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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE EDUCAO

EDISON RIUITIRO OYAMA

LENIN, EDUCAO E REVOLUO NA CONSTRUO DA REPBLICA DOS SOVIETES

NITERI 2010

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EDISON RIUITIRO OYAMA

LENIN, EDUCAO E REVOLUO NA CONSTRUO DA REPBLICA DOS SOVIETES

Tese apresentada ao Programa de PsGraduao em Educao da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obteno do grau de Doutor em Educao.

Orientador: Prof. Dr. JOS DOS SANTOS RODRIGUES

Niteri 2010

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SUMRIOPgina

DEDICATRIA .............................................................................................. AGRADECIMENTOS .................................................................................... RESUMO .......................................................................................................

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INTRODUO: PROBLEMATIZAO E ASPECTOS METODOLGICOS 5 Problematizao: consideraes preliminares .......................................... 5 Reviso da bibliografia ........................................................................ 11 Questo de pesquisa e hiptese de trabalho ...................................... 20 Objetivos e justificativas ...................................................................... 21 Aspectos metodolgicos ............................................................................ 22 Caracterizao da pesquisa, fontes e limitaes ................................ 22 Critrios de organizao e anlise das fontes de informao ............. 23 1 OUTUBRO DE 1917: ELEMENTOS HISTRICOS, POLTICOS E SOCIOLGICOS ........................................................................................ 1.1 Elementos histricos ............................................................................ 1.1.1 Apontamentos sobre a histria da revoluo russa ..................... 1.1.2 A consolidao da revoluo ....................................................... 26 26 26 33

1.1.3 O comunismo de guerra .............................................................. 40 1.1.4 A Nova Poltica Econmica e a adoo do modelo de Partido nico ............................................................. 44 1.2 Elementos polticos .............................................................................. 47 1.2.1 O papel e a importncia de Lenin para a Revoluo Bolchevique de Outubro de 1917 .............................. 47 1.2.2 O pensamento poltico de Lenin .................................................. 52 1.2.3 Socialismo, comunismo, ditadura do proletariado, revoluo em Lenin ..................................................................... 55 1.2.4 A classe trabalhadora .................................................................. 59

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1.3 Elementos sociolgicos ....................................................................... 1.3.1 A Rssia imperial ........................................................................ 1.3.2 Questes referentes burguesia ............................................... 1.3.3 Sobre a educao czarista/burguesa .........................................

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2 LENIN E A EDUCAO ANTES DE OUTUBRO DE 1917 ........................ 70 2.1 Lenin e a educao: aspectos biogrficos ........................................... 70 2.2 Elementos subjacentes investigao do tema Lenin e a educao: poltica, luta de classes, revoluo ...................................................... 73 2.3 Lenin e a educao antes de Outubro de 1917 ................................... 77 2.3.1 As disputas com os populistas .................................................... 78 2.3.2 A educao poltica do proletariado e as crticas educao czarista ........................................................ 80 2.3.3 Educao revolucionria antes da revoluo? ............................ 90 3 LENIN E A EDUCAO APS OUTUBRO DE 1917 ................................ 93 3.1 A luta contra o analfabetismo .............................................................. 94 3.2 O programa do Partido de 1919 para a educao ............................... 99 3.3 Confirmao da hiptese de trabalho ...............................................101 3.4 A dimenso poltica da educao leninista ..........................................102 3.4.1 Acabar com o poder da burguesia...............................................102 3.4.2 Implantar as bases para construo da sociedade socialista / comunista ..................................................................106 3.5 A dimenso econmica da educao leninista ....................................108 3.5.1 A politecnia: tarefas imediatas e mediatas ..................................108 4 LENIN E A EDUCAO NA CONSTRUO DA REPBLICA DOS SOVIETES E DA SOCIEDADE SOCIALISTA ...........................................115 4.1 Outubro de 1917: breve balano .........................................................115 4.2 O problema da construo da sociedade socialista ............................119 4.3 Lenin e a educao: concluses pontuais ........................................127 4.3.1 Interlocuo com a reviso da bibliografia ...............................127 4.3.2 Para alm da hiptese de trabalho..............................................128 4.3.3 Educao e poltica em Lenin .....................................................130 4.3.4 A politecnia ..................................................................................132 4.3.5 Contrarrevoluo burocrtica, carncia, escassez e educao ..................................................................133

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CONSIDERAES FINAIS ..........................................................................138 REFERNCIAS .............................................................................................143 ANEXO I ........................................................................................................153 ANEXO II .......................................................................................................156

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Aos

da

classe

trabalhadora

que

lutaram

pela

construo da Repblica dos Sovietes.

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AGRADECIMENTOS

Ao Jos dos Santos Rodrigues, pela competncia, rigor, seriedade e amizade. Aos Membros das Bancas de Qualificao e Defesa: Dermeval Saviani, Eunice Trein, Ktia Lima, Roberto Leher, Ronaldo Rosas Reis e Virgnia Fontes. A todos do Campo Trabalho e Educao e do Programa de Ps Graduao da FEUFF. s Funcionrias da Secretaria de Ps-Graduao da FEUFF. Aos Colegas do Centro de Educao da UFRR. A todos os Profissionais e Amigos da Creche UFF e do Colgio Universitrio Geraldo Reis. Ao grupo de difuso da cultura afro-brasileira Gingas, o qual desenvolve um belo trabalho educativo junto

comunidade do Bairro So Domingos, em Niteri. A todos do Interveno Comunista. Aos meus familiares. Maria Helena, Liamar e Andr Luiz. Com muito carinho e gratido, a todos que, direta ou indiretamente, contriburam para a realizao deste trabalho.

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RESUMO OYAMA, Edison Riuitiro. Lenin, educao e revoluo na construo da Repblica dos Sovietes. Orientador: Jos dos Santos Rodrigues. Niteri-RJ/UFF, 26/01/2010. Tese (Doutorado em Educao), 165 pginas. Campo de Confluncia: Trabalho e educao; Linha de Pesquisa: O mundo do trabalho e a formao humana. Nosso propsito com a presente tese foi investigar o tema educao escolar e revoluo social num contexto histrico determinado, qual seja, o perodo imediatamente posterior ecloso da Revoluo Russa de Outubro de 1917, examinando quais eram os objetivos e as aes de Vladimir Ilich Ulianov (Lenin) no campo da educao. Para tanto, empreendemos uma pesquisa de natureza bibliogrfica, sendo que as fontes empricas compulsadas foram os textos e obras de Lenin referentes educao. Alm destas, tambm recorremos a informaes pertinentes histria da revoluo russa, ao perodo do comunismo de guerra e da Nova Poltica Econmica, bem como a biografias e estudos de especialistas em Lenin. Por sua vez, o contedo do trabalho trata: dos aspectos natureza histrica, poltica e sociolgica relacionados ao Outubro de 1917 e da anlise propriamente dita do tema Lenin e a educao antes e depois de 1917. Mas, se em seu delineamento inicial, o estudo se restringia aos anos de 1917-1924, com o desenvolvimento da pesquisa percebemos que excluir uma anlise referente ao perodo anterior a 1917 comprometeria o entendimento mais abrangente do que significou a educao para Lenin. Desse modo, no perodo anterior insurreio de 1917, investigamos a questo da educao poltica das massas e as disputas com os populistas russos. Aps o Outubro de 1917, pesquisamos sobre os esforos da Repblica dos Sovietes na erradicao do analfabetismo; o Programa do Partido Comunista Russo de 1919 para a educao e a politecnia. Ao final, deduzimos que: a educao assumiu grande importncia e papel de destaque no que se refere educao poltica das massas e na preparao da revoluo bolchevique; no processo de consolidao da revoluo; de (re) construo econmica e implantao das bases para construo da futura sociedade comunista. Conclumos tambm que: a educao e a educao escolar participam necessariamente da luta de classes em vrios nveis e dimenses da realidade; a derrubada do poder poltico na Rssia foi uma premissa para as transformaes revolucionrias ocorridas posteriormente no campo da educao sovitica; educao e poltica so

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indissociveis. Finalmente, declaramos que todos que se proponham a pensar em assuntos como a revoluo social ou o problema da construo do socialismo, no podem deixar de investigar, refletir, prever e planejar o papel e a importncia que a educao e a educao escolar tm a desempenhar nesses processos histricos.

Palavras-chave: Lenin e a educao; revoluo russa e educao; educao e revoluo

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INTRODUO: PROBLEMATIZAO E ASPECTOS METODOLGICOS Problematizao: consideraes preliminares Um tema importante e que discutido de forma recorrente no campo educacional se refere s relaes que se estabelecem entre a

mudana/transformao social e a escola. Em outras palavras, muito comum haver dvidas, reflexes, afirmaes categricas, relativas questo de que a educao escolar ou poderia ser um instrumento tanto de mudana quanto de transformao social. Mas, independentemente das concepes sobre o que se entende por mudar ou transformar, para ns o essencial saber at onde se pretende chegar com ambas. Ou seja, a mudana e a transformao se restringem aos limites da ordem burguesa ou se referem superao do modo de produo capitalista? Assim, nosso objetivo foi tratar do tema revoluo social e educao escolar e o que nos moveu, fundamentalmente, foi a reflexo a respeito da ecloso da revoluo socialista como um fato concreto e quais relaes o processo revolucionrio estabelece com a educao escolarizada. Sobre a revoluo social, recorremos ao Manifesto do Partido Comunista1 (MARX; ENGELS, 2007b), enfatizando dois elementos essenciais da parte II desta obra (item Proletrios e comunistas): a abolio tanto do poder econmico da burguesia (mediante a extino da propriedade privada dos meios de produo e consequentemente da apropriao privada da riqueza produzida social e coletivamente)2, quanto do seu poder poltico, por intermdio da derrubada do Estado burgus. No tocante educao escolar, o princpio geral que a fundamenta a concepo segundo a qual a produo material da existncia do ser humano condiciona todas as outras esferas da realidade. Com base nessa premissa, entendemos que a humanidade instaura modos distintos de sociabilidade que tendem a ser fixados [...] em instituies determinadas (famlia, condies de trabalho, relaes polticas, instituies religiosas, tipos de educao, formas de arte, [...]) (CHAU, 2001, p.23).

Segundo Coggiola (2007, p.9), a primeira edio do Manifesto ocorreu em fins de fevereiro / incio de maro de 1848, em Londres. Para este trabalho, ns consultamos a edio de maro de 1998 da Boitempo Editorial, atualmente em sua 5 reimpresso. 2 Marx e Engels (2007a, p.52) escreveram no Manifesto: [...] os comunistas podem resumir sua teoria numa nica expresso: supresso da propriedade privada.

