Leitura_são Marcos Borges_claudio Cruz

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O crítico Cláudio Cruz (UFSC) faz uma leitura reveladora de vários aspectos do conto de Jorge Luís Borges

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  • Fragmentos, nmeros 28/29, p. 091/096 Florianpolis/ jan - dez/ 2005 91

    NAS PEGADAS DE MARCOS:NOTAS A UM CONTO DEBORGES

    CLUDIO CRUZ

    Universidade Federal de Santa [email protected]

    Em l970, quando publica a coletnea de contos intitulado O informede Brodie, Borges estava no caminho da consagrao absoluta, que iriaocorrer ao longo da dcada de 70 e, principalmente, na dcada de 80. Nacontracapa da segunda edio brasileira lia-se o seguinte:

    O Informe de Brodie revela uma evoluo imprevista da esttica de Borges.Enquanto em O Aleph e Fices predominavam os enigmas e os smbolos,nestas 11 narrativas o grande escritor argentino prefere a maneira direta,desataviada ()1.

    importante que se diga que essa maneira direta, desataviada,realista, enfim, como o prprio Borges a chama no prlogo que escreveupara esse livro, tinha como universo de referncia em quase todos oscontos o ambiente regional. Ambiente que o preocupou muito na sua faseinicial dcada de 20 e que, posteriormente, veio a renegar, at mesmo aridicularizar. Como afirma Beatriz Sarlo, Borges passava a evitar asarmadilhas da cor local, que s produzem uma literatura regionalista eestreitamente particularista2.

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    O Borges descoberto pelo mundo nas dcadas de 50 e 60 passava aolargo desse universo regional. Esse Borges era o Borges, fundamentalmen-te, dos livros Fices e O Aleph. Excetuando-se alguns contos como Sure Biografia de Tadeo Isidoro Cruz, a grande maioria dos relatos apresentavauma ambincia absolutamente cosmopolita, quando no abstrata, despega-da de qualquer espao determinado.

    Mas lidos os contos de l970, da coletnea O informe de Brodie,tornava-se evidente que o regional ou a matria criolla, digamos assim, nodiminua o carter cosmopolita e universal da obra de Borges, pelo contrrio.Os temas caros ao escritor da dcada de 20, os compadritos, os valentes,as esquinas e as casas rosadas, os desafios, as facas, o arrabalde e seussortilgios, retornavam com toda a fora. Mas com mais fora ainda surgia,por trs de todos esses temas e, principalmente, por trs de todos essespersonagens, a concepo borgeana do tempo circular, do eterno retorno.Histrias que se repetem, a Histria como um rosrio de estrias (enredos)que se repetem. Grande parte dos contos de O informe de Brodie constitui-se a partir dessa concepo de tempo e, se no estou enganado, todos ospersonagens movem-se como se fossem fantoches, submetidos a uma foraque os domina de forma absoluta, e da qual eles esto longe de se libertar e,pior, sem ter qualquer conscincia disso. So destinos repetidos infinitamen-te, como afirma Sarlo, numa temporalidade infinita, especular, em abismo,periodicamente reproduzidos.

    Neste sentido, a valorizao ou revalorizao da matria regional noBorges de l970 vem apenas para confirmar o carter eminentemente cos-mopolita de sua obra. Mas certo tambm que indica uma inflexo estticaimportante, e que, como tal, deve ser motivo de investigao. E , ao queparece, o que vem ocorrendo nos estudos borgeanos dos anos 90: umapreocupao maior com o local em Borges, sem prejuzo do seu conhecidocarter cosmopolita.

    Nessa linha de pensamento, uma das narrativas mais inquietantes esedutoras para se pensar a questo o conto O Evangelho segundo Mar-cos, onde a matria regional e universal se imbricam de um modosurpreendente. Neste conto, Borges traa uma equivalncia entre cenasocorridas numa fazenda da regio do pampa em l928 com os episdios daPaixo de Cristo.

