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Leopoldo Zea (1912-2004) Filosofia Latino-americana Tradução Nasser Kassem Hammad

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Leopoldo Zea

(1912-2004)

Filosofia Latino-americana

Tradução Nasser Kassem Hammad

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Capítulo 1

Existe filosofia latino-americana?

1.1. A Pergunta Sobre a Existência de uma Filosofia Latino-Americana é Filosófica?

Há mais ou menos um século, desde 1842, se vem falando de filosofia latino-

americana. Quem primeiro esboçou formalmente esta preocupação foi o argentino Juan Bautista Alberdi (1810-1884) em um pequeno curso oferecido em Montevidéu, Uru-guai. Preocupação que, uma ou outra vez, reapareceu nas meditações do que podemos chamar nossa filosofia. Tal preocupação começa por uma interrogação: existe uma filo-sofia americana? Esta é uma pergunta estranha que os filósofos que praticaram ao longo da história o que consideramos como filosofia nunca se fizeram. Nem Platão, nem Aris-tóteles, nem nenhum outro filósofo grego jamais se colocou o problema da existência de uma filosofia grega. O mesmo vale para Marco Aurélio, Epicteto ou Boécio que nunca falaram sobre a possibilidade ou existência de uma filosofia latina. Nem Hobbes, nem Locke sobre a existência de uma filosofia inglesa. Como tampouco Descartes ou Voltai-re sobre uma filosofia francesa. O que também poderíamos dizer de um Kant ou um Hegel com respeito à existência de uma suposta filosofia alemã. O grego, o latino, o inglês, o francês, ou o alemão praticam a filosofia a partir de sua origem concreta. Sem que esta origem tenha sido objeto de alguma preocupação. Por que, então, os latino-americanos nos vemos forcados a iniciar o nosso filoso-far, colocando-nos o problema de se tal filosofar é latino-americano? Por que é que os filósofos gregos, os latinos, os ingleses, franceses ou alemães não se colocaram tal pro-blema e, sem colocá-lo, fizeram, pura e simplesmente, filosofia? Já a própria colocação do problema parece nos dar uma resposta, que vem a ser a própria negação da filosofia pela qual os latino-americanos se perguntam. Interrogar-nos por uma filosofia america-na, ou latino-americana, é perguntar-nos por algo que parece ser alheio ao que até agora se tem considerado como filosofia, isto é, nos perguntamos por algo acidental, pelo que há de americano neste caso, não da filosofia, mas dos sujeitos que a tornaram possível. Porém a própria filosofia, em seus frutos, parece ser alheia a esta acidentalidade. Os problemas que os filósofos se têm colocado como autênticos possuem características universais, perguntar-se por algo tão concreto como o lugar de origem, a raça, a cor, a idade de quem filosofa, parece tão alheio ao que agora se toma por filosofia como se perguntar pela americanidade desta nossa filosofia.

A filosofia, dizem aqueles que questionam tal preocupação, sempre se refere a problemas universais, eternos, por isso não pode ser submetida a determinações geográ-ficas ou temporais. A filosofia enfrenta os grandes problemas. Os problemas que trans-cendem a preocupação por temas circunstanciais. A filosofia se coloca problemas e bus-ca soluções que vão além das situações concretas daqueles que fazem ou têm feito o que chamamos de filosofia. Se coloca, por exemplo, o problema de Deus, o problema da existência, do ser, da moral ou da lógica. Isto é, como agir, como pensar. Problemas frente aos quais parece ser desnecessária a preocupação pelos aspectos circunstanciais dos que filosofam. Desta forma, a pergunta sobre a existência ou não existência de uma filosofia latino-americana parece estranha à filosofia que buscamos. Por que, então, os latino-americanos se vêm colocando tal pergunta? Por que em lugar de pensar sobre a possibilidade de uma filosofia que queremos chamar de nossa não nos pomos, simples-mente, a filosofar? Platão, dizíamos, nunca se colocou o problema de uma filosofia gre-

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ga; simplesmente se pôs a filosofar sobre problemas que nunca considerou que fossem acidentais, buscando soluções definitivas para os mesmos.

Filosofar, nos dirão os primeiros filósofos da Grécia, é o afã de saber. Este afã se nos apresenta como o desejo de dar resposta, nada mais e nada menos, para a nossa ca-pacidade de pensar. O que implica que esta capacidade esteja sendo posta em questão. Tal é o que fazemos quando nos perguntamos sobre a existência de uma filosofia que podemos considerar nossa. Pergunta que vai muito além da possibilidade desta suposta filosofia latino-americana. É uma pergunta que afeta o nosso próprio ser. Nosso ser co-mo homens, como homens originários da América. Já que o pensar, o refletir, é próprio do homem. O homem se distingue dos outros seres do universo precisamente por ter razão, por pensar, por refletir. E é este pensar, este refletir o que está sendo posto em dúvida quando nos perguntamos sobre sua possibilidade entre homens como nós. Isto é, nos estamos perguntando, nada mais e nada menos, se somos ou não homens. Ou, ao menos, que tipo de homens somos que duvidamos de nossa capacidade de pensar, refle-tir e filosofar. Nosso afã de saber, nossa filosofia, se apresenta como que se estivesse encaminhada para elucidar a essência desta nossa humanidade. Uma humanidade que parece menosprezada, posta em dúvida, quando coloca em dúvida nossa capacidade para pensar sobre a totalidade do nosso próprio ser. Por acaso não é sobre esta totalidade que se interrogaram as filosofias que reconhecemos como tais?

Dizíamos que nenhum dos filósofos, cuja reflexão ficou expressa na história da filosofia, antes se havia colocado tal problema. Simplesmente pensaram, refletiram sem se perguntar se estavam, ou não, fazendo filosofia. Estes filósofos partiam de um fato indiscutível: o de que estavam pensando. Um fato diante do qual não cabia nenhuma dúvida. O filosofo francês René Descartes punha em dúvida tudo quanto existia (o mundo que o rodeava, seu corpo, o que estava pensando), salvo uma única coisa, o fato de que estava pensando. A dúvida era mantida sobre tudo o que existia, salvo sobre um fato, de que Descartes estava duvidando. Duvidar é pensar. Isto era uma realidade, daí sua afirmação, “penso, logo existo”. Duvidar é pensar, e pensar é existir. A partir desta afirmação tudo pôde, por sua vez, ser reconstruído. Porém, entre os latino-americanos acontece algo mais grave: pretendemos ir muito além da dúvida cartesiana. Duvidamos de nossa própria capacidade de pensar, de nossa capacidade de refletir ou filosofar. Du-vidamos nada menos, dizíamos, do que de nossa própria existência. E é esta dúvida que nos moveu e nos move a filosofar. É um filosofar que começa por colocar em questão sobre a nossa capacidade de filosofar. Não filosofamos como o resto dos filósofos, nos perguntamos previamente sobre nossa capacidade de filosofar. Parecendo que esta ca-pacidade seja tão somente prerrogativa de um certo tipo de homem, originada em um certo tipo de cultura, em uma certa sociedade e não em outra como a nossa. Algo muito grave se questiona neste afã de saber o que acaba por caracterizar todo este filosofar a partir de suas origens. Esta é a primeira coisa que colocamos antes de começar o discur-so, de por a caminho um pensamento do qual depende, por acaso, nossa própria existên-cia. Assim é muito grave a pergunta sobre a existência, ou não, de uma suposta filosofia latino-americana.

Porém, estamos duvidando realmente de nossa capacidade de pensar? Ou sim-plesmente estamos duvidando de um modo de pensar que parece não coincidir com ou-tro modo de pensar, o qual qualificarmos de filosofia autêntica? Isto é, não estamos, por acaso, partindo de um determinado pressuposto, o do que deve ser considerado como filosofia? Porque é inegável que, ao fazermos perguntas sobre a possível existência de uma filosofia latino-americana, já estamos, de uma ou de outra maneira, pensado, refle-tindo, filosofando. Salvo se considerarmos que este pensar, refletir ou filosofar não seja filosofia. Ou ao menos não seja o que se considera como autêntica filosofia. E pensamos

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assim porque esta reflexão parece não coincidir com a reflexão que deu origem ao que chamamos de filosofia. Já dissemos que: nunca antes os filósofos se haviam preocupado em saber se o que estavam fazendo era ou não filosofia. Esta é uma problemática que parece não haver existido em nenhuma filosofia. Daí a dúvida sobre a qualidade filosó-fica de uma reflexão que se mostra alheia ao que consideramos como filosofia. Assim, a interrogação sobre a existência de uma filosofia latino-americana parece ser estranha a uma filosofia autêntica, porque nunca antes os filósofos se haviam colocado tal proble-ma com respeito à origem espacial e temporal de tal filosofar. Porém, o fato de que tal problema não tenha sido anteriormente colocado invalida que possa ser colocado agora? Em outras palavras, que Platão não tenha se colocado o problema de uma possível filo-sofia grega, ou Descartes o de uma filosofia francesa, e Kant o de uma filosofia alemã, invalida que tal pergunta possa ser objeto de uma reflexão autenticamente filosófica? Não poderá ocorrer que nesta interrogação venha a surgir algo tão importante para os latino-americanos como para os filósofos do velho continente ao se perguntarem sobre o ser, o conhecer e o querer?

1.2 Reflexão Inautêntica e Assistemática? Ao nos perguntarmos sobre a existência de uma possível filosofia americana ou

latino-americana já estamos, necessariamente, partindo de uma certa idéia do que se entende por filosofia. A pergunta dá origem à existência de uma certa forma de refletir à qual consideramos filosófica e que, por algum motivo, nos tem sido alheia. Preocupa-ção, insistimos, que os autores da reflexão que consideramos filosófica nunca antes ha-viam se colocado. Consideramos como filosófica uma certa forma de pensar que, par-tindo de Tales de Mileto, chega até às últimas expressões da filosofia dos nossos dias. Porém a temática desta reflexão, que consideramos filosófica, não é unitária. As expres-sões deste filosofar são múltiplas, contudo, o que tais reflexões têm em comum, ao me-nos para nós, é que elas nunca se preocuparam em colocar o problema de saber se eram ou não filosóficas. Em outras palavras, os filósofos refletiram sobre diversos temas e problemas, porém sem ter em mente a preocupação por um determinado modelo de pen-sar. Porque isto é o que se passa com os latino-americanos: refletem em função de um determinado modelo que consideram filosófico. Desta forma percebemos que nosso refletir sempre lhes foi alheio, porque refletimos sobre temas e coisas que para a filoso-fia autêntica carecem de importância.

Aqui falo de uma preocupação que é própria desta reflexão, a autenticidade; e-xiste, ao que parece, filosofia autêntica e filosofia inautêntica. Autêntica, se dirá, é a que foi feita de Tales a Sartre; inautêntica, a que os latino-americanos fizeram. Autêntica é o que a reflexão européia ou ocidental deu origem ao longo de sua história. Inautêntica, a que surgiu deste lado do atlântico. E digo do atlântico porque só consideramos filosofia autêntica a reflexão européia e, de certa forma, algumas das expressões pragmáticas ou lógicas nos Estados Unidos. Frente a esta reflexão, o nosso, o latino-americano, seria como diria Hegel, falando da cultura da América: “eco do velho mundo e reflexo da vida alheia”. Nossa reflexão seria isso: eco e reflexo de algo que nos é alheio, que nos vem de fora. Porém, por acaso não é expressão desta reflexão o fato de nos perguntar-mos sobre a possibilidade de uma filosofia americana ou latino-americana? Não é uma reação reflexa esta dúvida sobre nossa capacidade de refletir como os europeus ou oci-dentais refletiram? Não é expressão do fato de ser eco e reflexo considerar inautêntica uma reflexão sobre nossa capacidade ou incapacidade de fazer filosofia? Ou é inautênti-ca porque nunca antes filósofo algum havia tido tal preocupação?