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Todavia, enquanto a educao se refere a um processo social de maior amplitude, cujo objetivo o de [...] produzir, direta e intencionalmente, em cada indivduo singular, a humanidade que produzida histrica e coletivamente pelo conjunto dos homens [...] (Saviani, 2003b, p.13), a escola consubstancia o modo pelo qual uma instituio em particular assumiu a forma principal e dominante do processo educativo (Idem, ibidem, p. 7-8). E medida que se sucedem formas de organizao social, a cada uma delas correspondem tipos de educao, educao escolar e teoria educativa. No caso do modo de produo capitalista, existiram modelos de educao consentneos s formas pr-capitalistas, ao artesanato, s manufaturas, aos monoplios etc. (BOWLES; GINTIS, 1985). Isto , existe uma correspondncia estrutural entre o sistema produtivo e o sistema educacional, o que no quer dizer necessariamente que a relao entre ambos seja mecnica, unidirecional e linear, mas mediada. A nosso ver a educao escolar apresenta a tendncia a reproduzir as relaes dominantes, sob o ponto de vista econmico e poltico, de acordo com o raciocnio segundo o qualAs ideias da classe dominante so, em cada poca, as ideias dominantes, isto , a classe que a fora material dominante da sociedade , ao mesmo tempo, sua fora espiritual dominante. A classe que tem sua disposio os meios da produo material dispe tambm dos meios da produo espiritual, de modo que a ela esto submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da 3 produo espiritual. (MARX; ENGELS, 2007a , p.47, grifos dos autores).

Desse modo, uma das formas pelas quais se mantm o poder poltico e econmico por meio da educao, dado seu carter de mtua influncia e relao com os processos econmicos e polticos e sua vinculao com a luta de classes. Em acrscimo s anlises de Marx, Engels e Lenin, outros tambm j haviam constatado: a educao na sociedade burguesa uma educao burguesa. Em outras palavras, Enquanto existir uma sociedade de classes, a escola

inevitavelmente ser uma escola de classes [...]. (SNYDERS, s.d., p.32). Por conseguinte, preciso reconhecer que o modo de produo capitalista impe determinaes de natureza econmica e poltica escola. Nesse sentido, 3

Considerada uma obra inacabada, A ideologia alem foi escrita durante os anos de 1845-1846 e submetida para publicao. Contudo, diante da recusa para publicao do manuscrito, o texto foi deixado de lado, sendo publicadas partes do texto original apenas na dcada de 20-30 do sculo XX, por David Riazanov (ENDERLE, 2007).

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foroso admitir que, mesmo consideradas outras mediaes, a escola se torna um instrumento de classe, na medida em que os [...] processos educacionais e os processos sociais mais abrangentes de reproduo esto intimamente ligados. (MSZROS, 2005, p.25). Contudo, a submisso da educao escolar aos imperativos do capital seria absoluta, ou ela poderia encerrar elementos revolucionrios? Para Ponce (2001, p.162-163), a educao e a revoluo andam juntas, na medida em que a primeira [...] tem sempre estado a servio das classes dominantes, at o momento em que outra classe revolucionria consegue desaloj-las do poder e impor sociedade a sua prpria educao. Em outros termos, significa que medida que se alteram os domnios de classe, modifica-se tambm o sistema educacional, pois quando uma nova classe dominante ascende ao poder, ascende um novo tipo de educao. Ademais, Nenhuma reforma pedaggica fundamental pode impor-se antes do triunfo da classe revolucionria que a reclama [...] (Idem, Ibidem, p.169, grifos do autor). Mas a dificuldade em lidar com a relao entre a instruo4 e a transformao (ou revoluo) social persiste, conforme depreendemos do que escreveu Manacorda (2006, p.304):O problema estava no ar: qual das duas coisas mais importante? Qual o primeiro a ser resolvido? Exatamente em 1869, [...] Marx, falando no Conselho Geral da I Internacional, onde este problema j surgira, reconhecia a particular dificuldade em abord-lo: Exige-se, de um lado, uma mudana das condies sociais para criar um sistema de instruo adequado e, do outro lado, um adequado sistema de instruo para poder mudar as condies sociais.

De maneira diversa, a revoluo social e a educao seriam elementos conjugados e imbricados, em que ambos fazem parte de um nico e mesmo processo? Foi o que sugeriu Marx, em sua III Tese sobre Feuerbach5:A doutrina materialista que pretende que os homens sejam produtos das circunstncias e da educao, e que, consequentemente, homens transformados sejam produtos de outras circunstncias e de uma educao modificada, esquece que so precisamente os homens que transformam as circunstncias e que o prprio educador precisa ser educado. por isso que ela tende inevitavelmente a dividir a sociedade em duas partes, uma das quais est acima da sociedade. A coincidncia da mudana das circunstncias e da atividade humana ou automudana s

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Supomos que o termo instruo pode ser tomado como sinnimo de educao escolar. Nesta edio de A Ideologia Alem, As Teses sobre Feuerbach foram publicadas como Anexo.

13 pode ser considerada e compreendida racionalmente como prxis 6 revolucionria. (MARX; ENGELS, 1989, p.94, grifo dos autores).

Outro ponto polmico sobre o assunto relaciona-se com a existncia de concepes distintas a respeito da participao e da importncia da instituio escolar quando da ocorrncia de um processo revolucionrio. Dito de outra forma, existem aqueles que atestam que a escola, por si s, no capaz de assumir um papel revolucionrio, sendo que tudo o que se faa no seu interior nesse sentido seria reformismo. Desse modo, o papel da educao escolar seria basicamente instrumental, cabendo a um partido revolucionrio a tarefa de fazer a revoluo, para quem a escola apenas forneceria militantes (CARVALHO, F. M. de 2005b; CERVETTO, s.d.; INTERVENO COMUNISTA, s.d.). Por outro lado, h aqueles que julgam que a escola desempenha um papel de destaque na construo do socialismo e da revoluo. Por exemplo, muitas experincias autoproclamadas revolucionrias no campo da educao, algumas delas associadas a movimentos sociais, ONGs, populaes e comunidades que se diferenciam em termos tnicos, sociais, polticos etc.7 Contudo, mesmo concordando que tais movimentos desenvolvam uma atividade pedaggica coerente com a constituio de uma sociedade socialista, patente que no seu conjunto, tais propostas no lograram obter fora poltica suficiente para transformar radicalmente o modo de produo capitalista e tampouco conseguiram se generalizar ou multiplicar suas experincias. Em outros termos, o capitalismo se mantm, a despeito muitas vezes da seriedade, do denodo e da dedicao das pessoas envolvidas com tais movimentos, os quais, em ltima instncia, no fizeram a revoluo e portanto, no concretizaram seu objetivo de constituio do socialismo. Mesmo considerando a complexidade e a abrangncia relativas ao tema educao escolar e revoluo e as mltiplas possibilidades de abord-lo, optamos inicialmente8 por empreender uma anlise tanto da denominada concepo histrico-crtica da educao (SAVIANI 2003a; 2003b), quanto das chamadas teorias

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Na transcrio do texto ns suprimos as notas da Editora. A ttulo de exemplo, em nvel de Brasil, referimo-nos ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. No exterior, aos movimentos sociais localizados nas regies de Chiapas e Oaxaca, no Mxico. 8 Referimo-nos ao projeto de tese apresentado em nosso Exame de Qualificao, em agosto de 2008.

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crtico-reprodutivistas9 (ALTHUSSER, 1980; 1999; BAUDELOT; ESTABLET, 1980; BOURDIEU; PASSERON, 1982; BOWLES; GINTIS, 1985). Desse modo, com relao concepo histrico-crtica da educao, averiguamos a proposta de Saviani (2003a, p.65-66; p.76), no que se refere implantao de uma suposta pedagogia revolucionria. Quanto s teorias da reproduo, investigamos uma das possveis limitaes dessas teorias, qual seja, a excluso de uma anlise sobre a produo, de maneira que as teorias crticoreprodutivistas tendem a superestimar o papel da escola na reproduo das relaes sociais, dirigindo toda a carga do problema para a instituio escolar e para a ideologia, desconsiderando o nvel da produo (CUNHA, 1979, p.99-100; LEFEVBRE, 1977, p.230-236; PETIT, 1982, p.48-50; SNYDERS, s.d., p.86). Dessa forma, considerando-se o poltico e o econmico como esferas preponderantes do modo de produo capitalista, dois elementos se sobressaram de forma conjunta em relao educao escolar a necessidade de um estudo sobre economia poltica e as perspectivas para a ao poltica -, pois de acordo com Ianni (1988, p.7):Ao analisar o capitalismo, Marx apanha os fenmenos como fenmenos sociais totais, nos quais [se] sobressaem o econmico e o poltico, como duas manifestaes combinadas e mais importantes das relaes entre pessoas, grupos e classes sociais. Por isso que a sua anlise apanha sempre as estruturas de apropriao econmica e dominao poltica [...].

Assim, com base nas limitaes identificadas tanto na concepo histricocrtica da educao quanto nas teorias da reproduo, na ocasio, o problema a ser investigado foi formulado nos seguintes termos: quais so as perspectivas revolucionrias ligadas educao escolar, considerando-se um estudo conjugado sobre economia poltica da educao e uma teoria da revoluo? Porm, esta abordagem inicial do tema apresentou uma srie de dificuldades de natureza epistemolgica. Isto , quais so os limites e as possibilidades impostos teoria, em relao apreenso, compreenso, explicao e transformao do real? Portanto, o delineamento inicial da investigao apresentava grande limitao quanto s suas possibilidades explicativas para a questo de pesquisa proposta.Assim como Manacorda (2006, p.313), tambm achamos que as etiquetas repugnam, mas pela necessidade de tornar a comunicao mais gil, por vezes se torna difcil no empreg-las. Desse modo, a expresso crtico-reprodutivista foi tomada de Saviani (2003a; 2003b), o qual se refere genericamente aos estudos vinculados teoria dos aparelhos ideolgicos de Estado, teoria da escola dualista e teoria do sistema de ensino como violncia simblica (SAVIANI, 2003a, p.15).9

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Outro percalo identificado foi que, pela prpria natureza do processo revolucionrio, o problema a ser investigado no poderia limitar-se exclusivamente instituio escola, na medida em que a revoluo ultrapassa e extrapola o nvel das relaes escolares. Dessa forma, seria preciso identificar as articulaes, as mediaes e as mltiplas determinaes existentes entre a dinmica da histria, a luta de classes, a emergncia e atuao de agentes e organizaes polticas (partidos, lderes, dirigentes) e a escola. Por conseguinte, conclumos que o problema fora colocado de modo ainda genrico, evidenciando a impossibilidade de lidar com ele. Logo, uma possvel soluo seria abordar o assunto articulando-o a um processo histrico determinado. Desse modo, num desdobramento das questes colocadas acima e em funo das limitaes relativas questo de pesquisa formulada inicialmente, optamos por investigar o tema educao e revoluo social num contexto histrico determinado o perodo posterior ecloso da Revoluo de Outubro de 1917, na recm criada Repblica Sovitica10. Especificamente, investigar quais eram os objetivos de Vladimir Ilich Ulianov - Lenin - para a educao no perodo de outubro de 191711 a janeiro de 192412. Para tanto, nosso trabalho foi organizado da seguinte forma: na Introduo expusemos o percurso trilhado at a elaborao final de nossa questo de pesquisa; empreendemos a reviso da bibliografia pertinente ao tema Lenin e a educao; apresentamos nossa questo de pesquisa, os objetivos e as justificativas. Ainda na Introduo mencionamos os aspectos metodolgicos relativos execuo da pesquisa. No captulo 1, tratamos dos elementos histricos, polticos e sociolgicos, com o intuito de expor os aspectos necessrios contextualizao e melhor compreenso do assunto Lenin e a educao. Nos captulos 2 e 3 desenvolvemos a investigao do objeto de nossa tese, no que se refere anlise do tema Lenin e aDe acordo com Carr (1981, p.43 et seq), a promulgao da Constituio da Repblica Sovitica Federal Socialista Russa (RSFSR) ocorreu em julho de 1918. Ao longo dos anos, foram incorporados RSFSR Azerbaijo e Ucrnia (1920), Bielo-Rssia, Armnia e Gergia (1921). Em dezembro de 1922, os congressos das quatro repblicas da RSFSR, da Ucrnia, Bielo-Rssia e Transcaucsia reuniram-se separadamente e aprovaram a criao da Unio das Repblicas Socialistas Soviticas (URSS). 11 Na poca, vigorava na Rssia o calendrio juliano, com uma defasagem de treze dias em relao ao calendrio gregoriano, vigente nos pases de capitalismo avanado, em suas reas de influncia e respectivas colnias. Portanto, a insurreio bolchevique ocorreu em 25 de outubro de 1917, pelo calendrio juliano e a 07 de novembro, pelo calendrio gregoriano. A Repblica Sovitica ajustou-se ao calendrio gregoriano a partir de 1 de fevereiro de 1918 (REIS FILHO, 2003, p.58). 12 Lenin faleceu em janeiro de 1924 e o seu ltimo texto de que se tem notcia foi Melhor menos, mas melhor, publicado em maro de 1923.10

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educao: antes de Outubro de 1917 e aps Outubro de 1917, respectivamente. No captulo 4 apresentamos a discusso dos assuntos, seguida das Consideraes finais, na forma de uma reflexo sobre as implicaes e consequncias do que foi tratado nos captulos anteriores, com destaque para o papel e a importncia que a educao assumiu para Lenin.

