso ao Congresso, o presidente dos Estados Unidos 1

    expressa o seguinte pensamento notvel, que ser o tema de um curtocomentrio: A suposio de que nosso governo, institudo para o bem dopovo, por este mesmo motivo tambm tenha que dispor de poder para realizaraquilo que aparentemente sirva ao bem-estar pblico, um engano a que estsujeita a sucumbir at mesmo uma ndole honesta.

    Quem acompanhou atentamente o curso de nosso governo federal e dosgovernos de cada estado desde os seus primrdios, na nossa opinio deve estarprofundamente convencido de que um dos verdadeiros grandes males do nossoEstado decorre do exagerado nmero de leis. Provavelmente, e at mesmo comsegurana, pode-se afirmar que a soma das leis promulgadas pelo Congressoe pelos estados chega a vrios milhares por ano. Ser que isto quer dizer queo povo honesto dos Estados Unidos exige ser estorvado e molestado por tantosgrilhes, ou que no se possa manter nenhuma ordem sem que se lhecoloquem algemas a cada ano atravs de novas leis e determinaes? Cada leisuprflua, no mbito da liberdade de ao, uma inveno maldosa edesnecessria, e prejudica os DIREITOS RESERVADOS AO POVO. Queremosanalisar aqui de que direitos se trata.

    Originalmente, todos os governos foram criados para proteger a pessoa e apropriedade, e o povo como tal outorga aos seus soberanos apenas aquelepoder imprescindvel para atingir estes grandes objetivos. O povo mantmtodas as atribuies que no delega desta forma, e assim pode-se consider-

    1. O Presidente Andrew Jackson, 1829-37.

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    las como direitos reservados ao povo. No que diz respeito definio dos

    objetivos governamentais, todos os autores concordam em que se trata

    daqueles que acabamos de especificar, ou seja, da proteo dos direitos

    reclamados pessoa e propriedade. O povo outorgou tudo o que se presta a

    estes fins, ao passo que manteve aquilo que no se presta a estes fins. Que seproteja suas pessoas e sua propriedade, o resto ele mesmo far. Ele no

    deseja um governo que lhe estipule normas em seus assuntos particulares ou

    que lhe prescreva o quanto tenha que se esforar e distribua os resultados de

    seus esforos. No deseja legisladores de bem falantes, nem a interveno do

    Executivo em seu trabalho e suas reas, e nem o poder judicirio para a

    regulamentao de seus litgios particulares. Exige leis genricas que

    impeam que pessoas e propriedades de terceiros sejam violadas, ao passo que

    seus prprios membros e sua propriedade permaneam intocados.

    A fim de atingir estes objetivos fundamentais na instituio de um

    governo, nunca se torne necessrio que a uma classe isolada dentro da

    comunidade sejam atribudos privilgios de que outros no desfrutem em

    igual medida. Tais privilgios destruiriam a grande meta de todos os governos,

    porque atravs disto facilmente se cria ou, no mnimo, se fortalece uma

    distribuio desigual de riqueza e influncia, da qual se originam aqueles

    perigos para a pessoa e a propriedade dos quais justamente todos os governos

    deveriam proteger. No se pode evitar que uma tal evoluo tende a incentivar

    a fora dos fortes e correspondentemente tambm a imbecilidade dos fracos,

    de maneira que estes ltimos esto sujeitos possibilidade de violaes

    efetivas de seus direitos em relao pessoa e propriedade.

    Entre os direitos que o povo dos Estados Unidos reservou explicitamente

    para si mesmo, contava-se uma igualdade plena dos direitos civis. Isto o

    direito natural de cada povo e permanece sendo uma coisa natural, desde que

    no o transfira explicitamente. Ao povo dos Estados Unidos, porm, ele nopermanece tacitamente reservado, e sim, -lhe garantido e assegurado como

    importante princpio fundamental e reconhecido na Constituio do nosso

    governo federal e nas constituies de cada estado.

