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_________________________________________Letras Essentia, Sobral, vol. 14, n° 2, p. 161-187, dez. 2012/maio 2013 PROGRAMA DE INSTALAÇÃO DA PADARIA ESPIRITUAL: IRREVERÊNCIA E HUMOR 1 Iris Dayane Lopes Rodrigues 2 Maria Elisalene Alves dos Santos 3 RESUMO O presente artigo trata do Programa de Instalação da Padaria Espiritual, agremiação literária fundada em Fortaleza no ano de 1892. A pesquisa tem por objetivo identificar aspectos de irreve- rência e de humor presentes no referido Programa. Inicialmente, é realizada uma discussão geral sobre a Padaria Espiritual. Em seguida, parte-se para a análise propriamente dita do Programa de Instalação. A realização deste estudo dá-se mediante pesquisa bibliográfica. Para tanto, recorre-se a diversos autores, dentre os quais se podem citar: Azevedo (1996; 2011), Mota (1994) e a coleção fac-similar d’O Pão (1982). O desenvolvimento deste estudo viabiliza a conclusão de que a intenção dos “padeirosera romper com velhos paradigmas para pos- sibilitar a inovação das artes cearenses, bem como criticar alguns posi- cionamentos sociais, especialmente, em relação à educação. Palavras-chave: Literatura Cearense. Padaria Espiritual. Irreverência. Humor. 1 INTRODUÇÃO A Padaria Espiritual foi uma agremiação artística que surgiu na cidade de Fortaleza, capital cearense, no ano de 1892. Tinha como 1 Artigo apresentado como Trabalho de Conclusão do Curso de Letras (TCC), da Universidade Estadual Vale do Acaraú-UVA, no dia 07/12/2012. 2 Graduada em Letras (Língua Portuguesa e suas respectivas Literaturas) pela Uni- versidade Estadual Vale do Acaraú (UVA). 3 Professora Orientadora. Mestra em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e professora de Literatura Portuguesa do curso de Letras da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA).

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PROGRAMA DE INSTALAÇÃO DA PADARIA ESPIRITUAL: IRREVERÊNCIA E HUMOR1

Iris Dayane Lopes Rodrigues2

Maria Elisalene Alves dos Santos3

RESUMO – O presente artigo trata do Programa de Instalação da Padaria Espiritual, agremiação literária fundada em Fortaleza no ano de 1892. A pesquisa tem por objetivo identificar aspectos de irreve-rência e de humor presentes no referido Programa. Inicialmente, é realizada uma discussão geral sobre a Padaria Espiritual. Em seguida, parte-se para a análise propriamente dita do Programa de Instalação. A realização deste estudo dá-se mediante pesquisa bibliográfica. Para tanto, recorre-se a diversos autores, dentre os quais se podem citar: Azevedo (1996; 2011), Mota (1994) e a coleção fac-similar d’O Pão (1982). O desenvolvimento deste estudo viabiliza a conclusão de que a intenção dos “padeiros” era romper com velhos paradigmas para pos-sibilitar a inovação das artes cearenses, bem como criticar alguns posi-cionamentos sociais, especialmente, em relação à educação. Palavras-chave: Literatura Cearense. Padaria Espiritual. Irreverência. Humor. 1 INTRODUÇÃO A Padaria Espiritual foi uma agremiação artística que surgiu na cidade de Fortaleza, capital cearense, no ano de 1892. Tinha como

1 Artigo apresentado como Trabalho de Conclusão do Curso de Letras (TCC), da

Universidade Estadual Vale do Acaraú-UVA, no dia 07/12/2012. 2 Graduada em Letras (Língua Portuguesa e suas respectivas Literaturas) pela Uni-

versidade Estadual Vale do Acaraú (UVA). 3 Professora Orientadora. Mestra em Literatura Brasileira pela Universidade Federal

do Ceará (UFC) e professora de Literatura Portuguesa do curso de Letras da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA).

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principal veículo de publicação o jornal O Pão, que semanalmente trazia a público as produções dos padeiros. A associação possuiu duas fases: a primeira, de 1892 a 1894, foi um período marcado pelo caráter irreverente e humorístico do grêmio; e a segunda fase se deu entre 1894 e 1896; constituiu a época mais produtiva dos padeiros, com a publicação de vários livros e textos avulsos.

Este artigo, de natureza bibliográfica, apresenta uma análise do Programa de Instalação da Padaria Espiritual. Objetiva identificar e discutir os aspectos de irreverência e humor presentes no referido Programa. Dentre os autores que subsidiaram a pesquisa podem-se citar Azevedo (1996; 2011), Mota (1994) e Nava (1972). Espera-se que esta pesquisa possa contribuir com o pouco acervo bibliográfico de que se dispõe referente à Padaria Espiritual, assunto de fundamental importância para a compreensão da produção literária e outras manifestações artísticas cearenses, nos últimos anos do século XIX. 2 A PADARIA ESPIRITUAL: CONCEPÇÃO GERAL Durante os últimos anos do final do século XIX, a situação das letras cearenses achava-se fragmentada entre o Realismo, o Naturalis-mo, o Parnasianismo e o Simbolismo. Este primando demasiadamente pelo subjetivismo, enquanto aqueles bastante marcados pelos traços do objetivismo. A maior parte das produções literárias da época surgia em meio a grupos, que se constituíam de rapazes de variadas profissões, alguns, homens públicos; outros, anônimos, os quais se juntavam para declamar poesias de sua autoria e também de outros autores. Esses grupos eram fortemente marcados pelo tom retórico acadêmico em suas sessões.

Nesse contexto, surgiu a Padaria Espiritual, um grêmio literá-rio fundado na cidade de Fortaleza, no ano de 1892, por um grupo de vinte “rapazes de letras e artes”. Por essa expressão, logo se percebe que em seu desenvolvimento não havia apenas escritores. E, de fato,

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não era formado apenas por rapazes de letras, mas também músicos e, ainda, um desenhista. Esse movimento teve como principal objetivo acabar com o marasmo literário em que se encontrava o Ceará naquela época. Os fundadores pretenderam uma manifestação artística diferenciada, ori-ginal, que viesse a quebrar de vez com a mesmice encontrada nos grêmios literários a eles contemporâneos. Isso se pode perceber atra-vés das palavras de Antonio Sales, idealizador da Padaria Espiritual:

Ulysses e Sabino insistiram que formassemos um grêmio literário para despertar o gosto das letras, então em estado de lethargia, mas eu me oppunha. Uma sociedade literária, como se havia fundado tantas, com um caráter formal de academia-mirim, burgueza, rhetorica e quase burocratica, era cousa para qual eu sentia uma negação absoluta. – Só si fosse uma cousa nova, original e mesmo um tanto escandalosa, que sacudisse o nosso meio e tivesse uma repercussão lá fora. – Pois seja assim, diziam os outros. (SALES 1938, p. 9 apud AZEVEDO 1996, p.54).