Reviso da bibliografia Na reviso da bibliografia pertinente ao tema Lenin e a educao, inicialmente, nossa investigao teve como base dois documentos: a dissertao intitulada Origem e desenvolvimento da educao na Rssia leninista (1917-1924): reconstituio de seus traos centrais, de autoria de Elisa Mainardi (MAINARDI, 2001) e a tese intitulada Lenin e a educao poltica: domesticao impossvel, resgate necessrio, cujo autor Francisco Mauri de Carvalho (CARVALHO, F. M. de 2005a). Por conseguinte, constatamos que a produo bibliogrfica em nvel nacional, na forma de teses e dissertaes deveras escassa, pois at o segundo semestre de 2008 foram localizados apenas esses dois trabalhos13. O curioso que, quando se compara a produo bibliogrfica que trata do tema educao/pedagogia associada a nomes como Marx, Gramsci e at Makarenko e Pistrak, em termos quantitativos, esta bastante superior produo bibliogrfica referente ao tema Lenin e a educao. A ttulo de exemplo analisemos a situao em relao a Marx. Em seu competente trabalho de investigao sobre a existncia de um pensamento pedaggico em Marx e Engels, no contexto em que tal pensamento foi gestado e anunciado, Nogueira (1993), em algumas de suas consideraes finais concluiu que o tema da educao e do ensino no central na obra de Marx e Engels, cujo tratamento, quando comparado ao de O Capital, est longe de ser minucioso e sistemtico. Mas a autora ponderou que incontestvel que a educao e o ensino encontram-se presentes no conjunto da obra desses autores, se bem que apresentando certas descontinuidades, ambiguidades e limitaes, tais como a ausncia de anlise: a) em relao aplicabilidade das propostas

Nessa pesquisa inicial baseamo-nos nas seguintes fontes de informao: Banco de teses e dissertaes do portal Capes; Education Resources Information Center (ERIC); Banco de dados bibliogrficos de Universidades Pblicas Estaduais e Federais do eixo Rio-So Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Santa Catarina; Banco de dados bibliogrficos da Biblioteca Nacional.

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pedaggicas apresentadas; e b) quanto ao desenvolvimento e aprofundamento em relao aos contedos do ensino (Idem, ibidem, p.206 et seq). Nosso objetivo com esta breve digresso no foi opor Marx e Engels de um lado e Lenin de outro, mas apenas refletir: se consideramos o envolvimento, a produo e principalmente a ao dos primeiros no campo da educao e do ensino14, em princpio, talvez se justificasse a existncia de uma produo bibliogrfica maior em favor de Lenin do que de Marx e Engels, mas o que aconteceu no Brasil foi exatamente o contrrio. Nesse sentido, perguntamos: qual seria o motivo de tal fato? Seria banal ressaltar o valor e a importncia de Marx e Engels em suas crticas ao sistema capitalista; no seu papel de destaque na organizao do movimento trabalhista e revolucionrio do sculo XIX; na sua influncia e inspirao em revolucionrios do mundo todo. Apenas por isso, a proeminncia de Marx e Engels j estaria justificada. Contudo, o vulto de Lenin no menor. Desse modo, a resposta questo acima talvez se relacione com uma possvel herana maldita creditada a Lenin, se levarmos em conta uma srie de elementos: seu papel fundamental na organizao do Partido Comunista da Rssia15 (PCR) e do governo sovitico, que posteriormente serviram de sustentao para a ditadura stalinista instaurada aps a morte de Lenin; o modelo organizacional e operacional do PCR, que serviu de exemplo para muitos partidos comunistas criados aps a ecloso da revoluo de outubro; a crena segundo a qual Lenin seria o responsvel pela conspirao de Outubro de 1917, a qual teria dado origem a uma ditadura cruel e violenta que se estenderia por dcadas etc. Bensaid (2000a) citou trs ideias bastante aceitas, empregadas na tentativa de se enterrar a revoluo de outubro e s quais Lenin pode estar associado: 1) o Outubro de 1917 no teria sido uma revoluo na acepo plena da palavra, mas um compl praticado por uma minoria, de cima para baixo, com uma concepo autoritria de organizao social em benefcio de uma nova elite; 2) essa seria uma deformao de gnese, que teria impregnado e determinado todo o desenvolvimento14

De acordo com Nogueira (1993, p.13), o livro Textos sobre educao e ensino (MARX; ENGELS, 2004) foi organizado e comentado por Roger Dangeville e publicado originalmente em francs, pela Maspro em 1976. O livro tambm foi publicado em portugus pela Editora Centauro. Trata-se de uma antologia dos textos de Marx e Engels sobre a educao e ensino. Porm, a antologia compese de textos em que na maioria das vezes a relao com o tema da educao e o do ensino apenas marginal. 15 Partido Comunista da Rssia (bolchevique), ou PCR (b): consultar a nota 53.

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ulterior da revoluo russa, de modo que a histria se reduziria s consequncias dessa conspirao original; 3) a revoluo russa foi um ato prematuro, uma tentativa de forar o curso da histria, quando as condies objetivas do capitalismo ainda no estavam dadas para sua superao. A propsito, Salem (2008, p.22), mencionou o pensamento segundo o qual Lenin encarnaria uma histria da qual s se poderia sentir vergonha. Bensaid (2000b, p.177), por sua vez, afirmou que aps a onda de antimarxismo ocorrida nos anos de 1980 at houve um retorno a Marx e a Trotski, mas [...] Lenin! Seu papel sem dvida o mais ingrato. O do vilo da histria, morto cedo demais [...] para ver as condenaes, os desterros e as arbitrariedades que viriam a acontecer. Zizek (2005, p.7) foi ainda mais enftico:A primeira reao pblica ideia de retomar Lenin , obviamente, uma risada sarcstica. Marx, tudo bem hoje em dia, at mesmo em Wall Street h gente que ainda o admira: o Marx poeta das mercadorias, que fez descries perfeitas da dinmica capitalista; o Marx dos estudos culturais, que retratou a alienao e a reificao de nossas vidas cotidianas. Mas Lenin no, voc no pode estar falando srio! Lenin no aquele que representa justamente o fracasso na colocao em prtica do marxismo? O responsvel pela grande catstrofe que deixou sua marca em toda a poltica mundial do sculo XX? O responsvel pelo experimento do socialismo real, que culminou numa ditadura economicamente ineficiente? Ento, se h um consenso dentro da esquerda radical da atualidade (o que resta dela), que, para ressuscitar o projeto poltico radical, devemos deixar para trs o legado leninista: o implacvel enfoque na luta de classes; o partido como forma privilegiada de organizao; a tomada violenta e revolucionria do poder; a consequente ditadura do proletariado [...]. (grifo do autor)

Para alm das questes relacionadas pessoa de Lenin, supomos tambm existir resistncia e hostilidade em relao investigao dos estudos leninistas16 da educao, posto que: a Revoluo de Outubro no significou a origem da ditadura stalinista, da derrocada da URSS e do socialismo real? No foi ela (a Revoluo de Outubro) a inspiradora e financiadora de vrias revolues (socialistas, de libertao colonial) e portanto, pelo malogro dessas revolues? Ademais, existiria tema mais dmod e to pouco atrativo do ponto de vista dos financiamentos em pesquisa do que a revoluo social? Contudo, optamos por seguir uma orientao diferente dessa possvel herana maldita creditada a Lenin. Logo, partindo da dissertao e da tese supracitadas, fomos compondo uma bibliografia, com base nas informaes sobre o assunto Lenin e a educao. Desse modo, constatamos que o assunto tratado, emOs termos leninista e leniniano foram empregados como sinnimos ao longo de nossa tese e significam to somente relativos a Lenin.16

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linhas gerais, em livros e artigos relacionados a temas sobre histria da educao; educao e socialismo; educao sovitica; revoluo bolchevique e educao; politecnia; trabalho e educao. Para o conjunto das obras que tratam da histria da educao russa / educao sovitica (ARANHA, 1989; CAMBI, 1999; GADOTTI, 1995; HUBERT, 1967; LARROYO, 1962; LUZURIAGA, 1967; MANACORDA, 2000; 2006; MORENO et al, 1978), o tema Lenin e a educao desenvolvido de forma breve na maioria delas, nas quais se discorre sobre temticas como trabalho produtivo; a associao entre trabalho, escola e vida; ao ensino politcnico e a nomes como Makarenko e Pistrak. Cambi (1999), por sua vez, exps de forma um pouco mais aprofundada elementos referentes aos modelos de educao socialista e liberal; aos tipos de educao implantados em pases totalitrios17, incluindo-se a ex-URSS; s relaes entre a Guerra fria e a pedagogia. Ainda numa abordagem histrica, mas sob uma perspectiva socialista, destacaram-se Dietrich (1973), Dommanget (1970) e Rossi (1981). Dietrich (1973, p.214), entre outros assuntos, tratou de questes referentes aos objetivos de Lenin com relao educao, dando destaque para o Programa do PCR de 1919. Dommanget (1970, p.446 et seq) e Rossi (1981, p.168 et seq) abordaram de forma similar o tema Lenin e a educao, segundo uma perspectiva cronolgica, descrevendo fatos e analisando algumas aes de Lenin no campo da educao. Identificamos tambm estudos a respeito da caracterizao geral da denominada pedagogia sovitica, correspondente ao perodo aproximado que vai de 1917 a 1930, com destaque para Makarenko (CAPRILES, 1989; CARVALHO, J. de O. et al, 2007; RODRIGUES, M. V., 2004). Compulsamos ainda trabalhos em que se sobressaa uma anlise a respeito dos temas trabalho e educao; politecnia; escola nica do trabalho; formao omnilateral. Mas nestes casos, presumimos que o objetivo dos autores no era desenvolver um estudo aprofundado sobre o tema Lenin e a educao (DORE, 2006; LAUDARES; QUARESMA, 2007; MACHADO, 1989; 1991; NOSELLA, 2007a; 2007b; RODRIGUES, J., 1998; SAVIANI, 2003c; 2007).17

Cambi (1999, p.577) definiu Estado totalitrio da seguinte forma: Um Estado totalitrio um Estado autoritrio, burocraticamente organizado, dirigido por um partido nico, capaz de controlar e unificar num projeto de ao comum toda a sociedade [...]; um Estado ideologicamente compacto, rigidamente estruturado, empenhado em conformar as massas aos objetivos dos partidos-Estados. O autor associou tal tipo de Estado totalitrio ao fascismo, ao nazismo e ao comunismo sovitico, a partir da poca stalinista.