    A nica rea na qual o povo dos Estados Unidos cedeu aos seus

    representantes o direito de intervir em seus prprios negcios e objetivos o

    comrcio, e a razo para tanto evidente. O governo teve que ser imbudo de

    um tal poder para fixar normas e taxas vlidas para todos, e firmar contratoscomerciais com naes estrangeiras. Seno, no teria havido um comrcio

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    exterior regular e duradouro; cada indivduo poderia ento firmar seus acordos

    pessoais, sem ater-se a nenhuma regra, e assim ao governo somente restaria

    a alternativa de ou abandonar os nossos navios e o comrcio ao seu prprio

    destino, ou entrar numa guerra, a fim de proteger aqueles que no pudesse

    controlar. E a termina o poder de regular os assuntos da economia. Para osobjetivos de um bom governo, em relao a qualquer outra rea da

    comunidade, ele no era necessrio e nunca foi concedido pelo povo, nem

    implcita nem explicitamente.

    No entanto, se analisarmos o curso da legislao nos Estados Unidos

    desde a aceitao dos diferentes governos institudos, constatamos que as

    corporaes legislativas agiram e sistematicamente no sentido de destroar a

    estrutura interna dos direitos reservados ao povo. Nove entre dez de suas leisconsistiam em violaes contra aquele princpio magnfico de direitos iguais,

    sem cuja constante delimitao nenhuma nao consegue jamais manter sua

    liberdade durante um perodo mais longo. Os representantes do povo, com o

    tempo, apoderaram-se de todos aqueles direitos e os exerceram, direitos

    esses que, se os nossos negcios de governo fossem administrados de forma

    ordeira, ficariam reservados ao exerccio pelo povo. No consideraram como

    sendo sua tarefa a criao de leis para a comunidade, mas sim para uma

    minoria; no a manuteno irrestrita dos direitos do povo, mas sua venda

    espria a corporaes. Corporaes para fins beneficentes pois as pessoas

    somente podem dar algo aos pobres quando esto reunidas numa corporao;

    corporaes para fins educativos pois, atualmente, as crianas em via de

    regra s aprendem o abecedrio numa instituio com direitos exclusivos;

    corporaes para fiar e tecer pois roda de fiar e lanadeira somente se

    movimentam quando esto incorporadas -, corporaes para isto e aquilo, e

    para todos os fins que o gnio inventivo de um especulador pode imaginar.

    Cada uma destas corporaes no apenas desfruta de privilgios de que os

    demais cidados so privados, e das quais apenas pessoas de posses podemparticipar, porque o estoque bsico destas corporaes dinheiro, dinheiro,

    dinheiro; mas cada uma destas corporaes viola tambm o direito reservado

    grande corporao do povo. Com isso, cada corporao destri uma parte da

    soberania do povo por algum tempo, ou para sempre, ou atrapalha o individuo

    em seus esforos econmicos, criando um rival que tem efeitos destrutivos

    sobre o seu bem-estar econmico.

    Desta maneira, o nosso governo nacional e os governos de cada estado ath pouco tempo ocupavam-se em roubar os direitos reservados grande

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    corporao do povo, transferindo-os ou vendendo-os a pequenos grupos depessoas de posses, de forma que estas, com o auxilio de certos privilgios, setornavam aptas a se unir com maior xito contra os direitos do indivduo eseus esforos econmicos. O povo estava entre duas frentes. De um lado, o

    Congresso criou um grande banco e distribui milhes a grandes corporaes emtodos os setores; de outro lado, os estados criavam novos grilhes sob formade todos os tipos possveis de corporaes privilegiadas, das quais cada umagovernava seu prprio pequeno setor; cada uma engolia o negcio de umindividuo; cada uma fixava os preos das mercadorias e dos salrios/hora cada uma um distrito eleitoral corrupto que produzia deputados do Congresso.Houve uma poca em que estes distritos eleitorais corruptos como naInglaterra, representavam a maioria dos deputados do Congresso! No admira

    que proteo e proibio, melhorias internas e privilgios para corporaeseram quase as nicas palavras que se escutavam naquela honrada corporao.No admira que a voz do povo se assemelhasse de algum clamando deselva, e que, se no existisse aquele Andrew Jackson, honesto, corajoso, dealto nvel intelectual e com idias claras, e seus respeitveis assessores,nem um trao dos direitos reservados ao povo teria sobrevivido ao princpiofuncional que aquele grande e sbio homem contesta, ou seja, que nossogoverno, institudo para o bem do povo, por este mesmo motivo tambmtenha que dispor do poder para realizar aquilo que aparentemente sirva aobem-estar pblico?