Nota-se, pelas palavras de Antonio Sales, principal idealizador

e responsável pela originalidade da agremiação, o desejo por uma soci-edade literária que adotasse uma nova postura, diante das até então fundadas. Uma sociedade que ultrapassasse a visão local e ganhasse vulto em outras cidades, estados e até países estrangeiros, visto que alguns dos padeiros buscaram corresponder-se com os poetas portu-gueses Guerra Junqueiro e Antônio Nobre, muito embora estes não tenham se preocupado em responder as correspondências dos poetas cearenses.

A Padaria foi fundada e teve suas primeiras sessões no Café Java, localizado na Praça do Ferreira, epicentro da capital cearense. Era lá que se “sovava a massa” e saíam as primeiras “fornadas” do “pão de espírito”.

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A agremiação foi originalíssima, conforme desejou Antonio Sales, e demonstrou isso desde o seu Programa de Instalação que pre-via 48 artigos permeados de um humor leve e inteligente. Primava pela preservação da cultura brasileira, assumia determinadas responsabili-dades sociais e se comprometia com a defesa da Arte, do Bom Gosto, do Progresso e da Dignidade Humana, grafados, assim, em iniciais maiúsculas, no artigo XLVII do Programa de Instalação da Padaria Espiritual.

2.1 Irreverência e humor no programa de instalação Ao voltar a atenção desta pesquisa para o Programa de Instala-ção da Padaria Espiritual, foram percebidos dois aspectos que percor-rem todo o Programa: a irreverência e o humor. A partir desses aspec-tos, é possível vislumbrar o caráter moderno dessa agremiação, uma vez que foi criada com o objetivo de ser uma coisa nova, original e que, de algum modo, revolvesse a então situação das letras no Ceará.

O Programa de Instalação da Padaria Espiritual foi redigido por Antonio Sales e lido pela primeira vez na sessão inaugural da a-gremiação, no dia 30 de maio de 1892, no Café Java, na Praça do Fer-reira, em Fortaleza. Sua primeira publicação se deu no mesmo ano, por meio da Tipografia d’O Operário, periódico da capital cearense.

O dito Programa de Instalação da Padaria Espiritual apresenta aspectos irreverentes, que se voltam contra algumas práticas comuns em sua época, especialmente, no campo das letras. Essas característi-cas foram ilustradas pelas disposições de vários artigos, através de um humor e uma crítica social tão bem dosados e misturados, que permi-tem ao leitor uma visualização da situação não apenas das letras, mas também da sociedade cearense e, por que não dizer, brasileira, no final do século XIX.

É a partir desse programa que se pode contemplar a essência da Padaria, o que de fato propunham seus fundadores e sua postura diante da necessidade de mudança que as letras e a sociedade brasilei-ras sofriam na época. Para tanto, apresenta-se a necessidade da leitura e da análise do referido programa, uma vez que é mister a compreen-

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são do que foi esse movimento para as letras cearenses. A seguir, a lista dos 48 artigos do programa de Instalação da Padaria Espiritual, da forma como foi publicado pela Tipografia d’O Operário, em 1892.

I – Fica organizada, nesta cidade de Fortaleza, capital da "Terra da Luz", antigo Siará Grande, uma sociedade de rapazes de Lettras e Artes, denominada – Padaria Espiritual, cujo fim é fornecer pão de espírito aos sócios em particular, e aos povos, em geral. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.59).

Nesse primeiro artigo, fica claro que a associação tem por par-

ticipantes não apenas escritores como Antônio Sales, Lívio Barreto, Lopes Filho, Adolfo Caminha e outros mais. A agremiação dispunha também de rapazes de outras artes que não das letras, como Luís Sá, que era desenhista e pintor, bem como dois músicos, os irmãos Carlos Vitor e Henrique Jorge. Outra informação importante que esse artigo apresenta é a finalidade da agremiação, uma vez que se compromete a “fornecer pão de espírito” às pessoas, não apenas “aos sócios em par-ticular”, mas “aos povos em geral”. Uma declaração que diz muito sobre o movimento, pois demonstra o quanto a arte era valorizada por ele, sendo considerado alimento espiritual aquilo que sustenta o espíri-to.

II – A Padaria Espiritual se comporá de um Padeiro-mór (presidente), de dois Forneiros (secretários), de um Gaveta (thesoureiro), de um Guarda-livros na accepção intrinseca da palavra (bibliothecario), de um Investigador das Cousas e das Gentes, que se chamará – Olho da Providencia, e demais Amassadores (sócios). Todos os sócios terão a denominação geral de Padeiros. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.59)

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O segundo artigo trata da organização do grêmio, o que tam-bém justifica o nome Padaria Espiritual, pois alguns de seus membros serão chamados de “padeiros”. Muito embora fosse uma agremiação independente, pretendeu-se uma forma de hierarquia em que houves-se: um presidente (Padeiro-Mor), dois secretários (Forneiros), um te-soureiro (Gaveta), um bibliotecário (Guarda-livros) e um “investigador das cousas e das gentes” (Olho da Providência).

O caráter irreverente desse artigo é estabelecido pela denominação dos membros da Padaria, e a que eles se referem. É completamente natural que numa associação se apresente um núcleo hierárquico como esse, mas os nomes que utilizaram para defini-los são de um humor leve e inofensivo. Padeiro-Mor e Forneiro fazem alusão direta ao estabelecimento em que se inspiraram, uma padaria. Gaveta e Guarda-livros, nomes extrovertidos para “tesoureiro” e ”bibliotecário”, remetem diretamente à função destes. “Olho da Providência” satiriza a função do investigador responsável por dar conta dos fatos importantes e da vida das pessoas, reconhecendo que este estaria presente em todos os lugares, sempre percebendo tudo que fosse conveniente ou não se publicar em um jornal.

III – Fica limitado em vinte o número de sócios, inclusive a Directoria, podendo-se, porém, admitir sócios honorarios que se denominarão – Padeiros-livres. IV – Depois da installação da Padaria, só será admittido quem exhibir uma peça litteraria ou qualquer outro trabalho artístico que for julgado decente pela maioria. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.59).