    Estamos acostumados grande habilidade narrativa de Borges e,exposta assim, tal idia pode soar quase como natural, at porque o temano poderia ser mais borgeano. No entanto, quer me parecer, que o desafiode realizar em forma narrativa essa idia reviver o episdio da Paixo nopampa no dos menores. E Borges parece ter vencido o desafio, ou pelomenos deu-se por satisfeito. o que podemos deduzir do comentrio quefaz no prlogo ao livro O informe de Brodie:

    Devo a um sonho de Hugo Moroni a trama geral da histria intitulada OEvangelho segundo Marcos, a melhor da srie3.

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    Borges, assim como Machado, Joyce e tantos outros, um escritorque trabalha intensamente no plano da intertextualidade. No se l umapgina de Borges sem que sejamos convidados a entrar na Biblioteca. Como conto O Evangelho segundo Marcos no poderia ser diferente. Mas meparece que nesse caso ocorre uma situao muito particular.

    No se trata somente, durante a leitura, de nos remetermos a deter-minadas obras, a determinados textos. Trata-se de incluir nesta leitura oEvangelho de Marcos inteiro. Neste sentido, o conto, de apenas algumaspginas, expande-se, j que temos que, obrigatoriamente, abrirmos esseEvangelho depois de concluda a primeira leitura do conto. E no s porquea intertextualidade evidente desde o ttulo, mas porque o Evangelho deMarcos efetivamente lido de cabo a rabo pelo protagonista, e por mais deuma vez.

    claro que o narrador no transcreveria o texto bblico de formaintegral, por um bvio motivo de economia narrativa. Mas a verdade que,nesse caso, no h economia possvel para o leitor crtico. Ele deve ir, sequiser obter uma leitura minimamente eficaz do conto, ao Evangelho deMarcos como um todo. S assim ele poder ir levantando os inmeros pontosem que a narrativa de Marcos e a de Borges se tocam.

    E como seria de esperar, nem sempre essas identificaes se do deforma direta e num mesmo sentido. s vezes ocorrem mesmo com sinaistrocados. Alm disso, como a prpria leitura isolada do Evangelho de Mar-cos requer, h que se dialogar, no caso desse conto de Borges, com o AntigoTestamento. Por fim, haveria de se levar em conta um possvel dilogointertextual com a literatura em geral, como to comum em Borges. Mas,salvo engano, quer me parecer que, no caso, a intertextualidade intensa,mas muito restrita Bblia.

    Vamos nos voltar, portanto, a partir de agora, para um dilogo comessa obra maior da nossa cultura, em especial com os Evangelhos, o deMarcos, claro, em primeiro lugar. Os pontos de contato so em nmeromuito grande para uma exposio como essa, mas pode-se destacar osmais importantes.

    Primeiramente cabe falar das relaes mais diretas, a comear pelonome do protagonista, aquele que vai cumprir o papel de Cristo. Chama-seBaltasar Espinosa. Em relao ao nome, mais do que Baltasar, de evidenteconotao bblica, cabe destacar o sobrenome Espinosa, que remetediretamente ao grande filsofo de origem judaica Baruch Espinosa. Trata-se, portanto, o protagonista, de um judeu argentino e que, alm disso, conta33 anos quando dos acontecimentos na estncia La Colorada.

    Entre as vrias caractersticas apresentadas pelo narrador, cabe des-tacar trs, decisivas para lev-lo ao sacrifcio ritual. Primeiro, a sua grandefaculdade oratria, merecedora, inclusive, de mais de um prmio no colgioonde estudara. Essa capacidade oratria, que tambm Jesus possua, acabasendo fatal para ele. Isso porque os rsticos moradores da fazenda (ospeis), fascinados e seduzidos pela fora das palavras, acabam por

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    transpor o mito da Paixo para a sua realidade imediata, a partir de umainterpretao literal do mesmo. Sua extrema e profunda ignorncia faz explodirqualquer anteparo metafrico, fazendo com que a palavra invada a realidade4.