    Um governo que aprova um tal princpio pode fazer de tudo a pretexto deagir pelo bem pblico. Torna-se um mero instrumento de polticos intrigantes,de especuladores interessados ou de entusiastas loucos. Com o tempo,concentra em si mesmo todos os direitos reservados ao povo; transforma-seno grande rbitro do bem-estar do indivduo; e assim tornamo-nos repentinamente vtimas de um novo tipo de tirania, da tirania de um

    sistema de leis que ns prprios fizemos. Resta aguardar se as nossas correntestornar-se-o mais leves porque as forjamos com as nossas prprias mo.

    Extrado de: Evening Post, 13 de dezembro de 1834, cit.seg.: William Leggett,Democratic Editorials. / Essays in Jacksonian Political Economy, publ. por L. M. White,Indianpolis 1984 (Liberty Fund.), pgs. 7-11.

    Traduo do ingls para o alemo de Sabrina Ferrari-Frankland & Co.

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    Wilhelm von Humboldt

    O Propsito do HomemO Propsito do HomemO Propsito do HomemO Propsito do HomemO Propsito do Homem

    Wilhelm von Humboldt (1767-1835), estadista prussiano, lingstica e filsofo, o maisimportante representante do neo-humanismo alemo, que considera o desenvolvimentopleno de todas as habilidades individuais o verdadeiro propsito da vida humana. Em suaobra, redigida j em 1792, porm somente publicada postumamente em 1851, Idias paraum ensaio a fim de determinar as fronteiras da eficcia do Estado, Humboldt chegaa uma concluso no s de Estado extremamente minimalista como tambm liberal a partirdesta premissa. Somente atravs do direito que o Estado deveria proteger a liberdade, que

    a condio necessria para o desenvolvimento individual.

    A verdadeira finalidade do homem no aquela que lhe prescrevem osdesejos mutveis, e sim aquela que determinada pela razo eternamenteimutvel a formao mais sublime e mais harmoniosa de suas foras nosentido de formar um todo. Para esta formao, a liberdade a condioprimeira e imprescindvel. No entanto, alm da liberdade, o desenvolvimentodas foras humanas exige ainda outra coisa, embora esteja intimamente ligadaa liberdade: diversidade de situaes. At mesmo o homem mais livre eindependente, transportado para uma situao uniforme, desenvolve-se

    menos. Ainda que esta multiplicidade seja, por um lado, sempre conseqnciada liberdade, e que, de outro lado, haja tambm um tipo de opresso que, aoinvs de limitar a pessoa, confere aos objetos sua volta uma imagem de livreescolha, de maneira que ambos de certa forma sejam o mesmo. Porm, aseparao destes dois mais adequada clareza das idias. Todo homem capaz de atuar apenas com uma fora de cada vez, ou melhor, todo o seu ser dedicado a apenas uma atividade de cada vez. Por isso, o homem parecedestinado unilateralidade, debilitando sua energia assim que se dispersa por

    vrios objetos. Apenas consegue escapar desta unilateralidade quando seempenha em unir as foras muitas vezes treinadas isoladamente, em deixarsimultaneamente colaborar a centelha j quase extinta como aquela aqueimar vivamente no futuro em todas as etapas de sua vida e, ao invs demultiplicar os objetos sobre os quais atua, multiplicar as foras com as quaisatravs de interligao. O que, neste caso, a combinao do passado e dofuturo com o presente desencadeia, a associao com terceiros acarreta nasociedade. Pois tambm em todos os perodos de vida cada homem ainda assim

    atinge apenas uma das plenitudes que formam na verdade o carter de toda araa humana. Atravs das associaes, ento, que se originam do interior dos

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    seres, um deve tirar proveito da riqueza do outro. Uma tal associao

    formadora de carter, de acordo com a experincia generalizada, at mesmo

    das naes mais brutas, a associao de ambos os sexos.

