Lena d'Água

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32 » noticiasmagazine 24.AGO.2008 O que a levou a trocar a cidade pelo campo? Vim para aqui porque teve de ser. Os meus pais seguiram o caminho deles, morreu pri- meiro o meu pai [o famoso goleador do Ben- fica José Águas] e depois a minha mãe. Estou a criar aqui uma raiz. Há uma procura de isolamento, mas que já existia antes de vir para aqui. A minha mãe dizia que eu quando era pequenita me entretinha a brincar sozi- nha horas sem fim. Sempre me senti muito sozinha, mesmo nos anos oitenta, durante aquela fama toda. Aqui vêm trazer-me o pei- xe à porta, como quando eu morava no Bair- ro de Santa Cruz [em Benfica, Lisboa]. É uma aldeia que só tem uma tasquinha e um café jazz-bar (risos). Há coincidências incrí- veis, o dono do jazz-bar tocou comigo há vinte anos e eu fui madrinha do primeiro ca- samento dele. Nós aqui até temos patos! Quando era miúda era «a filha do Águas». Volta a conhecer a fama nos anos oitenta, com os su- cessos que cantou. Como convivia com isso? Fui «a filha do Águas» até muito tarde. Só de- pois é que passei a ser a Leninha. Voltei efec- tivamente a viver uma coisa parecida por causa do rock nos anos oitenta. Aquilo que eu tinha vivido na infância por causa do meu pai, voltei a viver vinte anos mais tarde. Eu ia na rua e aquilo era parecido com o tempo em que andava com o meu pai de carro e toda a gente se punha a gritar «Viva o Benfica!». Mas com o rock eram «os bandos de adoles- centes», como escreveu o Pedro Paixão. Mas os Salada de Frutas duraram seis meses, ou sete. Uma coisa que me marcou imenso, e que marcou quem gostava da nossa música, mas que durou meia dúzia de meses, foi uma pequena fracção da minha vida. Marcou e baralhou muitas pessoas que pensavam que eu é que cantava o Se cá nevasse fazia-se cá ski... mas isso não teve nada a ver comigo, eu não usava bigode e barba, por amor de Deus, es- se foi um tema que foi cantado pelo Zé da Ponte, que surgiu depois de os Salada de Fru- tas terem prescindido dos serviços da cantora. Lena d’Água Aos 52 anos,a primeira filha do mítico goleador do Benfica José Águas mudou-se para o campo,vive rodeada de natureza e de animais,levanta-se com as galinhas e trabalha com afinco nos seus mais recentes projectos.Desengane-se quem julgava que ela já não cantava.Lena d’Água não só está de volta (pelo menos desde o ano passado,altura em que editou Sempre – um disco cheio de canções resgatadas ao baú das memórias afectivas) como a cantar melhor do que nunca. Uma cantora excepcional,dotada de uma voz límpida e inconfundível,agora revelada poderosa também no jazz. ENTREVISTA Sarah Adamopoulos ¬ FOTOGRAFIA Rafael G. Antunes TodosOs Nomes » nm # 848 » entrevista

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Sarah Adamopoulos entrevista a cantora Lena d'Água

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Page 1: Lena d'Água

32»noticiasmagazine 24.AGO.2008

O que a levou a trocar a cidade pelo campo?Vim para aqui porque teve de ser. Os meuspais seguiram o caminho deles, morreu pri-meiro o meu pai [o famoso goleador do Ben-fica José Águas] e depois a minha mãe. Estoua criar aqui uma raiz. Há uma procura deisolamento, mas que já existia antes de virpara aqui. A minha mãe dizia que eu quandoera pequenita me entretinha a brincar sozi-nha horas sem fim. Sempre me senti muitosozinha, mesmo nos anos oitenta, duranteaquela fama toda. Aqui vêm trazer-me o pei-xe à porta, como quando eu morava no Bair-ro de Santa Cruz [em Benfica, Lisboa]. Éuma aldeia que só tem uma tasquinha e um