Segundo Azevedo (2011), de fato, foi 20 o número de funda-

dores da agremiação em 1892. É válido ainda ressaltar o adjetivo utili-zado para caracterizar a obra literária de quem tencionasse ser digno de participar da associação dali em diante, pois a obra deveria ser jul-gada “decente”, não por um, mas pela maioria dos membros do gru-po. Para o referido autor, o humor se concentra nesse vocábulo.

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V – Haverá um livro especial para registrar-se o nome commum e o nome de guerra da cada Padeiro, sua naturalidade, estado, filiação e profissão a fim de poupar-se à posteridade o trabalho dessas indagações. VI – Todos os Padeiros terão um nome de guerra único, pelo qual serão tratados e do qual poderão usar no exercício de suas árduas e humanitarias funcções. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p. 60).

Até onde se sabe não se tem notícia acerca do livro menciona-

do no artigo V. Azevedo (2011) considera a possibilidade de ter sido apenas mais uma brincadeira do grupo e que, de fato, não tenha sido escrito. Com relação ao artigo VI, são inegáveis o humor e a ironia nele presentes. Os “nomes de guerra” dos padeiros são pseudônimos que adotaram durante suas “árduas e humanitárias funções”, ou seja, o exercício literário e artístico desenvolvido no grêmio.

Os pseudônimos dos padeiros constituem um dos melhores exemplos do caráter vanguardista moderno que a Padaria possuía. Traziam em si uma enorme carga de significação, que remetia, na mai-oria das vezes, a elementos nacionais e regionais, havendo também alguns neologismos e certas palavras inusitadas.

Para maior compreensão, segue-se a lista dos 20 fundadores da Padaria Espiritual e seus respectivos nomes de guerra: Jovino Guedes (Venceslau Tupiniquim), Antônio Sales (Moacir Jurema), Tibúrcio de Freitas (Lúcio Jaguar), Ulisses Bezerra (Frivolino Catavento), Carlos Vitor (Alcino Bandolim), José de Moura Cavalcante (Silvino Batalha), Raimundo Teófilo de Moura (José Marbri), Álvaro Martins (Policarpo Estouro), Lopes Filho (Anatólio Gerval), Temístocles Machado (Túlio Guanabara), Sabino Batista (Sátiro Alegrete), José Maria Brígido (Mo-gar Jandira), Henrique Jorge (Sarasate Mirim), Lívio Barreto (Lucas Bizarro), Luís Sá (Corrégio del Sarto), Joaquim Vitoriano (Paulo Kan-dalaskaia), Gastão de Castro (Inácio Mogubeira), Adolfo Caminha (Félix Guanabarino), José dos Santos (Miguel Lince) e João Paiva (Marco Agrata).

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Esses foram os “rapazes de letras e artes” que instituíram a so-ciedade literária, objeto de estudo deste trabalho. Como foi escrito no artigo V, os integrantes se utilizaram desses nomes durante sua per-manência na Padaria. Tais pseudônimos representavam muito mais do que simplesmente uma tentativa de provocar riso ou admiração por sua audácia. Na verdade, refletiam fortemente seu objetivo de criticar o academicismo tão presente nas várias associações literárias a eles contemporâneas.

Feitas essas considerações acerca da alcunha dos padeiros, é importante que se retome a análise dos aspectos irreverentes presentes no restante dos artigos do Programa de Instalação da Padaria Espiritu-al. O seguinte artigo trata do ícone da Padaria, símbolo da agremiação.

VII – O distintivo da Padaria Espiritual será uma haste de trigo cruzada de uma penna, distintivo que será gravado na respectiva bandeira, que terá as cores nacionaes. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.60).

Muito embora a bandeira da Padaria tenha, assim, sido plane-

jada, não lhe puseram as cores da bandeira nacional, na verdade a fize-ram vermelha. Porém, a “haste de trigo cruzada com uma pena” não poderiam lhe negar de forma alguma, uma vez que essa junção era o verdadeiro ícone, o verdadeiro símbolo dos que queriam fabricar “pão de espírito” a partir de um bico de pena.

A cor da bandeira da Padaria Espiritual é um elemento que merece ser ressaltado, uma vez que a cor vermelha associada ao objeto da bandeira (estandarte) é particularmente ligada à esquerda revolucio-nária, que ataca o que é vigente a fim de estabelecer regimes mais de-mocráticos e que visem o bem comum. O que reforça essa ideia seria a preocupação social demonstrada pela Padaria, princi-palmente no que se refere à educação.

VIII – As fornadas (sessões) se realizarão diariamente, à noite, à excepção das 5as-feiras, e aos domingos, ao meio-dia.

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IX – Durante as fornadas, os Padeiros farão a leitura de producções originaies e ineditas, de quaisquer peças litterárias que encontrarem na imprensa nacional ou estrangeira e fallarão sobre as obras que lerem. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.60).

O artigo VIII faz referência à realização das sessões do grêmio.

Note-se que a pretensão era de que acontecessem diariamente, no já mencionado Café Java, de Mané Coco. Já o artigo IX vem considerar a necessidade de uma leitura ampla e crítica por parte dos padeiros. Se-gundo Azevedo (2011, p.21), essa característica pode estar ligada, de forma íntima, à participação do precursor, Antônio Sales, em outra agremiação literária chamada Academia Francesa, que existiu na cidade de Fortaleza durante, aproximadamente, o período de 1873 a 1875. Ainda de acordo com Azevedo (2011, p.21), a referida agremiação “parece ter inaugurado o costume da literatura crítica no Ceará”.

X – Far-se-ão dissertações biographicas acerca de sábios, poetas, artistas e litteratos, a começar pelos nacionaes, para o que se organizará uma lista, na qual serão designados, com a precisa antecedência, o dissertador e a victima. Também se farão dissertações sobre datas celebres da historia nacional ou estrangeira. XI – Essas dissertações serão feitas em palestras, sendo prohibido o tom oratorio, sob pena de vaia. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.60-61).

Esses dois artigos reforçam indubitavelmente a aversão da Pa-

daria ao academicismo rebuscado e ao “tom oratório” das conferên-cias dos grêmios literários que eram comuns em sua época. Além dis-so, há uma presença humorística muito forte manifestada, principal-mente, no modo de se referir aos autores que seriam estudados por biografias desenvolvidas pelos padeiros. Os autores foram chamados

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de “vítimas”, bem como no decreto da “pena de vaia” a quem deso-bedecesse à norma de proibição do “tom oratório”.