    Somente quando neste caso a expresso tanto da diversidade quando doanseio pela unio de certa forma mais forte, ento nem por isso ambos

    so menos fortes, apenas de mais difcil percepo, embora justamente por

    isso atuando mais poderosamente, tambm sem qualquer considerao por

    aquela diversidade e entre pessoas do mesmo sexo. Estas idias, perseguidas

    mais adiante e desenvolvidas mais precisamente, talvez levassem a uma

    explicao mais correta do fenmeno das associaes, que na Antigidade,

    sobretudo entre os gregos, eram utilizadas at mesmo pelos legisladores, e

    que freqentemente se designou de maneira simples demais com o nome deamor comum e sempre erroneamente com o nome de mera amizade. A

    utilidade educativa de tais associaes reside sempre no grau em que se

    mantm a autonomia dos associados juntamente com a intimidade da

    associao. Pois quando sem essa intimidade um no capaz de apreender o

    outro, ento a autonomia necessria para transformar o apreendido no seu

    prprio ser. Ambos, porm, exigem fora dos indivduos e uma diversidade

    que, sem ser grande demais para que um seja capaz de apreender o outro,

    igualmente no seja por demais pequena, a fim de mobilizar alguma admiraopor aquilo que o outro possui e o desejo de transferi-lo tambm para si. Assim,

    esta fora e esta variedade multifacetada se unem na originalidade, e isto

    ento, sobre o que se baseia toda a grandeza do homem, pelo que o indivduo

    precisa lutar eternamente e o que aquele que deseja influenciar outras

    pessoas no pode perder de vista, a singularidade da fora e da formao.

    Assim como esta singularidade conseqncia de liberdade de ao e

    multiplicidade das pessoas que agem, assim ela, por sua vez, d origem a

    ambas. At mesmo a natureza morta que mantm o mesmo ritmocadenciado segundo leis eternas imutveis aparenta ser mais singular ao

    homem autodidata. Ele quase se transporta para o interior dela, e assim

    verdade no mais alto grau de raciocnio que cada um sempre percebe a riqueza

    e beleza exterior na medida em que acalenta ambos em seu prprio peito.

    No entanto, quo mais semelhante deve ainda ser o feito causa quando

    o homem no apenas sente a capta impresses exteriores, e sim se torna ele

    prprio ativo?

    Considero comprovado atravs das exposies acima que a verdadeira razo

    do homem no pode desejar outro estado que no aquele em que no apenas

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    cada um usufrui da liberdade mais descompromissada para desenvolver-se de

    dentro de si mesmo em sua particularidade, mas tambm no qual a natureza

    fsica no obtm outra imagem das mos dos homens do que cada um lhe d

    ele prprio e aleatoriamente, na medida de suas necessidades e seu gosto,

    somente limitado pelas fronteiras de sua fora e seu direito. Deste princpio,a meu ver, a razo no deve jamais afastar-se mais do que o necessrio para

    a manuteno prpria. Este princpio deveria, portanto, estar sempre na base

    de toda poltica e, sobretudo, da resposta questo de que tratamos aqui.

    Dito numa frmula totalmente genrica, poder-se-ia designar como

    verdadeiro escopo da eficcia do Estado tudo aquilo que seria capaz de fazer

    para o bem da sociedade, sem violar justamente aquele principio citado acima;

    da resultaria diretamente tambm a determinao mais precisa de queseria condenvel todo esforo do Estado no sentido de imiscuir-se nos

    assuntos particulares dos cidados, sempre que estes assuntos no tiverem

    uma relao direta com a no-observncia dos direitos de um pelo outro.

    Porm, a fim de esgotar completamente a questo apresentada, faz-se

    necessrio, assim mesmo, abordar as partes isoladas da eficincia normal ou

    possvel dos Estados.

    O objetivo do Estado pode, na verdade, ser duplo: pode querer fomentar

    felicidade ou apenas evitar males, e neste ltimo caso males da natureza ou

    males dos homens. Quando se limita a este ltimo, ento busca apenas

    segurana e esta segurana que me quero permitir opor uma vez a todos os

    demais objetivos, reunida sob o nome de bem-estar positivo. Tambm a

    diversidade dos meios empregados pelo Estado confere uma amplitude

    diversa sua eficcia. Pois ele procura ou atingir diretamente seus objetivos,

    seja pela fora leis ordenadoras e proibidoras, punies ou atravs do

    incentivo e exemplo; ou indiretamente, dando situao do cidado

    uma forma favorvel a este, e simultaneamente, impedindo-o de agirdiferentemente, ou finalmente, procurando at mesmo tornar sua tendncia

    dele e influenciar sua cabea ou seu corao. No primeiro caso, determina

    apenas aes isoladas, no segundo j mais a maneira de agir como um todo e

    no terceiro, afinal, o carter e a maneira de pensar. Tambm o efeito da

    limitao menor no primeiro caso, aumenta no segundo, e no terceiro

    maior, em parte porque se influenciam fontes das quais se originam diversas

    aes, em parte porque a possibilidade do prprio efeito exige vrios eventos.