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Os críticos de nossa capacidade de refletir filosoficamente da mesma forma se perguntam: onde está o Platão latino-americano? Onde está o Kant ou Hegel? Imagine-mos os filósofos ingleses, franceses ou alemães preocupados por não ter um Platão ou um Aristóteles. Se tivessem tido tal preocupação, seguramente nunca teriam tido um Locke, um Descartes ou um Hegel. Nenhum deles é, supostamente, Platão nem Aristó-teles, nem sua preocupação filosófica se originou do desejo de a eles se assemelhar. Pura e simplesmente se colocaram os problemas de seu mundo e de seu tempo. Da mesma forma que Platão e Aristóteles, se colocaram os problemas de seu mundo e de seu tempo. Alguns problemas foram formalmente comuns por razões óbvias, como o problema do conhecer, do agir, da salvação. Temas comuns porque são problemas co-muns a todos os homens, filósofos ou não. Preocupação que não surgiu aos filósofos pelo fato de que outros filósofos as tenham colocado antes nem pelo desejo de serem considerados filósofos. Nenhum deles se preocupou com o fato de que faziam, ou não, filosofia autêntica. Simplesmente se puseram a refletir, a filosofar, sobre o que conside-ravam que fossem os problemas que o homem deveria resolver.

O próprio Tales de Mileto, na antiguidade, como Marcuse, em nossos dias, colo-caram os problemas que seu tempo e seu mundo impunham e impõem ao homem, tra-tando de lhes dar as soluções adequadas. Soluções, se possível, definitivas e, da mesma forma, eternas e universais; isto é, válida para todos os homens e em todos os tempos ainda que reconhecendo, finalmente, o inútil porém necessário desejo desse esforço. Um esforço renovado uma e outra vez através do tempo e da história. A própria história des-sa filosofia é o que tanto preocupa os pensadores latino-americanos. Originando-se, desta forma, o que poderíamos chamar de discurso filosófico, isto é, a indiscutível rela-ção de uma reflexão com outra, reflexão criticando ou completando o que é exposto e proposto como solução, para encontrar novas soluções, em uma cadeia que só poderá terminar com o próprio homem. Porém este discurso nada tem a ver com a desejada autenticidade que nos colocamos. Já que é um filosofar autêntico por natureza e não porque se proponha a sê-lo. A inautenticidade provém, precisamente, deste querer ser, previamente autêntico, em relação aos modelos que são, previamente, considerados co-mo tais. Não é um modelo, um determinado modelo o que importa à autêntica reflexão filosófica, mas o problema que deve ser resolvido. O problema que uma ou outra vez o homem se vai colocando em relação ao seu mundo, o discurso filosófico autêntico se encontra, assim, ligado pela autenticidade desta preocupação.

Aqueles que põem em dúvida a existência de uma reflexão filosófico latino-americana, realizada por homens da America, se perguntarão, igualmente, pela existên-cia de algum sistema filosófico latino-americano. Se perguntam: onde está um trabalho equivalente à Metafísica de Aristóteles, ao Discurso do Método de Descartes, à Crítica da Razão Pura de Kant, à Fenomenologia do Espírito de Hegel, a Filosofia Positiva de Comte, etc.? Que latino-americano deu origem a um sistema equivalente a estes traba-lhos? Ao máximo que se chegou foi às caricaturescas imitações de um sistema; há pre-tensões falidas de alguns sistemas, tropicalismo desta ou daquela espécie. Os latino-americanos, mais que filosofar, têm pensado, igualmente se diz; por isso, mais que filó-sofos, convém chamá-los de pensadores. É neste sentido que foi visto, em geral, a refle-xão latino-americana. É mais correto, se diz, falar em pensamento latino-americano, que em filosofia latino-americana. Por quê? Porque, se respondeu, inclusive formalmente que os latino-americanos não deram origem a nenhum sistema, partindo-se da idéia de que só o que é sistemático é filosófico. Porém, isto é correto?

Se for assim, não só ficaria fora da filosofia o chamado pensamento latino-americano, mas igualmente um conjunto de expressões que os próprios europeus e oci-dentais chamam de filosofia. A filosofia não é só um pensar sistemático. A filosofia

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pode se expressar e tem se expressado de múltiplas outras formas que não são só as sis-temáticas. Senão, onde situaríamos o Poema de Parmênides? As Máximas de Epicteto? Os Diálogos de Platão, assim como a Apologia de Sócrates? Onde os Pensamentos de Marco Aurélio, os Pensamentos de Pascal e o Teatro de Jean-Paul Sartre? Não é, não pode ser, uma determinada forma o que determine o caráter filosófico de uma reflexão. O que importa é a busca, aquilo que se quer conquistar, o que se pretende, por assim dizer, salvar. Cada um dos homens que consideramos filósofos trataram de salvar algo. Algo próprio do homem. Porém do homem concreto. Do homem em uma determina circunstância, em um espaço, em um tempo. Salvar as circunstâncias, por que não os latino-americanos?

1.3 Sobre a Suposta Falta de Originalidade.

Aqui se coloca também outro problema. O da originalidade da filosofia. Um problema que nunca foi colocado por aquela reflexão que nós, os latino-americanos, consideramos como filosofia. A nossa reflexão é original?, nos perguntamos. Desta forma se volta a colocar a dúvida sobre nossa capacidade de refletir filosoficamente. Isto é, a dúvida a respeito da reflexão como foi feita por outros homens aos quais consi-deramos filósofos. A primeira coisa que nos ocorre perguntar é se esta preocupação tem importância. Que importância tem que possamos ou não refletir como o fizeram os que chamamos filósofos? E cabe uma primeira resposta, que já foi oferecida em outra ocasi-ão: se não refletimos desta forma é porque não temos nenhuma necessidade de fazê-lo. Pretender fazê-lo só porque queremos que nos considerem filósofos seria por si só ex-pressão de inautenticidade. Pretender fazê-lo, por exemplo, à maneira de Platão, Aristó-teles, Kant, Hegel ou qualquer outro filósofo, só porque refletiram assim e porque que-remos ser considerados como eles, seria a expressão mais absoluta de inautenticidade. Se nos perguntarmos como que é que eles deram origem às suas filosofias, topamos com o fato de que nunca foi preocupação deles se parecerem com este ou aquele filóso-fo. E mais, nem sequer pretenderam ser considerados filósofos. A filosofia não é uma profissão, como pode ser a advocacia, a medicina, a engenharia ou a arquitetura. Profis-são pode ser o ensino da filosofia; isto é, o ensino de como os filósofos refletiram atra-vés da história, porém não a própria filosofia. Nenhum dos homens a quem considera-mos filósofos pretendeu que se lhes desse tal título. E mais, em suas origens a filosofia tem uma conotação que mostra sua estranheza em relação a esta pretensão. Porque estes homens se chamavam a si mesmos filósofos, antes de serem chamados sophos (sábios). Pretensão que implicava a posse de um conhecimento que, de fato, nenhum homem alcança. Por isso, os primeiros grandes filósofos como Platão, Aristóteles e outros, pre-feriram que fossem chamados simplesmente de filósofos. Isto é, amantes do saber, dese-josos e afanosos do saber, porém não sábios. Toda sua atividade se encaminhou para expressão desse desejo. Preocuparam-se com o que eles chamaram de aporias, isto é, beco sem saída, às quais se empenharam em dar uma saída. Não obstante, sempre se negaram a serem considerados sábios. O filósofo agora parece haver adquirido uma categoria semelhante à de sábio; porque fez do primitivo desejo de saber um rígido sa-ber, ao qual há de se adaptar toda reflexão que queria ser chamada de filosófica.

Já não é o desejo de saber o que dá sentido a esta reflexão, mas a preocupação em se assemelhar a este ou àquele filósofo, a falsa preocupação de fazer filosofia ou não, de refletir filosoficamente. Então, o que temos refletido ao longo dessa nossa histó-ria, porque também a temos, não é filosofia? Bom, o que importa, e arremedando Hegel sem nos preocuparmos muito com o arremedo, poderíamos acrescentar “pior para a filo-

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sofia”. Isto é, pior para uma reflexão tão estreita que não cabe nela o pensamento de muitos outros homens, como seria a reflexão dos homens da América. O certo, contudo, é que tal filosofar não foi, nem pode ser tão estreito. A limitação vem não do próprio filosofar, mas dos critérios que são usados por aqueles que fizeram de certo filosofar a única reflexão filosófica possível. Porque, quem determina o caráter filosófico, ou não, do pensamento latino-americano? Quem ou o que determina a qualificação de filosófica, de uma reflexão que para ser filosófica, não necessita de tal qualificação? Qualificação desnecessária porque o pensamento latino-americano nada vai ganhar pelo fato de que se o considere filosófico. Já que com o critério que faz da sistematização algo essencial da reflexão filosófica, ficariam fora da própria história da filosofia ocidental muitas das expressões desta filosofia. Eliminação que de forma alguma afetaria a legitimidade das diversas expressões do pensamento filosófico. Platão, por exemplo, não deixaria de ser o grande filósofo que é pelo fato de que se considere que o dialogo não é uma forma correta de filosofar. Nada aconteceria tampouco como Parmênides se se considerasse que o poema ou verso também são uma forma inautêntica e alheia à filosofia em sentido estrito. Como também Pascal ficaria fora desta história da filosofia por se expressar por pensamentos ou cartas. Nem Sartre por usar o teatro, o conto ou a novela para expor sua filosofia. Com segurança, Platão, que havia renunciado a ser chamado sábio para aceitar só o desejo do saber, renunciaria também ao qualificativo de filósofo se este título equi-valesse a um conhecimento tão limitado e pretensioso como o que implicava o de sábio. Porque nenhum filósofo, insistimos, se preocupou em ser chamado como tal, mas pura e simplesmente se preocupou em refletir, em enfrentar os problemas que se colocam ao homem, como tais, sobre o mundo, sobre a realidade que lhes coube por sorte. Por isso, pior para a filosofia se a mesma não pode abarcar as múltiplas expressões da reflexão do homem sobre si mesmo e sobre sua realidade.

Paradoxalmente, aqueles mesmos que negam que o refletir latino-americano possa ser chamado de filosofia, já que não encontram nele nenhuma expressão de um pensamento sistemático semelhante aos produzidos pela filosofia européia, sustentam, igualmente, que a América Latina não produziu nada de original neste campo. Isto é – como se repetissem Hegel – sustentam que o pensamento latino-americano, produzido até agora, foi simples eco e reflexo do pensamento filosófico europeu. Pura e simples imitação do que outros fizeram. Incapazes de criar uma filosofia, simplesmente a têm imitado, repetido e difundido. Porém, nos cabe perguntar: isso não é o que se está pro-pondo quando se critica este mesmo pensamento por não haver dado origem a nada se-melhante ao que foi produzido pela filosofia européia? Nenhum latino-americano pro-duziu um sistema semelhante aos criados pela filosofia européia. E quando procurou fazê-lo – nos dizem –, só deram origens a “más cópias”. Porém, o que significa “más cópia”? Isto é, que não se assemelha plenamente ao que deveria ser seu modelo? Isso quer dizer que para ser plenamente filósofos deveríamos produzir copias perfeitas dessa filosofia? Deveríamos ser pleno eco e reflexo dessa filosofia? Em que consiste então a originalidade? Não estará precisamente nesse não poder ser cópia exata de outro pensa-mento, ainda que houvéssemos proposto tal coisa? Tudo isso quer dizer que, em que pese a opinião de Hegel, os latino-americanos, mesmo querendo imitar, fazem outra coisa. E essa outra coisa tem que ser necessariamente original com respeito ao seu mo-delo. Porém é a partir dessa originalidade, o fato de não ser plenamente como os mode-los, que aqueles que rastreiam a existência de um filosofar latino-americano encontram expressões de sua existência. Algo que é próprio do homem que pensa e de sua realida-de se insere na suposta cópia, impedindo que seja simples decalque de um pensar alheio.