XII – Haverá um livro em que se registrará o resultado das fornadas com o maior laconismo possível, assignando todos os Padeiros presentes. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.61).

O livro de atas que é mencionado foi e é um instrumento de

substancial importância para os estudos acerca da Padaria Espiritual. A partir de uma série de escritos nele contidos, é possível entender, com mais clareza, como se davam as sessões do grêmio, o que e como re-gistravam ou não o ocorrido nas reuniões.

Mota (1994, p.50, grifo do autor), que teve em suas mãos o li-vro de atas da Padaria, faz o seguinte comentário acerca do que viu escrito:

A linguagem das atas da Padaria destoava do tom das sociedades congêneres. Não se realejava: “Franqueada a palavra aos que dela se quisessem utilizar”, mas: “Intimados os Padeiros a mostrarem suas habilidades” – “Então ordenou o Padeiro-Mor que cada um fizesse o seu pouco ou muito e desse conta do recado” – “A um gesto de Moacir Jurema, cada qual foi inchando nas apragatas e lendo as produções seguintes”.

É esse tom irreverente, despreocupado de humor, ironia e pia-

da, que caracteriza a Padaria como um movimento de vanguarda mo-derna. Nela não se pretendia a criação de um centro de erudição, pelo contrário, se voltavam contra isso. Nas próprias palavras de Mota (1994), acima transcritas, fica evidente a sede pela mudança no cenário cultural que se apresentava na época no Ceará e no país.

Para melhor visualização dessa linguagem citada por Mota (1994), é pertinente que se consulte Azevedo (2011, p.23), que traz

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transcritas algumas atas sucintamente redigidas por Antônio Sales. Como por exemplo, a ata de 3 de junho de 1892, que se resume a: “Presentes 12 padeiros, sob a direção do padeiro-mor. A falar franca-mente, não me lembra do que se passou nessa fornada. Fica nisto, portanto.” É digna de nota a irreverência contida nas palavras de An-tônio Sales. Isso mostra que, além de uma agremiação literária, a Pada-ria era um grupo de amigos que, por vezes, não debruçavam muita seriedade aos assuntos tratados por eles. Característica que se eviden-cia nesta outra ata de 17 do mesmo mês e ano: “Compareceram alguns padeiros que esgotaram a hora regimental contando aventuras de a-mor, algumas das quais muito semelhantes as aventuras de Terrail4.”

XIII – As despesas necessárias serão feitas mediante finta passada pelo Gaveta, que apresentará conta do dinheiro recebido e despendido. (O OPERÁRIO 1892 apud AZE-VEDO 1996, p.61).

Mais uma vez o tom satírico aparece nas palavras de Antônio

Sales, quando este usa o termo “finta” para designar as transações realizadas pelo tesoureiro da Padaria. O referido termo é usado co-mumente para fazer referência a determinados movimentos, que tem como finalidade enganar o adversário durante competições em jogos esportivos. Porém, neste artigo foi empregado com o sentido de calo-te, engano, logro. O que, mais uma vez, denota o bom humor inerente à agremiação.

XIV – É prohibido o uso de palavras estranhas à lingua vernácula, sendo, porem permittido o emprego dos neologismos do Dr. Castro Lopes. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.61).

4 O nome mencionado se refere a um escritor francês de folhetins que continham

boa quantidade de ação e aventura (AZEVEDO, 2011).

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A proibição das “palavras estranhas à língua vernácula” deno-ta, de certo modo, um ensaio de nacionalismo, uma vez que querem prevenir contra a utilização de termos não pertencentes à língua por-tuguesa. A única exceção que fazem é aos neologismos criados pelo médico fluminense Dr. Castro Lopes, autor do livro “Neologismos indispensáveis e barbarismos dispensáveis” (1889), obra que sugere uma série de termos para a substituição de certas palavras francesas e inglesas que se incorporaram ao idioma português. Como exemplo, pode-se citar: “preconício” ao invés de reclame, “nasóculos” em vez de pince-nez, “runimol” no lugar de avalanche, “convescote” no lugar de pic-nic, “cardápio” ao invés de menu, entre vários outros.

Para Azevedo (1996), a aceitação dos neologismos do médico não passava de pura pilhéria. Segundo o autor, através desse artigo, pode-se atribuir à Padaria Espiritual uma característica antissimbolista, uma vez que os vocábulos novos agradavam aos simbolistas, e que, mais tarde, alguns desses neologismos passariam a fazer parte do glos-sário “nefelibata”, termo bastante usado para designar adeptos do Simbolismo.

XV – Os Padeiros serão obrigados a comparecer à fornada – de flor à lapella, qualquer que seja a flor, com excepção da de chichá. XVI – Aquele que durante uma semana não disser uma pilheria de espírito, pelo menos, fica obrigado a pagar no sabbado café para todos os collegas. Quem disser uma pilheria superiormente fina, pode ser dispensado da multa da semana seguinte. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.61).

O artigo XV diz respeito à obrigatoriedade do uso de uma flor na lapela dos padeiros, o que denotava certo tom romântico e de ali-nhamento, próprio do homem boêmio do século XIX. A proibição do uso da “flor de chicha” se justifica pelo seu odor desagradável.

Já o artigo XVI reflete, mais uma vez, o caráter humorístico da agremiação. É a partir dessa declaração que se pode perceber o que se

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pretendeu com a fundação da Padaria. Esta agremiação foi um grupo que produzia literatura e se divertia com essa ação, utilizando-se, para tanto, de uma forma totalmente nova de fazer e viver a arte, com o único compromisso de manter esse sentimento peculiar. Portanto, o referido artigo apenas reafirma a forte marca do humor presente na Padaria Espiritual.

XVII – O Padeiro que for pegado em flagrante delicto de plagio, fallado ou escripto, pagará café e charutos para todos os collegas. XVIII – Todos os Padeiros serão obrigados a defender seus collegas da aggressão de qualquer cidadão ignaro e a trabalhar, com todas as forças, pelo bem estar mutuo. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.61).

O artigo XVII se inicia fazendo com que o leitor acredite que

o plágio seria proibido aos padeiros, porém, o desfecho inesperado acerca do castigo à transgressão da regra apenas configura mais uma de suas pilhérias, já tão comentadas nos parágrafos anteriores.