    Ainda que os diversos ramos da influncia do Estado paream to diferentes,dificilmente h uma instituio do Estado que no pertena simultaneamente

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    a vrias outras, j que, por exemplo, segurana e bem-estar so tointerdependentes, e que determina tambm somente aes isoladas, seprovocar hbito atravs da repetio influenciando o carter. , portanto muitodifcil encontrar aqui uma subdiviso do todo adequada ao curso da anlise. O

    melhor ser verificar primeiro se o Estado deve objetivar tambm o bem-estarpositivo da nao ou apenas sua segurana, ocupar-se em todas asinstituies apenas como o principal objetivo ou conseqncia delas, e em cadaum dos dois objetivos verificar tambm os meios dos quais o Estado podelanar mo.

    Por isso refiro-me aqui aos esforos como um todo do Estado no sentido deelevar o bem-estar da nao, a todo cuidado pela populao do pas, em parte

    diretamente, atravs de instituies de caridade, em parte indiretamente,atravs do estimulo agricultura, indstria e ao comrcio, de todas asoperaes financeiras e monetrias, proibies de importaes e exportaes,etc. (na medida em que tm este objetivo), finalmente, a todas as providnciaspara evitar ou reparar danos causados pela natureza, em resumo, a todainstituio do Estado que tem o propsito de manter ou melhorar o bem fsicoda nao. Pois j que o lado moral no facilmente estimulado por si mesmo,e sim mais para fins de segurana, chegarei a ele apenas a seguir.

    Todas estas instituies ento, afirmo, tm conseqncias desfavorveis eno so adequadas a uma poltica verdadeira, imbuda dos pontos de vistamais sublimes, porm sempre humanos.

    O esprito do governo domina em cada uma destas instituies e, por maissbio e reparador que seja tambm este esprito, provoca uniformidade e umamaneira de agir estranha na nao. Ao invs de os homens estabeleceremsociedades para fortalecer suas foras, ainda que por isso percam propriedade

    e vantagem exclusivas, alcanam bens custa de suas foras. justamente amultiplicidade que se origina da associao de vrias pessoas que representao bem mximo que a sociedade concede, e esta multiplicidade certamente seperde sempre na medida da interveno do Estado. Na verdade, no so maisos membros de uma nao que vivem em comunidade entre si, e sim sditosisolados que estabelecem uma relao com o estado, ou seja, com o espritodominante num governo, e uma relao no qual j o poder superior do Estadoinibe o livre jogo das foras. Causas uniformes produzem efeitos uniformes.

    Portanto, quanto mais o Estado participar, tanto mais semelhante ser noapenas tudo aquilo que age, mas tambm todo o resultado. Eles desejam bem-

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    estar e tranqilidade. Ambos, porm, so sempre obtidos de maneira fciljustamente na medida em que cada qual tiver menos disputas. O que ohomem objetiva e deve pretender uma coisa muito diversa, a pluralidade eatividade. Somente isto produz caracteres multifacetados e vigorosos, e

    certamente nenhum homem ainda se rebaixou a ponto de preferir para siprprio bem-estar e felicidade grandeza. Mas quem raciocina desta formapara outros, este se torna suspeito, e no sem razo, de que tem uma visoirreal da humanidade e deseja transformar os homens em mquinas.

    Se eu procurar concluir o ltimo resultado de todo o raciocnio anterior,ento o primeiro princpio desta parte da presente anlise deve ser o seguinte:o Estado que se abstenha de todo cuidado com o bem-estar positivo dos

    cidados e no avance um passo sequer alm do que necessrio para suagarantia contra si prprios ou contra inimigos externos; que no cerceie sualiberdade para nenhum outro objetivo final.

    Extrado de: Wilhelm von Humboldt, Idias sobre uma tentativa de determinao dos

    limites da eficcia do Estado (1792), publ. p. R. Haerdter, Stuttgart 1967, pgs. 22-24.