café jazz-bar (risos). Há coincidências incrí-veis, o dono do jazz-bar tocou comigo hávinte anos e eu fui madrinha do primeiro ca-samento dele. Nós aqui até temos patos!Quando era miúda era «a filha do Águas». Voltaa conhecer a fama nos anos oitenta, com os su-cessos que cantou. Como convivia com isso? Fui «a filha do Águas» até muito tarde. Só de-pois é que passei a ser a Leninha. Voltei efec-tivamente a viver uma coisa parecida porcausa do rocknos anos oitenta. Aquilo que eutinha vivido na infância por causa do meupai, voltei a viver vinte anos mais tarde. Eu iana rua e aquilo era parecido com o tempo emque andava com o meu pai de carro e toda a

gente se punha a gritar «Viva o Benfica!».Mas com o rock eram «os bandos de adoles-centes», como escreveu o Pedro Paixão. Masos Salada de Frutas duraram seis meses, ousete. Uma coisa que me marcou imenso, eque marcou quem gostava da nossa música,mas que durou meia dúzia de meses, foi umapequena fracção da minha vida. Marcou ebaralhou muitas pessoas que pensavam queeu é que cantava o Se cá nevasse fazia-se cá ski...mas isso não teve nada a ver comigo, eu nãousava bigode e barba, por amor de Deus, es-se foi um tema que foi cantado pelo Zé daPonte, que surgiu depois de os Salada de Fru-tas terem prescindido dos serviços da cantora.

Lena d’Água Aos 52anos,a primeira filha do mítico goleador do Benfica JoséÁguas mudou-se para o campo,vive rodeada de natureza e deanimais,levanta-se com as galinhas e trabalha com afinconos seus mais recentes projectos.Desengane-se quem julgavaque ela já não cantava.Lena d’Água não só está de volta(pelo menos desde o ano passado,altura em que editouSempre – um disco cheio de canções resgatadas ao baú dasmemórias afectivas) como a cantar melhor do que nunca.Uma cantora excepcional,dotada de uma voz límpida einconfundível,agora revelada poderosa também no jazz.ENTREVISTA Sarah Adamopoulos ¬ FOTOGRAFIA Rafael G. Antunes

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para mim muito interessante, apesar de sóter estado lá quinze dias. Havia aquela coi-sa das saudades, toda a gente dizia que ti-nha muitas saudades da vida fora da casa,mas eu não tive tempo para sentir sauda-des, porque fui logo nomeada e saí (risos).Muitas pessoas estranharam ver a Lenad’Água, a desalinhada de sempre, a participarnum produto televisivo de grande consumo...Eu estive lá quinze dias e acordei quasesempre antes de o Sol nascer. Isto significaque acordava às quatro ou às cinco da ma-nhã. Saía do quarto onde toda a gente res-sonava e começava o meu dia, sempre sozi-nha. Tenho esse ritmo madrugador há jáalguns anos. Aqui acordo entre as seis e assete. Se me acontece acordar às oito, pensologo que é um disparate, porque já perdiuma ou duas horas da manhã. Adoro a ma-

nhã, o fresco, os pássaros, os cheiros da ma-nhã. No Big Brother eu andava completa-mente ao contrário do grupo, porque elesàs vezes deitavam-se à hora em que euacordava. Ganhei mil contos em duas se-manas. Era dinheiro, e eu precisava de di-nheiro. Nessa altura eu já não estava a fazeras Canções do Século.Com a Rita Guerra e a Helena Vieira.Sim, com elas. Foi um projecto maravilhoso.Com o Pedro Osório, e os músicos, todosgrandes companheiros.Durante os anos noventa esteve bastante au-sente da cena pública. O que talvez explique al-guma perplexidade relativamente ao seu re-gresso por via do Big Brother. Estive uns anos um bocado afastada, sim,em resultado também daquela fase negrapela qual eu passei...