O artigo subsequente prevê a possibilidade de os padeiros se-rem agredidos por algum cidadão ignaro, vocábulo que, nesse contexto, não serve apenas para a indicação de pessoas ignorantes. De acordo com Azevedo (2011, p.25), essa palavra dirigia-se “[...] particularmente àquelas que os ‘padeiros’ chamavam de burgueses e que, na verdade, eram os homens ‘práticos’ para os quais a literatura e a arte não tinham grande importância.” É bem possível que Antônio Sales acreditasse que um tipo como tal seria capaz de atentar a integridade dos padeiros, que tanto valorizavam a arte e que também disseminavam algumas críticas à sociedade de que tais “cidadãos ignaros” eram chefes ou pa-trões.

Houve uma situação em que tais “cidadãos ignaros” chegaram ao ponto de quase cometerem agressões físicas a um dos Padeiros. Arthur Teófilo (Lopo de Mendonça) escreveu uma crônica que ataca-va a elite da sociedade burguesa, a qual veio a público n’O Pão de nú-

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mero 31, de 15 de agosto de 1896. O autor do texto se viu em situação tão hostil que logo tratou de fazer uma viagem à cidade de Manaus.

XIX – É prohibido fazer qualquer referencia à rosa de Malherbe e escrever nas folhas mais ou menos perfumadas dos albuns. XX – Durante as fornadas, é permittido ter o chapéo na cabeça, excepto quando se fallar em Homero, Shakespeare, Dante, Hugo, Goethe, Camões e José de Alencar porque, então, todos se descobrirão. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.61).

A proibição estabelecida no artigo XIX denota a aversão da

Padaria contra as práticas comuns nas letras brasileiras, as quais conti-nham muito de uma poesia clichê, cheias de termos, há muito, usados e abusados nas produções poéticas literárias. A isso se deve a menção do conhecido poema do francês François de Malherbe (1555-1620), obra em que o poeta menciona a brevidade das rosas. Por isso, muito utilizado na poesia, especialmente para tratar de coisas de existência frágil, bela e passageira.

De fato, a Padaria trazia consigo imenso caráter renovador, que buscava a quebra de certos termos e temas, há muito utilizados na literatura. Porém, essa característica não fazia com que os Padeiros se sentissem como precursores da arte e das letras; pelo contrário, respei-tavam as grandes figuras da literatura mundial. Isso se evidencia no artigo XX, em que Sales cita uma série de famosos autores literários (Homero, Shakespeare, Dante, Hugo, Goethe, Camões e José de Alencar). Não se deve negar o tom de pilhéria contido nesse artigo, mas o que realmente é digno de nota é a reverência prestada ao nome desses grandes autores.

XXI – Será julgada indigna de publicidade qualquer peça litteraria em que se fallar de animaes ou plantas extranhas á Fauna e á Flora Brazileira, como – cotovia, olmeiro, rouxinol, carvalho etc.

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(O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.62)

O artigo XXI é um dos mais importantes para a compreensão

do caráter moderno da Padaria Espiritual, uma vez que apresenta o anseio de valorização de elementos nacionais. Assim como propõe Azevedo (1994, p.69), quando diz que este ponto do Programa de Instalação se constitui como um dos mais significativos, pois “[...] condena, em textos literários, o uso de alusões à fauna e à flora de outros países”. Particularidade a que se deve atentar, uma vez que, três décadas depois, tal aspecto constituiria uma das “preocupações nacio-nalistas” que viriam a dar vulto às peculiaridades de autores pré-modernistas como Monteiro Lobato, por exemplo. E mais, o mesmo anseio percebido nesse artigo seria um dos principais que também figuraria na organização e realização da Semana de Arte Moderna, em 1922, na cidade de São Paulo.

XXII – Será dada a alcunha de – medonho – a todo sujeito que atentar publicamente contra o bom senso e o bom gosto artísticos. XXIII – Será preferivel que os poetas da Padaria externem suas ideas em versos. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.62).

A “alcunha de medonho”, citado no artigo XXII, tinha como

alvo aquele que atentasse publicamente “contra o bom senso e o bom gosto artísticos”, ou seja, a quem, sem nenhum talento artístico, resol-vesse se aventurar pelo mundo das belles letres e das outras artes. É váli-do assinalar que o “medonho” difere do “ignaro”, a que se refere o artigo XVIII, pois este apenas repudia a arte, mas não se atreve a pra-ticá-la.

Para Azevedo (2011, p.27), o artigo XXIII não passava de mais uma piada, pois, segundo ele, seria de se estranhar que os poetas do grêmio tivessem obrigatoriamente que se tornar exímios improvisado-

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res, uma vez que para manifestarem seus pensamentos deveriam ela-borar versos.

XXIV – Trabalhar-se-á por organisar uma bibliotheca, empregando-se para isso todos os meios licitos e ilicitos. XXV – Dirigir-se-á um apello a todos os jornaes do mundo, solicitando a remessa dos mesmos à bibliotheca da Padaria. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.62).

A última palavra do artigo XXIV é o que estabelece o tom

humorístico desse trecho. Ele propõe a utilização de meios “ilícitos” para o alcance da meta estabelecida, que seria a biblioteca da Padaria, aara cuja formação se solicitaria uma “remessa” de todos os jornais do mundo. É o que ampara o artigo XXV. O que é bem possível que seja mais uma pilhéria de Antônio Sales, pois por mais que os Padeiros tivessem um respeitável grau de erudição, ainda assim seria um tanto difícil corresponderem-se em todos os idiomas dos países do mundo.

XXVI – São considerados, desde já, inimigos naturaes dos Padeiros – os padres, os alfaiates e a policia. Nenhum Padeiro deve perder ocasião de patentear seu desagrado a essa gente. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.62).

Nesse artigo o que se vê são três características principais. A

primeira é o anticlericalismo, notório com a declaração de inimizade aos padres. Azevedo (2011) postula que tal comportamento pode ser justificado com base no cientificismo que estava em voga durante a segunda metade do século XIX. Outra característica presente é a rejei-ção à extorsão cometida por determinadas camadas e células sociais, as quais estariam aí representadas através da figura do alfaiate. Nava (1972, p. 92, grifo do autor) esclarece acerca do termo: “É evidente que a palavra alfaiate aí está em sentido simbólico, como exemplo da extorsão, do lucro e da exploração que é preciso combater”.