De uma ou outra maneira fazemos com a filosofia já existente o que toda filoso-fia faz com a que a precedeu. Isto é, a assimilamos, nos servimos dela para apoiar nossa

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própria reflexão; porém é esta reflexão a que prevalece em tal assimilação. Todo pensar se apóia no já pensado para continuar e ampliar a reflexão. Aristóteles, por exemplo, não imita o seu mestre Platão; partindo do conhecimento da filosofia do mesmo, trata de ir além das soluções por ele oferecidas. Sobre os ombros de seu mestre ampliam o hori-zonte de conhecimento do mesmo. Por isso, os frutos dessa filosofia nunca poderão nunca ser vistos como má cópia de um filosofar que nunca pretendeu repetir, mas pro-longar tal é o que acontece com a reflexão própria da America. Não busca imitar outro reflexão, simplesmente se apóia nela para realizar sua própria reflexão. A reflexão sobre uma realidade que não é, naturalmente semelhante à realidade que foi utilizada pelo filosofar. É a nova realidade a que se faz expressa nos frutos deste novo filosofar pare-cendo, àqueles que negam a possibilidade de um pensar latino-americano que se trata só de más copias de originais que ele nunca se propôs repetir.

O que é então a originalidade? Originalidade não é, supostamente, retirar algo do nada. Originalidade é fazer algo distinto do já existente. Criar é recriar, isto é, mudar uma ordem por outra, sem que esta outra tenha saído do nada, como dizem que Jeová fez em relação ao universo. Ser original é ser capaz de recriar a ordem existente, partin-do de suas inumeráveis possibilidades de reacomodação e reajuste. Tal é o que faz toda filosofia autêntica: conhece a realidade e os problemas que ela coloca ao homem para reajustá-la, acomodá-la de acordo com as necessidades próprias deste homem. Em nos-so caso concreto, são respostas aos problemas próprios do homem da América.

De onde vem então a colocação que nega ao nosso refletir a qualidade filosófi-ca? Não vem supostamente da própria filosofia, mas do seu profissionalismo. A filoso-fia, em si, não é uma profissão. Profissão pode ser seu ensino, porém não o filosofar. A filosofia é uma atitude diante da realidade que trata de conhecer e, como tal, está ao alcance de todos os homens. Por isso a interrogação que pergunta se os latino-americanos podemos ou não filosofar só pode provir de quem fez da filosofia uma pro-fissão. Porque é o profissional da filosofia aquele que, refletindo sobre ela, sobre os frutos da mesma, assinala suas supostas possibilidades e limitações. São os professores de filosofia, os que a estudam como objeto, os que decidem, segundo seus diversos cri-térios, o que é filosófico e o que não é. Sem que tal decisão afete o próprio fato do filo-sofar, a sua autenticidade e a sua originalidade. O filósofo, como já dizíamos, reflete sem se preocupar com a opinião que sobre esta reflexão podem ter os profissionais da filosofia.

Onde está então a originalidade que se reclama para a filosofia? Não, suposta-mente, na imitação de um sistema, por melhor que esta imitação possa aparecer. A ori-ginalidade está na autenticidade da reflexão. Se houver algo a imitar da filosofia reali-zada, não serão os frutos desta filosofia, mas a atitude que lhes deu origem. Disso nosso pensadores já têm clara e plena consciência ao reclamar para os latino-americanos uma atitude semelhante. Não se trata de imitar sistemas ou filosofias, mas de assumir a atitu-de que tomaram os criadores das mesmas diante da realidade que lhes coube por sorte. Pensaram, simplesmente sem se preocuparem em cumprir determinados requisitos, me-nos ainda aqueles que são próprios de outra reflexão. O importante será a autenticidade da reflexão; o propriamente filosófico se dará por acréscimo.

Tal é o que propuseram e propõem os pensadores latino-americanos que acredi-taram e crêem na existência de uma reflexão filosófica latino-americano; tão autêntica como puderam ser as dos grandes e pequenos filósofos da Europa e do chamado mundo ocidental. Trata-se de refletir, isto é, de se voltar sobre si mesmo e sobre a própria reali-dade, enfrentando seus problemas e tratando de lhes dar a solução mais adequada, a mais ampla e se possível, a definitiva. O que se trata, já nos dizia um desses filósofos latino-americanos, o chileno José Victorino Lastarria (1817-1888), é de tornar próprio o

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espírito que permitiu à Europa criar uma cultura e, com ela, uma reflexão autenticamen-te filosófica. Uma cultura e com ela uma ciência que surgiu da reflexão sobre sua reali-dade, a realidade própria da Europa, e não sobre realidades que lhes poderiam ser alhei-as. “Estamos condenados portanto a repetir servilmente as lições da ciência européia, se perguntava o venezuelano Andrés Bello (1781-1865), sem nos atrevermos a discuti-las, a ilustrá-las, com aplicações locais, a dar-lhes uma estampa de nacionalidade?”. Se fos-se assim, estaríamos traindo a própria ciência, a própria filosofia que tratamos de imitar, “que nos prescreve no exame, a observação atenta e prolixa, a discussão livre, a convic-ção consensuada”. E acrescenta “jovens, aprendam a julgar por vós mesmos!; aspirem à independência de pensamento. Bebam nas fontes; ao menos nos caudais mais próximos delas, interrogue cada civilização e suas obras; peçam a cada historiador suas credenci-ais. Está e a primeira filosofia que devemos aprender da Europa”. Em outras palavras, se devemos imitar algo, há de ser a atitude crítica e não os frutos desta atitude.1 1.4 Sobre a Autenticidade Filosófica.

Agora voltaremos a colocar o problema da autenticidade na filosofia. Toda filo-sofia, se diz, deve ser autêntica. Autêntica em que sentido? Autêntica na atitude frente à realidade a que o filósofo deve enfrentar. Deste ponto de vista, será inautêntica toda filosofia que repita, que copie simplesmente os problemas e soluções de outra filosofia. Isto só o professor de filosofia poderá fazer, cuja única função é a de dar a conhecer a história dos problemas que se colocam e o estado em que se encontra a filosofia, sem pretender contribuir com nada para a mesma. Por isso esta tarefa será autêntica se cum-prir tal função, e inautêntica se além do mais pretende limitar a possibilidade da filoso-fia em função do que foi realizado até agora. Por que então é autêntica a filosofia de um Platão, de um Descartes, de um Locke ou de um Hegel entre muitos outros? Simples-mente porque cada um deles refletiu sobre os problemas que sua própria realidade colo-cava, buscando dar solução aos mesmos. Platão enfrentou o grande problema de seu tempo, o da crise da cultura helênica expressa na Guerra do Peloponeso, da qual foi testemunha. Descartes enfrentou a crise do Mundo Antigo e o nascimento do Moderno, expresso nas guerras de religião e no nascimento de uma ciência que negava os dogmas de uma religião já esclerosada; Locke, por seu lado, enfrentou os problemas que se co-locavam sobre um conhecimento que punha de lado a metafísica e mostrava ao homem sua capacidade de dominar a natureza e pô-la a seu serviço. Hegel refletiu frente às mu-danças que a Revolução Francesa representava para o mundo, como máxima expressão da liberdade, e o suposto termino da relação senhor-escravo em que o Mundo Antigo, agora posto em crise, há muito havia repousado.

O importante para todos estes filósofos foi a solução dos problemas que a reali-dade lhes colocava. Nunca esteve em suas preocupações a criação de um determinado sistema. Este foi, quando se produziu, simples expressão de seu pensamento, porém nunca a meta por alcançar. O importante era a crítica da realidade, para se tornar cons-cientes de seus problemas e buscar suas soluções. E pouco importou nessa crítica a for-ma de seu enfrentamento ou o método utilizado. Quando o instrumental existente não foi suficiente, se criou um outros mais adequando. Nunca pensaram dentro de um espar-tilho elaborado por este ou aquele profissional da filosofia. O instrumental de conheci-mento foi em muitas ocasiões ingênuo, porém adequado para a compreensão dos pro-blemas que se colocavam e das soluções que podiam dar aos mesmos.

1 Zea, Leopoldo, El Pensamiento Latino Americano, 3ª ed., Ariel – Seix Barral, México, 1976.

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Ingênua, neste sentido, foi a reflexão dos chamados filósofos pré-socráticos. Pa-ra se explicarem e explicarem o mundo em que viveram e os problemas que este apre-sentava aos homens de seu tempo, se serviram dos conceitos ao seu alcance. Buscando explicar o movimento, a mudança da natureza e do próprio homem, encontraram nos elementos naturais a explicação dos mesmos. A água, o fogo, o ar foram expressões do que havia de permanente frente à angustia da mudança. Os rios correm, dizia Heráclito, porém são sempre os mesmos rios. O homem é criança, jovem e velho, porém é sempre homem. O homem que nasce e morre, porém é sempre homem. Desta forma se tratava de dar segurança ao homem angustiado por uma mudança em que estava embutido o seu próprio ser. Reflexão ingênua, porém autêntica. Autêntica porque estes primeiros filóso-fos não aspiraram filosofar por filosofar, mas a resolver os problemas de seu ser. Filoso-far foi, para eles, uma tarefa e não uma meta. A meta era marcada pela possível solução dos problemas que se colocavam.2

A própria filosofia européia colocou em crise, isto é, submeteu à crítica sua pró-pria reflexão. Uma reflexão autêntica em sua origem, porém que acabou se esclerosan-do, se acantonando ao se transformar em instrumento de manipulação deste ou daquele grupo de interesses. Uma filosofia que se origina do enfrentamento da consciência dian-te da sua realidade e da preocupação em transformá-la para melhor servir ao homem, pode-se converter em abstrações, alheias a este mesmo homem. Se falará aqui do ho-mem, porém do Homem com maiúscula. Se falará igualmente, da liberdade, porém da Liberdade, com maiúscula; da justiça, porém da Justiça com maiúscula. Sem que este Homem, sem que esta Liberdade e esta Justiça, tenham nada a ver com o homem con-creto que as está reclamando em luta aberta contra aqueles que as estão escamoteando. Uma filosofia nascida neste ou naquele enfrentamento com a realidade, pode se trans-formar em instrumento de conformidade, na aceitação passiva de sistemas, não já filosó-ficos, mas sociais e políticos que em nada levam em conta uma realidade que está solici-tando contínuas mudanças. A autenticidade transformada em inautenticidade. Cristali-zam-se filosofias, sistemas, que parecem falar, como o fizeram seus criadores, nos pro-blemas do homem, porém em abstrato, sem se referir ao homem concreto. Ao homem cujos problemas foram motivo de reflexão própria de toda filosofia autêntica e cuja au-tenticidade se escamoteia em nome da pureza de uma suposta filosofia e da integridade de um pensamento que, ao que parece, não deve se misturar com a realidade; uma reali-dade que agora lhes parece ser alheia.

Paul Nizan, filósofo francês contemporâneo, chamava os profissionais da filoso-fia de “cães guardiães”; os que fazem das expressões da filosofia autêntica um instru-mento para justificar o que essa própria filosofia tratou de modificar. Estes profissio-nais, diz, “amam abstratamente a liberdade; porém separam suas vistas de virgens mun-danas de onde a ruína da liberdade se consuma realmente. Transferem todos seus deba-tes para um mundo tão puro, para um céu tão elevado, que nenhum deles se arrisca a sujar as mãos. E a esta higiene chamam de Filosofia”.3 Desta forma só se pretende guardar uma determinada ordem, manter um determinado sistema. Outro filósofo, o italiano Antonio Gramsci, opinava por sua vez sobre o que devia ser uma filosofia au-têntica: “criar uma nova cultura não significa só fazer descobertas originais individual-mente – diz – mas significa também, e especialmente, difundir crítica entre verdades já descobertas, socializá-las por assim dizer e, por conseguinte, convertê-las em base de ações vitais, e elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. Conduzir uma massa de homens a pensar coerentemente e de um modo unitário o presente real e efeti-vo, é um fato filosófico muito mais importante e original que o descobrimento por parte 2 Zea, Leopoldo, Introduccion a la Filosofia, 5ª ed., UNAM, México, 1974. 3 Nizan, Paul, Os Cães Guadiões, Fundamentos, Caracas-Madri, 1973.