A fase dos consumos?Sim, essa fase. Durante a minha fama maioreu não andava metida em nada. Mais tarde éque resolvi experimentar, aos 33 anos, arma-da em esperta, com um namorado. Foi umacriancice e eu fui uma criançola. Não se po-de experimentar, é brincar com o fogo. A he-roína é «a droga», não há outras. Quando mefalam das apreensões de haxixe dá-me von-tade de rir. Orientem mas é a investigaçãopara o que é verdadeiramente grave. Hámais de dez anos que não toco em nada. Be-bo uns cafés, fumo uns cigarros, bebo unscopos de vez em quando, e nada mais do queisso. Mas passei os meus anos noventa a en-trar e a sair daquilo, entre a primeira e a últi-ma vez que consumi passaram nove anos.Eu andava muito infeliz porque não eraamada pelos motivos correctos. Durante es-se período morreram pessoas importantís-simas para mim, o pai da minha filha, a mi-nha melhor amiga, um amigo, com sida, de-pois o meu pai ficou doente (morreu em2000) e foram cinco longos anos de sofri-mento. Foram uns anos negros, com muitasperdas, anos terríveis. Tem entretanto um disco novo, cheio de jazz.Fale-me dele.Chama-se Sempre. Foi feito sem editora nempatrocínios. Gravámos numa noite no HotClube, no final de 2005, mas só saiu em Maiode 2007. E saiu graças ao David Ferreira, umgrande amigo, que é agora é um editor inde-pendente. Penso que a independência é o ca-minho de muita gente, independência da-quelas máquinas enormes e pesadíssimasdas grandes editoras discográficas. Mas asrádios não passam o disco, não percebo por-quê. Há muitas pessoas que me dizem queadoram este disco, mas a verdade é que nãohouve quase promoção, e ele tem passadorelativamente despercebido. Vendi poucosdiscos ainda, penso que muita gente nem sa-be que o disco existe. Em relação às rádios,elas agora funcionam por grupos, e para osdiscos passarem é preciso grandes concerta-ções... não basta entregar os discos nas rá-dios. Eu nunca tive jeito para andar a entre-gar os meus próprios discos nas rádios... Masquinze anos sem gravar para agora não pas-sar em rádio nenhuma?Que ligação é essa ao jazz?É uma ligação que vem pela mão da BillieHoliday. Comecei a frequentar o Hot Clubenos anos setenta, que era um lugar onde po-dia ver enormes artistas a tocar. O Hot foisempre um espaço familiar, onde semprefui, mesmo durante os anos oitenta. Era umterreno que eu já conhecia. Em 1999 estreeino Hot Clube o reportório da Billie Holiday.Na terrível década de noventa, as músicasque gostava de ouvir em casa eram as doChet Baker, da Billie Holiday, e do Miles, cla-ro (que vi em Lisboa no Coliseu, num con-certo em que chorei imenso, porque ele co-meçou a tocar aquela música da Cindy Lau-

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Podiam era ter mudado o nome da banda...Depois eu e o Luís Pedro Fonseca fizemos aBanda Atlântida, sendo ele o compositor dequase todos os meus grandes temas.Luís Pedro Fonseca, o seu grande cúmplice des-de sempre.Sim, é um companheiro de uma vida, comquem continuo a trabalhar. Estamos a pre-parar juntos um disco para 2009. Já temosquatro temas novos... vamos só buscar umou dois dos antigos. Vai ser um disco só comtemas do Luís Pedro Fonseca. Estou farta defazer coisas em que ele está incluído mas éignorado, ninguém menciona o nome dele,é inacreditável. Este país é assim.Que zanga é essa com o país? Acusa amiúde opaís de a esquecer... Não sou a única, como é evidente. Estou hátrinta anos nisto, não seria natural que a RTP

me tivesse convidado para um evento da co-memoração dos cinquenta anos da televisãopública, que durou um ano inteiro? Não meconvidaram uma única vez. Será que sou euque tenho a mania da perseguição? Não meparece. A Casa do Gil não me convida para na-da, não me convidam para os fins do ano noTerreiro do Paço, nunca cantei no S. Luiz,nem no Maria Matos... parece que estou aquia fazer queixinhas... e estou, porque é verdade.O próprio Big Brother fui eu que me inscrevi...Fale-me dessa sua passagem pelo Big Brotherdos Famosos há cinco anos. Foi uma experiên-cia positiva?Fui eu que me inscrevi e adorei lá estar. Per-guntei se havia vagas e quanto é que paga-vam. Estava em casa sem fazer nada nemganhar dinheiro, e fui. E achei uma expe-riência interessante. Só tive pena de não