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Com relao ao termo politecnia, Dore (2006), ao investigar a influncia e a forma como foi assimilado o pensamento de Gramsci na rea educacional brasileira, afirmou que o fato generalizado que no Brasil associa-se a politecnia a uma certa pedagogia marxista. Assim, com frequncia, os estudos sobre a educao politcnica so retomados a partir de Marx e Engels e os mesmos atravessam a histria, pases e autores, passando por Lenin, Gramsci, Manacorda, chegando at Nosella, Saviani e outros. No caso de Manacorda (2000, p.40 et seq), este associou Lenin educao socialista por meio da questo da politecnia, de modo que Lenin seria um caudatrio de Marx. O que, a nosso ver, restringe a discusso do tema Lenin e a educao politecnia. Ademais, constatamos a influncia determinante de Gramsci e Manacorda em muitos autores brasileiros, a ponto de Nosella (2007a, p.139) confessar que suas principais fontes de estudos a respeito da politecnia serem Marx, Engels e Lenin, mas estudados por intermdio de Manacorda. Assim, tratando-se do assunto de nosso interesse nos estudos examinados, sobressaem-se pelo menos dois aspectos: a) muitas vezes o tema abordado de forma marginal, em que a nfase da investigao direcionada para tpicos como politecnia, escola nica do trabalho, associao entre vida, escola e trabalho; b) na maioria das vezes os estudos carecem tanto de um aprofundamento sobre o contexto histrico, quanto do estabelecimento de premissas interpretativas sobre o posicionamento poltico de Lenin como elemento auxiliar da investigao. Identificamos tambm opinies daqueles que, de um lado, criticam duramente a revoluo bolchevique e o socialismo real e de outro, aqueles que tecem loas grande revoluo de outubro e implantao do socialismo em um s pas. Alm dos que apresentaram uma posio aparentemente imparcial, como Rumintsev (1970). Dessa forma, tratando-se dos supostos crticos ao sistema, o livro intitulado Educao sovitica, organizado por Kline (1959) merece destaque, pois se trata de uma obra publicada fora da ex-URSS, contendo alguns artigos escritos por dissidentes russos. Nesse sentido, em seu prefcio, Counts (1959, p.VIII) foi assertivo ao afirmar que:Qualquer novio que pretenda penetrar no domnio dos negcios da URSS bem sabe que, ao ler um artigo ou livro, ou ao consultar um quadro estatstico trazendo a marca de Moscou, precisa sempre tomar cuidado para distinguir o fato real da fico. Tratando-se de uma terra onde a

21 narrativa verdica de fatos histricos bem documentados pode ser repudiada pelo seu objetivismo burgus, onde as estatsticas podem ser manejadas pelos mais altos rgos escolares como armas polticas, onde o tradicional significado das palavras pode ser banido do dicionrio por ordem oficial, o investigador pertencente ao mundo livre deve lembrar-se constantemente de Alice no Pas das Maravilhas ou de Mil novecentos e oitenta e quatro. (grifos do autor).

Segue o mesmo raciocnio em outra passagem do texto:O verdadeiro Bolchevista ri sarcasticamente ao ouvir falar em liberdade de educao em qualquer estado burgus. Aplicando sem discusso este dogma, ao assumir o poder em 1917, os Bolchevistas estabeleceram uma aberta e confessada ditadura em nome do proletariado e agiram no sentido de converter todo o sistema educacional em um instrumento total e militantemente empenhado na conquista dos seus objetivos.(Idem, ibidem, p.IX)

Ainda, de acordo com o autor, na ex-URSS do perodo stalinista, existia um controle ideolgico em todas as formas de manifestao cultural e educacional: escolas; meios de comunicao escrita e audiovisual; teatro; cinema; museus; msica; artes plsticas etc., sendo que o controle poltico e cultural abrangia todas as organizaes, particularmente aquelas ligadas infncia e juventude. Outra marca caracterstica do ensino na ex-URSS seria a existncia de uma orientao monoltica controlada pela Comisso Central (CC) do Partido Comunista da Unio Sovitica (PCUS), de modo que o Partido quem ditava as regras que deveriam ser cumpridas. Sobre a perseguio poltica qual foram submetidos professores, pensadores e aqueles que se mostravam contrrios ao sistema, o autor mencionou que:A histria da educao sovitica est assinalada pelo sacrifcio da vida de ilustres professores e de eminentes educadores que, por um motivo qualquer, foram julgados culpados ou suspeitos de esposarem doutrinas antirrevolucionrias ou por deixarem de seguir, com visvel entusiasmo, as reformas propagadas pelo Partido. Assim, um professor pode ter revogado o seu diploma de doutor, porque a posio por ele tomada em suas prelees, em anos anteriores, foi declarada errnea pela Comisso Central. Nestas condies, no de admirar que o autor de um compndio de Histria Moderna, ou mesmo de Psicologia Educacional, limite suas citaes de autoridades aos escritos de Marx, Engels e Lenin ou Stalin. (Idem, ibidem, p.XII)

J autores como Gapotchka (1987), Kuzine (1977) e Monoszon (1998) notabilizam-se por sua posio francamente favorvel ao sucesso da revoluo bolchevique, ao socialismo sovitico e concepo do socialismo num s pas, ao proferir um discurso doutrinrio e apologtico, conforme segue:

22 Com base na comunidade de interesses fundamentais dos trabalhadores fortaleceu-se o vnculo da classe operria com o campesinato, firmou-se a fraternidade socialista inquebrantvel dos povos da URSS e formou-se a unidade poltica e moral do povo sovitico, coeso volta do seu chefe provado: o Partido Comunista. O socialismo trouxe aos cidados soviticos uma instruo de fato e enriqueceu muitssimo a vida espiritual da sociedade. (KUZINE, 1977, p.9)

Ainda, para o autor, [...] na Unio Sovitica, a sociedade se compe de classes amigas [...] (Idem, ibidem, p.13), onde [...] impera a amizade fraterna e a confiana entre os povos, as lnguas nacionais desenvolvem-se com base na igualdade de direitos e enriquecimento recproco. (Idem, ibidem, p.17). Ou seja, supomos que na maioria dos textos publicados pelos rgos do governo da ex-URSS, seus autores assumem uma posio dogmtica e propagandista em favor do socialismo num s pas e uma submisso ao Partido como guia maior da sociedade e detentor inconteste das verdades relativas ao socialismo e ao comunismo. A despeito dos ganhos e avanos reais obtidos no campo educacional na ex-URSS (CARR, 1981, p. 167 et seq; DEUTSCHER, 1968a, p.93 et seq.), identificamos que no posicionamento daqueles autores: 1) a evoluo e os ganhos no campo social e na educao socialista so tomados como absolutos, como se no tivesse ocorrido avanos e retrocessos; imensas dificuldades e resistncias na implantao da nova educao sovitica; dvidas e acirradas disputas internas sobre a questo da educao (MACHADO, 1991); 2) no h nenhuma aluso, reflexo ou crtica sobre as mudanas e problemas enfrentados pela repblica sovitica no mesmo perodo; 3) afirma-se categoricamente que Lenin teria implantado uma educao socialista no perodo imediatamente posterior a outubro de 1917. Portanto, considerando-se o perodo imediatamente posterior a outubro de 1917, comum identificar informaes de que Lenin teria implantado uma verdadeira educao socialista. A propsito, atentemos para o que escreveu Mainardi (2001, p.8):Diante dos acontecimentos que abalaram a Rssia em 1917, a URSS leninista se tornou o bero em que nasceria, definitivamente, a to sonhada e idealizada educao socialista [...]. Lenin foi o primeiro revolucionrio socialista a assumir o controle de um governo e, confiante de que a educao seria um importante e indispensvel elemento na transformao social, ps em prtica, na educao, juntamente com seus colaboradores, as ideias socialistas.

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Na mesma linha de pensamento, Gadotti (1995, p.121) afirmou:Lenin atribuiu grande importncia educao no processo de transformao social. Como primeiro revolucionrio a assumir o controle de um governo, pde experimentar na prtica a implantao das ideias socialistas na educao. (grifos do autor).

J em Carvalho, F. M. de (2005a; 2005b), Dommanget (1970), o mesmo raciocnio nos pareceu sugerido. Analisemos tambm o que escreveram os autores a seguir:Desde os primeiros dias da educao socialista, a escola destacou-se como guia da poltica do Partido Comunista de transformao socialista da sociedade, incluindo a formao do homem novo. (GAPOTCHKA, 1987, p.143). O sistema sovitico de instruo obra da Grande Revoluo Socialista de Outubro. O resultado mais importante das transformaes revolucionrias realizadas na URSS sob a direo do Partido Comunista o triunfo completo e definitivo do socialismo e a transio para a edificao do comunismo; a formao do homem novo, sovitico. (KUZINE, 1977, p.9). Somente com o triunfo da Grande Revoluo Socialista de Outubro se tornou possvel o exerccio de uma genuna pedagogia cientfica [isto , baseada nos princpios do marxismo-leninismo], transformando as escolas num veculo das ideias revolucionrias, num instrumento de reestruturao da velha sociedade para uma nova sociedade, a sociedade socialista. (MONOSZON, 1998, p.30).

Ressalte-se que em seus posicionamentos, os autores acima no explicitaram suas concepes sobre socialismo e educao socialista, ou mesmo a concepo de socialismo e de educao socialista para Lenin. De modo diferente dos autores supracitados, nossa suposio a de que Lenin no objetivava implantar imediatamente o socialismo e por conseguinte, ele no objetivava implantar imediatamente uma educao socialista na Repblica Sovitica, de acordo com o que ele mesmo teria escrito numa de suas Teses de abril (LENIN [publicada em 7 de abril de 1917], 2005, p.66): [Tese] 8. No introduo do socialismo como nossa tarefa imediata, mas apenas passar imediatamente ao controle da produo social e da distribuio dos produtos por parte dos SDO18. (grifos do autor). Zizek (2005, p.13), por seu turno, se referiu a no introduo imediata do socialismo como um projeto mais realista de Lenin para o poder bolchevique nos seguintes termos:Por causa do subdesenvolvimento econmico e do atraso cultural das massas russas, no h como a Rssia passar imediatamente ao18

Sovietes dos Deputados Operrios.

24 socialismo; tudo o que o poder sovitico pode fazer combinar a poltica moderada do capitalismo de Estado com uma intensa educao cultural das massas camponesas inertes no a lavagem cerebral da propaganda comunista, mas simplesmente uma imposio paciente e gradual de padres desenvolvidos de civilizao. Fatos e nmeros revelam que ainda h muito trabalho braal a ser feito urgentemente, antes que se atinja o padro de um pas qualquer da Europa ocidental... Devemos ter em mente 19 a ignorncia semiasitica da qual ainda no nos livramos.

