Leucipo, Demócrito e K refLexão a equivaLência entre Ser e ... · SATS, . . 72...

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Leucipo, Demócrito e Kant Artigos / Articles Trans/Form/Ação, Marília, v. 38, n. 2, p. 71-94, Maio./Ago., 2015 http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31732015000200005 71 LEUCIPO, DEMÓCRITO E KANT: UMA REFLEXÃO SOBRE A EQUIVALÊNCIA ENTRE SER E NÃO-SER Eberth Eleuterio dos Santos 1 RESUMO: De início, apresentaremos a tese de Demócrito e Leucipo, segundo a qual o ser não é mais que o não-ser, tendo como contraponto o pensamento eleata acerca da inexistência necessária do não-ser. Esta discussão nos remete à oposição entre o pleno (cheio) e o vazio que será posteriormente traduzida na oposição entre o ser e o nada (ou o não-ser). Desse modo, a oposição entre o pleno e o vazio é uma oposição que se desloca para o ser e o não-ser. Em seguida, faremos a apreciação do escrito pré-crítico kantiano Ensaio para introduzir em filosofia o conceito de grandeza negativa, no qual distinguimos certo tipo de oposição tomada entre grandezas em geral que, acreditamos, poderia ser interpretado como estando de acordo com o posicionamento de Demócrito e Leucipo sobre o estatuto ontológico do não-ser como princípio equivalente ao ser, e não como sua contradição em sentido puramente lógico. PALAVRAS-CHAVE: Atomismo antigo. Eleatismo. Ontologia. INTRODUÇÃO Propor uma interpretação filosófica sobre uma forma de pensamento absolutamente original, tomando como chave decodificadora outra reflexão igualmente única, parece sempre redundar, no melhor dos casos, na distorção de uma delas ou, no pior, na má compreensão de ambas, haja vista que essa estratégia interpretativa parece desconsiderar certo tipo de incomensurabilidade que habita em qualquer concepção filosófica. A isso se acrescente ainda o fato de essas formas de pensamentos estarem separadas por um largo período de tempo, uma delas tendo seu início no interior do conjunto de reflexões que se convencionou denominar pensamento pré-socrático e datando do século V ao VI a.C., e a outra florescida no auge do movimento iluminista, em meados do século XVIII, podendo assim, portanto, serem consideradas produções 1 Professor Adjunto do Curso de Filosofia da Universidade Federal de Campina Grande. ebertsam@ yahoo.com.br

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Leucipo Demoacutecrito e Kant uma refLexatildeo sobre a equivaLecircncia entre Ser e natildeo-Ser

Eberth Eleuterio dos Santos1

RESUMO De iniacutecio apresentaremos a tese de Demoacutecrito e Leucipo segundo a qual o ser natildeo eacute mais que o natildeo-ser tendo como contraponto o pensamento eleata acerca da inexistecircncia necessaacuteria do natildeo-ser Esta discussatildeo nos remete agrave oposiccedilatildeo entre o pleno (cheio) e o vazio que seraacute posteriormente traduzida na oposiccedilatildeo entre o ser e o nada (ou o natildeo-ser) Desse modo a oposiccedilatildeo entre o pleno e o vazio eacute uma oposiccedilatildeo que se desloca para o ser e o natildeo-ser Em seguida faremos a apreciaccedilatildeo do escrito preacute-criacutetico kantiano Ensaio para introduzir em filosofia o conceito de grandeza negativa no qual distinguimos certo tipo de oposiccedilatildeo tomada entre grandezas em geral que acreditamos poderia ser interpretado como estando de acordo com o posicionamento de Demoacutecrito e Leucipo sobre o estatuto ontoloacutegico do natildeo-ser como princiacutepio equivalente ao ser e natildeo como sua contradiccedilatildeo em sentido puramente loacutegico

PALAVRAS-CHAVE Atomismo antigo Eleatismo Ontologia

introDuccedilatildeo

Propor uma interpretaccedilatildeo filosoacutefica sobre uma forma de pensamento absolutamente original tomando como chave decodificadora outra reflexatildeo igualmente uacutenica parece sempre redundar no melhor dos casos na distorccedilatildeo de uma delas ou no pior na maacute compreensatildeo de ambas haja vista que essa estrateacutegia interpretativa parece desconsiderar certo tipo de incomensurabilidade que habita em qualquer concepccedilatildeo filosoacutefica A isso se acrescente ainda o fato de essas formas de pensamentos estarem separadas por um largo periacuteodo de tempo uma delas tendo seu iniacutecio no interior do conjunto de reflexotildees que se convencionou denominar pensamento preacute-socraacutetico e datando do seacuteculo V ao VI aC e a outra florescida no auge do movimento iluminista em meados do seacuteculo XVIII podendo assim portanto serem consideradas produccedilotildees

1 Professor Adjunto do Curso de Filosofia da Universidade Federal de Campina Grande ebertsamyahoocombr

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de culturas e de linguagens muito singulares enfim produtos de eacutepocas2 absolutamente distintas

Assim logo de iniacutecio nossa proposta aparenta ser uma espeacutecie de fantaacutestica subversatildeo do bom senso uma vez que este se mostra contraacuterio a todo tipo de irreversibilidade histoacuterica Ao mesmo tempo este nosso estudo tambeacutem pode se mostrar um tanto insatisfatoacuterio por assumir a forma de um artigo jaacute que o desejo de em poucas paacuteginas tentar reunir dois elos de uma longa cadeia de pensamentos assim tatildeo separados pela histoacuteria impotildee desde o iniacutecio a necessidade de abstraccedilatildeo dos muitos outros elos intermediaacuterios Apesar disso isto eacute de todas essas consideraccedilotildees negativas que apostam contra este esforccedilo talvez natildeo seja de todo vatildeo insistir nele e tentar obter correndo o risco de abusar da analogia precedente uma forma anelar dessa longa cadeia de pensamentos por meio da junccedilatildeo de duas de suas seccedilotildees

Tomando consciecircncia assim dessa situaccedilatildeo um tanto precaacuteria e temeraacuteria em que voluntariamente nos colocamos aqui seria bastante recomendaacutevel nos munirmos da cautela necessaacuteria que faculte nos afastar de antigos prejuiacutezos filosoacuteficos como aqueles que por exemplo asseveram que as filosofias satildeo sistemas estanques isolados entre si autocircnomos inconciliaacuteveis etc Simultaneamente a isso essa mesma prudecircncia talvez permita franquear uma proposta de anaacutelise que encontre um diferente acircngulo interpretativo sobre alguns conceitos e estruturas argumentativas jaacute muito bem assentados mesmo sem pretender alcanccedilar por meio dela quaisquer inovaccedilotildees de ordem metodoloacutegica ou conceitual

Natildeo se trata aqui em suma de tentar ler o passado com os olhos do presente subvertendo a ordem do tempo e colocando na boca dos antigos aquilo que eles jamais pretendiam ou poderiam ter dito Natildeo se trata de tentar fazer a roda do tempo girar ao contraacuterio e inverter a ordem do pensamento (assumindo eacute claro que essa ordem exista uma vez que isso natildeo parece ser assim tatildeo oacutebvio) Trata-se simplesmente de tentar perseguir a possibilidade de um olhar transformado por uma luz um pouco diferente da costumeira qual seja tentar utilizar recursos mais recentes para melhor circunscrever antigas noccedilotildees

2 Sobre a exploraccedilatildeo dessa questatildeo a das especificidades fundamentais das distintas eacutepocas filosoacuteficas indicamos a leitura de Heidegger Die Zeit des Weltbildes (1938) In Gesamtausgabe Bd 5 Holzwege Frankfurt (Main) Klostermann 1977 S 87-88

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Assim alertados e acautelados prossigamos dando iniacutecio a uma raacutepida incursatildeo entre duas posiccedilotildees que senatildeo opostas entre si satildeo pelo menos divergentes quais sejam o monismo ontoloacutegico do eleatismo e o pluralismo atomista de Demoacutecrito e Leucipo para em seguida averiguarmos em que medida eacute possiacutevel projetar sobre essas duas posiccedilotildees as luzes (lumieacuteres) de uma pontual reflexatildeo kantiana sobre a metafiacutesica e sobre a loacutegica em geral E ainda que o resultado dessa tentativa natildeo seja de todo proveitoso tambeacutem natildeo eacute necessaacuterio que seja completamente inuacutetil uma vez que obedecendo ao dito socraacutetico natildeo permanecemos no mesmo estado de ignoracircncia se tomamos consciecircncia dele

1 o atomismo De Leucipo e Demoacutecrito

Partindo de consideraccedilotildees sobre a relatividade das qualidades sensiacuteveis do mundo fenomecircnico mas rumando para muito aleacutem Leucipo e Demoacutecrito afirmam em uniacutessono a equivalecircncia ontoloacutegica e causal do aacutetomo e do vazio como princiacutepios universais e invisiacuteveis ao mesmo tempo formais e materiais para a inteligibilidade da natureza em geral da phyacutesis buscando obter por meio desses princiacutepios uma compreensatildeo da essecircncia do mundo natural Isto eacute mestre e disciacutepulo respectivamente buscam uma compreensatildeo da natureza que natildeo se reduza a uma mera convenccedilatildeo dos homens como nos diz Demoacutecrito ldquo[] conforme a convenccedilatildeo dos homens existem a cor o doce o amargo em verdade contudo soacute existem os aacutetomos e o vazio []rdquo3

Afirmados como princiacutepios materiais do mundo fenomecircnico o aacutetomo e o vazio devem ser tambeacutem apresentados em um niacutevel puramente formal isto eacute como conceitos impostos pela razatildeo ou pelo puro pensamento como quando Leucipo ressalta ldquoNenhuma coisa se engendra ao acaso mas todas (a partir) de razatildeo e por necessidaderdquo4 E como conceitos elementares e necessaacuterios para o engendramento das coisas e do mundo aacutetomo e vazio devem ser intercambiaacuteveis para as tradicionais formulaccedilotildees ser e natildeo-ser respectivamente o que nos conduz para a seguinte passagem de Simpliacutecio ldquoTambeacutem sustentava [Leucipo] que o ser existe tanto quanto o natildeo-ser e que ambos satildeo causadores

3 DEMOacuteCRITO fragmento B125 in BORNHEIM G Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Cultrix 2000 p 112

4 LEUCIPO fragmento B2 (AEacuteCIO I 24 4) In Preacute-Socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 303

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das coisas que vecircm a serrdquo5 E sobre Demoacutecrito Simpliacutecio ainda nos informa ldquoDa mesma forma o companheiro de [Leucipo] Demoacutecrito de Abdera propocircs o pleno e o vazio como princiacutepios originaacuterios o primeiro denominou ser e o segundo natildeo-serrdquo6 Unindo esses relatos aos de outros doxoacutegrafos torna-se expliacutecito o estatuto ontoloacutegico conferido ao aacutetomo e ao vazio nos pensamentos que chegaram ateacute noacutes de Demoacutecrito e Leucipo

No que diz respeito agrave explicitaccedilatildeo da equivalecircncia causal decorrente da equivalecircncia ontoloacutegica e sumariada pela maacutexima o ser natildeo tem mais realidade que o natildeo-ser podemos acrescentar ainda o seguinte testemunho de Aristoacuteteles

Leucipo e seu seguidor Demoacutecrito afirmam como elementos o cheio e o vazio e chamam um de ser e o outro de natildeo-ser mais precisamente chamam o cheio e o soacutelido de ser e o vazio de natildeo-ser e por isso sustentam que o ser natildeo tem mais realidade do que o natildeo-ser pois o cheio natildeo tem mais realidade que o vazio E afirmam esses elementos como a causa material dos seres7

Eacute bastante notoacuterio o grande interesse do Estagirita pelas argumentaccedilotildees de seus predecessores tomando-as quase sempre como concepccedilotildees a serem assimiladas ou refutadas por suas proacuteprias formulaccedilotildees e princiacutepios Assim a polecircmica com os atomistas com os eleatas com os dialeacuteticos (os platocircnicos) e com tantos outros atravessa todo o corpus aristoteacutelico acarretando em uma superabundacircncia de relatos e testemunhos tendo o primeiro livro da Metafiacutesica se concentrado intensamente nessa tarefa Mas tambeacutem na Fiacutesica assim como em outros escritos observamos uma igual riqueza de apontamentos os quais revelam o quatildeo tributaacuterio era Aristoacuteteles de seus antecessores especialmente no que dizia respeito agraves questotildees concernentes agraves concepccedilotildees fiacutesicas e metafiacutesicas que segundo ele deveriam versar acima de tudo sobre os primeiros princiacutepios e causas isto eacute sobre a essecircncia sobre o ser e o sobre o movimento

Na Metafiacutesica essas ponderaccedilotildees sobre os primeiros princiacutepios e causas levam Aristoacuteteles a reconsiderar o legado filosoacutefico recebido dos mais antigos principalmente por meio da afirmaccedilatildeo da centralidade do conceito substacircncia Atraveacutes desse conceito acredita ser capaz de reconfigurar e reconciliar os

5 SIMPLIacuteCIO 284-15 in BARNES J Filoacutesofos preacute-socraacuteticos 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p 286 grifos nossos

6 Ibid 2815 -27 p 292 grifos nossos7 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2005 p 27

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anteriores pontos de vista ontoloacutegicos e causais em seus aspectos formais e materiais ldquoMesmo sendo dito em tantos significados eacute evidente que o primeiro significado do ser eacute a essecircncia que indica a substacircnciardquo8 Na Fiacutesica esse esforccedilo de reconfiguraccedilatildeo e reconciliamento realizado sobre o pensamento noeacutetico e fenomecircnico tambeacutem gravitaraacute em torno do conceito de movimento

Ora eacute necessaacuterio que o princiacutepio seja um ou mais de um e se for um eacute necessaacuterio que seja ou imoacutevel como afirma Parmecircnides e Melisso ou suscetiacutevel de movimento como afirmam os estudiosos da natureza uns afirmando que o primeiro princiacutepio eacute ar outros que eacute aacutegua mas se os princiacutepios forem mais de um eacute necessaacuterio que sejam em nuacutemero limitado ou ilimitado e se forem limitados poreacutem mais de um eacute necessaacuterio que sejam dois ou trecircs quatro ou outro nuacutemero e se forem ilimitados eacute necessaacuterio que sejam ou da maneira como afirma Demoacutecrito ndash um uacutenico gecircnero mas diferenciados em figura ndash ou diferenciados em forma ou ateacute mesmo contraacuterios9

Como podemos perceber nessa passagem Aristoacuteteles coloca de um lado os monistas e imobilistas nomeando os eleatas Parmecircnides e Melisso e no lado oposto os defensores de um princiacutepio suscetiacutevel de movimento Entre estes Demoacutecrito eacute alinhado junto aos que afirmam um nuacutemero infinito de elementos de um uacutenico gecircnero (o aacutetomo) Poreacutem eacute ainda preciso conciliar essa pluralidade infinita de figuras de um uacutenico gecircnero com o movimento mencionado aqui por Aristoacuteteles

O movimento a que Aristoacuteteles se refere na passagem acima possui o sentido especiacutefico de deslocamento e natildeo o de alteraccedilatildeo Sendo o aacutetomo apenas suscetiacutevel de movimento natildeo pode conter o movimento como propriedade intriacutenseca o que significa que o aacutetomo natildeo pode se alterar mudar de aspecto se tornar diferente do que eacute pois do contraacuterio nada restaria de permanente de soacutelido de indivisiacutevel A proacutepria mudanccedila no niacutevel da multiplicidade sensiacutevel (o vir-a-ser) ficaria assim comprometida jaacute que em princiacutepio natildeo pode deixar de ser (alterar-se) aquilo que natildeo eacute em algum niacutevel elementar

Em outras palavras o aacutetomo natildeo pode ser considerado em si mesmo a fonte do movimento pois se assim o fosse tambeacutem ele deveria acomodar em si alteraccedilotildees gerando o paradoxo de ter de ser e natildeo-ser simultaneamente Falta grave ao princiacutepio de identidade e consequentemente ao princiacutepio de

8 Ibid p 287 grifos nossos9 ARISTOacuteTELES Fiacutesica I ndash II Campinas Editora da UNICAMP 2009 p 24 grifos nossos

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contradiccedilatildeo jaacute desvendada pelo eleatismo a partir de uma anaacutelise puramente noeacutetica Assim o aacutetomo eacute tomado como princiacutepio de permanecircncia Em sua definiccedilatildeo encontramos as propriedades de solidez e indestrutibilidade de perenidade e inalterabilidade Nunca tendo sido gerado o aacutetomo eacute definido como sempre idecircntico a si mesmo princiacutepio material indivisiacutevel da natureza

Diferentemente dos aacutetomos os compostos ndash os corpos (soacutemata) e os mundos (koacutesmoi) ndash apresentam a inconstacircncia que lhes eacute proacutepria sendo passiacuteveis de geraccedilatildeo e destruiccedilatildeo Nos compostos o movimento se apresenta portanto como uma propriedade manifesta Possuindo os compostos em sua base formal e material os aacutetomos (inalteraacuteveis natildeo gerados e indestrutiacuteveis) como princiacutepio de permanecircncia entatildeo o princiacutepio do movimento (geraccedilatildeo alteraccedilatildeo corrupccedilatildeo) manifesto nesses compostos deve ser buscado em outra parte isto eacute em outro elemento

E tomando o composto como o ponto de partida para a inteligibilidade da natureza os atomistas se depararam com a necessidade formal de um princiacutepio distinto do proacuteprio aacutetomo o qual permitisse a dita suscetibilidade ao movimento Em suma ao passar do niacutevel fenomecircnico para o noeacutetico os atomistas buscam legitimar a natureza mutante pelos seus princiacutepios formais e materiais Uma vez que o ser (o aacutetomo) tomado em si mesmo natildeo pode servir como princiacutepio de movimento dadas as conclusotildees sobre o plenouno jaacute assentadas desde Parmecircnides e que foram em parte assimiladas pelos atomistas caberia entatildeo atribuir a outro princiacutepio essa funccedilatildeo Como nos transmite Aristoacuteteles

Afirmam que o movimento se daacute graccedilas ao vazio com efeito segundo estes o movimento dos corpos naturais e elementares eacute um movimento local porque o movimento devido ao vazio eacute um transporte como em um lugar quanto aos outros movimentos nenhum pertence pensam eles aos corpos elementares mas somente agravequeles que deles satildeo formados dizem que o crescimento o perecimento e a alteraccedilatildeo provecircm da reuniatildeo e da separaccedilatildeo dos corpos insecaacuteveis10

Assim por meio do vazio os atomistas fornecem uma resposta ao imobilismo eleata O vazio eacute o meio comunicante que possibilita o ldquotransporterdquo Eacute por meio dele que os aacutetomos em nuacutemero infinito se deslocam se associam e se separam ldquoDemoacutecrito tinha a opiniatildeo de que os aacutetomos se movem

10 ARISTOacuteTELES Fiacutesica op cit VIII 9 265b grifos nossos

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eternamente em um espaccedilo vaziordquo11 Sem o vazio os aacutetomos permaneceriam estaacuteticos imoacuteveis e nenhuma geraccedilatildeo ou corrupccedilatildeo nenhum nascimento ou morte seria constataacutevel no acircmbito do composto E se natildeo houvesse nenhum princiacutepio de movimento nenhum vazio tambeacutem o ser (o aacutetomo) natildeo poderia ser dito no plural pois natildeo haveria nada distinto (o natildeo-ser) que permitisse a separaccedilatildeo e portanto o avizinhamento do ser consigo mesmo Tudo seria entatildeo apenas pleno uno e imoacutevel

O vazio se constitui por conseguinte como a soluccedilatildeo do antigo atomismo para o vir-a-ser Todavia com Leucipo e Demoacutecrito esta soluccedilatildeo eacute ainda um tanto insatisfatoacuteria pois eacute somente com Epicuro no final do seacuteculo IV que o peso eacute informado como uma das propriedades presentes no aacutetomo graccedilas ao qual se explicaria sua queda (deslocamento) no vazio Mas essa queda seria homogecircnea e por isso nem criativa nem destrutiva se o aacutetomo natildeo possuiacutesse sutis diferenciaccedilotildees No entanto na medida em que satildeo tambeacutem supostos infinitos em nuacutemero e em figura torna-se factiacutevel justificar a sua queda no vazio como natildeo regular mas com choques e voacutertices (clinamen) acarretando em junccedilotildees e separaccedilotildees atocircmicas Em resumo o aacutetomo apresenta um movimento por deslocamento e natildeo por alteraccedilatildeo natildeo podendo assim ser considerado o princiacutepio do movimento que apenas parcialmente se justifica pela postulaccedilatildeo do vazio como seu princiacutepio

Desse modo aacutetomo e vazio se equivalem como princiacutepios formais e materiais para a existecircncia do composto ainda que se oponham como princiacutepios de permanecircncia e de movimento respectivamente Os compostos se tornam mais densos (e pesados) na medida em que menos vazio neles houver em relaccedilatildeo aos aacutetomos na proporccedilatildeo de suas composiccedilotildees Ao mesmo tempo aacutetomo e vazio permitem compreender o movimento em sentido amplo como a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo do composto Esse movimento deve ser entendido entatildeo como a associaccedilatildeo e a dispersatildeo dos aacutetomos tornada possiacutevel pelo vazio

2 o eLeatismo e a revisatildeo pLatocircnica

Como dissemos o posicionamento dos atomistas em relaccedilatildeo ao movimento surgia como uma resposta agraves conclusotildees do imobilismo eleata Esse imobilismo por sua vez seguia como consequecircncia necessaacuteria do monismo ontoloacutegico ali presente no qual apenas o ser eacute dito com verdade Isto

11 HIPPOLOcircNIO I 13 2 in BORNHEIM op cit p 126

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eacute apenas o ser eacute dito com necessidade enquanto sobre o natildeo-ser nada pode ser dito com verdade Assim o pensamento verdadeiro porque necessaacuterio soacute pode se projetar sobre o ser que por sua vez eacute pleno e uno Atraveacutes do poema de Parmecircnides isto se torna laconicamente expliacutecito ldquoNecessaacuterio eacute o dizer e o pensar que o ente eacute pois eacute ser e nada natildeo eacute []rdquo12 e tambeacutem ldquoo outro que natildeo eacute que tem de natildeo ser esse te indico ser caminho em tudo ignotordquo13 E tendo comparado a doutrina de Parmecircnides aos ensinamentos de Xenoacutefanes e Melisso respectivamente seu mestre e disciacutepulo Aristoacuteteles conclui pelo seguinte ldquoParmecircnides ao contraacuterio [de Xenoacutefanes e Melisso] parece raciocinar com mais perspicaacutecia Por considerar que aleacutem do ser natildeo existe o natildeo-ser necessariamente deve crer que o ser eacute um e nada maisrdquo14

Em Parmecircnides o ser eacute a unidade fundamental de tudo o que pode ser dito com verdade Aqui encontramos o pensamento verdadeiro loacutegico-racional identificado agrave sua unidade pura homogecircnea indivisiacutevel e imoacutevel Em oposiccedilatildeo a isso Parmecircnides detectava o erro a falsidade o desvio da razatildeo que assumia a forma do natildeo-ser A afirmaccedilatildeo do natildeo-ser soacute poderia advir de um desvio do caminho da verdade

Nos versos de seu poema particularmente no fragmento B8 Parmecircnides nos revela o ser segundo essa concepccedilatildeo No primeiro canto O caminho da verdade fica estabelecida a identidade entre o ser e o pensamento em sentido estrito (necessaacuterio) a saber aquele pensamento acompanhado da verdade Isso significa que a realidade de direito estaacute fundada em um uacutenico princiacutepio o ser E aqui o conceito de realidade se confunde imediatamente com o de verdade loacutegica isto eacute aquilo que pode ser dito legitimamente ou sem contradiccedilatildeo E o ser se configura como o princiacutepio unicamente noeacutetico ao mesmo tempo loacutegico ontoloacutegico e epistecircmico sobre uma natureza fundamentalmente imoacutevel e apenas por isso consistente

Realidade verdade e permanecircncia se tornam conceitos congecircneres nessa particular anaacutelise ontoloacutegica da natureza O Ser - ato imediato do pensamento - jamais foi gerado jamais se altera jamais se corrompe jamais entra em conflito consigo mesmo Do contraacuterio perseguiriacuteamos o caminho da opiniatildeo

12ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν []rdquo PARMENIDES fragmento B6 (SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 117 2) In Preacute-Socraacuteticos opcit p 148

13ldquoἡ δ΄ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόνrdquo PARMENIDES Da Natureza Satildeo Paulo Loyola 2002 fragmento B2 (PROCLO Comentaacuterio ao Timeu I 345 18)

14ARISTOacuteTELES Metafiacutesica opcit p 33 grifos nossos

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no qual ser e natildeo-ser seriam reputados o mesmo ou equivalentes Contudo no caminho da verdade o pensamento (loacutegico-racional) natildeo pode admitir em seu seio a negaccedilatildeo do ser (o natildeo-ser) o outro do ser essa radical alteridade como algo que se coloca fora do ser e por isso se separa e se opotildee a ele No caminho da verdade nada pode ser dito ou pensado para aleacutem do ser Afirmar o ser para aleacutem do ser isto eacute o ser-outro ou o natildeo-ser eacute simplesmente natildeo reconhecer essa unicidade fundamental e por isso se colocar no caminho do erro da opiniatildeo falsa do engano sobre a essecircncia da natureza

Decorrecircncia dessa unicidade fundamental eacute o imobilismo da natureza no niacutevel noeacutetico A permanecircncia do ser natildeo significa outra coisa senatildeo sua incorruptibilidade em um niacutevel muito fundamental o do puro pensamento implicando a impossibilidade de uma justificaccedilatildeo loacutegico-racional para o devir da natureza sensiacutevel Eis entatildeo que o ser eacute tomado como princiacutepio uacutenico fiacutesico e metafiacutesico simbolizaacutevel por ldquoPois pensar e ser eacute o mesmordquo15 enquanto o contraacuterio eacute descartado como impossiacutevel ldquoJamais se conseguiraacute provar que o natildeo-ser eacuterdquo16

Naquilo que nos interessa aqui mais imediatamente os resultados das formulaccedilotildees do eleatismo - a afirmaccedilatildeo da permanecircncia do Ser (o Princiacutepio de Identidade) unida agrave exclusatildeo da afirmaccedilatildeo simultacircnea do ser e do natildeo-ser (o Princiacutepio da natildeo-contradiccedilatildeo) - satildeo a negaccedilatildeo do vazio do muacuteltiplo e do movimento Como assevera Melisso ldquoTambeacutem natildeo haacute nada vazio Pois o vazio nada eacute e o que nada eacute natildeo pode ser E natildeo se move Natildeo tem lugar onde mover-se pois eacute pleno Existisse o vazio mover-se-ia para o vazio Mas como natildeo haacute o vazio natildeo tem lugar para onde mover-serdquo17

Desse modo o ser no eleatismo natildeo admite para si a mudanccedila seja em que sentido for que se presuma essa mudanccedila A geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo ou mesmo o deslocamento que estatildeo na base da ideia de mudanccedila no atomismo trariam de volta o natildeo-ser para o interior de uma concepccedilatildeo de realidade da qual fora previamente excluiacutedo por forccedila do pensamento Os dois princiacutepios loacutegicos (identidade e contradiccedilatildeo) perderiam a sua validade e alcance sua legitimidade e credibilidade ldquoE jamais a forccedila da convicccedilatildeo concederaacute que do natildeo-ser possa surgir outra coisa Por isto a deusa da Justiccedila natildeo admite por

15ldquoτὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι rdquo PARMEcircNIDES fragmento B3 in BORHEIM op cit p 55 16ldquoΟὐ γὰρ μήποτε τοῦτο δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα rdquo PARMEcircNIDES fragmento B7 ibid p 5517 MELISSO fragmento 7 (SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 111118) Ibid p 65

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um afrouxamento de suas cadeias que nasccedila ou que pereccedila mas manteacutem-no firmerdquo18 Assim Parmecircnides deixa claro que o natildeo-ser natildeo eacute princiacutepio gerador do que quer que seja Trata-se de uma impossibilidade para o pensamento e portanto para o proacuteprio ser e para a natureza

E Platatildeo eacute tido como um disciacutepulo da henologia eleata Poreacutem tambeacutem eacute verdade que em pelo menos dois de seus Diaacutelogos o Sofista e o Parmecircnides19 fica evidente um desacordo entre ele Parmecircnides No Sofista (236e-237b) Platatildeo revela as dificuldades advindas de uma identificaccedilatildeo imediata loacutegica e ontoloacutegica entre verdade e ser excluindo assim o natildeo-ser de todo raciociacutenio legiacutetimo A consequecircncia dessa identificaccedilatildeo eacute a impossibilidade de se afirmar o falso Afirmar o falso apareceria como manifesta contradiccedilatildeo jaacute que seria afirmar o nada20 Contudo Platatildeo reconhece que essa impossibilidade tambeacutem se mostra como um risco epistemoloacutegico pois disso decorreria a impossibilidade de distinguir entre conhecimento (opiniatildeo verdadeira) e ignoracircncia (opiniatildeo falsa) Ao esclarecer Teeteto sobre esse fato diz o Estrangeiro de Eleia no Sofista

Eacute que realmente jovem feliz nos vemos frente a uma questatildeo extremamente difiacutecil pois mostrar e parecer sem ser dizer algo sem entretanto dizer com verdade satildeo maneiras que trazem grandes dificuldades tanto hoje como ontem e sempre Que modo encontrar na realidade para dizer ou pensar que o falso eacute real sem que jaacute ao proferi-lo nos encontremos enredados na contradiccedilatildeo [] A audaacutecia de uma tal afirmaccedilatildeo eacute supor o natildeo-ser como ser e na realidade nada de falso eacute possiacutevel sem esta condiccedilatildeo Era o que meu jovem jaacute afirmava o grande Parmecircnides tanto em prosa como em verso a noacutes que entatildeo eacuteramos jovens ldquoJamais obrigaraacutes os natildeo-seres a ser Antes afasta teu pensamento desse caminho de investigaccedilatildeo21

18ldquoΟὐδὲ ποτ΄ ἐκ μὴ ἐόντος ἐφήσει πίστιος ἰσχύς γίγνεσθαί τι παρ΄ αὐτόττοῦ εἵνεκεν οὔτε γενέσθαι οὔτ΄ ὄλλυσθαι ἀνῆκε Δίκη χαλάσασα πέδῃσινrdquo PARMEcircNIDES fragmento B8 ibid p 55 grifos nossos

19 Eacute oacutebvio que natildeo precisariacuteamos ficar restritos a apenas esses dois Diaacutelogos Por exemplo no Teeteto poderiacuteamos mencionar o problema da opiniatildeo falsa (187d-18a) PLATAtildeO Teeteto Lisboa Calouste Gulbenkian 2010 p 271-272 No Filebo a controveacutersia sobre o Uno e o Muacuteltiplo (14c-15c 23d) PLATAtildeO Filebo In ______ Diaacutelogos v 8 Universidade Federal do Paraacute 1974 No Timeu interessante notar as semelhanccedilas e dessemelhanccedilas entre o atomismo e a doutrina laacute apresentada principalmente em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo do ser e do devir enquanto imutaacutevel e mutaacutevel respectivamente (27d-28b) poderiacuteamos mencionar ainda a descriccedilatildeo da gecircnese do mundo como um ser vivo e sua forma arredondada numa espeacutecie de reconciliaccedilatildeo com o eleatismo de Parmecircnides (30d-40d) PLATAtildeO Timeu-Criacutetias Coimbra Universidade de Coimbra 2011 p 92-93 99-115

20 Sobre o paradoxo envolvendo a questatildeo de se afirmar o nada cf HEIDEGGER O que eacute metafiacutesica Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 235

21PLATAtildeO Sofista Satildeo Paulo Abril Cultural 1972 p 162

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Eacute notoacuterio que os esclarecimentos prestados ao jovem Teeteto pelo Estrangeiro conduzem a um ldquoparriciacutediordquo22 significando uma espeacutecie de rompimento de Platatildeo com a henologia eleata ortodoxa Todavia tatildeo pouco esse rompimento significa a aceitaccedilatildeo da posiccedilatildeo atomista por Platatildeo23 No diaacutelogo Parmecircnides (137ac-166c) o Outro do Uno (o ser outro) eacute afirmado como uma necessidade no acircmbito da dialeacutetica platocircnica24 sem o qual a Doutrina das Ideias natildeo escaparia agraves dificuldades apontadas (130c-134e) e que satildeo decorrentes de uma ortodoxia henoloacutegica advindas do proacuteprio eleatismo

Contudo o objetivo desta raacutepida explanaccedilatildeo foi o de apenas tornar um pouco mais evidente a oposiccedilatildeo entre o pluralismo ontoloacutegico e material de Demoacutecrito (como se acredita ser tambeacutem o de Leucipo) e o monismo de Parmecircnides Nas seccedilotildees subsequentes defenderemos que essa oposiccedilatildeo fundamental entre o ser e o vazio natildeo implica uma contradiccedilatildeo (loacutegica) como no eleatismo mas sim uma forma de oposiccedilatildeo jaacute percebida por Platatildeo como necessaacuteria (por exemplo no Sofista 256d - 259d) e que poderiacuteamos interpretar como sendo tambeacutem aquela apresentada por Kant e denominada por ele como oposiccedilatildeo real E para natildeo nos afastarmos desse intuito prossigamos nestas ponderaccedilotildees

3 equivaLecircncia entre Ser e natildeo-Ser

Na seccedilatildeo precedente refletimos sobre algumas das consideraccedilotildees mais centrais do eleatismo basicamente aquelas que afirmam o ser como necessariamente um e imoacutevel25 Tambeacutem tivemos a oportunidade de acompanhar como Demoacutecrito ao desenvolver a filosofia de seu mestre Leucipo eacute capaz de

22Ibid p 168 (241a-242b)23Apesar de apresentar pontos de contato com o atomismo de Demoacutecrito e Leucipo e com certos

aspectos do eleatismo ortodoxo a visatildeo cosmogocircnica exposta por Platatildeo no Timeu se distancia de ambos ao assumir a dialeacutetica como pressuposto metodoloacutegico e epistemoloacutegico Por exemplo quando da descriccedilatildeo da dinacircmica dos elementos de um ponto de vista puramente dialeacutetico (56c-61c) ou quando da apresentaccedilatildeo do terceiro princiacutepio que soacute ldquo[] acessiacutevel por meio de um certo raciociacutenio bastardo (logismocirc tini nothocirc) sem recurso aos sentidos a custo crediacutevel (52a-b) PLATAtildeO Timeu-Criacutetias op cit p 136-155

24Cf tambeacutem PLATAtildeO Sofista (253d - 254b) op cit p 184-18525 Aleacutem dessa definiccedilatildeo essencial do ser Parmecircnides especialmente no fragmento B8 fornece

uma seacuterie de outros atributos que poderiacuteamos considerar como derivados ou secundaacuterios como completude (plenitude) inteireza esfericidade indestrutibilidade limite externo compacidade homogeneidade continuidade que de certo modo podem ser reduzidos uns aos outros e referidos agravequeles dois que interpretamos como essenciais

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defender a proposiccedilatildeo ldquoO nada existe tanto quanto o lsquoalguma coisarsquordquo26 Assim na antiga escola atomista o movimento eacute aceito e justificado na medida em que admite o vazio (o natildeo-ser) pelo qual se opera o mecanismo da mudanccedila da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo no acircmbito do composto atraveacutes da junccedilatildeo e da dissoluccedilatildeo de suas partes elementares Tomando igualmente o vazio como princiacutepio os atomistas antigos satildeo capazes de oferecer uma resposta ao problema do movimento e do vir-a-ser problema este colocado pelo menos desde Parmecircnides

Dessa forma divergem as teses baacutesicas do eleatismo e do atomismo De um lado fica estabelecida a necessidade da postulaccedilatildeo do ser uno e pleno de maneira exclusiva e solitaacuteria excluindo por essa via a possibilidade de uma justificaccedilatildeo do vir-a-ser de outro encontramos a postulaccedilatildeo do vazio colocado como oposiccedilatildeo ao ser mas tambeacutem como seu equivalente formal e material servindo como canal comunicante sem o qual o movimento proacuteprio da natureza natildeo seria concebiacutevel ou racionalizaacutevel

Essa disputa entre escolas ou doutrinas aponta para uma oposiccedilatildeo mais fundamental trata-se da oposiccedilatildeo entre o ser e o natildeo-ser ou entre o pleno e o vazio No eleatismo o ser apresenta anterioridade loacutegica e ontoloacutegica Jaacute na filosofia da natureza de Demoacutecrito e Leucipo o ser e o natildeo-ser devem ser colocados lado a lado o que permite a essa filosofia se abrir para o vir-a-ser ao aceitar desde o iniacutecio essa radical alteridade do outro do ser como princiacutepio equivalente ao ser

A afirmaccedilatildeo da multiplicidade e do movimento pressupotildeem desde o iniacutecio a alteridade o outro do ser Isso parece ter ficado bastante evidente para Platatildeo que no Parmecircnides (130c-134e) apoacutes o momento em que o personagem que daacute nome ao Diaacutelogo ter elencado uma seacuterie de argumentos27 contra a Doutrina das Ideias apresenta uma revisatildeo da henologia eleaacutetica posicionando o Outro do Uno junto ao Uno como alteridade necessaacuteria para o equiliacutebrio do jogo dialeacutetico somente assim alcanccedilando ecircxito em tentar salvar essa doutrina dos ferozes ataques lanccedilados contra ela28 E no Filebo tambeacutem 26 DEMOacuteCRITO fragmento 156 In BORNHEIN op cit p 113 27 Sete no total Cf PLATAtildeO Parmecircnides op cit 130c-134e28 A estrutura dessa investigaccedilatildeo dialeacutetica no Parmecircnides pode ser concentrada nas oito consequecircncias

obtidas da anaacutelise da protoideia do uno Por meio do meacutetodo dialeacutetico satildeo obtidos resultados afirmativos e negativos tanto para a existecircncia como para a negaccedilatildeo da existecircncia do uno Esses resultados parecem se equilibrar gerando a impressatildeo de um resultado aparentemente nulo mas que ao final trazem resultados positivos seja para uma revisatildeo do eleatismo seja para uma sofisticaccedilatildeo da Teoria das Ideias Para uma anaacutelise desse assunto cf REALE G Para uma nova interpretaccedilatildeo de

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encontramos essa disposiccedilatildeo dualista atraveacutes da apresentaccedilatildeo da teoria dos princiacutepios formadores para as proacuteprias ideias Segundo essa teoria conhecida como Protologia Platocircnica29 as ideias as formas puras do mundo inteligiacutevel nasceriam do encontro e da uniatildeo do limite identificado com o Uno e do ilimite identificado com o muacuteltiplo infinito (Filebo 16d-e 23d-26d) Limite e ilimite satildeo tomados como princiacutepios absolutos poreacutem geradores das ideias apenas quando relativizados um pelo outro

Guardadas as respectivas diferenccedilas tanto em Platatildeo como nos atomistas fica estabelecida uma equivalecircncia entre ser e natildeo-ser Essa negaccedilatildeo do ser eacute concebida como o Outro-do-ser (oposto ao ser a sua alteridade) O muacuteltiplo eacute na sua essecircncia uacuteltima o composto formado pelo ser e pelo natildeo-ser que como vimos acima eacute entendido como vazio pelos atomistas A partir desse ponto de vista a natureza moacutevel apresenta-se como um tipo de extensatildeo discreta fundada em um dualismo ontoloacutegico no qual encontramos o mesmo (a unidade o limite a identidade o aacutetomo o ser) e o outro (a diferenccedila a alteridade o ilimite o vazio o natildeo-ser)

Em suma o movimento soacute pode ser assumido na medida em que o muacuteltiplo puder ser concebido como o composto formado pelo ser e pelo outro do ser ambos conectados pela relaccedilatildeo de vizinhanccedila Essa vizinhanccedila eacute definida como uma equivalecircncia ontoloacutegica entre o vazio (nadameacuteden) ao lado do ser o que garantiria a separabilidade atocircmica (divisibilidade finita) sem a qual o composto natildeo seria concebiacutevel Do contraacuterio natildeo havendo o vazio soacute haveria o ser-uno unidade simples homogecircnea indiferenciada e tambeacutem imoacutevel jaacute que sempre plena Nesse caso nenhuma vizinhanccedila poderia ser constatada ou afirmada uma vez que a vizinhanccedila pressupotildee a dualidade de elementos O movimento estaria necessariamente vinculado ao dualismo ontoloacutegico e excluiacutedo do monismo pois neste natildeo haveria lugar para a alteridade ou vizinhanccedila

Na medida em que o ser e o vazio satildeo considerados conceitos fundantes no atomismo antigo a relaccedilatildeo de vizinhanccedila fica estabelecida nessa diferenciaccedilatildeo originaacuteria Assim o vazio (o nada) se coloca imediatamente em uma relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o ser no exato momento em que eacute compreendido como a sua radical alteridade E paradoxalmente eacute somente nesse sentido que o vazio eacute a saber na medida mesma em que ele natildeo eacute pleno E a reciacuteproca tambeacutem eacute

Platatildeo Releitura da metafiacutesica dos grandes diaacutelogos agrave luz das ldquoDoutrinas natildeo-escritasrdquo Satildeo Paulo Loyola 1991

29 Ibid p 164-165

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assim afirmada Como o vazio eacute o proacuteprio ser-outro porque instantaneamente se coloca nessa relaccedilatildeo de vizinhanccedila originaacuteria e imediata com o ser o ser tambeacutem se coloca nessa relaccedilatildeo primitiva com o vazio e somente neste sentido o ser eacute isto eacute na medida em que natildeo eacute vazio Platatildeo parece se aproximar dessa posiccedilatildeo atomista quando no Sofista introduz a seguinte indagaccedilatildeo atraveacutes das palavras do Estrangeiro de Eleia ldquoAssim pois estaacute claro que o movimento eacute realmente natildeo ser ainda que seja ser na medida em que participa do serrdquo E prossegue

Segue-se pois necessariamente que haacute um ser do natildeo-ser natildeo somente no movimento mas em toda a seacuterie dos gecircneros pois na verdade em todos eles a natureza do outro faz cada um deles outro que natildeo o ser e por isso mesmo natildeo-ser Assim universalmente por essa relaccedilatildeo chamaremos a todos corretamente natildeo-ser e ao contraacuterio pelo fato de eles participarem do ser diremos que satildeo seres30

Por esse ponto de vista o ser tambeacutem eacute definido em funccedilatildeo de sua relaccedilatildeo com o natildeo-ser que aqui alinhamos com o vazio como o outro do pleno Desse modo essa subordinaccedilatildeo do ser em relaccedilatildeo ao natildeo-ser (o vazio) ou do natildeo-ser (vazio) em relaccedilatildeo ao ser redunda em uma relaccedilatildeo de simetria entre ambos Como resultado temos que natildeo haacute um sentido uacutenico ou prioritaacuterio no condicionamento ontocausal entre ser e vazio A conclusatildeo eacute que ao assumir o movimento como um fato da natureza ou como princiacutepio o ser deixa de apresentar prioridade ontoloacutegica e causal

Nesse sentido ser e natildeo-ser perfazem de maneira equivalente as condiccedilotildees necessaacuterias para o movimento E ainda que a oposiccedilatildeo radical seja o elo constituinte desses princiacutepios originaacuterios ela natildeo implica a anulaccedilatildeo muacutetua de um pelo outro quando simultaneamente justapostos no pensamento assim como os eleatas tentaram mostrar atraveacutes dos paradoxos associados agrave divisibilidade e ao movimento31 Pelo contraacuterio a oposiccedilatildeo radical entre pleno e vazio entre ser e natildeo-ser eacute a proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade do movimento e por isso da efetividade do real Passa a valer por conseguinte nesse caso a necessidade da bicondicionalidade ontocausal entre ser e natildeo-ser radicada na relaccedilatildeo de vizinhanccedila entre ambos na constituiccedilatildeo do real como efetiva e cambiante multiplicidade

30PLATAtildeO Sofista (256e) opcit p 18931Cf ZENAtildeO In BORHEIM op cit p 60-63

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Sumariando as teses de Demoacutecrito e Leucipo temos que

1 O ser eacute quando colocado numa relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o vazio

2 O vazio eacute prefigura junto ao pleno como condiccedilatildeo necessaacuteria para o movimento

3 As teses anteriores se reduzem agrave maacutexima O natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser

4 uma Leitura De Kant a partir Das consiDeraccedilotildees anteriores

Passamos agora a considerar de que form eacute possiacutevel obter por meio do texto Ensaio para introduzir em filosofia o conceito de grandeza negativa32 um novo focirclego para a discussatildeo precedente33 Assim ao analisarmos esse texto manteremos sob nosso olhar aquela oposiccedilatildeo radical e fundamental acima apontada entre ser e natildeo-ser para tentar entendecirc-la atraveacutes daquilo que Kant chama ora de oposiccedilatildeo real ora de oposiccedilatildeo loacutegica sendo a primeira o tipo de oposiccedilatildeoequivalecircncia que relacionaremos com o atomismo antigo e a segunda aquilo que identificaremos como a oposiccedilatildeocontradiccedilatildeo denunciada nas formulaccedilotildees do eleatismo

No prefaacutecio ao Ensaio Kant deixa claro que a filosofia pode se utilizar das ciecircncias naturais e exatas seja copiando seus meacutetodos seja aplicando suas proposiccedilotildees deslocando-as para um novo contexto34 Procederaacute entatildeo com a tentativa de introduzir no seio da filosofia a ideia de grandeza negativa recurso jaacute empregado em matemaacutetica e fiacutesica

Eacute preciso distinguir o significado da proposiccedilatildeo grandeza negativa daquele outro de negaccedilatildeo de uma grandeza35 Uma grandeza negativa eacute a afirmaccedilatildeo de uma grandeza que simplesmente se opotildee a uma outra e que portanto revela uma positividade colocada numa relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo a outra positividade Jaacute na expressatildeo negaccedilatildeo de uma grandeza a grandeza eacute tomada

32 Com o tiacutetulo Versuch den Begriff der negativen Grossen in die Weltweisheit einzufuumlhren essa obra foi publicada pela primeira vez em 1763 Doravante iremos nos referir a ela de maneira abreviada apenas por Ensaio

33Ver nota 134No ano seguinte agrave publicaccedilatildeo do Ensaio essa posiccedilatildeo a respeito da filosofia e das ciecircncias eacute relativizada

com a publicaccedilatildeo de um texto intitulado ldquoInvestigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moralrdquo In KANT Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In______ Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 101-140

35 KANT Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia Ibid p 56

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isoladamente sem qualquer relaccedilatildeo com outra e por isso nenhuma oposiccedilatildeo eacute considerada a partir dela Aqui Kant toma para si a ideia de oposiccedilatildeo que estaacute na raiacutez do conceito de movimento ou de forccedila na Fiacutesica

Nesse sentido a negatividade da formulaccedilatildeo grandeza negativa deve ser interpretada como a projeccedilatildeo da oposiccedilatildeo sobre uma das grandezas polares da relaccedilatildeo que se estabelece entre forccedilas no mundo daiacute a expressatildeo oposiccedilatildeo real Tomemos o exemplo de Kant segundo o qual a atraccedilatildeo negativa que um corpo exerce sobre outro seraacute erroneamente interpretada se for compreendida como a negaccedilatildeo da forccedila de atraccedilatildeo por sua vez seraacute acertadamente compreendida se for tomada como uma grandeza negativa a forccedila de repulsatildeo36 Dessa maneira ela soacute poderaacute ser considerada como negativa se tomada relativamente a outra grandeza a atraccedilatildeo do contraacuterio ela eacute positiva Ou seja a negatividade ou a positividade das grandezas soacute pode ser estabelecida de maneira relativa isto eacute dada a situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre elas No exemplo considerado se o resultado da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre as duas forccedilas de atraccedilatildeo (positiva e negativa) for o repouso entatildeo temos a privaccedilatildeo (nihil privativum representabile) do movimento do objeto sobre o qual essas forccedilas estatildeo agindo e atraveacutes do qual elas puderam se colocar em confronto

Nesse caso eacute necessaacuterio natildeo tomar o efeito (repousoausecircncia do movimento do objeto) pela causa (o equiliacutebrio entre as forccedilas de atraccedilatildeo positiva e negativa) O resultado desse desacerto do juiacutezo seria confundir atraccedilatildeo negativa com ausecircncia de atraccedilatildeo ou a grandeza negativa com negaccedilatildeo de uma grandeza

Consideremos juntamente com Kant o conceito de grandeza negativa em geral para em seguida determinar os seus significados especiacuteficos Levando-se em conta que a chave para predicarmos as grandezas eacute a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo37 entatildeo temos que verificar as duas maneiras por meio das quais podemos considerar essa noccedilatildeo 1ordm como oposiccedilatildeo loacutegica 2ordm como oposiccedilatildeo real Assim Kant estabelece dois niacuteveis de anaacutelise para a apreciaccedilatildeo da noccedilatildeo de oposiccedilatildeo aquele da loacutegica e aquele da natureza Com isso ele pretende distinguir as respectivas funccedilotildees causais da oposiccedilatildeo considerada em cada um desses niacuteveis

Na oposiccedilatildeo loacutegica natildeo resta nenhuma consequecircncia da conexatildeo entre a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo nihil negativum irrepresentabile Dadas duas

36Ibid p 5637Ibid p 57

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afirmaccedilotildees absolutamente contraacuterias o pensamento se surpreende na situaccedilatildeo de natildeo poder prosseguir com seu trabalho obediente como eacute aos princiacutepios de contradiccedilatildeo e terceiro excluiacutedo (tertium non datur) Nesse sentido a contradiccedilatildeo que eacute como entendemos a oposiccedilatildeo loacutegica gera um tipo de vacuidade do pensamento um nada impensaacutevel um absoluto vazio que eacute como aquele nada asseverado por Parmecircnides ldquoNecessaacuterio eacute dizer e pensar que soacute o ser eacute pois o ser eacute e o nada ao contraacuterio nada eacute []rdquo38

Se pensarmos nos estados de movimento e de repouso referidos ao mesmo objeto e abstraindo-se o tempo encontraremos na base mais elementar desses estados contraacuterios os conceitos de ser e de natildeo-ser tidos como opostos no sentido exclusivamente loacutegico (contraacuterios) obtendo como resultado a contradiccedilatildeo e a impossibilidade do pensamento Nesse caso movimento e repouso deixaram de ser grandezas ou estados de coisas e se tornaram puras abstraccedilotildees Logo o natildeo-ser da negatividade natildeo apresenta nenhum tipo de positividade Isto eacute o natildeo-ser eacute absolutamente negativo e eacute tomado como logicamente dependente da positividade do ser como sua pura negaccedilatildeo Por sua vez o ser eacute tomado como conceito originaacuterio e absoluto cuja positividade independe de qualquer relaccedilatildeo apresentando assim precedecircncia loacutegica e exclusividade ontoloacutegica sobre o natildeo-ser

Por outro lado natildeo eacute possiacutevel afirmar que o ser ou o natildeo-ser possuam qualquer prevalecircncia um sobre o outro qualquer antecedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica quando considerados como grandezas no mundo

O movimento eacute tomado como algo positivo na medida em que eacute a efetivaccedilatildeo de um estado de coisas ldquoxrdquo no mundo por sua vez o repouso eacute tambeacutem uma positividade na medida em que significa um outro estado de coisas ldquoyrdquo oposto a ldquoxrdquo A negatividade nessa oposiccedilatildeo recai arbitrariamente sobre ldquoxrdquo ou ldquoyrdquo por meio de uma proposiccedilatildeo que estabelece a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo A negatividade recairaacute sobre ldquoxrdquo ou sobre ldquoyrdquo de acordo com a forma assumida pela proposiccedilatildeo que iraacute fazer variar a negatividade (ou a positividade) em funccedilatildeo da finalidade enfaacutetica que se queira dar a ldquoxrdquo ou a ldquoyrdquo

Somente quando se diz que um mesmo corpo estaacute e natildeo estaacute a um soacute tempo e na mesma relaccedilatildeo em repouso ou em movimento eacute que essa vacuidade no pensar aparece

38ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν[]rdquo PARMENIDES fragmento B6 In BORHEIM op cit p 55

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Um corpo em movimento eacute algo um corpo que natildeo estaacute em movimento eacute tambeacutem algo (cogitabile) no entanto um corpo que ao mesmo tempo e justamente sob a mesma relaccedilatildeo estivesse e natildeo estivesse em movimento eacute absolutamente nada39

A expressatildeo a um soacute tempo significa que o corpo eacute colocado na situaccedilatildeo em que se abstrai a seacuterie contiacutenua do tempo Isso quer dizer que uma uacutenica porccedilatildeo elementar do tempo foi tomada e isolada das demais Todavia uma porccedilatildeo assim isolada do tempo tomada em sentido absoluto natildeo eacute tempo algum Uma vez que a seacuterie de tempo eacute contiacutenua ou se toma uma porccedilatildeo do tempo que por sua vez conteacutem em si uma nova seacuterie temporal infinita (nesse caso a parte eacute igual ao todo) ou natildeo se toma tempo algum Em outras palavras a expressatildeo a um soacute tempo natildeo tem aqui nenhum significado temporal positivo mas apenas negativo significando fora do tempo

Assim procedeu Parmecircnides ao abstrair o tempo para todas as formas proposicionais vaacutelidas reduzindo toda forma de pensamento a uma expressatildeo proposicional afirmativa atemporal onde a positividade eacute sempre absoluta e por isso possui prioridade loacutegica e ontoloacutegica sobre a negatividade Nesse caso toda oposiccedilatildeo eacute sempre contradiccedilatildeo

Jaacute na oposiccedilatildeo real encontramos uma forma de pensamento que natildeo subtrai a seacuterie do tempo Nesse caso a oposiccedilatildeo real apresenta uma estrutura a qual pode ser esquematicamente apresentada como (+A ndashA = B) onde (B = 0) ou (B ne 0) e onde os elementos integrantes dessa operaccedilatildeo (+A) e (ndashA) natildeo deixam de ser pela atribuiccedilatildeo de uma negatividade meramente relativa mesmo quando (B=0) sendo ambos justamente a causa eficiente desse privatio

O (B = 0) como privatio natildeo eacute mera nulidade devendo ser tratado como a realizaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo resultante de um encontro entre potecircncias equivalentes mas opostas uma a outra Aqui natildeo existe contradiccedilatildeo em dizer que se trata de potecircncias equivalentes-opostas pois nesse caso tanto a negatividade como a positividade satildeo relativas e natildeo absolutas Natildeo existe autonomia ontoloacutegica da positividade nem da negatividade Trata-se aqui de predicados e natildeo de seres

Por sua vez o estado de coisas representado por (B = 0) esta efetividade eacute novamente um natildeo-ser poreacutem apenas em relaccedilatildeo a outro estado de coisas a que ele se opotildee Assim este (0) eacute um algo que eacute predicado a algo inserido na 39 Ibidem p 58 grifos nossos

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seacuterie contiacutenua do tempo e que eacute designado como privaccedilatildeo Apenas quando se abstrai da seacuterie do tempo eacute que x = 0 representa um nada absoluto Nesse caso o que eacute afirmado eacute inteira e instantaneamente anulado pelo que eacute negado e vice-versa pois a positividade e a negatividade do que eacute afirmado e negado se referem aos proacuteprios seres

Jaacute na oposiccedilatildeo real ainda que duas condiccedilotildees contraacuterias atuem simultaneamente sobre o mesmo objeto a contradiccedilatildeo (vacuidade do pensamento) natildeo eacute o resultado porque a expressatildeo simultaneamente (ausecircncia de sucessatildeo temporal) eacute aqui relativizada Se pensarmos na destruiccedilatildeo de um corpo esse movimento seraacute oposto ao de sua criaccedilatildeo No entanto tais movimentos natildeo satildeo contraditoacuterios um ao outro quando pensados juntos Natildeo inferimos uma vacuidade no pensamento da conjunccedilatildeo simultacircnea desses dois eventos desde que sejam pensados como eventos e portanto diluiacutedos no contiacutenuo temporal A contiacutenua transformaccedilatildeo (movimento) dos corpos vivos por exemplo tem por base um confronto entre a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo celular atuando nos organismos vivos quer dizer um estado de coisas manifestamente expresso como forccedilas antagocircnicas simultaneamente presentes no mesmo objeto No niacutevel celular essa simultaneidade eacute relativizada enquanto algumas ceacutelulas satildeo criadas outras satildeo destruiacutedas Essa relativizaccedilatildeo da simultaneidade natildeo exclui um efetivo antagonismo seja em que niacutevel for onde a positividade ou a negatividade satildeo arbitrariamente atribuiacutedas a um dos polos da oposiccedilatildeo natildeo havendo qualquer precedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica de um polo sobre o outro A geraccedilatildeo eacute negativa se a destruiccedilatildeo for tomada como positiva e vice-versa

Na dinacircmica uma forccedila motriz eacute dita positiva somente quando oposta a outra dita negativa a resistecircncia Ainda que opostas uma a outra forccedilas com vetores contraacuterios desse encontro natildeo se infere um absurdo como uma contradiccedilatildeo mas um estado de coisas real de oposiccedilatildeo de contrariedade O resultado pode ser tanto o repouso no caso das forccedilas opostas possuiacuterem a mesma potecircncia (serem equivalentes) ou o movimento que apresenta o mesmo vetor de uma das forccedilas conflitantes Em ambos os casos o resultante dessa oposiccedilatildeo eacute algo que pode ser efetivamente afirmado sobre o mundo e natildeo um vazio ou um nada irrepresentaacutevel Ainda que nesse caso o repouso possa ser representado por (B = 0) este (B = 0) natildeo deve ser entendido como uma indeterminaccedilatildeo mas sim como privaccedilatildeo Logo percebemos que a contradiccedilatildeo natildeo eacute aplicaacutevel a estados de coisas imersos na seacuterie contiacutenua do tempo

Tanto na oposiccedilatildeo loacutegica como na oposiccedilatildeo real o efeito pode ser representado como (=0) ou como vazio ou ainda como nada Entretanto