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de um gênio filosófico de uma nova verdade que se converta em patrimônio exclusivo de pequenos grupos de intelectuais”.4 Porque não há uma filosofia geral, universal, mas tantas filosofias quantos possam ser os problemas que se colocam para o homem. Por isso o filósofo chinês Mao-Tse-Tung, preocupado como nós, pela autenticidade de uma filosofia que pudesse enfrentar problemas reais e concretos, pedia a tal filosofia que abandonasse “a sala de conferências e os livros dos filósofos, para ir até o campo, a fá-brica, as ruas; para dominar e resolver os problemas cotidianos do homem concreto, do homem de carne e osso. Problemas tão concretos como podia ser a conservação dos tomates”.5 Isto é, tão concretos como foram a água, o fogo, o ar, os átomos, as idéias, o pensamento para os homens que ao refletir autenticamente sobre problemas autênticos deram origem à filosofia que tanto nos preocupa produzir entre os latino-americanos.

Todos estes filósofos não estavam preocupados em se parecerem com este ou aquele modelo. Não estavam preocupados em pensarem em máximas ou sistematica-mente; não estavam preocupados com serem ou não chamados de filósofos. Simples-mente estavam preocupados em enfrentar os problemas do homem de seu tempo, do qual eles mesmos eram expressão. E buscar soluções para estes problemas, que fossem, se possível, definitivas. Um filósofo se preocupava com a mudança da natureza e de si mesmo, porque nesta mudança estava seu próprio ser. O outro com a crise da pólis; o outro com as relações do homem com Deus, ou seja, a crise da cristandade; e o outro com a Revolução Francesa porque esta implicava para ele numa mudança da situação do homem. Ou também, a melhor forma de refletir para conhecer melhor a natureza e pô-la a serviço do homem. Sempre problemas concretos; próprios do homem e dos ho-mens como sociedade cuja solução era urgente. É nisso que se baseava a sua autentici-dade. Em novos problemas que estimulam o homem a se fazer novas interrogações. Porém não necessariamente os problemas que os outros filósofos se colocaram, mas os problemas que os homens dos nossos dias estão procurando resolver. Por isso, Paul Ni-zan pedia à filosofia uma filosofia que devia ser feita com independência da que já foi feita, que reflita sobre problemas atuais: “a guerra, o colonialismo, a racionalização das fábricas, o desemprego, as riquezas, ou seja, sobre todos os elementos que realmente importam à vida”.6 Especialmente tudo o que preocupa o homem de nossos dias sobre o qual urgem soluções imediatas, em que pese serem circunstanciais e limitadas.

Em 1959, um grupo de filósofos latino-americanos se reuniu pela sexta vez; nes-ta reunião, como nas anteriores, se voltou a colocar a pergunta que aqui expusemos e discutimos: existe uma filosofia latino-americana? E, com bom critério, se decidiu não mais se voltar a se fazer tal pergunta por ser esta uma pergunta ociosa. Já que a própria pergunta, a própria preocupação e o desejo de lhe dar uma resposta já era uma forma de refletir filosoficamente. Aqueles que assistiam a esse congresso, assim como aqueles que estavam elucubrando sobre a possibilidade dessa filosofia, estavam de uma manei-ra, ou de outra filosofando. E filosofando de forma mais autêntica que aqueles que se conformavam em expor, glosar ou supostamente criticar esta ou aquela teoria filosófica da moda. Filosofia chegada da Europa, ou expostas em alguma instituição filosófica de qualquer universidade estadunidense. A preocupação latino-americana por uma reflexão que apresentasse os problemas que considerava que lhes eram próprios, tinha que ser, por isso, necessariamente, distinta da preocupação da filosofia considerada como clássi-ca. Seria esta uma filosofia que apresentasse problemas que os latino-americanos, pelas mesmas razões que os Europeus, consideravam próprios. Ao se perguntar sobre suas próprias carências, sobre a possível existência ou inexistência de uma reflexão, os lati-

4 Gramsci, Antonio, Introdução à Filosofia da Praxis, Edições Península, Barcelona, 1972. 5 Bel Lassen, Joel, Filosofia e Conservação dos Tomates, Cadernos Anagrama, Barcelona, 1974. 6 Nizan, Paul, op. cit.

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no-americanos já estavam, pura e simplesmente, filosofando sobre uma realidade con-creta; a realidade concreta desta nossa América. Partindo de algo concreto, a própria realidade, e buscando soluções adequadas para ela. Uma realidade que não era exata-mente como a própria realidade originada pela filosofia européia. Diversas, porém não tão diversas que não fossem expressão da reflexão do homem sobre si mesmo e sua rea-lidade.

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Capítulo 2

A filosofia latino-americana e sua problemática

2.1 Consciência da Dependência.

Já não sendo objeto de discussão nem o caso de se colocar em dúvida a existên-cia de uma reflexão filosófica latino-americana, cabem as seguintes perguntas: qual é a preocupação central desta filosofia? Quais são os problemas que os autores dessa filoso-fia têm enfrentado e devem enfrentar? Esta filosofia parte, já antecipamos, da interroga-ção que foi objeto de atenção na primeira parte deste trabalho. Isto é, da pergunta sobre a existência de uma filosofia latino-americana à qual possamos dar uma resposta afirma-tiva. Isto é, estávamos duvidando, nada menos do que de nossa capacidade de refletir de uma certa forma. Refletíamos de acordo com certos modelos que não tiveram origem entre nós. Pois bem, a preocupação pela originalidade desta possível filosofia e sobre a autenticidade da mesma são problemas que só parecem preocupar os latino-americanos. Porém, estas preocupações são autenticamente filosóficas? São, podemos afirmar, por-que nelas está colocada nada mais nada menos que a essência do homem. A essência do homem concreto desta parte do planeta que chamamos de America Latina.

Perguntar-nos sobre nossa capacidade de pensar ou refletir de uma certa forma, dizíamos, é nos perguntar sobre nossa própria humanidade. Uma humanidade posta em dúvida. Desde o seu início, a reflexão filosófica fez da razão a essência do homem. Por isso, se a filosofia é expressão desta capacidade do homem de raciocinar, estávamos, então, pondo em dúvida nossa própria humanidade. Ou, ao menos, pondo em dúvida a plenitude da mesma, já que a medíamos com outras expressões que por determinados motivos considerávamos plenas. Estas expressões do humano eram alheias a nossa ex-periência, as que se nos apresentam como modelo, como algo por realizar. O plenamen-te humano se encontrava fora de nós. O humano, por excelência havia se encarnado em outros homens. E seria a nossa capacidade de nos assemelharmos a eles que dependia a possibilidade de nossa plena humanização. Deixar de ser nós mesmos para ser como outros homens, pareceu ser a meta de nossa existência. E no que se refere à reflexão, ao raciocinar ou ao filosofar, se quiséssemos que fosse autêntico tinham que se assemelhar ao refletir, raciocinar, ou filosofar dos homens aos quais considerávamos expressão do humano por excelência. Desta forma, a interrogação sobre a existência de uma filosofia latino-americana nos colocava um problema mais grave, a interrogação sobre nossa própria humanidade.

O que esteve em dúvida foi a nossa humanidade. O que está ainda em dúvida é a humanidade dos homens da América. E foi, precisamente, a consciência desta situação o que deu origem a esta estranho reflexão sobre se o que discutimos é ou não filosófico. Dúvida que se colocou no exato momento do descobrimento e conquista da América. Os descobridores e conquistadores se colocavam tal problema, porém não, certamente, sobre eles mesmos, mas sobre os entes com os quais tropeçavam e que pareciam se as-semelhar aos homens. São, na realidade, homens? Têm alguma semelhança conosco? Perguntavam-se os descobridores e conquistadores. Por acaso não são partes da flora e fauna destas novas terras? Novas terras para que o homem por excelência, como se a-presentam a si mesmos descobridores e conquistadores, fizessem dela instrumento de

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sua felicidade, para que as pusessem ao seu serviço. Flora e fauna por explorar, por que não?, dentro delas haviam esses entes que só parecem ter aparência com os homens, porém que de fato são apenas parte da flora e da fauna. Na amarga polêmica com que se inicia o descobrimento e a conquista da América, que sustentam Juan Ginés de Sepúl-veda e Fray Bartolomé de las Casas, se expressa a dúvida sobre a humanidade destes entes, “homúnculos”, como os chamava Ginés de Sepúlveda. Homens? Bestas? Se acei-tará a possibilidade destes homúnculos adquirirem humanidade, porém só por obra e graça de seus descobridores e conquistadores. Isto é, quando adquirissem as qualidades próprias do homem mediante a catequização, o ensino e a assimilação de costumes, isto é, quando se assemelharem, por estes meios aos seus descobridores e conquistadores; quando forem plenamente colonizados.

Nosso pensamento, reflexão ou filosofia será, precisamente, expressão da toma-da de consciência desta situação. Será a consciência da dependência o que deu origem a essa estranha reflexão sobre a qual inquirimos se pode ou não ser chamada de filosofia. Interrogação que já é, em si, expressão de uma situação de dependência da qual os lati-no-americanos tomaram consciência. Interrogação que está animada pela preocupação que se impôs aos homens da América para que se assemelhassem a seus colonizadores. Isto é, os homens da América não serão considerados homens, se não adquirirem as supostas qualidades de que fazem gala seus colonizadores. Só o serão quando se asse-melharem plenamente a eles. Quando forem cópia de seus senhores. Senhores modelo, arquétipo do humano por excelência. Não é esta por acaso a preocupação de quem per-gunta sobre se temos, ou não, uma filosofia própria? E o pergunta em relação a um certo modelo de refletir filosófico? Se afirma que refletiremos filosoficamente só na medida em que este nosso refletir se assemelhe ao refletir dos filósofos que deram origem ao que se considera a filosofia por excelência. Isto é, só na medida em que estes servos, ou encarregados, ao pensar repitam os gestos do pai ou senhor. Ser como o suposto pai ou senhor será a preocupação central dos homens da América; a mesma coisa acontece sejam a índios, “criollos” ou mestiços. Ser como o pai ou senhor, embora nunca possam sê-lo plenamente. Já que este pai, ou senhor, não poderá permitir jamais uma semelhan-ça que limitaria seu próprio domínio. Afã inútil este de se parecer com o dominador é o que forma a longa história, que se inicia no próprio momento do descobrimento e se completa com a conquista e colonização da América.

É a consciência desta situação o que dá origem a todo este pensamento que for-ma nossa filosofia. Profunda preocupação pela situação de dependência em que se en-contra a América e os homens que a constituem. Preocupação, também, de mudar tal situação, dando origem a uma nova ordem de coisas que os latino-americanos possam considerar como própria. Um pensamento especialmente político e cultural, preocupado em mudar a situação de dependência de que os latino-americanos já estão plenamente conscientes. É um refletir, por esse motivo, político. É o aspecto político que caracteriza este filosofar que se origina na América; porém também é cultural, já que parte da cons-ciência da urgente necessidade de mudanças estruturais que tenham suas raízes na pró-pria mente dos latino-americanos. Pois bem, pode ser esta reflexão política própria de uma filosofia autêntica? Supostamente sim. Se seguirmos a história da filosofia européi-a, ou ocidental, veremos que toda ela culmina sempre com uma preocupação política. Na política como indiscutível expressão do homem e de seus não menos inadiáveis pro-blemas. Dentro de toda a metafísica se acha oculta uma preocupação política. A teoria das idéias de Platão, culminará na Republica; a metafísica de Aristóteles na Política; a filosofia da história de Santo Agostinho na própria ordem da igreja, o Discurso do Mé-todo de Descartes culminou por sua vez em uma política que orientou a Revolução Francesa, e assim até os nossos dias.

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Os latino-americanos enfrentaram, de imediato, a busca de uma ordem libertária que substituísse a ordem colonial. Mudar a sociedade e mudar o homem. Era mister uma nova ordem sobre o signo da liberdade e de homens que mudassem a herança colonial que foi imposta a suas mentes, por uma nova concepção do homem e da sociedade que torne possível o regime de liberdade. O latino-americano, como seus equivalentes na história da filosofia, propuseram não só novas formas de organização, mas além disso lutaram por sua realização. Os latino-americanos, neste sentido transitam mais pelo ca-minho da ação que os europeus. Pensarão sobre uma forma de mudar a realidade, que consideram que lhes é alheia, porém lutando, ao mesmo tempo, para tornar realidade tal pensamento. São ao mesmo tempo, homens de pensamento e de ação. Filósofos e políti-cos.