ter ficado mais tempo, mandaram-me em-bora. Eu comecei a fazer campanha pelareciclagem, falei com as pessoas e disse queachava bem fazermos separação dos plás-ticos e dos cartões, mas essa minha inicia-tiva não foi bem recebida, as pessoas nãoestavam minimamente sensibilizadas pa-ra a reciclagem, e aquilo enervava-me...penso que foi um dos motivos da minha no-meação. Sim, olho para isso como uma ex-periência positiva. O que retirei dela? Eusentia-me como num barco, estávamos iso-lados do mundo, não tínhamos televisãonem telefones, não víamos outras pessoas.Só ouvíamos uma voz quando íamos aoConfessionário tratar de algum assunto, oupedir alguma coisa. Não tínhamos chaves,não havia jornais. Mas esse corte com o dia--a-dia, que nos libertava do quotidiano, foi

Começámos esta conversa noterraço da casa dela, na aldeia acerca de oitenta quilómetros anoroeste de Lisboa ondeescolheu viver desde há unsmeses. O céu enorme por cimadas nossas cabeças, o ar puro, oespaço, a alegria dela inalteradaaos 52 anos. Passam patos avoar, que ela acarinha com oolhar, orgulhosa de viver numlugar onde até no céu há animais.Conta-nos que lhe roubaram acadela («que andava pelas ruasde Lisboa aos pontapés») queadoptou, subtraída para a caçapor «bandidos organizados»,acusa revoltada. Diz que «isto émesmo assim», que é «o país».Refila sem qualquer

agressividade, defendendocheia de legitimidade os direitosda mulher de causas que semprereconhecemos nela. Mais àfrente na conversa decidimosabrigar-nos do sol portuguêsbatido a vento atlântico, erecolhemos. Entram insectos,passa uma abelha. «Isto é assimpor causa dos animais», diz,referindo-se aos habitantes doscampos agrícolas em redor dacasa. Parece tranquila e feliz.Porém, inquieta por dentro esempre combativa. Lê, fazpesquisa histórica (sobre umcerto Waters, uma tal Junot),escreve blogues, anda a encher-se de desejo de escrever, paraatacar uma biografia (vem de

longe o chamamento das «belasletras»). Se para muitos dos que lerãoesta entrevista ela é a meninados Salada de Frutas e da BandaAtlântida que nos comecinhosdos anos oitenta cantava o Olhórobô ou o Demagogia, paraoutros (os mais velhos) ela é «afilha do Zé Águas», o pai goleadorque glorificou o Benfica nocomeço dos anos sessenta (eirmã de Rui Águas, também elefutebolista). Há depois aqueles(mais novos) que se lembramdela das Canções do Século, queprotagonizou juntamente comRita Guerra e Helena Vieira, umespectáculo de Pedro Osório, eque deu que falar até perto do

final dos anos noventa.Finalmente, há os que selembram de vê-la na televisão,numa breve passagem por umBig Brother dos Famosos em queparticipou (que não deixousaudades a muitos fãs dacantora desalinhada que nuncadeixou de ser). Mas Helena Águas é bastantemais do que (tudo) isso. É umacantora excepcional, de vozlímpida e poderosa, qualidadesvocais que manteve apesar detodos os excessos. Dos temposnegros fala sem qualquerproblema. Assume osdisparates, aprendeu as lições.Talvez fosse preciso passar poraí para cantar Billie Holiday e Elis

Regina, as cantoras que maisadmira, e que homenageouno Hot Clube – projectos queestão na génese do discoque gravou no final de 2005na sala de concertos de jazzdo Hot Clube de Portugal:Sempre, um disco gravadoao vivo com um grupo demúsicos de jazz e queconsta de um conjunto decanções que diz ter ido«buscar ao baú da memóriaafectiva». Grandes temasperto do coração dela,de José Mário Branco,Sérgio Godinho,Jorge Palma, Antó-nio Variações e,claro, Luís Pedro