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o sentido desse vazio ou desse nada deve ser relativizado para cada situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo Na oposiccedilatildeo loacutegica significa contradiccedilatildeo (nihil negativum irrepresentabile) ou ausecircncia da possibilidade do pensamento A nosso ver este seria o caso do significado do natildeo-ser empregado por Parmecircnides onde localizamos a supressatildeo instantacircnea (anulaccedilatildeo ausecircncia absoluta) dos opostos Jaacute o nada ou o vazio da oposiccedilatildeo real eacute absolutamente representaacutevel Aqui eacute possiacutevel embora de maneira arbitraacuteria estabelecer os valores positivo e negativo dos elementos que se colocam na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo

5 concLusatildeo

Apoacutes oferecer alguns exemplos para o conceito de grandeza negativa na segunda seccedilatildeo do Ensaio Kant conduz suas consideraccedilotildees para o campo da filosofia que para ele deve se ocupar prioritariamente da metafiacutesica e cujo meacutetodo analiacutetico apresentado por ele em outro de seus textos desse periacuteodo40 jaacute fornece indiacutecios dos passos que daraacute no sentido de sua futura proposta mais amadurecida para uma teoria criacutetico-transcendental

Assim alerta Kant no Ensaio entendemos facilmente que algo natildeo seja se lhe carece a razatildeo positiva para sua existecircncia todavia temos dificuldades para entender como algo que efetivamente eacute deixa de ser41 isto eacute temos dificuldade em compreender o correto sentido de privaccedilatildeo O esclarecimento acerca dessa questatildeo eacute fundamental jaacute que o vir-a-ser isto eacute o deixar de ser como privaccedilatildeo eacute a maneira mais fundamental de entender o conceito de movimento Essa dificuldade em reconhecer o correto sentido de privaccedilatildeo eacute o que algumas vezes nos compele a confundi-la com a contradiccedilatildeo e por isso obter como resultado a negaccedilatildeo do movimento compreendendo-o erroneamente como gerador do absurdo

Assim sugere Kant se represento o Sol em minha imaginaccedilatildeo e se no instante seguinte deixo de ter presente essa representaccedilatildeo em minha mente isso natildeo significa que meu pensamento sobre o Sol tenha simplesmente desaparecido e se tornado um puro nada aniquilando-se na vacuidade de uma contradiccedilatildeo entre ser e natildeo-ser mas sim porque a representaccedilatildeo do sol foi suprimida por outra sorte qualquer de ideia que se impocircs com a intensidade

40KANT I Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In ______ Escritos Preacute-criacuteticos Trad Jair Barboza [et al] Satildeo Paulo UNESP 2005 p 116-117

41KANT opcit p 79

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suficiente para substituiacute-la parcial ou inteiramente segundo uma determinada relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo contingente ao espiacuterito

A simples negaccedilatildeo da representaccedilatildeo considerando que ela simplesmente anulou a si mesma deixando assim de existir nos remete para a situaccedilatildeo de um nada irrepresentaacutevel um impensaacutevel natildeo-ser como em Parmecircnides Jaacute na privaccedilatildeo existe uma interaccedilatildeo entre forccedilas opostas a qual natildeo aparece como contradiccedilatildeo uma vez que princiacutepios afirmativos opostos (representaccedilotildees opostas) coincidiriam sob a mesma forma do pensamento anulando assim o efeito de uma delas ou de ambas O resultado eacute a afirmaccedilatildeo de um ser que eacute tambeacutem natildeo-ser jaacute que a negatividade do natildeo-ser da representaccedilatildeo aqui eacute simplesmente relativa dada pela situccedilatildeo de oposiccedilatildeo A representaccedilatildeo arbitrariamente tomada como negativa natildeo eacute menos ser que aquela tomada como positiva A supressatildeo de uma pela outra natildeo se mostra como contradiccedilatildeo mas como a privaccedilatildeo

Eacute concebiacutevel assim pensar legitimamente o natildeo-ser da representaccedilatildeo desde que seja considerado como privaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel se falar com verdade em princiacutepios opostos e equivalentes e que produzem em seu encontro a afirmaccedilatildeo de algo como um nada Dessa maneira seja a1

a afirmaccedilatildeo (ser) de um determinado estado de coisas no mundo (ou de uma representaccedilatildeo de algo no mundo) e a2 o seu equivalente oposto (o natildeo-ser) temos que

a1 ndash a2 = 0

Arbitrariamente tomamos a2 como a representaccedilatildeo negativa contudo a negatividade aqui revela apenas a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre a1 e a2 e natildeo uma situaccedilatildeo absoluta de a2 Como grandezas equivalentes que se opotildeem o resultado (= 0) revela uma oposiccedilatildeo real natildeo uma contradiccedilatildeo Nem a1

e a2 podem ser ditas potecircncias contraditoacuterias nessa relaccedilatildeo visto que este (= 0) eacute a afirmaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo de um ser que eacute tambeacutem um natildeo-ser assim como o repouso eacute igualmente uma forma de natildeo-ser do movimento O pensamento que leva em conta os opostos eacute pois uma possibilidade real e mesmo necessaacuteria para a consideraccedilatildeo do movimento

Segundo a foacutermula de Demoacutecrito o natildeo-ser natildeo eacute mais nem menos que o ser Ora soacute podemos entender essa afirmaccedilatildeo de duas maneiras convergentes ou como afirmaccedilatildeo do mesmo estatuto ontoloacutegico para o ser e para o natildeo-ser ou como atribuiccedilatildeo da mesma funccedilatildeo causal (material) para ambos Nos dois casos o ser soacute eacute na presenccedila ou com a premissa do natildeo-ser e vice-versa E assim o natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser Estaacute claro que esse princiacutepio natildeo

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se ajusta sem qualquer intervenccedilatildeo agraves formulaccedilotildees de Parmecircnides Por esse desacordo eacute possiacutevel identificar no antigo atomismo uma negatividade do ser que natildeo engendra a vacuidade do pensamento Pelo contraacuterio o movimento do pensamento soacute eacute possiacutevel por meio dessa oposiccedilatildeo fundamental Em Platatildeo esse movimento do pensamento ganha o nome de dialeacutetica

Concluiremos este estudo com a seguinte afirmaccedilatildeo de Kant ldquoTodos os fundamentos reais do universo quando se somam todos que satildeo consonantes e se subtraem uns dos outros os que se opotildeem entre si datildeo um resultado igual a zerordquo42 Esse zero significa a afirmaccedilatildeo da efetividade do mundo Esse zero representa um repouso que nem por isso deixa de ser dinacircmico Assim esperamos ter aproximado o conteuacutedo do Ensaio com o pensamento daqueles filoacutesofos da natureza que se colocavam conformes a um princiacutepio universal sem negar a unidade do pensamento e do movimento do mundo De acordo com eles o mundo deve se ordenar segundo esses princiacutepios mutuamente opostos ser e natildeo-ser os quais estatildeo na origem desse repouso dinacircmico na exata medida da efetivaccedilatildeo de seus encontros

SANTOS Eberth Eleuterio dos Leucippus Democritus and Kant a reflection on the equivalence between being and non-being TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 38 n 2 p 71-94 MaioAgo 2015

ABSTRACT Initially we present the theory of Democritus and Leucippus whereby being is not more than the not-being (non-being) in contrast to Eleatic ideas about the necessary inexistence of the not-being This discussion leads us to the opposition between the whole (full) and the empty which will then be transposed into the opposition between being and nothingness (or not-being) Thus the opposition between whole and the empty is an opposition that moves to being and not-being Finally we will make an assessment of the Kantian pre-critical essay Attempt to introduce the concept of negative magnitude into philosophy in which we recognize a kind of opposition that as we believe would be interpreted as being in agreement with the position of Democritus and Leucippus regarding the ontological status of the not-being as an equivalent principle to the being understood here not as a mutual contradiction in a purely logical sense

KEYWORDS ancient atomism Eleatism ontology

referecircncias

ARISTOacuteTELES Da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo seguido de convite agrave filosofia Traduccedilatildeo de Renata Maria Pereira Cordeiro Satildeo Paulo Landy 2001

42 Ibid p 89

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______ Fiacutesica I ndash II Traduccedilatildeo de Lucas Angioni Campinas Editora da UNICAMP 2009

______ Metafiacutesica texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterio de Giovanni Reale Traduccedilatildeo de Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2005 3v

BARNES J Filoacutesofos preacute-socraacuteticos Traduccedilatildeo de Juacutelio Fischer 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

BORNHEIM G Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Cultrix 2000

_______ O que eacute metafiacutesica Traduccedilatildeo de Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

HEIDEGGER M Die Zeit des Weltbildes (1938) In ______ Gesamtausgabe Frankfurt Klostermann 87-88 (1977) Bd 5 Holzwege

KANT I Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia In ______ Escritos preacute-criacuteticos Traduccedilatildeo de Viniacutecius de Figueiredo e Jair Barbosa Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 51-99

______ Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur neacutegative Traduccedilatildeo de Roger Kempf 2 eacuted Paris J Vrin 1972 (Bibliothegraveque de textes philosophiques)

______ Versuch den Begriff der negative Grossen in die Weltweisheit einzufuhres Neueste Aufl Graz Andreas Leikam 1797 Disponiacutevel em lt httpsarchiveorgstreamversuchdenbegri00kantgoogpagen43mode2upgt Acesso em 22 dez 2013

PARMENIDES Fragmentos sobre a natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

______ Da natureza Traduccedilatildeo de Jose Gabriel Trindade Santos (modificada pelo tradutor) Satildeo Paulo Loyola 2002

PLATAtildeO Filebo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ O sofista Traduccedilatildeo de Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Abril Cultural 1972

______ Parmecircnides Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos v VIII Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ Teeteto Traduccedilatildeo de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri Lisboa Calouste Gulbenkian 2010

______ Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Rodolfo Lopes Coimbra Universidade de Coimbra 201143

Recebido Received 07092014Aprovado Approved 10012015

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de culturas e de linguagens muito singulares enfim produtos de eacutepocas2 absolutamente distintas

Assim logo de iniacutecio nossa proposta aparenta ser uma espeacutecie de fantaacutestica subversatildeo do bom senso uma vez que este se mostra contraacuterio a todo tipo de irreversibilidade histoacuterica Ao mesmo tempo este nosso estudo tambeacutem pode se mostrar um tanto insatisfatoacuterio por assumir a forma de um artigo jaacute que o desejo de em poucas paacuteginas tentar reunir dois elos de uma longa cadeia de pensamentos assim tatildeo separados pela histoacuteria impotildee desde o iniacutecio a necessidade de abstraccedilatildeo dos muitos outros elos intermediaacuterios Apesar disso isto eacute de todas essas consideraccedilotildees negativas que apostam contra este esforccedilo talvez natildeo seja de todo vatildeo insistir nele e tentar obter correndo o risco de abusar da analogia precedente uma forma anelar dessa longa cadeia de pensamentos por meio da junccedilatildeo de duas de suas seccedilotildees

Tomando consciecircncia assim dessa situaccedilatildeo um tanto precaacuteria e temeraacuteria em que voluntariamente nos colocamos aqui seria bastante recomendaacutevel nos munirmos da cautela necessaacuteria que faculte nos afastar de antigos prejuiacutezos filosoacuteficos como aqueles que por exemplo asseveram que as filosofias satildeo sistemas estanques isolados entre si autocircnomos inconciliaacuteveis etc Simultaneamente a isso essa mesma prudecircncia talvez permita franquear uma proposta de anaacutelise que encontre um diferente acircngulo interpretativo sobre alguns conceitos e estruturas argumentativas jaacute muito bem assentados mesmo sem pretender alcanccedilar por meio dela quaisquer inovaccedilotildees de ordem metodoloacutegica ou conceitual

Natildeo se trata aqui em suma de tentar ler o passado com os olhos do presente subvertendo a ordem do tempo e colocando na boca dos antigos aquilo que eles jamais pretendiam ou poderiam ter dito Natildeo se trata de tentar fazer a roda do tempo girar ao contraacuterio e inverter a ordem do pensamento (assumindo eacute claro que essa ordem exista uma vez que isso natildeo parece ser assim tatildeo oacutebvio) Trata-se simplesmente de tentar perseguir a possibilidade de um olhar transformado por uma luz um pouco diferente da costumeira qual seja tentar utilizar recursos mais recentes para melhor circunscrever antigas noccedilotildees

2 Sobre a exploraccedilatildeo dessa questatildeo a das especificidades fundamentais das distintas eacutepocas filosoacuteficas indicamos a leitura de Heidegger Die Zeit des Weltbildes (1938) In Gesamtausgabe Bd 5 Holzwege Frankfurt (Main) Klostermann 1977 S 87-88

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Assim alertados e acautelados prossigamos dando iniacutecio a uma raacutepida incursatildeo entre duas posiccedilotildees que senatildeo opostas entre si satildeo pelo menos divergentes quais sejam o monismo ontoloacutegico do eleatismo e o pluralismo atomista de Demoacutecrito e Leucipo para em seguida averiguarmos em que medida eacute possiacutevel projetar sobre essas duas posiccedilotildees as luzes (lumieacuteres) de uma pontual reflexatildeo kantiana sobre a metafiacutesica e sobre a loacutegica em geral E ainda que o resultado dessa tentativa natildeo seja de todo proveitoso tambeacutem natildeo eacute necessaacuterio que seja completamente inuacutetil uma vez que obedecendo ao dito socraacutetico natildeo permanecemos no mesmo estado de ignoracircncia se tomamos consciecircncia dele

1 o atomismo De Leucipo e Demoacutecrito

Partindo de consideraccedilotildees sobre a relatividade das qualidades sensiacuteveis do mundo fenomecircnico mas rumando para muito aleacutem Leucipo e Demoacutecrito afirmam em uniacutessono a equivalecircncia ontoloacutegica e causal do aacutetomo e do vazio como princiacutepios universais e invisiacuteveis ao mesmo tempo formais e materiais para a inteligibilidade da natureza em geral da phyacutesis buscando obter por meio desses princiacutepios uma compreensatildeo da essecircncia do mundo natural Isto eacute mestre e disciacutepulo respectivamente buscam uma compreensatildeo da natureza que natildeo se reduza a uma mera convenccedilatildeo dos homens como nos diz Demoacutecrito ldquo[] conforme a convenccedilatildeo dos homens existem a cor o doce o amargo em verdade contudo soacute existem os aacutetomos e o vazio []rdquo3

Afirmados como princiacutepios materiais do mundo fenomecircnico o aacutetomo e o vazio devem ser tambeacutem apresentados em um niacutevel puramente formal isto eacute como conceitos impostos pela razatildeo ou pelo puro pensamento como quando Leucipo ressalta ldquoNenhuma coisa se engendra ao acaso mas todas (a partir) de razatildeo e por necessidaderdquo4 E como conceitos elementares e necessaacuterios para o engendramento das coisas e do mundo aacutetomo e vazio devem ser intercambiaacuteveis para as tradicionais formulaccedilotildees ser e natildeo-ser respectivamente o que nos conduz para a seguinte passagem de Simpliacutecio ldquoTambeacutem sustentava [Leucipo] que o ser existe tanto quanto o natildeo-ser e que ambos satildeo causadores

3 DEMOacuteCRITO fragmento B125 in BORNHEIM G Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Cultrix 2000 p 112

4 LEUCIPO fragmento B2 (AEacuteCIO I 24 4) In Preacute-Socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 303

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das coisas que vecircm a serrdquo5 E sobre Demoacutecrito Simpliacutecio ainda nos informa ldquoDa mesma forma o companheiro de [Leucipo] Demoacutecrito de Abdera propocircs o pleno e o vazio como princiacutepios originaacuterios o primeiro denominou ser e o segundo natildeo-serrdquo6 Unindo esses relatos aos de outros doxoacutegrafos torna-se expliacutecito o estatuto ontoloacutegico conferido ao aacutetomo e ao vazio nos pensamentos que chegaram ateacute noacutes de Demoacutecrito e Leucipo

No que diz respeito agrave explicitaccedilatildeo da equivalecircncia causal decorrente da equivalecircncia ontoloacutegica e sumariada pela maacutexima o ser natildeo tem mais realidade que o natildeo-ser podemos acrescentar ainda o seguinte testemunho de Aristoacuteteles

Leucipo e seu seguidor Demoacutecrito afirmam como elementos o cheio e o vazio e chamam um de ser e o outro de natildeo-ser mais precisamente chamam o cheio e o soacutelido de ser e o vazio de natildeo-ser e por isso sustentam que o ser natildeo tem mais realidade do que o natildeo-ser pois o cheio natildeo tem mais realidade que o vazio E afirmam esses elementos como a causa material dos seres7

Eacute bastante notoacuterio o grande interesse do Estagirita pelas argumentaccedilotildees de seus predecessores tomando-as quase sempre como concepccedilotildees a serem assimiladas ou refutadas por suas proacuteprias formulaccedilotildees e princiacutepios Assim a polecircmica com os atomistas com os eleatas com os dialeacuteticos (os platocircnicos) e com tantos outros atravessa todo o corpus aristoteacutelico acarretando em uma superabundacircncia de relatos e testemunhos tendo o primeiro livro da Metafiacutesica se concentrado intensamente nessa tarefa Mas tambeacutem na Fiacutesica assim como em outros escritos observamos uma igual riqueza de apontamentos os quais revelam o quatildeo tributaacuterio era Aristoacuteteles de seus antecessores especialmente no que dizia respeito agraves questotildees concernentes agraves concepccedilotildees fiacutesicas e metafiacutesicas que segundo ele deveriam versar acima de tudo sobre os primeiros princiacutepios e causas isto eacute sobre a essecircncia sobre o ser e o sobre o movimento

Na Metafiacutesica essas ponderaccedilotildees sobre os primeiros princiacutepios e causas levam Aristoacuteteles a reconsiderar o legado filosoacutefico recebido dos mais antigos principalmente por meio da afirmaccedilatildeo da centralidade do conceito substacircncia Atraveacutes desse conceito acredita ser capaz de reconfigurar e reconciliar os

5 SIMPLIacuteCIO 284-15 in BARNES J Filoacutesofos preacute-socraacuteticos 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p 286 grifos nossos

6 Ibid 2815 -27 p 292 grifos nossos7 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2005 p 27

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anteriores pontos de vista ontoloacutegicos e causais em seus aspectos formais e materiais ldquoMesmo sendo dito em tantos significados eacute evidente que o primeiro significado do ser eacute a essecircncia que indica a substacircnciardquo8 Na Fiacutesica esse esforccedilo de reconfiguraccedilatildeo e reconciliamento realizado sobre o pensamento noeacutetico e fenomecircnico tambeacutem gravitaraacute em torno do conceito de movimento

Ora eacute necessaacuterio que o princiacutepio seja um ou mais de um e se for um eacute necessaacuterio que seja ou imoacutevel como afirma Parmecircnides e Melisso ou suscetiacutevel de movimento como afirmam os estudiosos da natureza uns afirmando que o primeiro princiacutepio eacute ar outros que eacute aacutegua mas se os princiacutepios forem mais de um eacute necessaacuterio que sejam em nuacutemero limitado ou ilimitado e se forem limitados poreacutem mais de um eacute necessaacuterio que sejam dois ou trecircs quatro ou outro nuacutemero e se forem ilimitados eacute necessaacuterio que sejam ou da maneira como afirma Demoacutecrito ndash um uacutenico gecircnero mas diferenciados em figura ndash ou diferenciados em forma ou ateacute mesmo contraacuterios9

Como podemos perceber nessa passagem Aristoacuteteles coloca de um lado os monistas e imobilistas nomeando os eleatas Parmecircnides e Melisso e no lado oposto os defensores de um princiacutepio suscetiacutevel de movimento Entre estes Demoacutecrito eacute alinhado junto aos que afirmam um nuacutemero infinito de elementos de um uacutenico gecircnero (o aacutetomo) Poreacutem eacute ainda preciso conciliar essa pluralidade infinita de figuras de um uacutenico gecircnero com o movimento mencionado aqui por Aristoacuteteles

O movimento a que Aristoacuteteles se refere na passagem acima possui o sentido especiacutefico de deslocamento e natildeo o de alteraccedilatildeo Sendo o aacutetomo apenas suscetiacutevel de movimento natildeo pode conter o movimento como propriedade intriacutenseca o que significa que o aacutetomo natildeo pode se alterar mudar de aspecto se tornar diferente do que eacute pois do contraacuterio nada restaria de permanente de soacutelido de indivisiacutevel A proacutepria mudanccedila no niacutevel da multiplicidade sensiacutevel (o vir-a-ser) ficaria assim comprometida jaacute que em princiacutepio natildeo pode deixar de ser (alterar-se) aquilo que natildeo eacute em algum niacutevel elementar

Em outras palavras o aacutetomo natildeo pode ser considerado em si mesmo a fonte do movimento pois se assim o fosse tambeacutem ele deveria acomodar em si alteraccedilotildees gerando o paradoxo de ter de ser e natildeo-ser simultaneamente Falta grave ao princiacutepio de identidade e consequentemente ao princiacutepio de

8 Ibid p 287 grifos nossos9 ARISTOacuteTELES Fiacutesica I ndash II Campinas Editora da UNICAMP 2009 p 24 grifos nossos

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contradiccedilatildeo jaacute desvendada pelo eleatismo a partir de uma anaacutelise puramente noeacutetica Assim o aacutetomo eacute tomado como princiacutepio de permanecircncia Em sua definiccedilatildeo encontramos as propriedades de solidez e indestrutibilidade de perenidade e inalterabilidade Nunca tendo sido gerado o aacutetomo eacute definido como sempre idecircntico a si mesmo princiacutepio material indivisiacutevel da natureza

Diferentemente dos aacutetomos os compostos ndash os corpos (soacutemata) e os mundos (koacutesmoi) ndash apresentam a inconstacircncia que lhes eacute proacutepria sendo passiacuteveis de geraccedilatildeo e destruiccedilatildeo Nos compostos o movimento se apresenta portanto como uma propriedade manifesta Possuindo os compostos em sua base formal e material os aacutetomos (inalteraacuteveis natildeo gerados e indestrutiacuteveis) como princiacutepio de permanecircncia entatildeo o princiacutepio do movimento (geraccedilatildeo alteraccedilatildeo corrupccedilatildeo) manifesto nesses compostos deve ser buscado em outra parte isto eacute em outro elemento

E tomando o composto como o ponto de partida para a inteligibilidade da natureza os atomistas se depararam com a necessidade formal de um princiacutepio distinto do proacuteprio aacutetomo o qual permitisse a dita suscetibilidade ao movimento Em suma ao passar do niacutevel fenomecircnico para o noeacutetico os atomistas buscam legitimar a natureza mutante pelos seus princiacutepios formais e materiais Uma vez que o ser (o aacutetomo) tomado em si mesmo natildeo pode servir como princiacutepio de movimento dadas as conclusotildees sobre o plenouno jaacute assentadas desde Parmecircnides e que foram em parte assimiladas pelos atomistas caberia entatildeo atribuir a outro princiacutepio essa funccedilatildeo Como nos transmite Aristoacuteteles

Afirmam que o movimento se daacute graccedilas ao vazio com efeito segundo estes o movimento dos corpos naturais e elementares eacute um movimento local porque o movimento devido ao vazio eacute um transporte como em um lugar quanto aos outros movimentos nenhum pertence pensam eles aos corpos elementares mas somente agravequeles que deles satildeo formados dizem que o crescimento o perecimento e a alteraccedilatildeo provecircm da reuniatildeo e da separaccedilatildeo dos corpos insecaacuteveis10

Assim por meio do vazio os atomistas fornecem uma resposta ao imobilismo eleata O vazio eacute o meio comunicante que possibilita o ldquotransporterdquo Eacute por meio dele que os aacutetomos em nuacutemero infinito se deslocam se associam e se separam ldquoDemoacutecrito tinha a opiniatildeo de que os aacutetomos se movem

10 ARISTOacuteTELES Fiacutesica op cit VIII 9 265b grifos nossos

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eternamente em um espaccedilo vaziordquo11 Sem o vazio os aacutetomos permaneceriam estaacuteticos imoacuteveis e nenhuma geraccedilatildeo ou corrupccedilatildeo nenhum nascimento ou morte seria constataacutevel no acircmbito do composto E se natildeo houvesse nenhum princiacutepio de movimento nenhum vazio tambeacutem o ser (o aacutetomo) natildeo poderia ser dito no plural pois natildeo haveria nada distinto (o natildeo-ser) que permitisse a separaccedilatildeo e portanto o avizinhamento do ser consigo mesmo Tudo seria entatildeo apenas pleno uno e imoacutevel

O vazio se constitui por conseguinte como a soluccedilatildeo do antigo atomismo para o vir-a-ser Todavia com Leucipo e Demoacutecrito esta soluccedilatildeo eacute ainda um tanto insatisfatoacuteria pois eacute somente com Epicuro no final do seacuteculo IV que o peso eacute informado como uma das propriedades presentes no aacutetomo graccedilas ao qual se explicaria sua queda (deslocamento) no vazio Mas essa queda seria homogecircnea e por isso nem criativa nem destrutiva se o aacutetomo natildeo possuiacutesse sutis diferenciaccedilotildees No entanto na medida em que satildeo tambeacutem supostos infinitos em nuacutemero e em figura torna-se factiacutevel justificar a sua queda no vazio como natildeo regular mas com choques e voacutertices (clinamen) acarretando em junccedilotildees e separaccedilotildees atocircmicas Em resumo o aacutetomo apresenta um movimento por deslocamento e natildeo por alteraccedilatildeo natildeo podendo assim ser considerado o princiacutepio do movimento que apenas parcialmente se justifica pela postulaccedilatildeo do vazio como seu princiacutepio

Desse modo aacutetomo e vazio se equivalem como princiacutepios formais e materiais para a existecircncia do composto ainda que se oponham como princiacutepios de permanecircncia e de movimento respectivamente Os compostos se tornam mais densos (e pesados) na medida em que menos vazio neles houver em relaccedilatildeo aos aacutetomos na proporccedilatildeo de suas composiccedilotildees Ao mesmo tempo aacutetomo e vazio permitem compreender o movimento em sentido amplo como a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo do composto Esse movimento deve ser entendido entatildeo como a associaccedilatildeo e a dispersatildeo dos aacutetomos tornada possiacutevel pelo vazio

2 o eLeatismo e a revisatildeo pLatocircnica

Como dissemos o posicionamento dos atomistas em relaccedilatildeo ao movimento surgia como uma resposta agraves conclusotildees do imobilismo eleata Esse imobilismo por sua vez seguia como consequecircncia necessaacuteria do monismo ontoloacutegico ali presente no qual apenas o ser eacute dito com verdade Isto

11 HIPPOLOcircNIO I 13 2 in BORNHEIM op cit p 126

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eacute apenas o ser eacute dito com necessidade enquanto sobre o natildeo-ser nada pode ser dito com verdade Assim o pensamento verdadeiro porque necessaacuterio soacute pode se projetar sobre o ser que por sua vez eacute pleno e uno Atraveacutes do poema de Parmecircnides isto se torna laconicamente expliacutecito ldquoNecessaacuterio eacute o dizer e o pensar que o ente eacute pois eacute ser e nada natildeo eacute []rdquo12 e tambeacutem ldquoo outro que natildeo eacute que tem de natildeo ser esse te indico ser caminho em tudo ignotordquo13 E tendo comparado a doutrina de Parmecircnides aos ensinamentos de Xenoacutefanes e Melisso respectivamente seu mestre e disciacutepulo Aristoacuteteles conclui pelo seguinte ldquoParmecircnides ao contraacuterio [de Xenoacutefanes e Melisso] parece raciocinar com mais perspicaacutecia Por considerar que aleacutem do ser natildeo existe o natildeo-ser necessariamente deve crer que o ser eacute um e nada maisrdquo14

Em Parmecircnides o ser eacute a unidade fundamental de tudo o que pode ser dito com verdade Aqui encontramos o pensamento verdadeiro loacutegico-racional identificado agrave sua unidade pura homogecircnea indivisiacutevel e imoacutevel Em oposiccedilatildeo a isso Parmecircnides detectava o erro a falsidade o desvio da razatildeo que assumia a forma do natildeo-ser A afirmaccedilatildeo do natildeo-ser soacute poderia advir de um desvio do caminho da verdade

Nos versos de seu poema particularmente no fragmento B8 Parmecircnides nos revela o ser segundo essa concepccedilatildeo No primeiro canto O caminho da verdade fica estabelecida a identidade entre o ser e o pensamento em sentido estrito (necessaacuterio) a saber aquele pensamento acompanhado da verdade Isso significa que a realidade de direito estaacute fundada em um uacutenico princiacutepio o ser E aqui o conceito de realidade se confunde imediatamente com o de verdade loacutegica isto eacute aquilo que pode ser dito legitimamente ou sem contradiccedilatildeo E o ser se configura como o princiacutepio unicamente noeacutetico ao mesmo tempo loacutegico ontoloacutegico e epistecircmico sobre uma natureza fundamentalmente imoacutevel e apenas por isso consistente

Realidade verdade e permanecircncia se tornam conceitos congecircneres nessa particular anaacutelise ontoloacutegica da natureza O Ser - ato imediato do pensamento - jamais foi gerado jamais se altera jamais se corrompe jamais entra em conflito consigo mesmo Do contraacuterio perseguiriacuteamos o caminho da opiniatildeo

12ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν []rdquo PARMENIDES fragmento B6 (SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 117 2) In Preacute-Socraacuteticos opcit p 148

13ldquoἡ δ΄ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόνrdquo PARMENIDES Da Natureza Satildeo Paulo Loyola 2002 fragmento B2 (PROCLO Comentaacuterio ao Timeu I 345 18)

14ARISTOacuteTELES Metafiacutesica opcit p 33 grifos nossos

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no qual ser e natildeo-ser seriam reputados o mesmo ou equivalentes Contudo no caminho da verdade o pensamento (loacutegico-racional) natildeo pode admitir em seu seio a negaccedilatildeo do ser (o natildeo-ser) o outro do ser essa radical alteridade como algo que se coloca fora do ser e por isso se separa e se opotildee a ele No caminho da verdade nada pode ser dito ou pensado para aleacutem do ser Afirmar o ser para aleacutem do ser isto eacute o ser-outro ou o natildeo-ser eacute simplesmente natildeo reconhecer essa unicidade fundamental e por isso se colocar no caminho do erro da opiniatildeo falsa do engano sobre a essecircncia da natureza

Decorrecircncia dessa unicidade fundamental eacute o imobilismo da natureza no niacutevel noeacutetico A permanecircncia do ser natildeo significa outra coisa senatildeo sua incorruptibilidade em um niacutevel muito fundamental o do puro pensamento implicando a impossibilidade de uma justificaccedilatildeo loacutegico-racional para o devir da natureza sensiacutevel Eis entatildeo que o ser eacute tomado como princiacutepio uacutenico fiacutesico e metafiacutesico simbolizaacutevel por ldquoPois pensar e ser eacute o mesmordquo15 enquanto o contraacuterio eacute descartado como impossiacutevel ldquoJamais se conseguiraacute provar que o natildeo-ser eacuterdquo16

Naquilo que nos interessa aqui mais imediatamente os resultados das formulaccedilotildees do eleatismo - a afirmaccedilatildeo da permanecircncia do Ser (o Princiacutepio de Identidade) unida agrave exclusatildeo da afirmaccedilatildeo simultacircnea do ser e do natildeo-ser (o Princiacutepio da natildeo-contradiccedilatildeo) - satildeo a negaccedilatildeo do vazio do muacuteltiplo e do movimento Como assevera Melisso ldquoTambeacutem natildeo haacute nada vazio Pois o vazio nada eacute e o que nada eacute natildeo pode ser E natildeo se move Natildeo tem lugar onde mover-se pois eacute pleno Existisse o vazio mover-se-ia para o vazio Mas como natildeo haacute o vazio natildeo tem lugar para onde mover-serdquo17

Desse modo o ser no eleatismo natildeo admite para si a mudanccedila seja em que sentido for que se presuma essa mudanccedila A geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo ou mesmo o deslocamento que estatildeo na base da ideia de mudanccedila no atomismo trariam de volta o natildeo-ser para o interior de uma concepccedilatildeo de realidade da qual fora previamente excluiacutedo por forccedila do pensamento Os dois princiacutepios loacutegicos (identidade e contradiccedilatildeo) perderiam a sua validade e alcance sua legitimidade e credibilidade ldquoE jamais a forccedila da convicccedilatildeo concederaacute que do natildeo-ser possa surgir outra coisa Por isto a deusa da Justiccedila natildeo admite por

15ldquoτὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι rdquo PARMEcircNIDES fragmento B3 in BORHEIM op cit p 55 16ldquoΟὐ γὰρ μήποτε τοῦτο δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα rdquo PARMEcircNIDES fragmento B7 ibid p 5517 MELISSO fragmento 7 (SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 111118) Ibid p 65

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um afrouxamento de suas cadeias que nasccedila ou que pereccedila mas manteacutem-no firmerdquo18 Assim Parmecircnides deixa claro que o natildeo-ser natildeo eacute princiacutepio gerador do que quer que seja Trata-se de uma impossibilidade para o pensamento e portanto para o proacuteprio ser e para a natureza

E Platatildeo eacute tido como um disciacutepulo da henologia eleata Poreacutem tambeacutem eacute verdade que em pelo menos dois de seus Diaacutelogos o Sofista e o Parmecircnides19 fica evidente um desacordo entre ele Parmecircnides No Sofista (236e-237b) Platatildeo revela as dificuldades advindas de uma identificaccedilatildeo imediata loacutegica e ontoloacutegica entre verdade e ser excluindo assim o natildeo-ser de todo raciociacutenio legiacutetimo A consequecircncia dessa identificaccedilatildeo eacute a impossibilidade de se afirmar o falso Afirmar o falso apareceria como manifesta contradiccedilatildeo jaacute que seria afirmar o nada20 Contudo Platatildeo reconhece que essa impossibilidade tambeacutem se mostra como um risco epistemoloacutegico pois disso decorreria a impossibilidade de distinguir entre conhecimento (opiniatildeo verdadeira) e ignoracircncia (opiniatildeo falsa) Ao esclarecer Teeteto sobre esse fato diz o Estrangeiro de Eleia no Sofista

Eacute que realmente jovem feliz nos vemos frente a uma questatildeo extremamente difiacutecil pois mostrar e parecer sem ser dizer algo sem entretanto dizer com verdade satildeo maneiras que trazem grandes dificuldades tanto hoje como ontem e sempre Que modo encontrar na realidade para dizer ou pensar que o falso eacute real sem que jaacute ao proferi-lo nos encontremos enredados na contradiccedilatildeo [] A audaacutecia de uma tal afirmaccedilatildeo eacute supor o natildeo-ser como ser e na realidade nada de falso eacute possiacutevel sem esta condiccedilatildeo Era o que meu jovem jaacute afirmava o grande Parmecircnides tanto em prosa como em verso a noacutes que entatildeo eacuteramos jovens ldquoJamais obrigaraacutes os natildeo-seres a ser Antes afasta teu pensamento desse caminho de investigaccedilatildeo21

18ldquoΟὐδὲ ποτ΄ ἐκ μὴ ἐόντος ἐφήσει πίστιος ἰσχύς γίγνεσθαί τι παρ΄ αὐτόττοῦ εἵνεκεν οὔτε γενέσθαι οὔτ΄ ὄλλυσθαι ἀνῆκε Δίκη χαλάσασα πέδῃσινrdquo PARMEcircNIDES fragmento B8 ibid p 55 grifos nossos

19 Eacute oacutebvio que natildeo precisariacuteamos ficar restritos a apenas esses dois Diaacutelogos Por exemplo no Teeteto poderiacuteamos mencionar o problema da opiniatildeo falsa (187d-18a) PLATAtildeO Teeteto Lisboa Calouste Gulbenkian 2010 p 271-272 No Filebo a controveacutersia sobre o Uno e o Muacuteltiplo (14c-15c 23d) PLATAtildeO Filebo In ______ Diaacutelogos v 8 Universidade Federal do Paraacute 1974 No Timeu interessante notar as semelhanccedilas e dessemelhanccedilas entre o atomismo e a doutrina laacute apresentada principalmente em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo do ser e do devir enquanto imutaacutevel e mutaacutevel respectivamente (27d-28b) poderiacuteamos mencionar ainda a descriccedilatildeo da gecircnese do mundo como um ser vivo e sua forma arredondada numa espeacutecie de reconciliaccedilatildeo com o eleatismo de Parmecircnides (30d-40d) PLATAtildeO Timeu-Criacutetias Coimbra Universidade de Coimbra 2011 p 92-93 99-115

20 Sobre o paradoxo envolvendo a questatildeo de se afirmar o nada cf HEIDEGGER O que eacute metafiacutesica Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 235

21PLATAtildeO Sofista Satildeo Paulo Abril Cultural 1972 p 162

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Eacute notoacuterio que os esclarecimentos prestados ao jovem Teeteto pelo Estrangeiro conduzem a um ldquoparriciacutediordquo22 significando uma espeacutecie de rompimento de Platatildeo com a henologia eleata ortodoxa Todavia tatildeo pouco esse rompimento significa a aceitaccedilatildeo da posiccedilatildeo atomista por Platatildeo23 No diaacutelogo Parmecircnides (137ac-166c) o Outro do Uno (o ser outro) eacute afirmado como uma necessidade no acircmbito da dialeacutetica platocircnica24 sem o qual a Doutrina das Ideias natildeo escaparia agraves dificuldades apontadas (130c-134e) e que satildeo decorrentes de uma ortodoxia henoloacutegica advindas do proacuteprio eleatismo

Contudo o objetivo desta raacutepida explanaccedilatildeo foi o de apenas tornar um pouco mais evidente a oposiccedilatildeo entre o pluralismo ontoloacutegico e material de Demoacutecrito (como se acredita ser tambeacutem o de Leucipo) e o monismo de Parmecircnides Nas seccedilotildees subsequentes defenderemos que essa oposiccedilatildeo fundamental entre o ser e o vazio natildeo implica uma contradiccedilatildeo (loacutegica) como no eleatismo mas sim uma forma de oposiccedilatildeo jaacute percebida por Platatildeo como necessaacuteria (por exemplo no Sofista 256d - 259d) e que poderiacuteamos interpretar como sendo tambeacutem aquela apresentada por Kant e denominada por ele como oposiccedilatildeo real E para natildeo nos afastarmos desse intuito prossigamos nestas ponderaccedilotildees

3 equivaLecircncia entre Ser e natildeo-Ser

Na seccedilatildeo precedente refletimos sobre algumas das consideraccedilotildees mais centrais do eleatismo basicamente aquelas que afirmam o ser como necessariamente um e imoacutevel25 Tambeacutem tivemos a oportunidade de acompanhar como Demoacutecrito ao desenvolver a filosofia de seu mestre Leucipo eacute capaz de

22Ibid p 168 (241a-242b)23Apesar de apresentar pontos de contato com o atomismo de Demoacutecrito e Leucipo e com certos

aspectos do eleatismo ortodoxo a visatildeo cosmogocircnica exposta por Platatildeo no Timeu se distancia de ambos ao assumir a dialeacutetica como pressuposto metodoloacutegico e epistemoloacutegico Por exemplo quando da descriccedilatildeo da dinacircmica dos elementos de um ponto de vista puramente dialeacutetico (56c-61c) ou quando da apresentaccedilatildeo do terceiro princiacutepio que soacute ldquo[] acessiacutevel por meio de um certo raciociacutenio bastardo (logismocirc tini nothocirc) sem recurso aos sentidos a custo crediacutevel (52a-b) PLATAtildeO Timeu-Criacutetias op cit p 136-155

24Cf tambeacutem PLATAtildeO Sofista (253d - 254b) op cit p 184-18525 Aleacutem dessa definiccedilatildeo essencial do ser Parmecircnides especialmente no fragmento B8 fornece

uma seacuterie de outros atributos que poderiacuteamos considerar como derivados ou secundaacuterios como completude (plenitude) inteireza esfericidade indestrutibilidade limite externo compacidade homogeneidade continuidade que de certo modo podem ser reduzidos uns aos outros e referidos agravequeles dois que interpretamos como essenciais

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defender a proposiccedilatildeo ldquoO nada existe tanto quanto o lsquoalguma coisarsquordquo26 Assim na antiga escola atomista o movimento eacute aceito e justificado na medida em que admite o vazio (o natildeo-ser) pelo qual se opera o mecanismo da mudanccedila da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo no acircmbito do composto atraveacutes da junccedilatildeo e da dissoluccedilatildeo de suas partes elementares Tomando igualmente o vazio como princiacutepio os atomistas antigos satildeo capazes de oferecer uma resposta ao problema do movimento e do vir-a-ser problema este colocado pelo menos desde Parmecircnides

Dessa forma divergem as teses baacutesicas do eleatismo e do atomismo De um lado fica estabelecida a necessidade da postulaccedilatildeo do ser uno e pleno de maneira exclusiva e solitaacuteria excluindo por essa via a possibilidade de uma justificaccedilatildeo do vir-a-ser de outro encontramos a postulaccedilatildeo do vazio colocado como oposiccedilatildeo ao ser mas tambeacutem como seu equivalente formal e material servindo como canal comunicante sem o qual o movimento proacuteprio da natureza natildeo seria concebiacutevel ou racionalizaacutevel

Essa disputa entre escolas ou doutrinas aponta para uma oposiccedilatildeo mais fundamental trata-se da oposiccedilatildeo entre o ser e o natildeo-ser ou entre o pleno e o vazio No eleatismo o ser apresenta anterioridade loacutegica e ontoloacutegica Jaacute na filosofia da natureza de Demoacutecrito e Leucipo o ser e o natildeo-ser devem ser colocados lado a lado o que permite a essa filosofia se abrir para o vir-a-ser ao aceitar desde o iniacutecio essa radical alteridade do outro do ser como princiacutepio equivalente ao ser

A afirmaccedilatildeo da multiplicidade e do movimento pressupotildeem desde o iniacutecio a alteridade o outro do ser Isso parece ter ficado bastante evidente para Platatildeo que no Parmecircnides (130c-134e) apoacutes o momento em que o personagem que daacute nome ao Diaacutelogo ter elencado uma seacuterie de argumentos27 contra a Doutrina das Ideias apresenta uma revisatildeo da henologia eleaacutetica posicionando o Outro do Uno junto ao Uno como alteridade necessaacuteria para o equiliacutebrio do jogo dialeacutetico somente assim alcanccedilando ecircxito em tentar salvar essa doutrina dos ferozes ataques lanccedilados contra ela28 E no Filebo tambeacutem 26 DEMOacuteCRITO fragmento 156 In BORNHEIN op cit p 113 27 Sete no total Cf PLATAtildeO Parmecircnides op cit 130c-134e28 A estrutura dessa investigaccedilatildeo dialeacutetica no Parmecircnides pode ser concentrada nas oito consequecircncias

obtidas da anaacutelise da protoideia do uno Por meio do meacutetodo dialeacutetico satildeo obtidos resultados afirmativos e negativos tanto para a existecircncia como para a negaccedilatildeo da existecircncia do uno Esses resultados parecem se equilibrar gerando a impressatildeo de um resultado aparentemente nulo mas que ao final trazem resultados positivos seja para uma revisatildeo do eleatismo seja para uma sofisticaccedilatildeo da Teoria das Ideias Para uma anaacutelise desse assunto cf REALE G Para uma nova interpretaccedilatildeo de

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encontramos essa disposiccedilatildeo dualista atraveacutes da apresentaccedilatildeo da teoria dos princiacutepios formadores para as proacuteprias ideias Segundo essa teoria conhecida como Protologia Platocircnica29 as ideias as formas puras do mundo inteligiacutevel nasceriam do encontro e da uniatildeo do limite identificado com o Uno e do ilimite identificado com o muacuteltiplo infinito (Filebo 16d-e 23d-26d) Limite e ilimite satildeo tomados como princiacutepios absolutos poreacutem geradores das ideias apenas quando relativizados um pelo outro

Guardadas as respectivas diferenccedilas tanto em Platatildeo como nos atomistas fica estabelecida uma equivalecircncia entre ser e natildeo-ser Essa negaccedilatildeo do ser eacute concebida como o Outro-do-ser (oposto ao ser a sua alteridade) O muacuteltiplo eacute na sua essecircncia uacuteltima o composto formado pelo ser e pelo natildeo-ser que como vimos acima eacute entendido como vazio pelos atomistas A partir desse ponto de vista a natureza moacutevel apresenta-se como um tipo de extensatildeo discreta fundada em um dualismo ontoloacutegico no qual encontramos o mesmo (a unidade o limite a identidade o aacutetomo o ser) e o outro (a diferenccedila a alteridade o ilimite o vazio o natildeo-ser)

Em suma o movimento soacute pode ser assumido na medida em que o muacuteltiplo puder ser concebido como o composto formado pelo ser e pelo outro do ser ambos conectados pela relaccedilatildeo de vizinhanccedila Essa vizinhanccedila eacute definida como uma equivalecircncia ontoloacutegica entre o vazio (nadameacuteden) ao lado do ser o que garantiria a separabilidade atocircmica (divisibilidade finita) sem a qual o composto natildeo seria concebiacutevel Do contraacuterio natildeo havendo o vazio soacute haveria o ser-uno unidade simples homogecircnea indiferenciada e tambeacutem imoacutevel jaacute que sempre plena Nesse caso nenhuma vizinhanccedila poderia ser constatada ou afirmada uma vez que a vizinhanccedila pressupotildee a dualidade de elementos O movimento estaria necessariamente vinculado ao dualismo ontoloacutegico e excluiacutedo do monismo pois neste natildeo haveria lugar para a alteridade ou vizinhanccedila

Na medida em que o ser e o vazio satildeo considerados conceitos fundantes no atomismo antigo a relaccedilatildeo de vizinhanccedila fica estabelecida nessa diferenciaccedilatildeo originaacuteria Assim o vazio (o nada) se coloca imediatamente em uma relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o ser no exato momento em que eacute compreendido como a sua radical alteridade E paradoxalmente eacute somente nesse sentido que o vazio eacute a saber na medida mesma em que ele natildeo eacute pleno E a reciacuteproca tambeacutem eacute

Platatildeo Releitura da metafiacutesica dos grandes diaacutelogos agrave luz das ldquoDoutrinas natildeo-escritasrdquo Satildeo Paulo Loyola 1991

29 Ibid p 164-165

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assim afirmada Como o vazio eacute o proacuteprio ser-outro porque instantaneamente se coloca nessa relaccedilatildeo de vizinhanccedila originaacuteria e imediata com o ser o ser tambeacutem se coloca nessa relaccedilatildeo primitiva com o vazio e somente neste sentido o ser eacute isto eacute na medida em que natildeo eacute vazio Platatildeo parece se aproximar dessa posiccedilatildeo atomista quando no Sofista introduz a seguinte indagaccedilatildeo atraveacutes das palavras do Estrangeiro de Eleia ldquoAssim pois estaacute claro que o movimento eacute realmente natildeo ser ainda que seja ser na medida em que participa do serrdquo E prossegue

Segue-se pois necessariamente que haacute um ser do natildeo-ser natildeo somente no movimento mas em toda a seacuterie dos gecircneros pois na verdade em todos eles a natureza do outro faz cada um deles outro que natildeo o ser e por isso mesmo natildeo-ser Assim universalmente por essa relaccedilatildeo chamaremos a todos corretamente natildeo-ser e ao contraacuterio pelo fato de eles participarem do ser diremos que satildeo seres30

Por esse ponto de vista o ser tambeacutem eacute definido em funccedilatildeo de sua relaccedilatildeo com o natildeo-ser que aqui alinhamos com o vazio como o outro do pleno Desse modo essa subordinaccedilatildeo do ser em relaccedilatildeo ao natildeo-ser (o vazio) ou do natildeo-ser (vazio) em relaccedilatildeo ao ser redunda em uma relaccedilatildeo de simetria entre ambos Como resultado temos que natildeo haacute um sentido uacutenico ou prioritaacuterio no condicionamento ontocausal entre ser e vazio A conclusatildeo eacute que ao assumir o movimento como um fato da natureza ou como princiacutepio o ser deixa de apresentar prioridade ontoloacutegica e causal

Nesse sentido ser e natildeo-ser perfazem de maneira equivalente as condiccedilotildees necessaacuterias para o movimento E ainda que a oposiccedilatildeo radical seja o elo constituinte desses princiacutepios originaacuterios ela natildeo implica a anulaccedilatildeo muacutetua de um pelo outro quando simultaneamente justapostos no pensamento assim como os eleatas tentaram mostrar atraveacutes dos paradoxos associados agrave divisibilidade e ao movimento31 Pelo contraacuterio a oposiccedilatildeo radical entre pleno e vazio entre ser e natildeo-ser eacute a proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade do movimento e por isso da efetividade do real Passa a valer por conseguinte nesse caso a necessidade da bicondicionalidade ontocausal entre ser e natildeo-ser radicada na relaccedilatildeo de vizinhanccedila entre ambos na constituiccedilatildeo do real como efetiva e cambiante multiplicidade

30PLATAtildeO Sofista (256e) opcit p 18931Cf ZENAtildeO In BORHEIM op cit p 60-63

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Sumariando as teses de Demoacutecrito e Leucipo temos que

1 O ser eacute quando colocado numa relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o vazio

2 O vazio eacute prefigura junto ao pleno como condiccedilatildeo necessaacuteria para o movimento

3 As teses anteriores se reduzem agrave maacutexima O natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser

4 uma Leitura De Kant a partir Das consiDeraccedilotildees anteriores

Passamos agora a considerar de que form eacute possiacutevel obter por meio do texto Ensaio para introduzir em filosofia o conceito de grandeza negativa32 um novo focirclego para a discussatildeo precedente33 Assim ao analisarmos esse texto manteremos sob nosso olhar aquela oposiccedilatildeo radical e fundamental acima apontada entre ser e natildeo-ser para tentar entendecirc-la atraveacutes daquilo que Kant chama ora de oposiccedilatildeo real ora de oposiccedilatildeo loacutegica sendo a primeira o tipo de oposiccedilatildeoequivalecircncia que relacionaremos com o atomismo antigo e a segunda aquilo que identificaremos como a oposiccedilatildeocontradiccedilatildeo denunciada nas formulaccedilotildees do eleatismo

No prefaacutecio ao Ensaio Kant deixa claro que a filosofia pode se utilizar das ciecircncias naturais e exatas seja copiando seus meacutetodos seja aplicando suas proposiccedilotildees deslocando-as para um novo contexto34 Procederaacute entatildeo com a tentativa de introduzir no seio da filosofia a ideia de grandeza negativa recurso jaacute empregado em matemaacutetica e fiacutesica

Eacute preciso distinguir o significado da proposiccedilatildeo grandeza negativa daquele outro de negaccedilatildeo de uma grandeza35 Uma grandeza negativa eacute a afirmaccedilatildeo de uma grandeza que simplesmente se opotildee a uma outra e que portanto revela uma positividade colocada numa relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo a outra positividade Jaacute na expressatildeo negaccedilatildeo de uma grandeza a grandeza eacute tomada

32 Com o tiacutetulo Versuch den Begriff der negativen Grossen in die Weltweisheit einzufuumlhren essa obra foi publicada pela primeira vez em 1763 Doravante iremos nos referir a ela de maneira abreviada apenas por Ensaio

33Ver nota 134No ano seguinte agrave publicaccedilatildeo do Ensaio essa posiccedilatildeo a respeito da filosofia e das ciecircncias eacute relativizada

com a publicaccedilatildeo de um texto intitulado ldquoInvestigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moralrdquo In KANT Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In______ Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 101-140

35 KANT Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia Ibid p 56

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isoladamente sem qualquer relaccedilatildeo com outra e por isso nenhuma oposiccedilatildeo eacute considerada a partir dela Aqui Kant toma para si a ideia de oposiccedilatildeo que estaacute na raiacutez do conceito de movimento ou de forccedila na Fiacutesica

Nesse sentido a negatividade da formulaccedilatildeo grandeza negativa deve ser interpretada como a projeccedilatildeo da oposiccedilatildeo sobre uma das grandezas polares da relaccedilatildeo que se estabelece entre forccedilas no mundo daiacute a expressatildeo oposiccedilatildeo real Tomemos o exemplo de Kant segundo o qual a atraccedilatildeo negativa que um corpo exerce sobre outro seraacute erroneamente interpretada se for compreendida como a negaccedilatildeo da forccedila de atraccedilatildeo por sua vez seraacute acertadamente compreendida se for tomada como uma grandeza negativa a forccedila de repulsatildeo36 Dessa maneira ela soacute poderaacute ser considerada como negativa se tomada relativamente a outra grandeza a atraccedilatildeo do contraacuterio ela eacute positiva Ou seja a negatividade ou a positividade das grandezas soacute pode ser estabelecida de maneira relativa isto eacute dada a situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre elas No exemplo considerado se o resultado da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre as duas forccedilas de atraccedilatildeo (positiva e negativa) for o repouso entatildeo temos a privaccedilatildeo (nihil privativum representabile) do movimento do objeto sobre o qual essas forccedilas estatildeo agindo e atraveacutes do qual elas puderam se colocar em confronto

Nesse caso eacute necessaacuterio natildeo tomar o efeito (repousoausecircncia do movimento do objeto) pela causa (o equiliacutebrio entre as forccedilas de atraccedilatildeo positiva e negativa) O resultado desse desacerto do juiacutezo seria confundir atraccedilatildeo negativa com ausecircncia de atraccedilatildeo ou a grandeza negativa com negaccedilatildeo de uma grandeza

Consideremos juntamente com Kant o conceito de grandeza negativa em geral para em seguida determinar os seus significados especiacuteficos Levando-se em conta que a chave para predicarmos as grandezas eacute a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo37 entatildeo temos que verificar as duas maneiras por meio das quais podemos considerar essa noccedilatildeo 1ordm como oposiccedilatildeo loacutegica 2ordm como oposiccedilatildeo real Assim Kant estabelece dois niacuteveis de anaacutelise para a apreciaccedilatildeo da noccedilatildeo de oposiccedilatildeo aquele da loacutegica e aquele da natureza Com isso ele pretende distinguir as respectivas funccedilotildees causais da oposiccedilatildeo considerada em cada um desses niacuteveis

Na oposiccedilatildeo loacutegica natildeo resta nenhuma consequecircncia da conexatildeo entre a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo nihil negativum irrepresentabile Dadas duas

36Ibid p 5637Ibid p 57

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afirmaccedilotildees absolutamente contraacuterias o pensamento se surpreende na situaccedilatildeo de natildeo poder prosseguir com seu trabalho obediente como eacute aos princiacutepios de contradiccedilatildeo e terceiro excluiacutedo (tertium non datur) Nesse sentido a contradiccedilatildeo que eacute como entendemos a oposiccedilatildeo loacutegica gera um tipo de vacuidade do pensamento um nada impensaacutevel um absoluto vazio que eacute como aquele nada asseverado por Parmecircnides ldquoNecessaacuterio eacute dizer e pensar que soacute o ser eacute pois o ser eacute e o nada ao contraacuterio nada eacute []rdquo38

Se pensarmos nos estados de movimento e de repouso referidos ao mesmo objeto e abstraindo-se o tempo encontraremos na base mais elementar desses estados contraacuterios os conceitos de ser e de natildeo-ser tidos como opostos no sentido exclusivamente loacutegico (contraacuterios) obtendo como resultado a contradiccedilatildeo e a impossibilidade do pensamento Nesse caso movimento e repouso deixaram de ser grandezas ou estados de coisas e se tornaram puras abstraccedilotildees Logo o natildeo-ser da negatividade natildeo apresenta nenhum tipo de positividade Isto eacute o natildeo-ser eacute absolutamente negativo e eacute tomado como logicamente dependente da positividade do ser como sua pura negaccedilatildeo Por sua vez o ser eacute tomado como conceito originaacuterio e absoluto cuja positividade independe de qualquer relaccedilatildeo apresentando assim precedecircncia loacutegica e exclusividade ontoloacutegica sobre o natildeo-ser

Por outro lado natildeo eacute possiacutevel afirmar que o ser ou o natildeo-ser possuam qualquer prevalecircncia um sobre o outro qualquer antecedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica quando considerados como grandezas no mundo

O movimento eacute tomado como algo positivo na medida em que eacute a efetivaccedilatildeo de um estado de coisas ldquoxrdquo no mundo por sua vez o repouso eacute tambeacutem uma positividade na medida em que significa um outro estado de coisas ldquoyrdquo oposto a ldquoxrdquo A negatividade nessa oposiccedilatildeo recai arbitrariamente sobre ldquoxrdquo ou ldquoyrdquo por meio de uma proposiccedilatildeo que estabelece a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo A negatividade recairaacute sobre ldquoxrdquo ou sobre ldquoyrdquo de acordo com a forma assumida pela proposiccedilatildeo que iraacute fazer variar a negatividade (ou a positividade) em funccedilatildeo da finalidade enfaacutetica que se queira dar a ldquoxrdquo ou a ldquoyrdquo

Somente quando se diz que um mesmo corpo estaacute e natildeo estaacute a um soacute tempo e na mesma relaccedilatildeo em repouso ou em movimento eacute que essa vacuidade no pensar aparece

38ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν[]rdquo PARMENIDES fragmento B6 In BORHEIM op cit p 55

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Um corpo em movimento eacute algo um corpo que natildeo estaacute em movimento eacute tambeacutem algo (cogitabile) no entanto um corpo que ao mesmo tempo e justamente sob a mesma relaccedilatildeo estivesse e natildeo estivesse em movimento eacute absolutamente nada39

A expressatildeo a um soacute tempo significa que o corpo eacute colocado na situaccedilatildeo em que se abstrai a seacuterie contiacutenua do tempo Isso quer dizer que uma uacutenica porccedilatildeo elementar do tempo foi tomada e isolada das demais Todavia uma porccedilatildeo assim isolada do tempo tomada em sentido absoluto natildeo eacute tempo algum Uma vez que a seacuterie de tempo eacute contiacutenua ou se toma uma porccedilatildeo do tempo que por sua vez conteacutem em si uma nova seacuterie temporal infinita (nesse caso a parte eacute igual ao todo) ou natildeo se toma tempo algum Em outras palavras a expressatildeo a um soacute tempo natildeo tem aqui nenhum significado temporal positivo mas apenas negativo significando fora do tempo