Uma das primeiras expressões deste filosofar político latino-americano é a Carta da Jamaica, escrita por Simón Bolívar (1783-1830). Um extraordinário documento de uma filosofia que parte da consciência da situação de dependência que deve ser mudada. “Os americanos – diz a carta – no sistema espanhol que está em vigor… não ocupam outro lugar na sociedade senão a de servos para o trabalho, e quando muito, o de sim-ples consumidores; e ainda neste quesito submetido a chocantes restrições… Você quer saber qual era o nosso destino? Os campos para cultivar os grãos, o café, a cana, o ca-cau, os desertos para caçar animais ferozes, as entranhas da terra para escavar o ouro que essa nação avarenta não pode retirar”. Isto é, os trabalhos servis. Foi em função desta servidão que se educou os latino-americanos. Nada se ensinou aos homens nasci-dos na América que não estivesse em relação com tal servidão. Nada que pudesse, al-gum dia, permitir que esses homens se auto-governassem. Estávamos fora, ausentes, marginalizados do mundo propriamente dito – acrescenta Bolívar. Nada os americanos sabiam do mundo, que não estivesse relacionado com seu papel de servos. Nada sabiam “da ciência do governo” e da administração do Estado. Jamais éramos vice-reis, nem governadores… diplomatas nunca; militares só na qualidade de subalternos; nobres sem privilégios reais; não éramos, enfim, nem magistrados, nem financistas e quase nem ainda comerciantes”. Não se educou os latino-americanos para viverem em liberdade. Por isso, ao se emancipar tiveram que improvisar um conhecimento do qual careciam. “Os americanos – acrescenta Bolívar – foram convidados de repente e sem os conheci-mentos prévios… sem a prática dos negócios públicos, a representar nas cenas do mun-do as eminentes dignidades de legisladores, magistrados, administradores do erário, diplomatas, generais e quantas autoridades supremas e subalternas formavam a hierar-quia do Estado organizado com regularidade”.7

Nestas palavras se encerra todo o sentido da filosofia que tanto preocupará, no futuro próximo, os homens da América. Isto é, a filosofia de povos educados para a ser-vidão e submetidos a ela, e que ao se libertarem tiveram que improvisar experiências das quais careciam. Tiveram que negar sua servidão, porém a partir da própria servidão. Educaram-se para adquirir a liberdade, ainda dentro da escravidão. Como? Seguindo os extraordinários exemplos que outras nações estavam dando ao mundo. Deixando de lado o modelo servil, para adotar o modelo próprio da liberdade. Modelo que pode ser encontrado na história e ação de outros povos. Para Bolívar já se apresentam como um bom, porém difícil modelo, os Estados Unidos. Um modelo que era difícil de ser segui-do pelos latino-americanos caso estes não adquirissem previamente as virtudes políticas dos homens que haviam dado origem às instituições como a democracia americana. Aquela instituição de que falava elogiosamente Alexis Tocqueville.

7 Bolívar, Simón, “Carta de Jamáica” en Escritos Políticos, 3ª ed., Alianza Editorial, Madri, 1975.

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A solução parecia estar em que os latino-americanos tornassem sua uma institui-ção política como a que os americanos do norte haviam criado. Porém só seria uma a-daptação vazia, uma imitação igualmente servil, se os latino-americanos não demons-trassem previamente sua capacidade de viverem em tal sistema. Tal será a interrogação que Bolívar se colocará com respeito ao futuro da América do sul. Para mudar institui-ções servis como as impostas pela colonização, se terá, previamente, que mudar o ho-mem. “Tanto quanto nossos compatriotas – disse Bolívar – não adquirirmos os talentos e as virtudes políticas que distinguem os nossos irmãos do norte, os sistemas inteira-mente populares, longe de nos serem favoráveis, temo muito que venham a ser nossa ruína. Infelizmente esta qualidade parece estar muito distante de nós… Pelo contrário, estamos dominados pelos vícios que se contraem sob a direção de uma nação como a espanhola que só se sobressaiu em ferocidade, ambição, vingança e cobiça”. É devido a essa herança servil que será mais útil para os homens da nossa América, diz Bolívar, o Alcorão que a Constituição Política dos Estados Unidos. A adoção de instituições como a estadunidense, e de instituições como as que a Inglaterra e a França deram origem em suas respectivas revoluções, será algo explosivo, se antes não se educar os latino-americanos no uso das mesmas. Tal será o sentido que animará a filosofia da nossa A-mérica.

Uma estranha filosofia que parte da consciência de um passado servil, o qual há de ser negado, e que ao mesmo tempo tem que improvisar o futuro a partir de uma expe-riência que jamais viveu. Uma filosofia que tem que negar o passado servil de seus ho-mens, para tornar suas as instituições liberais que lhes são estranhas. Isto é, desfazer-se do próprio passado, por ser servil, para refazê-lo de acordo com algo que lhes há de ser estranho, porém que implica a liberdade. Destruírem-se a si mesmos no que os latino-americanos foram e são, para se refazer de acordo com algo ideal, próprio das experiên-cias que são alheias aos homens da nossa América. Isto é, lutaram contra si mesmos para serem o que nunca foram. Em tal caso, passar paradoxalmente da servidão da es-cravidão, o que implicará na aquisição de uma liberdade que não se tem. Daí, esse mo-vimento pendular ao longo de toda amarga história da América latina; ditaduras para ordem, ou ditaduras para a liberdade. Despotismo ou democracias dirigidas. Aceitação da ordem herdada, ou aceitação de uma ordem que, algum dia, dará origem à liberdade. As lutas que se desatam entre conservadores e liberais, entre federalistas e unitários, entre “pelucones” e “pipiolos”. Aceitando o modelo já imposto ou buscando novos mo-delos e, com isso, novas formas de dependência; formas das quais esta filosofia também tomará consciência.

2.2. Emancipação Mental.

Alcançada a libertação frente ao colonialismo ibérico, os países da América se encontraram envoltos em longas guerras intestinas. Enfrentaram-se duas idéias, duas ideologias, duas filosofias, em nome das quais os homens dessa parte do continente se dessangraram. Livres do domínio ibérico, não se libertaram de sua herança; a ordem mental, social e econômica que este domínio havia imposto aos latino-americanos em três longo séculos de dominação. Urgidos de soluções para mudar uma situação que continuava sendo semelhante à criada pelo colonialismo ibérico, os latino-americanos buscaram tais soluções entre os povos que já haviam lutado e alcançando sua indepen-dência, porém também haviam conquistado estabelecer uma nova ordem de coisas, uma ordem liberal e democrática, povos como a Inglaterra, a França e os Estados Unidos. Tornar suas as soluções destes povos, repudiando as herdadas do colonialismo ibérico,

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será a preocupação central dos latino-americanos uma vez rompida as relações de domi-nação com o Império.

Desta forma se enfrentaram duas filosofias: a filosofia herdada da ordem criada pela colonização e a filosofia adotada, por aqueles que haviam feito dela instrumento de libertação e motor de progresso. Duas filosofias igualmente estranhas aos próprios lati-no-americanos. Uma filosofia imposta para manter a dominação e outra adotada, auto-imposta, para romper com a primeira e criar uma nova ordem. Andrés Bello, refletindo sobre esta situação contraditória, escreveu: “arrancamos o cetro do monarca, porém não o espírito espanhol: nossos congressos obedeceram sem perceber às inspirações góti-cas… Até nossos guerreiros aderidos a um foro especial, que está em luta com o princí-pio da igualdade diante lei, revelam o domínio das idéias da própria Espanha cujas ban-deiras arrancaram”.8 Isto é, a ordem colonial continuou viva mesmo sem a Espanha. Outros homens, outros grupos tomaram o lugar dos antigos dominadores. A mentalida-de continuou sendo colonial, em que pese se revestissem com as bandeiras da liberdade e da justiça. Essas bandeiras, tomadas de filosofias alheias às experiências dos homens da América, se tornaram simples projetos, utopias por realizar. Porém, também, sem se dar conta, os emancipadores latino-americanos adotaram novas formas de dominação. Diz o próprio Andrés Bello: “na nossa revolução, a liberdade era um aliado estrangeiro que combatia sob o estandarte da independência e que, mesmo depois da vitória, muito teve que fazer para se consolidar e se estabelecer. E – acrescentava – a obra dos guerrei-ros está consumada; a dos legisladores não o estará enquanto não se efetue uma penetra-ção mais íntima da idéia imitada, da idéia adventícia, nos duros e tenazes materiais ibé-ricos”.9

Então, como poderão estas novas idéias, estas novas filosofias penetrarem no du-ro e tenaz material que, depois de longos séculos de colonização, era próprio dos ho-mens que a haviam sofrido? Como fazer com que homens formados na servidão, na escravidão de que nos falava Bolívar, pudessem se transformar em homens capazes de criar uma ordem liberal e democrática, semelhante à estabelecida pelos povos que mar-cavam as sendas do progresso? Como ser como a França, a Inglaterra e os Estados Uni-dos? Como passar do despotismo para a democracia, da servidão para a liberdade? A geração que se seguiu à da independência, a geração dos pensadores que tomou o lugar dos guerreiros, entre os quais estava Bello afirmava: “só resta um caminho: completar a emancipação política com a emancipação mental”. Libertar-se da filosofia que deu sen-tido e justificação à dominação ibérica na América, substituindo-a por uma filosofia que educasse os latino-americanos no uso das liberdades supostamente alcançada. A esta geração pertenceram mexicanos como José Maria Luis Mora (1794-1850); o argentino como Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), Juan Bautista Alberdi (1810-1886); equatorianos como Juan Montalvo (1832-1889); chilenos como Francisco Bilbao (1823-1865) e José Victorino Lastarria (1817-1888); cubanos como José de la Luz y Caballero (1800-1862) e muitos outros.

A emancipação mental será a segunda etapa da libertação da América. E a esta tarefa se entregará toda uma geração tratando de romper plenamente com a herança cul-tural que o imperialismo ibérico havia deixado. Herança justificada por uma filosofia que educava os latino-americanos na aceitação de sua dependência. A emancipação mental havia de se expressar como reeducação dos latino-americanos. Educar para a liberdade foi a meta que se propôs esta geração de pensadores latino-americanos. Dizia

8 Bello, Andrés, “Investigaciones Sobre la Influencia de la Conquista y del Sistema Colonial de los Españoles en Chile”, en Antologia del Pensamiento de la Lengua Española em la Edad Contemporánea, realizada por José Gaos, Séneca, México, 1945. 9 Bellos, Andrés. op. cit.

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o chileno Francisco Bilbao: “ao povo não se pode pedir que saiba aquilo que nunca des-frutou em toda a sua vida. [Este] não sabe senão o que seus pais lhes ensinaram, e isto é para ele o ponto final de seu trabalho intelectual. Tudo mais ele repelia. Daqui vai sair o espírito e as tradições [destes homens. Suas crenças] são católicas e espanholas. Daí a reação anti-liberal”.10 Não se pode pedir aos homens, educados na aceitação da escravi-dão e da servidão, que saibam agir no âmbito da liberdade para a qual não estão prepa-rados. Tal deve ser a missão dos novos emancipadores; emancipar os latino-americanos da herança colonial que lhes foi imposta. Não se pode pedir a um povo que atue racio-nalmente, de acordo com seu critério, se antes não se o preparou para o uso indiscrimi-nado de sua razão. Por isso temos que lhe educar para o bom uso da razão. Isto é, a ra-zão como instrumento crítico da realidade que há de ser modificada uma ou outra vez, se assim se considerar necessário fazê-lo. “O elemento mais necessário para a prosperi-dade de um povo – diz Bilbao – é o bom uso e exercício de sua razão, que não se con-quista, senão pela educação das massas”.