Fonseca, o cúmplice desempre, autor do míticoSempre que o amor me quiser.Editado no ano passado pelaEMI, com o selo de qualidadeda Blue Note, Sempre pôsfim a um longo interregno dequinze anos sem gravar emnome próprio.Acontecimento contudorápida e lamentavelmente

apagado pelas lógicas deuma dinâmica de mercadoque torna demasiadoefémera a vida útil das novi-dades discográficas (omesmo acontecendo aliáscom as editoriais), logodestinadas aoesquecimento (sobretudoquando não passam nasrádios). S.A.SEMPRE na Internet:http://www.desorgan.com/clientzone/emi/lenaagua/

AGRADECIMENTOSA nm agradece ao Hot Clubede Portugal adisponibilização do espaçopara fotografar Lena d’Água.

Sempre

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per, o Time after time, e eu abri a torneira,uma comoção enorme, por ele estar a tocaruma coisa de uma miúda do meu tempo... edepois o Miles não voltou, não houve bis, elogo a seguir resolveu morrer). No final dosanos noventa, no final também da minha lu-ta com a heroína (que teve uma fase de me-tadona, uns adiamentos parvos, umas subs-tituições sem interesse) começou a vir-meuma vontade de cantar sozinha, e de ser eua escolher o que havia de cantar. O jazz era um caminho natural.Sim, era. Comecei pela Billie, apetecia-mecantá-la, o André Machado disse-me paraescolher os temas, que ajudava a escolheruma banda. Eram músicos mais novos doque eu, uma geração antes da minha. Fizuma pesquisa enorme sobre a vida dela, an-dei a ler as entrevistas que deu, as coisas quedisse e que fez (gosto de fazer as coisas a sé-rio) e, passado um tempo, estreei. Um oudois anos depois, fiz o mesmo com a Elis Re-gina, mas houve menos concertos do quecom a Billie. Fiz concertos em cineteatros epequenos auditórios, gosto desse tipo de sa-las e de ambientes. Mais do que feiras e fes-tivais de Verão. Claro que ouvi «bocas», depessoas que achavam estranho a Lenad’Água estar a fazer jazz.Por vezes os sucessos tornam a vida compli-cada, dir-se-ia que as pessoas querem que osartistas se limitem a reproduzir essa coisa deque elas gostaram muito. No outro dia a minha filha ligou-me a dizerque estava a passar o Sempre que o amor mequiser na rádio, na versão antiga. Uma coisaque já foi gravada há vinte e tal anos, e quetem uma versão recente (incluída no Sem-pre), com a minha voz de hoje... não percebopor que razão não passam a versão actual. Sei que está em força na Internet, onde tem vá-rios blogs.O mundo mudou muito nos últimos anos.Muito por causa da Internet. Comprei omeu primeiro computador em 2000, e hojeem dia sou uma mulher da Internet. O meuarquivo fotográfico e as minhas pesquisashistóricas estão todas na Internet.Pesquisas históricas?Eu vivo flashada com a Inglaterra desdecriança. Tinha uma paixão pela língua... eainda hoje ouço o Rule Britannia e comovo-me às lágrimas (risos). E agora vim parar auma terra marcada pelas invasões francesas.Esta zona era o último reduto francês. E euagora pus-me a pesquisar a vida da Laure Ju-not e fui parar às coisas militares, claro, dosfranceses como dos ingleses. Interessei-mepelas mulheres da época dessas batalhas, edescobri a mulher do Junot, que foi amiga deinfância de Napoleão. E ela, depois de o Ju-not enlouquecer (e se atirar pela janela pen-sando ser um pássaro) e de ela enviuvar, co-meçou a escrever. Tenho portanto andado aviajar por este nosso planeta e por este nossopaís de há duzentos anos. Nós, portugueses,