Assim procedeu Parmecircnides ao abstrair o tempo para todas as formas proposicionais vaacutelidas reduzindo toda forma de pensamento a uma expressatildeo proposicional afirmativa atemporal onde a positividade eacute sempre absoluta e por isso possui prioridade loacutegica e ontoloacutegica sobre a negatividade Nesse caso toda oposiccedilatildeo eacute sempre contradiccedilatildeo

Jaacute na oposiccedilatildeo real encontramos uma forma de pensamento que natildeo subtrai a seacuterie do tempo Nesse caso a oposiccedilatildeo real apresenta uma estrutura a qual pode ser esquematicamente apresentada como (+A ndashA = B) onde (B = 0) ou (B ne 0) e onde os elementos integrantes dessa operaccedilatildeo (+A) e (ndashA) natildeo deixam de ser pela atribuiccedilatildeo de uma negatividade meramente relativa mesmo quando (B=0) sendo ambos justamente a causa eficiente desse privatio

O (B = 0) como privatio natildeo eacute mera nulidade devendo ser tratado como a realizaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo resultante de um encontro entre potecircncias equivalentes mas opostas uma a outra Aqui natildeo existe contradiccedilatildeo em dizer que se trata de potecircncias equivalentes-opostas pois nesse caso tanto a negatividade como a positividade satildeo relativas e natildeo absolutas Natildeo existe autonomia ontoloacutegica da positividade nem da negatividade Trata-se aqui de predicados e natildeo de seres

Por sua vez o estado de coisas representado por (B = 0) esta efetividade eacute novamente um natildeo-ser poreacutem apenas em relaccedilatildeo a outro estado de coisas a que ele se opotildee Assim este (0) eacute um algo que eacute predicado a algo inserido na 39 Ibidem p 58 grifos nossos

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seacuterie contiacutenua do tempo e que eacute designado como privaccedilatildeo Apenas quando se abstrai da seacuterie do tempo eacute que x = 0 representa um nada absoluto Nesse caso o que eacute afirmado eacute inteira e instantaneamente anulado pelo que eacute negado e vice-versa pois a positividade e a negatividade do que eacute afirmado e negado se referem aos proacuteprios seres

Jaacute na oposiccedilatildeo real ainda que duas condiccedilotildees contraacuterias atuem simultaneamente sobre o mesmo objeto a contradiccedilatildeo (vacuidade do pensamento) natildeo eacute o resultado porque a expressatildeo simultaneamente (ausecircncia de sucessatildeo temporal) eacute aqui relativizada Se pensarmos na destruiccedilatildeo de um corpo esse movimento seraacute oposto ao de sua criaccedilatildeo No entanto tais movimentos natildeo satildeo contraditoacuterios um ao outro quando pensados juntos Natildeo inferimos uma vacuidade no pensamento da conjunccedilatildeo simultacircnea desses dois eventos desde que sejam pensados como eventos e portanto diluiacutedos no contiacutenuo temporal A contiacutenua transformaccedilatildeo (movimento) dos corpos vivos por exemplo tem por base um confronto entre a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo celular atuando nos organismos vivos quer dizer um estado de coisas manifestamente expresso como forccedilas antagocircnicas simultaneamente presentes no mesmo objeto No niacutevel celular essa simultaneidade eacute relativizada enquanto algumas ceacutelulas satildeo criadas outras satildeo destruiacutedas Essa relativizaccedilatildeo da simultaneidade natildeo exclui um efetivo antagonismo seja em que niacutevel for onde a positividade ou a negatividade satildeo arbitrariamente atribuiacutedas a um dos polos da oposiccedilatildeo natildeo havendo qualquer precedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica de um polo sobre o outro A geraccedilatildeo eacute negativa se a destruiccedilatildeo for tomada como positiva e vice-versa

Na dinacircmica uma forccedila motriz eacute dita positiva somente quando oposta a outra dita negativa a resistecircncia Ainda que opostas uma a outra forccedilas com vetores contraacuterios desse encontro natildeo se infere um absurdo como uma contradiccedilatildeo mas um estado de coisas real de oposiccedilatildeo de contrariedade O resultado pode ser tanto o repouso no caso das forccedilas opostas possuiacuterem a mesma potecircncia (serem equivalentes) ou o movimento que apresenta o mesmo vetor de uma das forccedilas conflitantes Em ambos os casos o resultante dessa oposiccedilatildeo eacute algo que pode ser efetivamente afirmado sobre o mundo e natildeo um vazio ou um nada irrepresentaacutevel Ainda que nesse caso o repouso possa ser representado por (B = 0) este (B = 0) natildeo deve ser entendido como uma indeterminaccedilatildeo mas sim como privaccedilatildeo Logo percebemos que a contradiccedilatildeo natildeo eacute aplicaacutevel a estados de coisas imersos na seacuterie contiacutenua do tempo

Tanto na oposiccedilatildeo loacutegica como na oposiccedilatildeo real o efeito pode ser representado como (=0) ou como vazio ou ainda como nada Entretanto

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o sentido desse vazio ou desse nada deve ser relativizado para cada situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo Na oposiccedilatildeo loacutegica significa contradiccedilatildeo (nihil negativum irrepresentabile) ou ausecircncia da possibilidade do pensamento A nosso ver este seria o caso do significado do natildeo-ser empregado por Parmecircnides onde localizamos a supressatildeo instantacircnea (anulaccedilatildeo ausecircncia absoluta) dos opostos Jaacute o nada ou o vazio da oposiccedilatildeo real eacute absolutamente representaacutevel Aqui eacute possiacutevel embora de maneira arbitraacuteria estabelecer os valores positivo e negativo dos elementos que se colocam na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo

5 concLusatildeo

Apoacutes oferecer alguns exemplos para o conceito de grandeza negativa na segunda seccedilatildeo do Ensaio Kant conduz suas consideraccedilotildees para o campo da filosofia que para ele deve se ocupar prioritariamente da metafiacutesica e cujo meacutetodo analiacutetico apresentado por ele em outro de seus textos desse periacuteodo40 jaacute fornece indiacutecios dos passos que daraacute no sentido de sua futura proposta mais amadurecida para uma teoria criacutetico-transcendental

Assim alerta Kant no Ensaio entendemos facilmente que algo natildeo seja se lhe carece a razatildeo positiva para sua existecircncia todavia temos dificuldades para entender como algo que efetivamente eacute deixa de ser41 isto eacute temos dificuldade em compreender o correto sentido de privaccedilatildeo O esclarecimento acerca dessa questatildeo eacute fundamental jaacute que o vir-a-ser isto eacute o deixar de ser como privaccedilatildeo eacute a maneira mais fundamental de entender o conceito de movimento Essa dificuldade em reconhecer o correto sentido de privaccedilatildeo eacute o que algumas vezes nos compele a confundi-la com a contradiccedilatildeo e por isso obter como resultado a negaccedilatildeo do movimento compreendendo-o erroneamente como gerador do absurdo

Assim sugere Kant se represento o Sol em minha imaginaccedilatildeo e se no instante seguinte deixo de ter presente essa representaccedilatildeo em minha mente isso natildeo significa que meu pensamento sobre o Sol tenha simplesmente desaparecido e se tornado um puro nada aniquilando-se na vacuidade de uma contradiccedilatildeo entre ser e natildeo-ser mas sim porque a representaccedilatildeo do sol foi suprimida por outra sorte qualquer de ideia que se impocircs com a intensidade

40KANT I Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In ______ Escritos Preacute-criacuteticos Trad Jair Barboza [et al] Satildeo Paulo UNESP 2005 p 116-117

41KANT opcit p 79

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suficiente para substituiacute-la parcial ou inteiramente segundo uma determinada relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo contingente ao espiacuterito

A simples negaccedilatildeo da representaccedilatildeo considerando que ela simplesmente anulou a si mesma deixando assim de existir nos remete para a situaccedilatildeo de um nada irrepresentaacutevel um impensaacutevel natildeo-ser como em Parmecircnides Jaacute na privaccedilatildeo existe uma interaccedilatildeo entre forccedilas opostas a qual natildeo aparece como contradiccedilatildeo uma vez que princiacutepios afirmativos opostos (representaccedilotildees opostas) coincidiriam sob a mesma forma do pensamento anulando assim o efeito de uma delas ou de ambas O resultado eacute a afirmaccedilatildeo de um ser que eacute tambeacutem natildeo-ser jaacute que a negatividade do natildeo-ser da representaccedilatildeo aqui eacute simplesmente relativa dada pela situccedilatildeo de oposiccedilatildeo A representaccedilatildeo arbitrariamente tomada como negativa natildeo eacute menos ser que aquela tomada como positiva A supressatildeo de uma pela outra natildeo se mostra como contradiccedilatildeo mas como a privaccedilatildeo

Eacute concebiacutevel assim pensar legitimamente o natildeo-ser da representaccedilatildeo desde que seja considerado como privaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel se falar com verdade em princiacutepios opostos e equivalentes e que produzem em seu encontro a afirmaccedilatildeo de algo como um nada Dessa maneira seja a1

a afirmaccedilatildeo (ser) de um determinado estado de coisas no mundo (ou de uma representaccedilatildeo de algo no mundo) e a2 o seu equivalente oposto (o natildeo-ser) temos que

a1 ndash a2 = 0

Arbitrariamente tomamos a2 como a representaccedilatildeo negativa contudo a negatividade aqui revela apenas a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre a1 e a2 e natildeo uma situaccedilatildeo absoluta de a2 Como grandezas equivalentes que se opotildeem o resultado (= 0) revela uma oposiccedilatildeo real natildeo uma contradiccedilatildeo Nem a1

e a2 podem ser ditas potecircncias contraditoacuterias nessa relaccedilatildeo visto que este (= 0) eacute a afirmaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo de um ser que eacute tambeacutem um natildeo-ser assim como o repouso eacute igualmente uma forma de natildeo-ser do movimento O pensamento que leva em conta os opostos eacute pois uma possibilidade real e mesmo necessaacuteria para a consideraccedilatildeo do movimento

Segundo a foacutermula de Demoacutecrito o natildeo-ser natildeo eacute mais nem menos que o ser Ora soacute podemos entender essa afirmaccedilatildeo de duas maneiras convergentes ou como afirmaccedilatildeo do mesmo estatuto ontoloacutegico para o ser e para o natildeo-ser ou como atribuiccedilatildeo da mesma funccedilatildeo causal (material) para ambos Nos dois casos o ser soacute eacute na presenccedila ou com a premissa do natildeo-ser e vice-versa E assim o natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser Estaacute claro que esse princiacutepio natildeo

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se ajusta sem qualquer intervenccedilatildeo agraves formulaccedilotildees de Parmecircnides Por esse desacordo eacute possiacutevel identificar no antigo atomismo uma negatividade do ser que natildeo engendra a vacuidade do pensamento Pelo contraacuterio o movimento do pensamento soacute eacute possiacutevel por meio dessa oposiccedilatildeo fundamental Em Platatildeo esse movimento do pensamento ganha o nome de dialeacutetica

Concluiremos este estudo com a seguinte afirmaccedilatildeo de Kant ldquoTodos os fundamentos reais do universo quando se somam todos que satildeo consonantes e se subtraem uns dos outros os que se opotildeem entre si datildeo um resultado igual a zerordquo42 Esse zero significa a afirmaccedilatildeo da efetividade do mundo Esse zero representa um repouso que nem por isso deixa de ser dinacircmico Assim esperamos ter aproximado o conteuacutedo do Ensaio com o pensamento daqueles filoacutesofos da natureza que se colocavam conformes a um princiacutepio universal sem negar a unidade do pensamento e do movimento do mundo De acordo com eles o mundo deve se ordenar segundo esses princiacutepios mutuamente opostos ser e natildeo-ser os quais estatildeo na origem desse repouso dinacircmico na exata medida da efetivaccedilatildeo de seus encontros

SANTOS Eberth Eleuterio dos Leucippus Democritus and Kant a reflection on the equivalence between being and non-being TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 38 n 2 p 71-94 MaioAgo 2015

ABSTRACT Initially we present the theory of Democritus and Leucippus whereby being is not more than the not-being (non-being) in contrast to Eleatic ideas about the necessary inexistence of the not-being This discussion leads us to the opposition between the whole (full) and the empty which will then be transposed into the opposition between being and nothingness (or not-being) Thus the opposition between whole and the empty is an opposition that moves to being and not-being Finally we will make an assessment of the Kantian pre-critical essay Attempt to introduce the concept of negative magnitude into philosophy in which we recognize a kind of opposition that as we believe would be interpreted as being in agreement with the position of Democritus and Leucippus regarding the ontological status of the not-being as an equivalent principle to the being understood here not as a mutual contradiction in a purely logical sense

KEYWORDS ancient atomism Eleatism ontology

referecircncias

ARISTOacuteTELES Da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo seguido de convite agrave filosofia Traduccedilatildeo de Renata Maria Pereira Cordeiro Satildeo Paulo Landy 2001

42 Ibid p 89

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______ Fiacutesica I ndash II Traduccedilatildeo de Lucas Angioni Campinas Editora da UNICAMP 2009

______ Metafiacutesica texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterio de Giovanni Reale Traduccedilatildeo de Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2005 3v

BARNES J Filoacutesofos preacute-socraacuteticos Traduccedilatildeo de Juacutelio Fischer 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

BORNHEIM G Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Cultrix 2000

_______ O que eacute metafiacutesica Traduccedilatildeo de Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

HEIDEGGER M Die Zeit des Weltbildes (1938) In ______ Gesamtausgabe Frankfurt Klostermann 87-88 (1977) Bd 5 Holzwege

KANT I Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia In ______ Escritos preacute-criacuteticos Traduccedilatildeo de Viniacutecius de Figueiredo e Jair Barbosa Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 51-99

______ Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur neacutegative Traduccedilatildeo de Roger Kempf 2 eacuted Paris J Vrin 1972 (Bibliothegraveque de textes philosophiques)

______ Versuch den Begriff der negative Grossen in die Weltweisheit einzufuhres Neueste Aufl Graz Andreas Leikam 1797 Disponiacutevel em lt httpsarchiveorgstreamversuchdenbegri00kantgoogpagen43mode2upgt Acesso em 22 dez 2013

PARMENIDES Fragmentos sobre a natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

______ Da natureza Traduccedilatildeo de Jose Gabriel Trindade Santos (modificada pelo tradutor) Satildeo Paulo Loyola 2002

PLATAtildeO Filebo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ O sofista Traduccedilatildeo de Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Abril Cultural 1972

______ Parmecircnides Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos v VIII Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ Teeteto Traduccedilatildeo de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri Lisboa Calouste Gulbenkian 2010

______ Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Rodolfo Lopes Coimbra Universidade de Coimbra 201143

Recebido Received 07092014Aprovado Approved 10012015

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Assim alertados e acautelados prossigamos dando iniacutecio a uma raacutepida incursatildeo entre duas posiccedilotildees que senatildeo opostas entre si satildeo pelo menos divergentes quais sejam o monismo ontoloacutegico do eleatismo e o pluralismo atomista de Demoacutecrito e Leucipo para em seguida averiguarmos em que medida eacute possiacutevel projetar sobre essas duas posiccedilotildees as luzes (lumieacuteres) de uma pontual reflexatildeo kantiana sobre a metafiacutesica e sobre a loacutegica em geral E ainda que o resultado dessa tentativa natildeo seja de todo proveitoso tambeacutem natildeo eacute necessaacuterio que seja completamente inuacutetil uma vez que obedecendo ao dito socraacutetico natildeo permanecemos no mesmo estado de ignoracircncia se tomamos consciecircncia dele

1 o atomismo De Leucipo e Demoacutecrito

Partindo de consideraccedilotildees sobre a relatividade das qualidades sensiacuteveis do mundo fenomecircnico mas rumando para muito aleacutem Leucipo e Demoacutecrito afirmam em uniacutessono a equivalecircncia ontoloacutegica e causal do aacutetomo e do vazio como princiacutepios universais e invisiacuteveis ao mesmo tempo formais e materiais para a inteligibilidade da natureza em geral da phyacutesis buscando obter por meio desses princiacutepios uma compreensatildeo da essecircncia do mundo natural Isto eacute mestre e disciacutepulo respectivamente buscam uma compreensatildeo da natureza que natildeo se reduza a uma mera convenccedilatildeo dos homens como nos diz Demoacutecrito ldquo[] conforme a convenccedilatildeo dos homens existem a cor o doce o amargo em verdade contudo soacute existem os aacutetomos e o vazio []rdquo3

Afirmados como princiacutepios materiais do mundo fenomecircnico o aacutetomo e o vazio devem ser tambeacutem apresentados em um niacutevel puramente formal isto eacute como conceitos impostos pela razatildeo ou pelo puro pensamento como quando Leucipo ressalta ldquoNenhuma coisa se engendra ao acaso mas todas (a partir) de razatildeo e por necessidaderdquo4 E como conceitos elementares e necessaacuterios para o engendramento das coisas e do mundo aacutetomo e vazio devem ser intercambiaacuteveis para as tradicionais formulaccedilotildees ser e natildeo-ser respectivamente o que nos conduz para a seguinte passagem de Simpliacutecio ldquoTambeacutem sustentava [Leucipo] que o ser existe tanto quanto o natildeo-ser e que ambos satildeo causadores

3 DEMOacuteCRITO fragmento B125 in BORNHEIM G Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Cultrix 2000 p 112

4 LEUCIPO fragmento B2 (AEacuteCIO I 24 4) In Preacute-Socraacuteticos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 303

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das coisas que vecircm a serrdquo5 E sobre Demoacutecrito Simpliacutecio ainda nos informa ldquoDa mesma forma o companheiro de [Leucipo] Demoacutecrito de Abdera propocircs o pleno e o vazio como princiacutepios originaacuterios o primeiro denominou ser e o segundo natildeo-serrdquo6 Unindo esses relatos aos de outros doxoacutegrafos torna-se expliacutecito o estatuto ontoloacutegico conferido ao aacutetomo e ao vazio nos pensamentos que chegaram ateacute noacutes de Demoacutecrito e Leucipo

No que diz respeito agrave explicitaccedilatildeo da equivalecircncia causal decorrente da equivalecircncia ontoloacutegica e sumariada pela maacutexima o ser natildeo tem mais realidade que o natildeo-ser podemos acrescentar ainda o seguinte testemunho de Aristoacuteteles

Leucipo e seu seguidor Demoacutecrito afirmam como elementos o cheio e o vazio e chamam um de ser e o outro de natildeo-ser mais precisamente chamam o cheio e o soacutelido de ser e o vazio de natildeo-ser e por isso sustentam que o ser natildeo tem mais realidade do que o natildeo-ser pois o cheio natildeo tem mais realidade que o vazio E afirmam esses elementos como a causa material dos seres7

Eacute bastante notoacuterio o grande interesse do Estagirita pelas argumentaccedilotildees de seus predecessores tomando-as quase sempre como concepccedilotildees a serem assimiladas ou refutadas por suas proacuteprias formulaccedilotildees e princiacutepios Assim a polecircmica com os atomistas com os eleatas com os dialeacuteticos (os platocircnicos) e com tantos outros atravessa todo o corpus aristoteacutelico acarretando em uma superabundacircncia de relatos e testemunhos tendo o primeiro livro da Metafiacutesica se concentrado intensamente nessa tarefa Mas tambeacutem na Fiacutesica assim como em outros escritos observamos uma igual riqueza de apontamentos os quais revelam o quatildeo tributaacuterio era Aristoacuteteles de seus antecessores especialmente no que dizia respeito agraves questotildees concernentes agraves concepccedilotildees fiacutesicas e metafiacutesicas que segundo ele deveriam versar acima de tudo sobre os primeiros princiacutepios e causas isto eacute sobre a essecircncia sobre o ser e o sobre o movimento

Na Metafiacutesica essas ponderaccedilotildees sobre os primeiros princiacutepios e causas levam Aristoacuteteles a reconsiderar o legado filosoacutefico recebido dos mais antigos principalmente por meio da afirmaccedilatildeo da centralidade do conceito substacircncia Atraveacutes desse conceito acredita ser capaz de reconfigurar e reconciliar os

5 SIMPLIacuteCIO 284-15 in BARNES J Filoacutesofos preacute-socraacuteticos 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p 286 grifos nossos

6 Ibid 2815 -27 p 292 grifos nossos7 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2005 p 27

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anteriores pontos de vista ontoloacutegicos e causais em seus aspectos formais e materiais ldquoMesmo sendo dito em tantos significados eacute evidente que o primeiro significado do ser eacute a essecircncia que indica a substacircnciardquo8 Na Fiacutesica esse esforccedilo de reconfiguraccedilatildeo e reconciliamento realizado sobre o pensamento noeacutetico e fenomecircnico tambeacutem gravitaraacute em torno do conceito de movimento

Ora eacute necessaacuterio que o princiacutepio seja um ou mais de um e se for um eacute necessaacuterio que seja ou imoacutevel como afirma Parmecircnides e Melisso ou suscetiacutevel de movimento como afirmam os estudiosos da natureza uns afirmando que o primeiro princiacutepio eacute ar outros que eacute aacutegua mas se os princiacutepios forem mais de um eacute necessaacuterio que sejam em nuacutemero limitado ou ilimitado e se forem limitados poreacutem mais de um eacute necessaacuterio que sejam dois ou trecircs quatro ou outro nuacutemero e se forem ilimitados eacute necessaacuterio que sejam ou da maneira como afirma Demoacutecrito ndash um uacutenico gecircnero mas diferenciados em figura ndash ou diferenciados em forma ou ateacute mesmo contraacuterios9

Como podemos perceber nessa passagem Aristoacuteteles coloca de um lado os monistas e imobilistas nomeando os eleatas Parmecircnides e Melisso e no lado oposto os defensores de um princiacutepio suscetiacutevel de movimento Entre estes Demoacutecrito eacute alinhado junto aos que afirmam um nuacutemero infinito de elementos de um uacutenico gecircnero (o aacutetomo) Poreacutem eacute ainda preciso conciliar essa pluralidade infinita de figuras de um uacutenico gecircnero com o movimento mencionado aqui por Aristoacuteteles

O movimento a que Aristoacuteteles se refere na passagem acima possui o sentido especiacutefico de deslocamento e natildeo o de alteraccedilatildeo Sendo o aacutetomo apenas suscetiacutevel de movimento natildeo pode conter o movimento como propriedade intriacutenseca o que significa que o aacutetomo natildeo pode se alterar mudar de aspecto se tornar diferente do que eacute pois do contraacuterio nada restaria de permanente de soacutelido de indivisiacutevel A proacutepria mudanccedila no niacutevel da multiplicidade sensiacutevel (o vir-a-ser) ficaria assim comprometida jaacute que em princiacutepio natildeo pode deixar de ser (alterar-se) aquilo que natildeo eacute em algum niacutevel elementar

Em outras palavras o aacutetomo natildeo pode ser considerado em si mesmo a fonte do movimento pois se assim o fosse tambeacutem ele deveria acomodar em si alteraccedilotildees gerando o paradoxo de ter de ser e natildeo-ser simultaneamente Falta grave ao princiacutepio de identidade e consequentemente ao princiacutepio de

8 Ibid p 287 grifos nossos9 ARISTOacuteTELES Fiacutesica I ndash II Campinas Editora da UNICAMP 2009 p 24 grifos nossos

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contradiccedilatildeo jaacute desvendada pelo eleatismo a partir de uma anaacutelise puramente noeacutetica Assim o aacutetomo eacute tomado como princiacutepio de permanecircncia Em sua definiccedilatildeo encontramos as propriedades de solidez e indestrutibilidade de perenidade e inalterabilidade Nunca tendo sido gerado o aacutetomo eacute definido como sempre idecircntico a si mesmo princiacutepio material indivisiacutevel da natureza

Diferentemente dos aacutetomos os compostos ndash os corpos (soacutemata) e os mundos (koacutesmoi) ndash apresentam a inconstacircncia que lhes eacute proacutepria sendo passiacuteveis de geraccedilatildeo e destruiccedilatildeo Nos compostos o movimento se apresenta portanto como uma propriedade manifesta Possuindo os compostos em sua base formal e material os aacutetomos (inalteraacuteveis natildeo gerados e indestrutiacuteveis) como princiacutepio de permanecircncia entatildeo o princiacutepio do movimento (geraccedilatildeo alteraccedilatildeo corrupccedilatildeo) manifesto nesses compostos deve ser buscado em outra parte isto eacute em outro elemento

E tomando o composto como o ponto de partida para a inteligibilidade da natureza os atomistas se depararam com a necessidade formal de um princiacutepio distinto do proacuteprio aacutetomo o qual permitisse a dita suscetibilidade ao movimento Em suma ao passar do niacutevel fenomecircnico para o noeacutetico os atomistas buscam legitimar a natureza mutante pelos seus princiacutepios formais e materiais Uma vez que o ser (o aacutetomo) tomado em si mesmo natildeo pode servir como princiacutepio de movimento dadas as conclusotildees sobre o plenouno jaacute assentadas desde Parmecircnides e que foram em parte assimiladas pelos atomistas caberia entatildeo atribuir a outro princiacutepio essa funccedilatildeo Como nos transmite Aristoacuteteles

Afirmam que o movimento se daacute graccedilas ao vazio com efeito segundo estes o movimento dos corpos naturais e elementares eacute um movimento local porque o movimento devido ao vazio eacute um transporte como em um lugar quanto aos outros movimentos nenhum pertence pensam eles aos corpos elementares mas somente agravequeles que deles satildeo formados dizem que o crescimento o perecimento e a alteraccedilatildeo provecircm da reuniatildeo e da separaccedilatildeo dos corpos insecaacuteveis10

Assim por meio do vazio os atomistas fornecem uma resposta ao imobilismo eleata O vazio eacute o meio comunicante que possibilita o ldquotransporterdquo Eacute por meio dele que os aacutetomos em nuacutemero infinito se deslocam se associam e se separam ldquoDemoacutecrito tinha a opiniatildeo de que os aacutetomos se movem

10 ARISTOacuteTELES Fiacutesica op cit VIII 9 265b grifos nossos

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eternamente em um espaccedilo vaziordquo11 Sem o vazio os aacutetomos permaneceriam estaacuteticos imoacuteveis e nenhuma geraccedilatildeo ou corrupccedilatildeo nenhum nascimento ou morte seria constataacutevel no acircmbito do composto E se natildeo houvesse nenhum princiacutepio de movimento nenhum vazio tambeacutem o ser (o aacutetomo) natildeo poderia ser dito no plural pois natildeo haveria nada distinto (o natildeo-ser) que permitisse a separaccedilatildeo e portanto o avizinhamento do ser consigo mesmo Tudo seria entatildeo apenas pleno uno e imoacutevel

O vazio se constitui por conseguinte como a soluccedilatildeo do antigo atomismo para o vir-a-ser Todavia com Leucipo e Demoacutecrito esta soluccedilatildeo eacute ainda um tanto insatisfatoacuteria pois eacute somente com Epicuro no final do seacuteculo IV que o peso eacute informado como uma das propriedades presentes no aacutetomo graccedilas ao qual se explicaria sua queda (deslocamento) no vazio Mas essa queda seria homogecircnea e por isso nem criativa nem destrutiva se o aacutetomo natildeo possuiacutesse sutis diferenciaccedilotildees No entanto na medida em que satildeo tambeacutem supostos infinitos em nuacutemero e em figura torna-se factiacutevel justificar a sua queda no vazio como natildeo regular mas com choques e voacutertices (clinamen) acarretando em junccedilotildees e separaccedilotildees atocircmicas Em resumo o aacutetomo apresenta um movimento por deslocamento e natildeo por alteraccedilatildeo natildeo podendo assim ser considerado o princiacutepio do movimento que apenas parcialmente se justifica pela postulaccedilatildeo do vazio como seu princiacutepio

Desse modo aacutetomo e vazio se equivalem como princiacutepios formais e materiais para a existecircncia do composto ainda que se oponham como princiacutepios de permanecircncia e de movimento respectivamente Os compostos se tornam mais densos (e pesados) na medida em que menos vazio neles houver em relaccedilatildeo aos aacutetomos na proporccedilatildeo de suas composiccedilotildees Ao mesmo tempo aacutetomo e vazio permitem compreender o movimento em sentido amplo como a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo do composto Esse movimento deve ser entendido entatildeo como a associaccedilatildeo e a dispersatildeo dos aacutetomos tornada possiacutevel pelo vazio

2 o eLeatismo e a revisatildeo pLatocircnica

Como dissemos o posicionamento dos atomistas em relaccedilatildeo ao movimento surgia como uma resposta agraves conclusotildees do imobilismo eleata Esse imobilismo por sua vez seguia como consequecircncia necessaacuteria do monismo ontoloacutegico ali presente no qual apenas o ser eacute dito com verdade Isto

11 HIPPOLOcircNIO I 13 2 in BORNHEIM op cit p 126

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eacute apenas o ser eacute dito com necessidade enquanto sobre o natildeo-ser nada pode ser dito com verdade Assim o pensamento verdadeiro porque necessaacuterio soacute pode se projetar sobre o ser que por sua vez eacute pleno e uno Atraveacutes do poema de Parmecircnides isto se torna laconicamente expliacutecito ldquoNecessaacuterio eacute o dizer e o pensar que o ente eacute pois eacute ser e nada natildeo eacute []rdquo12 e tambeacutem ldquoo outro que natildeo eacute que tem de natildeo ser esse te indico ser caminho em tudo ignotordquo13 E tendo comparado a doutrina de Parmecircnides aos ensinamentos de Xenoacutefanes e Melisso respectivamente seu mestre e disciacutepulo Aristoacuteteles conclui pelo seguinte ldquoParmecircnides ao contraacuterio [de Xenoacutefanes e Melisso] parece raciocinar com mais perspicaacutecia Por considerar que aleacutem do ser natildeo existe o natildeo-ser necessariamente deve crer que o ser eacute um e nada maisrdquo14

Em Parmecircnides o ser eacute a unidade fundamental de tudo o que pode ser dito com verdade Aqui encontramos o pensamento verdadeiro loacutegico-racional identificado agrave sua unidade pura homogecircnea indivisiacutevel e imoacutevel Em oposiccedilatildeo a isso Parmecircnides detectava o erro a falsidade o desvio da razatildeo que assumia a forma do natildeo-ser A afirmaccedilatildeo do natildeo-ser soacute poderia advir de um desvio do caminho da verdade

Nos versos de seu poema particularmente no fragmento B8 Parmecircnides nos revela o ser segundo essa concepccedilatildeo No primeiro canto O caminho da verdade fica estabelecida a identidade entre o ser e o pensamento em sentido estrito (necessaacuterio) a saber aquele pensamento acompanhado da verdade Isso significa que a realidade de direito estaacute fundada em um uacutenico princiacutepio o ser E aqui o conceito de realidade se confunde imediatamente com o de verdade loacutegica isto eacute aquilo que pode ser dito legitimamente ou sem contradiccedilatildeo E o ser se configura como o princiacutepio unicamente noeacutetico ao mesmo tempo loacutegico ontoloacutegico e epistecircmico sobre uma natureza fundamentalmente imoacutevel e apenas por isso consistente

Realidade verdade e permanecircncia se tornam conceitos congecircneres nessa particular anaacutelise ontoloacutegica da natureza O Ser - ato imediato do pensamento - jamais foi gerado jamais se altera jamais se corrompe jamais entra em conflito consigo mesmo Do contraacuterio perseguiriacuteamos o caminho da opiniatildeo

12ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν []rdquo PARMENIDES fragmento B6 (SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 117 2) In Preacute-Socraacuteticos opcit p 148

13ldquoἡ δ΄ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόνrdquo PARMENIDES Da Natureza Satildeo Paulo Loyola 2002 fragmento B2 (PROCLO Comentaacuterio ao Timeu I 345 18)

14ARISTOacuteTELES Metafiacutesica opcit p 33 grifos nossos

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no qual ser e natildeo-ser seriam reputados o mesmo ou equivalentes Contudo no caminho da verdade o pensamento (loacutegico-racional) natildeo pode admitir em seu seio a negaccedilatildeo do ser (o natildeo-ser) o outro do ser essa radical alteridade como algo que se coloca fora do ser e por isso se separa e se opotildee a ele No caminho da verdade nada pode ser dito ou pensado para aleacutem do ser Afirmar o ser para aleacutem do ser isto eacute o ser-outro ou o natildeo-ser eacute simplesmente natildeo reconhecer essa unicidade fundamental e por isso se colocar no caminho do erro da opiniatildeo falsa do engano sobre a essecircncia da natureza

Decorrecircncia dessa unicidade fundamental eacute o imobilismo da natureza no niacutevel noeacutetico A permanecircncia do ser natildeo significa outra coisa senatildeo sua incorruptibilidade em um niacutevel muito fundamental o do puro pensamento implicando a impossibilidade de uma justificaccedilatildeo loacutegico-racional para o devir da natureza sensiacutevel Eis entatildeo que o ser eacute tomado como princiacutepio uacutenico fiacutesico e metafiacutesico simbolizaacutevel por ldquoPois pensar e ser eacute o mesmordquo15 enquanto o contraacuterio eacute descartado como impossiacutevel ldquoJamais se conseguiraacute provar que o natildeo-ser eacuterdquo16

Naquilo que nos interessa aqui mais imediatamente os resultados das formulaccedilotildees do eleatismo - a afirmaccedilatildeo da permanecircncia do Ser (o Princiacutepio de Identidade) unida agrave exclusatildeo da afirmaccedilatildeo simultacircnea do ser e do natildeo-ser (o Princiacutepio da natildeo-contradiccedilatildeo) - satildeo a negaccedilatildeo do vazio do muacuteltiplo e do movimento Como assevera Melisso ldquoTambeacutem natildeo haacute nada vazio Pois o vazio nada eacute e o que nada eacute natildeo pode ser E natildeo se move Natildeo tem lugar onde mover-se pois eacute pleno Existisse o vazio mover-se-ia para o vazio Mas como natildeo haacute o vazio natildeo tem lugar para onde mover-serdquo17

Desse modo o ser no eleatismo natildeo admite para si a mudanccedila seja em que sentido for que se presuma essa mudanccedila A geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo ou mesmo o deslocamento que estatildeo na base da ideia de mudanccedila no atomismo trariam de volta o natildeo-ser para o interior de uma concepccedilatildeo de realidade da qual fora previamente excluiacutedo por forccedila do pensamento Os dois princiacutepios loacutegicos (identidade e contradiccedilatildeo) perderiam a sua validade e alcance sua legitimidade e credibilidade ldquoE jamais a forccedila da convicccedilatildeo concederaacute que do natildeo-ser possa surgir outra coisa Por isto a deusa da Justiccedila natildeo admite por

15ldquoτὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι rdquo PARMEcircNIDES fragmento B3 in BORHEIM op cit p 55 16ldquoΟὐ γὰρ μήποτε τοῦτο δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα rdquo PARMEcircNIDES fragmento B7 ibid p 5517 MELISSO fragmento 7 (SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 111118) Ibid p 65

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um afrouxamento de suas cadeias que nasccedila ou que pereccedila mas manteacutem-no firmerdquo18 Assim Parmecircnides deixa claro que o natildeo-ser natildeo eacute princiacutepio gerador do que quer que seja Trata-se de uma impossibilidade para o pensamento e portanto para o proacuteprio ser e para a natureza

E Platatildeo eacute tido como um disciacutepulo da henologia eleata Poreacutem tambeacutem eacute verdade que em pelo menos dois de seus Diaacutelogos o Sofista e o Parmecircnides19 fica evidente um desacordo entre ele Parmecircnides No Sofista (236e-237b) Platatildeo revela as dificuldades advindas de uma identificaccedilatildeo imediata loacutegica e ontoloacutegica entre verdade e ser excluindo assim o natildeo-ser de todo raciociacutenio legiacutetimo A consequecircncia dessa identificaccedilatildeo eacute a impossibilidade de se afirmar o falso Afirmar o falso apareceria como manifesta contradiccedilatildeo jaacute que seria afirmar o nada20 Contudo Platatildeo reconhece que essa impossibilidade tambeacutem se mostra como um risco epistemoloacutegico pois disso decorreria a impossibilidade de distinguir entre conhecimento (opiniatildeo verdadeira) e ignoracircncia (opiniatildeo falsa) Ao esclarecer Teeteto sobre esse fato diz o Estrangeiro de Eleia no Sofista

Eacute que realmente jovem feliz nos vemos frente a uma questatildeo extremamente difiacutecil pois mostrar e parecer sem ser dizer algo sem entretanto dizer com verdade satildeo maneiras que trazem grandes dificuldades tanto hoje como ontem e sempre Que modo encontrar na realidade para dizer ou pensar que o falso eacute real sem que jaacute ao proferi-lo nos encontremos enredados na contradiccedilatildeo [] A audaacutecia de uma tal afirmaccedilatildeo eacute supor o natildeo-ser como ser e na realidade nada de falso eacute possiacutevel sem esta condiccedilatildeo Era o que meu jovem jaacute afirmava o grande Parmecircnides tanto em prosa como em verso a noacutes que entatildeo eacuteramos jovens ldquoJamais obrigaraacutes os natildeo-seres a ser Antes afasta teu pensamento desse caminho de investigaccedilatildeo21

18ldquoΟὐδὲ ποτ΄ ἐκ μὴ ἐόντος ἐφήσει πίστιος ἰσχύς γίγνεσθαί τι παρ΄ αὐτόττοῦ εἵνεκεν οὔτε γενέσθαι οὔτ΄ ὄλλυσθαι ἀνῆκε Δίκη χαλάσασα πέδῃσινrdquo PARMEcircNIDES fragmento B8 ibid p 55 grifos nossos

19 Eacute oacutebvio que natildeo precisariacuteamos ficar restritos a apenas esses dois Diaacutelogos Por exemplo no Teeteto poderiacuteamos mencionar o problema da opiniatildeo falsa (187d-18a) PLATAtildeO Teeteto Lisboa Calouste Gulbenkian 2010 p 271-272 No Filebo a controveacutersia sobre o Uno e o Muacuteltiplo (14c-15c 23d) PLATAtildeO Filebo In ______ Diaacutelogos v 8 Universidade Federal do Paraacute 1974 No Timeu interessante notar as semelhanccedilas e dessemelhanccedilas entre o atomismo e a doutrina laacute apresentada principalmente em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo do ser e do devir enquanto imutaacutevel e mutaacutevel respectivamente (27d-28b) poderiacuteamos mencionar ainda a descriccedilatildeo da gecircnese do mundo como um ser vivo e sua forma arredondada numa espeacutecie de reconciliaccedilatildeo com o eleatismo de Parmecircnides (30d-40d) PLATAtildeO Timeu-Criacutetias Coimbra Universidade de Coimbra 2011 p 92-93 99-115

20 Sobre o paradoxo envolvendo a questatildeo de se afirmar o nada cf HEIDEGGER O que eacute metafiacutesica Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 235

21PLATAtildeO Sofista Satildeo Paulo Abril Cultural 1972 p 162

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Eacute notoacuterio que os esclarecimentos prestados ao jovem Teeteto pelo Estrangeiro conduzem a um ldquoparriciacutediordquo22 significando uma espeacutecie de rompimento de Platatildeo com a henologia eleata ortodoxa Todavia tatildeo pouco esse rompimento significa a aceitaccedilatildeo da posiccedilatildeo atomista por Platatildeo23 No diaacutelogo Parmecircnides (137ac-166c) o Outro do Uno (o ser outro) eacute afirmado como uma necessidade no acircmbito da dialeacutetica platocircnica24 sem o qual a Doutrina das Ideias natildeo escaparia agraves dificuldades apontadas (130c-134e) e que satildeo decorrentes de uma ortodoxia henoloacutegica advindas do proacuteprio eleatismo

Contudo o objetivo desta raacutepida explanaccedilatildeo foi o de apenas tornar um pouco mais evidente a oposiccedilatildeo entre o pluralismo ontoloacutegico e material de Demoacutecrito (como se acredita ser tambeacutem o de Leucipo) e o monismo de Parmecircnides Nas seccedilotildees subsequentes defenderemos que essa oposiccedilatildeo fundamental entre o ser e o vazio natildeo implica uma contradiccedilatildeo (loacutegica) como no eleatismo mas sim uma forma de oposiccedilatildeo jaacute percebida por Platatildeo como necessaacuteria (por exemplo no Sofista 256d - 259d) e que poderiacuteamos interpretar como sendo tambeacutem aquela apresentada por Kant e denominada por ele como oposiccedilatildeo real E para natildeo nos afastarmos desse intuito prossigamos nestas ponderaccedilotildees

3 equivaLecircncia entre Ser e natildeo-Ser

Na seccedilatildeo precedente refletimos sobre algumas das consideraccedilotildees mais centrais do eleatismo basicamente aquelas que afirmam o ser como necessariamente um e imoacutevel25 Tambeacutem tivemos a oportunidade de acompanhar como Demoacutecrito ao desenvolver a filosofia de seu mestre Leucipo eacute capaz de

22Ibid p 168 (241a-242b)23Apesar de apresentar pontos de contato com o atomismo de Demoacutecrito e Leucipo e com certos

aspectos do eleatismo ortodoxo a visatildeo cosmogocircnica exposta por Platatildeo no Timeu se distancia de ambos ao assumir a dialeacutetica como pressuposto metodoloacutegico e epistemoloacutegico Por exemplo quando da descriccedilatildeo da dinacircmica dos elementos de um ponto de vista puramente dialeacutetico (56c-61c) ou quando da apresentaccedilatildeo do terceiro princiacutepio que soacute ldquo[] acessiacutevel por meio de um certo raciociacutenio bastardo (logismocirc tini nothocirc) sem recurso aos sentidos a custo crediacutevel (52a-b) PLATAtildeO Timeu-Criacutetias op cit p 136-155

24Cf tambeacutem PLATAtildeO Sofista (253d - 254b) op cit p 184-18525 Aleacutem dessa definiccedilatildeo essencial do ser Parmecircnides especialmente no fragmento B8 fornece

uma seacuterie de outros atributos que poderiacuteamos considerar como derivados ou secundaacuterios como completude (plenitude) inteireza esfericidade indestrutibilidade limite externo compacidade homogeneidade continuidade que de certo modo podem ser reduzidos uns aos outros e referidos agravequeles dois que interpretamos como essenciais

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defender a proposiccedilatildeo ldquoO nada existe tanto quanto o lsquoalguma coisarsquordquo26 Assim na antiga escola atomista o movimento eacute aceito e justificado na medida em que admite o vazio (o natildeo-ser) pelo qual se opera o mecanismo da mudanccedila da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo no acircmbito do composto atraveacutes da junccedilatildeo e da dissoluccedilatildeo de suas partes elementares Tomando igualmente o vazio como princiacutepio os atomistas antigos satildeo capazes de oferecer uma resposta ao problema do movimento e do vir-a-ser problema este colocado pelo menos desde Parmecircnides

Dessa forma divergem as teses baacutesicas do eleatismo e do atomismo De um lado fica estabelecida a necessidade da postulaccedilatildeo do ser uno e pleno de maneira exclusiva e solitaacuteria excluindo por essa via a possibilidade de uma justificaccedilatildeo do vir-a-ser de outro encontramos a postulaccedilatildeo do vazio colocado como oposiccedilatildeo ao ser mas tambeacutem como seu equivalente formal e material servindo como canal comunicante sem o qual o movimento proacuteprio da natureza natildeo seria concebiacutevel ou racionalizaacutevel

Essa disputa entre escolas ou doutrinas aponta para uma oposiccedilatildeo mais fundamental trata-se da oposiccedilatildeo entre o ser e o natildeo-ser ou entre o pleno e o vazio No eleatismo o ser apresenta anterioridade loacutegica e ontoloacutegica Jaacute na filosofia da natureza de Demoacutecrito e Leucipo o ser e o natildeo-ser devem ser colocados lado a lado o que permite a essa filosofia se abrir para o vir-a-ser ao aceitar desde o iniacutecio essa radical alteridade do outro do ser como princiacutepio equivalente ao ser

A afirmaccedilatildeo da multiplicidade e do movimento pressupotildeem desde o iniacutecio a alteridade o outro do ser Isso parece ter ficado bastante evidente para Platatildeo que no Parmecircnides (130c-134e) apoacutes o momento em que o personagem que daacute nome ao Diaacutelogo ter elencado uma seacuterie de argumentos27 contra a Doutrina das Ideias apresenta uma revisatildeo da henologia eleaacutetica posicionando o Outro do Uno junto ao Uno como alteridade necessaacuteria para o equiliacutebrio do jogo dialeacutetico somente assim alcanccedilando ecircxito em tentar salvar essa doutrina dos ferozes ataques lanccedilados contra ela28 E no Filebo tambeacutem 26 DEMOacuteCRITO fragmento 156 In BORNHEIN op cit p 113 27 Sete no total Cf PLATAtildeO Parmecircnides op cit 130c-134e28 A estrutura dessa investigaccedilatildeo dialeacutetica no Parmecircnides pode ser concentrada nas oito consequecircncias

obtidas da anaacutelise da protoideia do uno Por meio do meacutetodo dialeacutetico satildeo obtidos resultados afirmativos e negativos tanto para a existecircncia como para a negaccedilatildeo da existecircncia do uno Esses resultados parecem se equilibrar gerando a impressatildeo de um resultado aparentemente nulo mas que ao final trazem resultados positivos seja para uma revisatildeo do eleatismo seja para uma sofisticaccedilatildeo da Teoria das Ideias Para uma anaacutelise desse assunto cf REALE G Para uma nova interpretaccedilatildeo de

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encontramos essa disposiccedilatildeo dualista atraveacutes da apresentaccedilatildeo da teoria dos princiacutepios formadores para as proacuteprias ideias Segundo essa teoria conhecida como Protologia Platocircnica29 as ideias as formas puras do mundo inteligiacutevel nasceriam do encontro e da uniatildeo do limite identificado com o Uno e do ilimite identificado com o muacuteltiplo infinito (Filebo 16d-e 23d-26d) Limite e ilimite satildeo tomados como princiacutepios absolutos poreacutem geradores das ideias apenas quando relativizados um pelo outro

Guardadas as respectivas diferenccedilas tanto em Platatildeo como nos atomistas fica estabelecida uma equivalecircncia entre ser e natildeo-ser Essa negaccedilatildeo do ser eacute concebida como o Outro-do-ser (oposto ao ser a sua alteridade) O muacuteltiplo eacute na sua essecircncia uacuteltima o composto formado pelo ser e pelo natildeo-ser que como vimos acima eacute entendido como vazio pelos atomistas A partir desse ponto de vista a natureza moacutevel apresenta-se como um tipo de extensatildeo discreta fundada em um dualismo ontoloacutegico no qual encontramos o mesmo (a unidade o limite a identidade o aacutetomo o ser) e o outro (a diferenccedila a alteridade o ilimite o vazio o natildeo-ser)

Em suma o movimento soacute pode ser assumido na medida em que o muacuteltiplo puder ser concebido como o composto formado pelo ser e pelo outro do ser ambos conectados pela relaccedilatildeo de vizinhanccedila Essa vizinhanccedila eacute definida como uma equivalecircncia ontoloacutegica entre o vazio (nadameacuteden) ao lado do ser o que garantiria a separabilidade atocircmica (divisibilidade finita) sem a qual o composto natildeo seria concebiacutevel Do contraacuterio natildeo havendo o vazio soacute haveria o ser-uno unidade simples homogecircnea indiferenciada e tambeacutem imoacutevel jaacute que sempre plena Nesse caso nenhuma vizinhanccedila poderia ser constatada ou afirmada uma vez que a vizinhanccedila pressupotildee a dualidade de elementos O movimento estaria necessariamente vinculado ao dualismo ontoloacutegico e excluiacutedo do monismo pois neste natildeo haveria lugar para a alteridade ou vizinhanccedila

Na medida em que o ser e o vazio satildeo considerados conceitos fundantes no atomismo antigo a relaccedilatildeo de vizinhanccedila fica estabelecida nessa diferenciaccedilatildeo originaacuteria Assim o vazio (o nada) se coloca imediatamente em uma relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o ser no exato momento em que eacute compreendido como a sua radical alteridade E paradoxalmente eacute somente nesse sentido que o vazio eacute a saber na medida mesma em que ele natildeo eacute pleno E a reciacuteproca tambeacutem eacute

Platatildeo Releitura da metafiacutesica dos grandes diaacutelogos agrave luz das ldquoDoutrinas natildeo-escritasrdquo Satildeo Paulo Loyola 1991

29 Ibid p 164-165

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assim afirmada Como o vazio eacute o proacuteprio ser-outro porque instantaneamente se coloca nessa relaccedilatildeo de vizinhanccedila originaacuteria e imediata com o ser o ser tambeacutem se coloca nessa relaccedilatildeo primitiva com o vazio e somente neste sentido o ser eacute isto eacute na medida em que natildeo eacute vazio Platatildeo parece se aproximar dessa posiccedilatildeo atomista quando no Sofista introduz a seguinte indagaccedilatildeo atraveacutes das palavras do Estrangeiro de Eleia ldquoAssim pois estaacute claro que o movimento eacute realmente natildeo ser ainda que seja ser na medida em que participa do serrdquo E prossegue

Segue-se pois necessariamente que haacute um ser do natildeo-ser natildeo somente no movimento mas em toda a seacuterie dos gecircneros pois na verdade em todos eles a natureza do outro faz cada um deles outro que natildeo o ser e por isso mesmo natildeo-ser Assim universalmente por essa relaccedilatildeo chamaremos a todos corretamente natildeo-ser e ao contraacuterio pelo fato de eles participarem do ser diremos que satildeo seres30

Por esse ponto de vista o ser tambeacutem eacute definido em funccedilatildeo de sua relaccedilatildeo com o natildeo-ser que aqui alinhamos com o vazio como o outro do pleno Desse modo essa subordinaccedilatildeo do ser em relaccedilatildeo ao natildeo-ser (o vazio) ou do natildeo-ser (vazio) em relaccedilatildeo ao ser redunda em uma relaccedilatildeo de simetria entre ambos Como resultado temos que natildeo haacute um sentido uacutenico ou prioritaacuterio no condicionamento ontocausal entre ser e vazio A conclusatildeo eacute que ao assumir o movimento como um fato da natureza ou como princiacutepio o ser deixa de apresentar prioridade ontoloacutegica e causal

Nesse sentido ser e natildeo-ser perfazem de maneira equivalente as condiccedilotildees necessaacuterias para o movimento E ainda que a oposiccedilatildeo radical seja o elo constituinte desses princiacutepios originaacuterios ela natildeo implica a anulaccedilatildeo muacutetua de um pelo outro quando simultaneamente justapostos no pensamento assim como os eleatas tentaram mostrar atraveacutes dos paradoxos associados agrave divisibilidade e ao movimento31 Pelo contraacuterio a oposiccedilatildeo radical entre pleno e vazio entre ser e natildeo-ser eacute a proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade do movimento e por isso da efetividade do real Passa a valer por conseguinte nesse caso a necessidade da bicondicionalidade ontocausal entre ser e natildeo-ser radicada na relaccedilatildeo de vizinhanccedila entre ambos na constituiccedilatildeo do real como efetiva e cambiante multiplicidade

30PLATAtildeO Sofista (256e) opcit p 18931Cf ZENAtildeO In BORHEIM op cit p 60-63

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Sumariando as teses de Demoacutecrito e Leucipo temos que

1 O ser eacute quando colocado numa relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o vazio

2 O vazio eacute prefigura junto ao pleno como condiccedilatildeo necessaacuteria para o movimento

3 As teses anteriores se reduzem agrave maacutexima O natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser

4 uma Leitura De Kant a partir Das consiDeraccedilotildees anteriores

Passamos agora a considerar de que form eacute possiacutevel obter por meio do texto Ensaio para introduzir em filosofia o conceito de grandeza negativa32 um novo focirclego para a discussatildeo precedente33 Assim ao analisarmos esse texto manteremos sob nosso olhar aquela oposiccedilatildeo radical e fundamental acima apontada entre ser e natildeo-ser para tentar entendecirc-la atraveacutes daquilo que Kant chama ora de oposiccedilatildeo real ora de oposiccedilatildeo loacutegica sendo a primeira o tipo de oposiccedilatildeoequivalecircncia que relacionaremos com o atomismo antigo e a segunda aquilo que identificaremos como a oposiccedilatildeocontradiccedilatildeo denunciada nas formulaccedilotildees do eleatismo

No prefaacutecio ao Ensaio Kant deixa claro que a filosofia pode se utilizar das ciecircncias naturais e exatas seja copiando seus meacutetodos seja aplicando suas proposiccedilotildees deslocando-as para um novo contexto34 Procederaacute entatildeo com a tentativa de introduzir no seio da filosofia a ideia de grandeza negativa recurso jaacute empregado em matemaacutetica e fiacutesica

Eacute preciso distinguir o significado da proposiccedilatildeo grandeza negativa daquele outro de negaccedilatildeo de uma grandeza35 Uma grandeza negativa eacute a afirmaccedilatildeo de uma grandeza que simplesmente se opotildee a uma outra e que portanto revela uma positividade colocada numa relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo a outra positividade Jaacute na expressatildeo negaccedilatildeo de uma grandeza a grandeza eacute tomada

32 Com o tiacutetulo Versuch den Begriff der negativen Grossen in die Weltweisheit einzufuumlhren essa obra foi publicada pela primeira vez em 1763 Doravante iremos nos referir a ela de maneira abreviada apenas por Ensaio

33Ver nota 134No ano seguinte agrave publicaccedilatildeo do Ensaio essa posiccedilatildeo a respeito da filosofia e das ciecircncias eacute relativizada

com a publicaccedilatildeo de um texto intitulado ldquoInvestigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moralrdquo In KANT Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In______ Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 101-140

35 KANT Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia Ibid p 56

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isoladamente sem qualquer relaccedilatildeo com outra e por isso nenhuma oposiccedilatildeo eacute considerada a partir dela Aqui Kant toma para si a ideia de oposiccedilatildeo que estaacute na raiacutez do conceito de movimento ou de forccedila na Fiacutesica

Nesse sentido a negatividade da formulaccedilatildeo grandeza negativa deve ser interpretada como a projeccedilatildeo da oposiccedilatildeo sobre uma das grandezas polares da relaccedilatildeo que se estabelece entre forccedilas no mundo daiacute a expressatildeo oposiccedilatildeo real Tomemos o exemplo de Kant segundo o qual a atraccedilatildeo negativa que um corpo exerce sobre outro seraacute erroneamente interpretada se for compreendida como a negaccedilatildeo da forccedila de atraccedilatildeo por sua vez seraacute acertadamente compreendida se for tomada como uma grandeza negativa a forccedila de repulsatildeo36 Dessa maneira ela soacute poderaacute ser considerada como negativa se tomada relativamente a outra grandeza a atraccedilatildeo do contraacuterio ela eacute positiva Ou seja a negatividade ou a positividade das grandezas soacute pode ser estabelecida de maneira relativa isto eacute dada a situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre elas No exemplo considerado se o resultado da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre as duas forccedilas de atraccedilatildeo (positiva e negativa) for o repouso entatildeo temos a privaccedilatildeo (nihil privativum representabile) do movimento do objeto sobre o qual essas forccedilas estatildeo agindo e atraveacutes do qual elas puderam se colocar em confronto

Nesse caso eacute necessaacuterio natildeo tomar o efeito (repousoausecircncia do movimento do objeto) pela causa (o equiliacutebrio entre as forccedilas de atraccedilatildeo positiva e negativa) O resultado desse desacerto do juiacutezo seria confundir atraccedilatildeo negativa com ausecircncia de atraccedilatildeo ou a grandeza negativa com negaccedilatildeo de uma grandeza

Consideremos juntamente com Kant o conceito de grandeza negativa em geral para em seguida determinar os seus significados especiacuteficos Levando-se em conta que a chave para predicarmos as grandezas eacute a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo37 entatildeo temos que verificar as duas maneiras por meio das quais podemos considerar essa noccedilatildeo 1ordm como oposiccedilatildeo loacutegica 2ordm como oposiccedilatildeo real Assim Kant estabelece dois niacuteveis de anaacutelise para a apreciaccedilatildeo da noccedilatildeo de oposiccedilatildeo aquele da loacutegica e aquele da natureza Com isso ele pretende distinguir as respectivas funccedilotildees causais da oposiccedilatildeo considerada em cada um desses niacuteveis

Na oposiccedilatildeo loacutegica natildeo resta nenhuma consequecircncia da conexatildeo entre a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo nihil negativum irrepresentabile Dadas duas

36Ibid p 5637Ibid p 57

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afirmaccedilotildees absolutamente contraacuterias o pensamento se surpreende na situaccedilatildeo de natildeo poder prosseguir com seu trabalho obediente como eacute aos princiacutepios de contradiccedilatildeo e terceiro excluiacutedo (tertium non datur) Nesse sentido a contradiccedilatildeo que eacute como entendemos a oposiccedilatildeo loacutegica gera um tipo de vacuidade do pensamento um nada impensaacutevel um absoluto vazio que eacute como aquele nada asseverado por Parmecircnides ldquoNecessaacuterio eacute dizer e pensar que soacute o ser eacute pois o ser eacute e o nada ao contraacuterio nada eacute []rdquo38

Se pensarmos nos estados de movimento e de repouso referidos ao mesmo objeto e abstraindo-se o tempo encontraremos na base mais elementar desses estados contraacuterios os conceitos de ser e de natildeo-ser tidos como opostos no sentido exclusivamente loacutegico (contraacuterios) obtendo como resultado a contradiccedilatildeo e a impossibilidade do pensamento Nesse caso movimento e repouso deixaram de ser grandezas ou estados de coisas e se tornaram puras abstraccedilotildees Logo o natildeo-ser da negatividade natildeo apresenta nenhum tipo de positividade Isto eacute o natildeo-ser eacute absolutamente negativo e eacute tomado como logicamente dependente da positividade do ser como sua pura negaccedilatildeo Por sua vez o ser eacute tomado como conceito originaacuterio e absoluto cuja positividade independe de qualquer relaccedilatildeo apresentando assim precedecircncia loacutegica e exclusividade ontoloacutegica sobre o natildeo-ser