Ainda, no artigo escrito em novembro de 1919, intitulado A economia e a poltica na poca da ditadura do proletariado, Lenin declarou que, se por um lado, a burguesia fora alijada do poder poltico, os grandes proprietrios destitudos dos meios de produo e os grandes latifundirios de suas terras com o sucesso da Revoluo de Outubro, por outro lado, a classe burguesa no tinha sido completamente aniquilada. Portanto, a burguesia enquanto classe social ainda existia, tornando-se mais encarniada no seu desejo de derrubar a revoluo bolchevique (LENINE [escrito em 30 de outubro de 1919], 1980c). Desse modo, o socialismo como sendo a [...] supresso das classes [...] (Idem, ibidem, p.206) no poderia ser implantado. Assim, consciente de que no existiam condies objetivas para implantao de uma sociedade socialista, Lenin vai defender de forma veemente o fortalecimento do Estado proletrio instaurado aps a revoluo de outubro de 1917. De acordo com Getzler (1985, p.35), a tarefa imediata dos bolcheviques aps a tomada do poder poltico na Rssia no era a instaurao do socialismo, mas sim do Estado-Comuna, que j existia em germe nos sovietes20 dos operrios e dos soldados, desde que fosse possvel livr-los de seus dirigentes pequenoburgueses. Nesse sentido, aps o trmino da guerra civil (1918-1920), com o pas arrasado economicamente, a fome, as epidemias e outros problemas, alm do fracasso da tentativa de se passar imediatamente ao comunismo21, Lenin defendeu como tarefa prioritria do governo o desenvolvimento de um capitalismo de Estado. Tal seria a forma tanto de garantir as condies imediatas de sobrevivncia19

De acordo com Zizek, os trechos entre aspas foram extrados do texto de Lenin Pginas de um dirio. 20 Sovietes: os conselhos dos sovietes surgiram pela primeira vez em outubro de 1905, em So Petersburgo. Sua representao era constituda com base nas unidades de produo. Elegia-se um delegado para cada quinhentos operrios e seu mandato era revogvel. Garantiu na prtica a liberdade de imprensa, organizou patrulhas para a proteo dos cidados, apoderou-se em parte dos correios, dos telgrafos e dos trens e buscou estabelecer de fato a jornada de trabalho de oito horas. Foi a organizao mais adequada para a classe operria em sua luta independente, mostrando sua potencialidade como organismo de poder operrio e como alicerce para um novo tipo de Estado (TROTSKI, 2007, p.23, nota 5). 21 Consultar o item 1.1.3 O comunismo de guerra.

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da Repblica Sovitica, quanto de implantar as bases para a construo da futura sociedade socialista, materializando-se na concepo da ditadura do proletariado, como um perodo de transio entre a dissoluo do capitalismo e a construo do socialismo. No plano externo, o fortalecimento do Estado proletrio se relacionava com o isolamento da Repblica Sovitica. De acordo com a concepo de desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo, a Rssia era o elo mais fraco do capitalismo na Europa e portanto a tarefa de se empreender uma revoluo nesse pas era uma necessidade colocada historicamente. Contudo, os lderes da Revoluo de Outubro acreditaram que o triunfo pleno da revoluo dependeria da internacionalizao da revoluo para os pases da Europa, de modo que a Rssia fosse o estopim da revoluo mundial. Como isso no aconteceu, a Repblica Sovitica ficou isolada e restou a dificlima tarefa de como sobreviver em meio a um mundo hostil. Assim, no plano interno, uma das sadas encontradas por Lenin e seus correligionrios foi o fortalecimento e a consolidao da revoluo e a construo de um capitalismo de Estado, at que eclodissem as revolues na Europa ocidental e no oriente.

Questo de pesquisa e hiptese de trabalho Nossa questo de pesquisa foi formulada mediante uma especificao em dois nveis. No primeiro nvel, tomamos algumas das limitaes e lacunas encontradas nos estudos analisados na reviso da bibliografia. Tambm nos baseamos em Nogueira (1993), a qual procurou investigar as formulaes de Marx e Engels para a educao, na conjuntura histrica em que ocorreram. Foi assim que transpusemos algumas indagaes da autora para uma investigao sobre a educao leninista. Ou seja, procurar entender as preocupaes e aes de Lenin no campo educacional, no contexto em que foram gestadas e implementadas. Nesse sentido, tornou-se imprescindvel estipular as premissas necessrias para interpretao das preocupaes e proposies de Lenin para a educao, com destaque para os elementos histricos, polticos e sociolgicos. No outro nvel de especificao, consideramos que, aps o Outubro de 1917, a proposio de Lenin (pelo menos em seu plano geral) no era instaurar imediatamente o socialismo. Portanto, supomos que com relao educao sua

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proposta tambm no era a de implantar imediatamente uma educao socialista. Sendo assim, o problema a ser investigado (GIL, 2002; SALOMON, 2001), na condio de uma questo de pesquisa (TRIVIOS, 1987, p.107) foi formulado nos seguintes termos: se o objetivo de Lenin para a educao no era implantar imediatamente uma educao socialista aps outubro de 1917, quais eram seus objetivos para a educao, durante os anos de 1917 1924? Nossa hiptese de trabalho (Idem, ibidem, p.105-106) foi a de que os objetivos de Lenin para o campo da educao, no perodo compreendido entre os anos de 1917-1924, se relacionavam fundamentalmente com uma necessidade de natureza tanto poltica quanto econmica, conforme considerou Hubert (1967, p.136), para quem a revoluo pedaggica ocorrida na repblica dos sovietes correspondeu a uma necessidade econmica e tecnolgica e a uma disposio poltica.

Objetivos e justificativas Em termos genricos, nosso objetivo foi investigar o tema educao escolar e revoluo social, com relao s seguintes questes: quem vem antes, a revoluo ou a educao? Pode existir uma educao revolucionria antes da revoluo? A educao escolar participa da luta de classes? Em caso positivo, de que forma? Ao vincularmos tais questes ao contexto da Revoluo Russa de 1917, propusemo-nos ento a pesquisar: sobre a Revoluo de Outubro, bem como refletir a respeito das suas implicaes, consequncias e legado; sobre Lenin e os estudos leninistas da educao. Especificamente, nosso objetivo foi verificar o duplo e indissocivel carter atribudo educao por Lenin - as dimenses poltica e econmica -, considerandose a necessidade de consolidao do poder poltico do Estado proletrio e de reconstruo econmica da Repblica Sovitica, bem como a implantao das bases materiais e culturais para a construo da futura sociedade comunista. No plano poltico, em linhas gerais, tratava-se de consolidar o poder do Estado proletrio, mediante a destruio dos vestgios do poder czarista22 e burgus e ao mesmo tempo, construir os fundamentos de uma futura sociedade comunista. Assim, educao caberia a tarefa de destruir os fundamentos da educaoCzarista, czarismo: regime caracterizado pelo poder absoluto do czar (TROTSKI, 2007, p.22, nota 4).22

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czarista e burguesa e ao mesmo tempo: a) incorporar e aproveitar os mais elevados conhecimentos da cincia, da tecnologia e da cultura produzidos at ento pela humanidade e necessrios construo do socialismo / comunismo; b) educar o povo de acordo com os princpios do comunismo. Segundo Gurley (1976, p.97), Lenin previu que o sucesso dos planos econmicos dependeria fundamentalmente da aplicao de instrumentos por meio dos quais ocorreria um aumento da produtividade do trabalho, sendo que tais instrumentos seriam: a) a imposio de uma rgida disciplina de trabalho; b) a introduo da gerncia cientfica (aplicao dos princpios tayloristas na produo); c) a elevao do nvel educacional e cultural da classe trabalhadora. Assim, no plano econmico, Lenin defendia a necessidade do

desenvolvimento de um capitalismo de Estado, com o objetivo de superar a runa econmica e material decorrente dos anos de guerra e ao mesmo tempo, implantar as bases para construo da futura sociedade socialista / comunista. Portanto, educao caberia a tarefa de formar a fora de trabalho necessria ao desenvolvimento das foras produtivas e ao mesmo tempo elevar o nvel cultural, tcnico e cientfico da populao. Em sentido amplo, nosso trabalho justificou-se pela necessidade de: a) resgatar uma discusso antiga, mas a nosso ver ainda no resolvida, sobre as relaes que se estabelecem entre a educao e a revoluo; b) desenvolver um estudo mais aprofundado a respeito do tema educao leninista. Em termos especficos, imps-se a necessidade de se pesquisar um tema ainda pouco explorado da vasta obra de Lenin, qual seja, a educao no perodo correspondente aos anos posteriores instaurao da Repblica Sovitica, nos quais se sobressaem as tarefas da construo de uma sociedade socialista.

Aspectos metodolgicos Caracterizao da pesquisa, fontes e limitaes Nosso trabalho pode ser caracterizado como sendo uma pesquisa bibliogrfica (GIL, 2002) e as fontes empricas investigadas foram os textos e obras de Lenin sobre a educao. Quanto s limitaes da pesquisa, referimo-nos impossibilidade de consulta totalidade da obra de Lenin em russo, em funo do tempo disponvel para realizao de nosso trabalho e pelo desconhecimento do idioma russo. Quando

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necessrio, recorremos s Obras completas de Lenin disponveis em ingls no Lenin internet archive. Tambm consultamos uma srie de livros resultantes da organizao e compilao das obras de Lenin, a saber: A instruo pblica (LENINE, 1981); Cultura e revoluo cultural (LENIN, 1968); Sobre a educao (LENINE, 1977); alm das Obras escolhidas (LENINE, 1980a; LENINE, 1980b; LENINE, 1980c) em portugus. Para alm das questes propriamente tcnicas, considere-se tambm uma limitao relacionada talvez a um certo aparelhamento do Estado. Em outras palavras, significa que aps a morte de Lenin, sua obra tornou-se patrimnio do Estado Sovitico23. Nesse sentido, quem pode nos garantir que no houve algum tipo de interferncia, por meio dos rgos especializados da ex-URSS no processo de coleta, organizao e publicao (e em alguns casos, traduo) dos textos leninianos?24

Critrios de organizao e anlise das fontes de informao Ns selecionamos os textos leninianos de acordo com a indicao dos comentadores e especialistas em Lenin, bem como dos textos selecionados nas compilaes, quais sejam, A instruo pblica, Cultura e revoluo cultural e Sobre a educao. Aps a seleo dos textos que deveriam ser lidos, estes foram organizados de acordo com um critrio temtico e cronolgico. Assim,

primeiramente, os textos de Lenin foram ordenados com base nos seguintes temas: 1) Obras econmicas; 2) Obras polticas, subdivididas nos subtemas s portas da revoluo; Clssicos; Consolidao da revoluo; Construo do socialismo; 3) Lenin e a educao, subdivido nos subtemas Antes de 1917; Aps 1917. Em seguida, os textos foram lidos e fichados de acordo com os temas/subtemas

A ttulo de ilustrao, cite-se que Foster (2005, p.311 et seq) mencionou alguns acontecimentos relacionados priso de Bukharin entre os anos de 1937-1938. Assim, de acordo com Foster, Bukharin escreveu quatro manuscritos, que eram conhecidos apenas por Stalin e alguns carcereiros. Os manuscritos no foram destrudos porque Stalin resolveu poup-los (mas no poupou Bukharin, nem a velha guarda do partido bolchevique, nem os que podem ser considerados verdadeiros heris da revoluo), consignando-os ao seu arquivo pessoal. Tais documentos s foram redescobertos no final da dcada de 1980, por meio de um assessor de Mikhail Gorbachev, sendo publicados apenas em 1992, originalmente em russo (How it all began e Philosophical arabesques, numa traduo em ingls). 24 A nosso ver sobre esta questo abrem-se muitas possibilidades de pesquisa historiogrficas e filolgicas interessantssimas. Contudo, os desafios so imensos: dominar o idioma russo; obter acesso s fontes originais e de primeirssima mo (os textos originais do prprio Lenin); obter acesso s fontes do Instituto Marxismo-Leninismo da ex-URSS etc.