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    Adam Smith

    Mercado e IndivduoMercado e IndivduoMercado e IndivduoMercado e IndivduoMercado e Indivduo

    Adam Smith (1723-1790). Embora fosse professor de filosofia em Edinburgh, ele overdadeiro fundador da economia nacional moderna. J em sua principal obra filosfica,Theory of Moral Sentiments, que um dos clssicos da escola escocesa da filosofia moraldo sculo XVIII, ele tentara basear seu sistema tico na observao da natureza humana,sendo que aqui era atribudo um grande peso sobretudo ao valor da simpatia. Em sua obraeconmica revolucionria The Wealth of Nations acompanha entre outros um ponto departida semelhante, porm parte principalmente dos esforos do homem por utilidadeeconmica. Esta, se puder desenvolver-se no interior dos limites do direito, contribui melhorpara o estmulo do bem geral. At hoje persiste sua grande influncia sobre a escola de

    pensamento de mercado liberal, em cuja origem, na verdade, est.

    O rendimento de toda atividade mercantil o valor adicional que umobjeto ou uma matria-prima obtm atravs dela. Dependendo, ento, de ovalor deste rendimento ser maior ou menor, tambm o lucro do empresrioser mais alto ou mais baixo. Como, porm, cada pessoa somente aplicacapital para apoiar seus esforos mercantis com perspectiva de lucros, estarsempre empenhada em aplic-lo naquelas atividades cujo rendimentoprevisivelmente ter o mais alto valor, ou pelo qual ele poder obter maisdinheiro ou o maior nmero de outras mercadorias.

    Agora, o rendimento do povo de um pas sempre exatamente to altoquanto o valor de troca de todo o rendimento anual ou, melhor, idntico, ditode outra maneira. Se ento cada um procurar ao mximo aplicar seu capitalpara apoiar a atividade mercantil domstica, e assim conduzir esta de maneiraque seu rendimento permita esperar o maior crescimento de valor, ento cada

    indivduo obrigatoriamente se empenhar para que o rendimento anual dopovo venha a ser to alto quanto possvel. Na verdade, este, em via de regra,no estimula o bem-estar geral conscientemente, nem sabe qual a suaprpria contribuio. Se ele preferir apoiar a economia nacional ao invs daestrangeira, na verdade ele pensa apenas na prpria segurana e, se assim eleapoiar a atividade mercantil de tal maneira que seu lucro possa atingir o maiorvalor, ento est empenhado apenas em lucro prprio. E ser guiado por umamo invisvel neste como tambm em muitos outros casos, a fim de apoiar um

    objetivo que no pretendeu de maneira alguma cumprir. Tambm para oprprio pas nem sempre isto representa a pior alternativa, que o indivduo vise

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    um tal objetivo inconscientemente, antes, justamente pelo fato de ele

    perseguir seu interesse prprio, que freqentemente auxilia a sociedade de

    forma mais permanente do que se tivessem realmente pretendido faz-lo.

    Todos aqueles que j proclamaram que seus negcios se destinavam ao bem

    da comunidade, a meu ver jamais fizeram um bem. E realmente apenas umahipocrisia no muito difundida entre comerciantes, e bastam algumas

    palavras para dissuadi-los.

    O indivduo isolado, com seu conhecimento das condies locais,

    evidentemente capaz de avaliar muito melhor do que qualquer estadista ou

    legislador o poderia fazer por ele, qual ramo de negcios no pas adequado

    para a aplicao do seu capital e oferece um rendimento que promete o maior

    aumento de valor. Um estadista que quisesse tentar prescrever a particularesde que maneira deveriam investir seu capital no apenas se sujeitaria

    desnecessariamente a uma carga, como tambm simultaneamente se arrogaria

    uma autoridade que no se poderia confiar sem preocupaes nem mesmo a

    um conselho de Estado ou Senado, e muito menos ainda a um homem

    individualmente, uma autoridade que em lugar nenhum seria mais perigosa

    do que nas mos de um homem que suficientemente parvo e arrogante

    tambm se julgasse capaz de poder exerc-la.