Por outro lado natildeo eacute possiacutevel afirmar que o ser ou o natildeo-ser possuam qualquer prevalecircncia um sobre o outro qualquer antecedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica quando considerados como grandezas no mundo

O movimento eacute tomado como algo positivo na medida em que eacute a efetivaccedilatildeo de um estado de coisas ldquoxrdquo no mundo por sua vez o repouso eacute tambeacutem uma positividade na medida em que significa um outro estado de coisas ldquoyrdquo oposto a ldquoxrdquo A negatividade nessa oposiccedilatildeo recai arbitrariamente sobre ldquoxrdquo ou ldquoyrdquo por meio de uma proposiccedilatildeo que estabelece a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo A negatividade recairaacute sobre ldquoxrdquo ou sobre ldquoyrdquo de acordo com a forma assumida pela proposiccedilatildeo que iraacute fazer variar a negatividade (ou a positividade) em funccedilatildeo da finalidade enfaacutetica que se queira dar a ldquoxrdquo ou a ldquoyrdquo

Somente quando se diz que um mesmo corpo estaacute e natildeo estaacute a um soacute tempo e na mesma relaccedilatildeo em repouso ou em movimento eacute que essa vacuidade no pensar aparece

38ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν[]rdquo PARMENIDES fragmento B6 In BORHEIM op cit p 55

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Um corpo em movimento eacute algo um corpo que natildeo estaacute em movimento eacute tambeacutem algo (cogitabile) no entanto um corpo que ao mesmo tempo e justamente sob a mesma relaccedilatildeo estivesse e natildeo estivesse em movimento eacute absolutamente nada39

A expressatildeo a um soacute tempo significa que o corpo eacute colocado na situaccedilatildeo em que se abstrai a seacuterie contiacutenua do tempo Isso quer dizer que uma uacutenica porccedilatildeo elementar do tempo foi tomada e isolada das demais Todavia uma porccedilatildeo assim isolada do tempo tomada em sentido absoluto natildeo eacute tempo algum Uma vez que a seacuterie de tempo eacute contiacutenua ou se toma uma porccedilatildeo do tempo que por sua vez conteacutem em si uma nova seacuterie temporal infinita (nesse caso a parte eacute igual ao todo) ou natildeo se toma tempo algum Em outras palavras a expressatildeo a um soacute tempo natildeo tem aqui nenhum significado temporal positivo mas apenas negativo significando fora do tempo

Assim procedeu Parmecircnides ao abstrair o tempo para todas as formas proposicionais vaacutelidas reduzindo toda forma de pensamento a uma expressatildeo proposicional afirmativa atemporal onde a positividade eacute sempre absoluta e por isso possui prioridade loacutegica e ontoloacutegica sobre a negatividade Nesse caso toda oposiccedilatildeo eacute sempre contradiccedilatildeo

Jaacute na oposiccedilatildeo real encontramos uma forma de pensamento que natildeo subtrai a seacuterie do tempo Nesse caso a oposiccedilatildeo real apresenta uma estrutura a qual pode ser esquematicamente apresentada como (+A ndashA = B) onde (B = 0) ou (B ne 0) e onde os elementos integrantes dessa operaccedilatildeo (+A) e (ndashA) natildeo deixam de ser pela atribuiccedilatildeo de uma negatividade meramente relativa mesmo quando (B=0) sendo ambos justamente a causa eficiente desse privatio

O (B = 0) como privatio natildeo eacute mera nulidade devendo ser tratado como a realizaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo resultante de um encontro entre potecircncias equivalentes mas opostas uma a outra Aqui natildeo existe contradiccedilatildeo em dizer que se trata de potecircncias equivalentes-opostas pois nesse caso tanto a negatividade como a positividade satildeo relativas e natildeo absolutas Natildeo existe autonomia ontoloacutegica da positividade nem da negatividade Trata-se aqui de predicados e natildeo de seres

Por sua vez o estado de coisas representado por (B = 0) esta efetividade eacute novamente um natildeo-ser poreacutem apenas em relaccedilatildeo a outro estado de coisas a que ele se opotildee Assim este (0) eacute um algo que eacute predicado a algo inserido na 39 Ibidem p 58 grifos nossos

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seacuterie contiacutenua do tempo e que eacute designado como privaccedilatildeo Apenas quando se abstrai da seacuterie do tempo eacute que x = 0 representa um nada absoluto Nesse caso o que eacute afirmado eacute inteira e instantaneamente anulado pelo que eacute negado e vice-versa pois a positividade e a negatividade do que eacute afirmado e negado se referem aos proacuteprios seres

Jaacute na oposiccedilatildeo real ainda que duas condiccedilotildees contraacuterias atuem simultaneamente sobre o mesmo objeto a contradiccedilatildeo (vacuidade do pensamento) natildeo eacute o resultado porque a expressatildeo simultaneamente (ausecircncia de sucessatildeo temporal) eacute aqui relativizada Se pensarmos na destruiccedilatildeo de um corpo esse movimento seraacute oposto ao de sua criaccedilatildeo No entanto tais movimentos natildeo satildeo contraditoacuterios um ao outro quando pensados juntos Natildeo inferimos uma vacuidade no pensamento da conjunccedilatildeo simultacircnea desses dois eventos desde que sejam pensados como eventos e portanto diluiacutedos no contiacutenuo temporal A contiacutenua transformaccedilatildeo (movimento) dos corpos vivos por exemplo tem por base um confronto entre a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo celular atuando nos organismos vivos quer dizer um estado de coisas manifestamente expresso como forccedilas antagocircnicas simultaneamente presentes no mesmo objeto No niacutevel celular essa simultaneidade eacute relativizada enquanto algumas ceacutelulas satildeo criadas outras satildeo destruiacutedas Essa relativizaccedilatildeo da simultaneidade natildeo exclui um efetivo antagonismo seja em que niacutevel for onde a positividade ou a negatividade satildeo arbitrariamente atribuiacutedas a um dos polos da oposiccedilatildeo natildeo havendo qualquer precedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica de um polo sobre o outro A geraccedilatildeo eacute negativa se a destruiccedilatildeo for tomada como positiva e vice-versa

Na dinacircmica uma forccedila motriz eacute dita positiva somente quando oposta a outra dita negativa a resistecircncia Ainda que opostas uma a outra forccedilas com vetores contraacuterios desse encontro natildeo se infere um absurdo como uma contradiccedilatildeo mas um estado de coisas real de oposiccedilatildeo de contrariedade O resultado pode ser tanto o repouso no caso das forccedilas opostas possuiacuterem a mesma potecircncia (serem equivalentes) ou o movimento que apresenta o mesmo vetor de uma das forccedilas conflitantes Em ambos os casos o resultante dessa oposiccedilatildeo eacute algo que pode ser efetivamente afirmado sobre o mundo e natildeo um vazio ou um nada irrepresentaacutevel Ainda que nesse caso o repouso possa ser representado por (B = 0) este (B = 0) natildeo deve ser entendido como uma indeterminaccedilatildeo mas sim como privaccedilatildeo Logo percebemos que a contradiccedilatildeo natildeo eacute aplicaacutevel a estados de coisas imersos na seacuterie contiacutenua do tempo

Tanto na oposiccedilatildeo loacutegica como na oposiccedilatildeo real o efeito pode ser representado como (=0) ou como vazio ou ainda como nada Entretanto

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o sentido desse vazio ou desse nada deve ser relativizado para cada situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo Na oposiccedilatildeo loacutegica significa contradiccedilatildeo (nihil negativum irrepresentabile) ou ausecircncia da possibilidade do pensamento A nosso ver este seria o caso do significado do natildeo-ser empregado por Parmecircnides onde localizamos a supressatildeo instantacircnea (anulaccedilatildeo ausecircncia absoluta) dos opostos Jaacute o nada ou o vazio da oposiccedilatildeo real eacute absolutamente representaacutevel Aqui eacute possiacutevel embora de maneira arbitraacuteria estabelecer os valores positivo e negativo dos elementos que se colocam na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo

5 concLusatildeo

Apoacutes oferecer alguns exemplos para o conceito de grandeza negativa na segunda seccedilatildeo do Ensaio Kant conduz suas consideraccedilotildees para o campo da filosofia que para ele deve se ocupar prioritariamente da metafiacutesica e cujo meacutetodo analiacutetico apresentado por ele em outro de seus textos desse periacuteodo40 jaacute fornece indiacutecios dos passos que daraacute no sentido de sua futura proposta mais amadurecida para uma teoria criacutetico-transcendental

Assim alerta Kant no Ensaio entendemos facilmente que algo natildeo seja se lhe carece a razatildeo positiva para sua existecircncia todavia temos dificuldades para entender como algo que efetivamente eacute deixa de ser41 isto eacute temos dificuldade em compreender o correto sentido de privaccedilatildeo O esclarecimento acerca dessa questatildeo eacute fundamental jaacute que o vir-a-ser isto eacute o deixar de ser como privaccedilatildeo eacute a maneira mais fundamental de entender o conceito de movimento Essa dificuldade em reconhecer o correto sentido de privaccedilatildeo eacute o que algumas vezes nos compele a confundi-la com a contradiccedilatildeo e por isso obter como resultado a negaccedilatildeo do movimento compreendendo-o erroneamente como gerador do absurdo

Assim sugere Kant se represento o Sol em minha imaginaccedilatildeo e se no instante seguinte deixo de ter presente essa representaccedilatildeo em minha mente isso natildeo significa que meu pensamento sobre o Sol tenha simplesmente desaparecido e se tornado um puro nada aniquilando-se na vacuidade de uma contradiccedilatildeo entre ser e natildeo-ser mas sim porque a representaccedilatildeo do sol foi suprimida por outra sorte qualquer de ideia que se impocircs com a intensidade

40KANT I Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In ______ Escritos Preacute-criacuteticos Trad Jair Barboza [et al] Satildeo Paulo UNESP 2005 p 116-117

41KANT opcit p 79

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suficiente para substituiacute-la parcial ou inteiramente segundo uma determinada relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo contingente ao espiacuterito

A simples negaccedilatildeo da representaccedilatildeo considerando que ela simplesmente anulou a si mesma deixando assim de existir nos remete para a situaccedilatildeo de um nada irrepresentaacutevel um impensaacutevel natildeo-ser como em Parmecircnides Jaacute na privaccedilatildeo existe uma interaccedilatildeo entre forccedilas opostas a qual natildeo aparece como contradiccedilatildeo uma vez que princiacutepios afirmativos opostos (representaccedilotildees opostas) coincidiriam sob a mesma forma do pensamento anulando assim o efeito de uma delas ou de ambas O resultado eacute a afirmaccedilatildeo de um ser que eacute tambeacutem natildeo-ser jaacute que a negatividade do natildeo-ser da representaccedilatildeo aqui eacute simplesmente relativa dada pela situccedilatildeo de oposiccedilatildeo A representaccedilatildeo arbitrariamente tomada como negativa natildeo eacute menos ser que aquela tomada como positiva A supressatildeo de uma pela outra natildeo se mostra como contradiccedilatildeo mas como a privaccedilatildeo

Eacute concebiacutevel assim pensar legitimamente o natildeo-ser da representaccedilatildeo desde que seja considerado como privaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel se falar com verdade em princiacutepios opostos e equivalentes e que produzem em seu encontro a afirmaccedilatildeo de algo como um nada Dessa maneira seja a1

a afirmaccedilatildeo (ser) de um determinado estado de coisas no mundo (ou de uma representaccedilatildeo de algo no mundo) e a2 o seu equivalente oposto (o natildeo-ser) temos que

a1 ndash a2 = 0

Arbitrariamente tomamos a2 como a representaccedilatildeo negativa contudo a negatividade aqui revela apenas a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre a1 e a2 e natildeo uma situaccedilatildeo absoluta de a2 Como grandezas equivalentes que se opotildeem o resultado (= 0) revela uma oposiccedilatildeo real natildeo uma contradiccedilatildeo Nem a1

e a2 podem ser ditas potecircncias contraditoacuterias nessa relaccedilatildeo visto que este (= 0) eacute a afirmaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo de um ser que eacute tambeacutem um natildeo-ser assim como o repouso eacute igualmente uma forma de natildeo-ser do movimento O pensamento que leva em conta os opostos eacute pois uma possibilidade real e mesmo necessaacuteria para a consideraccedilatildeo do movimento

Segundo a foacutermula de Demoacutecrito o natildeo-ser natildeo eacute mais nem menos que o ser Ora soacute podemos entender essa afirmaccedilatildeo de duas maneiras convergentes ou como afirmaccedilatildeo do mesmo estatuto ontoloacutegico para o ser e para o natildeo-ser ou como atribuiccedilatildeo da mesma funccedilatildeo causal (material) para ambos Nos dois casos o ser soacute eacute na presenccedila ou com a premissa do natildeo-ser e vice-versa E assim o natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser Estaacute claro que esse princiacutepio natildeo

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se ajusta sem qualquer intervenccedilatildeo agraves formulaccedilotildees de Parmecircnides Por esse desacordo eacute possiacutevel identificar no antigo atomismo uma negatividade do ser que natildeo engendra a vacuidade do pensamento Pelo contraacuterio o movimento do pensamento soacute eacute possiacutevel por meio dessa oposiccedilatildeo fundamental Em Platatildeo esse movimento do pensamento ganha o nome de dialeacutetica

Concluiremos este estudo com a seguinte afirmaccedilatildeo de Kant ldquoTodos os fundamentos reais do universo quando se somam todos que satildeo consonantes e se subtraem uns dos outros os que se opotildeem entre si datildeo um resultado igual a zerordquo42 Esse zero significa a afirmaccedilatildeo da efetividade do mundo Esse zero representa um repouso que nem por isso deixa de ser dinacircmico Assim esperamos ter aproximado o conteuacutedo do Ensaio com o pensamento daqueles filoacutesofos da natureza que se colocavam conformes a um princiacutepio universal sem negar a unidade do pensamento e do movimento do mundo De acordo com eles o mundo deve se ordenar segundo esses princiacutepios mutuamente opostos ser e natildeo-ser os quais estatildeo na origem desse repouso dinacircmico na exata medida da efetivaccedilatildeo de seus encontros

SANTOS Eberth Eleuterio dos Leucippus Democritus and Kant a reflection on the equivalence between being and non-being TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 38 n 2 p 71-94 MaioAgo 2015

ABSTRACT Initially we present the theory of Democritus and Leucippus whereby being is not more than the not-being (non-being) in contrast to Eleatic ideas about the necessary inexistence of the not-being This discussion leads us to the opposition between the whole (full) and the empty which will then be transposed into the opposition between being and nothingness (or not-being) Thus the opposition between whole and the empty is an opposition that moves to being and not-being Finally we will make an assessment of the Kantian pre-critical essay Attempt to introduce the concept of negative magnitude into philosophy in which we recognize a kind of opposition that as we believe would be interpreted as being in agreement with the position of Democritus and Leucippus regarding the ontological status of the not-being as an equivalent principle to the being understood here not as a mutual contradiction in a purely logical sense

KEYWORDS ancient atomism Eleatism ontology

referecircncias

ARISTOacuteTELES Da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo seguido de convite agrave filosofia Traduccedilatildeo de Renata Maria Pereira Cordeiro Satildeo Paulo Landy 2001

42 Ibid p 89

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______ Fiacutesica I ndash II Traduccedilatildeo de Lucas Angioni Campinas Editora da UNICAMP 2009

______ Metafiacutesica texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterio de Giovanni Reale Traduccedilatildeo de Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2005 3v

BARNES J Filoacutesofos preacute-socraacuteticos Traduccedilatildeo de Juacutelio Fischer 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

BORNHEIM G Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Cultrix 2000

_______ O que eacute metafiacutesica Traduccedilatildeo de Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

HEIDEGGER M Die Zeit des Weltbildes (1938) In ______ Gesamtausgabe Frankfurt Klostermann 87-88 (1977) Bd 5 Holzwege

KANT I Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia In ______ Escritos preacute-criacuteticos Traduccedilatildeo de Viniacutecius de Figueiredo e Jair Barbosa Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 51-99

______ Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur neacutegative Traduccedilatildeo de Roger Kempf 2 eacuted Paris J Vrin 1972 (Bibliothegraveque de textes philosophiques)

______ Versuch den Begriff der negative Grossen in die Weltweisheit einzufuhres Neueste Aufl Graz Andreas Leikam 1797 Disponiacutevel em lt httpsarchiveorgstreamversuchdenbegri00kantgoogpagen43mode2upgt Acesso em 22 dez 2013

PARMENIDES Fragmentos sobre a natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

______ Da natureza Traduccedilatildeo de Jose Gabriel Trindade Santos (modificada pelo tradutor) Satildeo Paulo Loyola 2002

PLATAtildeO Filebo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ O sofista Traduccedilatildeo de Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Abril Cultural 1972

______ Parmecircnides Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos v VIII Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ Teeteto Traduccedilatildeo de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri Lisboa Calouste Gulbenkian 2010

______ Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Rodolfo Lopes Coimbra Universidade de Coimbra 201143

Recebido Received 07092014Aprovado Approved 10012015

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das coisas que vecircm a serrdquo5 E sobre Demoacutecrito Simpliacutecio ainda nos informa ldquoDa mesma forma o companheiro de [Leucipo] Demoacutecrito de Abdera propocircs o pleno e o vazio como princiacutepios originaacuterios o primeiro denominou ser e o segundo natildeo-serrdquo6 Unindo esses relatos aos de outros doxoacutegrafos torna-se expliacutecito o estatuto ontoloacutegico conferido ao aacutetomo e ao vazio nos pensamentos que chegaram ateacute noacutes de Demoacutecrito e Leucipo

No que diz respeito agrave explicitaccedilatildeo da equivalecircncia causal decorrente da equivalecircncia ontoloacutegica e sumariada pela maacutexima o ser natildeo tem mais realidade que o natildeo-ser podemos acrescentar ainda o seguinte testemunho de Aristoacuteteles

Leucipo e seu seguidor Demoacutecrito afirmam como elementos o cheio e o vazio e chamam um de ser e o outro de natildeo-ser mais precisamente chamam o cheio e o soacutelido de ser e o vazio de natildeo-ser e por isso sustentam que o ser natildeo tem mais realidade do que o natildeo-ser pois o cheio natildeo tem mais realidade que o vazio E afirmam esses elementos como a causa material dos seres7

Eacute bastante notoacuterio o grande interesse do Estagirita pelas argumentaccedilotildees de seus predecessores tomando-as quase sempre como concepccedilotildees a serem assimiladas ou refutadas por suas proacuteprias formulaccedilotildees e princiacutepios Assim a polecircmica com os atomistas com os eleatas com os dialeacuteticos (os platocircnicos) e com tantos outros atravessa todo o corpus aristoteacutelico acarretando em uma superabundacircncia de relatos e testemunhos tendo o primeiro livro da Metafiacutesica se concentrado intensamente nessa tarefa Mas tambeacutem na Fiacutesica assim como em outros escritos observamos uma igual riqueza de apontamentos os quais revelam o quatildeo tributaacuterio era Aristoacuteteles de seus antecessores especialmente no que dizia respeito agraves questotildees concernentes agraves concepccedilotildees fiacutesicas e metafiacutesicas que segundo ele deveriam versar acima de tudo sobre os primeiros princiacutepios e causas isto eacute sobre a essecircncia sobre o ser e o sobre o movimento

Na Metafiacutesica essas ponderaccedilotildees sobre os primeiros princiacutepios e causas levam Aristoacuteteles a reconsiderar o legado filosoacutefico recebido dos mais antigos principalmente por meio da afirmaccedilatildeo da centralidade do conceito substacircncia Atraveacutes desse conceito acredita ser capaz de reconfigurar e reconciliar os

5 SIMPLIacuteCIO 284-15 in BARNES J Filoacutesofos preacute-socraacuteticos 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 p 286 grifos nossos

6 Ibid 2815 -27 p 292 grifos nossos7 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2005 p 27

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anteriores pontos de vista ontoloacutegicos e causais em seus aspectos formais e materiais ldquoMesmo sendo dito em tantos significados eacute evidente que o primeiro significado do ser eacute a essecircncia que indica a substacircnciardquo8 Na Fiacutesica esse esforccedilo de reconfiguraccedilatildeo e reconciliamento realizado sobre o pensamento noeacutetico e fenomecircnico tambeacutem gravitaraacute em torno do conceito de movimento

Ora eacute necessaacuterio que o princiacutepio seja um ou mais de um e se for um eacute necessaacuterio que seja ou imoacutevel como afirma Parmecircnides e Melisso ou suscetiacutevel de movimento como afirmam os estudiosos da natureza uns afirmando que o primeiro princiacutepio eacute ar outros que eacute aacutegua mas se os princiacutepios forem mais de um eacute necessaacuterio que sejam em nuacutemero limitado ou ilimitado e se forem limitados poreacutem mais de um eacute necessaacuterio que sejam dois ou trecircs quatro ou outro nuacutemero e se forem ilimitados eacute necessaacuterio que sejam ou da maneira como afirma Demoacutecrito ndash um uacutenico gecircnero mas diferenciados em figura ndash ou diferenciados em forma ou ateacute mesmo contraacuterios9

Como podemos perceber nessa passagem Aristoacuteteles coloca de um lado os monistas e imobilistas nomeando os eleatas Parmecircnides e Melisso e no lado oposto os defensores de um princiacutepio suscetiacutevel de movimento Entre estes Demoacutecrito eacute alinhado junto aos que afirmam um nuacutemero infinito de elementos de um uacutenico gecircnero (o aacutetomo) Poreacutem eacute ainda preciso conciliar essa pluralidade infinita de figuras de um uacutenico gecircnero com o movimento mencionado aqui por Aristoacuteteles

O movimento a que Aristoacuteteles se refere na passagem acima possui o sentido especiacutefico de deslocamento e natildeo o de alteraccedilatildeo Sendo o aacutetomo apenas suscetiacutevel de movimento natildeo pode conter o movimento como propriedade intriacutenseca o que significa que o aacutetomo natildeo pode se alterar mudar de aspecto se tornar diferente do que eacute pois do contraacuterio nada restaria de permanente de soacutelido de indivisiacutevel A proacutepria mudanccedila no niacutevel da multiplicidade sensiacutevel (o vir-a-ser) ficaria assim comprometida jaacute que em princiacutepio natildeo pode deixar de ser (alterar-se) aquilo que natildeo eacute em algum niacutevel elementar

Em outras palavras o aacutetomo natildeo pode ser considerado em si mesmo a fonte do movimento pois se assim o fosse tambeacutem ele deveria acomodar em si alteraccedilotildees gerando o paradoxo de ter de ser e natildeo-ser simultaneamente Falta grave ao princiacutepio de identidade e consequentemente ao princiacutepio de

8 Ibid p 287 grifos nossos9 ARISTOacuteTELES Fiacutesica I ndash II Campinas Editora da UNICAMP 2009 p 24 grifos nossos

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contradiccedilatildeo jaacute desvendada pelo eleatismo a partir de uma anaacutelise puramente noeacutetica Assim o aacutetomo eacute tomado como princiacutepio de permanecircncia Em sua definiccedilatildeo encontramos as propriedades de solidez e indestrutibilidade de perenidade e inalterabilidade Nunca tendo sido gerado o aacutetomo eacute definido como sempre idecircntico a si mesmo princiacutepio material indivisiacutevel da natureza

Diferentemente dos aacutetomos os compostos ndash os corpos (soacutemata) e os mundos (koacutesmoi) ndash apresentam a inconstacircncia que lhes eacute proacutepria sendo passiacuteveis de geraccedilatildeo e destruiccedilatildeo Nos compostos o movimento se apresenta portanto como uma propriedade manifesta Possuindo os compostos em sua base formal e material os aacutetomos (inalteraacuteveis natildeo gerados e indestrutiacuteveis) como princiacutepio de permanecircncia entatildeo o princiacutepio do movimento (geraccedilatildeo alteraccedilatildeo corrupccedilatildeo) manifesto nesses compostos deve ser buscado em outra parte isto eacute em outro elemento

E tomando o composto como o ponto de partida para a inteligibilidade da natureza os atomistas se depararam com a necessidade formal de um princiacutepio distinto do proacuteprio aacutetomo o qual permitisse a dita suscetibilidade ao movimento Em suma ao passar do niacutevel fenomecircnico para o noeacutetico os atomistas buscam legitimar a natureza mutante pelos seus princiacutepios formais e materiais Uma vez que o ser (o aacutetomo) tomado em si mesmo natildeo pode servir como princiacutepio de movimento dadas as conclusotildees sobre o plenouno jaacute assentadas desde Parmecircnides e que foram em parte assimiladas pelos atomistas caberia entatildeo atribuir a outro princiacutepio essa funccedilatildeo Como nos transmite Aristoacuteteles

Afirmam que o movimento se daacute graccedilas ao vazio com efeito segundo estes o movimento dos corpos naturais e elementares eacute um movimento local porque o movimento devido ao vazio eacute um transporte como em um lugar quanto aos outros movimentos nenhum pertence pensam eles aos corpos elementares mas somente agravequeles que deles satildeo formados dizem que o crescimento o perecimento e a alteraccedilatildeo provecircm da reuniatildeo e da separaccedilatildeo dos corpos insecaacuteveis10

Assim por meio do vazio os atomistas fornecem uma resposta ao imobilismo eleata O vazio eacute o meio comunicante que possibilita o ldquotransporterdquo Eacute por meio dele que os aacutetomos em nuacutemero infinito se deslocam se associam e se separam ldquoDemoacutecrito tinha a opiniatildeo de que os aacutetomos se movem

10 ARISTOacuteTELES Fiacutesica op cit VIII 9 265b grifos nossos

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eternamente em um espaccedilo vaziordquo11 Sem o vazio os aacutetomos permaneceriam estaacuteticos imoacuteveis e nenhuma geraccedilatildeo ou corrupccedilatildeo nenhum nascimento ou morte seria constataacutevel no acircmbito do composto E se natildeo houvesse nenhum princiacutepio de movimento nenhum vazio tambeacutem o ser (o aacutetomo) natildeo poderia ser dito no plural pois natildeo haveria nada distinto (o natildeo-ser) que permitisse a separaccedilatildeo e portanto o avizinhamento do ser consigo mesmo Tudo seria entatildeo apenas pleno uno e imoacutevel

O vazio se constitui por conseguinte como a soluccedilatildeo do antigo atomismo para o vir-a-ser Todavia com Leucipo e Demoacutecrito esta soluccedilatildeo eacute ainda um tanto insatisfatoacuteria pois eacute somente com Epicuro no final do seacuteculo IV que o peso eacute informado como uma das propriedades presentes no aacutetomo graccedilas ao qual se explicaria sua queda (deslocamento) no vazio Mas essa queda seria homogecircnea e por isso nem criativa nem destrutiva se o aacutetomo natildeo possuiacutesse sutis diferenciaccedilotildees No entanto na medida em que satildeo tambeacutem supostos infinitos em nuacutemero e em figura torna-se factiacutevel justificar a sua queda no vazio como natildeo regular mas com choques e voacutertices (clinamen) acarretando em junccedilotildees e separaccedilotildees atocircmicas Em resumo o aacutetomo apresenta um movimento por deslocamento e natildeo por alteraccedilatildeo natildeo podendo assim ser considerado o princiacutepio do movimento que apenas parcialmente se justifica pela postulaccedilatildeo do vazio como seu princiacutepio

Desse modo aacutetomo e vazio se equivalem como princiacutepios formais e materiais para a existecircncia do composto ainda que se oponham como princiacutepios de permanecircncia e de movimento respectivamente Os compostos se tornam mais densos (e pesados) na medida em que menos vazio neles houver em relaccedilatildeo aos aacutetomos na proporccedilatildeo de suas composiccedilotildees Ao mesmo tempo aacutetomo e vazio permitem compreender o movimento em sentido amplo como a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo do composto Esse movimento deve ser entendido entatildeo como a associaccedilatildeo e a dispersatildeo dos aacutetomos tornada possiacutevel pelo vazio

2 o eLeatismo e a revisatildeo pLatocircnica

Como dissemos o posicionamento dos atomistas em relaccedilatildeo ao movimento surgia como uma resposta agraves conclusotildees do imobilismo eleata Esse imobilismo por sua vez seguia como consequecircncia necessaacuteria do monismo ontoloacutegico ali presente no qual apenas o ser eacute dito com verdade Isto

11 HIPPOLOcircNIO I 13 2 in BORNHEIM op cit p 126

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eacute apenas o ser eacute dito com necessidade enquanto sobre o natildeo-ser nada pode ser dito com verdade Assim o pensamento verdadeiro porque necessaacuterio soacute pode se projetar sobre o ser que por sua vez eacute pleno e uno Atraveacutes do poema de Parmecircnides isto se torna laconicamente expliacutecito ldquoNecessaacuterio eacute o dizer e o pensar que o ente eacute pois eacute ser e nada natildeo eacute []rdquo12 e tambeacutem ldquoo outro que natildeo eacute que tem de natildeo ser esse te indico ser caminho em tudo ignotordquo13 E tendo comparado a doutrina de Parmecircnides aos ensinamentos de Xenoacutefanes e Melisso respectivamente seu mestre e disciacutepulo Aristoacuteteles conclui pelo seguinte ldquoParmecircnides ao contraacuterio [de Xenoacutefanes e Melisso] parece raciocinar com mais perspicaacutecia Por considerar que aleacutem do ser natildeo existe o natildeo-ser necessariamente deve crer que o ser eacute um e nada maisrdquo14

Em Parmecircnides o ser eacute a unidade fundamental de tudo o que pode ser dito com verdade Aqui encontramos o pensamento verdadeiro loacutegico-racional identificado agrave sua unidade pura homogecircnea indivisiacutevel e imoacutevel Em oposiccedilatildeo a isso Parmecircnides detectava o erro a falsidade o desvio da razatildeo que assumia a forma do natildeo-ser A afirmaccedilatildeo do natildeo-ser soacute poderia advir de um desvio do caminho da verdade

Nos versos de seu poema particularmente no fragmento B8 Parmecircnides nos revela o ser segundo essa concepccedilatildeo No primeiro canto O caminho da verdade fica estabelecida a identidade entre o ser e o pensamento em sentido estrito (necessaacuterio) a saber aquele pensamento acompanhado da verdade Isso significa que a realidade de direito estaacute fundada em um uacutenico princiacutepio o ser E aqui o conceito de realidade se confunde imediatamente com o de verdade loacutegica isto eacute aquilo que pode ser dito legitimamente ou sem contradiccedilatildeo E o ser se configura como o princiacutepio unicamente noeacutetico ao mesmo tempo loacutegico ontoloacutegico e epistecircmico sobre uma natureza fundamentalmente imoacutevel e apenas por isso consistente

Realidade verdade e permanecircncia se tornam conceitos congecircneres nessa particular anaacutelise ontoloacutegica da natureza O Ser - ato imediato do pensamento - jamais foi gerado jamais se altera jamais se corrompe jamais entra em conflito consigo mesmo Do contraacuterio perseguiriacuteamos o caminho da opiniatildeo

12ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν []rdquo PARMENIDES fragmento B6 (SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 117 2) In Preacute-Socraacuteticos opcit p 148

13ldquoἡ δ΄ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόνrdquo PARMENIDES Da Natureza Satildeo Paulo Loyola 2002 fragmento B2 (PROCLO Comentaacuterio ao Timeu I 345 18)

14ARISTOacuteTELES Metafiacutesica opcit p 33 grifos nossos

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no qual ser e natildeo-ser seriam reputados o mesmo ou equivalentes Contudo no caminho da verdade o pensamento (loacutegico-racional) natildeo pode admitir em seu seio a negaccedilatildeo do ser (o natildeo-ser) o outro do ser essa radical alteridade como algo que se coloca fora do ser e por isso se separa e se opotildee a ele No caminho da verdade nada pode ser dito ou pensado para aleacutem do ser Afirmar o ser para aleacutem do ser isto eacute o ser-outro ou o natildeo-ser eacute simplesmente natildeo reconhecer essa unicidade fundamental e por isso se colocar no caminho do erro da opiniatildeo falsa do engano sobre a essecircncia da natureza

Decorrecircncia dessa unicidade fundamental eacute o imobilismo da natureza no niacutevel noeacutetico A permanecircncia do ser natildeo significa outra coisa senatildeo sua incorruptibilidade em um niacutevel muito fundamental o do puro pensamento implicando a impossibilidade de uma justificaccedilatildeo loacutegico-racional para o devir da natureza sensiacutevel Eis entatildeo que o ser eacute tomado como princiacutepio uacutenico fiacutesico e metafiacutesico simbolizaacutevel por ldquoPois pensar e ser eacute o mesmordquo15 enquanto o contraacuterio eacute descartado como impossiacutevel ldquoJamais se conseguiraacute provar que o natildeo-ser eacuterdquo16

Naquilo que nos interessa aqui mais imediatamente os resultados das formulaccedilotildees do eleatismo - a afirmaccedilatildeo da permanecircncia do Ser (o Princiacutepio de Identidade) unida agrave exclusatildeo da afirmaccedilatildeo simultacircnea do ser e do natildeo-ser (o Princiacutepio da natildeo-contradiccedilatildeo) - satildeo a negaccedilatildeo do vazio do muacuteltiplo e do movimento Como assevera Melisso ldquoTambeacutem natildeo haacute nada vazio Pois o vazio nada eacute e o que nada eacute natildeo pode ser E natildeo se move Natildeo tem lugar onde mover-se pois eacute pleno Existisse o vazio mover-se-ia para o vazio Mas como natildeo haacute o vazio natildeo tem lugar para onde mover-serdquo17

Desse modo o ser no eleatismo natildeo admite para si a mudanccedila seja em que sentido for que se presuma essa mudanccedila A geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo ou mesmo o deslocamento que estatildeo na base da ideia de mudanccedila no atomismo trariam de volta o natildeo-ser para o interior de uma concepccedilatildeo de realidade da qual fora previamente excluiacutedo por forccedila do pensamento Os dois princiacutepios loacutegicos (identidade e contradiccedilatildeo) perderiam a sua validade e alcance sua legitimidade e credibilidade ldquoE jamais a forccedila da convicccedilatildeo concederaacute que do natildeo-ser possa surgir outra coisa Por isto a deusa da Justiccedila natildeo admite por

15ldquoτὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι rdquo PARMEcircNIDES fragmento B3 in BORHEIM op cit p 55 16ldquoΟὐ γὰρ μήποτε τοῦτο δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα rdquo PARMEcircNIDES fragmento B7 ibid p 5517 MELISSO fragmento 7 (SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 111118) Ibid p 65

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um afrouxamento de suas cadeias que nasccedila ou que pereccedila mas manteacutem-no firmerdquo18 Assim Parmecircnides deixa claro que o natildeo-ser natildeo eacute princiacutepio gerador do que quer que seja Trata-se de uma impossibilidade para o pensamento e portanto para o proacuteprio ser e para a natureza

E Platatildeo eacute tido como um disciacutepulo da henologia eleata Poreacutem tambeacutem eacute verdade que em pelo menos dois de seus Diaacutelogos o Sofista e o Parmecircnides19 fica evidente um desacordo entre ele Parmecircnides No Sofista (236e-237b) Platatildeo revela as dificuldades advindas de uma identificaccedilatildeo imediata loacutegica e ontoloacutegica entre verdade e ser excluindo assim o natildeo-ser de todo raciociacutenio legiacutetimo A consequecircncia dessa identificaccedilatildeo eacute a impossibilidade de se afirmar o falso Afirmar o falso apareceria como manifesta contradiccedilatildeo jaacute que seria afirmar o nada20 Contudo Platatildeo reconhece que essa impossibilidade tambeacutem se mostra como um risco epistemoloacutegico pois disso decorreria a impossibilidade de distinguir entre conhecimento (opiniatildeo verdadeira) e ignoracircncia (opiniatildeo falsa) Ao esclarecer Teeteto sobre esse fato diz o Estrangeiro de Eleia no Sofista

Eacute que realmente jovem feliz nos vemos frente a uma questatildeo extremamente difiacutecil pois mostrar e parecer sem ser dizer algo sem entretanto dizer com verdade satildeo maneiras que trazem grandes dificuldades tanto hoje como ontem e sempre Que modo encontrar na realidade para dizer ou pensar que o falso eacute real sem que jaacute ao proferi-lo nos encontremos enredados na contradiccedilatildeo [] A audaacutecia de uma tal afirmaccedilatildeo eacute supor o natildeo-ser como ser e na realidade nada de falso eacute possiacutevel sem esta condiccedilatildeo Era o que meu jovem jaacute afirmava o grande Parmecircnides tanto em prosa como em verso a noacutes que entatildeo eacuteramos jovens ldquoJamais obrigaraacutes os natildeo-seres a ser Antes afasta teu pensamento desse caminho de investigaccedilatildeo21

18ldquoΟὐδὲ ποτ΄ ἐκ μὴ ἐόντος ἐφήσει πίστιος ἰσχύς γίγνεσθαί τι παρ΄ αὐτόττοῦ εἵνεκεν οὔτε γενέσθαι οὔτ΄ ὄλλυσθαι ἀνῆκε Δίκη χαλάσασα πέδῃσινrdquo PARMEcircNIDES fragmento B8 ibid p 55 grifos nossos

19 Eacute oacutebvio que natildeo precisariacuteamos ficar restritos a apenas esses dois Diaacutelogos Por exemplo no Teeteto poderiacuteamos mencionar o problema da opiniatildeo falsa (187d-18a) PLATAtildeO Teeteto Lisboa Calouste Gulbenkian 2010 p 271-272 No Filebo a controveacutersia sobre o Uno e o Muacuteltiplo (14c-15c 23d) PLATAtildeO Filebo In ______ Diaacutelogos v 8 Universidade Federal do Paraacute 1974 No Timeu interessante notar as semelhanccedilas e dessemelhanccedilas entre o atomismo e a doutrina laacute apresentada principalmente em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo do ser e do devir enquanto imutaacutevel e mutaacutevel respectivamente (27d-28b) poderiacuteamos mencionar ainda a descriccedilatildeo da gecircnese do mundo como um ser vivo e sua forma arredondada numa espeacutecie de reconciliaccedilatildeo com o eleatismo de Parmecircnides (30d-40d) PLATAtildeO Timeu-Criacutetias Coimbra Universidade de Coimbra 2011 p 92-93 99-115

20 Sobre o paradoxo envolvendo a questatildeo de se afirmar o nada cf HEIDEGGER O que eacute metafiacutesica Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 235

21PLATAtildeO Sofista Satildeo Paulo Abril Cultural 1972 p 162

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Eacute notoacuterio que os esclarecimentos prestados ao jovem Teeteto pelo Estrangeiro conduzem a um ldquoparriciacutediordquo22 significando uma espeacutecie de rompimento de Platatildeo com a henologia eleata ortodoxa Todavia tatildeo pouco esse rompimento significa a aceitaccedilatildeo da posiccedilatildeo atomista por Platatildeo23 No diaacutelogo Parmecircnides (137ac-166c) o Outro do Uno (o ser outro) eacute afirmado como uma necessidade no acircmbito da dialeacutetica platocircnica24 sem o qual a Doutrina das Ideias natildeo escaparia agraves dificuldades apontadas (130c-134e) e que satildeo decorrentes de uma ortodoxia henoloacutegica advindas do proacuteprio eleatismo

Contudo o objetivo desta raacutepida explanaccedilatildeo foi o de apenas tornar um pouco mais evidente a oposiccedilatildeo entre o pluralismo ontoloacutegico e material de Demoacutecrito (como se acredita ser tambeacutem o de Leucipo) e o monismo de Parmecircnides Nas seccedilotildees subsequentes defenderemos que essa oposiccedilatildeo fundamental entre o ser e o vazio natildeo implica uma contradiccedilatildeo (loacutegica) como no eleatismo mas sim uma forma de oposiccedilatildeo jaacute percebida por Platatildeo como necessaacuteria (por exemplo no Sofista 256d - 259d) e que poderiacuteamos interpretar como sendo tambeacutem aquela apresentada por Kant e denominada por ele como oposiccedilatildeo real E para natildeo nos afastarmos desse intuito prossigamos nestas ponderaccedilotildees

3 equivaLecircncia entre Ser e natildeo-Ser

Na seccedilatildeo precedente refletimos sobre algumas das consideraccedilotildees mais centrais do eleatismo basicamente aquelas que afirmam o ser como necessariamente um e imoacutevel25 Tambeacutem tivemos a oportunidade de acompanhar como Demoacutecrito ao desenvolver a filosofia de seu mestre Leucipo eacute capaz de

22Ibid p 168 (241a-242b)23Apesar de apresentar pontos de contato com o atomismo de Demoacutecrito e Leucipo e com certos

aspectos do eleatismo ortodoxo a visatildeo cosmogocircnica exposta por Platatildeo no Timeu se distancia de ambos ao assumir a dialeacutetica como pressuposto metodoloacutegico e epistemoloacutegico Por exemplo quando da descriccedilatildeo da dinacircmica dos elementos de um ponto de vista puramente dialeacutetico (56c-61c) ou quando da apresentaccedilatildeo do terceiro princiacutepio que soacute ldquo[] acessiacutevel por meio de um certo raciociacutenio bastardo (logismocirc tini nothocirc) sem recurso aos sentidos a custo crediacutevel (52a-b) PLATAtildeO Timeu-Criacutetias op cit p 136-155

24Cf tambeacutem PLATAtildeO Sofista (253d - 254b) op cit p 184-18525 Aleacutem dessa definiccedilatildeo essencial do ser Parmecircnides especialmente no fragmento B8 fornece

uma seacuterie de outros atributos que poderiacuteamos considerar como derivados ou secundaacuterios como completude (plenitude) inteireza esfericidade indestrutibilidade limite externo compacidade homogeneidade continuidade que de certo modo podem ser reduzidos uns aos outros e referidos agravequeles dois que interpretamos como essenciais

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defender a proposiccedilatildeo ldquoO nada existe tanto quanto o lsquoalguma coisarsquordquo26 Assim na antiga escola atomista o movimento eacute aceito e justificado na medida em que admite o vazio (o natildeo-ser) pelo qual se opera o mecanismo da mudanccedila da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo no acircmbito do composto atraveacutes da junccedilatildeo e da dissoluccedilatildeo de suas partes elementares Tomando igualmente o vazio como princiacutepio os atomistas antigos satildeo capazes de oferecer uma resposta ao problema do movimento e do vir-a-ser problema este colocado pelo menos desde Parmecircnides

Dessa forma divergem as teses baacutesicas do eleatismo e do atomismo De um lado fica estabelecida a necessidade da postulaccedilatildeo do ser uno e pleno de maneira exclusiva e solitaacuteria excluindo por essa via a possibilidade de uma justificaccedilatildeo do vir-a-ser de outro encontramos a postulaccedilatildeo do vazio colocado como oposiccedilatildeo ao ser mas tambeacutem como seu equivalente formal e material servindo como canal comunicante sem o qual o movimento proacuteprio da natureza natildeo seria concebiacutevel ou racionalizaacutevel

Essa disputa entre escolas ou doutrinas aponta para uma oposiccedilatildeo mais fundamental trata-se da oposiccedilatildeo entre o ser e o natildeo-ser ou entre o pleno e o vazio No eleatismo o ser apresenta anterioridade loacutegica e ontoloacutegica Jaacute na filosofia da natureza de Demoacutecrito e Leucipo o ser e o natildeo-ser devem ser colocados lado a lado o que permite a essa filosofia se abrir para o vir-a-ser ao aceitar desde o iniacutecio essa radical alteridade do outro do ser como princiacutepio equivalente ao ser

A afirmaccedilatildeo da multiplicidade e do movimento pressupotildeem desde o iniacutecio a alteridade o outro do ser Isso parece ter ficado bastante evidente para Platatildeo que no Parmecircnides (130c-134e) apoacutes o momento em que o personagem que daacute nome ao Diaacutelogo ter elencado uma seacuterie de argumentos27 contra a Doutrina das Ideias apresenta uma revisatildeo da henologia eleaacutetica posicionando o Outro do Uno junto ao Uno como alteridade necessaacuteria para o equiliacutebrio do jogo dialeacutetico somente assim alcanccedilando ecircxito em tentar salvar essa doutrina dos ferozes ataques lanccedilados contra ela28 E no Filebo tambeacutem 26 DEMOacuteCRITO fragmento 156 In BORNHEIN op cit p 113 27 Sete no total Cf PLATAtildeO Parmecircnides op cit 130c-134e28 A estrutura dessa investigaccedilatildeo dialeacutetica no Parmecircnides pode ser concentrada nas oito consequecircncias

obtidas da anaacutelise da protoideia do uno Por meio do meacutetodo dialeacutetico satildeo obtidos resultados afirmativos e negativos tanto para a existecircncia como para a negaccedilatildeo da existecircncia do uno Esses resultados parecem se equilibrar gerando a impressatildeo de um resultado aparentemente nulo mas que ao final trazem resultados positivos seja para uma revisatildeo do eleatismo seja para uma sofisticaccedilatildeo da Teoria das Ideias Para uma anaacutelise desse assunto cf REALE G Para uma nova interpretaccedilatildeo de

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encontramos essa disposiccedilatildeo dualista atraveacutes da apresentaccedilatildeo da teoria dos princiacutepios formadores para as proacuteprias ideias Segundo essa teoria conhecida como Protologia Platocircnica29 as ideias as formas puras do mundo inteligiacutevel nasceriam do encontro e da uniatildeo do limite identificado com o Uno e do ilimite identificado com o muacuteltiplo infinito (Filebo 16d-e 23d-26d) Limite e ilimite satildeo tomados como princiacutepios absolutos poreacutem geradores das ideias apenas quando relativizados um pelo outro

Guardadas as respectivas diferenccedilas tanto em Platatildeo como nos atomistas fica estabelecida uma equivalecircncia entre ser e natildeo-ser Essa negaccedilatildeo do ser eacute concebida como o Outro-do-ser (oposto ao ser a sua alteridade) O muacuteltiplo eacute na sua essecircncia uacuteltima o composto formado pelo ser e pelo natildeo-ser que como vimos acima eacute entendido como vazio pelos atomistas A partir desse ponto de vista a natureza moacutevel apresenta-se como um tipo de extensatildeo discreta fundada em um dualismo ontoloacutegico no qual encontramos o mesmo (a unidade o limite a identidade o aacutetomo o ser) e o outro (a diferenccedila a alteridade o ilimite o vazio o natildeo-ser)

Em suma o movimento soacute pode ser assumido na medida em que o muacuteltiplo puder ser concebido como o composto formado pelo ser e pelo outro do ser ambos conectados pela relaccedilatildeo de vizinhanccedila Essa vizinhanccedila eacute definida como uma equivalecircncia ontoloacutegica entre o vazio (nadameacuteden) ao lado do ser o que garantiria a separabilidade atocircmica (divisibilidade finita) sem a qual o composto natildeo seria concebiacutevel Do contraacuterio natildeo havendo o vazio soacute haveria o ser-uno unidade simples homogecircnea indiferenciada e tambeacutem imoacutevel jaacute que sempre plena Nesse caso nenhuma vizinhanccedila poderia ser constatada ou afirmada uma vez que a vizinhanccedila pressupotildee a dualidade de elementos O movimento estaria necessariamente vinculado ao dualismo ontoloacutegico e excluiacutedo do monismo pois neste natildeo haveria lugar para a alteridade ou vizinhanccedila

Na medida em que o ser e o vazio satildeo considerados conceitos fundantes no atomismo antigo a relaccedilatildeo de vizinhanccedila fica estabelecida nessa diferenciaccedilatildeo originaacuteria Assim o vazio (o nada) se coloca imediatamente em uma relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o ser no exato momento em que eacute compreendido como a sua radical alteridade E paradoxalmente eacute somente nesse sentido que o vazio eacute a saber na medida mesma em que ele natildeo eacute pleno E a reciacuteproca tambeacutem eacute

Platatildeo Releitura da metafiacutesica dos grandes diaacutelogos agrave luz das ldquoDoutrinas natildeo-escritasrdquo Satildeo Paulo Loyola 1991

29 Ibid p 164-165

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assim afirmada Como o vazio eacute o proacuteprio ser-outro porque instantaneamente se coloca nessa relaccedilatildeo de vizinhanccedila originaacuteria e imediata com o ser o ser tambeacutem se coloca nessa relaccedilatildeo primitiva com o vazio e somente neste sentido o ser eacute isto eacute na medida em que natildeo eacute vazio Platatildeo parece se aproximar dessa posiccedilatildeo atomista quando no Sofista introduz a seguinte indagaccedilatildeo atraveacutes das palavras do Estrangeiro de Eleia ldquoAssim pois estaacute claro que o movimento eacute realmente natildeo ser ainda que seja ser na medida em que participa do serrdquo E prossegue

Segue-se pois necessariamente que haacute um ser do natildeo-ser natildeo somente no movimento mas em toda a seacuterie dos gecircneros pois na verdade em todos eles a natureza do outro faz cada um deles outro que natildeo o ser e por isso mesmo natildeo-ser Assim universalmente por essa relaccedilatildeo chamaremos a todos corretamente natildeo-ser e ao contraacuterio pelo fato de eles participarem do ser diremos que satildeo seres30

Por esse ponto de vista o ser tambeacutem eacute definido em funccedilatildeo de sua relaccedilatildeo com o natildeo-ser que aqui alinhamos com o vazio como o outro do pleno Desse modo essa subordinaccedilatildeo do ser em relaccedilatildeo ao natildeo-ser (o vazio) ou do natildeo-ser (vazio) em relaccedilatildeo ao ser redunda em uma relaccedilatildeo de simetria entre ambos Como resultado temos que natildeo haacute um sentido uacutenico ou prioritaacuterio no condicionamento ontocausal entre ser e vazio A conclusatildeo eacute que ao assumir o movimento como um fato da natureza ou como princiacutepio o ser deixa de apresentar prioridade ontoloacutegica e causal

Nesse sentido ser e natildeo-ser perfazem de maneira equivalente as condiccedilotildees necessaacuterias para o movimento E ainda que a oposiccedilatildeo radical seja o elo constituinte desses princiacutepios originaacuterios ela natildeo implica a anulaccedilatildeo muacutetua de um pelo outro quando simultaneamente justapostos no pensamento assim como os eleatas tentaram mostrar atraveacutes dos paradoxos associados agrave divisibilidade e ao movimento31 Pelo contraacuterio a oposiccedilatildeo radical entre pleno e vazio entre ser e natildeo-ser eacute a proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade do movimento e por isso da efetividade do real Passa a valer por conseguinte nesse caso a necessidade da bicondicionalidade ontocausal entre ser e natildeo-ser radicada na relaccedilatildeo de vizinhanccedila entre ambos na constituiccedilatildeo do real como efetiva e cambiante multiplicidade

30PLATAtildeO Sofista (256e) opcit p 18931Cf ZENAtildeO In BORHEIM op cit p 60-63

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Sumariando as teses de Demoacutecrito e Leucipo temos que

1 O ser eacute quando colocado numa relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o vazio

2 O vazio eacute prefigura junto ao pleno como condiccedilatildeo necessaacuteria para o movimento

3 As teses anteriores se reduzem agrave maacutexima O natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser

4 uma Leitura De Kant a partir Das consiDeraccedilotildees anteriores

Passamos agora a considerar de que form eacute possiacutevel obter por meio do texto Ensaio para introduzir em filosofia o conceito de grandeza negativa32 um novo focirclego para a discussatildeo precedente33 Assim ao analisarmos esse texto manteremos sob nosso olhar aquela oposiccedilatildeo radical e fundamental acima apontada entre ser e natildeo-ser para tentar entendecirc-la atraveacutes daquilo que Kant chama ora de oposiccedilatildeo real ora de oposiccedilatildeo loacutegica sendo a primeira o tipo de oposiccedilatildeoequivalecircncia que relacionaremos com o atomismo antigo e a segunda aquilo que identificaremos como a oposiccedilatildeocontradiccedilatildeo denunciada nas formulaccedilotildees do eleatismo

No prefaacutecio ao Ensaio Kant deixa claro que a filosofia pode se utilizar das ciecircncias naturais e exatas seja copiando seus meacutetodos seja aplicando suas proposiccedilotildees deslocando-as para um novo contexto34 Procederaacute entatildeo com a tentativa de introduzir no seio da filosofia a ideia de grandeza negativa recurso jaacute empregado em matemaacutetica e fiacutesica

Eacute preciso distinguir o significado da proposiccedilatildeo grandeza negativa daquele outro de negaccedilatildeo de uma grandeza35 Uma grandeza negativa eacute a afirmaccedilatildeo de uma grandeza que simplesmente se opotildee a uma outra e que portanto revela uma positividade colocada numa relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo a outra positividade Jaacute na expressatildeo negaccedilatildeo de uma grandeza a grandeza eacute tomada

32 Com o tiacutetulo Versuch den Begriff der negativen Grossen in die Weltweisheit einzufuumlhren essa obra foi publicada pela primeira vez em 1763 Doravante iremos nos referir a ela de maneira abreviada apenas por Ensaio

33Ver nota 134No ano seguinte agrave publicaccedilatildeo do Ensaio essa posiccedilatildeo a respeito da filosofia e das ciecircncias eacute relativizada

com a publicaccedilatildeo de um texto intitulado ldquoInvestigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moralrdquo In KANT Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In______ Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 101-140

35 KANT Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia Ibid p 56

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isoladamente sem qualquer relaccedilatildeo com outra e por isso nenhuma oposiccedilatildeo eacute considerada a partir dela Aqui Kant toma para si a ideia de oposiccedilatildeo que estaacute na raiacutez do conceito de movimento ou de forccedila na Fiacutesica

Nesse sentido a negatividade da formulaccedilatildeo grandeza negativa deve ser interpretada como a projeccedilatildeo da oposiccedilatildeo sobre uma das grandezas polares da relaccedilatildeo que se estabelece entre forccedilas no mundo daiacute a expressatildeo oposiccedilatildeo real Tomemos o exemplo de Kant segundo o qual a atraccedilatildeo negativa que um corpo exerce sobre outro seraacute erroneamente interpretada se for compreendida como a negaccedilatildeo da forccedila de atraccedilatildeo por sua vez seraacute acertadamente compreendida se for tomada como uma grandeza negativa a forccedila de repulsatildeo36 Dessa maneira ela soacute poderaacute ser considerada como negativa se tomada relativamente a outra grandeza a atraccedilatildeo do contraacuterio ela eacute positiva Ou seja a negatividade ou a positividade das grandezas soacute pode ser estabelecida de maneira relativa isto eacute dada a situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre elas No exemplo considerado se o resultado da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre as duas forccedilas de atraccedilatildeo (positiva e negativa) for o repouso entatildeo temos a privaccedilatildeo (nihil privativum representabile) do movimento do objeto sobre o qual essas forccedilas estatildeo agindo e atraveacutes do qual elas puderam se colocar em confronto

Nesse caso eacute necessaacuterio natildeo tomar o efeito (repousoausecircncia do movimento do objeto) pela causa (o equiliacutebrio entre as forccedilas de atraccedilatildeo positiva e negativa) O resultado desse desacerto do juiacutezo seria confundir atraccedilatildeo negativa com ausecircncia de atraccedilatildeo ou a grandeza negativa com negaccedilatildeo de uma grandeza

Consideremos juntamente com Kant o conceito de grandeza negativa em geral para em seguida determinar os seus significados especiacuteficos Levando-se em conta que a chave para predicarmos as grandezas eacute a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo37 entatildeo temos que verificar as duas maneiras por meio das quais podemos considerar essa noccedilatildeo 1ordm como oposiccedilatildeo loacutegica 2ordm como oposiccedilatildeo real Assim Kant estabelece dois niacuteveis de anaacutelise para a apreciaccedilatildeo da noccedilatildeo de oposiccedilatildeo aquele da loacutegica e aquele da natureza Com isso ele pretende distinguir as respectivas funccedilotildees causais da oposiccedilatildeo considerada em cada um desses niacuteveis

Na oposiccedilatildeo loacutegica natildeo resta nenhuma consequecircncia da conexatildeo entre a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo nihil negativum irrepresentabile Dadas duas

36Ibid p 5637Ibid p 57

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afirmaccedilotildees absolutamente contraacuterias o pensamento se surpreende na situaccedilatildeo de natildeo poder prosseguir com seu trabalho obediente como eacute aos princiacutepios de contradiccedilatildeo e terceiro excluiacutedo (tertium non datur) Nesse sentido a contradiccedilatildeo que eacute como entendemos a oposiccedilatildeo loacutegica gera um tipo de vacuidade do pensamento um nada impensaacutevel um absoluto vazio que eacute como aquele nada asseverado por Parmecircnides ldquoNecessaacuterio eacute dizer e pensar que soacute o ser eacute pois o ser eacute e o nada ao contraacuterio nada eacute []rdquo38

Se pensarmos nos estados de movimento e de repouso referidos ao mesmo objeto e abstraindo-se o tempo encontraremos na base mais elementar desses estados contraacuterios os conceitos de ser e de natildeo-ser tidos como opostos no sentido exclusivamente loacutegico (contraacuterios) obtendo como resultado a contradiccedilatildeo e a impossibilidade do pensamento Nesse caso movimento e repouso deixaram de ser grandezas ou estados de coisas e se tornaram puras abstraccedilotildees Logo o natildeo-ser da negatividade natildeo apresenta nenhum tipo de positividade Isto eacute o natildeo-ser eacute absolutamente negativo e eacute tomado como logicamente dependente da positividade do ser como sua pura negaccedilatildeo Por sua vez o ser eacute tomado como conceito originaacuterio e absoluto cuja positividade independe de qualquer relaccedilatildeo apresentando assim precedecircncia loacutegica e exclusividade ontoloacutegica sobre o natildeo-ser

Por outro lado natildeo eacute possiacutevel afirmar que o ser ou o natildeo-ser possuam qualquer prevalecircncia um sobre o outro qualquer antecedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica quando considerados como grandezas no mundo