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estipulados, mas dentro de uma ordem cronolgica para cada tema/subtema especfico. Tambm foram consultadas vrias obras sobre a histria da revoluo russa (com destaque para a insurreio de Outubro de 1917, o perodo da guerra civil e da implantao da Nova Poltica Econmica), educao na Rssia e comentadores de Lenin. Seria oportuno mencionar que o pesquisador sempre enfrenta muitas dificuldades ao investigar temas a respeito da Rssia, Revoluo de Outubro, Unio Sovitica, Lenin, Trotski, entre outros. Algumas dessas dificuldades referem-se lngua e grafia dos nomes russos. Sobre este assunto, infelizmente no foi possvel empreender uma pesquisa profunda relacionada transliterao dos termos russos. Nesse sentido, a escolha da grafia deu-se em funo dos nomes e termos que so empregados com mais frequncia na literatura. Ou seja, optamos por grafar Lenin (sem acento circunflexo), ao invs de Lenine (forma aportuguesada de Lnine, do francs), ou Lnin. Ainda: Trotski e no Trotsky. Krupskaia e no Kroupskaia, Krupskaja, ou Krupskaya. Lunacharski e no Lunatcharski. Bolchevique e no bolchevista. Czarismo e czar e no tzarismo e tzar, respectivamente. Kronstadt e no Cronstadt. Contudo, no caso das Referncias, no alteramos os nomes com grafias diferentes daquelas adotadas por ns. Esse foi o caso de LENINE, KROUPSKAIA, LUNATCHARSKI e TROTSKY. No caso das citaes bibliogrficas, optamos pelo sistema autor-data. E tratando-se dos textos e livros de autoria de Lenin e Krupskaia, informamos a data em que os textos foram escritos, publicados ou proferidos (no caso dos discursos) entre colchetes. Ademais, de nossa autoria a verso para o portugus dos textos escritos originalmente em ingls, francs e italiano. Devido referncia constante aos textos de Lenin, optamos sempre por informar o leitor de qual texto ou livro estvamos tratando a fim de facilitar o acesso s Referncias. Assim, sempre deixamos explcitos o ttulo do texto ou o livro de Lenin ao qual nos referamos, seja no corpo do trabalho, seja na forma de notas de rodap. Considerando as peculiaridades relativas execuo de uma pesquisa bibliogrfica, na medida do possvel, tentamos recorrer a parfrases e resumos na composio do texto. Mas, num estudo em que predomina o trabalho de interpretao, como o nosso caso, no foi possvel fugir completamente da

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transcrio literal de trechos dos textos de Lenin ou de outros autores, que ocorreram em grande quantidade. Finalmente, a nosso ver, um autor nunca imparcial ao escrever. Sobre o assunto, recorremos a Lwy (2003, passim) e Schaff (1991, passim), os quais analisaram a questo de se possvel alcanar um conhecimento objetivo, seja nas cincias sociais, seja na histria, respectivamente. Uma resposta possvel a esta questo a de que a objetividade construda social e historicamente, posto que: a) o prprio objeto investigado indeterminado, imprevisvel e inacabado; b) o sujeito observador determinado por condies de classe, psquicas, de raa, nacionalidade, sobre as quais ele no tem total nem absoluto controle de como tais elementos impregnam e influenciam a produo do seu conhecimento; c) a construo do conhecimento objetivo no neutra aos condicionantes polticos, econmicos e de classe e tampouco esttico historicamente. Foi assim que John Reed e Victor Serge, na introduo de seus clebres livros, declararam que: Na luta, as minhas simpatias no eram neutras. Mas ao contar a histria dessas grandes jornadas tentei ver os acontecimentos com os olhos de um reprter consciencioso, interessado em expor a verdade. (REED, 1977, p.33). E A imparcialidade do historiador no passa de uma lenda destinada a corroborar convices de interesse. [...] O historiador sempre de seu tempo, isto , de sua classe social, de seu pas, de seu meio poltico. (SERGE, 2007, p.31). Conosco no foi diferente, posto que ao empreendermos a tarefa de construir uma objetividade cientfica procuramos deixar explcita nossa condio de classe e simpatias polticas. Por ltimo, declaramos que em sua totalidade, o nosso trabalho de interpretao. E assim como Nogueira (1993) (no caso de Marx), procuramos evitar a adeso incondicional, a rejeio sistemtica, cultuar, fetichizar ou mitificar a pessoa de Lenin, ou dogmatizar seus escritos.

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1 OUTUBRO DE 1917: ELEMENTOS HISTRICOS, POLTICOS E SOCIOLGICOS 1.1 Elementos histricos 1.1.1 Apontamentos sobre a histria da revoluo russa A revoluo russa representa um dos acontecimentos mais importantes do sculo XX, a primeira grande ruptura e talvez o principal ato de confronto ao capitalismo coroado de sucesso (CARR, 1981, p.11; HOBSBAWM, 1995, p.62; REED, 1977, p.33). Parker (1995, p.254) por sua vez, declarou que nenhum [...] fato isolado teve impacto to decisivo sobre o mundo moderno do que a Revoluo Russa de 1917 [...] - ela transformou um pas pobre, atrasado e subdesenvolvido em uma potncia industrial e militar e influenciou de forma decisiva o padro das relaes internacionais. No h registro de nenhuma insurreio revolucionria moderna comparvel Revoluo russa (DEUTSCHER, 1968a, p.2) e de acordo com Hobsbawm (1995, p.62), a [...] Revoluo de Outubro produziu de longe o mais formidvel movimento revolucionrio organizado na histria moderna. Ainda, para o autor, ela influenciou e contribuiu para a organizao de partidos comunistas no mundo todo, de modo que apenas trinta ou quarenta anos depois de abril de 1917, aproximadamente um tero da humanidade se achava vivendo sob regimes inspirados ou derivados da Repblica Sovitica ou do modelo organizacional do Partido Comunista da Unio Sovitica. De fato, o bolchevismo transformou a revoluo de 1917 em um fenmeno mundial (REIMAN, 1985, p.75). A URSS tambm teve importncia fundamental nos destinos da segunda guerra mundial, quando, ironicamente, ela foi a salvadora do capitalismo liberal, possibilitando a vitria do ocidente contra a Alemanha de Hitler (HOBSBAWM, 1995, p.89). Ademais, com o advento da Guerra Fria, a Unio Sovitica participou de forma decisiva na dinmica da geopoltica mundial do sculo XX. Porm, necessrio tornar preciso o que entendemos pela expresso Revoluo Russa. Reis Filho (2003, p.41 et seq) e Serge (2007) mencionaram a ocorrncia de pelo menos trs revolues na Rssia25: a) a de 1905, cujos principais

Sugerimos consultar o ANEXO I, no qual constam datas e informaes resumidas sobre a biografia de Lenin e sobre a histria da Rssia referente ao perodo analisado por ns.

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acontecimentos foram o domingo sangrento26 e a revolta dos marinheiros do encouraado Potemkim27; b) a de fevereiro de 1917, cuja principal consequncia foi a abdicao do czar; c) a de outubro de 1917, com a destituio do governo provisrio instalado em maro de 1917 e a constituio de um Estado proletrio28. A estas, Reis Filho (2003, p.41) acrescentou uma quarta (sempre esquecida) a de 1921. Foi a insurreio dos marinheiros da base naval de Kronstadt29, qual se somaram as greves nas cidades e as revoltas no campo, na poca, todas contra o poder bolchevique30. Portanto, o que muitos denominam de revoluo russa, Hobsbawm (1995, p.62) especificou: a [...] Revoluo Bolchevique de outubro de 1917 [...]31. Contudo, a importncia da Revoluo de Outubro para a histria proporcional complexidade tanto dos elementos e processos mais gerais aos quais ela est vinculada, quanto das especificidades da Rssia, que, combinados, esto envolvidos com suas causas e ecloso. Em outras palavras, o Outubro de 1917 o resultado da imbricao existente entre processos globais e a realidade especfica da Rssia foram conjunturas que se entrelaaram (REIS FILHO, 2003, p.41) -, de

O domingo sangrento (ocorrido em 9 de junho de 1905, pelo calendrio gregoriano) foi o estopim da revoluo de 1905. Tendo em mos uma petio dos operrios de So Petersburgo ao czar Nicolau II chamado de o paizinho - (jornada de trabalho de oito horas; reconhecimento dos direitos dos operrios; promulgao de uma Constituio que garantisse a separao entre Igreja e Estado; mais democracia etc.), uma multido de pessoas dirigiu-se pacificamente ao palcio do governo. Foram recebidos a tiros e massacrados, com centenas de mortos e feridos. Ao massacre, somou-se o descontentamento com a guerra russo-japonesa, deflagrando uma onda de greves e revoltas pelo pas (SERGE, 2007, p.54). 27 Referimo-nos ao motim do encouraado Kniaz-Potemkim, ocorrido em 15 de junho de 1905, na base naval de Kronstadt, a qual pertencia frota russa do mar Bltico. O acontecimento inspirou a realizao do filme que se tornaria um clssico - O encouraado Potemkim -, de Sergei Eisenstein. Ver a Nota 29. 28 Carvalho, F. M. de (2005a) mencionou que as duas primeiras revolues foram de carter democrtico-burgus e a terceira, socialista. 29 O levante dos marinheiros de Kronstadt foi sufocado pela Repblica Sovitica custa de muitas vidas de ambos os lados e provocou profunda comoo tanto entre os bolcheviques quanto entre os opositores da Repblica Sovitica. A revolta tambm tinha um sentido simblico, posto que Kronstadt tornou-se famosa na campanha contra o czarismo, quando da insurreio dos marinheiros do encouraado Potemkim em 1905. 30 Reis Filho (2003, p.41) mencionou que ocorreram verdadeiras batalhas historiogrficas, a propsito da natureza dessas revolues. Foge ao escopo de nosso estudo penetrar em tal discusso, porm, oportuno citar que Reis Filho no compartilha da tese segundo a qual haveria um encadeamento entre as revolues, as quais ocorreram, at certo ponto, de forma espontnea e sem qualquer determinao ou ao de partidos ou faces revolucionrias. Mas nem todos compartilham dessa interpretao. No caso, citamos Deutscher (A revoluo inacabada) Lenin (Cartas de longe e Por ocasio do IV aniversrio da Revoluo de Outubro), Serge (O ano I da revoluo russa) e Trotski (A histria da revoluo russa). 31 Ao longo de nosso trabalho nos referimos Revoluo Bolchevique de Outubro de 1917 tambm pelas expresses Revoluo Russa de Outubro de 1917, Revoluo de Outubro, Revoluo de Outubro de 1917, Outubro de 1917, O Outubro de 1917.