Qual seria, então, a filosofia encaminhada para realizar a emancipação mental dos latino-americanos? Por qual filosofia deveria ser substituído o escolasticismo que proliferou na Colônia e ensinou os latino-americanos a pensar servilmente, e aceitar, sem discussão, verdades que sua crítica não havia discernido? Os homens que faziam estas perguntas estavam empenhados em uma dupla luta, a política e a cultural. Luta armada, por um lado, contra as forças empenhadas em manter o espírito de retrocesso, o conservadorismo; e luta ideológica, por outro, da cultura e da educação, orientada para mudar hábitos e costumes impostos pela Colônia. Tais homens se viam obrigados a uti-lizar o arsenal ideológico e filosófico que outros homens, em outras circunstâncias, ha-viam utilizado com êxito em lutas semelhantes. Adoção da ideologia e filosofia que haviam tornado possível nações novas como a França, a Inglaterra e os Estados Unidos. Nações que haviam feito da liberdade e da democracia o ponto de partida de uma nova ordem. Uma ordem já a serviço dos homens e dos povos, e não a deste ou aquele grupo de limitados interesses.

Porém uma filosofia, e isso é muito importante, que só deveria ser tomada como ferramenta, como instrumento para refletir sobre a realidade e tratar de modificá-la, a partir do que ela era. “Qual é a filosofia que convém à juventude americana estudar? Pergunta-se o argentino Alberdi. E responde – a filosofia americana, a filosofia da nossa realidade, a filosofia da nossa nação. A filosofia de uma nação – acrescentava – é a série de soluções que foram dadas aos problemas que interessavam ao seu destino. Nossa filosofia será, pois, uma série de soluções dadas aos problemas que interessam aos des-tinos nacionais”.11 Tal era o que a própria filosofia européia ensinava. A Europa havia filosofado assim, os latino-americanos deveriam refletir da mesma forma.

Esta mesma filosofia européia e, com ela, a norte-americana havia já enfrentado situações como as que os povos latino-americanos estavam vivendo. Por isso, tal refle-xão poderá ser útil para nosso próprio refletir. Não se trata de descobrir o que já foi des-coberto, mas senão partir do já refletido para ir além de tal reflexão em relação à reali-dade que agora é objeto da mesma, a da América. “A regra do nosso tempo – acrescenta Alberdi – é não se deixar matar por nenhum sistema”. Servir-se, sim, deste ou daquele sistema, se este nos ajudar a enfrentar os problemas da nossa realidade. Se não for as-sim, deixá-los de lado e buscar, ou inventar o que for necessário, a forma de se enfrentar com êxito os problemas próprios da realidade da América. Da filosofia européia, acres-

10 Bilbao, Francisco, Sociabilidad Chilena, Santiago de Chile, 1844. 11 Alberdi, Juan Bautista, Ideas para presidir a la confección del curso de filosofía contemporânea, em el Colegio de Humanidades”. En José Gaos, op. cit.

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centa, tomaremos aquelas expressões da mesma que sirvam melhor aos nossos interes-ses.

A revolução da independência política se serviu da filosofia dos enciclopedistas, do iluminismo, do racionalismo de Rousseau, e de outras expressões do mesmo. Nós devemos tomar só aquela filosofia que nos permita educar os latino-americanos no uso da liberdade já alcançada formalmente, enfrentando-se ao mesmo tempo uma natureza que devia, também, ser posta a seu serviço. Das filosofias existentes, continua Alberdi, tomaremos as do século XIX e, deste, só aquelas filosofias que sejam mais “aplicáveis às necessidades sociais de nossos países, cujos meio de satisfação devem nos subminis-trar a matéria de nossa filosofia”. Uma não aceitação indiscriminada de todas as filoso-fias, mas só daquelas que nos ensinam a forma de adquirir os hábitos que permitiram aos europeus viverem em liberdade e fazer da natureza um instrumento a seu serviço “…a filosofia aplicada aos objetos de um interesse mais imediato para nós; em uma palavra – diz Alberdi – a filosofia política, a filosofia de nossa indústria e riqueza, a filosofia de nossa religião, e de nossa história”. Fora destes interesses estaria toda a filo-sofia que fosse contrária à preocupação posta a serviço da realidade latino-americana. Fora deste mesmo interesse estariam as filosofias metafísicas, abstratas, alheias à reali-dade que os latino-americanos teriam que enfrentar.

Conhecer se for possível todas as filosofias, porém não usá-las indiscriminada-mente, mas criticamente, sempre em função da realidade a que haviam de ser aplicadas. A adoção de filosofias estranhas às preocupações que devem animar os latino-americanos, deveria ser afastadas. Por isso o cubano José de la Luz y Caballero, bom conhecedor e admirador da filosofia de Hegel, considerava que muito embora seu co-nhecimento fosse bom como informação, não o era como instrumento a serviço dos in-teresses e das preocupações de seu povo. Seu uso, no que se refere à preocupação de Luz y Caballero, para a independência de Cuba, seria negativo. Ninguém melhor do que eu – dizia – poderia ter recolhido mel abundante na Alemanha, e ainda me preocupado com introduzir o idealismo dessa nação, a qual idolatro, porém a considerei em consci-ência… que poderia muito mais prejudicar que beneficiar o nosso solo”. Igualmente pensava do ecletismo de Victor Cousin que da mesma forma que o hegelianismo, justi-ficava todos os fatos históricos como produto de uma vontade que transcendia o ho-mem. Os cubanos, por aceitarem estas filosofias, caíram em um determinismo que lhes impedia de lutar por sua liberdade. “As conseqüências práticas que semelhantes siste-mas filosóficos haviam de produzir só poderiam que ser perniciosas para o progresso político do mundo e muito especialmente da Ilha de Cuba – diz de la Luz y Caballero –, de onde a existência da escravidão e suas instituições políticas tão excessivamente ultra-conservadoras e reacionárias, a ação enervante do ecletismo como sistema havia de ser sentida com mais força”.12

2.3. Emancipação e Nova Expressão de Dependência.

Em que pese estas precauções, em que pese a preocupação por não aceitar filoso-fia alguma que não sirva para refletir sobre a própria realidade americana e lhe dar solu-ções, em que pese tudo isso, junto com o instrumental filosófico adotado, irão também ser adotadas experiências estranhas à nossa realidade e, com elas, novas, embora in-conscientes, formas de subordinação em relação ao mundo de que eram originárias tais filosofias. Partia-se de uma afirmação, que diante do nosso refletir parecia incontrover-

12 Luz y Caballero, José de la, La Polémica Filosófica, Universidad de La Habana, La Habana, 1946/8.

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tível: a superioridade dos povos e das nações cujas instituições e idéias os povos da América Latina tratavam de tornarem suas. Superiores eram os povos que caminhavam no avanço para o progresso. Os latino-americanos não aspiravam a outra coisa que se incorporarem a esta marcha; tornar suas as instituições liberais e democráticas que estes mesmos povos haviam alcançado. Era mister ser como estes povos, os que, pela mesma razão, pareciam ser superiores aos nossos. Tal era a preocupação última de um pensa-mento empenhado em descobrir sua realidade para transformá-la. Comparando sua pró-pria realidade com a de povos como o dos Estados Unidos, dizia o argentino Domingo F. Sarmiento: “reconhecemos a árvore por seus frutos; são maus, amargos e às vezes, escassos… A América do Sul fica atrás e perderá sua missão providencial de sucursal da civilização moderna. Não detenhamos os Estados Unidos em sua marcha… Alcan-cemos os Estados Unidos. Sejamos a América como o mar é o oceano. Sejamos os Es-tados Unidos”. – e acrescentava –: “chame-os de Estados Unidos da América do Sul, e o sentimento de dignidade humana em um nobre estimulo conspirarão para não fazer uma injúria ao nome a qual se associam grandes idéias!”.13

Será a partir da consciência da inferioridade, da própria realidade, da própria his-tória, da própria formação histórica e étnica, e da consciência da superioridade das na-ções que formam o chamado mundo ocidental, que se irá tecendo a trama de uma nova subordinação, de uma nova dependência e servilismo que não serão inferiores ao descri-to por Simão Bolívar. Sarmiento expõe a disjuntiva: “civilização ou barbárie?”. Civili-zação é ser como as grandes nações adiantadas do progresso. Barbárie é o modo de ser próprio dos latino-americanos, originado da herança que a colonização ibérica havia deixado na América”. Barbárie era o índio, o crioulo, a mescla com raças inferiores. Tal era o passado; apagá-lo seria a tarefa dos civilizadores. A civilização tinha, para Sarmi-ento, seu núcleo nas cidades; enquanto a barbárie tinha seu assento no campo. “O ho-mem da cidade – diz Sarmiento – veste o traje europeu, na cidade civilizada tal como a conhecemos em toda a parte. Saindo do recinto da cidade tudo muda de aspecto: o ho-mem do campo veste outro traje, que chamarei americano, por ser comum a todos os povos… E aquele que ousasse se mostrar com sobrecasaca, por exemplo, e montado em sela inglesa atrairia sobre si as chacotas e as agressões brutais dos camponeses”.14 A cidade deve se impor ao campo, submetê-lo, como se submete a natureza, a flora e a fauna. Porém não são também parte destas os próprios naturais, os indígenas, os pró-prios americanos educados na servidão ibérica?

Deduzida e aceita a inferioridade da América e sua cultura, assim como a supe-rioridade dos povos europeus, no velho e no novo continente, ficava também deduzido o papel que há de ter a América Latina dentro do âmbito do progresso. Um progresso que só havia de vir pela assimilação racial, cultural e social latino-americana à raça, cultura e sociedade dos povos que encarnavam o progresso. Lá – diz Sarmiento falando dos Estados Unidos – um seleto núcleo de raça branca luta em defesa de seu direito; aqui a raça mestiça se agita em um levante desordenado, sem conceito firme de suas aspira-ções. Lá a raça conquistadora introduziu a virtude do trabalho; aqui se limitou a vegetar na burocracia e no parasitismo”.15 Falando também dos Estados Unidos, o chileno Bil-bao dirá: “sua vida livre, individual e política, e todas as suas maravilhas dependem […] da soberania individual e da razão desta soberania: a liberdade de pensamento. Que con-traste da América do Norte com o que era a América Espanhola!”16 Era o auto-governo frente à servidão. Não resta, então, outro caminho que o se incorporar aos povos que

13 Sarmiento, Domingo Faustino, Conflicto e Armonía de las Razas en América, Buenos Aires, 1883. 14 Sarmiento, Domingo Faustino, Facundo, Civilización e Barbarie, Santiago de Chile, 1845. 15 Sarmiento, Domingo Faustino, Conflicto e Armonía de las Razas en América. 16 Bilbao, Francisco, El Evangelio Americano, Santiago de Chile, 1864.

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pudessem fazer por esta América o que já haviam feito pela do norte. “…nós – diz Sar-miento – necessitamos mesclar-nos com a população dos países mais adiantados que o nosso, para que nos comuniquem suas artes, suas indústrias, sua atividade e sua atitude de trabalho”.17 Isto é, fazer na América o que os estadunidenses fizeram na sua: varrer e apagar hábitos, costumes e raças; limpar de índios, “criollos” e mestiços. Estes eram só barbárie, o passado, o que deve ser substituído pelas raças, hábitos, costumes e cultura que encarnam a civilização.

O pensamento de Sarmiento não é senão um dos mais violentos exemplos da fi-losofia de sua geração, que buscou a emancipação mental da América para apagar o passado servil que lhe foi imposto. A filosofia da geração que tratou de incorporar a seus povos o carro do progresso. Porém os incorporou, como diria outro argentino, Er-nesto Che Guevara, como “vagão de trem”. Isto é, aceitando sua suposta inferioridade, com o que se aceitou também uma nova forma de dependência. Pensando que seus po-vos seriam incapazes de fazer de suas riquezas naturais e de seu próprio trabalho um instrumento a seu próprio serviço, entregaram estas riquezas e este trabalho para a dire-ção dos homens e nações que já haviam demonstrado como se explora a riqueza natural e como se podia fazer com que outros homens rendessem mais com seu trabalho. Pensa-ram que, desta forma se incorporariam ao progresso. Assim foi com os herdeiros da geração que se enfrentou com os exércitos coloniais que para dar liberdade à América criaram novos exércitos, porém não para manter uma liberdade, que consideravam im-possível de realizar, mas para obrigar os latino-americanos a se incorporarem pela força ao progresso, obedecendo e servindo àqueles que o haviam tornado possível em suas terras e nações. Tal foi também o ideal filosófico da geração que se seguiu à dos eman-cipadores mentais. A geração que tornou sua a filosofia positivista para fazer dos latino-americanos os ianques do sul, ou desta América outro Estados Unidos ou outra Ingla-terra ou França. Assim se criaram oligarquias, como a do Porfiriato no México, encarre-gada de manter a ordem que melhor servisse a seus limitados propósitos, e aos interes-ses das nações líderes do desejado progresso. O novo colonialismo não necessitará de exércitos próprios para manter a ordem. Livre, soberanamente, os próprios governantes das nações latino-americanas se encarregaram de estabelecê-lo e sustentá-lo. Ordem e progresso. Primeiro a ordem, depois o progresso ocorreria como resultado da mesma.