O movimento eacute tomado como algo positivo na medida em que eacute a efetivaccedilatildeo de um estado de coisas ldquoxrdquo no mundo por sua vez o repouso eacute tambeacutem uma positividade na medida em que significa um outro estado de coisas ldquoyrdquo oposto a ldquoxrdquo A negatividade nessa oposiccedilatildeo recai arbitrariamente sobre ldquoxrdquo ou ldquoyrdquo por meio de uma proposiccedilatildeo que estabelece a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo A negatividade recairaacute sobre ldquoxrdquo ou sobre ldquoyrdquo de acordo com a forma assumida pela proposiccedilatildeo que iraacute fazer variar a negatividade (ou a positividade) em funccedilatildeo da finalidade enfaacutetica que se queira dar a ldquoxrdquo ou a ldquoyrdquo

Somente quando se diz que um mesmo corpo estaacute e natildeo estaacute a um soacute tempo e na mesma relaccedilatildeo em repouso ou em movimento eacute que essa vacuidade no pensar aparece

38ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν[]rdquo PARMENIDES fragmento B6 In BORHEIM op cit p 55

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Um corpo em movimento eacute algo um corpo que natildeo estaacute em movimento eacute tambeacutem algo (cogitabile) no entanto um corpo que ao mesmo tempo e justamente sob a mesma relaccedilatildeo estivesse e natildeo estivesse em movimento eacute absolutamente nada39

A expressatildeo a um soacute tempo significa que o corpo eacute colocado na situaccedilatildeo em que se abstrai a seacuterie contiacutenua do tempo Isso quer dizer que uma uacutenica porccedilatildeo elementar do tempo foi tomada e isolada das demais Todavia uma porccedilatildeo assim isolada do tempo tomada em sentido absoluto natildeo eacute tempo algum Uma vez que a seacuterie de tempo eacute contiacutenua ou se toma uma porccedilatildeo do tempo que por sua vez conteacutem em si uma nova seacuterie temporal infinita (nesse caso a parte eacute igual ao todo) ou natildeo se toma tempo algum Em outras palavras a expressatildeo a um soacute tempo natildeo tem aqui nenhum significado temporal positivo mas apenas negativo significando fora do tempo

Assim procedeu Parmecircnides ao abstrair o tempo para todas as formas proposicionais vaacutelidas reduzindo toda forma de pensamento a uma expressatildeo proposicional afirmativa atemporal onde a positividade eacute sempre absoluta e por isso possui prioridade loacutegica e ontoloacutegica sobre a negatividade Nesse caso toda oposiccedilatildeo eacute sempre contradiccedilatildeo

Jaacute na oposiccedilatildeo real encontramos uma forma de pensamento que natildeo subtrai a seacuterie do tempo Nesse caso a oposiccedilatildeo real apresenta uma estrutura a qual pode ser esquematicamente apresentada como (+A ndashA = B) onde (B = 0) ou (B ne 0) e onde os elementos integrantes dessa operaccedilatildeo (+A) e (ndashA) natildeo deixam de ser pela atribuiccedilatildeo de uma negatividade meramente relativa mesmo quando (B=0) sendo ambos justamente a causa eficiente desse privatio

O (B = 0) como privatio natildeo eacute mera nulidade devendo ser tratado como a realizaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo resultante de um encontro entre potecircncias equivalentes mas opostas uma a outra Aqui natildeo existe contradiccedilatildeo em dizer que se trata de potecircncias equivalentes-opostas pois nesse caso tanto a negatividade como a positividade satildeo relativas e natildeo absolutas Natildeo existe autonomia ontoloacutegica da positividade nem da negatividade Trata-se aqui de predicados e natildeo de seres

Por sua vez o estado de coisas representado por (B = 0) esta efetividade eacute novamente um natildeo-ser poreacutem apenas em relaccedilatildeo a outro estado de coisas a que ele se opotildee Assim este (0) eacute um algo que eacute predicado a algo inserido na 39 Ibidem p 58 grifos nossos

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seacuterie contiacutenua do tempo e que eacute designado como privaccedilatildeo Apenas quando se abstrai da seacuterie do tempo eacute que x = 0 representa um nada absoluto Nesse caso o que eacute afirmado eacute inteira e instantaneamente anulado pelo que eacute negado e vice-versa pois a positividade e a negatividade do que eacute afirmado e negado se referem aos proacuteprios seres

Jaacute na oposiccedilatildeo real ainda que duas condiccedilotildees contraacuterias atuem simultaneamente sobre o mesmo objeto a contradiccedilatildeo (vacuidade do pensamento) natildeo eacute o resultado porque a expressatildeo simultaneamente (ausecircncia de sucessatildeo temporal) eacute aqui relativizada Se pensarmos na destruiccedilatildeo de um corpo esse movimento seraacute oposto ao de sua criaccedilatildeo No entanto tais movimentos natildeo satildeo contraditoacuterios um ao outro quando pensados juntos Natildeo inferimos uma vacuidade no pensamento da conjunccedilatildeo simultacircnea desses dois eventos desde que sejam pensados como eventos e portanto diluiacutedos no contiacutenuo temporal A contiacutenua transformaccedilatildeo (movimento) dos corpos vivos por exemplo tem por base um confronto entre a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo celular atuando nos organismos vivos quer dizer um estado de coisas manifestamente expresso como forccedilas antagocircnicas simultaneamente presentes no mesmo objeto No niacutevel celular essa simultaneidade eacute relativizada enquanto algumas ceacutelulas satildeo criadas outras satildeo destruiacutedas Essa relativizaccedilatildeo da simultaneidade natildeo exclui um efetivo antagonismo seja em que niacutevel for onde a positividade ou a negatividade satildeo arbitrariamente atribuiacutedas a um dos polos da oposiccedilatildeo natildeo havendo qualquer precedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica de um polo sobre o outro A geraccedilatildeo eacute negativa se a destruiccedilatildeo for tomada como positiva e vice-versa

Na dinacircmica uma forccedila motriz eacute dita positiva somente quando oposta a outra dita negativa a resistecircncia Ainda que opostas uma a outra forccedilas com vetores contraacuterios desse encontro natildeo se infere um absurdo como uma contradiccedilatildeo mas um estado de coisas real de oposiccedilatildeo de contrariedade O resultado pode ser tanto o repouso no caso das forccedilas opostas possuiacuterem a mesma potecircncia (serem equivalentes) ou o movimento que apresenta o mesmo vetor de uma das forccedilas conflitantes Em ambos os casos o resultante dessa oposiccedilatildeo eacute algo que pode ser efetivamente afirmado sobre o mundo e natildeo um vazio ou um nada irrepresentaacutevel Ainda que nesse caso o repouso possa ser representado por (B = 0) este (B = 0) natildeo deve ser entendido como uma indeterminaccedilatildeo mas sim como privaccedilatildeo Logo percebemos que a contradiccedilatildeo natildeo eacute aplicaacutevel a estados de coisas imersos na seacuterie contiacutenua do tempo

Tanto na oposiccedilatildeo loacutegica como na oposiccedilatildeo real o efeito pode ser representado como (=0) ou como vazio ou ainda como nada Entretanto

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o sentido desse vazio ou desse nada deve ser relativizado para cada situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo Na oposiccedilatildeo loacutegica significa contradiccedilatildeo (nihil negativum irrepresentabile) ou ausecircncia da possibilidade do pensamento A nosso ver este seria o caso do significado do natildeo-ser empregado por Parmecircnides onde localizamos a supressatildeo instantacircnea (anulaccedilatildeo ausecircncia absoluta) dos opostos Jaacute o nada ou o vazio da oposiccedilatildeo real eacute absolutamente representaacutevel Aqui eacute possiacutevel embora de maneira arbitraacuteria estabelecer os valores positivo e negativo dos elementos que se colocam na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo

5 concLusatildeo

Apoacutes oferecer alguns exemplos para o conceito de grandeza negativa na segunda seccedilatildeo do Ensaio Kant conduz suas consideraccedilotildees para o campo da filosofia que para ele deve se ocupar prioritariamente da metafiacutesica e cujo meacutetodo analiacutetico apresentado por ele em outro de seus textos desse periacuteodo40 jaacute fornece indiacutecios dos passos que daraacute no sentido de sua futura proposta mais amadurecida para uma teoria criacutetico-transcendental

Assim alerta Kant no Ensaio entendemos facilmente que algo natildeo seja se lhe carece a razatildeo positiva para sua existecircncia todavia temos dificuldades para entender como algo que efetivamente eacute deixa de ser41 isto eacute temos dificuldade em compreender o correto sentido de privaccedilatildeo O esclarecimento acerca dessa questatildeo eacute fundamental jaacute que o vir-a-ser isto eacute o deixar de ser como privaccedilatildeo eacute a maneira mais fundamental de entender o conceito de movimento Essa dificuldade em reconhecer o correto sentido de privaccedilatildeo eacute o que algumas vezes nos compele a confundi-la com a contradiccedilatildeo e por isso obter como resultado a negaccedilatildeo do movimento compreendendo-o erroneamente como gerador do absurdo

Assim sugere Kant se represento o Sol em minha imaginaccedilatildeo e se no instante seguinte deixo de ter presente essa representaccedilatildeo em minha mente isso natildeo significa que meu pensamento sobre o Sol tenha simplesmente desaparecido e se tornado um puro nada aniquilando-se na vacuidade de uma contradiccedilatildeo entre ser e natildeo-ser mas sim porque a representaccedilatildeo do sol foi suprimida por outra sorte qualquer de ideia que se impocircs com a intensidade

40KANT I Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In ______ Escritos Preacute-criacuteticos Trad Jair Barboza [et al] Satildeo Paulo UNESP 2005 p 116-117

41KANT opcit p 79

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suficiente para substituiacute-la parcial ou inteiramente segundo uma determinada relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo contingente ao espiacuterito

A simples negaccedilatildeo da representaccedilatildeo considerando que ela simplesmente anulou a si mesma deixando assim de existir nos remete para a situaccedilatildeo de um nada irrepresentaacutevel um impensaacutevel natildeo-ser como em Parmecircnides Jaacute na privaccedilatildeo existe uma interaccedilatildeo entre forccedilas opostas a qual natildeo aparece como contradiccedilatildeo uma vez que princiacutepios afirmativos opostos (representaccedilotildees opostas) coincidiriam sob a mesma forma do pensamento anulando assim o efeito de uma delas ou de ambas O resultado eacute a afirmaccedilatildeo de um ser que eacute tambeacutem natildeo-ser jaacute que a negatividade do natildeo-ser da representaccedilatildeo aqui eacute simplesmente relativa dada pela situccedilatildeo de oposiccedilatildeo A representaccedilatildeo arbitrariamente tomada como negativa natildeo eacute menos ser que aquela tomada como positiva A supressatildeo de uma pela outra natildeo se mostra como contradiccedilatildeo mas como a privaccedilatildeo

Eacute concebiacutevel assim pensar legitimamente o natildeo-ser da representaccedilatildeo desde que seja considerado como privaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel se falar com verdade em princiacutepios opostos e equivalentes e que produzem em seu encontro a afirmaccedilatildeo de algo como um nada Dessa maneira seja a1

a afirmaccedilatildeo (ser) de um determinado estado de coisas no mundo (ou de uma representaccedilatildeo de algo no mundo) e a2 o seu equivalente oposto (o natildeo-ser) temos que

a1 ndash a2 = 0

Arbitrariamente tomamos a2 como a representaccedilatildeo negativa contudo a negatividade aqui revela apenas a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre a1 e a2 e natildeo uma situaccedilatildeo absoluta de a2 Como grandezas equivalentes que se opotildeem o resultado (= 0) revela uma oposiccedilatildeo real natildeo uma contradiccedilatildeo Nem a1

e a2 podem ser ditas potecircncias contraditoacuterias nessa relaccedilatildeo visto que este (= 0) eacute a afirmaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo de um ser que eacute tambeacutem um natildeo-ser assim como o repouso eacute igualmente uma forma de natildeo-ser do movimento O pensamento que leva em conta os opostos eacute pois uma possibilidade real e mesmo necessaacuteria para a consideraccedilatildeo do movimento

Segundo a foacutermula de Demoacutecrito o natildeo-ser natildeo eacute mais nem menos que o ser Ora soacute podemos entender essa afirmaccedilatildeo de duas maneiras convergentes ou como afirmaccedilatildeo do mesmo estatuto ontoloacutegico para o ser e para o natildeo-ser ou como atribuiccedilatildeo da mesma funccedilatildeo causal (material) para ambos Nos dois casos o ser soacute eacute na presenccedila ou com a premissa do natildeo-ser e vice-versa E assim o natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser Estaacute claro que esse princiacutepio natildeo

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se ajusta sem qualquer intervenccedilatildeo agraves formulaccedilotildees de Parmecircnides Por esse desacordo eacute possiacutevel identificar no antigo atomismo uma negatividade do ser que natildeo engendra a vacuidade do pensamento Pelo contraacuterio o movimento do pensamento soacute eacute possiacutevel por meio dessa oposiccedilatildeo fundamental Em Platatildeo esse movimento do pensamento ganha o nome de dialeacutetica

Concluiremos este estudo com a seguinte afirmaccedilatildeo de Kant ldquoTodos os fundamentos reais do universo quando se somam todos que satildeo consonantes e se subtraem uns dos outros os que se opotildeem entre si datildeo um resultado igual a zerordquo42 Esse zero significa a afirmaccedilatildeo da efetividade do mundo Esse zero representa um repouso que nem por isso deixa de ser dinacircmico Assim esperamos ter aproximado o conteuacutedo do Ensaio com o pensamento daqueles filoacutesofos da natureza que se colocavam conformes a um princiacutepio universal sem negar a unidade do pensamento e do movimento do mundo De acordo com eles o mundo deve se ordenar segundo esses princiacutepios mutuamente opostos ser e natildeo-ser os quais estatildeo na origem desse repouso dinacircmico na exata medida da efetivaccedilatildeo de seus encontros

SANTOS Eberth Eleuterio dos Leucippus Democritus and Kant a reflection on the equivalence between being and non-being TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 38 n 2 p 71-94 MaioAgo 2015

ABSTRACT Initially we present the theory of Democritus and Leucippus whereby being is not more than the not-being (non-being) in contrast to Eleatic ideas about the necessary inexistence of the not-being This discussion leads us to the opposition between the whole (full) and the empty which will then be transposed into the opposition between being and nothingness (or not-being) Thus the opposition between whole and the empty is an opposition that moves to being and not-being Finally we will make an assessment of the Kantian pre-critical essay Attempt to introduce the concept of negative magnitude into philosophy in which we recognize a kind of opposition that as we believe would be interpreted as being in agreement with the position of Democritus and Leucippus regarding the ontological status of the not-being as an equivalent principle to the being understood here not as a mutual contradiction in a purely logical sense

KEYWORDS ancient atomism Eleatism ontology

referecircncias

ARISTOacuteTELES Da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo seguido de convite agrave filosofia Traduccedilatildeo de Renata Maria Pereira Cordeiro Satildeo Paulo Landy 2001

42 Ibid p 89

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______ Fiacutesica I ndash II Traduccedilatildeo de Lucas Angioni Campinas Editora da UNICAMP 2009

______ Metafiacutesica texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterio de Giovanni Reale Traduccedilatildeo de Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2005 3v

BARNES J Filoacutesofos preacute-socraacuteticos Traduccedilatildeo de Juacutelio Fischer 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

BORNHEIM G Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Cultrix 2000

_______ O que eacute metafiacutesica Traduccedilatildeo de Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

HEIDEGGER M Die Zeit des Weltbildes (1938) In ______ Gesamtausgabe Frankfurt Klostermann 87-88 (1977) Bd 5 Holzwege

KANT I Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia In ______ Escritos preacute-criacuteticos Traduccedilatildeo de Viniacutecius de Figueiredo e Jair Barbosa Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 51-99

______ Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur neacutegative Traduccedilatildeo de Roger Kempf 2 eacuted Paris J Vrin 1972 (Bibliothegraveque de textes philosophiques)

______ Versuch den Begriff der negative Grossen in die Weltweisheit einzufuhres Neueste Aufl Graz Andreas Leikam 1797 Disponiacutevel em lt httpsarchiveorgstreamversuchdenbegri00kantgoogpagen43mode2upgt Acesso em 22 dez 2013

PARMENIDES Fragmentos sobre a natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

______ Da natureza Traduccedilatildeo de Jose Gabriel Trindade Santos (modificada pelo tradutor) Satildeo Paulo Loyola 2002

PLATAtildeO Filebo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ O sofista Traduccedilatildeo de Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Abril Cultural 1972

______ Parmecircnides Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos v VIII Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ Teeteto Traduccedilatildeo de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri Lisboa Calouste Gulbenkian 2010

______ Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Rodolfo Lopes Coimbra Universidade de Coimbra 201143

Recebido Received 07092014Aprovado Approved 10012015

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anteriores pontos de vista ontoloacutegicos e causais em seus aspectos formais e materiais ldquoMesmo sendo dito em tantos significados eacute evidente que o primeiro significado do ser eacute a essecircncia que indica a substacircnciardquo8 Na Fiacutesica esse esforccedilo de reconfiguraccedilatildeo e reconciliamento realizado sobre o pensamento noeacutetico e fenomecircnico tambeacutem gravitaraacute em torno do conceito de movimento

Ora eacute necessaacuterio que o princiacutepio seja um ou mais de um e se for um eacute necessaacuterio que seja ou imoacutevel como afirma Parmecircnides e Melisso ou suscetiacutevel de movimento como afirmam os estudiosos da natureza uns afirmando que o primeiro princiacutepio eacute ar outros que eacute aacutegua mas se os princiacutepios forem mais de um eacute necessaacuterio que sejam em nuacutemero limitado ou ilimitado e se forem limitados poreacutem mais de um eacute necessaacuterio que sejam dois ou trecircs quatro ou outro nuacutemero e se forem ilimitados eacute necessaacuterio que sejam ou da maneira como afirma Demoacutecrito ndash um uacutenico gecircnero mas diferenciados em figura ndash ou diferenciados em forma ou ateacute mesmo contraacuterios9

Como podemos perceber nessa passagem Aristoacuteteles coloca de um lado os monistas e imobilistas nomeando os eleatas Parmecircnides e Melisso e no lado oposto os defensores de um princiacutepio suscetiacutevel de movimento Entre estes Demoacutecrito eacute alinhado junto aos que afirmam um nuacutemero infinito de elementos de um uacutenico gecircnero (o aacutetomo) Poreacutem eacute ainda preciso conciliar essa pluralidade infinita de figuras de um uacutenico gecircnero com o movimento mencionado aqui por Aristoacuteteles

O movimento a que Aristoacuteteles se refere na passagem acima possui o sentido especiacutefico de deslocamento e natildeo o de alteraccedilatildeo Sendo o aacutetomo apenas suscetiacutevel de movimento natildeo pode conter o movimento como propriedade intriacutenseca o que significa que o aacutetomo natildeo pode se alterar mudar de aspecto se tornar diferente do que eacute pois do contraacuterio nada restaria de permanente de soacutelido de indivisiacutevel A proacutepria mudanccedila no niacutevel da multiplicidade sensiacutevel (o vir-a-ser) ficaria assim comprometida jaacute que em princiacutepio natildeo pode deixar de ser (alterar-se) aquilo que natildeo eacute em algum niacutevel elementar

Em outras palavras o aacutetomo natildeo pode ser considerado em si mesmo a fonte do movimento pois se assim o fosse tambeacutem ele deveria acomodar em si alteraccedilotildees gerando o paradoxo de ter de ser e natildeo-ser simultaneamente Falta grave ao princiacutepio de identidade e consequentemente ao princiacutepio de

8 Ibid p 287 grifos nossos9 ARISTOacuteTELES Fiacutesica I ndash II Campinas Editora da UNICAMP 2009 p 24 grifos nossos

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contradiccedilatildeo jaacute desvendada pelo eleatismo a partir de uma anaacutelise puramente noeacutetica Assim o aacutetomo eacute tomado como princiacutepio de permanecircncia Em sua definiccedilatildeo encontramos as propriedades de solidez e indestrutibilidade de perenidade e inalterabilidade Nunca tendo sido gerado o aacutetomo eacute definido como sempre idecircntico a si mesmo princiacutepio material indivisiacutevel da natureza

Diferentemente dos aacutetomos os compostos ndash os corpos (soacutemata) e os mundos (koacutesmoi) ndash apresentam a inconstacircncia que lhes eacute proacutepria sendo passiacuteveis de geraccedilatildeo e destruiccedilatildeo Nos compostos o movimento se apresenta portanto como uma propriedade manifesta Possuindo os compostos em sua base formal e material os aacutetomos (inalteraacuteveis natildeo gerados e indestrutiacuteveis) como princiacutepio de permanecircncia entatildeo o princiacutepio do movimento (geraccedilatildeo alteraccedilatildeo corrupccedilatildeo) manifesto nesses compostos deve ser buscado em outra parte isto eacute em outro elemento

E tomando o composto como o ponto de partida para a inteligibilidade da natureza os atomistas se depararam com a necessidade formal de um princiacutepio distinto do proacuteprio aacutetomo o qual permitisse a dita suscetibilidade ao movimento Em suma ao passar do niacutevel fenomecircnico para o noeacutetico os atomistas buscam legitimar a natureza mutante pelos seus princiacutepios formais e materiais Uma vez que o ser (o aacutetomo) tomado em si mesmo natildeo pode servir como princiacutepio de movimento dadas as conclusotildees sobre o plenouno jaacute assentadas desde Parmecircnides e que foram em parte assimiladas pelos atomistas caberia entatildeo atribuir a outro princiacutepio essa funccedilatildeo Como nos transmite Aristoacuteteles

Afirmam que o movimento se daacute graccedilas ao vazio com efeito segundo estes o movimento dos corpos naturais e elementares eacute um movimento local porque o movimento devido ao vazio eacute um transporte como em um lugar quanto aos outros movimentos nenhum pertence pensam eles aos corpos elementares mas somente agravequeles que deles satildeo formados dizem que o crescimento o perecimento e a alteraccedilatildeo provecircm da reuniatildeo e da separaccedilatildeo dos corpos insecaacuteveis10

Assim por meio do vazio os atomistas fornecem uma resposta ao imobilismo eleata O vazio eacute o meio comunicante que possibilita o ldquotransporterdquo Eacute por meio dele que os aacutetomos em nuacutemero infinito se deslocam se associam e se separam ldquoDemoacutecrito tinha a opiniatildeo de que os aacutetomos se movem

10 ARISTOacuteTELES Fiacutesica op cit VIII 9 265b grifos nossos

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eternamente em um espaccedilo vaziordquo11 Sem o vazio os aacutetomos permaneceriam estaacuteticos imoacuteveis e nenhuma geraccedilatildeo ou corrupccedilatildeo nenhum nascimento ou morte seria constataacutevel no acircmbito do composto E se natildeo houvesse nenhum princiacutepio de movimento nenhum vazio tambeacutem o ser (o aacutetomo) natildeo poderia ser dito no plural pois natildeo haveria nada distinto (o natildeo-ser) que permitisse a separaccedilatildeo e portanto o avizinhamento do ser consigo mesmo Tudo seria entatildeo apenas pleno uno e imoacutevel

O vazio se constitui por conseguinte como a soluccedilatildeo do antigo atomismo para o vir-a-ser Todavia com Leucipo e Demoacutecrito esta soluccedilatildeo eacute ainda um tanto insatisfatoacuteria pois eacute somente com Epicuro no final do seacuteculo IV que o peso eacute informado como uma das propriedades presentes no aacutetomo graccedilas ao qual se explicaria sua queda (deslocamento) no vazio Mas essa queda seria homogecircnea e por isso nem criativa nem destrutiva se o aacutetomo natildeo possuiacutesse sutis diferenciaccedilotildees No entanto na medida em que satildeo tambeacutem supostos infinitos em nuacutemero e em figura torna-se factiacutevel justificar a sua queda no vazio como natildeo regular mas com choques e voacutertices (clinamen) acarretando em junccedilotildees e separaccedilotildees atocircmicas Em resumo o aacutetomo apresenta um movimento por deslocamento e natildeo por alteraccedilatildeo natildeo podendo assim ser considerado o princiacutepio do movimento que apenas parcialmente se justifica pela postulaccedilatildeo do vazio como seu princiacutepio

Desse modo aacutetomo e vazio se equivalem como princiacutepios formais e materiais para a existecircncia do composto ainda que se oponham como princiacutepios de permanecircncia e de movimento respectivamente Os compostos se tornam mais densos (e pesados) na medida em que menos vazio neles houver em relaccedilatildeo aos aacutetomos na proporccedilatildeo de suas composiccedilotildees Ao mesmo tempo aacutetomo e vazio permitem compreender o movimento em sentido amplo como a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo do composto Esse movimento deve ser entendido entatildeo como a associaccedilatildeo e a dispersatildeo dos aacutetomos tornada possiacutevel pelo vazio

2 o eLeatismo e a revisatildeo pLatocircnica

Como dissemos o posicionamento dos atomistas em relaccedilatildeo ao movimento surgia como uma resposta agraves conclusotildees do imobilismo eleata Esse imobilismo por sua vez seguia como consequecircncia necessaacuteria do monismo ontoloacutegico ali presente no qual apenas o ser eacute dito com verdade Isto

11 HIPPOLOcircNIO I 13 2 in BORNHEIM op cit p 126

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eacute apenas o ser eacute dito com necessidade enquanto sobre o natildeo-ser nada pode ser dito com verdade Assim o pensamento verdadeiro porque necessaacuterio soacute pode se projetar sobre o ser que por sua vez eacute pleno e uno Atraveacutes do poema de Parmecircnides isto se torna laconicamente expliacutecito ldquoNecessaacuterio eacute o dizer e o pensar que o ente eacute pois eacute ser e nada natildeo eacute []rdquo12 e tambeacutem ldquoo outro que natildeo eacute que tem de natildeo ser esse te indico ser caminho em tudo ignotordquo13 E tendo comparado a doutrina de Parmecircnides aos ensinamentos de Xenoacutefanes e Melisso respectivamente seu mestre e disciacutepulo Aristoacuteteles conclui pelo seguinte ldquoParmecircnides ao contraacuterio [de Xenoacutefanes e Melisso] parece raciocinar com mais perspicaacutecia Por considerar que aleacutem do ser natildeo existe o natildeo-ser necessariamente deve crer que o ser eacute um e nada maisrdquo14

Em Parmecircnides o ser eacute a unidade fundamental de tudo o que pode ser dito com verdade Aqui encontramos o pensamento verdadeiro loacutegico-racional identificado agrave sua unidade pura homogecircnea indivisiacutevel e imoacutevel Em oposiccedilatildeo a isso Parmecircnides detectava o erro a falsidade o desvio da razatildeo que assumia a forma do natildeo-ser A afirmaccedilatildeo do natildeo-ser soacute poderia advir de um desvio do caminho da verdade

Nos versos de seu poema particularmente no fragmento B8 Parmecircnides nos revela o ser segundo essa concepccedilatildeo No primeiro canto O caminho da verdade fica estabelecida a identidade entre o ser e o pensamento em sentido estrito (necessaacuterio) a saber aquele pensamento acompanhado da verdade Isso significa que a realidade de direito estaacute fundada em um uacutenico princiacutepio o ser E aqui o conceito de realidade se confunde imediatamente com o de verdade loacutegica isto eacute aquilo que pode ser dito legitimamente ou sem contradiccedilatildeo E o ser se configura como o princiacutepio unicamente noeacutetico ao mesmo tempo loacutegico ontoloacutegico e epistecircmico sobre uma natureza fundamentalmente imoacutevel e apenas por isso consistente

Realidade verdade e permanecircncia se tornam conceitos congecircneres nessa particular anaacutelise ontoloacutegica da natureza O Ser - ato imediato do pensamento - jamais foi gerado jamais se altera jamais se corrompe jamais entra em conflito consigo mesmo Do contraacuterio perseguiriacuteamos o caminho da opiniatildeo

12ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν []rdquo PARMENIDES fragmento B6 (SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 117 2) In Preacute-Socraacuteticos opcit p 148

13ldquoἡ δ΄ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόνrdquo PARMENIDES Da Natureza Satildeo Paulo Loyola 2002 fragmento B2 (PROCLO Comentaacuterio ao Timeu I 345 18)

14ARISTOacuteTELES Metafiacutesica opcit p 33 grifos nossos

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no qual ser e natildeo-ser seriam reputados o mesmo ou equivalentes Contudo no caminho da verdade o pensamento (loacutegico-racional) natildeo pode admitir em seu seio a negaccedilatildeo do ser (o natildeo-ser) o outro do ser essa radical alteridade como algo que se coloca fora do ser e por isso se separa e se opotildee a ele No caminho da verdade nada pode ser dito ou pensado para aleacutem do ser Afirmar o ser para aleacutem do ser isto eacute o ser-outro ou o natildeo-ser eacute simplesmente natildeo reconhecer essa unicidade fundamental e por isso se colocar no caminho do erro da opiniatildeo falsa do engano sobre a essecircncia da natureza

Decorrecircncia dessa unicidade fundamental eacute o imobilismo da natureza no niacutevel noeacutetico A permanecircncia do ser natildeo significa outra coisa senatildeo sua incorruptibilidade em um niacutevel muito fundamental o do puro pensamento implicando a impossibilidade de uma justificaccedilatildeo loacutegico-racional para o devir da natureza sensiacutevel Eis entatildeo que o ser eacute tomado como princiacutepio uacutenico fiacutesico e metafiacutesico simbolizaacutevel por ldquoPois pensar e ser eacute o mesmordquo15 enquanto o contraacuterio eacute descartado como impossiacutevel ldquoJamais se conseguiraacute provar que o natildeo-ser eacuterdquo16

Naquilo que nos interessa aqui mais imediatamente os resultados das formulaccedilotildees do eleatismo - a afirmaccedilatildeo da permanecircncia do Ser (o Princiacutepio de Identidade) unida agrave exclusatildeo da afirmaccedilatildeo simultacircnea do ser e do natildeo-ser (o Princiacutepio da natildeo-contradiccedilatildeo) - satildeo a negaccedilatildeo do vazio do muacuteltiplo e do movimento Como assevera Melisso ldquoTambeacutem natildeo haacute nada vazio Pois o vazio nada eacute e o que nada eacute natildeo pode ser E natildeo se move Natildeo tem lugar onde mover-se pois eacute pleno Existisse o vazio mover-se-ia para o vazio Mas como natildeo haacute o vazio natildeo tem lugar para onde mover-serdquo17

Desse modo o ser no eleatismo natildeo admite para si a mudanccedila seja em que sentido for que se presuma essa mudanccedila A geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo ou mesmo o deslocamento que estatildeo na base da ideia de mudanccedila no atomismo trariam de volta o natildeo-ser para o interior de uma concepccedilatildeo de realidade da qual fora previamente excluiacutedo por forccedila do pensamento Os dois princiacutepios loacutegicos (identidade e contradiccedilatildeo) perderiam a sua validade e alcance sua legitimidade e credibilidade ldquoE jamais a forccedila da convicccedilatildeo concederaacute que do natildeo-ser possa surgir outra coisa Por isto a deusa da Justiccedila natildeo admite por

15ldquoτὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι rdquo PARMEcircNIDES fragmento B3 in BORHEIM op cit p 55 16ldquoΟὐ γὰρ μήποτε τοῦτο δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα rdquo PARMEcircNIDES fragmento B7 ibid p 5517 MELISSO fragmento 7 (SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 111118) Ibid p 65

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um afrouxamento de suas cadeias que nasccedila ou que pereccedila mas manteacutem-no firmerdquo18 Assim Parmecircnides deixa claro que o natildeo-ser natildeo eacute princiacutepio gerador do que quer que seja Trata-se de uma impossibilidade para o pensamento e portanto para o proacuteprio ser e para a natureza

E Platatildeo eacute tido como um disciacutepulo da henologia eleata Poreacutem tambeacutem eacute verdade que em pelo menos dois de seus Diaacutelogos o Sofista e o Parmecircnides19 fica evidente um desacordo entre ele Parmecircnides No Sofista (236e-237b) Platatildeo revela as dificuldades advindas de uma identificaccedilatildeo imediata loacutegica e ontoloacutegica entre verdade e ser excluindo assim o natildeo-ser de todo raciociacutenio legiacutetimo A consequecircncia dessa identificaccedilatildeo eacute a impossibilidade de se afirmar o falso Afirmar o falso apareceria como manifesta contradiccedilatildeo jaacute que seria afirmar o nada20 Contudo Platatildeo reconhece que essa impossibilidade tambeacutem se mostra como um risco epistemoloacutegico pois disso decorreria a impossibilidade de distinguir entre conhecimento (opiniatildeo verdadeira) e ignoracircncia (opiniatildeo falsa) Ao esclarecer Teeteto sobre esse fato diz o Estrangeiro de Eleia no Sofista

Eacute que realmente jovem feliz nos vemos frente a uma questatildeo extremamente difiacutecil pois mostrar e parecer sem ser dizer algo sem entretanto dizer com verdade satildeo maneiras que trazem grandes dificuldades tanto hoje como ontem e sempre Que modo encontrar na realidade para dizer ou pensar que o falso eacute real sem que jaacute ao proferi-lo nos encontremos enredados na contradiccedilatildeo [] A audaacutecia de uma tal afirmaccedilatildeo eacute supor o natildeo-ser como ser e na realidade nada de falso eacute possiacutevel sem esta condiccedilatildeo Era o que meu jovem jaacute afirmava o grande Parmecircnides tanto em prosa como em verso a noacutes que entatildeo eacuteramos jovens ldquoJamais obrigaraacutes os natildeo-seres a ser Antes afasta teu pensamento desse caminho de investigaccedilatildeo21

18ldquoΟὐδὲ ποτ΄ ἐκ μὴ ἐόντος ἐφήσει πίστιος ἰσχύς γίγνεσθαί τι παρ΄ αὐτόττοῦ εἵνεκεν οὔτε γενέσθαι οὔτ΄ ὄλλυσθαι ἀνῆκε Δίκη χαλάσασα πέδῃσινrdquo PARMEcircNIDES fragmento B8 ibid p 55 grifos nossos

19 Eacute oacutebvio que natildeo precisariacuteamos ficar restritos a apenas esses dois Diaacutelogos Por exemplo no Teeteto poderiacuteamos mencionar o problema da opiniatildeo falsa (187d-18a) PLATAtildeO Teeteto Lisboa Calouste Gulbenkian 2010 p 271-272 No Filebo a controveacutersia sobre o Uno e o Muacuteltiplo (14c-15c 23d) PLATAtildeO Filebo In ______ Diaacutelogos v 8 Universidade Federal do Paraacute 1974 No Timeu interessante notar as semelhanccedilas e dessemelhanccedilas entre o atomismo e a doutrina laacute apresentada principalmente em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo do ser e do devir enquanto imutaacutevel e mutaacutevel respectivamente (27d-28b) poderiacuteamos mencionar ainda a descriccedilatildeo da gecircnese do mundo como um ser vivo e sua forma arredondada numa espeacutecie de reconciliaccedilatildeo com o eleatismo de Parmecircnides (30d-40d) PLATAtildeO Timeu-Criacutetias Coimbra Universidade de Coimbra 2011 p 92-93 99-115

20 Sobre o paradoxo envolvendo a questatildeo de se afirmar o nada cf HEIDEGGER O que eacute metafiacutesica Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 235

21PLATAtildeO Sofista Satildeo Paulo Abril Cultural 1972 p 162

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Eacute notoacuterio que os esclarecimentos prestados ao jovem Teeteto pelo Estrangeiro conduzem a um ldquoparriciacutediordquo22 significando uma espeacutecie de rompimento de Platatildeo com a henologia eleata ortodoxa Todavia tatildeo pouco esse rompimento significa a aceitaccedilatildeo da posiccedilatildeo atomista por Platatildeo23 No diaacutelogo Parmecircnides (137ac-166c) o Outro do Uno (o ser outro) eacute afirmado como uma necessidade no acircmbito da dialeacutetica platocircnica24 sem o qual a Doutrina das Ideias natildeo escaparia agraves dificuldades apontadas (130c-134e) e que satildeo decorrentes de uma ortodoxia henoloacutegica advindas do proacuteprio eleatismo

Contudo o objetivo desta raacutepida explanaccedilatildeo foi o de apenas tornar um pouco mais evidente a oposiccedilatildeo entre o pluralismo ontoloacutegico e material de Demoacutecrito (como se acredita ser tambeacutem o de Leucipo) e o monismo de Parmecircnides Nas seccedilotildees subsequentes defenderemos que essa oposiccedilatildeo fundamental entre o ser e o vazio natildeo implica uma contradiccedilatildeo (loacutegica) como no eleatismo mas sim uma forma de oposiccedilatildeo jaacute percebida por Platatildeo como necessaacuteria (por exemplo no Sofista 256d - 259d) e que poderiacuteamos interpretar como sendo tambeacutem aquela apresentada por Kant e denominada por ele como oposiccedilatildeo real E para natildeo nos afastarmos desse intuito prossigamos nestas ponderaccedilotildees

3 equivaLecircncia entre Ser e natildeo-Ser

Na seccedilatildeo precedente refletimos sobre algumas das consideraccedilotildees mais centrais do eleatismo basicamente aquelas que afirmam o ser como necessariamente um e imoacutevel25 Tambeacutem tivemos a oportunidade de acompanhar como Demoacutecrito ao desenvolver a filosofia de seu mestre Leucipo eacute capaz de

22Ibid p 168 (241a-242b)23Apesar de apresentar pontos de contato com o atomismo de Demoacutecrito e Leucipo e com certos

aspectos do eleatismo ortodoxo a visatildeo cosmogocircnica exposta por Platatildeo no Timeu se distancia de ambos ao assumir a dialeacutetica como pressuposto metodoloacutegico e epistemoloacutegico Por exemplo quando da descriccedilatildeo da dinacircmica dos elementos de um ponto de vista puramente dialeacutetico (56c-61c) ou quando da apresentaccedilatildeo do terceiro princiacutepio que soacute ldquo[] acessiacutevel por meio de um certo raciociacutenio bastardo (logismocirc tini nothocirc) sem recurso aos sentidos a custo crediacutevel (52a-b) PLATAtildeO Timeu-Criacutetias op cit p 136-155

24Cf tambeacutem PLATAtildeO Sofista (253d - 254b) op cit p 184-18525 Aleacutem dessa definiccedilatildeo essencial do ser Parmecircnides especialmente no fragmento B8 fornece

uma seacuterie de outros atributos que poderiacuteamos considerar como derivados ou secundaacuterios como completude (plenitude) inteireza esfericidade indestrutibilidade limite externo compacidade homogeneidade continuidade que de certo modo podem ser reduzidos uns aos outros e referidos agravequeles dois que interpretamos como essenciais

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defender a proposiccedilatildeo ldquoO nada existe tanto quanto o lsquoalguma coisarsquordquo26 Assim na antiga escola atomista o movimento eacute aceito e justificado na medida em que admite o vazio (o natildeo-ser) pelo qual se opera o mecanismo da mudanccedila da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo no acircmbito do composto atraveacutes da junccedilatildeo e da dissoluccedilatildeo de suas partes elementares Tomando igualmente o vazio como princiacutepio os atomistas antigos satildeo capazes de oferecer uma resposta ao problema do movimento e do vir-a-ser problema este colocado pelo menos desde Parmecircnides

Dessa forma divergem as teses baacutesicas do eleatismo e do atomismo De um lado fica estabelecida a necessidade da postulaccedilatildeo do ser uno e pleno de maneira exclusiva e solitaacuteria excluindo por essa via a possibilidade de uma justificaccedilatildeo do vir-a-ser de outro encontramos a postulaccedilatildeo do vazio colocado como oposiccedilatildeo ao ser mas tambeacutem como seu equivalente formal e material servindo como canal comunicante sem o qual o movimento proacuteprio da natureza natildeo seria concebiacutevel ou racionalizaacutevel

Essa disputa entre escolas ou doutrinas aponta para uma oposiccedilatildeo mais fundamental trata-se da oposiccedilatildeo entre o ser e o natildeo-ser ou entre o pleno e o vazio No eleatismo o ser apresenta anterioridade loacutegica e ontoloacutegica Jaacute na filosofia da natureza de Demoacutecrito e Leucipo o ser e o natildeo-ser devem ser colocados lado a lado o que permite a essa filosofia se abrir para o vir-a-ser ao aceitar desde o iniacutecio essa radical alteridade do outro do ser como princiacutepio equivalente ao ser

A afirmaccedilatildeo da multiplicidade e do movimento pressupotildeem desde o iniacutecio a alteridade o outro do ser Isso parece ter ficado bastante evidente para Platatildeo que no Parmecircnides (130c-134e) apoacutes o momento em que o personagem que daacute nome ao Diaacutelogo ter elencado uma seacuterie de argumentos27 contra a Doutrina das Ideias apresenta uma revisatildeo da henologia eleaacutetica posicionando o Outro do Uno junto ao Uno como alteridade necessaacuteria para o equiliacutebrio do jogo dialeacutetico somente assim alcanccedilando ecircxito em tentar salvar essa doutrina dos ferozes ataques lanccedilados contra ela28 E no Filebo tambeacutem 26 DEMOacuteCRITO fragmento 156 In BORNHEIN op cit p 113 27 Sete no total Cf PLATAtildeO Parmecircnides op cit 130c-134e28 A estrutura dessa investigaccedilatildeo dialeacutetica no Parmecircnides pode ser concentrada nas oito consequecircncias

obtidas da anaacutelise da protoideia do uno Por meio do meacutetodo dialeacutetico satildeo obtidos resultados afirmativos e negativos tanto para a existecircncia como para a negaccedilatildeo da existecircncia do uno Esses resultados parecem se equilibrar gerando a impressatildeo de um resultado aparentemente nulo mas que ao final trazem resultados positivos seja para uma revisatildeo do eleatismo seja para uma sofisticaccedilatildeo da Teoria das Ideias Para uma anaacutelise desse assunto cf REALE G Para uma nova interpretaccedilatildeo de

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encontramos essa disposiccedilatildeo dualista atraveacutes da apresentaccedilatildeo da teoria dos princiacutepios formadores para as proacuteprias ideias Segundo essa teoria conhecida como Protologia Platocircnica29 as ideias as formas puras do mundo inteligiacutevel nasceriam do encontro e da uniatildeo do limite identificado com o Uno e do ilimite identificado com o muacuteltiplo infinito (Filebo 16d-e 23d-26d) Limite e ilimite satildeo tomados como princiacutepios absolutos poreacutem geradores das ideias apenas quando relativizados um pelo outro

Guardadas as respectivas diferenccedilas tanto em Platatildeo como nos atomistas fica estabelecida uma equivalecircncia entre ser e natildeo-ser Essa negaccedilatildeo do ser eacute concebida como o Outro-do-ser (oposto ao ser a sua alteridade) O muacuteltiplo eacute na sua essecircncia uacuteltima o composto formado pelo ser e pelo natildeo-ser que como vimos acima eacute entendido como vazio pelos atomistas A partir desse ponto de vista a natureza moacutevel apresenta-se como um tipo de extensatildeo discreta fundada em um dualismo ontoloacutegico no qual encontramos o mesmo (a unidade o limite a identidade o aacutetomo o ser) e o outro (a diferenccedila a alteridade o ilimite o vazio o natildeo-ser)

Em suma o movimento soacute pode ser assumido na medida em que o muacuteltiplo puder ser concebido como o composto formado pelo ser e pelo outro do ser ambos conectados pela relaccedilatildeo de vizinhanccedila Essa vizinhanccedila eacute definida como uma equivalecircncia ontoloacutegica entre o vazio (nadameacuteden) ao lado do ser o que garantiria a separabilidade atocircmica (divisibilidade finita) sem a qual o composto natildeo seria concebiacutevel Do contraacuterio natildeo havendo o vazio soacute haveria o ser-uno unidade simples homogecircnea indiferenciada e tambeacutem imoacutevel jaacute que sempre plena Nesse caso nenhuma vizinhanccedila poderia ser constatada ou afirmada uma vez que a vizinhanccedila pressupotildee a dualidade de elementos O movimento estaria necessariamente vinculado ao dualismo ontoloacutegico e excluiacutedo do monismo pois neste natildeo haveria lugar para a alteridade ou vizinhanccedila

Na medida em que o ser e o vazio satildeo considerados conceitos fundantes no atomismo antigo a relaccedilatildeo de vizinhanccedila fica estabelecida nessa diferenciaccedilatildeo originaacuteria Assim o vazio (o nada) se coloca imediatamente em uma relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o ser no exato momento em que eacute compreendido como a sua radical alteridade E paradoxalmente eacute somente nesse sentido que o vazio eacute a saber na medida mesma em que ele natildeo eacute pleno E a reciacuteproca tambeacutem eacute

Platatildeo Releitura da metafiacutesica dos grandes diaacutelogos agrave luz das ldquoDoutrinas natildeo-escritasrdquo Satildeo Paulo Loyola 1991

29 Ibid p 164-165

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assim afirmada Como o vazio eacute o proacuteprio ser-outro porque instantaneamente se coloca nessa relaccedilatildeo de vizinhanccedila originaacuteria e imediata com o ser o ser tambeacutem se coloca nessa relaccedilatildeo primitiva com o vazio e somente neste sentido o ser eacute isto eacute na medida em que natildeo eacute vazio Platatildeo parece se aproximar dessa posiccedilatildeo atomista quando no Sofista introduz a seguinte indagaccedilatildeo atraveacutes das palavras do Estrangeiro de Eleia ldquoAssim pois estaacute claro que o movimento eacute realmente natildeo ser ainda que seja ser na medida em que participa do serrdquo E prossegue

Segue-se pois necessariamente que haacute um ser do natildeo-ser natildeo somente no movimento mas em toda a seacuterie dos gecircneros pois na verdade em todos eles a natureza do outro faz cada um deles outro que natildeo o ser e por isso mesmo natildeo-ser Assim universalmente por essa relaccedilatildeo chamaremos a todos corretamente natildeo-ser e ao contraacuterio pelo fato de eles participarem do ser diremos que satildeo seres30

Por esse ponto de vista o ser tambeacutem eacute definido em funccedilatildeo de sua relaccedilatildeo com o natildeo-ser que aqui alinhamos com o vazio como o outro do pleno Desse modo essa subordinaccedilatildeo do ser em relaccedilatildeo ao natildeo-ser (o vazio) ou do natildeo-ser (vazio) em relaccedilatildeo ao ser redunda em uma relaccedilatildeo de simetria entre ambos Como resultado temos que natildeo haacute um sentido uacutenico ou prioritaacuterio no condicionamento ontocausal entre ser e vazio A conclusatildeo eacute que ao assumir o movimento como um fato da natureza ou como princiacutepio o ser deixa de apresentar prioridade ontoloacutegica e causal

Nesse sentido ser e natildeo-ser perfazem de maneira equivalente as condiccedilotildees necessaacuterias para o movimento E ainda que a oposiccedilatildeo radical seja o elo constituinte desses princiacutepios originaacuterios ela natildeo implica a anulaccedilatildeo muacutetua de um pelo outro quando simultaneamente justapostos no pensamento assim como os eleatas tentaram mostrar atraveacutes dos paradoxos associados agrave divisibilidade e ao movimento31 Pelo contraacuterio a oposiccedilatildeo radical entre pleno e vazio entre ser e natildeo-ser eacute a proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade do movimento e por isso da efetividade do real Passa a valer por conseguinte nesse caso a necessidade da bicondicionalidade ontocausal entre ser e natildeo-ser radicada na relaccedilatildeo de vizinhanccedila entre ambos na constituiccedilatildeo do real como efetiva e cambiante multiplicidade

30PLATAtildeO Sofista (256e) opcit p 18931Cf ZENAtildeO In BORHEIM op cit p 60-63

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Sumariando as teses de Demoacutecrito e Leucipo temos que

1 O ser eacute quando colocado numa relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o vazio

2 O vazio eacute prefigura junto ao pleno como condiccedilatildeo necessaacuteria para o movimento

3 As teses anteriores se reduzem agrave maacutexima O natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser

4 uma Leitura De Kant a partir Das consiDeraccedilotildees anteriores

Passamos agora a considerar de que form eacute possiacutevel obter por meio do texto Ensaio para introduzir em filosofia o conceito de grandeza negativa32 um novo focirclego para a discussatildeo precedente33 Assim ao analisarmos esse texto manteremos sob nosso olhar aquela oposiccedilatildeo radical e fundamental acima apontada entre ser e natildeo-ser para tentar entendecirc-la atraveacutes daquilo que Kant chama ora de oposiccedilatildeo real ora de oposiccedilatildeo loacutegica sendo a primeira o tipo de oposiccedilatildeoequivalecircncia que relacionaremos com o atomismo antigo e a segunda aquilo que identificaremos como a oposiccedilatildeocontradiccedilatildeo denunciada nas formulaccedilotildees do eleatismo

No prefaacutecio ao Ensaio Kant deixa claro que a filosofia pode se utilizar das ciecircncias naturais e exatas seja copiando seus meacutetodos seja aplicando suas proposiccedilotildees deslocando-as para um novo contexto34 Procederaacute entatildeo com a tentativa de introduzir no seio da filosofia a ideia de grandeza negativa recurso jaacute empregado em matemaacutetica e fiacutesica

Eacute preciso distinguir o significado da proposiccedilatildeo grandeza negativa daquele outro de negaccedilatildeo de uma grandeza35 Uma grandeza negativa eacute a afirmaccedilatildeo de uma grandeza que simplesmente se opotildee a uma outra e que portanto revela uma positividade colocada numa relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo a outra positividade Jaacute na expressatildeo negaccedilatildeo de uma grandeza a grandeza eacute tomada

32 Com o tiacutetulo Versuch den Begriff der negativen Grossen in die Weltweisheit einzufuumlhren essa obra foi publicada pela primeira vez em 1763 Doravante iremos nos referir a ela de maneira abreviada apenas por Ensaio

33Ver nota 134No ano seguinte agrave publicaccedilatildeo do Ensaio essa posiccedilatildeo a respeito da filosofia e das ciecircncias eacute relativizada

com a publicaccedilatildeo de um texto intitulado ldquoInvestigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moralrdquo In KANT Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In______ Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 101-140

35 KANT Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia Ibid p 56

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isoladamente sem qualquer relaccedilatildeo com outra e por isso nenhuma oposiccedilatildeo eacute considerada a partir dela Aqui Kant toma para si a ideia de oposiccedilatildeo que estaacute na raiacutez do conceito de movimento ou de forccedila na Fiacutesica

Nesse sentido a negatividade da formulaccedilatildeo grandeza negativa deve ser interpretada como a projeccedilatildeo da oposiccedilatildeo sobre uma das grandezas polares da relaccedilatildeo que se estabelece entre forccedilas no mundo daiacute a expressatildeo oposiccedilatildeo real Tomemos o exemplo de Kant segundo o qual a atraccedilatildeo negativa que um corpo exerce sobre outro seraacute erroneamente interpretada se for compreendida como a negaccedilatildeo da forccedila de atraccedilatildeo por sua vez seraacute acertadamente compreendida se for tomada como uma grandeza negativa a forccedila de repulsatildeo36 Dessa maneira ela soacute poderaacute ser considerada como negativa se tomada relativamente a outra grandeza a atraccedilatildeo do contraacuterio ela eacute positiva Ou seja a negatividade ou a positividade das grandezas soacute pode ser estabelecida de maneira relativa isto eacute dada a situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre elas No exemplo considerado se o resultado da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre as duas forccedilas de atraccedilatildeo (positiva e negativa) for o repouso entatildeo temos a privaccedilatildeo (nihil privativum representabile) do movimento do objeto sobre o qual essas forccedilas estatildeo agindo e atraveacutes do qual elas puderam se colocar em confronto

Nesse caso eacute necessaacuterio natildeo tomar o efeito (repousoausecircncia do movimento do objeto) pela causa (o equiliacutebrio entre as forccedilas de atraccedilatildeo positiva e negativa) O resultado desse desacerto do juiacutezo seria confundir atraccedilatildeo negativa com ausecircncia de atraccedilatildeo ou a grandeza negativa com negaccedilatildeo de uma grandeza

Consideremos juntamente com Kant o conceito de grandeza negativa em geral para em seguida determinar os seus significados especiacuteficos Levando-se em conta que a chave para predicarmos as grandezas eacute a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo37 entatildeo temos que verificar as duas maneiras por meio das quais podemos considerar essa noccedilatildeo 1ordm como oposiccedilatildeo loacutegica 2ordm como oposiccedilatildeo real Assim Kant estabelece dois niacuteveis de anaacutelise para a apreciaccedilatildeo da noccedilatildeo de oposiccedilatildeo aquele da loacutegica e aquele da natureza Com isso ele pretende distinguir as respectivas funccedilotildees causais da oposiccedilatildeo considerada em cada um desses niacuteveis

Na oposiccedilatildeo loacutegica natildeo resta nenhuma consequecircncia da conexatildeo entre a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo nihil negativum irrepresentabile Dadas duas

36Ibid p 5637Ibid p 57

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afirmaccedilotildees absolutamente contraacuterias o pensamento se surpreende na situaccedilatildeo de natildeo poder prosseguir com seu trabalho obediente como eacute aos princiacutepios de contradiccedilatildeo e terceiro excluiacutedo (tertium non datur) Nesse sentido a contradiccedilatildeo que eacute como entendemos a oposiccedilatildeo loacutegica gera um tipo de vacuidade do pensamento um nada impensaacutevel um absoluto vazio que eacute como aquele nada asseverado por Parmecircnides ldquoNecessaacuterio eacute dizer e pensar que soacute o ser eacute pois o ser eacute e o nada ao contraacuterio nada eacute []rdquo38

Se pensarmos nos estados de movimento e de repouso referidos ao mesmo objeto e abstraindo-se o tempo encontraremos na base mais elementar desses estados contraacuterios os conceitos de ser e de natildeo-ser tidos como opostos no sentido exclusivamente loacutegico (contraacuterios) obtendo como resultado a contradiccedilatildeo e a impossibilidade do pensamento Nesse caso movimento e repouso deixaram de ser grandezas ou estados de coisas e se tornaram puras abstraccedilotildees Logo o natildeo-ser da negatividade natildeo apresenta nenhum tipo de positividade Isto eacute o natildeo-ser eacute absolutamente negativo e eacute tomado como logicamente dependente da positividade do ser como sua pura negaccedilatildeo Por sua vez o ser eacute tomado como conceito originaacuterio e absoluto cuja positividade independe de qualquer relaccedilatildeo apresentando assim precedecircncia loacutegica e exclusividade ontoloacutegica sobre o natildeo-ser

Por outro lado natildeo eacute possiacutevel afirmar que o ser ou o natildeo-ser possuam qualquer prevalecircncia um sobre o outro qualquer antecedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica quando considerados como grandezas no mundo

O movimento eacute tomado como algo positivo na medida em que eacute a efetivaccedilatildeo de um estado de coisas ldquoxrdquo no mundo por sua vez o repouso eacute tambeacutem uma positividade na medida em que significa um outro estado de coisas ldquoyrdquo oposto a ldquoxrdquo A negatividade nessa oposiccedilatildeo recai arbitrariamente sobre ldquoxrdquo ou ldquoyrdquo por meio de uma proposiccedilatildeo que estabelece a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo A negatividade recairaacute sobre ldquoxrdquo ou sobre ldquoyrdquo de acordo com a forma assumida pela proposiccedilatildeo que iraacute fazer variar a negatividade (ou a positividade) em funccedilatildeo da finalidade enfaacutetica que se queira dar a ldquoxrdquo ou a ldquoyrdquo

Somente quando se diz que um mesmo corpo estaacute e natildeo estaacute a um soacute tempo e na mesma relaccedilatildeo em repouso ou em movimento eacute que essa vacuidade no pensar aparece

38ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν[]rdquo PARMENIDES fragmento B6 In BORHEIM op cit p 55

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Um corpo em movimento eacute algo um corpo que natildeo estaacute em movimento eacute tambeacutem algo (cogitabile) no entanto um corpo que ao mesmo tempo e justamente sob a mesma relaccedilatildeo estivesse e natildeo estivesse em movimento eacute absolutamente nada39

A expressatildeo a um soacute tempo significa que o corpo eacute colocado na situaccedilatildeo em que se abstrai a seacuterie contiacutenua do tempo Isso quer dizer que uma uacutenica porccedilatildeo elementar do tempo foi tomada e isolada das demais Todavia uma porccedilatildeo assim isolada do tempo tomada em sentido absoluto natildeo eacute tempo algum Uma vez que a seacuterie de tempo eacute contiacutenua ou se toma uma porccedilatildeo do tempo que por sua vez conteacutem em si uma nova seacuterie temporal infinita (nesse caso a parte eacute igual ao todo) ou natildeo se toma tempo algum Em outras palavras a expressatildeo a um soacute tempo natildeo tem aqui nenhum significado temporal positivo mas apenas negativo significando fora do tempo

Assim procedeu Parmecircnides ao abstrair o tempo para todas as formas proposicionais vaacutelidas reduzindo toda forma de pensamento a uma expressatildeo proposicional afirmativa atemporal onde a positividade eacute sempre absoluta e por isso possui prioridade loacutegica e ontoloacutegica sobre a negatividade Nesse caso toda oposiccedilatildeo eacute sempre contradiccedilatildeo

Jaacute na oposiccedilatildeo real encontramos uma forma de pensamento que natildeo subtrai a seacuterie do tempo Nesse caso a oposiccedilatildeo real apresenta uma estrutura a qual pode ser esquematicamente apresentada como (+A ndashA = B) onde (B = 0) ou (B ne 0) e onde os elementos integrantes dessa operaccedilatildeo (+A) e (ndashA) natildeo deixam de ser pela atribuiccedilatildeo de uma negatividade meramente relativa mesmo quando (B=0) sendo ambos justamente a causa eficiente desse privatio

O (B = 0) como privatio natildeo eacute mera nulidade devendo ser tratado como a realizaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo resultante de um encontro entre potecircncias equivalentes mas opostas uma a outra Aqui natildeo existe contradiccedilatildeo em dizer que se trata de potecircncias equivalentes-opostas pois nesse caso tanto a negatividade como a positividade satildeo relativas e natildeo absolutas Natildeo existe autonomia ontoloacutegica da positividade nem da negatividade Trata-se aqui de predicados e natildeo de seres