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modo que [...] seus traos caractersticos s podiam ser apontados em relao ao curso mais amplo da histria mundial [...] (REIMAN, 1985, p.75). Concordamos com Deutscher e Trotski, para quem o Outubro de 1917 foi, genericamente, o resultado da contradio entre o desenvolvimento das foras produtivas e suas correspondentes relaes de produo, conforme o que fora propugnado por Marx no seu famoso Prefcio de Para a Crtica da Economia Poltica. Desse modo, para Deutscher (1968a, p.9), assim como nos antigos regimes francs e ingls, foi o desenvolvimento do capitalismo na Rssia que gerou contradies insanveis numa estrutura social incapaz de cont-las. Por conseguinte, as [...] foras do progresso estavam de tal modo comprimidas no espartilho da antiga ordem que teriam faltamente de explodir. (Idem, ibidem, p.9). A propsito, a concepo de Trotski se fundamenta naquilo que ele denominou de lei do desenvolvimento desigual e combinado, a qual se aplicaria aos pases atrasados, quando ocorre uma combinao original dos elementos obsoletos de uma sociedade com os mais avanados (TROTSKY, 1978a, p. 62). Tal lei [...] significa aproximao das diversas etapas [de desenvolvimento], combinao das fases diferenciadas, amlgama das formas arcaicas com as mais modernas. (Idem, ibidem, p.25). Portanto, no caso da Rssia, seria a combinao de um pas com [...] uma economia atrasada, uma estrutura social primitiva e [de] baixo nvel cultural [...] (Idem, ibidem, p.23), que convivia com a penetrao de uma industrializao avanada, prpria da Europa ocidental, nas grandes cidades russas. Com relao ao contexto da Europa ocidental, a Revoluo de Outubro o resultado das crises e do processo de desagregao que corroa o sistema capitalista desde meados do sculo XIX, conforme escreveu Hobsbawm (1995, p.62): Parecia bvio que o velho mundo estava condenado. A velha sociedade, a velha economia, os velhos sistemas polticos tinham, como diz o provrbio chins, perdido o mandato do cu. A humanidade estava espera de uma alternativa. Porm, por que essa alternativa ao capitalismo ocorreu na Rssia e no em outro pas da Europa ou do mundo? Porque, internamente, a Revoluo Russa de outubro de 1917 foi o resultado da confluncia de uma srie de aspectos: a existncia de uma autocracia violenta, cruel e repressiva, que garantia privilgios para a burocracia, a Igreja e para si prpria; uma sociedade baseada fundamentalmente numa economia rural e estagnada; um campesinato pobre, faminto e inquieto; a emergncia de

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contradies insanveis decorrentes da convivncia contraditria entre o capitalismo e um sistema fundado no feudalismo, no qual ainda persistiam profundos traos da servido; o passado poltico da Rssia czarista, marcado por convulses sociais e pela ao de grupos terroristas que atuavam desde 1860, com ocorrncia de surtos de violncia e represso (BENSAID, 2000a, p.169; CARR, 1981, p.11). Greves nos ncleos urbanos industrializados (Petrogrado32, Moscou); revolta no campo; desero no exrcito; fome; colapso no sistema de transportes; desorganizao econmica; vacilaes e conluios do governo provisrio com setores da burguesia e da autocracia; iminncia de uma invaso alem e da contrarrevoluo - a Rssia s vsperas de outubro de 1917 era um caldeiro prestes a explodir. Acrescente-se a esse contexto a deflagrao da primeira guerra mundial (1914-1918), a qual trouxe [...] superfcie essas condies latentes e precipitou uma situao que parecia esperar apenas um impulso para se desagregar. (STRADA, 1987, p.110). Destaque-se que no possvel explicar o levante revolucionrio de outubro de 1917 com base em apenas um desses fatores isolados. Ao ser acusado de subestimar os elementos econmicos no transcorrer da revoluo russa, Trotski replicou ter conscincia do agravamento das condies econmicas, nos momentos que precederam o Outubro de 1917. Porm, para ele seria simplificar ao extremo, se a explicao para a ecloso da revoluo tivesse apenas como fundamento o aumento do preo do po (TROTSKY, 1978b, p.416). Concordamos com Trotski, para quem a ocorrncia da exploso

revolucionria s se explica quando consideramos a combinao de uma srie de fatores, entre eles as causas estruturais e histricas com as causas conjunturais. Ora, se o raciocnio dos crticos de Trotski estivesse correto as revolues aconteceriam sempre. De modo diferente, uma revoluo o resultado da sublevao incontrolvel e explosiva das massas, ao que os seus lderes aproveitam com argcia e habilidade, de modo que [...] preciso que a incapacidade definitivamente manifesta do regime social tenha tornado intolerveis as privaes e

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Petrogrado: desde 1703, data em que foi fundada, Petrogrado tinha o nome de So Petersburgo. Seu nome foi mudado para Petrogrado (1914-1924), em funo da guerra, posto que So Petersburgo foi considerado muito germanizado. Teve o nome mudado para Leningrado (1924-1991) e em 1991 voltou a ser So Petersburgo. So Petersburgo est localizada s margens do Rio Neva, no Golfo da Finlndia, s margens do mar Bltico. Foi capital da Rssia por mais de duzentos anos e deixou de s-lo em 1918, aps a Revoluo de Outubro.

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que novas condies e novas ideias tenham deixado entrever a perspectiva de uma sada revolucionria [...]. (Idem, ibidem, p.416). sob tal perspectiva que a atuao do Partido Bolchevique33 foi crucial no desenrolar da Revoluo de Outubro. Segundo Serge (2007, p.76), as massas populares russas tinham [...] milhes de rostos; no so nada homogneas; so dominadas por interesses de classe, diversos e contraditrios; s alcanam a conscincia verdadeira sem a qual nenhuma ao fecunda possvel mediante a organizao. O que o Partido Bolchevique fez, ao longo dos anos, por meio de sua inteligncia coletiva, organizao, disciplina, dedicao, ao entre o povo, foi interpretar e dar vazo aos anseios e s necessidades dessa massa disforme e anrquica. Ainda, nas palavras de Serge (ibidem, p.76):[...] o que todos eles querem [o povo], o partido o exprime em termos claros e o faz. O partido lhes revela aquilo que pensam. O partido o vnculo que os une a todos, de ponta a ponta do pas. O partido sua conscincia, sua inteligncia, sua organizao.

Graas

compreenso

precisa

e

rigorosa

da

dinmica

dos

acontecimentos e do movimento da histria, os bolcheviques foram capazes de se identificar ao mesmo tempo com o operariado em geral e com a necessidade histrica colocada naquele momento to particular. por isso que distinguir as massas do Partido era impossvel. Eles formavam um todo coletivo. Foi assim que em fevereiro de 1917, quando os bolcheviques ainda eram uma minoria e uma fora poltica inexpressiva, em outubro de 1917 eles se tornam maioria e a nica esperana de salvao para o povo (Idem, ibidem, p.77). O Outubro de 1917 foi uma irrupo violenta e incontrolvel, uma radicalizao vinda de baixo que a tudo engolfava, marcada pela participao ativa do povo no processo revolucionrio (BENSAID, 2000a, p.169-170; TROTSKY, 1978a, p.15-16). A desintegrao da velha ordem social traduziu-se subjetivamente nas massas, a ponto de impulsion-las ao e intervir diretamente nos acontecimentos. Ou seja,A grande massa do povo foi avassalada pela mais intensa e premente conscincia de desintegrao e apodrecimento na ordem estabelecida. A percepo veio sbita. A conscincia teve um sobressalto que a colocou a par da existncia e impulsionou a transformao desta. Mas tambm esse33

Partido bolchevique: consultar a nota 53.

36 sobressalto, essa mudana sbita na psicologia das massas no proveio do nada. (DEUTSCHER, 1968a, p.11).

Para que a revoluo eclodisse foram necessrios muitos anos de preparao, por meio: da atuao de grupos que disseminaram as ideias revolucionrias; de partidos polticos das mais variadas ndoles; da opresso da autocracia; do terrorismo; das contradies decorrentes do desenvolvimento das foras produtivas versus relaes de produo. Pouco ou nada houve de fortuito em tudo isso. Subentendido neste meio sculo de Revoluo, avulta todo um sculo de esforos revolucionrios. (Idem, ibidem, p.11-12). Logo aps a destituio do governo provisrio, num relato dos

acontecimentos relativos aos primeiros dias do poder bolchevique, Reed (1977, p.165-166) descreveu um fato muito significativo. Trata-se da votao do grupamento blindado brunoviki34, crucial naquele momento, posto que as foras contra revolucionrias comeavam a atuar para tentar destituir o governo proletrio. Assim, o autor narrou os discursos inflamados e emocionados - contra e a favor do poder bolchevique -, a dvida atroz dos soldados e a deciso tomada. A descrio do momento decisivo da votao tocante:Khanjunov tentou falar de novo, mas a multido gritou: Votao! Votao! Votao! Cedeu, por fim, e leu a resoluo que ia ser submetida a voto: Os brunoviki retiravam o seu representante do Comit Revolucionrio Militar e declaravam a sua neutralidade na presente guerra civil. Todos os que fossem a favor deviam ir para a direita; os que fossem contra, para a esquerda. Houve um momento de hesitao, uma expectativa parada, e depois a turba comeou a movimentar-se, cada vez mais depressa e aos tropees, para a esquerda: centenas de corpulentos soldados numa massa slida que corria pelo cho sujo, sob a luz fraca... [...] Imaginem esta luta repetida em todos os quartis da cidade, do distrito, de toda a Frente [de combate], de toda a Rssia. Imaginem os 36 Krilenkos a cair de sono vigiando os regimentos, correndo de um lugar para outro, argumentando, ameaando, implorando. E depois imaginem o mesmo em todos os sindicatos de operrios, nas fbricas, nas aldeias, nos couraados das dispersas esquadras russas; imaginem as centenas de milhares de russos de olhos postos em oradores atravs de todo imenso pas operrios, camponeses, soldados e marinheiros tentando to esforadamente compreender e escolher, pensando to intensamente e, no fim, decidindo to unanimemente. Foi assim a Revoluo Russa.35

Brunoviki: tropas de blindados. Era um regimento chave na consolidao da revoluo, dias aps a insurreio de Outubro e antes da invaso de Petrogrado por Kerenski. Na prtica, quem controlasse os brunoviki controlaria Petrogrado. 35 Khanjunov: oficial que defendia a neutralidade do regimento brunoviki e consequentemente no apoiava os bolcheviques. 36 Krilenko: Comissrio do Povo para Assuntos Militares do governo revolucionrio. Orador que pedia o apoio dos brunoviki causa revolucionria.