O certo é que a educação positivista não fez dos latino-americanos os ianques do sul, nem dos estados latino-americanos os Estados Unidos da América do sul. Ao con-trário, sim, um novo imperialismo se assenhoreou desta América. Nossos filósofos ha-viam refletido equivocadamente. Queriam fazer de seus povos nações modernas, à altu-ra do progresso encarnado nas outras, tomaram, não a atitude de seus homens para reali-zá-lo, mas fizeram dos frutos alcançados com esta atitude, suas próprias metas. Acredi-taram, simplesmente, que bastava utilizar esta ou aquela filosofia para alcançar metas que consideravam que podiam lhes ser próprias; ainda que na realidade fizessem desse mesmo instrumental filosófico alheio, a meta que os seus próprios povos deveriam al-cançar. Meta estranha a estes povos, alheia às suas experiências. Era tão alheia que os latino-americanos consideraram necessário apagarem-se a si mesmos, negarem-se como povos, como cultura, raça e história, considerando que esta história era só a história de sua servidão. Porém era desta servidão que teriam que partir para poder negá-la autênti-ca e definitivamente. Negar-se a si mesmo para ser outro. Estranha a si mesma, foi a expressão deste filosofar inautêntico.

17 Sarmiento, Domingo Faustino, Argirópolis, Santiago de Chile, 1850.

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2.4. A Realidade como Ponto de Partida.

Em 1898, a nação modelo por excelência, os Estados Unidos, iniciava sua ex-pansão imperial. Expansão que começava pelo Caribe para se estender em seguida por toda América e ocupar “vazios de poder”, que o velho imperialismo ibérico havia dei-xado no continente. Ironicamente, em nome dos mesmos princípios libertários que tanto admiraram os membros da geração dos emancipadores mentais latino-americanos e dos positivistas, querendo fazer desta América outro Estados Unidos; os verdadeiros Esta-dos Unidos se dispuseram a incorporar a América Latina ao progresso; porém o pro-gresso que era próprio desta poderosa nação. Agora ficará bem claro que essa nação nada iria fazer por outros interesses que não fossem os seus. A América Latina, como depois outras partes do mundo, faria parte do progresso, porém como simples instru-mento do mesmo. Os homens e povos de nossa América não eram senão parte da flora e fauna por explorar. Não se criaram os Estados Unidos da América do Sul; simplesmente a América do sul passaria a fazer parte da zona de exploração dos Estados Unidos na América. Os latino-americanos não seriam tampouco os ianques do sul, como pensava o mexicano Justo Sierra (1848-1912); simplesmente faziam parte dos grupos raciais que tinham demonstrado historicamente sua incapacidade para o realizar o próprio progres-so, mas que sim podiam ser obrigados a manter o dos homens e povos que já haviam mostrado sua capacidade para o mesmo.

Como resposta a essa expansão e tomada de consciência da filosofia que podia justificá-la na América Latina, surge outra reflexão filosófica, outra filosofia que tornará consciente a aberração em que haviam caído os emancipadores mentais e positivistas latino-americanos. Esta nova filosofia se inicia com o pensamento de José Enrique Ro-dó (1871-1917) e se expressa, centralmente, na obra que escreveu, simbolicamente, no nascer do século XX: Ariel. Rodó enfrenta nela a nordomania, isto é, o desejo de se assemelhar à América do Norte, à “América deslatinizada”. “Não vejo – escreve – a glória nem o propósito de desnaturalizar o caráter dos povos, seu gênio pessoal, para impor-lhes a identificação com um modelo estranho a que eles sacrificam a originalida-de insubstituível de seu espírito, nem na crença ingênua de que essa pode alguma vez ser obtida pelos procedimentos artificiais improvisados de imitação”. A América Latina, tratando de se assemelhar à poderosa nação do norte, o que esteve fazendo foi preparar a conquista moral da mesma pelo novo império. Conquista moral que permitirá a rápida conquista material da América Latina. Ai estão Cuba, São Domingo, Porto Rico, pri-meira etapa desta conquista. José Enrique Rodó, e da mesma forma que outros latino-americanos, dá a voz de alarme do que está por vir. “A poderosa federação – diz – vai realizando entre nós um tipo de conquista moral”. Aceita-se sua superioridade, e, com ela, se aceitaria, igualmente, seu direito de predominar sobre nossos povos. “…se imita aquele cuja superioridade e prestigio se acredita”. Aceita-se, num paradoxo de liberda-de, livremente, uma nova forma de dependência, uma nova forma de servidão.

Isso quer dizer que a América Latina tem que renunciar a se incorporar ao pro-gresso? Supostamente não. Ao que deve renunciar é fazer parte dele como instrumento. Ariel, que é o espírito próprio desta nossa América, não tem porque renunciar à prospe-ridade material que representa o progresso, que Rodó faz encarnar no símbolo de Cali-bã. O que não deve se aceitar é que Ariel sirva a Calibã, mas Calibã a Ariel. Isto é, a América Latina pode tornar suas a ciência e a técnica para explorar suas riquezas; traba-lhar devidamente para conquistar os maiores frutos destas riquezas, porém posta a ser-viço de seus povos. Para alcançar o progresso material, que os Estados Unidos encarna, a América Latina não tem porque renunciar a si mesma. Não pode renunciar ao que é, ao que chegou a ser através da amarga experiência do colonialismo. Precisamente para

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que não volte a repetir esta experiência e caia em nova dependência. “Calibã – diz Rodó – pode servir a Ariel, se Ariel souber orientar Calibã. Sem a conquista de certo bem estar material é impossível, nas sociedades humanas, o reino do espírito. A obra do po-sitivismo norte-americano servirá à causa de Ariel, em último termo. O que aquele povo de cíclopes conquistou diretamente para o bem estar material, com seu sentido de utili-dade e sua admirável capacidade de invenção mecânica, converterão outros povos, ou ele mesmo no futuro, em eficazes elementos de seleção”. O que é, então, que há de ser preservado desta nossa América, aquilo a que os latino-americanos não devem renunciar só para se unir ao carro de um progresso do qual são unicamente instrumento? “O prin-cípio fundamental do vosso desenvolvimento – diz Rodó aos jovens da América Latina –, vosso lema na vida, deve ser manter a integridade de vossa condição humana. Deve velar no íntimo de vossa alma a consciência da unidade fundamental de nossa natureza que exige que cada indivíduo humano seja, antes de tudo e sobretudo, um exemplo não mutilado da humanidade em que nenhuma nobre faculdade do espírito fique esquecida e nenhum auto-interesse de todos perca sua virtude comunicativa”.18 Isto é, o homem in-tegral, não mutilado; o homem livre, sem dependência alguma. Tal deve ser o homem desta América que venha lutando, ao longo de quatro longos séculos, por emergir rom-pendo a servidão e as diversas formas de escravidão.

Expressando essa nova filosofia surgirão, em toda nossa América, numerosos pensadores, formando a geração que enfrentará as novas expressões do colonialismo, o neo-imperialismo que já assoma pujante ao nascer do século XX. Uma geração que re-clamará, uma vez mais, a volta à própria realidade; a seus problemas e à busca de suas soluções. Porém tratando, nesta ocasião, de não cair em novas armadilhas filosóficas que possam preparar e justificar novas formas de dependência. A esta geração pertence-ram o mexicano José Vasconcelos (1882-1959), Antonio Caso (1883-1946) e Afonso Reyes (1889-1959); o dominicano Pedro Henríquez Ureña (1884-1946); o argentino Manuel Ugarte (1875-1951); o venezuelano Cezar Zumeta (1860-1955); o peruano Ma-nuel González Prada (1848-1918) e o cubano José Martí (1853-1895).

2.5. Salvação das Circunstâncias.

De que passado ou história, de que realidade terá que partir nossa filosofia para que não repita a experiência do nosso filosofar no século XIX? Do único passado que temos, da única história e realidade que nos são próprias, a história e a realidade desta nossa América. Devemos partir de nossa única experiência histórica, a da colonização, a da dependência. Só partindo dela, conhecendo-a, poderemos superá-la e não repeti-la. É uma realidade que só pode ser negada dialeticamente. Mediante a assimilação de sua experiência. Pois bem, tomar consciência da servidão não significa aceitar a servidão. Conhecê-la deve ser o primeiro e indiscutível passo para sua superação. Tal deverá ser o primeiro passo de uma filosofia que se considere a si mesma como própria, original, enquanto não repita uma reflexão que lhe é alheia; e autêntica, enquanto se preocupe com os problemas que angustiam os homens da América.

Partir da consciência da dependência – dizíamos – não é aceitar a dependência. Disto eram já conscientes vários dos membros da geração que se empenhou na emanci-pação mental da América Latina. De forma muito especial, Andrés Bello e Francisco Bilbao. A colonização impõe servidão, porém não necessariamente origina servos ou escravos. A consciência da servidão faz com que os homens lutem por anulá-la, dando

18 Rodó, José Enrique, Ariel, Montevidéu, 1900.

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origem à liberdade. Se não, como foi possível a gesta da independência? Pergunta-se Andrés Bello. “Jamais – dizia – um povo profundamente aviltado, completamente dimi-nuído, nu de todo sentimentos virtuosos, foi capaz de executar os grandes feitos que ilustram as campanhas dos patriotas, os atos heróicos de abnegação, os sacrifícios de todo gênero com que … sessões americanas conquistaram sua emancipação política”. O que havia nestes homens que os fizeram lutar contra o domínio ibérico? Algo que este mesmo domínio enxertou, apesar de si, nos povos por eles subjugados. Algo que os próprios denominadores haviam reclamado para si e expressavam como próprio: a li-berdade, o direito à autodeterminação. Bandeiras com as quais a própria Espanha havia enfrentado a dominação Romana e Francesa. Na América, outros homens também do-minados reclamaram da Espanha o que ela havia reclamado de seus dominadores. As façanhas de Numancia e Zaragoza foram reproduzidas ao longo da América que arran-cava sua liberdade da Espanha. “Os capitães e legiões veteranas da Ibéria transatlântica foram vencidos e humilhados – diz Bello – pelos caudilhos e exércitos improvisados de outra Ibéria jovem, que aceitando o nome, conservava o alento indomável da antiga defesa dos lares”.19

Francisco Bilbao admirador dos Estados Unidos e de suas instituições, descobre que nem tudo é necessariamente grande nesse povo, como nem tudo tem que ser negado nesta nossa América. A América do Norte, em que pese as suas grandes qualidades, em seu crescimento havia esquecido os ideais pelos quais lutou e não queria reconhecer em outros povos. Por isso, “desprezando tradições e sistemas, criando um espírito devora-dor do tempo e do espaço, chegaram a formar uma nação, – diz Bilbao – um gênio par-ticular… e voltando-se sobre si mesmos e se contemplando tão grandes, caíram na ten-tação dos titãs, acreditando-se ser os árbitros da terra e ainda os abarcadores do Olím-pio”. Porém, em que pese ser tão grandes e poderosos, “não aboliram a escravidão de seus estados, não conservaram as raças heróicas dos seus índios, nem se constituíram em campeões da causa universal, mas do interesse americano, e a causa do individua-lismo saxão [por isso] se precipitam para o Sul”, comenta Bilbao, recordando a guerra feita contra o México e a amputação de seu território, em 1847. Há muito, sim, que a-prender desta nação, porém também esta nossa América tem muito que contribuir para a história do homem; para a história das lutas pela liberdade e dignidade humana. Nem tudo é negação, obscuridade, escravidão e servidão. Apesar do indiscutível passado que nos foi imposto, acrescenta Bilbao, “houve palavra, houve luz, nas entranhas da dor, e rompemos a pedra sepulcral, e fundimos esse séculos no sepulcro dos séculos que nos haviam destinado [depois, em seguida] tivemos que organizar tudo. Tivemos que con-sagrar a soberania do povo nas entranhas da educação teocrática. E apesar dos múltiplos obstáculos, apesar de nossa educação, apesar dos hábitos e costumes que nos foram im-postos – acrescenta comparando a nossa América com a América saxônica – fizemos desaparecer a escravidão de todas as repúblicas do sul, nós os pobres, e vós os felizes e os ricos não o fizeram; incorporamos as raças primitivas… porque as acreditamos de nosso sangue e nossa carne, e vás as exterminaram jesuiticamente [nós] não vemos na terra nem no gozo da terra, o fim definitivo do homem; o negro, o índio, o deserdado, o infeliz, o fraco encontram, em nós o respeito que se deve ao título e à dignidade do ser humano. Eis aqui – conclui – o que os republicanos da América do Sul se atrevem e colocar na balança, ao lado do orgulho, das riquezas e do poder da América do Norte”.20

José Martí, décadas mais tarde, fará desse passado latino-americano que se quis negar indiscriminadamente, o ponto de partida de um futuro autêntico, próprio, a servi-ço de seus homens. É por isso que nossa filosofia há de partir da realidade que em vão 19 Bellos, Andrés, op. cit. 20 Bilbao, Francisco, El Evangelio Americano.