Por sua vez o estado de coisas representado por (B = 0) esta efetividade eacute novamente um natildeo-ser poreacutem apenas em relaccedilatildeo a outro estado de coisas a que ele se opotildee Assim este (0) eacute um algo que eacute predicado a algo inserido na 39 Ibidem p 58 grifos nossos

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seacuterie contiacutenua do tempo e que eacute designado como privaccedilatildeo Apenas quando se abstrai da seacuterie do tempo eacute que x = 0 representa um nada absoluto Nesse caso o que eacute afirmado eacute inteira e instantaneamente anulado pelo que eacute negado e vice-versa pois a positividade e a negatividade do que eacute afirmado e negado se referem aos proacuteprios seres

Jaacute na oposiccedilatildeo real ainda que duas condiccedilotildees contraacuterias atuem simultaneamente sobre o mesmo objeto a contradiccedilatildeo (vacuidade do pensamento) natildeo eacute o resultado porque a expressatildeo simultaneamente (ausecircncia de sucessatildeo temporal) eacute aqui relativizada Se pensarmos na destruiccedilatildeo de um corpo esse movimento seraacute oposto ao de sua criaccedilatildeo No entanto tais movimentos natildeo satildeo contraditoacuterios um ao outro quando pensados juntos Natildeo inferimos uma vacuidade no pensamento da conjunccedilatildeo simultacircnea desses dois eventos desde que sejam pensados como eventos e portanto diluiacutedos no contiacutenuo temporal A contiacutenua transformaccedilatildeo (movimento) dos corpos vivos por exemplo tem por base um confronto entre a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo celular atuando nos organismos vivos quer dizer um estado de coisas manifestamente expresso como forccedilas antagocircnicas simultaneamente presentes no mesmo objeto No niacutevel celular essa simultaneidade eacute relativizada enquanto algumas ceacutelulas satildeo criadas outras satildeo destruiacutedas Essa relativizaccedilatildeo da simultaneidade natildeo exclui um efetivo antagonismo seja em que niacutevel for onde a positividade ou a negatividade satildeo arbitrariamente atribuiacutedas a um dos polos da oposiccedilatildeo natildeo havendo qualquer precedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica de um polo sobre o outro A geraccedilatildeo eacute negativa se a destruiccedilatildeo for tomada como positiva e vice-versa

Na dinacircmica uma forccedila motriz eacute dita positiva somente quando oposta a outra dita negativa a resistecircncia Ainda que opostas uma a outra forccedilas com vetores contraacuterios desse encontro natildeo se infere um absurdo como uma contradiccedilatildeo mas um estado de coisas real de oposiccedilatildeo de contrariedade O resultado pode ser tanto o repouso no caso das forccedilas opostas possuiacuterem a mesma potecircncia (serem equivalentes) ou o movimento que apresenta o mesmo vetor de uma das forccedilas conflitantes Em ambos os casos o resultante dessa oposiccedilatildeo eacute algo que pode ser efetivamente afirmado sobre o mundo e natildeo um vazio ou um nada irrepresentaacutevel Ainda que nesse caso o repouso possa ser representado por (B = 0) este (B = 0) natildeo deve ser entendido como uma indeterminaccedilatildeo mas sim como privaccedilatildeo Logo percebemos que a contradiccedilatildeo natildeo eacute aplicaacutevel a estados de coisas imersos na seacuterie contiacutenua do tempo

Tanto na oposiccedilatildeo loacutegica como na oposiccedilatildeo real o efeito pode ser representado como (=0) ou como vazio ou ainda como nada Entretanto

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o sentido desse vazio ou desse nada deve ser relativizado para cada situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo Na oposiccedilatildeo loacutegica significa contradiccedilatildeo (nihil negativum irrepresentabile) ou ausecircncia da possibilidade do pensamento A nosso ver este seria o caso do significado do natildeo-ser empregado por Parmecircnides onde localizamos a supressatildeo instantacircnea (anulaccedilatildeo ausecircncia absoluta) dos opostos Jaacute o nada ou o vazio da oposiccedilatildeo real eacute absolutamente representaacutevel Aqui eacute possiacutevel embora de maneira arbitraacuteria estabelecer os valores positivo e negativo dos elementos que se colocam na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo

5 concLusatildeo

Apoacutes oferecer alguns exemplos para o conceito de grandeza negativa na segunda seccedilatildeo do Ensaio Kant conduz suas consideraccedilotildees para o campo da filosofia que para ele deve se ocupar prioritariamente da metafiacutesica e cujo meacutetodo analiacutetico apresentado por ele em outro de seus textos desse periacuteodo40 jaacute fornece indiacutecios dos passos que daraacute no sentido de sua futura proposta mais amadurecida para uma teoria criacutetico-transcendental

Assim alerta Kant no Ensaio entendemos facilmente que algo natildeo seja se lhe carece a razatildeo positiva para sua existecircncia todavia temos dificuldades para entender como algo que efetivamente eacute deixa de ser41 isto eacute temos dificuldade em compreender o correto sentido de privaccedilatildeo O esclarecimento acerca dessa questatildeo eacute fundamental jaacute que o vir-a-ser isto eacute o deixar de ser como privaccedilatildeo eacute a maneira mais fundamental de entender o conceito de movimento Essa dificuldade em reconhecer o correto sentido de privaccedilatildeo eacute o que algumas vezes nos compele a confundi-la com a contradiccedilatildeo e por isso obter como resultado a negaccedilatildeo do movimento compreendendo-o erroneamente como gerador do absurdo

Assim sugere Kant se represento o Sol em minha imaginaccedilatildeo e se no instante seguinte deixo de ter presente essa representaccedilatildeo em minha mente isso natildeo significa que meu pensamento sobre o Sol tenha simplesmente desaparecido e se tornado um puro nada aniquilando-se na vacuidade de uma contradiccedilatildeo entre ser e natildeo-ser mas sim porque a representaccedilatildeo do sol foi suprimida por outra sorte qualquer de ideia que se impocircs com a intensidade

40KANT I Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In ______ Escritos Preacute-criacuteticos Trad Jair Barboza [et al] Satildeo Paulo UNESP 2005 p 116-117

41KANT opcit p 79

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suficiente para substituiacute-la parcial ou inteiramente segundo uma determinada relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo contingente ao espiacuterito

A simples negaccedilatildeo da representaccedilatildeo considerando que ela simplesmente anulou a si mesma deixando assim de existir nos remete para a situaccedilatildeo de um nada irrepresentaacutevel um impensaacutevel natildeo-ser como em Parmecircnides Jaacute na privaccedilatildeo existe uma interaccedilatildeo entre forccedilas opostas a qual natildeo aparece como contradiccedilatildeo uma vez que princiacutepios afirmativos opostos (representaccedilotildees opostas) coincidiriam sob a mesma forma do pensamento anulando assim o efeito de uma delas ou de ambas O resultado eacute a afirmaccedilatildeo de um ser que eacute tambeacutem natildeo-ser jaacute que a negatividade do natildeo-ser da representaccedilatildeo aqui eacute simplesmente relativa dada pela situccedilatildeo de oposiccedilatildeo A representaccedilatildeo arbitrariamente tomada como negativa natildeo eacute menos ser que aquela tomada como positiva A supressatildeo de uma pela outra natildeo se mostra como contradiccedilatildeo mas como a privaccedilatildeo

Eacute concebiacutevel assim pensar legitimamente o natildeo-ser da representaccedilatildeo desde que seja considerado como privaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel se falar com verdade em princiacutepios opostos e equivalentes e que produzem em seu encontro a afirmaccedilatildeo de algo como um nada Dessa maneira seja a1

a afirmaccedilatildeo (ser) de um determinado estado de coisas no mundo (ou de uma representaccedilatildeo de algo no mundo) e a2 o seu equivalente oposto (o natildeo-ser) temos que

a1 ndash a2 = 0

Arbitrariamente tomamos a2 como a representaccedilatildeo negativa contudo a negatividade aqui revela apenas a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre a1 e a2 e natildeo uma situaccedilatildeo absoluta de a2 Como grandezas equivalentes que se opotildeem o resultado (= 0) revela uma oposiccedilatildeo real natildeo uma contradiccedilatildeo Nem a1

e a2 podem ser ditas potecircncias contraditoacuterias nessa relaccedilatildeo visto que este (= 0) eacute a afirmaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo de um ser que eacute tambeacutem um natildeo-ser assim como o repouso eacute igualmente uma forma de natildeo-ser do movimento O pensamento que leva em conta os opostos eacute pois uma possibilidade real e mesmo necessaacuteria para a consideraccedilatildeo do movimento

Segundo a foacutermula de Demoacutecrito o natildeo-ser natildeo eacute mais nem menos que o ser Ora soacute podemos entender essa afirmaccedilatildeo de duas maneiras convergentes ou como afirmaccedilatildeo do mesmo estatuto ontoloacutegico para o ser e para o natildeo-ser ou como atribuiccedilatildeo da mesma funccedilatildeo causal (material) para ambos Nos dois casos o ser soacute eacute na presenccedila ou com a premissa do natildeo-ser e vice-versa E assim o natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser Estaacute claro que esse princiacutepio natildeo

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se ajusta sem qualquer intervenccedilatildeo agraves formulaccedilotildees de Parmecircnides Por esse desacordo eacute possiacutevel identificar no antigo atomismo uma negatividade do ser que natildeo engendra a vacuidade do pensamento Pelo contraacuterio o movimento do pensamento soacute eacute possiacutevel por meio dessa oposiccedilatildeo fundamental Em Platatildeo esse movimento do pensamento ganha o nome de dialeacutetica

Concluiremos este estudo com a seguinte afirmaccedilatildeo de Kant ldquoTodos os fundamentos reais do universo quando se somam todos que satildeo consonantes e se subtraem uns dos outros os que se opotildeem entre si datildeo um resultado igual a zerordquo42 Esse zero significa a afirmaccedilatildeo da efetividade do mundo Esse zero representa um repouso que nem por isso deixa de ser dinacircmico Assim esperamos ter aproximado o conteuacutedo do Ensaio com o pensamento daqueles filoacutesofos da natureza que se colocavam conformes a um princiacutepio universal sem negar a unidade do pensamento e do movimento do mundo De acordo com eles o mundo deve se ordenar segundo esses princiacutepios mutuamente opostos ser e natildeo-ser os quais estatildeo na origem desse repouso dinacircmico na exata medida da efetivaccedilatildeo de seus encontros

SANTOS Eberth Eleuterio dos Leucippus Democritus and Kant a reflection on the equivalence between being and non-being TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 38 n 2 p 71-94 MaioAgo 2015

ABSTRACT Initially we present the theory of Democritus and Leucippus whereby being is not more than the not-being (non-being) in contrast to Eleatic ideas about the necessary inexistence of the not-being This discussion leads us to the opposition between the whole (full) and the empty which will then be transposed into the opposition between being and nothingness (or not-being) Thus the opposition between whole and the empty is an opposition that moves to being and not-being Finally we will make an assessment of the Kantian pre-critical essay Attempt to introduce the concept of negative magnitude into philosophy in which we recognize a kind of opposition that as we believe would be interpreted as being in agreement with the position of Democritus and Leucippus regarding the ontological status of the not-being as an equivalent principle to the being understood here not as a mutual contradiction in a purely logical sense

KEYWORDS ancient atomism Eleatism ontology

referecircncias

ARISTOacuteTELES Da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo seguido de convite agrave filosofia Traduccedilatildeo de Renata Maria Pereira Cordeiro Satildeo Paulo Landy 2001

42 Ibid p 89

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______ Fiacutesica I ndash II Traduccedilatildeo de Lucas Angioni Campinas Editora da UNICAMP 2009

______ Metafiacutesica texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterio de Giovanni Reale Traduccedilatildeo de Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2005 3v

BARNES J Filoacutesofos preacute-socraacuteticos Traduccedilatildeo de Juacutelio Fischer 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

BORNHEIM G Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Cultrix 2000

_______ O que eacute metafiacutesica Traduccedilatildeo de Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

HEIDEGGER M Die Zeit des Weltbildes (1938) In ______ Gesamtausgabe Frankfurt Klostermann 87-88 (1977) Bd 5 Holzwege

KANT I Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia In ______ Escritos preacute-criacuteticos Traduccedilatildeo de Viniacutecius de Figueiredo e Jair Barbosa Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 51-99

______ Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur neacutegative Traduccedilatildeo de Roger Kempf 2 eacuted Paris J Vrin 1972 (Bibliothegraveque de textes philosophiques)

______ Versuch den Begriff der negative Grossen in die Weltweisheit einzufuhres Neueste Aufl Graz Andreas Leikam 1797 Disponiacutevel em lt httpsarchiveorgstreamversuchdenbegri00kantgoogpagen43mode2upgt Acesso em 22 dez 2013

PARMENIDES Fragmentos sobre a natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

______ Da natureza Traduccedilatildeo de Jose Gabriel Trindade Santos (modificada pelo tradutor) Satildeo Paulo Loyola 2002

PLATAtildeO Filebo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ O sofista Traduccedilatildeo de Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Abril Cultural 1972

______ Parmecircnides Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos v VIII Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ Teeteto Traduccedilatildeo de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri Lisboa Calouste Gulbenkian 2010

______ Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Rodolfo Lopes Coimbra Universidade de Coimbra 201143

Recebido Received 07092014Aprovado Approved 10012015

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contradiccedilatildeo jaacute desvendada pelo eleatismo a partir de uma anaacutelise puramente noeacutetica Assim o aacutetomo eacute tomado como princiacutepio de permanecircncia Em sua definiccedilatildeo encontramos as propriedades de solidez e indestrutibilidade de perenidade e inalterabilidade Nunca tendo sido gerado o aacutetomo eacute definido como sempre idecircntico a si mesmo princiacutepio material indivisiacutevel da natureza

Diferentemente dos aacutetomos os compostos ndash os corpos (soacutemata) e os mundos (koacutesmoi) ndash apresentam a inconstacircncia que lhes eacute proacutepria sendo passiacuteveis de geraccedilatildeo e destruiccedilatildeo Nos compostos o movimento se apresenta portanto como uma propriedade manifesta Possuindo os compostos em sua base formal e material os aacutetomos (inalteraacuteveis natildeo gerados e indestrutiacuteveis) como princiacutepio de permanecircncia entatildeo o princiacutepio do movimento (geraccedilatildeo alteraccedilatildeo corrupccedilatildeo) manifesto nesses compostos deve ser buscado em outra parte isto eacute em outro elemento

E tomando o composto como o ponto de partida para a inteligibilidade da natureza os atomistas se depararam com a necessidade formal de um princiacutepio distinto do proacuteprio aacutetomo o qual permitisse a dita suscetibilidade ao movimento Em suma ao passar do niacutevel fenomecircnico para o noeacutetico os atomistas buscam legitimar a natureza mutante pelos seus princiacutepios formais e materiais Uma vez que o ser (o aacutetomo) tomado em si mesmo natildeo pode servir como princiacutepio de movimento dadas as conclusotildees sobre o plenouno jaacute assentadas desde Parmecircnides e que foram em parte assimiladas pelos atomistas caberia entatildeo atribuir a outro princiacutepio essa funccedilatildeo Como nos transmite Aristoacuteteles

Afirmam que o movimento se daacute graccedilas ao vazio com efeito segundo estes o movimento dos corpos naturais e elementares eacute um movimento local porque o movimento devido ao vazio eacute um transporte como em um lugar quanto aos outros movimentos nenhum pertence pensam eles aos corpos elementares mas somente agravequeles que deles satildeo formados dizem que o crescimento o perecimento e a alteraccedilatildeo provecircm da reuniatildeo e da separaccedilatildeo dos corpos insecaacuteveis10

Assim por meio do vazio os atomistas fornecem uma resposta ao imobilismo eleata O vazio eacute o meio comunicante que possibilita o ldquotransporterdquo Eacute por meio dele que os aacutetomos em nuacutemero infinito se deslocam se associam e se separam ldquoDemoacutecrito tinha a opiniatildeo de que os aacutetomos se movem

10 ARISTOacuteTELES Fiacutesica op cit VIII 9 265b grifos nossos

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eternamente em um espaccedilo vaziordquo11 Sem o vazio os aacutetomos permaneceriam estaacuteticos imoacuteveis e nenhuma geraccedilatildeo ou corrupccedilatildeo nenhum nascimento ou morte seria constataacutevel no acircmbito do composto E se natildeo houvesse nenhum princiacutepio de movimento nenhum vazio tambeacutem o ser (o aacutetomo) natildeo poderia ser dito no plural pois natildeo haveria nada distinto (o natildeo-ser) que permitisse a separaccedilatildeo e portanto o avizinhamento do ser consigo mesmo Tudo seria entatildeo apenas pleno uno e imoacutevel

O vazio se constitui por conseguinte como a soluccedilatildeo do antigo atomismo para o vir-a-ser Todavia com Leucipo e Demoacutecrito esta soluccedilatildeo eacute ainda um tanto insatisfatoacuteria pois eacute somente com Epicuro no final do seacuteculo IV que o peso eacute informado como uma das propriedades presentes no aacutetomo graccedilas ao qual se explicaria sua queda (deslocamento) no vazio Mas essa queda seria homogecircnea e por isso nem criativa nem destrutiva se o aacutetomo natildeo possuiacutesse sutis diferenciaccedilotildees No entanto na medida em que satildeo tambeacutem supostos infinitos em nuacutemero e em figura torna-se factiacutevel justificar a sua queda no vazio como natildeo regular mas com choques e voacutertices (clinamen) acarretando em junccedilotildees e separaccedilotildees atocircmicas Em resumo o aacutetomo apresenta um movimento por deslocamento e natildeo por alteraccedilatildeo natildeo podendo assim ser considerado o princiacutepio do movimento que apenas parcialmente se justifica pela postulaccedilatildeo do vazio como seu princiacutepio

Desse modo aacutetomo e vazio se equivalem como princiacutepios formais e materiais para a existecircncia do composto ainda que se oponham como princiacutepios de permanecircncia e de movimento respectivamente Os compostos se tornam mais densos (e pesados) na medida em que menos vazio neles houver em relaccedilatildeo aos aacutetomos na proporccedilatildeo de suas composiccedilotildees Ao mesmo tempo aacutetomo e vazio permitem compreender o movimento em sentido amplo como a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo do composto Esse movimento deve ser entendido entatildeo como a associaccedilatildeo e a dispersatildeo dos aacutetomos tornada possiacutevel pelo vazio

2 o eLeatismo e a revisatildeo pLatocircnica

Como dissemos o posicionamento dos atomistas em relaccedilatildeo ao movimento surgia como uma resposta agraves conclusotildees do imobilismo eleata Esse imobilismo por sua vez seguia como consequecircncia necessaacuteria do monismo ontoloacutegico ali presente no qual apenas o ser eacute dito com verdade Isto

11 HIPPOLOcircNIO I 13 2 in BORNHEIM op cit p 126

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eacute apenas o ser eacute dito com necessidade enquanto sobre o natildeo-ser nada pode ser dito com verdade Assim o pensamento verdadeiro porque necessaacuterio soacute pode se projetar sobre o ser que por sua vez eacute pleno e uno Atraveacutes do poema de Parmecircnides isto se torna laconicamente expliacutecito ldquoNecessaacuterio eacute o dizer e o pensar que o ente eacute pois eacute ser e nada natildeo eacute []rdquo12 e tambeacutem ldquoo outro que natildeo eacute que tem de natildeo ser esse te indico ser caminho em tudo ignotordquo13 E tendo comparado a doutrina de Parmecircnides aos ensinamentos de Xenoacutefanes e Melisso respectivamente seu mestre e disciacutepulo Aristoacuteteles conclui pelo seguinte ldquoParmecircnides ao contraacuterio [de Xenoacutefanes e Melisso] parece raciocinar com mais perspicaacutecia Por considerar que aleacutem do ser natildeo existe o natildeo-ser necessariamente deve crer que o ser eacute um e nada maisrdquo14

Em Parmecircnides o ser eacute a unidade fundamental de tudo o que pode ser dito com verdade Aqui encontramos o pensamento verdadeiro loacutegico-racional identificado agrave sua unidade pura homogecircnea indivisiacutevel e imoacutevel Em oposiccedilatildeo a isso Parmecircnides detectava o erro a falsidade o desvio da razatildeo que assumia a forma do natildeo-ser A afirmaccedilatildeo do natildeo-ser soacute poderia advir de um desvio do caminho da verdade

Nos versos de seu poema particularmente no fragmento B8 Parmecircnides nos revela o ser segundo essa concepccedilatildeo No primeiro canto O caminho da verdade fica estabelecida a identidade entre o ser e o pensamento em sentido estrito (necessaacuterio) a saber aquele pensamento acompanhado da verdade Isso significa que a realidade de direito estaacute fundada em um uacutenico princiacutepio o ser E aqui o conceito de realidade se confunde imediatamente com o de verdade loacutegica isto eacute aquilo que pode ser dito legitimamente ou sem contradiccedilatildeo E o ser se configura como o princiacutepio unicamente noeacutetico ao mesmo tempo loacutegico ontoloacutegico e epistecircmico sobre uma natureza fundamentalmente imoacutevel e apenas por isso consistente

Realidade verdade e permanecircncia se tornam conceitos congecircneres nessa particular anaacutelise ontoloacutegica da natureza O Ser - ato imediato do pensamento - jamais foi gerado jamais se altera jamais se corrompe jamais entra em conflito consigo mesmo Do contraacuterio perseguiriacuteamos o caminho da opiniatildeo

12ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν []rdquo PARMENIDES fragmento B6 (SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 117 2) In Preacute-Socraacuteticos opcit p 148

13ldquoἡ δ΄ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόνrdquo PARMENIDES Da Natureza Satildeo Paulo Loyola 2002 fragmento B2 (PROCLO Comentaacuterio ao Timeu I 345 18)

14ARISTOacuteTELES Metafiacutesica opcit p 33 grifos nossos

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no qual ser e natildeo-ser seriam reputados o mesmo ou equivalentes Contudo no caminho da verdade o pensamento (loacutegico-racional) natildeo pode admitir em seu seio a negaccedilatildeo do ser (o natildeo-ser) o outro do ser essa radical alteridade como algo que se coloca fora do ser e por isso se separa e se opotildee a ele No caminho da verdade nada pode ser dito ou pensado para aleacutem do ser Afirmar o ser para aleacutem do ser isto eacute o ser-outro ou o natildeo-ser eacute simplesmente natildeo reconhecer essa unicidade fundamental e por isso se colocar no caminho do erro da opiniatildeo falsa do engano sobre a essecircncia da natureza

Decorrecircncia dessa unicidade fundamental eacute o imobilismo da natureza no niacutevel noeacutetico A permanecircncia do ser natildeo significa outra coisa senatildeo sua incorruptibilidade em um niacutevel muito fundamental o do puro pensamento implicando a impossibilidade de uma justificaccedilatildeo loacutegico-racional para o devir da natureza sensiacutevel Eis entatildeo que o ser eacute tomado como princiacutepio uacutenico fiacutesico e metafiacutesico simbolizaacutevel por ldquoPois pensar e ser eacute o mesmordquo15 enquanto o contraacuterio eacute descartado como impossiacutevel ldquoJamais se conseguiraacute provar que o natildeo-ser eacuterdquo16

Naquilo que nos interessa aqui mais imediatamente os resultados das formulaccedilotildees do eleatismo - a afirmaccedilatildeo da permanecircncia do Ser (o Princiacutepio de Identidade) unida agrave exclusatildeo da afirmaccedilatildeo simultacircnea do ser e do natildeo-ser (o Princiacutepio da natildeo-contradiccedilatildeo) - satildeo a negaccedilatildeo do vazio do muacuteltiplo e do movimento Como assevera Melisso ldquoTambeacutem natildeo haacute nada vazio Pois o vazio nada eacute e o que nada eacute natildeo pode ser E natildeo se move Natildeo tem lugar onde mover-se pois eacute pleno Existisse o vazio mover-se-ia para o vazio Mas como natildeo haacute o vazio natildeo tem lugar para onde mover-serdquo17

Desse modo o ser no eleatismo natildeo admite para si a mudanccedila seja em que sentido for que se presuma essa mudanccedila A geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo ou mesmo o deslocamento que estatildeo na base da ideia de mudanccedila no atomismo trariam de volta o natildeo-ser para o interior de uma concepccedilatildeo de realidade da qual fora previamente excluiacutedo por forccedila do pensamento Os dois princiacutepios loacutegicos (identidade e contradiccedilatildeo) perderiam a sua validade e alcance sua legitimidade e credibilidade ldquoE jamais a forccedila da convicccedilatildeo concederaacute que do natildeo-ser possa surgir outra coisa Por isto a deusa da Justiccedila natildeo admite por

15ldquoτὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι rdquo PARMEcircNIDES fragmento B3 in BORHEIM op cit p 55 16ldquoΟὐ γὰρ μήποτε τοῦτο δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα rdquo PARMEcircNIDES fragmento B7 ibid p 5517 MELISSO fragmento 7 (SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 111118) Ibid p 65

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um afrouxamento de suas cadeias que nasccedila ou que pereccedila mas manteacutem-no firmerdquo18 Assim Parmecircnides deixa claro que o natildeo-ser natildeo eacute princiacutepio gerador do que quer que seja Trata-se de uma impossibilidade para o pensamento e portanto para o proacuteprio ser e para a natureza

E Platatildeo eacute tido como um disciacutepulo da henologia eleata Poreacutem tambeacutem eacute verdade que em pelo menos dois de seus Diaacutelogos o Sofista e o Parmecircnides19 fica evidente um desacordo entre ele Parmecircnides No Sofista (236e-237b) Platatildeo revela as dificuldades advindas de uma identificaccedilatildeo imediata loacutegica e ontoloacutegica entre verdade e ser excluindo assim o natildeo-ser de todo raciociacutenio legiacutetimo A consequecircncia dessa identificaccedilatildeo eacute a impossibilidade de se afirmar o falso Afirmar o falso apareceria como manifesta contradiccedilatildeo jaacute que seria afirmar o nada20 Contudo Platatildeo reconhece que essa impossibilidade tambeacutem se mostra como um risco epistemoloacutegico pois disso decorreria a impossibilidade de distinguir entre conhecimento (opiniatildeo verdadeira) e ignoracircncia (opiniatildeo falsa) Ao esclarecer Teeteto sobre esse fato diz o Estrangeiro de Eleia no Sofista

Eacute que realmente jovem feliz nos vemos frente a uma questatildeo extremamente difiacutecil pois mostrar e parecer sem ser dizer algo sem entretanto dizer com verdade satildeo maneiras que trazem grandes dificuldades tanto hoje como ontem e sempre Que modo encontrar na realidade para dizer ou pensar que o falso eacute real sem que jaacute ao proferi-lo nos encontremos enredados na contradiccedilatildeo [] A audaacutecia de uma tal afirmaccedilatildeo eacute supor o natildeo-ser como ser e na realidade nada de falso eacute possiacutevel sem esta condiccedilatildeo Era o que meu jovem jaacute afirmava o grande Parmecircnides tanto em prosa como em verso a noacutes que entatildeo eacuteramos jovens ldquoJamais obrigaraacutes os natildeo-seres a ser Antes afasta teu pensamento desse caminho de investigaccedilatildeo21

18ldquoΟὐδὲ ποτ΄ ἐκ μὴ ἐόντος ἐφήσει πίστιος ἰσχύς γίγνεσθαί τι παρ΄ αὐτόττοῦ εἵνεκεν οὔτε γενέσθαι οὔτ΄ ὄλλυσθαι ἀνῆκε Δίκη χαλάσασα πέδῃσινrdquo PARMEcircNIDES fragmento B8 ibid p 55 grifos nossos

19 Eacute oacutebvio que natildeo precisariacuteamos ficar restritos a apenas esses dois Diaacutelogos Por exemplo no Teeteto poderiacuteamos mencionar o problema da opiniatildeo falsa (187d-18a) PLATAtildeO Teeteto Lisboa Calouste Gulbenkian 2010 p 271-272 No Filebo a controveacutersia sobre o Uno e o Muacuteltiplo (14c-15c 23d) PLATAtildeO Filebo In ______ Diaacutelogos v 8 Universidade Federal do Paraacute 1974 No Timeu interessante notar as semelhanccedilas e dessemelhanccedilas entre o atomismo e a doutrina laacute apresentada principalmente em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo do ser e do devir enquanto imutaacutevel e mutaacutevel respectivamente (27d-28b) poderiacuteamos mencionar ainda a descriccedilatildeo da gecircnese do mundo como um ser vivo e sua forma arredondada numa espeacutecie de reconciliaccedilatildeo com o eleatismo de Parmecircnides (30d-40d) PLATAtildeO Timeu-Criacutetias Coimbra Universidade de Coimbra 2011 p 92-93 99-115

20 Sobre o paradoxo envolvendo a questatildeo de se afirmar o nada cf HEIDEGGER O que eacute metafiacutesica Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 235

21PLATAtildeO Sofista Satildeo Paulo Abril Cultural 1972 p 162

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Eacute notoacuterio que os esclarecimentos prestados ao jovem Teeteto pelo Estrangeiro conduzem a um ldquoparriciacutediordquo22 significando uma espeacutecie de rompimento de Platatildeo com a henologia eleata ortodoxa Todavia tatildeo pouco esse rompimento significa a aceitaccedilatildeo da posiccedilatildeo atomista por Platatildeo23 No diaacutelogo Parmecircnides (137ac-166c) o Outro do Uno (o ser outro) eacute afirmado como uma necessidade no acircmbito da dialeacutetica platocircnica24 sem o qual a Doutrina das Ideias natildeo escaparia agraves dificuldades apontadas (130c-134e) e que satildeo decorrentes de uma ortodoxia henoloacutegica advindas do proacuteprio eleatismo

Contudo o objetivo desta raacutepida explanaccedilatildeo foi o de apenas tornar um pouco mais evidente a oposiccedilatildeo entre o pluralismo ontoloacutegico e material de Demoacutecrito (como se acredita ser tambeacutem o de Leucipo) e o monismo de Parmecircnides Nas seccedilotildees subsequentes defenderemos que essa oposiccedilatildeo fundamental entre o ser e o vazio natildeo implica uma contradiccedilatildeo (loacutegica) como no eleatismo mas sim uma forma de oposiccedilatildeo jaacute percebida por Platatildeo como necessaacuteria (por exemplo no Sofista 256d - 259d) e que poderiacuteamos interpretar como sendo tambeacutem aquela apresentada por Kant e denominada por ele como oposiccedilatildeo real E para natildeo nos afastarmos desse intuito prossigamos nestas ponderaccedilotildees

3 equivaLecircncia entre Ser e natildeo-Ser

Na seccedilatildeo precedente refletimos sobre algumas das consideraccedilotildees mais centrais do eleatismo basicamente aquelas que afirmam o ser como necessariamente um e imoacutevel25 Tambeacutem tivemos a oportunidade de acompanhar como Demoacutecrito ao desenvolver a filosofia de seu mestre Leucipo eacute capaz de

22Ibid p 168 (241a-242b)23Apesar de apresentar pontos de contato com o atomismo de Demoacutecrito e Leucipo e com certos

aspectos do eleatismo ortodoxo a visatildeo cosmogocircnica exposta por Platatildeo no Timeu se distancia de ambos ao assumir a dialeacutetica como pressuposto metodoloacutegico e epistemoloacutegico Por exemplo quando da descriccedilatildeo da dinacircmica dos elementos de um ponto de vista puramente dialeacutetico (56c-61c) ou quando da apresentaccedilatildeo do terceiro princiacutepio que soacute ldquo[] acessiacutevel por meio de um certo raciociacutenio bastardo (logismocirc tini nothocirc) sem recurso aos sentidos a custo crediacutevel (52a-b) PLATAtildeO Timeu-Criacutetias op cit p 136-155

24Cf tambeacutem PLATAtildeO Sofista (253d - 254b) op cit p 184-18525 Aleacutem dessa definiccedilatildeo essencial do ser Parmecircnides especialmente no fragmento B8 fornece

uma seacuterie de outros atributos que poderiacuteamos considerar como derivados ou secundaacuterios como completude (plenitude) inteireza esfericidade indestrutibilidade limite externo compacidade homogeneidade continuidade que de certo modo podem ser reduzidos uns aos outros e referidos agravequeles dois que interpretamos como essenciais

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defender a proposiccedilatildeo ldquoO nada existe tanto quanto o lsquoalguma coisarsquordquo26 Assim na antiga escola atomista o movimento eacute aceito e justificado na medida em que admite o vazio (o natildeo-ser) pelo qual se opera o mecanismo da mudanccedila da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo no acircmbito do composto atraveacutes da junccedilatildeo e da dissoluccedilatildeo de suas partes elementares Tomando igualmente o vazio como princiacutepio os atomistas antigos satildeo capazes de oferecer uma resposta ao problema do movimento e do vir-a-ser problema este colocado pelo menos desde Parmecircnides

Dessa forma divergem as teses baacutesicas do eleatismo e do atomismo De um lado fica estabelecida a necessidade da postulaccedilatildeo do ser uno e pleno de maneira exclusiva e solitaacuteria excluindo por essa via a possibilidade de uma justificaccedilatildeo do vir-a-ser de outro encontramos a postulaccedilatildeo do vazio colocado como oposiccedilatildeo ao ser mas tambeacutem como seu equivalente formal e material servindo como canal comunicante sem o qual o movimento proacuteprio da natureza natildeo seria concebiacutevel ou racionalizaacutevel

Essa disputa entre escolas ou doutrinas aponta para uma oposiccedilatildeo mais fundamental trata-se da oposiccedilatildeo entre o ser e o natildeo-ser ou entre o pleno e o vazio No eleatismo o ser apresenta anterioridade loacutegica e ontoloacutegica Jaacute na filosofia da natureza de Demoacutecrito e Leucipo o ser e o natildeo-ser devem ser colocados lado a lado o que permite a essa filosofia se abrir para o vir-a-ser ao aceitar desde o iniacutecio essa radical alteridade do outro do ser como princiacutepio equivalente ao ser

A afirmaccedilatildeo da multiplicidade e do movimento pressupotildeem desde o iniacutecio a alteridade o outro do ser Isso parece ter ficado bastante evidente para Platatildeo que no Parmecircnides (130c-134e) apoacutes o momento em que o personagem que daacute nome ao Diaacutelogo ter elencado uma seacuterie de argumentos27 contra a Doutrina das Ideias apresenta uma revisatildeo da henologia eleaacutetica posicionando o Outro do Uno junto ao Uno como alteridade necessaacuteria para o equiliacutebrio do jogo dialeacutetico somente assim alcanccedilando ecircxito em tentar salvar essa doutrina dos ferozes ataques lanccedilados contra ela28 E no Filebo tambeacutem 26 DEMOacuteCRITO fragmento 156 In BORNHEIN op cit p 113 27 Sete no total Cf PLATAtildeO Parmecircnides op cit 130c-134e28 A estrutura dessa investigaccedilatildeo dialeacutetica no Parmecircnides pode ser concentrada nas oito consequecircncias

obtidas da anaacutelise da protoideia do uno Por meio do meacutetodo dialeacutetico satildeo obtidos resultados afirmativos e negativos tanto para a existecircncia como para a negaccedilatildeo da existecircncia do uno Esses resultados parecem se equilibrar gerando a impressatildeo de um resultado aparentemente nulo mas que ao final trazem resultados positivos seja para uma revisatildeo do eleatismo seja para uma sofisticaccedilatildeo da Teoria das Ideias Para uma anaacutelise desse assunto cf REALE G Para uma nova interpretaccedilatildeo de

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encontramos essa disposiccedilatildeo dualista atraveacutes da apresentaccedilatildeo da teoria dos princiacutepios formadores para as proacuteprias ideias Segundo essa teoria conhecida como Protologia Platocircnica29 as ideias as formas puras do mundo inteligiacutevel nasceriam do encontro e da uniatildeo do limite identificado com o Uno e do ilimite identificado com o muacuteltiplo infinito (Filebo 16d-e 23d-26d) Limite e ilimite satildeo tomados como princiacutepios absolutos poreacutem geradores das ideias apenas quando relativizados um pelo outro

Guardadas as respectivas diferenccedilas tanto em Platatildeo como nos atomistas fica estabelecida uma equivalecircncia entre ser e natildeo-ser Essa negaccedilatildeo do ser eacute concebida como o Outro-do-ser (oposto ao ser a sua alteridade) O muacuteltiplo eacute na sua essecircncia uacuteltima o composto formado pelo ser e pelo natildeo-ser que como vimos acima eacute entendido como vazio pelos atomistas A partir desse ponto de vista a natureza moacutevel apresenta-se como um tipo de extensatildeo discreta fundada em um dualismo ontoloacutegico no qual encontramos o mesmo (a unidade o limite a identidade o aacutetomo o ser) e o outro (a diferenccedila a alteridade o ilimite o vazio o natildeo-ser)

Em suma o movimento soacute pode ser assumido na medida em que o muacuteltiplo puder ser concebido como o composto formado pelo ser e pelo outro do ser ambos conectados pela relaccedilatildeo de vizinhanccedila Essa vizinhanccedila eacute definida como uma equivalecircncia ontoloacutegica entre o vazio (nadameacuteden) ao lado do ser o que garantiria a separabilidade atocircmica (divisibilidade finita) sem a qual o composto natildeo seria concebiacutevel Do contraacuterio natildeo havendo o vazio soacute haveria o ser-uno unidade simples homogecircnea indiferenciada e tambeacutem imoacutevel jaacute que sempre plena Nesse caso nenhuma vizinhanccedila poderia ser constatada ou afirmada uma vez que a vizinhanccedila pressupotildee a dualidade de elementos O movimento estaria necessariamente vinculado ao dualismo ontoloacutegico e excluiacutedo do monismo pois neste natildeo haveria lugar para a alteridade ou vizinhanccedila

Na medida em que o ser e o vazio satildeo considerados conceitos fundantes no atomismo antigo a relaccedilatildeo de vizinhanccedila fica estabelecida nessa diferenciaccedilatildeo originaacuteria Assim o vazio (o nada) se coloca imediatamente em uma relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o ser no exato momento em que eacute compreendido como a sua radical alteridade E paradoxalmente eacute somente nesse sentido que o vazio eacute a saber na medida mesma em que ele natildeo eacute pleno E a reciacuteproca tambeacutem eacute

Platatildeo Releitura da metafiacutesica dos grandes diaacutelogos agrave luz das ldquoDoutrinas natildeo-escritasrdquo Satildeo Paulo Loyola 1991

29 Ibid p 164-165

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assim afirmada Como o vazio eacute o proacuteprio ser-outro porque instantaneamente se coloca nessa relaccedilatildeo de vizinhanccedila originaacuteria e imediata com o ser o ser tambeacutem se coloca nessa relaccedilatildeo primitiva com o vazio e somente neste sentido o ser eacute isto eacute na medida em que natildeo eacute vazio Platatildeo parece se aproximar dessa posiccedilatildeo atomista quando no Sofista introduz a seguinte indagaccedilatildeo atraveacutes das palavras do Estrangeiro de Eleia ldquoAssim pois estaacute claro que o movimento eacute realmente natildeo ser ainda que seja ser na medida em que participa do serrdquo E prossegue

Segue-se pois necessariamente que haacute um ser do natildeo-ser natildeo somente no movimento mas em toda a seacuterie dos gecircneros pois na verdade em todos eles a natureza do outro faz cada um deles outro que natildeo o ser e por isso mesmo natildeo-ser Assim universalmente por essa relaccedilatildeo chamaremos a todos corretamente natildeo-ser e ao contraacuterio pelo fato de eles participarem do ser diremos que satildeo seres30

Por esse ponto de vista o ser tambeacutem eacute definido em funccedilatildeo de sua relaccedilatildeo com o natildeo-ser que aqui alinhamos com o vazio como o outro do pleno Desse modo essa subordinaccedilatildeo do ser em relaccedilatildeo ao natildeo-ser (o vazio) ou do natildeo-ser (vazio) em relaccedilatildeo ao ser redunda em uma relaccedilatildeo de simetria entre ambos Como resultado temos que natildeo haacute um sentido uacutenico ou prioritaacuterio no condicionamento ontocausal entre ser e vazio A conclusatildeo eacute que ao assumir o movimento como um fato da natureza ou como princiacutepio o ser deixa de apresentar prioridade ontoloacutegica e causal

Nesse sentido ser e natildeo-ser perfazem de maneira equivalente as condiccedilotildees necessaacuterias para o movimento E ainda que a oposiccedilatildeo radical seja o elo constituinte desses princiacutepios originaacuterios ela natildeo implica a anulaccedilatildeo muacutetua de um pelo outro quando simultaneamente justapostos no pensamento assim como os eleatas tentaram mostrar atraveacutes dos paradoxos associados agrave divisibilidade e ao movimento31 Pelo contraacuterio a oposiccedilatildeo radical entre pleno e vazio entre ser e natildeo-ser eacute a proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade do movimento e por isso da efetividade do real Passa a valer por conseguinte nesse caso a necessidade da bicondicionalidade ontocausal entre ser e natildeo-ser radicada na relaccedilatildeo de vizinhanccedila entre ambos na constituiccedilatildeo do real como efetiva e cambiante multiplicidade

30PLATAtildeO Sofista (256e) opcit p 18931Cf ZENAtildeO In BORHEIM op cit p 60-63

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Sumariando as teses de Demoacutecrito e Leucipo temos que

1 O ser eacute quando colocado numa relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o vazio

2 O vazio eacute prefigura junto ao pleno como condiccedilatildeo necessaacuteria para o movimento

3 As teses anteriores se reduzem agrave maacutexima O natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser

4 uma Leitura De Kant a partir Das consiDeraccedilotildees anteriores

Passamos agora a considerar de que form eacute possiacutevel obter por meio do texto Ensaio para introduzir em filosofia o conceito de grandeza negativa32 um novo focirclego para a discussatildeo precedente33 Assim ao analisarmos esse texto manteremos sob nosso olhar aquela oposiccedilatildeo radical e fundamental acima apontada entre ser e natildeo-ser para tentar entendecirc-la atraveacutes daquilo que Kant chama ora de oposiccedilatildeo real ora de oposiccedilatildeo loacutegica sendo a primeira o tipo de oposiccedilatildeoequivalecircncia que relacionaremos com o atomismo antigo e a segunda aquilo que identificaremos como a oposiccedilatildeocontradiccedilatildeo denunciada nas formulaccedilotildees do eleatismo

No prefaacutecio ao Ensaio Kant deixa claro que a filosofia pode se utilizar das ciecircncias naturais e exatas seja copiando seus meacutetodos seja aplicando suas proposiccedilotildees deslocando-as para um novo contexto34 Procederaacute entatildeo com a tentativa de introduzir no seio da filosofia a ideia de grandeza negativa recurso jaacute empregado em matemaacutetica e fiacutesica

Eacute preciso distinguir o significado da proposiccedilatildeo grandeza negativa daquele outro de negaccedilatildeo de uma grandeza35 Uma grandeza negativa eacute a afirmaccedilatildeo de uma grandeza que simplesmente se opotildee a uma outra e que portanto revela uma positividade colocada numa relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo a outra positividade Jaacute na expressatildeo negaccedilatildeo de uma grandeza a grandeza eacute tomada

32 Com o tiacutetulo Versuch den Begriff der negativen Grossen in die Weltweisheit einzufuumlhren essa obra foi publicada pela primeira vez em 1763 Doravante iremos nos referir a ela de maneira abreviada apenas por Ensaio

33Ver nota 134No ano seguinte agrave publicaccedilatildeo do Ensaio essa posiccedilatildeo a respeito da filosofia e das ciecircncias eacute relativizada

com a publicaccedilatildeo de um texto intitulado ldquoInvestigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moralrdquo In KANT Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In______ Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 101-140

35 KANT Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia Ibid p 56

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isoladamente sem qualquer relaccedilatildeo com outra e por isso nenhuma oposiccedilatildeo eacute considerada a partir dela Aqui Kant toma para si a ideia de oposiccedilatildeo que estaacute na raiacutez do conceito de movimento ou de forccedila na Fiacutesica

Nesse sentido a negatividade da formulaccedilatildeo grandeza negativa deve ser interpretada como a projeccedilatildeo da oposiccedilatildeo sobre uma das grandezas polares da relaccedilatildeo que se estabelece entre forccedilas no mundo daiacute a expressatildeo oposiccedilatildeo real Tomemos o exemplo de Kant segundo o qual a atraccedilatildeo negativa que um corpo exerce sobre outro seraacute erroneamente interpretada se for compreendida como a negaccedilatildeo da forccedila de atraccedilatildeo por sua vez seraacute acertadamente compreendida se for tomada como uma grandeza negativa a forccedila de repulsatildeo36 Dessa maneira ela soacute poderaacute ser considerada como negativa se tomada relativamente a outra grandeza a atraccedilatildeo do contraacuterio ela eacute positiva Ou seja a negatividade ou a positividade das grandezas soacute pode ser estabelecida de maneira relativa isto eacute dada a situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre elas No exemplo considerado se o resultado da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre as duas forccedilas de atraccedilatildeo (positiva e negativa) for o repouso entatildeo temos a privaccedilatildeo (nihil privativum representabile) do movimento do objeto sobre o qual essas forccedilas estatildeo agindo e atraveacutes do qual elas puderam se colocar em confronto

Nesse caso eacute necessaacuterio natildeo tomar o efeito (repousoausecircncia do movimento do objeto) pela causa (o equiliacutebrio entre as forccedilas de atraccedilatildeo positiva e negativa) O resultado desse desacerto do juiacutezo seria confundir atraccedilatildeo negativa com ausecircncia de atraccedilatildeo ou a grandeza negativa com negaccedilatildeo de uma grandeza

Consideremos juntamente com Kant o conceito de grandeza negativa em geral para em seguida determinar os seus significados especiacuteficos Levando-se em conta que a chave para predicarmos as grandezas eacute a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo37 entatildeo temos que verificar as duas maneiras por meio das quais podemos considerar essa noccedilatildeo 1ordm como oposiccedilatildeo loacutegica 2ordm como oposiccedilatildeo real Assim Kant estabelece dois niacuteveis de anaacutelise para a apreciaccedilatildeo da noccedilatildeo de oposiccedilatildeo aquele da loacutegica e aquele da natureza Com isso ele pretende distinguir as respectivas funccedilotildees causais da oposiccedilatildeo considerada em cada um desses niacuteveis

Na oposiccedilatildeo loacutegica natildeo resta nenhuma consequecircncia da conexatildeo entre a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo nihil negativum irrepresentabile Dadas duas

36Ibid p 5637Ibid p 57

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afirmaccedilotildees absolutamente contraacuterias o pensamento se surpreende na situaccedilatildeo de natildeo poder prosseguir com seu trabalho obediente como eacute aos princiacutepios de contradiccedilatildeo e terceiro excluiacutedo (tertium non datur) Nesse sentido a contradiccedilatildeo que eacute como entendemos a oposiccedilatildeo loacutegica gera um tipo de vacuidade do pensamento um nada impensaacutevel um absoluto vazio que eacute como aquele nada asseverado por Parmecircnides ldquoNecessaacuterio eacute dizer e pensar que soacute o ser eacute pois o ser eacute e o nada ao contraacuterio nada eacute []rdquo38

Se pensarmos nos estados de movimento e de repouso referidos ao mesmo objeto e abstraindo-se o tempo encontraremos na base mais elementar desses estados contraacuterios os conceitos de ser e de natildeo-ser tidos como opostos no sentido exclusivamente loacutegico (contraacuterios) obtendo como resultado a contradiccedilatildeo e a impossibilidade do pensamento Nesse caso movimento e repouso deixaram de ser grandezas ou estados de coisas e se tornaram puras abstraccedilotildees Logo o natildeo-ser da negatividade natildeo apresenta nenhum tipo de positividade Isto eacute o natildeo-ser eacute absolutamente negativo e eacute tomado como logicamente dependente da positividade do ser como sua pura negaccedilatildeo Por sua vez o ser eacute tomado como conceito originaacuterio e absoluto cuja positividade independe de qualquer relaccedilatildeo apresentando assim precedecircncia loacutegica e exclusividade ontoloacutegica sobre o natildeo-ser

Por outro lado natildeo eacute possiacutevel afirmar que o ser ou o natildeo-ser possuam qualquer prevalecircncia um sobre o outro qualquer antecedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica quando considerados como grandezas no mundo

O movimento eacute tomado como algo positivo na medida em que eacute a efetivaccedilatildeo de um estado de coisas ldquoxrdquo no mundo por sua vez o repouso eacute tambeacutem uma positividade na medida em que significa um outro estado de coisas ldquoyrdquo oposto a ldquoxrdquo A negatividade nessa oposiccedilatildeo recai arbitrariamente sobre ldquoxrdquo ou ldquoyrdquo por meio de uma proposiccedilatildeo que estabelece a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo A negatividade recairaacute sobre ldquoxrdquo ou sobre ldquoyrdquo de acordo com a forma assumida pela proposiccedilatildeo que iraacute fazer variar a negatividade (ou a positividade) em funccedilatildeo da finalidade enfaacutetica que se queira dar a ldquoxrdquo ou a ldquoyrdquo

Somente quando se diz que um mesmo corpo estaacute e natildeo estaacute a um soacute tempo e na mesma relaccedilatildeo em repouso ou em movimento eacute que essa vacuidade no pensar aparece

38ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν[]rdquo PARMENIDES fragmento B6 In BORHEIM op cit p 55

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Um corpo em movimento eacute algo um corpo que natildeo estaacute em movimento eacute tambeacutem algo (cogitabile) no entanto um corpo que ao mesmo tempo e justamente sob a mesma relaccedilatildeo estivesse e natildeo estivesse em movimento eacute absolutamente nada39

A expressatildeo a um soacute tempo significa que o corpo eacute colocado na situaccedilatildeo em que se abstrai a seacuterie contiacutenua do tempo Isso quer dizer que uma uacutenica porccedilatildeo elementar do tempo foi tomada e isolada das demais Todavia uma porccedilatildeo assim isolada do tempo tomada em sentido absoluto natildeo eacute tempo algum Uma vez que a seacuterie de tempo eacute contiacutenua ou se toma uma porccedilatildeo do tempo que por sua vez conteacutem em si uma nova seacuterie temporal infinita (nesse caso a parte eacute igual ao todo) ou natildeo se toma tempo algum Em outras palavras a expressatildeo a um soacute tempo natildeo tem aqui nenhum significado temporal positivo mas apenas negativo significando fora do tempo

Assim procedeu Parmecircnides ao abstrair o tempo para todas as formas proposicionais vaacutelidas reduzindo toda forma de pensamento a uma expressatildeo proposicional afirmativa atemporal onde a positividade eacute sempre absoluta e por isso possui prioridade loacutegica e ontoloacutegica sobre a negatividade Nesse caso toda oposiccedilatildeo eacute sempre contradiccedilatildeo

Jaacute na oposiccedilatildeo real encontramos uma forma de pensamento que natildeo subtrai a seacuterie do tempo Nesse caso a oposiccedilatildeo real apresenta uma estrutura a qual pode ser esquematicamente apresentada como (+A ndashA = B) onde (B = 0) ou (B ne 0) e onde os elementos integrantes dessa operaccedilatildeo (+A) e (ndashA) natildeo deixam de ser pela atribuiccedilatildeo de uma negatividade meramente relativa mesmo quando (B=0) sendo ambos justamente a causa eficiente desse privatio

O (B = 0) como privatio natildeo eacute mera nulidade devendo ser tratado como a realizaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo resultante de um encontro entre potecircncias equivalentes mas opostas uma a outra Aqui natildeo existe contradiccedilatildeo em dizer que se trata de potecircncias equivalentes-opostas pois nesse caso tanto a negatividade como a positividade satildeo relativas e natildeo absolutas Natildeo existe autonomia ontoloacutegica da positividade nem da negatividade Trata-se aqui de predicados e natildeo de seres

Por sua vez o estado de coisas representado por (B = 0) esta efetividade eacute novamente um natildeo-ser poreacutem apenas em relaccedilatildeo a outro estado de coisas a que ele se opotildee Assim este (0) eacute um algo que eacute predicado a algo inserido na 39 Ibidem p 58 grifos nossos

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seacuterie contiacutenua do tempo e que eacute designado como privaccedilatildeo Apenas quando se abstrai da seacuterie do tempo eacute que x = 0 representa um nada absoluto Nesse caso o que eacute afirmado eacute inteira e instantaneamente anulado pelo que eacute negado e vice-versa pois a positividade e a negatividade do que eacute afirmado e negado se referem aos proacuteprios seres

Jaacute na oposiccedilatildeo real ainda que duas condiccedilotildees contraacuterias atuem simultaneamente sobre o mesmo objeto a contradiccedilatildeo (vacuidade do pensamento) natildeo eacute o resultado porque a expressatildeo simultaneamente (ausecircncia de sucessatildeo temporal) eacute aqui relativizada Se pensarmos na destruiccedilatildeo de um corpo esse movimento seraacute oposto ao de sua criaccedilatildeo No entanto tais movimentos natildeo satildeo contraditoacuterios um ao outro quando pensados juntos Natildeo inferimos uma vacuidade no pensamento da conjunccedilatildeo simultacircnea desses dois eventos desde que sejam pensados como eventos e portanto diluiacutedos no contiacutenuo temporal A contiacutenua transformaccedilatildeo (movimento) dos corpos vivos por exemplo tem por base um confronto entre a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo celular atuando nos organismos vivos quer dizer um estado de coisas manifestamente expresso como forccedilas antagocircnicas simultaneamente presentes no mesmo objeto No niacutevel celular essa simultaneidade eacute relativizada enquanto algumas ceacutelulas satildeo criadas outras satildeo destruiacutedas Essa relativizaccedilatildeo da simultaneidade natildeo exclui um efetivo antagonismo seja em que niacutevel for onde a positividade ou a negatividade satildeo arbitrariamente atribuiacutedas a um dos polos da oposiccedilatildeo natildeo havendo qualquer precedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica de um polo sobre o outro A geraccedilatildeo eacute negativa se a destruiccedilatildeo for tomada como positiva e vice-versa

Na dinacircmica uma forccedila motriz eacute dita positiva somente quando oposta a outra dita negativa a resistecircncia Ainda que opostas uma a outra forccedilas com vetores contraacuterios desse encontro natildeo se infere um absurdo como uma contradiccedilatildeo mas um estado de coisas real de oposiccedilatildeo de contrariedade O resultado pode ser tanto o repouso no caso das forccedilas opostas possuiacuterem a mesma potecircncia (serem equivalentes) ou o movimento que apresenta o mesmo vetor de uma das forccedilas conflitantes Em ambos os casos o resultante dessa oposiccedilatildeo eacute algo que pode ser efetivamente afirmado sobre o mundo e natildeo um vazio ou um nada irrepresentaacutevel Ainda que nesse caso o repouso possa ser representado por (B = 0) este (B = 0) natildeo deve ser entendido como uma indeterminaccedilatildeo mas sim como privaccedilatildeo Logo percebemos que a contradiccedilatildeo natildeo eacute aplicaacutevel a estados de coisas imersos na seacuterie contiacutenua do tempo

Tanto na oposiccedilatildeo loacutegica como na oposiccedilatildeo real o efeito pode ser representado como (=0) ou como vazio ou ainda como nada Entretanto

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o sentido desse vazio ou desse nada deve ser relativizado para cada situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo Na oposiccedilatildeo loacutegica significa contradiccedilatildeo (nihil negativum irrepresentabile) ou ausecircncia da possibilidade do pensamento A nosso ver este seria o caso do significado do natildeo-ser empregado por Parmecircnides onde localizamos a supressatildeo instantacircnea (anulaccedilatildeo ausecircncia absoluta) dos opostos Jaacute o nada ou o vazio da oposiccedilatildeo real eacute absolutamente representaacutevel Aqui eacute possiacutevel embora de maneira arbitraacuteria estabelecer os valores positivo e negativo dos elementos que se colocam na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo

5 concLusatildeo

Apoacutes oferecer alguns exemplos para o conceito de grandeza negativa na segunda seccedilatildeo do Ensaio Kant conduz suas consideraccedilotildees para o campo da filosofia que para ele deve se ocupar prioritariamente da metafiacutesica e cujo meacutetodo analiacutetico apresentado por ele em outro de seus textos desse periacuteodo40 jaacute fornece indiacutecios dos passos que daraacute no sentido de sua futura proposta mais amadurecida para uma teoria criacutetico-transcendental

Assim alerta Kant no Ensaio entendemos facilmente que algo natildeo seja se lhe carece a razatildeo positiva para sua existecircncia todavia temos dificuldades para entender como algo que efetivamente eacute deixa de ser41 isto eacute temos dificuldade em compreender o correto sentido de privaccedilatildeo O esclarecimento acerca dessa questatildeo eacute fundamental jaacute que o vir-a-ser isto eacute o deixar de ser como privaccedilatildeo eacute a maneira mais fundamental de entender o conceito de movimento Essa dificuldade em reconhecer o correto sentido de privaccedilatildeo eacute o que algumas vezes nos compele a confundi-la com a contradiccedilatildeo e por isso obter como resultado a negaccedilatildeo do movimento compreendendo-o erroneamente como gerador do absurdo

Assim sugere Kant se represento o Sol em minha imaginaccedilatildeo e se no instante seguinte deixo de ter presente essa representaccedilatildeo em minha mente isso natildeo significa que meu pensamento sobre o Sol tenha simplesmente desaparecido e se tornado um puro nada aniquilando-se na vacuidade de uma contradiccedilatildeo entre ser e natildeo-ser mas sim porque a representaccedilatildeo do sol foi suprimida por outra sorte qualquer de ideia que se impocircs com a intensidade

40KANT I Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In ______ Escritos Preacute-criacuteticos Trad Jair Barboza [et al] Satildeo Paulo UNESP 2005 p 116-117

41KANT opcit p 79

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suficiente para substituiacute-la parcial ou inteiramente segundo uma determinada relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo contingente ao espiacuterito