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Além desses, outro ponto que deve ter sua relevância ressalta-da seria a referência à polícia, contra a qual a Padaria também manifes-tou o seu desagrado. Para melhor compreensão, novamente, são váli-das as palavras do mesmo Nava (1972, p. 92), o qual declarou que “[...] polícia é que é polícia mesmo, símbolo odioso de poder num país on-de ouvi de seus poucos estadistas inteligentes, [...] Francisco Campos, a frase estarrecedora de que ‘governar é prender’”. Portanto, o vocá-bulo polícia não é uma representação, é, de fato, o que nomeia. Contu-do, não se deve perder de vista o contexto histórico da segunda meta-de do século XIX, período em que algumas concepções sociais ainda se encontravam em desenvolvimento.

Acerca desse artigo polêmico, desde sua gênese, é interessante que se diga que houve certa repercussão com a polícia local. É o que se percebe, na súmula dos trabalhos do Ano-Bom, transcrita por Mota (1994, p.52):

Esteve também presente o Delegado de Polícia, Major Pedro Sampaio, que – revela acentuado – ainda não faltou a uma cessão da Padaria, assidui-dade que tanto pode ser uma prova de considera-ção por nossa associação, como também um sinal de desconfiança sobre nossos pacíficos e genero-

sos intuitos. É perfeitamente possível concluir que a presença do Delegado

de Polícia se devia ao artigo XXVI, em particular. E os Padeiros, co-mo fica claro no trecho acima transcrito, não se intimidavam com tal presença, e levavam a diante as sessões da agremiação.

XXVII – Será registrado o facto de apparecer algum Padeiro com collarinho de nitidez e alvura contestaveis. XXVIII – Será punido com expulsão immediata e sem apello o Padeiro que recitar ao piano. (O OPERÁRIO 1892 apud AZEVEDO 1996, p.62).

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O primeiro artigo revela, sem dúvida, mais um traço humorís-tico. Porém, traz em si uma informação válida acerca dos Padeiros: o cuidado com a boa aparência. Isso pode auxiliar na compreensão à referência ao ofício de alfaiate no artigo anterior, como sendo um símbolo da extorsão. O costume da elegância impecável, o que denun-ciam as fotos deixadas por eles, certamente lhes deve ter custado caro.

Quanto ao artigo XXVIII, vem tratar mais uma rejeição a de-terminados hábitos relacionados às práticas literárias da época. Segun-do Azevedo (1996, p.70), a ameaça de expulsão do Padeiro que reci-tasse ao piano faz referência a um costume de provável origem român-tica, “uma vez que, ao som da Dalila, era de praxe que se declamassem poemas de Casimiro de Abreu, Castro e outros”. Esse trecho demons-tra insistência do grêmio na modernização das práticas artísticas.

XXIX – Organizar-se-á um kalendario com os nomes de todos os grandes homens mortos. Haverá uma pedra para se escrever o nome do Santo do dia, nome que também será escripto na acta, em seguida à data respectiva. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.62).

Mais uma vez, a Padaria faz referência aos grandes nomes do

passado, pois tencionavam homenagear os “grandes homens mortos”. Há nessa declaração certa semelhança com o artigo XX, porém aqui os reverenciados não se limitam a escritores, mas a qualquer pessoa que tenha feito algo de grandioso durante a história, ou produzido algo nos campos da arte, da ciência, da filosofia etc. São exemplos de ho-menageados os nomes de: Camilo Castelo Branco, Sócrates, Castro Alves, Joana D’Arc, entre outros. No entanto, essa prática só ocorreu no início da agremiação, sendo deixada de lado depois do ímpeto dos primeiros dias.

XXX – A Avenida Caio Prado é considerada a mais útil e civilisadora das instituições que felizmente nos regem e por isso ficará sob o patrocinio da Padaria. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.63).

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Sobre o artigo XXX, Azevedo (2011, p. 29) esclarece que a pa-

lavra “avenida” à qual esse trecho se refere não possui o mesmo senti-do atual, pois está empregada para designar uma alameda de Passeio Público, semelhante a uma praça. Segundo o autor, havia três “aveni-das”: Caio Prado, Carapinima e Mororó. Percebe-se pelo artigo em questão qual delas era a preferida dos Padeiros, possivelmente por sua localização, que se encontrava mais próxima do mar do que as outras duas.

Contudo, o que é digno de nota não é a preferência dos padei-ros pela Avenida Caio Prado, e sim a menção de pontos da cidade no Programa de Instalação e a preocupação com a conservação de alguns deles, como o supracitado, e a demolição de outros, como será visto no artigo XL.

XXXI – Encarregar-se-á um dos Padeiros de escrever uma monographia a respeito do incansável educador Professor Sobreira e suas obras. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.63).

Quanto ao artigo XXXI, se trata de mais uma pilheria, com

mais um autor cearense, assim como o Dr. Castro Lopes. Dessa vez se trata do professor Gonçalves Dias de Sobreira, que nasceu no Crato em 1847 e que teve uma ativa vida de pesquisas a julgar por suas di-versas e plurais publicações: Tratado de Pronúncia Francesa (1873), Geogra-fia Especial do Ceará (1887), Apontamentos para a Carta Topográfica do Ceará (1892) e Simplificação da Gramática Portuguesa. Sendo que ainda se dedi-cou à literatura, à música e a outros campos do saber. Em Mota (1994, p. 56) encontra-se um texto extraído do Retrospecto, onde Sales explica essa “eclética personalidade” do “[...] sacristão, advogado, poeta, fotó-grafo, geógrafo, comediógrafo, filósofo, preceptor, músico [...]” cro-nista e telegrafista. Motivo pelo qual os Padeiros implicavam o enci-clopedismo do professor Sobreira.

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XXXII – A "Padaria" representará ao Governo do Estado contra o actual horario da Bibliotheca Pública e indicará um outro mais consoante às necessidades dos famintos de idéas. XXXIII – Nomear-se-ão comissões para apresentarem relatorios sobre os estabelecimentos de instrucção pública e particular da Capital relatorios que serão publicados. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.63).

Esses dois artigos são uns dos poucos que não contém tom

humorístico ou irônico. Na verdade, eles evidenciam outra caracterís-tica da Padaria Espiritual, que é a preocupação social. Uma vez que no artigo XXXII propõe-se a elaboração de horários mais viáveis para a visitação da Biblioteca Pública. Inclusive foram tomadas medidas para que o referido artigo se efetivasse, pois, segundo as pesquisas de Azevedo (2011, p. 30), aos 8 dias de junho de 1892, a Padaria enviou um ofício ao governador da província, José Freire Fontenele, sugerin-do que a Biblioteca Pública funcionasse das 7 às 10 horas da manhã e das 6 às 9 da noite.