    Alm da destacada capacidade oratria do protagonista, h um outrodado importante para o estabelecimento do mal-entendido trgico. o fatode Baltasar Espinosa ter deixado a barba crescer, o que tornava a sua figuramais prxima da imagem popular de Jesus, reproduzida e espalhada portodos os quadrantes do mundo a partir da iconografia crist da Idade Mdiae principalmente do Renascimento. Figura mais prxima, portanto, darusticidade daqueles que acabaro por crucific-lo.

    H uma terceira caracterstica marcante do personagem que o dis-tancia de Jesus, mas que vem a ser igualmente decisiva para o desfecho.Trata-se do seu carter indolente, complacente, algum que se deixa levarpelos acontecimentos. Diz o narrador: Quando Daniel, seu primo, convidou-o para veranear na fazenda, respondeu logo que aceitava, no porquegostasse do campo mas por natural complacncia e porque no procurourazes vlidas para dizer no. Como se v, nada mais contrrio figuradecidida e viril que o Evangelho de Marcos nos apresenta de Jesus.

    Poderia indicar muitas outras relaes entre os acontecimentos dafazenda e a histria de Jesus. Mas convm agora nos dirigirmos para relaesmais sutis que se estabelecem entre os dois contextos. E nesse ponto caberiaperguntar por que a escolha do Evangelho de Marcos por parte de Borges?

    Trata-se de pensar agora num problema intertextual menos genricoe mais objetivo, ou seja, no confronto entre dois textos especficos: o contode Borges e o Evangelho de Marcos, visto exclusivamente como um textoliterrio. Dada a complexidade apresentada por textos pertencentes aocnone bblico, somada conhecida erudio borgeana, deparamo-noscom uma tarefa das mais difceis. Mas podemos apontar, ao menos, algumaslinhas bsicas de investigao.

    Uma das mais ricas me parece ser aquela relacionada a um temamuito caro a Borges, qual seja, a fora da narrativa oral. Numa de suasconferncias, em que faz uma tocante celebrao ao livro e, portanto, palavra escrita no deixa de reconhecer a importncia da palavra falada.Todos os grandes mestres da humanidade foram, curiosamente, mestresorais, afirma5. E cita vrios, desde Pitgoras at Buda, passando porJesus. O tema tem origem no Fedro, de Plato, quando Scrates nos falade uma lenda egpcia em que a palavra oral reconhecida como superior escrita6.

    O conto que ora nos ocupa tem como fundamento a fora da narra-tiva, mas principalmente da narrativa oral, j que aqueles que a recebem soanalfabetos e dependem totalmente da leitura que lhes feita. Esse umdos motivos centrais que aproximam o conto do Evangelho de Marcos. Afora da narrativa est presente nos quatro evangelhos, reconhecidos hojecomo verdadeiras peas literrias. Assim, qualquer um poderia servir aBorges. Mas o que distingue o texto de Marcos que ele est muito mais

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    prximo da narrativa oral do que o de Mateus e o de Lucas e, principalmen-te, o de Joo, considerado o mais elaborado em termos literrios.

    Marcos era visto tambm como sendo o mais tipicamente narradorentre os quatro evangelistas, no sentido do contador de histrias popular.Retinha no seu texto algo do estilo e da vivacidade da histria oral7. Poroutro lado, Marcos no se preocupava muito com as questes de estilo, noera um artista no sentido em que podemos designar os outros evangelistas8.

    John Drury acredita que o de Marcos seja o primeiro evangelho escrito:Esse evangelho escrito o vizinho de porta de trinta ou quarenta anos

    de evangelizao oral. () As caractersticas principais da evangelizaooral invadem o texto de Marcos. Era destinado a ser lido em voz alta a umcrculo de ouvintes: um contexto externo que condiz com as cenas freqentesno livro, onde Jesus questiona e instrui seus seguidores de viva voz9.

    E, podemos concluir, tambm condiz, especularmente, com as cenasdescritas no conto, onde o Jesus-Baltasar Espinosa tambm instrui seusseguidores de viva voz, voz muito bem treinada na arte oratria, como vi-mos. E, portanto, com grande capacidade de convencimento. Exatamentecomo Jesus no seu tempo.