A simples negaccedilatildeo da representaccedilatildeo considerando que ela simplesmente anulou a si mesma deixando assim de existir nos remete para a situaccedilatildeo de um nada irrepresentaacutevel um impensaacutevel natildeo-ser como em Parmecircnides Jaacute na privaccedilatildeo existe uma interaccedilatildeo entre forccedilas opostas a qual natildeo aparece como contradiccedilatildeo uma vez que princiacutepios afirmativos opostos (representaccedilotildees opostas) coincidiriam sob a mesma forma do pensamento anulando assim o efeito de uma delas ou de ambas O resultado eacute a afirmaccedilatildeo de um ser que eacute tambeacutem natildeo-ser jaacute que a negatividade do natildeo-ser da representaccedilatildeo aqui eacute simplesmente relativa dada pela situccedilatildeo de oposiccedilatildeo A representaccedilatildeo arbitrariamente tomada como negativa natildeo eacute menos ser que aquela tomada como positiva A supressatildeo de uma pela outra natildeo se mostra como contradiccedilatildeo mas como a privaccedilatildeo

Eacute concebiacutevel assim pensar legitimamente o natildeo-ser da representaccedilatildeo desde que seja considerado como privaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel se falar com verdade em princiacutepios opostos e equivalentes e que produzem em seu encontro a afirmaccedilatildeo de algo como um nada Dessa maneira seja a1

a afirmaccedilatildeo (ser) de um determinado estado de coisas no mundo (ou de uma representaccedilatildeo de algo no mundo) e a2 o seu equivalente oposto (o natildeo-ser) temos que

a1 ndash a2 = 0

Arbitrariamente tomamos a2 como a representaccedilatildeo negativa contudo a negatividade aqui revela apenas a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre a1 e a2 e natildeo uma situaccedilatildeo absoluta de a2 Como grandezas equivalentes que se opotildeem o resultado (= 0) revela uma oposiccedilatildeo real natildeo uma contradiccedilatildeo Nem a1

e a2 podem ser ditas potecircncias contraditoacuterias nessa relaccedilatildeo visto que este (= 0) eacute a afirmaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo de um ser que eacute tambeacutem um natildeo-ser assim como o repouso eacute igualmente uma forma de natildeo-ser do movimento O pensamento que leva em conta os opostos eacute pois uma possibilidade real e mesmo necessaacuteria para a consideraccedilatildeo do movimento

Segundo a foacutermula de Demoacutecrito o natildeo-ser natildeo eacute mais nem menos que o ser Ora soacute podemos entender essa afirmaccedilatildeo de duas maneiras convergentes ou como afirmaccedilatildeo do mesmo estatuto ontoloacutegico para o ser e para o natildeo-ser ou como atribuiccedilatildeo da mesma funccedilatildeo causal (material) para ambos Nos dois casos o ser soacute eacute na presenccedila ou com a premissa do natildeo-ser e vice-versa E assim o natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser Estaacute claro que esse princiacutepio natildeo

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se ajusta sem qualquer intervenccedilatildeo agraves formulaccedilotildees de Parmecircnides Por esse desacordo eacute possiacutevel identificar no antigo atomismo uma negatividade do ser que natildeo engendra a vacuidade do pensamento Pelo contraacuterio o movimento do pensamento soacute eacute possiacutevel por meio dessa oposiccedilatildeo fundamental Em Platatildeo esse movimento do pensamento ganha o nome de dialeacutetica

Concluiremos este estudo com a seguinte afirmaccedilatildeo de Kant ldquoTodos os fundamentos reais do universo quando se somam todos que satildeo consonantes e se subtraem uns dos outros os que se opotildeem entre si datildeo um resultado igual a zerordquo42 Esse zero significa a afirmaccedilatildeo da efetividade do mundo Esse zero representa um repouso que nem por isso deixa de ser dinacircmico Assim esperamos ter aproximado o conteuacutedo do Ensaio com o pensamento daqueles filoacutesofos da natureza que se colocavam conformes a um princiacutepio universal sem negar a unidade do pensamento e do movimento do mundo De acordo com eles o mundo deve se ordenar segundo esses princiacutepios mutuamente opostos ser e natildeo-ser os quais estatildeo na origem desse repouso dinacircmico na exata medida da efetivaccedilatildeo de seus encontros

SANTOS Eberth Eleuterio dos Leucippus Democritus and Kant a reflection on the equivalence between being and non-being TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 38 n 2 p 71-94 MaioAgo 2015

ABSTRACT Initially we present the theory of Democritus and Leucippus whereby being is not more than the not-being (non-being) in contrast to Eleatic ideas about the necessary inexistence of the not-being This discussion leads us to the opposition between the whole (full) and the empty which will then be transposed into the opposition between being and nothingness (or not-being) Thus the opposition between whole and the empty is an opposition that moves to being and not-being Finally we will make an assessment of the Kantian pre-critical essay Attempt to introduce the concept of negative magnitude into philosophy in which we recognize a kind of opposition that as we believe would be interpreted as being in agreement with the position of Democritus and Leucippus regarding the ontological status of the not-being as an equivalent principle to the being understood here not as a mutual contradiction in a purely logical sense

KEYWORDS ancient atomism Eleatism ontology

referecircncias

ARISTOacuteTELES Da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo seguido de convite agrave filosofia Traduccedilatildeo de Renata Maria Pereira Cordeiro Satildeo Paulo Landy 2001

42 Ibid p 89

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______ Fiacutesica I ndash II Traduccedilatildeo de Lucas Angioni Campinas Editora da UNICAMP 2009

______ Metafiacutesica texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterio de Giovanni Reale Traduccedilatildeo de Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2005 3v

BARNES J Filoacutesofos preacute-socraacuteticos Traduccedilatildeo de Juacutelio Fischer 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

BORNHEIM G Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Cultrix 2000

_______ O que eacute metafiacutesica Traduccedilatildeo de Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

HEIDEGGER M Die Zeit des Weltbildes (1938) In ______ Gesamtausgabe Frankfurt Klostermann 87-88 (1977) Bd 5 Holzwege

KANT I Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia In ______ Escritos preacute-criacuteticos Traduccedilatildeo de Viniacutecius de Figueiredo e Jair Barbosa Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 51-99

______ Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur neacutegative Traduccedilatildeo de Roger Kempf 2 eacuted Paris J Vrin 1972 (Bibliothegraveque de textes philosophiques)

______ Versuch den Begriff der negative Grossen in die Weltweisheit einzufuhres Neueste Aufl Graz Andreas Leikam 1797 Disponiacutevel em lt httpsarchiveorgstreamversuchdenbegri00kantgoogpagen43mode2upgt Acesso em 22 dez 2013

PARMENIDES Fragmentos sobre a natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

______ Da natureza Traduccedilatildeo de Jose Gabriel Trindade Santos (modificada pelo tradutor) Satildeo Paulo Loyola 2002

PLATAtildeO Filebo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ O sofista Traduccedilatildeo de Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Abril Cultural 1972

______ Parmecircnides Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos v VIII Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ Teeteto Traduccedilatildeo de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri Lisboa Calouste Gulbenkian 2010

______ Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Rodolfo Lopes Coimbra Universidade de Coimbra 201143

Recebido Received 07092014Aprovado Approved 10012015

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eternamente em um espaccedilo vaziordquo11 Sem o vazio os aacutetomos permaneceriam estaacuteticos imoacuteveis e nenhuma geraccedilatildeo ou corrupccedilatildeo nenhum nascimento ou morte seria constataacutevel no acircmbito do composto E se natildeo houvesse nenhum princiacutepio de movimento nenhum vazio tambeacutem o ser (o aacutetomo) natildeo poderia ser dito no plural pois natildeo haveria nada distinto (o natildeo-ser) que permitisse a separaccedilatildeo e portanto o avizinhamento do ser consigo mesmo Tudo seria entatildeo apenas pleno uno e imoacutevel

O vazio se constitui por conseguinte como a soluccedilatildeo do antigo atomismo para o vir-a-ser Todavia com Leucipo e Demoacutecrito esta soluccedilatildeo eacute ainda um tanto insatisfatoacuteria pois eacute somente com Epicuro no final do seacuteculo IV que o peso eacute informado como uma das propriedades presentes no aacutetomo graccedilas ao qual se explicaria sua queda (deslocamento) no vazio Mas essa queda seria homogecircnea e por isso nem criativa nem destrutiva se o aacutetomo natildeo possuiacutesse sutis diferenciaccedilotildees No entanto na medida em que satildeo tambeacutem supostos infinitos em nuacutemero e em figura torna-se factiacutevel justificar a sua queda no vazio como natildeo regular mas com choques e voacutertices (clinamen) acarretando em junccedilotildees e separaccedilotildees atocircmicas Em resumo o aacutetomo apresenta um movimento por deslocamento e natildeo por alteraccedilatildeo natildeo podendo assim ser considerado o princiacutepio do movimento que apenas parcialmente se justifica pela postulaccedilatildeo do vazio como seu princiacutepio

Desse modo aacutetomo e vazio se equivalem como princiacutepios formais e materiais para a existecircncia do composto ainda que se oponham como princiacutepios de permanecircncia e de movimento respectivamente Os compostos se tornam mais densos (e pesados) na medida em que menos vazio neles houver em relaccedilatildeo aos aacutetomos na proporccedilatildeo de suas composiccedilotildees Ao mesmo tempo aacutetomo e vazio permitem compreender o movimento em sentido amplo como a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo do composto Esse movimento deve ser entendido entatildeo como a associaccedilatildeo e a dispersatildeo dos aacutetomos tornada possiacutevel pelo vazio

2 o eLeatismo e a revisatildeo pLatocircnica

Como dissemos o posicionamento dos atomistas em relaccedilatildeo ao movimento surgia como uma resposta agraves conclusotildees do imobilismo eleata Esse imobilismo por sua vez seguia como consequecircncia necessaacuteria do monismo ontoloacutegico ali presente no qual apenas o ser eacute dito com verdade Isto

11 HIPPOLOcircNIO I 13 2 in BORNHEIM op cit p 126

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eacute apenas o ser eacute dito com necessidade enquanto sobre o natildeo-ser nada pode ser dito com verdade Assim o pensamento verdadeiro porque necessaacuterio soacute pode se projetar sobre o ser que por sua vez eacute pleno e uno Atraveacutes do poema de Parmecircnides isto se torna laconicamente expliacutecito ldquoNecessaacuterio eacute o dizer e o pensar que o ente eacute pois eacute ser e nada natildeo eacute []rdquo12 e tambeacutem ldquoo outro que natildeo eacute que tem de natildeo ser esse te indico ser caminho em tudo ignotordquo13 E tendo comparado a doutrina de Parmecircnides aos ensinamentos de Xenoacutefanes e Melisso respectivamente seu mestre e disciacutepulo Aristoacuteteles conclui pelo seguinte ldquoParmecircnides ao contraacuterio [de Xenoacutefanes e Melisso] parece raciocinar com mais perspicaacutecia Por considerar que aleacutem do ser natildeo existe o natildeo-ser necessariamente deve crer que o ser eacute um e nada maisrdquo14

Em Parmecircnides o ser eacute a unidade fundamental de tudo o que pode ser dito com verdade Aqui encontramos o pensamento verdadeiro loacutegico-racional identificado agrave sua unidade pura homogecircnea indivisiacutevel e imoacutevel Em oposiccedilatildeo a isso Parmecircnides detectava o erro a falsidade o desvio da razatildeo que assumia a forma do natildeo-ser A afirmaccedilatildeo do natildeo-ser soacute poderia advir de um desvio do caminho da verdade

Nos versos de seu poema particularmente no fragmento B8 Parmecircnides nos revela o ser segundo essa concepccedilatildeo No primeiro canto O caminho da verdade fica estabelecida a identidade entre o ser e o pensamento em sentido estrito (necessaacuterio) a saber aquele pensamento acompanhado da verdade Isso significa que a realidade de direito estaacute fundada em um uacutenico princiacutepio o ser E aqui o conceito de realidade se confunde imediatamente com o de verdade loacutegica isto eacute aquilo que pode ser dito legitimamente ou sem contradiccedilatildeo E o ser se configura como o princiacutepio unicamente noeacutetico ao mesmo tempo loacutegico ontoloacutegico e epistecircmico sobre uma natureza fundamentalmente imoacutevel e apenas por isso consistente

Realidade verdade e permanecircncia se tornam conceitos congecircneres nessa particular anaacutelise ontoloacutegica da natureza O Ser - ato imediato do pensamento - jamais foi gerado jamais se altera jamais se corrompe jamais entra em conflito consigo mesmo Do contraacuterio perseguiriacuteamos o caminho da opiniatildeo

12ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν []rdquo PARMENIDES fragmento B6 (SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 117 2) In Preacute-Socraacuteticos opcit p 148

13ldquoἡ δ΄ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόνrdquo PARMENIDES Da Natureza Satildeo Paulo Loyola 2002 fragmento B2 (PROCLO Comentaacuterio ao Timeu I 345 18)

14ARISTOacuteTELES Metafiacutesica opcit p 33 grifos nossos

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no qual ser e natildeo-ser seriam reputados o mesmo ou equivalentes Contudo no caminho da verdade o pensamento (loacutegico-racional) natildeo pode admitir em seu seio a negaccedilatildeo do ser (o natildeo-ser) o outro do ser essa radical alteridade como algo que se coloca fora do ser e por isso se separa e se opotildee a ele No caminho da verdade nada pode ser dito ou pensado para aleacutem do ser Afirmar o ser para aleacutem do ser isto eacute o ser-outro ou o natildeo-ser eacute simplesmente natildeo reconhecer essa unicidade fundamental e por isso se colocar no caminho do erro da opiniatildeo falsa do engano sobre a essecircncia da natureza

Decorrecircncia dessa unicidade fundamental eacute o imobilismo da natureza no niacutevel noeacutetico A permanecircncia do ser natildeo significa outra coisa senatildeo sua incorruptibilidade em um niacutevel muito fundamental o do puro pensamento implicando a impossibilidade de uma justificaccedilatildeo loacutegico-racional para o devir da natureza sensiacutevel Eis entatildeo que o ser eacute tomado como princiacutepio uacutenico fiacutesico e metafiacutesico simbolizaacutevel por ldquoPois pensar e ser eacute o mesmordquo15 enquanto o contraacuterio eacute descartado como impossiacutevel ldquoJamais se conseguiraacute provar que o natildeo-ser eacuterdquo16

Naquilo que nos interessa aqui mais imediatamente os resultados das formulaccedilotildees do eleatismo - a afirmaccedilatildeo da permanecircncia do Ser (o Princiacutepio de Identidade) unida agrave exclusatildeo da afirmaccedilatildeo simultacircnea do ser e do natildeo-ser (o Princiacutepio da natildeo-contradiccedilatildeo) - satildeo a negaccedilatildeo do vazio do muacuteltiplo e do movimento Como assevera Melisso ldquoTambeacutem natildeo haacute nada vazio Pois o vazio nada eacute e o que nada eacute natildeo pode ser E natildeo se move Natildeo tem lugar onde mover-se pois eacute pleno Existisse o vazio mover-se-ia para o vazio Mas como natildeo haacute o vazio natildeo tem lugar para onde mover-serdquo17

Desse modo o ser no eleatismo natildeo admite para si a mudanccedila seja em que sentido for que se presuma essa mudanccedila A geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo ou mesmo o deslocamento que estatildeo na base da ideia de mudanccedila no atomismo trariam de volta o natildeo-ser para o interior de uma concepccedilatildeo de realidade da qual fora previamente excluiacutedo por forccedila do pensamento Os dois princiacutepios loacutegicos (identidade e contradiccedilatildeo) perderiam a sua validade e alcance sua legitimidade e credibilidade ldquoE jamais a forccedila da convicccedilatildeo concederaacute que do natildeo-ser possa surgir outra coisa Por isto a deusa da Justiccedila natildeo admite por

15ldquoτὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι rdquo PARMEcircNIDES fragmento B3 in BORHEIM op cit p 55 16ldquoΟὐ γὰρ μήποτε τοῦτο δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα rdquo PARMEcircNIDES fragmento B7 ibid p 5517 MELISSO fragmento 7 (SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 111118) Ibid p 65

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um afrouxamento de suas cadeias que nasccedila ou que pereccedila mas manteacutem-no firmerdquo18 Assim Parmecircnides deixa claro que o natildeo-ser natildeo eacute princiacutepio gerador do que quer que seja Trata-se de uma impossibilidade para o pensamento e portanto para o proacuteprio ser e para a natureza

E Platatildeo eacute tido como um disciacutepulo da henologia eleata Poreacutem tambeacutem eacute verdade que em pelo menos dois de seus Diaacutelogos o Sofista e o Parmecircnides19 fica evidente um desacordo entre ele Parmecircnides No Sofista (236e-237b) Platatildeo revela as dificuldades advindas de uma identificaccedilatildeo imediata loacutegica e ontoloacutegica entre verdade e ser excluindo assim o natildeo-ser de todo raciociacutenio legiacutetimo A consequecircncia dessa identificaccedilatildeo eacute a impossibilidade de se afirmar o falso Afirmar o falso apareceria como manifesta contradiccedilatildeo jaacute que seria afirmar o nada20 Contudo Platatildeo reconhece que essa impossibilidade tambeacutem se mostra como um risco epistemoloacutegico pois disso decorreria a impossibilidade de distinguir entre conhecimento (opiniatildeo verdadeira) e ignoracircncia (opiniatildeo falsa) Ao esclarecer Teeteto sobre esse fato diz o Estrangeiro de Eleia no Sofista

Eacute que realmente jovem feliz nos vemos frente a uma questatildeo extremamente difiacutecil pois mostrar e parecer sem ser dizer algo sem entretanto dizer com verdade satildeo maneiras que trazem grandes dificuldades tanto hoje como ontem e sempre Que modo encontrar na realidade para dizer ou pensar que o falso eacute real sem que jaacute ao proferi-lo nos encontremos enredados na contradiccedilatildeo [] A audaacutecia de uma tal afirmaccedilatildeo eacute supor o natildeo-ser como ser e na realidade nada de falso eacute possiacutevel sem esta condiccedilatildeo Era o que meu jovem jaacute afirmava o grande Parmecircnides tanto em prosa como em verso a noacutes que entatildeo eacuteramos jovens ldquoJamais obrigaraacutes os natildeo-seres a ser Antes afasta teu pensamento desse caminho de investigaccedilatildeo21

18ldquoΟὐδὲ ποτ΄ ἐκ μὴ ἐόντος ἐφήσει πίστιος ἰσχύς γίγνεσθαί τι παρ΄ αὐτόττοῦ εἵνεκεν οὔτε γενέσθαι οὔτ΄ ὄλλυσθαι ἀνῆκε Δίκη χαλάσασα πέδῃσινrdquo PARMEcircNIDES fragmento B8 ibid p 55 grifos nossos

19 Eacute oacutebvio que natildeo precisariacuteamos ficar restritos a apenas esses dois Diaacutelogos Por exemplo no Teeteto poderiacuteamos mencionar o problema da opiniatildeo falsa (187d-18a) PLATAtildeO Teeteto Lisboa Calouste Gulbenkian 2010 p 271-272 No Filebo a controveacutersia sobre o Uno e o Muacuteltiplo (14c-15c 23d) PLATAtildeO Filebo In ______ Diaacutelogos v 8 Universidade Federal do Paraacute 1974 No Timeu interessante notar as semelhanccedilas e dessemelhanccedilas entre o atomismo e a doutrina laacute apresentada principalmente em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo do ser e do devir enquanto imutaacutevel e mutaacutevel respectivamente (27d-28b) poderiacuteamos mencionar ainda a descriccedilatildeo da gecircnese do mundo como um ser vivo e sua forma arredondada numa espeacutecie de reconciliaccedilatildeo com o eleatismo de Parmecircnides (30d-40d) PLATAtildeO Timeu-Criacutetias Coimbra Universidade de Coimbra 2011 p 92-93 99-115

20 Sobre o paradoxo envolvendo a questatildeo de se afirmar o nada cf HEIDEGGER O que eacute metafiacutesica Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 235

21PLATAtildeO Sofista Satildeo Paulo Abril Cultural 1972 p 162

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Eacute notoacuterio que os esclarecimentos prestados ao jovem Teeteto pelo Estrangeiro conduzem a um ldquoparriciacutediordquo22 significando uma espeacutecie de rompimento de Platatildeo com a henologia eleata ortodoxa Todavia tatildeo pouco esse rompimento significa a aceitaccedilatildeo da posiccedilatildeo atomista por Platatildeo23 No diaacutelogo Parmecircnides (137ac-166c) o Outro do Uno (o ser outro) eacute afirmado como uma necessidade no acircmbito da dialeacutetica platocircnica24 sem o qual a Doutrina das Ideias natildeo escaparia agraves dificuldades apontadas (130c-134e) e que satildeo decorrentes de uma ortodoxia henoloacutegica advindas do proacuteprio eleatismo

Contudo o objetivo desta raacutepida explanaccedilatildeo foi o de apenas tornar um pouco mais evidente a oposiccedilatildeo entre o pluralismo ontoloacutegico e material de Demoacutecrito (como se acredita ser tambeacutem o de Leucipo) e o monismo de Parmecircnides Nas seccedilotildees subsequentes defenderemos que essa oposiccedilatildeo fundamental entre o ser e o vazio natildeo implica uma contradiccedilatildeo (loacutegica) como no eleatismo mas sim uma forma de oposiccedilatildeo jaacute percebida por Platatildeo como necessaacuteria (por exemplo no Sofista 256d - 259d) e que poderiacuteamos interpretar como sendo tambeacutem aquela apresentada por Kant e denominada por ele como oposiccedilatildeo real E para natildeo nos afastarmos desse intuito prossigamos nestas ponderaccedilotildees

3 equivaLecircncia entre Ser e natildeo-Ser

Na seccedilatildeo precedente refletimos sobre algumas das consideraccedilotildees mais centrais do eleatismo basicamente aquelas que afirmam o ser como necessariamente um e imoacutevel25 Tambeacutem tivemos a oportunidade de acompanhar como Demoacutecrito ao desenvolver a filosofia de seu mestre Leucipo eacute capaz de

22Ibid p 168 (241a-242b)23Apesar de apresentar pontos de contato com o atomismo de Demoacutecrito e Leucipo e com certos

aspectos do eleatismo ortodoxo a visatildeo cosmogocircnica exposta por Platatildeo no Timeu se distancia de ambos ao assumir a dialeacutetica como pressuposto metodoloacutegico e epistemoloacutegico Por exemplo quando da descriccedilatildeo da dinacircmica dos elementos de um ponto de vista puramente dialeacutetico (56c-61c) ou quando da apresentaccedilatildeo do terceiro princiacutepio que soacute ldquo[] acessiacutevel por meio de um certo raciociacutenio bastardo (logismocirc tini nothocirc) sem recurso aos sentidos a custo crediacutevel (52a-b) PLATAtildeO Timeu-Criacutetias op cit p 136-155

24Cf tambeacutem PLATAtildeO Sofista (253d - 254b) op cit p 184-18525 Aleacutem dessa definiccedilatildeo essencial do ser Parmecircnides especialmente no fragmento B8 fornece

uma seacuterie de outros atributos que poderiacuteamos considerar como derivados ou secundaacuterios como completude (plenitude) inteireza esfericidade indestrutibilidade limite externo compacidade homogeneidade continuidade que de certo modo podem ser reduzidos uns aos outros e referidos agravequeles dois que interpretamos como essenciais

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defender a proposiccedilatildeo ldquoO nada existe tanto quanto o lsquoalguma coisarsquordquo26 Assim na antiga escola atomista o movimento eacute aceito e justificado na medida em que admite o vazio (o natildeo-ser) pelo qual se opera o mecanismo da mudanccedila da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo no acircmbito do composto atraveacutes da junccedilatildeo e da dissoluccedilatildeo de suas partes elementares Tomando igualmente o vazio como princiacutepio os atomistas antigos satildeo capazes de oferecer uma resposta ao problema do movimento e do vir-a-ser problema este colocado pelo menos desde Parmecircnides

Dessa forma divergem as teses baacutesicas do eleatismo e do atomismo De um lado fica estabelecida a necessidade da postulaccedilatildeo do ser uno e pleno de maneira exclusiva e solitaacuteria excluindo por essa via a possibilidade de uma justificaccedilatildeo do vir-a-ser de outro encontramos a postulaccedilatildeo do vazio colocado como oposiccedilatildeo ao ser mas tambeacutem como seu equivalente formal e material servindo como canal comunicante sem o qual o movimento proacuteprio da natureza natildeo seria concebiacutevel ou racionalizaacutevel

Essa disputa entre escolas ou doutrinas aponta para uma oposiccedilatildeo mais fundamental trata-se da oposiccedilatildeo entre o ser e o natildeo-ser ou entre o pleno e o vazio No eleatismo o ser apresenta anterioridade loacutegica e ontoloacutegica Jaacute na filosofia da natureza de Demoacutecrito e Leucipo o ser e o natildeo-ser devem ser colocados lado a lado o que permite a essa filosofia se abrir para o vir-a-ser ao aceitar desde o iniacutecio essa radical alteridade do outro do ser como princiacutepio equivalente ao ser

A afirmaccedilatildeo da multiplicidade e do movimento pressupotildeem desde o iniacutecio a alteridade o outro do ser Isso parece ter ficado bastante evidente para Platatildeo que no Parmecircnides (130c-134e) apoacutes o momento em que o personagem que daacute nome ao Diaacutelogo ter elencado uma seacuterie de argumentos27 contra a Doutrina das Ideias apresenta uma revisatildeo da henologia eleaacutetica posicionando o Outro do Uno junto ao Uno como alteridade necessaacuteria para o equiliacutebrio do jogo dialeacutetico somente assim alcanccedilando ecircxito em tentar salvar essa doutrina dos ferozes ataques lanccedilados contra ela28 E no Filebo tambeacutem 26 DEMOacuteCRITO fragmento 156 In BORNHEIN op cit p 113 27 Sete no total Cf PLATAtildeO Parmecircnides op cit 130c-134e28 A estrutura dessa investigaccedilatildeo dialeacutetica no Parmecircnides pode ser concentrada nas oito consequecircncias

obtidas da anaacutelise da protoideia do uno Por meio do meacutetodo dialeacutetico satildeo obtidos resultados afirmativos e negativos tanto para a existecircncia como para a negaccedilatildeo da existecircncia do uno Esses resultados parecem se equilibrar gerando a impressatildeo de um resultado aparentemente nulo mas que ao final trazem resultados positivos seja para uma revisatildeo do eleatismo seja para uma sofisticaccedilatildeo da Teoria das Ideias Para uma anaacutelise desse assunto cf REALE G Para uma nova interpretaccedilatildeo de

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encontramos essa disposiccedilatildeo dualista atraveacutes da apresentaccedilatildeo da teoria dos princiacutepios formadores para as proacuteprias ideias Segundo essa teoria conhecida como Protologia Platocircnica29 as ideias as formas puras do mundo inteligiacutevel nasceriam do encontro e da uniatildeo do limite identificado com o Uno e do ilimite identificado com o muacuteltiplo infinito (Filebo 16d-e 23d-26d) Limite e ilimite satildeo tomados como princiacutepios absolutos poreacutem geradores das ideias apenas quando relativizados um pelo outro

Guardadas as respectivas diferenccedilas tanto em Platatildeo como nos atomistas fica estabelecida uma equivalecircncia entre ser e natildeo-ser Essa negaccedilatildeo do ser eacute concebida como o Outro-do-ser (oposto ao ser a sua alteridade) O muacuteltiplo eacute na sua essecircncia uacuteltima o composto formado pelo ser e pelo natildeo-ser que como vimos acima eacute entendido como vazio pelos atomistas A partir desse ponto de vista a natureza moacutevel apresenta-se como um tipo de extensatildeo discreta fundada em um dualismo ontoloacutegico no qual encontramos o mesmo (a unidade o limite a identidade o aacutetomo o ser) e o outro (a diferenccedila a alteridade o ilimite o vazio o natildeo-ser)

Em suma o movimento soacute pode ser assumido na medida em que o muacuteltiplo puder ser concebido como o composto formado pelo ser e pelo outro do ser ambos conectados pela relaccedilatildeo de vizinhanccedila Essa vizinhanccedila eacute definida como uma equivalecircncia ontoloacutegica entre o vazio (nadameacuteden) ao lado do ser o que garantiria a separabilidade atocircmica (divisibilidade finita) sem a qual o composto natildeo seria concebiacutevel Do contraacuterio natildeo havendo o vazio soacute haveria o ser-uno unidade simples homogecircnea indiferenciada e tambeacutem imoacutevel jaacute que sempre plena Nesse caso nenhuma vizinhanccedila poderia ser constatada ou afirmada uma vez que a vizinhanccedila pressupotildee a dualidade de elementos O movimento estaria necessariamente vinculado ao dualismo ontoloacutegico e excluiacutedo do monismo pois neste natildeo haveria lugar para a alteridade ou vizinhanccedila

Na medida em que o ser e o vazio satildeo considerados conceitos fundantes no atomismo antigo a relaccedilatildeo de vizinhanccedila fica estabelecida nessa diferenciaccedilatildeo originaacuteria Assim o vazio (o nada) se coloca imediatamente em uma relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o ser no exato momento em que eacute compreendido como a sua radical alteridade E paradoxalmente eacute somente nesse sentido que o vazio eacute a saber na medida mesma em que ele natildeo eacute pleno E a reciacuteproca tambeacutem eacute

Platatildeo Releitura da metafiacutesica dos grandes diaacutelogos agrave luz das ldquoDoutrinas natildeo-escritasrdquo Satildeo Paulo Loyola 1991

29 Ibid p 164-165

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assim afirmada Como o vazio eacute o proacuteprio ser-outro porque instantaneamente se coloca nessa relaccedilatildeo de vizinhanccedila originaacuteria e imediata com o ser o ser tambeacutem se coloca nessa relaccedilatildeo primitiva com o vazio e somente neste sentido o ser eacute isto eacute na medida em que natildeo eacute vazio Platatildeo parece se aproximar dessa posiccedilatildeo atomista quando no Sofista introduz a seguinte indagaccedilatildeo atraveacutes das palavras do Estrangeiro de Eleia ldquoAssim pois estaacute claro que o movimento eacute realmente natildeo ser ainda que seja ser na medida em que participa do serrdquo E prossegue

Segue-se pois necessariamente que haacute um ser do natildeo-ser natildeo somente no movimento mas em toda a seacuterie dos gecircneros pois na verdade em todos eles a natureza do outro faz cada um deles outro que natildeo o ser e por isso mesmo natildeo-ser Assim universalmente por essa relaccedilatildeo chamaremos a todos corretamente natildeo-ser e ao contraacuterio pelo fato de eles participarem do ser diremos que satildeo seres30

Por esse ponto de vista o ser tambeacutem eacute definido em funccedilatildeo de sua relaccedilatildeo com o natildeo-ser que aqui alinhamos com o vazio como o outro do pleno Desse modo essa subordinaccedilatildeo do ser em relaccedilatildeo ao natildeo-ser (o vazio) ou do natildeo-ser (vazio) em relaccedilatildeo ao ser redunda em uma relaccedilatildeo de simetria entre ambos Como resultado temos que natildeo haacute um sentido uacutenico ou prioritaacuterio no condicionamento ontocausal entre ser e vazio A conclusatildeo eacute que ao assumir o movimento como um fato da natureza ou como princiacutepio o ser deixa de apresentar prioridade ontoloacutegica e causal

Nesse sentido ser e natildeo-ser perfazem de maneira equivalente as condiccedilotildees necessaacuterias para o movimento E ainda que a oposiccedilatildeo radical seja o elo constituinte desses princiacutepios originaacuterios ela natildeo implica a anulaccedilatildeo muacutetua de um pelo outro quando simultaneamente justapostos no pensamento assim como os eleatas tentaram mostrar atraveacutes dos paradoxos associados agrave divisibilidade e ao movimento31 Pelo contraacuterio a oposiccedilatildeo radical entre pleno e vazio entre ser e natildeo-ser eacute a proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade do movimento e por isso da efetividade do real Passa a valer por conseguinte nesse caso a necessidade da bicondicionalidade ontocausal entre ser e natildeo-ser radicada na relaccedilatildeo de vizinhanccedila entre ambos na constituiccedilatildeo do real como efetiva e cambiante multiplicidade

30PLATAtildeO Sofista (256e) opcit p 18931Cf ZENAtildeO In BORHEIM op cit p 60-63

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Sumariando as teses de Demoacutecrito e Leucipo temos que

1 O ser eacute quando colocado numa relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o vazio

2 O vazio eacute prefigura junto ao pleno como condiccedilatildeo necessaacuteria para o movimento

3 As teses anteriores se reduzem agrave maacutexima O natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser

4 uma Leitura De Kant a partir Das consiDeraccedilotildees anteriores

Passamos agora a considerar de que form eacute possiacutevel obter por meio do texto Ensaio para introduzir em filosofia o conceito de grandeza negativa32 um novo focirclego para a discussatildeo precedente33 Assim ao analisarmos esse texto manteremos sob nosso olhar aquela oposiccedilatildeo radical e fundamental acima apontada entre ser e natildeo-ser para tentar entendecirc-la atraveacutes daquilo que Kant chama ora de oposiccedilatildeo real ora de oposiccedilatildeo loacutegica sendo a primeira o tipo de oposiccedilatildeoequivalecircncia que relacionaremos com o atomismo antigo e a segunda aquilo que identificaremos como a oposiccedilatildeocontradiccedilatildeo denunciada nas formulaccedilotildees do eleatismo

No prefaacutecio ao Ensaio Kant deixa claro que a filosofia pode se utilizar das ciecircncias naturais e exatas seja copiando seus meacutetodos seja aplicando suas proposiccedilotildees deslocando-as para um novo contexto34 Procederaacute entatildeo com a tentativa de introduzir no seio da filosofia a ideia de grandeza negativa recurso jaacute empregado em matemaacutetica e fiacutesica

Eacute preciso distinguir o significado da proposiccedilatildeo grandeza negativa daquele outro de negaccedilatildeo de uma grandeza35 Uma grandeza negativa eacute a afirmaccedilatildeo de uma grandeza que simplesmente se opotildee a uma outra e que portanto revela uma positividade colocada numa relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo a outra positividade Jaacute na expressatildeo negaccedilatildeo de uma grandeza a grandeza eacute tomada

32 Com o tiacutetulo Versuch den Begriff der negativen Grossen in die Weltweisheit einzufuumlhren essa obra foi publicada pela primeira vez em 1763 Doravante iremos nos referir a ela de maneira abreviada apenas por Ensaio

33Ver nota 134No ano seguinte agrave publicaccedilatildeo do Ensaio essa posiccedilatildeo a respeito da filosofia e das ciecircncias eacute relativizada

com a publicaccedilatildeo de um texto intitulado ldquoInvestigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moralrdquo In KANT Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In______ Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 101-140

35 KANT Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia Ibid p 56

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isoladamente sem qualquer relaccedilatildeo com outra e por isso nenhuma oposiccedilatildeo eacute considerada a partir dela Aqui Kant toma para si a ideia de oposiccedilatildeo que estaacute na raiacutez do conceito de movimento ou de forccedila na Fiacutesica

Nesse sentido a negatividade da formulaccedilatildeo grandeza negativa deve ser interpretada como a projeccedilatildeo da oposiccedilatildeo sobre uma das grandezas polares da relaccedilatildeo que se estabelece entre forccedilas no mundo daiacute a expressatildeo oposiccedilatildeo real Tomemos o exemplo de Kant segundo o qual a atraccedilatildeo negativa que um corpo exerce sobre outro seraacute erroneamente interpretada se for compreendida como a negaccedilatildeo da forccedila de atraccedilatildeo por sua vez seraacute acertadamente compreendida se for tomada como uma grandeza negativa a forccedila de repulsatildeo36 Dessa maneira ela soacute poderaacute ser considerada como negativa se tomada relativamente a outra grandeza a atraccedilatildeo do contraacuterio ela eacute positiva Ou seja a negatividade ou a positividade das grandezas soacute pode ser estabelecida de maneira relativa isto eacute dada a situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre elas No exemplo considerado se o resultado da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre as duas forccedilas de atraccedilatildeo (positiva e negativa) for o repouso entatildeo temos a privaccedilatildeo (nihil privativum representabile) do movimento do objeto sobre o qual essas forccedilas estatildeo agindo e atraveacutes do qual elas puderam se colocar em confronto

Nesse caso eacute necessaacuterio natildeo tomar o efeito (repousoausecircncia do movimento do objeto) pela causa (o equiliacutebrio entre as forccedilas de atraccedilatildeo positiva e negativa) O resultado desse desacerto do juiacutezo seria confundir atraccedilatildeo negativa com ausecircncia de atraccedilatildeo ou a grandeza negativa com negaccedilatildeo de uma grandeza

Consideremos juntamente com Kant o conceito de grandeza negativa em geral para em seguida determinar os seus significados especiacuteficos Levando-se em conta que a chave para predicarmos as grandezas eacute a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo37 entatildeo temos que verificar as duas maneiras por meio das quais podemos considerar essa noccedilatildeo 1ordm como oposiccedilatildeo loacutegica 2ordm como oposiccedilatildeo real Assim Kant estabelece dois niacuteveis de anaacutelise para a apreciaccedilatildeo da noccedilatildeo de oposiccedilatildeo aquele da loacutegica e aquele da natureza Com isso ele pretende distinguir as respectivas funccedilotildees causais da oposiccedilatildeo considerada em cada um desses niacuteveis

Na oposiccedilatildeo loacutegica natildeo resta nenhuma consequecircncia da conexatildeo entre a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo nihil negativum irrepresentabile Dadas duas

36Ibid p 5637Ibid p 57

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afirmaccedilotildees absolutamente contraacuterias o pensamento se surpreende na situaccedilatildeo de natildeo poder prosseguir com seu trabalho obediente como eacute aos princiacutepios de contradiccedilatildeo e terceiro excluiacutedo (tertium non datur) Nesse sentido a contradiccedilatildeo que eacute como entendemos a oposiccedilatildeo loacutegica gera um tipo de vacuidade do pensamento um nada impensaacutevel um absoluto vazio que eacute como aquele nada asseverado por Parmecircnides ldquoNecessaacuterio eacute dizer e pensar que soacute o ser eacute pois o ser eacute e o nada ao contraacuterio nada eacute []rdquo38

Se pensarmos nos estados de movimento e de repouso referidos ao mesmo objeto e abstraindo-se o tempo encontraremos na base mais elementar desses estados contraacuterios os conceitos de ser e de natildeo-ser tidos como opostos no sentido exclusivamente loacutegico (contraacuterios) obtendo como resultado a contradiccedilatildeo e a impossibilidade do pensamento Nesse caso movimento e repouso deixaram de ser grandezas ou estados de coisas e se tornaram puras abstraccedilotildees Logo o natildeo-ser da negatividade natildeo apresenta nenhum tipo de positividade Isto eacute o natildeo-ser eacute absolutamente negativo e eacute tomado como logicamente dependente da positividade do ser como sua pura negaccedilatildeo Por sua vez o ser eacute tomado como conceito originaacuterio e absoluto cuja positividade independe de qualquer relaccedilatildeo apresentando assim precedecircncia loacutegica e exclusividade ontoloacutegica sobre o natildeo-ser

Por outro lado natildeo eacute possiacutevel afirmar que o ser ou o natildeo-ser possuam qualquer prevalecircncia um sobre o outro qualquer antecedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica quando considerados como grandezas no mundo

O movimento eacute tomado como algo positivo na medida em que eacute a efetivaccedilatildeo de um estado de coisas ldquoxrdquo no mundo por sua vez o repouso eacute tambeacutem uma positividade na medida em que significa um outro estado de coisas ldquoyrdquo oposto a ldquoxrdquo A negatividade nessa oposiccedilatildeo recai arbitrariamente sobre ldquoxrdquo ou ldquoyrdquo por meio de uma proposiccedilatildeo que estabelece a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo A negatividade recairaacute sobre ldquoxrdquo ou sobre ldquoyrdquo de acordo com a forma assumida pela proposiccedilatildeo que iraacute fazer variar a negatividade (ou a positividade) em funccedilatildeo da finalidade enfaacutetica que se queira dar a ldquoxrdquo ou a ldquoyrdquo

Somente quando se diz que um mesmo corpo estaacute e natildeo estaacute a um soacute tempo e na mesma relaccedilatildeo em repouso ou em movimento eacute que essa vacuidade no pensar aparece

38ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν[]rdquo PARMENIDES fragmento B6 In BORHEIM op cit p 55

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Um corpo em movimento eacute algo um corpo que natildeo estaacute em movimento eacute tambeacutem algo (cogitabile) no entanto um corpo que ao mesmo tempo e justamente sob a mesma relaccedilatildeo estivesse e natildeo estivesse em movimento eacute absolutamente nada39

A expressatildeo a um soacute tempo significa que o corpo eacute colocado na situaccedilatildeo em que se abstrai a seacuterie contiacutenua do tempo Isso quer dizer que uma uacutenica porccedilatildeo elementar do tempo foi tomada e isolada das demais Todavia uma porccedilatildeo assim isolada do tempo tomada em sentido absoluto natildeo eacute tempo algum Uma vez que a seacuterie de tempo eacute contiacutenua ou se toma uma porccedilatildeo do tempo que por sua vez conteacutem em si uma nova seacuterie temporal infinita (nesse caso a parte eacute igual ao todo) ou natildeo se toma tempo algum Em outras palavras a expressatildeo a um soacute tempo natildeo tem aqui nenhum significado temporal positivo mas apenas negativo significando fora do tempo

Assim procedeu Parmecircnides ao abstrair o tempo para todas as formas proposicionais vaacutelidas reduzindo toda forma de pensamento a uma expressatildeo proposicional afirmativa atemporal onde a positividade eacute sempre absoluta e por isso possui prioridade loacutegica e ontoloacutegica sobre a negatividade Nesse caso toda oposiccedilatildeo eacute sempre contradiccedilatildeo

Jaacute na oposiccedilatildeo real encontramos uma forma de pensamento que natildeo subtrai a seacuterie do tempo Nesse caso a oposiccedilatildeo real apresenta uma estrutura a qual pode ser esquematicamente apresentada como (+A ndashA = B) onde (B = 0) ou (B ne 0) e onde os elementos integrantes dessa operaccedilatildeo (+A) e (ndashA) natildeo deixam de ser pela atribuiccedilatildeo de uma negatividade meramente relativa mesmo quando (B=0) sendo ambos justamente a causa eficiente desse privatio

O (B = 0) como privatio natildeo eacute mera nulidade devendo ser tratado como a realizaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo resultante de um encontro entre potecircncias equivalentes mas opostas uma a outra Aqui natildeo existe contradiccedilatildeo em dizer que se trata de potecircncias equivalentes-opostas pois nesse caso tanto a negatividade como a positividade satildeo relativas e natildeo absolutas Natildeo existe autonomia ontoloacutegica da positividade nem da negatividade Trata-se aqui de predicados e natildeo de seres

Por sua vez o estado de coisas representado por (B = 0) esta efetividade eacute novamente um natildeo-ser poreacutem apenas em relaccedilatildeo a outro estado de coisas a que ele se opotildee Assim este (0) eacute um algo que eacute predicado a algo inserido na 39 Ibidem p 58 grifos nossos

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seacuterie contiacutenua do tempo e que eacute designado como privaccedilatildeo Apenas quando se abstrai da seacuterie do tempo eacute que x = 0 representa um nada absoluto Nesse caso o que eacute afirmado eacute inteira e instantaneamente anulado pelo que eacute negado e vice-versa pois a positividade e a negatividade do que eacute afirmado e negado se referem aos proacuteprios seres

Jaacute na oposiccedilatildeo real ainda que duas condiccedilotildees contraacuterias atuem simultaneamente sobre o mesmo objeto a contradiccedilatildeo (vacuidade do pensamento) natildeo eacute o resultado porque a expressatildeo simultaneamente (ausecircncia de sucessatildeo temporal) eacute aqui relativizada Se pensarmos na destruiccedilatildeo de um corpo esse movimento seraacute oposto ao de sua criaccedilatildeo No entanto tais movimentos natildeo satildeo contraditoacuterios um ao outro quando pensados juntos Natildeo inferimos uma vacuidade no pensamento da conjunccedilatildeo simultacircnea desses dois eventos desde que sejam pensados como eventos e portanto diluiacutedos no contiacutenuo temporal A contiacutenua transformaccedilatildeo (movimento) dos corpos vivos por exemplo tem por base um confronto entre a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo celular atuando nos organismos vivos quer dizer um estado de coisas manifestamente expresso como forccedilas antagocircnicas simultaneamente presentes no mesmo objeto No niacutevel celular essa simultaneidade eacute relativizada enquanto algumas ceacutelulas satildeo criadas outras satildeo destruiacutedas Essa relativizaccedilatildeo da simultaneidade natildeo exclui um efetivo antagonismo seja em que niacutevel for onde a positividade ou a negatividade satildeo arbitrariamente atribuiacutedas a um dos polos da oposiccedilatildeo natildeo havendo qualquer precedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica de um polo sobre o outro A geraccedilatildeo eacute negativa se a destruiccedilatildeo for tomada como positiva e vice-versa

Na dinacircmica uma forccedila motriz eacute dita positiva somente quando oposta a outra dita negativa a resistecircncia Ainda que opostas uma a outra forccedilas com vetores contraacuterios desse encontro natildeo se infere um absurdo como uma contradiccedilatildeo mas um estado de coisas real de oposiccedilatildeo de contrariedade O resultado pode ser tanto o repouso no caso das forccedilas opostas possuiacuterem a mesma potecircncia (serem equivalentes) ou o movimento que apresenta o mesmo vetor de uma das forccedilas conflitantes Em ambos os casos o resultante dessa oposiccedilatildeo eacute algo que pode ser efetivamente afirmado sobre o mundo e natildeo um vazio ou um nada irrepresentaacutevel Ainda que nesse caso o repouso possa ser representado por (B = 0) este (B = 0) natildeo deve ser entendido como uma indeterminaccedilatildeo mas sim como privaccedilatildeo Logo percebemos que a contradiccedilatildeo natildeo eacute aplicaacutevel a estados de coisas imersos na seacuterie contiacutenua do tempo

Tanto na oposiccedilatildeo loacutegica como na oposiccedilatildeo real o efeito pode ser representado como (=0) ou como vazio ou ainda como nada Entretanto

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o sentido desse vazio ou desse nada deve ser relativizado para cada situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo Na oposiccedilatildeo loacutegica significa contradiccedilatildeo (nihil negativum irrepresentabile) ou ausecircncia da possibilidade do pensamento A nosso ver este seria o caso do significado do natildeo-ser empregado por Parmecircnides onde localizamos a supressatildeo instantacircnea (anulaccedilatildeo ausecircncia absoluta) dos opostos Jaacute o nada ou o vazio da oposiccedilatildeo real eacute absolutamente representaacutevel Aqui eacute possiacutevel embora de maneira arbitraacuteria estabelecer os valores positivo e negativo dos elementos que se colocam na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo

5 concLusatildeo

Apoacutes oferecer alguns exemplos para o conceito de grandeza negativa na segunda seccedilatildeo do Ensaio Kant conduz suas consideraccedilotildees para o campo da filosofia que para ele deve se ocupar prioritariamente da metafiacutesica e cujo meacutetodo analiacutetico apresentado por ele em outro de seus textos desse periacuteodo40 jaacute fornece indiacutecios dos passos que daraacute no sentido de sua futura proposta mais amadurecida para uma teoria criacutetico-transcendental

Assim alerta Kant no Ensaio entendemos facilmente que algo natildeo seja se lhe carece a razatildeo positiva para sua existecircncia todavia temos dificuldades para entender como algo que efetivamente eacute deixa de ser41 isto eacute temos dificuldade em compreender o correto sentido de privaccedilatildeo O esclarecimento acerca dessa questatildeo eacute fundamental jaacute que o vir-a-ser isto eacute o deixar de ser como privaccedilatildeo eacute a maneira mais fundamental de entender o conceito de movimento Essa dificuldade em reconhecer o correto sentido de privaccedilatildeo eacute o que algumas vezes nos compele a confundi-la com a contradiccedilatildeo e por isso obter como resultado a negaccedilatildeo do movimento compreendendo-o erroneamente como gerador do absurdo

Assim sugere Kant se represento o Sol em minha imaginaccedilatildeo e se no instante seguinte deixo de ter presente essa representaccedilatildeo em minha mente isso natildeo significa que meu pensamento sobre o Sol tenha simplesmente desaparecido e se tornado um puro nada aniquilando-se na vacuidade de uma contradiccedilatildeo entre ser e natildeo-ser mas sim porque a representaccedilatildeo do sol foi suprimida por outra sorte qualquer de ideia que se impocircs com a intensidade

40KANT I Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In ______ Escritos Preacute-criacuteticos Trad Jair Barboza [et al] Satildeo Paulo UNESP 2005 p 116-117

41KANT opcit p 79

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suficiente para substituiacute-la parcial ou inteiramente segundo uma determinada relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo contingente ao espiacuterito

A simples negaccedilatildeo da representaccedilatildeo considerando que ela simplesmente anulou a si mesma deixando assim de existir nos remete para a situaccedilatildeo de um nada irrepresentaacutevel um impensaacutevel natildeo-ser como em Parmecircnides Jaacute na privaccedilatildeo existe uma interaccedilatildeo entre forccedilas opostas a qual natildeo aparece como contradiccedilatildeo uma vez que princiacutepios afirmativos opostos (representaccedilotildees opostas) coincidiriam sob a mesma forma do pensamento anulando assim o efeito de uma delas ou de ambas O resultado eacute a afirmaccedilatildeo de um ser que eacute tambeacutem natildeo-ser jaacute que a negatividade do natildeo-ser da representaccedilatildeo aqui eacute simplesmente relativa dada pela situccedilatildeo de oposiccedilatildeo A representaccedilatildeo arbitrariamente tomada como negativa natildeo eacute menos ser que aquela tomada como positiva A supressatildeo de uma pela outra natildeo se mostra como contradiccedilatildeo mas como a privaccedilatildeo

Eacute concebiacutevel assim pensar legitimamente o natildeo-ser da representaccedilatildeo desde que seja considerado como privaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel se falar com verdade em princiacutepios opostos e equivalentes e que produzem em seu encontro a afirmaccedilatildeo de algo como um nada Dessa maneira seja a1

a afirmaccedilatildeo (ser) de um determinado estado de coisas no mundo (ou de uma representaccedilatildeo de algo no mundo) e a2 o seu equivalente oposto (o natildeo-ser) temos que

a1 ndash a2 = 0

Arbitrariamente tomamos a2 como a representaccedilatildeo negativa contudo a negatividade aqui revela apenas a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre a1 e a2 e natildeo uma situaccedilatildeo absoluta de a2 Como grandezas equivalentes que se opotildeem o resultado (= 0) revela uma oposiccedilatildeo real natildeo uma contradiccedilatildeo Nem a1

e a2 podem ser ditas potecircncias contraditoacuterias nessa relaccedilatildeo visto que este (= 0) eacute a afirmaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo de um ser que eacute tambeacutem um natildeo-ser assim como o repouso eacute igualmente uma forma de natildeo-ser do movimento O pensamento que leva em conta os opostos eacute pois uma possibilidade real e mesmo necessaacuteria para a consideraccedilatildeo do movimento

Segundo a foacutermula de Demoacutecrito o natildeo-ser natildeo eacute mais nem menos que o ser Ora soacute podemos entender essa afirmaccedilatildeo de duas maneiras convergentes ou como afirmaccedilatildeo do mesmo estatuto ontoloacutegico para o ser e para o natildeo-ser ou como atribuiccedilatildeo da mesma funccedilatildeo causal (material) para ambos Nos dois casos o ser soacute eacute na presenccedila ou com a premissa do natildeo-ser e vice-versa E assim o natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser Estaacute claro que esse princiacutepio natildeo

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se ajusta sem qualquer intervenccedilatildeo agraves formulaccedilotildees de Parmecircnides Por esse desacordo eacute possiacutevel identificar no antigo atomismo uma negatividade do ser que natildeo engendra a vacuidade do pensamento Pelo contraacuterio o movimento do pensamento soacute eacute possiacutevel por meio dessa oposiccedilatildeo fundamental Em Platatildeo esse movimento do pensamento ganha o nome de dialeacutetica

Concluiremos este estudo com a seguinte afirmaccedilatildeo de Kant ldquoTodos os fundamentos reais do universo quando se somam todos que satildeo consonantes e se subtraem uns dos outros os que se opotildeem entre si datildeo um resultado igual a zerordquo42 Esse zero significa a afirmaccedilatildeo da efetividade do mundo Esse zero representa um repouso que nem por isso deixa de ser dinacircmico Assim esperamos ter aproximado o conteuacutedo do Ensaio com o pensamento daqueles filoacutesofos da natureza que se colocavam conformes a um princiacutepio universal sem negar a unidade do pensamento e do movimento do mundo De acordo com eles o mundo deve se ordenar segundo esses princiacutepios mutuamente opostos ser e natildeo-ser os quais estatildeo na origem desse repouso dinacircmico na exata medida da efetivaccedilatildeo de seus encontros

SANTOS Eberth Eleuterio dos Leucippus Democritus and Kant a reflection on the equivalence between being and non-being TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 38 n 2 p 71-94 MaioAgo 2015

ABSTRACT Initially we present the theory of Democritus and Leucippus whereby being is not more than the not-being (non-being) in contrast to Eleatic ideas about the necessary inexistence of the not-being This discussion leads us to the opposition between the whole (full) and the empty which will then be transposed into the opposition between being and nothingness (or not-being) Thus the opposition between whole and the empty is an opposition that moves to being and not-being Finally we will make an assessment of the Kantian pre-critical essay Attempt to introduce the concept of negative magnitude into philosophy in which we recognize a kind of opposition that as we believe would be interpreted as being in agreement with the position of Democritus and Leucippus regarding the ontological status of the not-being as an equivalent principle to the being understood here not as a mutual contradiction in a purely logical sense

KEYWORDS ancient atomism Eleatism ontology

referecircncias

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42 Ibid p 89

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______ Parmecircnides Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos v VIII Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ Teeteto Traduccedilatildeo de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri Lisboa Calouste Gulbenkian 2010

______ Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Rodolfo Lopes Coimbra Universidade de Coimbra 201143

Recebido Received 07092014Aprovado Approved 10012015

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eacute apenas o ser eacute dito com necessidade enquanto sobre o natildeo-ser nada pode ser dito com verdade Assim o pensamento verdadeiro porque necessaacuterio soacute pode se projetar sobre o ser que por sua vez eacute pleno e uno Atraveacutes do poema de Parmecircnides isto se torna laconicamente expliacutecito ldquoNecessaacuterio eacute o dizer e o pensar que o ente eacute pois eacute ser e nada natildeo eacute []rdquo12 e tambeacutem ldquoo outro que natildeo eacute que tem de natildeo ser esse te indico ser caminho em tudo ignotordquo13 E tendo comparado a doutrina de Parmecircnides aos ensinamentos de Xenoacutefanes e Melisso respectivamente seu mestre e disciacutepulo Aristoacuteteles conclui pelo seguinte ldquoParmecircnides ao contraacuterio [de Xenoacutefanes e Melisso] parece raciocinar com mais perspicaacutecia Por considerar que aleacutem do ser natildeo existe o natildeo-ser necessariamente deve crer que o ser eacute um e nada maisrdquo14

Em Parmecircnides o ser eacute a unidade fundamental de tudo o que pode ser dito com verdade Aqui encontramos o pensamento verdadeiro loacutegico-racional identificado agrave sua unidade pura homogecircnea indivisiacutevel e imoacutevel Em oposiccedilatildeo a isso Parmecircnides detectava o erro a falsidade o desvio da razatildeo que assumia a forma do natildeo-ser A afirmaccedilatildeo do natildeo-ser soacute poderia advir de um desvio do caminho da verdade

Nos versos de seu poema particularmente no fragmento B8 Parmecircnides nos revela o ser segundo essa concepccedilatildeo No primeiro canto O caminho da verdade fica estabelecida a identidade entre o ser e o pensamento em sentido estrito (necessaacuterio) a saber aquele pensamento acompanhado da verdade Isso significa que a realidade de direito estaacute fundada em um uacutenico princiacutepio o ser E aqui o conceito de realidade se confunde imediatamente com o de verdade loacutegica isto eacute aquilo que pode ser dito legitimamente ou sem contradiccedilatildeo E o ser se configura como o princiacutepio unicamente noeacutetico ao mesmo tempo loacutegico ontoloacutegico e epistecircmico sobre uma natureza fundamentalmente imoacutevel e apenas por isso consistente

Realidade verdade e permanecircncia se tornam conceitos congecircneres nessa particular anaacutelise ontoloacutegica da natureza O Ser - ato imediato do pensamento - jamais foi gerado jamais se altera jamais se corrompe jamais entra em conflito consigo mesmo Do contraacuterio perseguiriacuteamos o caminho da opiniatildeo

12ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν []rdquo PARMENIDES fragmento B6 (SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 117 2) In Preacute-Socraacuteticos opcit p 148

13ldquoἡ δ΄ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόνrdquo PARMENIDES Da Natureza Satildeo Paulo Loyola 2002 fragmento B2 (PROCLO Comentaacuterio ao Timeu I 345 18)

14ARISTOacuteTELES Metafiacutesica opcit p 33 grifos nossos

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no qual ser e natildeo-ser seriam reputados o mesmo ou equivalentes Contudo no caminho da verdade o pensamento (loacutegico-racional) natildeo pode admitir em seu seio a negaccedilatildeo do ser (o natildeo-ser) o outro do ser essa radical alteridade como algo que se coloca fora do ser e por isso se separa e se opotildee a ele No caminho da verdade nada pode ser dito ou pensado para aleacutem do ser Afirmar o ser para aleacutem do ser isto eacute o ser-outro ou o natildeo-ser eacute simplesmente natildeo reconhecer essa unicidade fundamental e por isso se colocar no caminho do erro da opiniatildeo falsa do engano sobre a essecircncia da natureza