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Mas o Outubro de 1917 teria sido um golpe de Estado, uma conspirao ou uma revoluo? De fato, a insurreio assumiu as caractersticas de um golpe, posto que o acontecimento de 25 de outubro realizou-se como uma operao militar, sem conhecimento e anuncia de qualquer organizao sovitica. Na verdade, a insurreio fora planejada e organizada pelo comit militar do soviete de Petrogrado, com Trotski37 na presidncia e a ordem para sua execuo fora dada pelo Comit Central do Partido Bolchevique, com Lenin frente (REIS FILHO, 2003, p.66). Frisese, porm, que os bolcheviques planejaram, organizaram e executaram a insurreio, derrubando o governo provisrio, mas posteriormente eles entregaram o poder ao II Congresso dos Sovietes, mediante a submisso ao voto e aprovao do ato insurrecional, conforme fora planejado antecipadamente pelo Comit Central do Partido Bolchevique. Contudo, para alm disso, foi uma sntese entre golpe e revoluo: golpe no planejamento, organizao e execuo. E revoluo[...] nos decretos, aprovados pelos sovietes, reconhecendo e consagrando juridicamente as aspiraes dos movimentos sociais, que passaram imediatamente a ver no novo governo o Conselho dos Comissariados do Povo, dirigido por Lnin o intrprete e a garantia das reivindicaes populares. (Idem, ibidem, p.67)

Portanto, foi uma revoluo no sentido pleno da palavra, que afetou praticamente todos os setores da sociedade. Foi um lan vindo de baixo, como uma manifestao dos anseios das massas (BENSAID, 2000a, p.169-170). Tal o sentido dos primeiros decretos legislativos38, os quais determinaram o fim da guerra; a expropriao dos grandes latifndios e a correspondente distribuio da propriedade da terra entre os milhes de camponeses; e a constituio do poder dos soldados, trabalhadores e operrios o Conselho dos Comissrios do Povo39.Para uma viso detalhada dos momentos decisivos que antecederam a insurreio, sugerimos consultar A histria da revoluo russa (TROTSKY, 1978b), Captulo IX A insurreio de outubro, no qual Trotski revelou as dificuldades de organizao poltica e militar relativas insurreio; a posio contrria de Kamenev e Zinoviev; as exortaes desesperadas de Lenin; as dvidas atrozes e as vacilaes que dilaceravam os lderes da insurreio; os detalhes da logstica e da organizao da insurreio etc. 38 Para mais detalhes, consultar no ANEXO II, onde reproduzimos integral ou parcialmente alguns dos principais Decretos promulgados pelo Conselho dos Comissrios do Povo. 39 O Conselho dos Comissrios do Povo representou o primeiro governo da Repblica Sovitica e foi institudo na sesso do II Congresso dos Sovietes de toda a Rssia, no dia 08 de novembro de 1917 (pelo calendrio gregoriano), portanto, um dia aps a derrubada do governo provisrio de Kerenski pelos bolcheviques. O nome Comissrios do Povo foi sugesto de Trotski, em funo do desgaste relacionado aos termos governo e ministro.37

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Fundamentalmente, mediante a promulgao destes decretos, que o poder revolucionrio garantiu o apoio dos soldados, dos trabalhadores e dos camponeses, essencial para o sucesso da revoluo e consolidao do governo proletrio.

1.1.2 A consolidao da revoluo No tocante ao desenrolar dos acontecimentos ligados revoluo russa, Serge (2007, p.32) props uma cronologia para o perodo que vai de outubro de 1917 ao incio de 1926. Desse modo, a primeira fase da revoluo russa correspondeu ao perodo de 25 de outubro de 1917 (pelo calendrio juliano) e acaba em 7 de novembro de 1918, no momento em que explode a revoluo na Alemanha. Neste primeiro ano apresentaram-se os problemas imediatos que a ditadura do proletariado precisava resolver: organizao da produo e do abastecimento; defesa interna e externa; aes perante os intelectuais e a classe mdia. Esta fase Serge denominou de conquista proletria: tomada do poder, conquista do territrio, organizao da produo, criao do Estado proletrio e do exrcito etc. Segunda fase, que vai de novembro de 1918 a novembro / dezembro de 1920 (fim da guerra civil). A revoluo alem abre esta fase, que o autor denominou de fase da luta internacional, ou da defesa armada. Foi o perodo em que se forma uma primeira coalizo contra a Repblica dos Sovietes; explode a guerra civil; ocorre a interveno externa e a adoo do comunismo de guerra. Terceira fase, a da reconstruo econmica. Inicia-se em 1921, com a adoo da Nova Poltica Econmica (Novaia Ekonomitcheskaia Politika, a NEP) e termina em 1925-1926, com o retorno do nvel de produo quele do perodo anterior grande guerra (muito embora em 1926 a populao russa fosse maior). Quarta fase da histria da revoluo proletria da Rssia: final de 1925 ao incio de 1926. Completa-se a reconstruo econmica cinco anos aps o trmino da guerra civil (o que constituiu um grande xito para um pas duramente castigado e dependente de seus prprios recursos). Portanto, em sua totalidade, a Repblica proletria conseguiu vencer a contrarrevoluo, exercer o poder, organizar a produo, resistir e vencer os inimigos internos e externos. Mas, para os fins de nosso trabalho, adotamos uma periodizao que abarca o perodo de 1917 a janeiro de 1924, marcada por uma srie de acontecimentos. Assim, de outubro de 1917 a junho de 1918, destacamos o momento da

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consolidao da revoluo. De junho de 1918 ao final de 1920: guerra civil russa e interveno estrangeira, com a adoo do comunismo de guerra. Final de 1920 a janeiro de 1924: construo do socialismo, com destaque para a adoo da NEP, em maro de 1921. Dessa forma, de outubro de 1917 a junho de 1918, corresponde fase em que o poder bolchevique obtm as primeiras vitrias no campo militar sobre os contra revolucionrios: na revolta dos junkers40 e na ofensiva contra Kerenski e os cossacos41. Vitrias tambm contra a burguesia e as classes mdias, que aderiram contrarrevoluo, por meio da sabotagem, greves gerais no governo, telgrafos, correios, bancos, abastecimento etc. (REED, 1977, p.189 et seq; SERGE, 2007, p. 121 et seq). Portanto, o que estava em pauta nesse perodo era, mediante a ofensiva militar e os decretos legislativos, a aniquilao poltica e econmica dos latifundirios e da burguesia. No campo da educao, o poder sovitico tinha como objetivos oferecer uma educao pblica, gratuita, laica e de qualidade para o povo e para os trabalhadores sem distino de classes, condies dignas de trabalho e vida para os professores. importante destacar que muito do que foi decretado pelo poder bolchevique vinha sendo pensado e planejado muito antes da tomada do poder poltico. Foram os temas relativos ao direito de autodeterminao dos povos, das minorias e grupos tnicos russos, a condio da mulher, o programa agrrio, a educao, a reorganizao do exrcito, dentre outros. Durante todo o perodo que antecedeu o Outubro de 1917, Lenin tratou dos mais variados assuntos, incluindo-se a cultura, a literatura, a arte, a educao, a questo da autodeterminao dos povos, de modo que ele submetia suas anlises, crticas e aes a respeito desses temas, sempre iluminados sob a perspectiva do derrube do czarismo; da preparao e da ecloso da revoluo; da tomada do poder; da construo da sociedade socialista. Ou seja, o poltico sempre projetava e determinava as anlises de Lenin, que apesar da prioridade dada dimenso40 41

Junkers: estudantes das escolas militares de formao de oficiais. Cossacos: povos nmades ou seminmades eslavos das regies do Dnieper, Don e Volga. Pertenciam ao exrcito czarista, e assim eram isentos de pagar impostos. Participaram de ataques contra judeus e operrios. Aps Outubro de 1917 muitos apoiaram o governo dos sovietes e lutaram no Exrcito Vermelho contra os adversrios da revoluo (Adaptado de TROTSKI, 2007, p.31, nota 4). A propsito da campanha do Exrcito Vermelho na frente polonesa, com destaque para a descrio dos destacamentos cossacos, sugerimos a consulta ao belo livro de contos de Isaac Babel intitulado A cavalaria vermelha (BABEL, 1969).

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poltica, tinha grande capacidade de transitar entre todos esses tpicos, considerados de grande importncia no conjunto de suas aes e reflexes. Dessa forma, das muitas aes praticadas pelo Conselho dos Comissrios do Povo, destacamos a questo das declaraes e decretos legislativos42 do governo sovitico, os quais tiveram importncia fundamental no processo de consolidao do poder proletrio. Das dezenas de decretos institudos43, destacamos: Os decretos de 26 de outubro (8 de novembro) de 1917: 1) decreto sobre a paz: declarao de uma paz justa, imediata e democrtica, sem anexaes e indenizaes; 2) decreto sobre a terra: abolio da propriedade privada da terra sem qualquer indenizao. Todas as terras pertencentes aos latifundirios, Coroa, mosteiros, igreja, bem como o gado, dependncias fsicas e instrumentos de trabalho passavam para o domnio dos Comits da Terra e dos Sovietes Distritais de Deputados Camponeses; 3) decreto da Constituio do Poder. Institua um Governo Provisrio de Operrios e Camponeses, denominado de Conselho dos Comissrios do Povo, ao qual caberia a administrao dos diferentes setores da atividade estatal, mediante atuao de diferentes comisses, baseadas nas organizaes de operrios, camponeses e soldados, que no seu conjunto formava um colegiado. O controle das atividades dos Comissrios do Povo e o poder de os substituir, caberia ao Congresso dos Sovietes e do seu Comit Executivo Central. Na ocasio foram nomeados, entre outros: o Presidente do Conselho dos Comissrios: Lenin; Educao popular: Lunacharski; Negcios estrangeiros: Trotski. Decretos de novembro de 1917: 1) decreto abolindo as classes e ttulos: abolio de todas as classes e divises de classes, privilgios, limitaes de classe, organizaes e instituies de classe, ttulos de nobreza e categorias civis. Todas as propriedades das

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Carr (1981) aludiu ao fato de que muitos decretos foram baixados, mas no cumpridos na prtica. Isso previsvel, posto que para uma lei ser cumprida no basta ela ser promulgada. Mas supomos que havia dois propsitos relativos promulgao dos decretos: 1) um propsito prtico, qual seja, de instituir uma ordem socialista, que foi alcanada em parte com os decretos e aes da Repblica Sovitica; 2) um propsito simblico: mostrar ao povo russo e ao mundo as aes e os rumos da revoluo. 43 Consultar Reed (1977), Serge (2007) e o ANEXO II.

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organizaes e instituies de classe foram transferidas para os governos autnomos municipais; 2) promulgao da Declarao dos direitos dos povos da Rssia, que poderia ser resumido assim: direito de igualdade e soberania dos povos; direito dos povos a dispor de si mesmos, at a se separar para constituir Estados independentes; abolio de todos os privilgios nacionais e religiosos e livre desenvolvimento de todas as minorias nacionais e etnogrficas (SERGE, 2007, p.141-142). Decretos de dezembro 1917: 1) decreto do controle operrio sobre a produo. Alm de legalizar a gesto das empresas pelos trabalhadores, o decreto abolia o segredo comercial; 2) decreto da nacionalizao dos bancos. Fuso de todos os bancos privados num banco estatal. Expropriao do capital financeiro; Decretos de janeiro de 1918: 1) decreto sobre a anulao dos emprstimos estrangeiros, expropriao do crdito estrangeiro; 2) destaque especial para a Declarao dos direitos do povo trabalhador e explorado; 3) proclamao da Repblica Federativa dos Sovietes da Rssia; Decreto de junho de 1918, referente nacionalizao da grande indstria, com a expropri