    Ainda segundo John Drury, temos muitas caractersticas do Evangelhode Marcos que justificam de maneira cabal o porqu da escolha de Borgespor esse texto para embasar o seu conto. O Jesus de Marcos, ao ensinar,usa as parbolas que o rabinismo classificou como aggadah, para distin-guir de halakah, a instruo da elite. Por isso, ele prope os enigmas queencantam as crianas e os analfabetos. Tambm no se encontramdigresses desnecessrias nas suas histrias, como comum em Lucas emesmo em Mateus, que abrem espao para ditos e reflexes. No, emMarcos tudo se d de forma direta e concisa, com grande apelo popular,constituindo-se o Jesus de Marcos em um tpico heri de conto folclrico.Antes de sua canonizao oficial como escritura sagrada, o Evangelho deMarcos circulou entre pessoas comuns e encantou-as, por no ter virtual-mente nada de bom a dizer sobre o mundo oficial: sumos sacerdotes, procu-radores ou at apstolos. O Jesus de Marcos executa os milagres caros piedade popular por transformar com um toque o sofrimento solitrio emfelicidade social; e obviamente esses milagres so suspeitos filosofia, pre-cisamente por sua realizao instantnea dos desejos. Assim, seu Jesus um heri adequado para o cristianismo em sua fase primeira e no oficial;domstico e levado por missionrios viajantes para aqueles que secompraziam em ouvir falar sobre a subverso e transgresso a uma religioque nunca os atraiu10.

    Todas as caractersticas acima apresentadas esclarecem e justificam,de um ponto de vista de composio literria, os acontecimentos em LaColorada. mais verossmil, ou s poderia ser verossmil, a partir doEvangelho de Marcos. Fascinados pela narrativa de Marcos e pela oratriade Baltasar Espinosa e imbudos de um profundo desejo de salvao, osrsticos gachos no hesitam em reatualizar o mito da Paixo em pleno

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    pampa. Excetuando Cristo, cumprem todos os papis necessrios reatualizao: so os discpulos amados, so o povo em busca de milagres,so os traidores, so os soldados, so, enfim, aqueles que o crucificam.

    Dessa perspectiva, uma das passagens mais instigantes, ponto altodo conto, quando perguntam a Baltasar se mesmo aqueles que o pregaramna cruz se salvaram. Ao responder que sim, Baltasar Espinosa decreta asua morte, e os gachos esto livres para mat-lo. E prontos, tambm, paraserem salvos. Conclui-se, nas palavras de Beatriz Sarlo, a barbarizao dorelato fundacional do Ocidente11. Como s Borges podia fazer.

    NOTAS1 Borges, Jorge Luis. O informe de Brodie. Traduo de Hermilo Borba Filho.

    2a ed. Porto Alegre, Globo, 1983.

    2 Sarlo, Beatriz. Prefcio a O informe de Brodie, in Borges, Jorge Luis. Oinforme de Brodie. Traduo de Hermilo Borba Filho. 3a ed. Rio de Janeiro:Globo, 1995. p 8.

    3 Borges, Jorge Luis. Obras Completas. 14a ed. Buenos Aires: Emec, 1984. p.1022.

    4 Sarlo, Beatriz. Op. cit. p. 11.

    5 Borges, Jorge Luis. Borges oral. Traduo de Rafael Gonalo Gomes Filipe.Lisboa: Vega, s. d. p. 22.

    6 Plato. Fedro. Traduo e notas de Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimares,1981. pp. 145-147.

    7 Kermode, Frank. Introduo ao Novo Testamento, in Kermode, Frank e Alter,Robert (org). Guia literrio da Bblia. So Paulo: Unesp, 1997. p. 410.

    8 Idem, Ibidem. p. 412.

    9 Drury, John. Marcos, in Kermode, Frank e Alter, Robert (org). Guia literrioda Bblia. So Paulo: Unesp, 1997. p. 435.

    10 Idem, Ibidem. pp. 433-448.

    11 Sarlo, Beatriz. Op. cit. p. 12.