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se quis negar. Há de partir de seus índios, “criollos” e mestiços. Há de partir da consci-ência que estes homens tiveram da servidão inaceitável e dos esforços feitos para anulá-la. Foi um erro pensar de outra maneira, diz Martí: nem o livro europeu, nem o livro ianque, davam a chave do enigma hispano-americano. O problema da independência não era a mudança de formas, nem a mudança de espírito. Por isso o livro importado foi vencido nas letras artificiais. O mestiço autóctone venceu o “criollos” exótico e – repli-cando Sarmiento acrescenta – não há batalha entre a civilização e a barbárie, mas entre a falsa erudição e a natureza”.

O latino-americano não pode se negar a si mesmo. Não pode negar o que foi, nem o que é. Pretender tal coisa é cair na armadilha do colonialismo. Por que esta Amé-rica há de negar seus índios? Por que há de negar os seus mestiços? Por que há de negar os seus “criollos”? Ela não é índia, mestiça e “criolla”? A única possibilidade de nega-ção é a assimilatória. Isto é, que algo deixe de ser pelo fato de ter sido. Que o que foi seja só uma experiência para o que se deve ser. Martí se lança violentamente contra a-queles que negam seus índios, sua mãe indígena, pretendendo assim se igualar ao pai colonizador para o qual só é um servo: “estes nascidos na América, que se envergo-nham, porque levam os traços indígenas da mãe que os criou, e renegam, patifes! a mãe enferma e a deixam no leito das enfermidades… maldizendo do seio que os amamentou. Estes filhos de nossa América, que hão de se salvar com seus índios…, estes desertores que pedem fuzil nos exércitos da América do norte, que afoga em sangue seus índios!”. Sobre esse passado que se quer negar e apagar, por se considerar inferior ao dos novos senhores, temos que levantar próprio o futuro desta nossa América. Os homens desta América, por haverem tido que lutar contra a servidão e a escravidão, têm um passado difícil de igualar por sua grandeza. A grandeza do homem que luta por sua dignidade e não, simplesmente, para alcançar esse ou aquele efêmero bem estar material. Pergunta Martí: “em que pátria se pode ter um homem mais orgulho que em nossas repúblicas dolorosas da América? Levantadas entre as massas mudas de índios, ao roído da peleja, do livro com o castiçal, sobre os braços sangrentos de um centenar de apóstolos? De fatores tão descompostos, jamais, em tão tempo histórico, se criaram nações tão adian-tadas e compactas”.

Não é usando a casaca, de que falava Sarmiento, que se salva um povo. Que grande erro! Martí descreve a ridícula figura dos latino-americanos empenhados em se assemelhar ao dominador europeu ou norte-americano. “Éramos uma máscara – diz –, com os calções da Inglaterra, o colete parisiense, o jaquetão norte-americano e chapéu da Espanha”. Enquanto nossos homens, aqueles com os quais convivemos, nas múlti-plas expressões de nossa raça, eram olhados de soslaio. “O índio, mudo, nos dava voltas ao redor… o negro, vigiado, cantava na noite a música de seu coração, só e desconheci-do… o camponês, o criador, se voltava, cego de indignação, contra a cidade desdenho-sa, contra a sua criatura. Éramos charretes e togas, em países que vinham ao mundo com a alpargata nos pés e a fita na cabeça”. Nada tinha a ver essa roupagem estranha a nós. Por usar a sobrecasaca tratamos de ignorar o índio, o negro, o camponês que não tinha porque usá-la e pareciam destoar em um quadro extravagante. O inteligente havia sido, como propunha Rodó, assimilar o estranho, fazendo dele parte do mundo e realidade latino-americana, que não tinha porque ser excluído em beneficio de algo que lhe era estranho. “O gênio seria – acrescenta Martí – em irmanar, com a caridade do coração e com o atrevimento dos fundadores, a fita e a toga; em libertar o índio; em dar lugar sufi-ciente ao negro; em ajustar a liberdade ao corpo dos que se alçaram e venceram por e-la”. E em uma afirmativa otimista, acrescenta Martí: as sobrecasacas são da França, porém o pensamento começa a ser da América. Os jovens da América arregaçam as mangas, colocam as mãos na massa e as fazem crescer com o fermento de seu suor. En-

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tendem que muito se imita, e que a salvação está em criar. “Criar é a palavra de ordem desta geração”. “Ler para aplicar, porém não para copiar”.

Onde está pois o erro? O erro cometido no próprio momento em que alcançamos nossa independência política? Em nosso modo de pensar, na filosofia que adotamos sem criar nossa própria filosofia refletindo sobre a nossa realidade, sem culpá-la por ser, precisamente, real. A realidade é o que é e, há de ser transformada, terá que ser a partir de seu pleno conhecimento e não a partir de idéias que lhe sejam estranhas. “A incapa-cidade não está no país nascente – diz Martí – que pede reformas que se acomodem e sejam úteis, mas nos que querem reger povos originais, de composição singular e vio-lentar com leis herdadas de quatro séculos de prática livre nos Estados Unidos”, de de-zenove séculos de monarquia francesa ou de outras muitas e longas experiências alheias à nossa própria experiência. “O governo há de nascer do país. O espírito do governo há de advir da constituição própria do país. O governo não é mais que o equilíbrio dos e-lementos naturais do país”.

Para tornar isto possível, acrescenta Martí, teremos que ensinar os homens da América a enfrentarem sua realidade. Conhecê-la para potencializá-la. A Universidade européia, disse, há de deixar seu lugar para a “Universidade americana”. Toda a história da América, dos incas até nossos dias, deve ser ensinada minuciosamente ainda que não se ensine em detalhe a da Grécia. “Nossa Grécia é preferível à Grécia que não é nossa”. “Os políticos nacionais hão de substituir os políticos exóticos. Enxerte-se em nossa re-pública o mundo; porém o tronco há de ser nossa República”. Os pedantes, os que vêem com desprezo nossa história, nosso modo de pensar e de agir, devem calar, “porque não há pátria em que o homem possa ter mais orgulho que em nossas dolorosas Repúblicas americanas.21

21 Martí, José, “Nuestra América”, en Antología de Precursores del Pensamiento Latino Americano Contemporâneo, de L. Zea, Sep-setentas, México, 1971.

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Conclusões

A filosofia latino-americana de nossos dias segue a linha que foram marcadas pelos seus antecessores. Insiste nesse conhecimento da própria realidade, sem esquecer que a mesma faz parte da realidade, mais ampla, planetária. Buscando em si mesmos, os representantes atuais desta filosofia se encontraram com muitos outros povos e homens em situação semelhante à nossa. Nossos problemas parecem ser problemas de outros homens e povos. O problema central continua sendo o da consciência da dependência e da necessidade de transcendê-la, de lhe pôr um fim. Armada com outras técnicas, com outros métodos, recoloca os problemas que nossos pensadores vieram colocando. A reflexão continua enfrentando problemas muito semelhantes e tratando de lhes dar soluções mais ampla. Um filosofar, como se pôde apreciar, que não fica na abstração e trata, pelo contrário, de originar ação. As gerações que antecederam à que agora se releva, usarão da mesma forma a pena e a espada. Pensarão, porém também agiram. Foram filó-sofos, porém também educadores e guerreiros. A filosofia latino-americana dos nossos dias se sabe continuadora dos filósofos que a antecederam, da mesma forma no pensamento e na ação. Por isso, e isto é sintomático, Fidel Castro, ao se perguntar acerca dos culpados intelectuais da primeira intenção revolucionaria no Quartel Moncada, respondeu: “a culpa é de Martí”, Martí e seus iguais na América Latina se prolongam na revolução cubana. Assim reconhece seus lide-res. Isto é, nossa reflexão e nossa ação, na medida em que são autênticas se encontram estreita-mente ligadas a esse passado. Um passado que já não pode ser negado, nem ignorado.

Sobre este passado vêem escavando os historiadores das idéias de nossa América. Mos-trando a indiscutível originalidade de nosso filosofar, expressa na própria adoção de filosofias e sistemas que deviam ser adaptados à realidade que as instrumentalizava. Porém, também, como na adoção de certas idéias podem também se adotar os interesses de seus criadores, dando assim lugar a novas formas de dependência, pela qual toda adoção deverá ser feita, quando se faça, com sumo cuidado para que sua argumentação não sirva de conduto à aceitação de novas for-mas de dependência. Daí, também, uma profunda preocupação da filosofia latino-americano de nossos dias, expressa com a designação de filosofia da libertação. Isto é, filosofia preocupada em mostrar os recursos e as novas possibilidades desta libertação, da mesma forma que a anula-ção de toda expressão de dependência, mostrando ao mesmo tempo as tramas ocultas da domi-nação em que qualquer sistema, ainda que fale de liberdade, pode-se converter se não for usado com as metas próprias dos homens e povos desta nossa América.

Conhecer, e inclusive assimilar, qualquer nova expressão da filosofia de outros povos e homens, porém sempre em função das necessidades de nossos povos e homens. Não estar sim-plesmente “na moda”, mas na adoção de métodos e doutrinas que possam ser auxiliares de nos-so próprio refletir filosófico, atendendo aos nosso problemas, buscando soluções para os mes-mos. Não estar na moda, senão na expectativa de refletir sobre outros homens e povos, uma vez que este filosofar possa ter algo em comum com o nosso, filosofar de um grupo de homens e de um povo concreto. Buscando, não a universalidade pela via da imitação, mas a universalidade desde que nossos problemas e soluções possam ser os problemas e soluções de outros homens e povos. E deste ponto de vista, contribuir com a filosofia, pura e simplesmente, nossa própria experiência. A experiência de homens, como todos os homens, com uma situação e história concretas.

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ÍNDICE

Capítulo 1 - Existe filosofia latino-americana?

1.1. A Pergunta Sobre a Existência de uma Filosofia Latino-Americana é Filosófica?.................................................................................................

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1.2. Reflexão Inautêntica e Assistemática?..................................................... 3 1.3. Sobre a Suposta Falta de Originalidade.................................................... 5 1.4. Sobre a Autenticidade Filosófica.............................................................. 8

Capítulo 2 - A filosofia latino-americana e sua problemática

2.1. Consciência da Dependência.................................................................... 12 2.2. Emancipação Mental................................................................................ 15 2.3. Emancipação e Nova Expressão de Dependência.................................... 18 2.4. A Realidade como Ponto de Partida......................................................... 21 2.5. Salvação das Circunstâncias..................................................................... 22

Conclusão