temos pouca coisa digitalizada, mas as uni-versidades americanas fizeram isso tudo.Antes disso andei também atrás do John Wa-ters, de quem talvez seja descendente. Quem era John Waters?Há mais de vinte anos fui cantar numa festade Natal no Clube dos Oficiais da Marinha,no Marquês de Pombal (uma casa linda! quepenso levaram para outro lado), e foi lá queum primo Agoas me falou do tal oficial in-glês que veio com o Wellington. Essa con-versa, em que o meu primo falou numa pos-sível ligação desse nome Waters ao nossoAgoas/Águas, veio ao encontro de uma«panca» forte que desde miúda tenho pelaInglaterra, pela língua, a cultura, a história,a música. Sempre que passava nesta zona ouna Figueira da Foz (onde se deu o desembar-

que principal de Wellington de 1 a 5 de Agos-to de 1808) sentia uma enorme vontade desaber mais. Até que o abençoado GoogleBooksme deu a possibilidade de entrar a fun-do nestes anos, em que graças à guerra con-tra o Napoleão aqui na península se escreve-ram cartas, jornais de campanha, memóriase mais memórias de ingleses e franceses quepor aqui andaram durante cerca de seteanos. Em 12 de Maio de 1809 o John Watersfoi herói na expulsão dos franceses do Por-to. E agora cheguei à Laure Junot, a Mada-me Junot, mulher extraordinária e fora doseu tempo, que acabou doente e na miséria,mas que manteve amigos como Chateau-briand e Balzac (com quem manteve, já viú-va, uma relação íntima de muitos anos). Foiele quem a incentivou a escrever as memó-rias, que ando a devorar tipo bicho da ma-deira agarrada ao Google! Há nisso um claro desejo de conhecimento dasraízes, parece-me.Há um desejo de procura das minhas raízes,claro. Raízes, memórias, pressentimentos...eu já cá vivi, eu sei que já cá estive, e por issoescolhi esta casa aqui neste sítio. Falo de vi-das passadas, anteriores.Ouvi dizer que está a ganhar embalagem paraescrever a sua biografia.O meu livro é uma tarefa complicada de co-meçar, porque tenho tantas memórias quenão sei por onde iniciar. Tenho memórias jámuito antigas. Eu tenho memória de mimprópria desde que tinha um problema no um-bigo e não podia ficar deitada de barriga parabaixo. Ou seja, eu tenho memória do cordãoumbilical. Fui a primeira mulher a cantarcom conjuntos, antes mesmo dos Salada deFrutas, com os Beatnicks. As minhas memó-rias como cantora passam muito pelas me-mórias dos meus amores. Namorei o PedroPaixão, e vou ter de incluí-lo no meu livro. Vouter porque quero. Ele escreveu sobre mim, so-bre a aventura que foi para ele andar comigona estrada. Ele escreveu sobre mim, mas tam-bém sobre os músicos e sobre as terras. Nóschegávamos aos sítios para fazer os ensaiosde som e não se via ninguém. Normalmenteera no Verão, e os concertos eram ao ar livre,mas só à hora de começar os concertos é queas pessoas apareciam, e de repente eram ma-res de pessoas e carros por todo o lado. E o Pe-dro escreveu muito bem sobre isso. Isto foiem 1985, durante os meus concertos com aBanda Atlântida. Adoro o Pedro, ficámos ami-gos para sempre. Nascemos no mesmo ano.Durante esse nosso relacionamento, fui trata-da como uma princesa. Um homem que nãoestava apaixonado por mim foi o homem quemelhor me tratou. Qualquer mulher sonhacom um homem assim. E eu adorava a com-panhia dele. Ouvia-o ler, ou então lia eu, ascoisas que ele ia escrevendo. Convidava osamigos, e eu lia para eles. Compreendia bema linguagem dele e lia com enorme prazer tu-do o que ele escrevia.«

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TV«Fui eu queme inscrevi no Big

Brother, adorei lá es-tar.Foi muitointeressante.

E precisava dedinheiro e em duas

semanas ganhei milcontos»