O artigo XXXIII também traz, como principal tema, mais uma questão social, mais especificamente na área da educação, defendendo-a como um direito que deve ser oferecido e fiscalizado. E, de fato, no número 1 d’O Pão há uma pequena nota redigida, intitulada “Esco-las”:

Nosso collega que exerce as funcções de Olho da Providência anda verificando o estado das escolas publicas, das quaes nos occuparemos nestas columnas logo que elle termine suas obsevações. Parece que há actualmente nesta capital mais escolas do que meninos... Veremos o que hai. (O PÃO, 1892, nº1, p.3, grifo do autor).

Esta nota de “ameaça” traduz um pouco do sentimento de in-satisfação social dos Padeiros em relação à educação, que eles, como veremos a frente, defendem como direito obrigatório.

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XXXIV – A Padaria Espiritual obriga-se a organizar, dentro do mais breve prazo possível, um Cancioneiro Popular, genuinamente cearense. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.63).

Esse artigo traduz o caráter ufanista da padaria Espiritual; é

onde demonstra a valorização da cultura local, assim com no artigo XXI, em que o enfoque se deu na fauna e na flora brasileiras. É válido assinalar que os Padeiros não levaram a cabo a organização do Can-cioneiro Cearense. Isso não significa dizer que nada fizeram acerca disso. Na verdade, publicaram 35 trovas no jornal O Pão, mais especi-ficamente nos números: 33, 34 e 36.

XXXV – Logo que estejam montados todos os machinismos, a Padaria publicará um jornal que, naturalmente, se chamará – O Pão. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.63, grifo do autor).

E, de fato, em 10 de julho de 1982, depois de publicar vários

textos n’A República, os Padeiros publicaram, por meio dos maqui-nismos d’O Operário e não os seus próprios, o primeiro número d’O Pão. Este possuiu duas fases: a primeira rendeu seis números, sendo o último datado de 24 de dezembro do mesmo ano; e a segunda fase teve seu início em 1º de janeiro de 1895 e findou em 31 de outubro de 1896, produzindo até o número 36 desse jornal.

O Pão, assim como o Programa de Instalação da Padaria Espi-ritual, trazia em si a essência inovadora e humorística do grêmio. O periódico concentrava em si um misto de crítica e poesia, tudo regado à irreverência e ao bom-humor característicos da associação, merecen-do por isso ser considerado por Sales (1995, p.181-182) como perten-cente à classe dos “jornais humorísticos”.

No primeiro número, fica claro o objetivo do O Pão que é “[...] transmitir ao leitor com a maior exatidão o que sente a Padaria

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Espiritual sobre tudo e sobre todos”. E, para isso, sustenta que não tem a intenção de agradar nem de hostilizar a ninguém, porém, “[...] promete apenas uma cousa: dizer sempre a verdade, doa esta a quem doer”. (O PÃO, 1892, p.1).

XXXV – A Padaria tractará de angariar documentos para um livro contendo as aventuras do celebre e extraordinario Padre Verdeixa.5 XXXVI – Publicar-se-á, no começo de cada ano, um almanck illustrado do Ceará contendo indicações uteis e inuteis, primores litterarios e annuncios de bacalháu. XXXVII – A Padaria terá correspondentes em todas as capitaes dos paizes civilisados, escolhendo-se para isso litteratos de primeira agua. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.63).

O primeiro dos três artigos faz referência ao Padre Verdeixa

(1803-1872), que figurou na redação de uma série de jornais e foi tam-bém deputado provincial e, segundo Azevedo (2011, p.32), estava “sempre metido com escaramuças políticas”. Portanto, a menção ao clérigo constitui-se mais uma piada dos Padeiros.

O artigo XXXVI trata da elaboração de um almanaque. Traz uma marca pilhérica ao falar dos “primores litterarios e annuncios de bacalháu” e ainda acaba por definir a natureza desse tipo de leitura naquela época. O último dos três artigos se refere aos correspondentes que os Padeiros almejavam. De fato existiram “litteratos de primeira agua” que se corresponderam com O Pão. São exemplos: Olavo Bilac, Coelho Neto e Araripe Júnior, no Rio de janeiro; Augusto de Lima e Raimundo Correia, em Minas Gerais; Clóvis Beviláqua, em Pernambu-co, e mais outros.

5 A repetição no número XXXV altera toda a numeração subsequente, e foi

preservada por se tratar da transcrição da publicação do jornal O Operário (1892).

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XXXVIII – As mulheres, como entes frageis que são, merecerão todo o nosso apoio exceptuadas: as fumistas, as freiras e as professoras ignorantes. XXXIX – A Padaria desejaria muito crear aulas noturnas para a infancia desvalida; mas, como não tem tempo para isso, trabalhará por tornar obrigatoria a instrucção publica primaria. XL – A Padaria declara desde já guerra de morte ao bendegó do "Cassino". (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.63-64).

Esses três artigos tratam de assuntos distintos, porém em to-

dos aparece o tom ousado, típico da Padaria Espiritual. O primeiro deles demonstra um certo ar de galanteio para com as mulheres, e além disso, um forte preconceito para com as fumistas que, no século XIX, não eram vistas com bons olhos pela sociedade. Manifesta ainda o repúdio pelas freiras, reforçando a tendência anticlerical percebida já no artigo XXVI, ao tratar os padres como “inimigos naturais dos Pa-deiros”.

O artigo XXXIX tem um objetivo social e não apresenta mar-cas de humor. Na verdade, os padeiros se preocupavam realmente com a situação da educação na cidade, pois isso fica claro nos artigo XXXII e XXXIII, quando se preocupam em publicar relatórios sobre as escolas públicas e particulares de Fortaleza, bem como quando se propõem a solicitar ao Governo do Estado que modifique o horário de atendimento da Biblioteca Pública.

O artigo XL, ao declarar “guerra de morte ao bendegó do Cas-sino”, tem por objetivo apoiar o aformoseamento da cidade de Forta-leza, pois, de acordo com Azevedo (2011, p.35-36), o Cassino se loca-lizava no passeio público e se tratava de uma construção de dimensões grandes e disformes, que fora apelidada pelos padeiros de “monstro de alvenaria”, tamanha sua feiura e localização inconveniente. Por sua forma, foi comparado ao Bendegó, meteorito de aproximadamente 5000 quilos, encontrado na Bahia em 1784.

