Lenadro Karnal

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morte

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Por quem os sinos dobram?A morte poderosa. Ela tambm assusta. Em primeiro lugar, pelo bvio: ela universal e inevitvel. o conceito final e, por isso mesmo, evitamos seu contato at no nome. Dizer Dia de Finados j parece uma mistura de portugus antigo e eufemismo. Os mexicanos vo direto ao ponto: Da de los Muertos.Em segundo lugar, a morte produz arte. Duas das sete maravilhas do mundo antigo so monumentos funerrios: as pirmides do Egito e o tmulo do rei Mausolo em Halicarnasso, que deu origem ao nome mausolu. Ainda que democrtica e igualitria em si, a morte produz desigualdades estticas e de poder.A Capela dos Ossos, em vora (Portugal), choca a sensibilidade contempornea, mas foi pensada para ser uma lembrana religiosa e moral. "Ns, ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos."Em terceiro lugar, a morte est associada f. Grande parte das religies orbita em torno do nosso fim ou do anseio de imortalidade. Na hora extrema, jainistas da ndia podem optar por uma morte pblica e quase teatral. Para catlicos, so Jos (padroeiro da boa morte) se oferece alma devota como guia seguro.Todo o cristianismo foi fundado em torno de dois conceitos ligados morte: Jesus morreu pela humanidade e, ressuscitando, venceu a morte. Judeus consideram uma ao positiva pertencer Chevra Kadisha (sociedade sagrada), que prepara o corpo e ampara a famlia. Espritas preferem o verbo desencarnar. Islmicos insistem na igualdade de todos em tmulos sem ornamentos e, por vezes, at sem nome.Por fim, a morte uma grande inquietao filosfica. Albert Camus pensou na morte como o "momento absurdo" na sua anlise do mito de Ssifo. O texto foi escrito em pleno horror da Segunda Guerra.A morte do filsofo Scrates retratada pelo pintor Jacques-Louis David com a dignidade neoclssica do momento que deu significado para toda uma vida. Para o filsofo, a aceitao tranquila da morte era o sinal de que havia sido coerente. Para ns que somos menos do que Scrates, o extremo da pobreza no ter "onde cair morto". Morrer o smbolo de toda a vida.O conceito, porm, continua incmodo. Nos meios urbanos ocidentais, a morte foi afastada da vista pblica. No se vela mais em casa o corpo de entes queridos. H uma tanatofobia, um horror morte, entre ns. A morte tornou-se mais assptica. Foi isolada em hospitais.Quando ocorre em acidente pblico, corpos devem ser imediatamente cobertos. A morte incomoda. Basta comear a tocar nela e todos sentem um vago mal-estar. Quase todos preferem trocar de assunto.Alguns de ns foram criados em hbitos mais antigos, como visitar cemitrios no Dia de Finados. Os jovens de hoje raramente o fazem. Os jovens no querem ir a enterros. Esto longe da morte e manifestam pouca preocupao com ela.Ns, mais velhos, tambm no gostaramos de ir. A fora da obrigao e do hbito nos arrastam.alvez por isto tenhamos raiva da frase clssica de um adolescente ao ser convidado a um velrio: "No gosto". Como tambm no gostamos, nos irritamos com a frase que desnuda, sem culpa, nossa resistncia.Por que vamos? Em parte porque somos menos livres do que os mais jovens. Talvez porque sejamos mais solidrios. Mas, em parte tambm, porque temos uma ideia da finitude e da dor do luto. Ir a tmulos um rito de religao. Visitamos mortos por causa de ns, vivos. Ns, os ossos que l estaremos, ainda temos carne e sangue e ainda choramos.O Dia de Finados o dia dos vivos, da fila que continua andando, das duas questes que nos abalam: o quanto sinto falta de quem se foi e o quanto temo ir. O vazio da morte est impactando quem vive.Os sinos dobram por ns, como o ttulo que tomei emprestado a Hemingway. Ouvi-los estar vivo. Quando eu parar de escut-los isso no ter mais importncia. O Dia de Finados nosso, dos que ainda podem ler este texto. Repousemos em paz.LEANDRO KARNAL, 52, historiador e professor da Unicamp e autor de "Pecar e Perdoar" (ed. Nova Fronteira)*