    Quando se confere uma posio de monoplio ao produto de qualquer

    ofcio ou negcio no mercado interno, isto nada significa a no ser prescrever

    aos indivduos de que maneira deveriam investir seu capital, uma interveno

    que na maioria dos casos intil, e mais, at mesmo prejudicial. Pois se os

    produtos nacionais puderem ser oferecidos no mercado to baratos quanto os

    estrangeiros, ento a medida evidentemente no faz sentido. Quando isto no

    ocorre, via de regra, ela deve ser prejudicial. Um pai de famlia que age com

    circunspeo segue o princpio de nunca produzir ele prprio algo que ele pode

    comprar mais barato em outro lugar. Assim, o alfaiate procura no fazer comas prprias mos seus calados, comprando-os do sapateiro. Este, por sua vez,

    no costurar com as prprias mos suas roupas, e sim as deixar fazer pelo

    alfaiate. Tambm o agricultor no tentar nem um outro, e sim comprar

    ambos dos artfices. Todos consideram ser do seu interesse transferir seu

    negcio irrestritamente para aquele ramo, no qual so superiores ao seu

    vizinho e comprar seus demais gneros necessrios com uma parte de sua

    produo ou, o que mesmo, com o produto da venda da mesma.

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    O que, porm, sensato para o comportamento de uma famlia isolada,dificilmente ser errado para o de um reino poderoso. Se ento um outro paspode fornecer-nos uma mercadoria que ns mesmo no somos capazes deproduzir de maneira mais barata, ento para ns simplesmente mais

    vantajoso compr-la com uma parte dos nosso produtos, que, em contrapartida,podemos fabricar mais baratos do que o exterior. A atividade comercial no pasinteiro recuar to pouco como no nosso exemplo com os artfices, j que estnuma slida proporo em relao em relao ao capital investido e somentesua aplicao mais vantajosa est sujeita ao livre arbtrio. Porm, certamenteesta vantagem no ocorrer quando o capital desviado para a produo demercadorias que podem ser adquiridas por um preo mais baixo em outro lugardo que ns mesmos podemos produzi-las. Um deslocamento da produo para

    mercadorias cujo valor evidentemente mais baixo do que o de outrasnecessariamente levar a uma reduo mais ou menos intensa do produtosocial anual, partindo do pressuposto de que poderia adquirir uma mercadoriano exterior por um preo mais baixo do que a produo domstica. Se, ento,tivesse sido dada liberdade de ao atividade comercial, teria sido possveladquirir mercadoria com um empate de capital igual no pas com menosprodutos nacionais, ou, o que o mesmo, j comprar a mercadoria com umaparte de suas receitas no exterior. Assim, cada regulao estatal desvia aatividade comercial de um pas de ramos econmicos lucrativos para menosprsperos, o que em ltima anlise no leva elevao pretendida pelolegislador, e sim a um recuo no valor de troca do rendimento anual.

    Evidentemente, com o auxlio de tal comando, um ou outro ramo mercantilpoder ser instalado e estruturado mais rapidamente do que seria o caso deoutra forma, de modo que ento as mercadorias do prprio pas aps um certotempo possam ser produzidas a preo to baixo e at mais baixo do que noexterior. E ainda assim, o produto social ou a receita nacional jamais podero

    ser aumentados, embora a atividade mercantil tenha sido encaminhada numadeterminada direo antes do que talvez tivesse ocorrido de outra forma, ecom xito. fcil entender a razo para isso: a atividade mercantil num passomente poder aumentar de volume com a elevao da aplicao de capital,e este crescimento, por sua vez, depende de quanto os cidados poderopoupar aos poucos de seus rendimentos. No entanto, a conseqncia imediatade uma tal interveno a reduo da receita nacional, e tudo o que reduzeste rendimento certamente no contribuir para o rpido crescimento na

    aplicao de capital, como seria o caso se ambos, ou seja, a formao decapital e a atividade mercantil, pudessem desenvolver-se naturalmente.

  • 8/2/2019 Leituras sobre o Liberalismo

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    Assim, em cada ordem econmica na qual canalizado para ramosmercantis isolados mais capital econmico por meio de incentivo especial doque fluiria para l espontaneamente ou atravs de restries extraordinrias,partes do capital so mantidas afastadas de ramos nos quais de outra forma

    teriam sido investidas, na verdade, o objetivo principal que