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XLI – É expressamente prohibido aos Padeiros receberem cartões de troco dos que actualmente se emittem nesta Capital. XLII – No anniversario natalicio dos Padeiros, ser-lhes-á oferecida uma refeição pelos colegas. XLIII – A Padaria declara embirrar solenemente com a secção Para matar o tempo do jornal A Republica, e, assim, se dirigirá à redacção desse jornal, pedindo para acabar com a mesma secção. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.64, grifo do autor).

Os artigos XLI e XLII tratam de assuntos locais e de pequena

relevância; contudo, é válido chamar a atenção para as notas humorís-ticas que neles figuram. No primeiro, quando há a proibição do rece-bimento de cartões de troco por parte dos padeiros, e no terceiro, quando a expressão “embirrar solenemente” é utilizada para denomi-nar a atitude da Padaria em relação à seção Para matar o tempo, do jornal A República. Já no artigo XLII, encontra-se uma promessa de cortesia ao Padeiro aniversariante. Esse artigo possui mais tom de coleguismo do que de humor propriamente dito.

XLIV – Empregar-se-ão todos os meios de compellir Mané Côco a terminar o serviço da "Avenida Ferreira". XLV – O Padeiro que, por infelicidade, tiver um vizinho que apprenda clarinete, pistom ou qualquer outro instrumento irritante, dará parte disto à Padaria, que trabalhará para por termo a semelhante supplicio. XLVI – Pugnar-se-á pelo aformoseamento do Parque da Liberdade, e pela boa conservação da cidade, em geral. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.64)

Segundo Azevedo (2011, p.34), Mané Coco pavimentou um

trecho que ligava o Café Java ao Café Elegante. “Os Padeiros queriam

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que esse tipo de calçamento ligasse os outros cafés, o do Comércio e o Iracema.” Por isso, no artigo XLIV há a menção à conclusão da obra iniciada no logradouro fortalezense que hoje é conhecido como Praça do Ferreira.

Essa mesma preocupação com o embelezamento da cidade é percebida no artigo XLVI, que promete lutar pelo “aformoseamento do Parque da Liberdade e a boa conservação da cidade em geral”. Vê-se nesses artigos a necessidade que a Padaria tinha de expor sua opini-ão acerca dos vários aspectos da cidade, sendo um dos mais citados a infraestrutura da Capital naquele final de século.

O artigo XLV mais uma vez vem demonstrar o tão recorrente efeito de humor que permeia a maioria dos artigos precedentes. Desta vez com a função de criticar a prática da execução de músicas a partir de “instrumentos irritantes”, como clarinete ou pistom, prometendo por fim ao sofrimento daqueles que estejam obrigados a padecer tal “suplício”, que seria ouvir execuções desses instrumentos musicais.

XLVII – Independente das disposições contidas nos artigos precedentes, a Padaria tomará a iniciativa de qualquer questão emergente que entenda com a Arte, com o Bom Gosto, com o Progresso e com a Dignidade Humana. (O OPERÁRIO, 1892 apud AZEVEDO 1996, p.64)

Nesse último artigo, a Padaria se propõe, diante de qualquer si-

tuação que venha a surgir, tomar iniciativas a favor da “Arte”, do “Bom Gosto”, do “Progresso” e da “Dignidade Humana”, assim es-critas com iniciais maiúsculas para denotar a grande importância des-ses aspectos para a recém-nascida agremiação.

Para Azevedo (1996, p.65), “[...] jamais outra associação cultu-ral apresentou um programa de instalação com tanto humor, e sobre-tudo tão diferente de tudo quanto então se fazia e que, já naquele tempo, começava a cansar”. De fato, a Padaria Espiritual teve como principais características o humor e a irreverência. Além disso, perce-be-se também a crítica e a preocupação sociais, a valorização dos ele-

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mentos nacionais e cearenses, demonstrando, já naquela época, a ne-cessidade de mudanças no cenário artístico brasileiro.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Por meio das discussões desenvolvidas ao longo deste artigo, pode-se perceber o caráter de inovação presente no Programa de Ins-talação desta agremiação artística cearense chamada de Padaria Espiri-tual. Essa associação de “rapazes de letras e artes”, que conseguiu reu-nir escritores dos mais variados estilos, dois músicos, um desenhista e pintor e um outro que tinha como único dom sua valentia e seu porte físico. O estudo possibilitou uma visão diferenciada acerca da Padaria Espiritual, pois a análise de seu Programa de Instalação viabilizou a constatação de um discurso marcado pela irreverência e humor. No Programa de Instalação notou-se também a forte presença da ironia, do nacionalismo, através da valorização da cultura local. Especialmen-te, por essas características não terem muito lugar nas letras do final do século XIX. Tudo isso traduz o forte desejo de rompimento com o tom acadêmico e retórico, comum nas agremiações de sua época, o que seria, portanto, um ponto repre-sentativo do caráter transgressor dessa associação.

Portanto, o caráter de irreverência e de humor no Programa de Instalação aponta para a conclusão de que a intenção dos Padeiros era romper com padrões estabelecidos, para possibilitar a inovação das artes cearenses.

THE INSTALATION PROGRAM OF THE SPIRITUAL BAKERY: IRREVERENCE AND HUMOR

ABSTRACT This paper deals with the Instalation Program of the Spiritual Bakery, literary guild founded in Fortaleza at 1892. The research aims to identify aspects of irreverence and humor present in the Program. Initially, it held a general discussion on Spiritual Bakery, then part to the actual examination of the

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Essentia, Sobral, vol. 14, n° 2, p. 161-187, dez. 2012/maio 2013 187

Instalation Program. This study takes place through theoretical and research literature. To this end, we resort to several authors, among which we can mention: Azevedo (1996, 2011), Mota (1994) and the facsimile collection of O Pão (1982). The development of this study enables the conclusion that the intention of the Bakers was breaking old paradigms to enable innovation on Ceará arts, as well as criticize some social positioning, especially in relation to the education. Keywords: Literature of Ceará. Spiritual Bakery. Irreverence. Humor.

REFERÊNCIAS AZEVEDO, Sânzio de. A Padaria Espiritual e o Simbolismo no Ceará. 2.ed. Fortaleza: Edições UFC, 1996. ______. Breve História da Padaria Espiritual. Fortaleza: Edições UFC, 2011. MOTA, Leonardo. A Padaria Espiritual. Fortaleza: Edições UFC, 1994. NAVA, Pedro. Baú de ossos. 2.ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1972. O PÃO da Padaria Espiritual. Fortaleza: Edições UFC, 1982. SALES, Antônio. Novos Retratos e Lembranças. Fortaleza: Casa de José de Alencar: Programa Editorial, 1995.