Decorrecircncia dessa unicidade fundamental eacute o imobilismo da natureza no niacutevel noeacutetico A permanecircncia do ser natildeo significa outra coisa senatildeo sua incorruptibilidade em um niacutevel muito fundamental o do puro pensamento implicando a impossibilidade de uma justificaccedilatildeo loacutegico-racional para o devir da natureza sensiacutevel Eis entatildeo que o ser eacute tomado como princiacutepio uacutenico fiacutesico e metafiacutesico simbolizaacutevel por ldquoPois pensar e ser eacute o mesmordquo15 enquanto o contraacuterio eacute descartado como impossiacutevel ldquoJamais se conseguiraacute provar que o natildeo-ser eacuterdquo16

Naquilo que nos interessa aqui mais imediatamente os resultados das formulaccedilotildees do eleatismo - a afirmaccedilatildeo da permanecircncia do Ser (o Princiacutepio de Identidade) unida agrave exclusatildeo da afirmaccedilatildeo simultacircnea do ser e do natildeo-ser (o Princiacutepio da natildeo-contradiccedilatildeo) - satildeo a negaccedilatildeo do vazio do muacuteltiplo e do movimento Como assevera Melisso ldquoTambeacutem natildeo haacute nada vazio Pois o vazio nada eacute e o que nada eacute natildeo pode ser E natildeo se move Natildeo tem lugar onde mover-se pois eacute pleno Existisse o vazio mover-se-ia para o vazio Mas como natildeo haacute o vazio natildeo tem lugar para onde mover-serdquo17

Desse modo o ser no eleatismo natildeo admite para si a mudanccedila seja em que sentido for que se presuma essa mudanccedila A geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo ou mesmo o deslocamento que estatildeo na base da ideia de mudanccedila no atomismo trariam de volta o natildeo-ser para o interior de uma concepccedilatildeo de realidade da qual fora previamente excluiacutedo por forccedila do pensamento Os dois princiacutepios loacutegicos (identidade e contradiccedilatildeo) perderiam a sua validade e alcance sua legitimidade e credibilidade ldquoE jamais a forccedila da convicccedilatildeo concederaacute que do natildeo-ser possa surgir outra coisa Por isto a deusa da Justiccedila natildeo admite por

15ldquoτὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι rdquo PARMEcircNIDES fragmento B3 in BORHEIM op cit p 55 16ldquoΟὐ γὰρ μήποτε τοῦτο δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα rdquo PARMEcircNIDES fragmento B7 ibid p 5517 MELISSO fragmento 7 (SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 111118) Ibid p 65

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um afrouxamento de suas cadeias que nasccedila ou que pereccedila mas manteacutem-no firmerdquo18 Assim Parmecircnides deixa claro que o natildeo-ser natildeo eacute princiacutepio gerador do que quer que seja Trata-se de uma impossibilidade para o pensamento e portanto para o proacuteprio ser e para a natureza

E Platatildeo eacute tido como um disciacutepulo da henologia eleata Poreacutem tambeacutem eacute verdade que em pelo menos dois de seus Diaacutelogos o Sofista e o Parmecircnides19 fica evidente um desacordo entre ele Parmecircnides No Sofista (236e-237b) Platatildeo revela as dificuldades advindas de uma identificaccedilatildeo imediata loacutegica e ontoloacutegica entre verdade e ser excluindo assim o natildeo-ser de todo raciociacutenio legiacutetimo A consequecircncia dessa identificaccedilatildeo eacute a impossibilidade de se afirmar o falso Afirmar o falso apareceria como manifesta contradiccedilatildeo jaacute que seria afirmar o nada20 Contudo Platatildeo reconhece que essa impossibilidade tambeacutem se mostra como um risco epistemoloacutegico pois disso decorreria a impossibilidade de distinguir entre conhecimento (opiniatildeo verdadeira) e ignoracircncia (opiniatildeo falsa) Ao esclarecer Teeteto sobre esse fato diz o Estrangeiro de Eleia no Sofista

Eacute que realmente jovem feliz nos vemos frente a uma questatildeo extremamente difiacutecil pois mostrar e parecer sem ser dizer algo sem entretanto dizer com verdade satildeo maneiras que trazem grandes dificuldades tanto hoje como ontem e sempre Que modo encontrar na realidade para dizer ou pensar que o falso eacute real sem que jaacute ao proferi-lo nos encontremos enredados na contradiccedilatildeo [] A audaacutecia de uma tal afirmaccedilatildeo eacute supor o natildeo-ser como ser e na realidade nada de falso eacute possiacutevel sem esta condiccedilatildeo Era o que meu jovem jaacute afirmava o grande Parmecircnides tanto em prosa como em verso a noacutes que entatildeo eacuteramos jovens ldquoJamais obrigaraacutes os natildeo-seres a ser Antes afasta teu pensamento desse caminho de investigaccedilatildeo21

18ldquoΟὐδὲ ποτ΄ ἐκ μὴ ἐόντος ἐφήσει πίστιος ἰσχύς γίγνεσθαί τι παρ΄ αὐτόττοῦ εἵνεκεν οὔτε γενέσθαι οὔτ΄ ὄλλυσθαι ἀνῆκε Δίκη χαλάσασα πέδῃσινrdquo PARMEcircNIDES fragmento B8 ibid p 55 grifos nossos

19 Eacute oacutebvio que natildeo precisariacuteamos ficar restritos a apenas esses dois Diaacutelogos Por exemplo no Teeteto poderiacuteamos mencionar o problema da opiniatildeo falsa (187d-18a) PLATAtildeO Teeteto Lisboa Calouste Gulbenkian 2010 p 271-272 No Filebo a controveacutersia sobre o Uno e o Muacuteltiplo (14c-15c 23d) PLATAtildeO Filebo In ______ Diaacutelogos v 8 Universidade Federal do Paraacute 1974 No Timeu interessante notar as semelhanccedilas e dessemelhanccedilas entre o atomismo e a doutrina laacute apresentada principalmente em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo do ser e do devir enquanto imutaacutevel e mutaacutevel respectivamente (27d-28b) poderiacuteamos mencionar ainda a descriccedilatildeo da gecircnese do mundo como um ser vivo e sua forma arredondada numa espeacutecie de reconciliaccedilatildeo com o eleatismo de Parmecircnides (30d-40d) PLATAtildeO Timeu-Criacutetias Coimbra Universidade de Coimbra 2011 p 92-93 99-115

20 Sobre o paradoxo envolvendo a questatildeo de se afirmar o nada cf HEIDEGGER O que eacute metafiacutesica Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 235

21PLATAtildeO Sofista Satildeo Paulo Abril Cultural 1972 p 162

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Eacute notoacuterio que os esclarecimentos prestados ao jovem Teeteto pelo Estrangeiro conduzem a um ldquoparriciacutediordquo22 significando uma espeacutecie de rompimento de Platatildeo com a henologia eleata ortodoxa Todavia tatildeo pouco esse rompimento significa a aceitaccedilatildeo da posiccedilatildeo atomista por Platatildeo23 No diaacutelogo Parmecircnides (137ac-166c) o Outro do Uno (o ser outro) eacute afirmado como uma necessidade no acircmbito da dialeacutetica platocircnica24 sem o qual a Doutrina das Ideias natildeo escaparia agraves dificuldades apontadas (130c-134e) e que satildeo decorrentes de uma ortodoxia henoloacutegica advindas do proacuteprio eleatismo

Contudo o objetivo desta raacutepida explanaccedilatildeo foi o de apenas tornar um pouco mais evidente a oposiccedilatildeo entre o pluralismo ontoloacutegico e material de Demoacutecrito (como se acredita ser tambeacutem o de Leucipo) e o monismo de Parmecircnides Nas seccedilotildees subsequentes defenderemos que essa oposiccedilatildeo fundamental entre o ser e o vazio natildeo implica uma contradiccedilatildeo (loacutegica) como no eleatismo mas sim uma forma de oposiccedilatildeo jaacute percebida por Platatildeo como necessaacuteria (por exemplo no Sofista 256d - 259d) e que poderiacuteamos interpretar como sendo tambeacutem aquela apresentada por Kant e denominada por ele como oposiccedilatildeo real E para natildeo nos afastarmos desse intuito prossigamos nestas ponderaccedilotildees

3 equivaLecircncia entre Ser e natildeo-Ser

Na seccedilatildeo precedente refletimos sobre algumas das consideraccedilotildees mais centrais do eleatismo basicamente aquelas que afirmam o ser como necessariamente um e imoacutevel25 Tambeacutem tivemos a oportunidade de acompanhar como Demoacutecrito ao desenvolver a filosofia de seu mestre Leucipo eacute capaz de

22Ibid p 168 (241a-242b)23Apesar de apresentar pontos de contato com o atomismo de Demoacutecrito e Leucipo e com certos

aspectos do eleatismo ortodoxo a visatildeo cosmogocircnica exposta por Platatildeo no Timeu se distancia de ambos ao assumir a dialeacutetica como pressuposto metodoloacutegico e epistemoloacutegico Por exemplo quando da descriccedilatildeo da dinacircmica dos elementos de um ponto de vista puramente dialeacutetico (56c-61c) ou quando da apresentaccedilatildeo do terceiro princiacutepio que soacute ldquo[] acessiacutevel por meio de um certo raciociacutenio bastardo (logismocirc tini nothocirc) sem recurso aos sentidos a custo crediacutevel (52a-b) PLATAtildeO Timeu-Criacutetias op cit p 136-155

24Cf tambeacutem PLATAtildeO Sofista (253d - 254b) op cit p 184-18525 Aleacutem dessa definiccedilatildeo essencial do ser Parmecircnides especialmente no fragmento B8 fornece

uma seacuterie de outros atributos que poderiacuteamos considerar como derivados ou secundaacuterios como completude (plenitude) inteireza esfericidade indestrutibilidade limite externo compacidade homogeneidade continuidade que de certo modo podem ser reduzidos uns aos outros e referidos agravequeles dois que interpretamos como essenciais

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defender a proposiccedilatildeo ldquoO nada existe tanto quanto o lsquoalguma coisarsquordquo26 Assim na antiga escola atomista o movimento eacute aceito e justificado na medida em que admite o vazio (o natildeo-ser) pelo qual se opera o mecanismo da mudanccedila da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo no acircmbito do composto atraveacutes da junccedilatildeo e da dissoluccedilatildeo de suas partes elementares Tomando igualmente o vazio como princiacutepio os atomistas antigos satildeo capazes de oferecer uma resposta ao problema do movimento e do vir-a-ser problema este colocado pelo menos desde Parmecircnides

Dessa forma divergem as teses baacutesicas do eleatismo e do atomismo De um lado fica estabelecida a necessidade da postulaccedilatildeo do ser uno e pleno de maneira exclusiva e solitaacuteria excluindo por essa via a possibilidade de uma justificaccedilatildeo do vir-a-ser de outro encontramos a postulaccedilatildeo do vazio colocado como oposiccedilatildeo ao ser mas tambeacutem como seu equivalente formal e material servindo como canal comunicante sem o qual o movimento proacuteprio da natureza natildeo seria concebiacutevel ou racionalizaacutevel

Essa disputa entre escolas ou doutrinas aponta para uma oposiccedilatildeo mais fundamental trata-se da oposiccedilatildeo entre o ser e o natildeo-ser ou entre o pleno e o vazio No eleatismo o ser apresenta anterioridade loacutegica e ontoloacutegica Jaacute na filosofia da natureza de Demoacutecrito e Leucipo o ser e o natildeo-ser devem ser colocados lado a lado o que permite a essa filosofia se abrir para o vir-a-ser ao aceitar desde o iniacutecio essa radical alteridade do outro do ser como princiacutepio equivalente ao ser

A afirmaccedilatildeo da multiplicidade e do movimento pressupotildeem desde o iniacutecio a alteridade o outro do ser Isso parece ter ficado bastante evidente para Platatildeo que no Parmecircnides (130c-134e) apoacutes o momento em que o personagem que daacute nome ao Diaacutelogo ter elencado uma seacuterie de argumentos27 contra a Doutrina das Ideias apresenta uma revisatildeo da henologia eleaacutetica posicionando o Outro do Uno junto ao Uno como alteridade necessaacuteria para o equiliacutebrio do jogo dialeacutetico somente assim alcanccedilando ecircxito em tentar salvar essa doutrina dos ferozes ataques lanccedilados contra ela28 E no Filebo tambeacutem 26 DEMOacuteCRITO fragmento 156 In BORNHEIN op cit p 113 27 Sete no total Cf PLATAtildeO Parmecircnides op cit 130c-134e28 A estrutura dessa investigaccedilatildeo dialeacutetica no Parmecircnides pode ser concentrada nas oito consequecircncias

obtidas da anaacutelise da protoideia do uno Por meio do meacutetodo dialeacutetico satildeo obtidos resultados afirmativos e negativos tanto para a existecircncia como para a negaccedilatildeo da existecircncia do uno Esses resultados parecem se equilibrar gerando a impressatildeo de um resultado aparentemente nulo mas que ao final trazem resultados positivos seja para uma revisatildeo do eleatismo seja para uma sofisticaccedilatildeo da Teoria das Ideias Para uma anaacutelise desse assunto cf REALE G Para uma nova interpretaccedilatildeo de

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encontramos essa disposiccedilatildeo dualista atraveacutes da apresentaccedilatildeo da teoria dos princiacutepios formadores para as proacuteprias ideias Segundo essa teoria conhecida como Protologia Platocircnica29 as ideias as formas puras do mundo inteligiacutevel nasceriam do encontro e da uniatildeo do limite identificado com o Uno e do ilimite identificado com o muacuteltiplo infinito (Filebo 16d-e 23d-26d) Limite e ilimite satildeo tomados como princiacutepios absolutos poreacutem geradores das ideias apenas quando relativizados um pelo outro

Guardadas as respectivas diferenccedilas tanto em Platatildeo como nos atomistas fica estabelecida uma equivalecircncia entre ser e natildeo-ser Essa negaccedilatildeo do ser eacute concebida como o Outro-do-ser (oposto ao ser a sua alteridade) O muacuteltiplo eacute na sua essecircncia uacuteltima o composto formado pelo ser e pelo natildeo-ser que como vimos acima eacute entendido como vazio pelos atomistas A partir desse ponto de vista a natureza moacutevel apresenta-se como um tipo de extensatildeo discreta fundada em um dualismo ontoloacutegico no qual encontramos o mesmo (a unidade o limite a identidade o aacutetomo o ser) e o outro (a diferenccedila a alteridade o ilimite o vazio o natildeo-ser)

Em suma o movimento soacute pode ser assumido na medida em que o muacuteltiplo puder ser concebido como o composto formado pelo ser e pelo outro do ser ambos conectados pela relaccedilatildeo de vizinhanccedila Essa vizinhanccedila eacute definida como uma equivalecircncia ontoloacutegica entre o vazio (nadameacuteden) ao lado do ser o que garantiria a separabilidade atocircmica (divisibilidade finita) sem a qual o composto natildeo seria concebiacutevel Do contraacuterio natildeo havendo o vazio soacute haveria o ser-uno unidade simples homogecircnea indiferenciada e tambeacutem imoacutevel jaacute que sempre plena Nesse caso nenhuma vizinhanccedila poderia ser constatada ou afirmada uma vez que a vizinhanccedila pressupotildee a dualidade de elementos O movimento estaria necessariamente vinculado ao dualismo ontoloacutegico e excluiacutedo do monismo pois neste natildeo haveria lugar para a alteridade ou vizinhanccedila

Na medida em que o ser e o vazio satildeo considerados conceitos fundantes no atomismo antigo a relaccedilatildeo de vizinhanccedila fica estabelecida nessa diferenciaccedilatildeo originaacuteria Assim o vazio (o nada) se coloca imediatamente em uma relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o ser no exato momento em que eacute compreendido como a sua radical alteridade E paradoxalmente eacute somente nesse sentido que o vazio eacute a saber na medida mesma em que ele natildeo eacute pleno E a reciacuteproca tambeacutem eacute

Platatildeo Releitura da metafiacutesica dos grandes diaacutelogos agrave luz das ldquoDoutrinas natildeo-escritasrdquo Satildeo Paulo Loyola 1991

29 Ibid p 164-165

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assim afirmada Como o vazio eacute o proacuteprio ser-outro porque instantaneamente se coloca nessa relaccedilatildeo de vizinhanccedila originaacuteria e imediata com o ser o ser tambeacutem se coloca nessa relaccedilatildeo primitiva com o vazio e somente neste sentido o ser eacute isto eacute na medida em que natildeo eacute vazio Platatildeo parece se aproximar dessa posiccedilatildeo atomista quando no Sofista introduz a seguinte indagaccedilatildeo atraveacutes das palavras do Estrangeiro de Eleia ldquoAssim pois estaacute claro que o movimento eacute realmente natildeo ser ainda que seja ser na medida em que participa do serrdquo E prossegue

Segue-se pois necessariamente que haacute um ser do natildeo-ser natildeo somente no movimento mas em toda a seacuterie dos gecircneros pois na verdade em todos eles a natureza do outro faz cada um deles outro que natildeo o ser e por isso mesmo natildeo-ser Assim universalmente por essa relaccedilatildeo chamaremos a todos corretamente natildeo-ser e ao contraacuterio pelo fato de eles participarem do ser diremos que satildeo seres30

Por esse ponto de vista o ser tambeacutem eacute definido em funccedilatildeo de sua relaccedilatildeo com o natildeo-ser que aqui alinhamos com o vazio como o outro do pleno Desse modo essa subordinaccedilatildeo do ser em relaccedilatildeo ao natildeo-ser (o vazio) ou do natildeo-ser (vazio) em relaccedilatildeo ao ser redunda em uma relaccedilatildeo de simetria entre ambos Como resultado temos que natildeo haacute um sentido uacutenico ou prioritaacuterio no condicionamento ontocausal entre ser e vazio A conclusatildeo eacute que ao assumir o movimento como um fato da natureza ou como princiacutepio o ser deixa de apresentar prioridade ontoloacutegica e causal

Nesse sentido ser e natildeo-ser perfazem de maneira equivalente as condiccedilotildees necessaacuterias para o movimento E ainda que a oposiccedilatildeo radical seja o elo constituinte desses princiacutepios originaacuterios ela natildeo implica a anulaccedilatildeo muacutetua de um pelo outro quando simultaneamente justapostos no pensamento assim como os eleatas tentaram mostrar atraveacutes dos paradoxos associados agrave divisibilidade e ao movimento31 Pelo contraacuterio a oposiccedilatildeo radical entre pleno e vazio entre ser e natildeo-ser eacute a proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade do movimento e por isso da efetividade do real Passa a valer por conseguinte nesse caso a necessidade da bicondicionalidade ontocausal entre ser e natildeo-ser radicada na relaccedilatildeo de vizinhanccedila entre ambos na constituiccedilatildeo do real como efetiva e cambiante multiplicidade

30PLATAtildeO Sofista (256e) opcit p 18931Cf ZENAtildeO In BORHEIM op cit p 60-63

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Sumariando as teses de Demoacutecrito e Leucipo temos que

1 O ser eacute quando colocado numa relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o vazio

2 O vazio eacute prefigura junto ao pleno como condiccedilatildeo necessaacuteria para o movimento

3 As teses anteriores se reduzem agrave maacutexima O natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser

4 uma Leitura De Kant a partir Das consiDeraccedilotildees anteriores

Passamos agora a considerar de que form eacute possiacutevel obter por meio do texto Ensaio para introduzir em filosofia o conceito de grandeza negativa32 um novo focirclego para a discussatildeo precedente33 Assim ao analisarmos esse texto manteremos sob nosso olhar aquela oposiccedilatildeo radical e fundamental acima apontada entre ser e natildeo-ser para tentar entendecirc-la atraveacutes daquilo que Kant chama ora de oposiccedilatildeo real ora de oposiccedilatildeo loacutegica sendo a primeira o tipo de oposiccedilatildeoequivalecircncia que relacionaremos com o atomismo antigo e a segunda aquilo que identificaremos como a oposiccedilatildeocontradiccedilatildeo denunciada nas formulaccedilotildees do eleatismo

No prefaacutecio ao Ensaio Kant deixa claro que a filosofia pode se utilizar das ciecircncias naturais e exatas seja copiando seus meacutetodos seja aplicando suas proposiccedilotildees deslocando-as para um novo contexto34 Procederaacute entatildeo com a tentativa de introduzir no seio da filosofia a ideia de grandeza negativa recurso jaacute empregado em matemaacutetica e fiacutesica

Eacute preciso distinguir o significado da proposiccedilatildeo grandeza negativa daquele outro de negaccedilatildeo de uma grandeza35 Uma grandeza negativa eacute a afirmaccedilatildeo de uma grandeza que simplesmente se opotildee a uma outra e que portanto revela uma positividade colocada numa relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo a outra positividade Jaacute na expressatildeo negaccedilatildeo de uma grandeza a grandeza eacute tomada

32 Com o tiacutetulo Versuch den Begriff der negativen Grossen in die Weltweisheit einzufuumlhren essa obra foi publicada pela primeira vez em 1763 Doravante iremos nos referir a ela de maneira abreviada apenas por Ensaio

33Ver nota 134No ano seguinte agrave publicaccedilatildeo do Ensaio essa posiccedilatildeo a respeito da filosofia e das ciecircncias eacute relativizada

com a publicaccedilatildeo de um texto intitulado ldquoInvestigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moralrdquo In KANT Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In______ Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 101-140

35 KANT Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia Ibid p 56

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isoladamente sem qualquer relaccedilatildeo com outra e por isso nenhuma oposiccedilatildeo eacute considerada a partir dela Aqui Kant toma para si a ideia de oposiccedilatildeo que estaacute na raiacutez do conceito de movimento ou de forccedila na Fiacutesica

Nesse sentido a negatividade da formulaccedilatildeo grandeza negativa deve ser interpretada como a projeccedilatildeo da oposiccedilatildeo sobre uma das grandezas polares da relaccedilatildeo que se estabelece entre forccedilas no mundo daiacute a expressatildeo oposiccedilatildeo real Tomemos o exemplo de Kant segundo o qual a atraccedilatildeo negativa que um corpo exerce sobre outro seraacute erroneamente interpretada se for compreendida como a negaccedilatildeo da forccedila de atraccedilatildeo por sua vez seraacute acertadamente compreendida se for tomada como uma grandeza negativa a forccedila de repulsatildeo36 Dessa maneira ela soacute poderaacute ser considerada como negativa se tomada relativamente a outra grandeza a atraccedilatildeo do contraacuterio ela eacute positiva Ou seja a negatividade ou a positividade das grandezas soacute pode ser estabelecida de maneira relativa isto eacute dada a situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre elas No exemplo considerado se o resultado da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre as duas forccedilas de atraccedilatildeo (positiva e negativa) for o repouso entatildeo temos a privaccedilatildeo (nihil privativum representabile) do movimento do objeto sobre o qual essas forccedilas estatildeo agindo e atraveacutes do qual elas puderam se colocar em confronto

Nesse caso eacute necessaacuterio natildeo tomar o efeito (repousoausecircncia do movimento do objeto) pela causa (o equiliacutebrio entre as forccedilas de atraccedilatildeo positiva e negativa) O resultado desse desacerto do juiacutezo seria confundir atraccedilatildeo negativa com ausecircncia de atraccedilatildeo ou a grandeza negativa com negaccedilatildeo de uma grandeza

Consideremos juntamente com Kant o conceito de grandeza negativa em geral para em seguida determinar os seus significados especiacuteficos Levando-se em conta que a chave para predicarmos as grandezas eacute a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo37 entatildeo temos que verificar as duas maneiras por meio das quais podemos considerar essa noccedilatildeo 1ordm como oposiccedilatildeo loacutegica 2ordm como oposiccedilatildeo real Assim Kant estabelece dois niacuteveis de anaacutelise para a apreciaccedilatildeo da noccedilatildeo de oposiccedilatildeo aquele da loacutegica e aquele da natureza Com isso ele pretende distinguir as respectivas funccedilotildees causais da oposiccedilatildeo considerada em cada um desses niacuteveis

Na oposiccedilatildeo loacutegica natildeo resta nenhuma consequecircncia da conexatildeo entre a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo nihil negativum irrepresentabile Dadas duas

36Ibid p 5637Ibid p 57

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afirmaccedilotildees absolutamente contraacuterias o pensamento se surpreende na situaccedilatildeo de natildeo poder prosseguir com seu trabalho obediente como eacute aos princiacutepios de contradiccedilatildeo e terceiro excluiacutedo (tertium non datur) Nesse sentido a contradiccedilatildeo que eacute como entendemos a oposiccedilatildeo loacutegica gera um tipo de vacuidade do pensamento um nada impensaacutevel um absoluto vazio que eacute como aquele nada asseverado por Parmecircnides ldquoNecessaacuterio eacute dizer e pensar que soacute o ser eacute pois o ser eacute e o nada ao contraacuterio nada eacute []rdquo38

Se pensarmos nos estados de movimento e de repouso referidos ao mesmo objeto e abstraindo-se o tempo encontraremos na base mais elementar desses estados contraacuterios os conceitos de ser e de natildeo-ser tidos como opostos no sentido exclusivamente loacutegico (contraacuterios) obtendo como resultado a contradiccedilatildeo e a impossibilidade do pensamento Nesse caso movimento e repouso deixaram de ser grandezas ou estados de coisas e se tornaram puras abstraccedilotildees Logo o natildeo-ser da negatividade natildeo apresenta nenhum tipo de positividade Isto eacute o natildeo-ser eacute absolutamente negativo e eacute tomado como logicamente dependente da positividade do ser como sua pura negaccedilatildeo Por sua vez o ser eacute tomado como conceito originaacuterio e absoluto cuja positividade independe de qualquer relaccedilatildeo apresentando assim precedecircncia loacutegica e exclusividade ontoloacutegica sobre o natildeo-ser

Por outro lado natildeo eacute possiacutevel afirmar que o ser ou o natildeo-ser possuam qualquer prevalecircncia um sobre o outro qualquer antecedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica quando considerados como grandezas no mundo

O movimento eacute tomado como algo positivo na medida em que eacute a efetivaccedilatildeo de um estado de coisas ldquoxrdquo no mundo por sua vez o repouso eacute tambeacutem uma positividade na medida em que significa um outro estado de coisas ldquoyrdquo oposto a ldquoxrdquo A negatividade nessa oposiccedilatildeo recai arbitrariamente sobre ldquoxrdquo ou ldquoyrdquo por meio de uma proposiccedilatildeo que estabelece a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo A negatividade recairaacute sobre ldquoxrdquo ou sobre ldquoyrdquo de acordo com a forma assumida pela proposiccedilatildeo que iraacute fazer variar a negatividade (ou a positividade) em funccedilatildeo da finalidade enfaacutetica que se queira dar a ldquoxrdquo ou a ldquoyrdquo

Somente quando se diz que um mesmo corpo estaacute e natildeo estaacute a um soacute tempo e na mesma relaccedilatildeo em repouso ou em movimento eacute que essa vacuidade no pensar aparece

38ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν[]rdquo PARMENIDES fragmento B6 In BORHEIM op cit p 55

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Um corpo em movimento eacute algo um corpo que natildeo estaacute em movimento eacute tambeacutem algo (cogitabile) no entanto um corpo que ao mesmo tempo e justamente sob a mesma relaccedilatildeo estivesse e natildeo estivesse em movimento eacute absolutamente nada39

A expressatildeo a um soacute tempo significa que o corpo eacute colocado na situaccedilatildeo em que se abstrai a seacuterie contiacutenua do tempo Isso quer dizer que uma uacutenica porccedilatildeo elementar do tempo foi tomada e isolada das demais Todavia uma porccedilatildeo assim isolada do tempo tomada em sentido absoluto natildeo eacute tempo algum Uma vez que a seacuterie de tempo eacute contiacutenua ou se toma uma porccedilatildeo do tempo que por sua vez conteacutem em si uma nova seacuterie temporal infinita (nesse caso a parte eacute igual ao todo) ou natildeo se toma tempo algum Em outras palavras a expressatildeo a um soacute tempo natildeo tem aqui nenhum significado temporal positivo mas apenas negativo significando fora do tempo

Assim procedeu Parmecircnides ao abstrair o tempo para todas as formas proposicionais vaacutelidas reduzindo toda forma de pensamento a uma expressatildeo proposicional afirmativa atemporal onde a positividade eacute sempre absoluta e por isso possui prioridade loacutegica e ontoloacutegica sobre a negatividade Nesse caso toda oposiccedilatildeo eacute sempre contradiccedilatildeo

Jaacute na oposiccedilatildeo real encontramos uma forma de pensamento que natildeo subtrai a seacuterie do tempo Nesse caso a oposiccedilatildeo real apresenta uma estrutura a qual pode ser esquematicamente apresentada como (+A ndashA = B) onde (B = 0) ou (B ne 0) e onde os elementos integrantes dessa operaccedilatildeo (+A) e (ndashA) natildeo deixam de ser pela atribuiccedilatildeo de uma negatividade meramente relativa mesmo quando (B=0) sendo ambos justamente a causa eficiente desse privatio

O (B = 0) como privatio natildeo eacute mera nulidade devendo ser tratado como a realizaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo resultante de um encontro entre potecircncias equivalentes mas opostas uma a outra Aqui natildeo existe contradiccedilatildeo em dizer que se trata de potecircncias equivalentes-opostas pois nesse caso tanto a negatividade como a positividade satildeo relativas e natildeo absolutas Natildeo existe autonomia ontoloacutegica da positividade nem da negatividade Trata-se aqui de predicados e natildeo de seres

Por sua vez o estado de coisas representado por (B = 0) esta efetividade eacute novamente um natildeo-ser poreacutem apenas em relaccedilatildeo a outro estado de coisas a que ele se opotildee Assim este (0) eacute um algo que eacute predicado a algo inserido na 39 Ibidem p 58 grifos nossos

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seacuterie contiacutenua do tempo e que eacute designado como privaccedilatildeo Apenas quando se abstrai da seacuterie do tempo eacute que x = 0 representa um nada absoluto Nesse caso o que eacute afirmado eacute inteira e instantaneamente anulado pelo que eacute negado e vice-versa pois a positividade e a negatividade do que eacute afirmado e negado se referem aos proacuteprios seres

Jaacute na oposiccedilatildeo real ainda que duas condiccedilotildees contraacuterias atuem simultaneamente sobre o mesmo objeto a contradiccedilatildeo (vacuidade do pensamento) natildeo eacute o resultado porque a expressatildeo simultaneamente (ausecircncia de sucessatildeo temporal) eacute aqui relativizada Se pensarmos na destruiccedilatildeo de um corpo esse movimento seraacute oposto ao de sua criaccedilatildeo No entanto tais movimentos natildeo satildeo contraditoacuterios um ao outro quando pensados juntos Natildeo inferimos uma vacuidade no pensamento da conjunccedilatildeo simultacircnea desses dois eventos desde que sejam pensados como eventos e portanto diluiacutedos no contiacutenuo temporal A contiacutenua transformaccedilatildeo (movimento) dos corpos vivos por exemplo tem por base um confronto entre a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo celular atuando nos organismos vivos quer dizer um estado de coisas manifestamente expresso como forccedilas antagocircnicas simultaneamente presentes no mesmo objeto No niacutevel celular essa simultaneidade eacute relativizada enquanto algumas ceacutelulas satildeo criadas outras satildeo destruiacutedas Essa relativizaccedilatildeo da simultaneidade natildeo exclui um efetivo antagonismo seja em que niacutevel for onde a positividade ou a negatividade satildeo arbitrariamente atribuiacutedas a um dos polos da oposiccedilatildeo natildeo havendo qualquer precedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica de um polo sobre o outro A geraccedilatildeo eacute negativa se a destruiccedilatildeo for tomada como positiva e vice-versa

Na dinacircmica uma forccedila motriz eacute dita positiva somente quando oposta a outra dita negativa a resistecircncia Ainda que opostas uma a outra forccedilas com vetores contraacuterios desse encontro natildeo se infere um absurdo como uma contradiccedilatildeo mas um estado de coisas real de oposiccedilatildeo de contrariedade O resultado pode ser tanto o repouso no caso das forccedilas opostas possuiacuterem a mesma potecircncia (serem equivalentes) ou o movimento que apresenta o mesmo vetor de uma das forccedilas conflitantes Em ambos os casos o resultante dessa oposiccedilatildeo eacute algo que pode ser efetivamente afirmado sobre o mundo e natildeo um vazio ou um nada irrepresentaacutevel Ainda que nesse caso o repouso possa ser representado por (B = 0) este (B = 0) natildeo deve ser entendido como uma indeterminaccedilatildeo mas sim como privaccedilatildeo Logo percebemos que a contradiccedilatildeo natildeo eacute aplicaacutevel a estados de coisas imersos na seacuterie contiacutenua do tempo

Tanto na oposiccedilatildeo loacutegica como na oposiccedilatildeo real o efeito pode ser representado como (=0) ou como vazio ou ainda como nada Entretanto

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o sentido desse vazio ou desse nada deve ser relativizado para cada situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo Na oposiccedilatildeo loacutegica significa contradiccedilatildeo (nihil negativum irrepresentabile) ou ausecircncia da possibilidade do pensamento A nosso ver este seria o caso do significado do natildeo-ser empregado por Parmecircnides onde localizamos a supressatildeo instantacircnea (anulaccedilatildeo ausecircncia absoluta) dos opostos Jaacute o nada ou o vazio da oposiccedilatildeo real eacute absolutamente representaacutevel Aqui eacute possiacutevel embora de maneira arbitraacuteria estabelecer os valores positivo e negativo dos elementos que se colocam na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo

5 concLusatildeo

Apoacutes oferecer alguns exemplos para o conceito de grandeza negativa na segunda seccedilatildeo do Ensaio Kant conduz suas consideraccedilotildees para o campo da filosofia que para ele deve se ocupar prioritariamente da metafiacutesica e cujo meacutetodo analiacutetico apresentado por ele em outro de seus textos desse periacuteodo40 jaacute fornece indiacutecios dos passos que daraacute no sentido de sua futura proposta mais amadurecida para uma teoria criacutetico-transcendental

Assim alerta Kant no Ensaio entendemos facilmente que algo natildeo seja se lhe carece a razatildeo positiva para sua existecircncia todavia temos dificuldades para entender como algo que efetivamente eacute deixa de ser41 isto eacute temos dificuldade em compreender o correto sentido de privaccedilatildeo O esclarecimento acerca dessa questatildeo eacute fundamental jaacute que o vir-a-ser isto eacute o deixar de ser como privaccedilatildeo eacute a maneira mais fundamental de entender o conceito de movimento Essa dificuldade em reconhecer o correto sentido de privaccedilatildeo eacute o que algumas vezes nos compele a confundi-la com a contradiccedilatildeo e por isso obter como resultado a negaccedilatildeo do movimento compreendendo-o erroneamente como gerador do absurdo

Assim sugere Kant se represento o Sol em minha imaginaccedilatildeo e se no instante seguinte deixo de ter presente essa representaccedilatildeo em minha mente isso natildeo significa que meu pensamento sobre o Sol tenha simplesmente desaparecido e se tornado um puro nada aniquilando-se na vacuidade de uma contradiccedilatildeo entre ser e natildeo-ser mas sim porque a representaccedilatildeo do sol foi suprimida por outra sorte qualquer de ideia que se impocircs com a intensidade

40KANT I Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In ______ Escritos Preacute-criacuteticos Trad Jair Barboza [et al] Satildeo Paulo UNESP 2005 p 116-117

41KANT opcit p 79

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suficiente para substituiacute-la parcial ou inteiramente segundo uma determinada relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo contingente ao espiacuterito

A simples negaccedilatildeo da representaccedilatildeo considerando que ela simplesmente anulou a si mesma deixando assim de existir nos remete para a situaccedilatildeo de um nada irrepresentaacutevel um impensaacutevel natildeo-ser como em Parmecircnides Jaacute na privaccedilatildeo existe uma interaccedilatildeo entre forccedilas opostas a qual natildeo aparece como contradiccedilatildeo uma vez que princiacutepios afirmativos opostos (representaccedilotildees opostas) coincidiriam sob a mesma forma do pensamento anulando assim o efeito de uma delas ou de ambas O resultado eacute a afirmaccedilatildeo de um ser que eacute tambeacutem natildeo-ser jaacute que a negatividade do natildeo-ser da representaccedilatildeo aqui eacute simplesmente relativa dada pela situccedilatildeo de oposiccedilatildeo A representaccedilatildeo arbitrariamente tomada como negativa natildeo eacute menos ser que aquela tomada como positiva A supressatildeo de uma pela outra natildeo se mostra como contradiccedilatildeo mas como a privaccedilatildeo

Eacute concebiacutevel assim pensar legitimamente o natildeo-ser da representaccedilatildeo desde que seja considerado como privaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel se falar com verdade em princiacutepios opostos e equivalentes e que produzem em seu encontro a afirmaccedilatildeo de algo como um nada Dessa maneira seja a1

a afirmaccedilatildeo (ser) de um determinado estado de coisas no mundo (ou de uma representaccedilatildeo de algo no mundo) e a2 o seu equivalente oposto (o natildeo-ser) temos que

a1 ndash a2 = 0

Arbitrariamente tomamos a2 como a representaccedilatildeo negativa contudo a negatividade aqui revela apenas a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre a1 e a2 e natildeo uma situaccedilatildeo absoluta de a2 Como grandezas equivalentes que se opotildeem o resultado (= 0) revela uma oposiccedilatildeo real natildeo uma contradiccedilatildeo Nem a1

e a2 podem ser ditas potecircncias contraditoacuterias nessa relaccedilatildeo visto que este (= 0) eacute a afirmaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo de um ser que eacute tambeacutem um natildeo-ser assim como o repouso eacute igualmente uma forma de natildeo-ser do movimento O pensamento que leva em conta os opostos eacute pois uma possibilidade real e mesmo necessaacuteria para a consideraccedilatildeo do movimento

Segundo a foacutermula de Demoacutecrito o natildeo-ser natildeo eacute mais nem menos que o ser Ora soacute podemos entender essa afirmaccedilatildeo de duas maneiras convergentes ou como afirmaccedilatildeo do mesmo estatuto ontoloacutegico para o ser e para o natildeo-ser ou como atribuiccedilatildeo da mesma funccedilatildeo causal (material) para ambos Nos dois casos o ser soacute eacute na presenccedila ou com a premissa do natildeo-ser e vice-versa E assim o natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser Estaacute claro que esse princiacutepio natildeo

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se ajusta sem qualquer intervenccedilatildeo agraves formulaccedilotildees de Parmecircnides Por esse desacordo eacute possiacutevel identificar no antigo atomismo uma negatividade do ser que natildeo engendra a vacuidade do pensamento Pelo contraacuterio o movimento do pensamento soacute eacute possiacutevel por meio dessa oposiccedilatildeo fundamental Em Platatildeo esse movimento do pensamento ganha o nome de dialeacutetica

Concluiremos este estudo com a seguinte afirmaccedilatildeo de Kant ldquoTodos os fundamentos reais do universo quando se somam todos que satildeo consonantes e se subtraem uns dos outros os que se opotildeem entre si datildeo um resultado igual a zerordquo42 Esse zero significa a afirmaccedilatildeo da efetividade do mundo Esse zero representa um repouso que nem por isso deixa de ser dinacircmico Assim esperamos ter aproximado o conteuacutedo do Ensaio com o pensamento daqueles filoacutesofos da natureza que se colocavam conformes a um princiacutepio universal sem negar a unidade do pensamento e do movimento do mundo De acordo com eles o mundo deve se ordenar segundo esses princiacutepios mutuamente opostos ser e natildeo-ser os quais estatildeo na origem desse repouso dinacircmico na exata medida da efetivaccedilatildeo de seus encontros

SANTOS Eberth Eleuterio dos Leucippus Democritus and Kant a reflection on the equivalence between being and non-being TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 38 n 2 p 71-94 MaioAgo 2015

ABSTRACT Initially we present the theory of Democritus and Leucippus whereby being is not more than the not-being (non-being) in contrast to Eleatic ideas about the necessary inexistence of the not-being This discussion leads us to the opposition between the whole (full) and the empty which will then be transposed into the opposition between being and nothingness (or not-being) Thus the opposition between whole and the empty is an opposition that moves to being and not-being Finally we will make an assessment of the Kantian pre-critical essay Attempt to introduce the concept of negative magnitude into philosophy in which we recognize a kind of opposition that as we believe would be interpreted as being in agreement with the position of Democritus and Leucippus regarding the ontological status of the not-being as an equivalent principle to the being understood here not as a mutual contradiction in a purely logical sense

KEYWORDS ancient atomism Eleatism ontology

referecircncias

ARISTOacuteTELES Da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo seguido de convite agrave filosofia Traduccedilatildeo de Renata Maria Pereira Cordeiro Satildeo Paulo Landy 2001

42 Ibid p 89

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______ Fiacutesica I ndash II Traduccedilatildeo de Lucas Angioni Campinas Editora da UNICAMP 2009

______ Metafiacutesica texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterio de Giovanni Reale Traduccedilatildeo de Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2005 3v

BARNES J Filoacutesofos preacute-socraacuteticos Traduccedilatildeo de Juacutelio Fischer 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

BORNHEIM G Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Cultrix 2000

_______ O que eacute metafiacutesica Traduccedilatildeo de Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

HEIDEGGER M Die Zeit des Weltbildes (1938) In ______ Gesamtausgabe Frankfurt Klostermann 87-88 (1977) Bd 5 Holzwege

KANT I Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia In ______ Escritos preacute-criacuteticos Traduccedilatildeo de Viniacutecius de Figueiredo e Jair Barbosa Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 51-99

______ Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur neacutegative Traduccedilatildeo de Roger Kempf 2 eacuted Paris J Vrin 1972 (Bibliothegraveque de textes philosophiques)

______ Versuch den Begriff der negative Grossen in die Weltweisheit einzufuhres Neueste Aufl Graz Andreas Leikam 1797 Disponiacutevel em lt httpsarchiveorgstreamversuchdenbegri00kantgoogpagen43mode2upgt Acesso em 22 dez 2013

PARMENIDES Fragmentos sobre a natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

______ Da natureza Traduccedilatildeo de Jose Gabriel Trindade Santos (modificada pelo tradutor) Satildeo Paulo Loyola 2002

PLATAtildeO Filebo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ O sofista Traduccedilatildeo de Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Abril Cultural 1972

______ Parmecircnides Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos v VIII Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ Teeteto Traduccedilatildeo de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri Lisboa Calouste Gulbenkian 2010

______ Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Rodolfo Lopes Coimbra Universidade de Coimbra 201143

Recebido Received 07092014Aprovado Approved 10012015

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no qual ser e natildeo-ser seriam reputados o mesmo ou equivalentes Contudo no caminho da verdade o pensamento (loacutegico-racional) natildeo pode admitir em seu seio a negaccedilatildeo do ser (o natildeo-ser) o outro do ser essa radical alteridade como algo que se coloca fora do ser e por isso se separa e se opotildee a ele No caminho da verdade nada pode ser dito ou pensado para aleacutem do ser Afirmar o ser para aleacutem do ser isto eacute o ser-outro ou o natildeo-ser eacute simplesmente natildeo reconhecer essa unicidade fundamental e por isso se colocar no caminho do erro da opiniatildeo falsa do engano sobre a essecircncia da natureza

Decorrecircncia dessa unicidade fundamental eacute o imobilismo da natureza no niacutevel noeacutetico A permanecircncia do ser natildeo significa outra coisa senatildeo sua incorruptibilidade em um niacutevel muito fundamental o do puro pensamento implicando a impossibilidade de uma justificaccedilatildeo loacutegico-racional para o devir da natureza sensiacutevel Eis entatildeo que o ser eacute tomado como princiacutepio uacutenico fiacutesico e metafiacutesico simbolizaacutevel por ldquoPois pensar e ser eacute o mesmordquo15 enquanto o contraacuterio eacute descartado como impossiacutevel ldquoJamais se conseguiraacute provar que o natildeo-ser eacuterdquo16

Naquilo que nos interessa aqui mais imediatamente os resultados das formulaccedilotildees do eleatismo - a afirmaccedilatildeo da permanecircncia do Ser (o Princiacutepio de Identidade) unida agrave exclusatildeo da afirmaccedilatildeo simultacircnea do ser e do natildeo-ser (o Princiacutepio da natildeo-contradiccedilatildeo) - satildeo a negaccedilatildeo do vazio do muacuteltiplo e do movimento Como assevera Melisso ldquoTambeacutem natildeo haacute nada vazio Pois o vazio nada eacute e o que nada eacute natildeo pode ser E natildeo se move Natildeo tem lugar onde mover-se pois eacute pleno Existisse o vazio mover-se-ia para o vazio Mas como natildeo haacute o vazio natildeo tem lugar para onde mover-serdquo17

Desse modo o ser no eleatismo natildeo admite para si a mudanccedila seja em que sentido for que se presuma essa mudanccedila A geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo ou mesmo o deslocamento que estatildeo na base da ideia de mudanccedila no atomismo trariam de volta o natildeo-ser para o interior de uma concepccedilatildeo de realidade da qual fora previamente excluiacutedo por forccedila do pensamento Os dois princiacutepios loacutegicos (identidade e contradiccedilatildeo) perderiam a sua validade e alcance sua legitimidade e credibilidade ldquoE jamais a forccedila da convicccedilatildeo concederaacute que do natildeo-ser possa surgir outra coisa Por isto a deusa da Justiccedila natildeo admite por

15ldquoτὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι rdquo PARMEcircNIDES fragmento B3 in BORHEIM op cit p 55 16ldquoΟὐ γὰρ μήποτε τοῦτο δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα rdquo PARMEcircNIDES fragmento B7 ibid p 5517 MELISSO fragmento 7 (SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 111118) Ibid p 65

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um afrouxamento de suas cadeias que nasccedila ou que pereccedila mas manteacutem-no firmerdquo18 Assim Parmecircnides deixa claro que o natildeo-ser natildeo eacute princiacutepio gerador do que quer que seja Trata-se de uma impossibilidade para o pensamento e portanto para o proacuteprio ser e para a natureza

E Platatildeo eacute tido como um disciacutepulo da henologia eleata Poreacutem tambeacutem eacute verdade que em pelo menos dois de seus Diaacutelogos o Sofista e o Parmecircnides19 fica evidente um desacordo entre ele Parmecircnides No Sofista (236e-237b) Platatildeo revela as dificuldades advindas de uma identificaccedilatildeo imediata loacutegica e ontoloacutegica entre verdade e ser excluindo assim o natildeo-ser de todo raciociacutenio legiacutetimo A consequecircncia dessa identificaccedilatildeo eacute a impossibilidade de se afirmar o falso Afirmar o falso apareceria como manifesta contradiccedilatildeo jaacute que seria afirmar o nada20 Contudo Platatildeo reconhece que essa impossibilidade tambeacutem se mostra como um risco epistemoloacutegico pois disso decorreria a impossibilidade de distinguir entre conhecimento (opiniatildeo verdadeira) e ignoracircncia (opiniatildeo falsa) Ao esclarecer Teeteto sobre esse fato diz o Estrangeiro de Eleia no Sofista

Eacute que realmente jovem feliz nos vemos frente a uma questatildeo extremamente difiacutecil pois mostrar e parecer sem ser dizer algo sem entretanto dizer com verdade satildeo maneiras que trazem grandes dificuldades tanto hoje como ontem e sempre Que modo encontrar na realidade para dizer ou pensar que o falso eacute real sem que jaacute ao proferi-lo nos encontremos enredados na contradiccedilatildeo [] A audaacutecia de uma tal afirmaccedilatildeo eacute supor o natildeo-ser como ser e na realidade nada de falso eacute possiacutevel sem esta condiccedilatildeo Era o que meu jovem jaacute afirmava o grande Parmecircnides tanto em prosa como em verso a noacutes que entatildeo eacuteramos jovens ldquoJamais obrigaraacutes os natildeo-seres a ser Antes afasta teu pensamento desse caminho de investigaccedilatildeo21

18ldquoΟὐδὲ ποτ΄ ἐκ μὴ ἐόντος ἐφήσει πίστιος ἰσχύς γίγνεσθαί τι παρ΄ αὐτόττοῦ εἵνεκεν οὔτε γενέσθαι οὔτ΄ ὄλλυσθαι ἀνῆκε Δίκη χαλάσασα πέδῃσινrdquo PARMEcircNIDES fragmento B8 ibid p 55 grifos nossos

19 Eacute oacutebvio que natildeo precisariacuteamos ficar restritos a apenas esses dois Diaacutelogos Por exemplo no Teeteto poderiacuteamos mencionar o problema da opiniatildeo falsa (187d-18a) PLATAtildeO Teeteto Lisboa Calouste Gulbenkian 2010 p 271-272 No Filebo a controveacutersia sobre o Uno e o Muacuteltiplo (14c-15c 23d) PLATAtildeO Filebo In ______ Diaacutelogos v 8 Universidade Federal do Paraacute 1974 No Timeu interessante notar as semelhanccedilas e dessemelhanccedilas entre o atomismo e a doutrina laacute apresentada principalmente em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo do ser e do devir enquanto imutaacutevel e mutaacutevel respectivamente (27d-28b) poderiacuteamos mencionar ainda a descriccedilatildeo da gecircnese do mundo como um ser vivo e sua forma arredondada numa espeacutecie de reconciliaccedilatildeo com o eleatismo de Parmecircnides (30d-40d) PLATAtildeO Timeu-Criacutetias Coimbra Universidade de Coimbra 2011 p 92-93 99-115

20 Sobre o paradoxo envolvendo a questatildeo de se afirmar o nada cf HEIDEGGER O que eacute metafiacutesica Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 235

21PLATAtildeO Sofista Satildeo Paulo Abril Cultural 1972 p 162

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Eacute notoacuterio que os esclarecimentos prestados ao jovem Teeteto pelo Estrangeiro conduzem a um ldquoparriciacutediordquo22 significando uma espeacutecie de rompimento de Platatildeo com a henologia eleata ortodoxa Todavia tatildeo pouco esse rompimento significa a aceitaccedilatildeo da posiccedilatildeo atomista por Platatildeo23 No diaacutelogo Parmecircnides (137ac-166c) o Outro do Uno (o ser outro) eacute afirmado como uma necessidade no acircmbito da dialeacutetica platocircnica24 sem o qual a Doutrina das Ideias natildeo escaparia agraves dificuldades apontadas (130c-134e) e que satildeo decorrentes de uma ortodoxia henoloacutegica advindas do proacuteprio eleatismo

Contudo o objetivo desta raacutepida explanaccedilatildeo foi o de apenas tornar um pouco mais evidente a oposiccedilatildeo entre o pluralismo ontoloacutegico e material de Demoacutecrito (como se acredita ser tambeacutem o de Leucipo) e o monismo de Parmecircnides Nas seccedilotildees subsequentes defenderemos que essa oposiccedilatildeo fundamental entre o ser e o vazio natildeo implica uma contradiccedilatildeo (loacutegica) como no eleatismo mas sim uma forma de oposiccedilatildeo jaacute percebida por Platatildeo como necessaacuteria (por exemplo no Sofista 256d - 259d) e que poderiacuteamos interpretar como sendo tambeacutem aquela apresentada por Kant e denominada por ele como oposiccedilatildeo real E para natildeo nos afastarmos desse intuito prossigamos nestas ponderaccedilotildees

3 equivaLecircncia entre Ser e natildeo-Ser

Na seccedilatildeo precedente refletimos sobre algumas das consideraccedilotildees mais centrais do eleatismo basicamente aquelas que afirmam o ser como necessariamente um e imoacutevel25 Tambeacutem tivemos a oportunidade de acompanhar como Demoacutecrito ao desenvolver a filosofia de seu mestre Leucipo eacute capaz de

22Ibid p 168 (241a-242b)23Apesar de apresentar pontos de contato com o atomismo de Demoacutecrito e Leucipo e com certos

aspectos do eleatismo ortodoxo a visatildeo cosmogocircnica exposta por Platatildeo no Timeu se distancia de ambos ao assumir a dialeacutetica como pressuposto metodoloacutegico e epistemoloacutegico Por exemplo quando da descriccedilatildeo da dinacircmica dos elementos de um ponto de vista puramente dialeacutetico (56c-61c) ou quando da apresentaccedilatildeo do terceiro princiacutepio que soacute ldquo[] acessiacutevel por meio de um certo raciociacutenio bastardo (logismocirc tini nothocirc) sem recurso aos sentidos a custo crediacutevel (52a-b) PLATAtildeO Timeu-Criacutetias op cit p 136-155

24Cf tambeacutem PLATAtildeO Sofista (253d - 254b) op cit p 184-18525 Aleacutem dessa definiccedilatildeo essencial do ser Parmecircnides especialmente no fragmento B8 fornece

uma seacuterie de outros atributos que poderiacuteamos considerar como derivados ou secundaacuterios como completude (plenitude) inteireza esfericidade indestrutibilidade limite externo compacidade homogeneidade continuidade que de certo modo podem ser reduzidos uns aos outros e referidos agravequeles dois que interpretamos como essenciais

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defender a proposiccedilatildeo ldquoO nada existe tanto quanto o lsquoalguma coisarsquordquo26 Assim na antiga escola atomista o movimento eacute aceito e justificado na medida em que admite o vazio (o natildeo-ser) pelo qual se opera o mecanismo da mudanccedila da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo no acircmbito do composto atraveacutes da junccedilatildeo e da dissoluccedilatildeo de suas partes elementares Tomando igualmente o vazio como princiacutepio os atomistas antigos satildeo capazes de oferecer uma resposta ao problema do movimento e do vir-a-ser problema este colocado pelo menos desde Parmecircnides

Dessa forma divergem as teses baacutesicas do eleatismo e do atomismo De um lado fica estabelecida a necessidade da postulaccedilatildeo do ser uno e pleno de maneira exclusiva e solitaacuteria excluindo por essa via a possibilidade de uma justificaccedilatildeo do vir-a-ser de outro encontramos a postulaccedilatildeo do vazio colocado como oposiccedilatildeo ao ser mas tambeacutem como seu equivalente formal e material servindo como canal comunicante sem o qual o movimento proacuteprio da natureza natildeo seria concebiacutevel ou racionalizaacutevel

Essa disputa entre escolas ou doutrinas aponta para uma oposiccedilatildeo mais fundamental trata-se da oposiccedilatildeo entre o ser e o natildeo-ser ou entre o pleno e o vazio No eleatismo o ser apresenta anterioridade loacutegica e ontoloacutegica Jaacute na filosofia da natureza de Demoacutecrito e Leucipo o ser e o natildeo-ser devem ser colocados lado a lado o que permite a essa filosofia se abrir para o vir-a-ser ao aceitar desde o iniacutecio essa radical alteridade do outro do ser como princiacutepio equivalente ao ser

A afirmaccedilatildeo da multiplicidade e do movimento pressupotildeem desde o iniacutecio a alteridade o outro do ser Isso parece ter ficado bastante evidente para Platatildeo que no Parmecircnides (130c-134e) apoacutes o momento em que o personagem que daacute nome ao Diaacutelogo ter elencado uma seacuterie de argumentos27 contra a Doutrina das Ideias apresenta uma revisatildeo da henologia eleaacutetica posicionando o Outro do Uno junto ao Uno como alteridade necessaacuteria para o equiliacutebrio do jogo dialeacutetico somente assim alcanccedilando ecircxito em tentar salvar essa doutrina dos ferozes ataques lanccedilados contra ela28 E no Filebo tambeacutem 26 DEMOacuteCRITO fragmento 156 In BORNHEIN op cit p 113 27 Sete no total Cf PLATAtildeO Parmecircnides op cit 130c-134e28 A estrutura dessa investigaccedilatildeo dialeacutetica no Parmecircnides pode ser concentrada nas oito consequecircncias

obtidas da anaacutelise da protoideia do uno Por meio do meacutetodo dialeacutetico satildeo obtidos resultados afirmativos e negativos tanto para a existecircncia como para a negaccedilatildeo da existecircncia do uno Esses resultados parecem se equilibrar gerando a impressatildeo de um resultado aparentemente nulo mas que ao final trazem resultados positivos seja para uma revisatildeo do eleatismo seja para uma sofisticaccedilatildeo da Teoria das Ideias Para uma anaacutelise desse assunto cf REALE G Para uma nova interpretaccedilatildeo de

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encontramos essa disposiccedilatildeo dualista atraveacutes da apresentaccedilatildeo da teoria dos princiacutepios formadores para as proacuteprias ideias Segundo essa teoria conhecida como Protologia Platocircnica29 as ideias as formas puras do mundo inteligiacutevel nasceriam do encontro e da uniatildeo do limite identificado com o Uno e do ilimite identificado com o muacuteltiplo infinito (Filebo 16d-e 23d-26d) Limite e ilimite satildeo tomados como princiacutepios absolutos poreacutem geradores das ideias apenas quando relativizados um pelo outro

Guardadas as respectivas diferenccedilas tanto em Platatildeo como nos atomistas fica estabelecida uma equivalecircncia entre ser e natildeo-ser Essa negaccedilatildeo do ser eacute concebida como o Outro-do-ser (oposto ao ser a sua alteridade) O muacuteltiplo eacute na sua essecircncia uacuteltima o composto formado pelo ser e pelo natildeo-ser que como vimos acima eacute entendido como vazio pelos atomistas A partir desse ponto de vista a natureza moacutevel apresenta-se como um tipo de extensatildeo discreta fundada em um dualismo ontoloacutegico no qual encontramos o mesmo (a unidade o limite a identidade o aacutetomo o ser) e o outro (a diferenccedila a alteridade o ilimite o vazio o natildeo-ser)

Em suma o movimento soacute pode ser assumido na medida em que o muacuteltiplo puder ser concebido como o composto formado pelo ser e pelo outro do ser ambos conectados pela relaccedilatildeo de vizinhanccedila Essa vizinhanccedila eacute definida como uma equivalecircncia ontoloacutegica entre o vazio (nadameacuteden) ao lado do ser o que garantiria a separabilidade atocircmica (divisibilidade finita) sem a qual o composto natildeo seria concebiacutevel Do contraacuterio natildeo havendo o vazio soacute haveria o ser-uno unidade simples homogecircnea indiferenciada e tambeacutem imoacutevel jaacute que sempre plena Nesse caso nenhuma vizinhanccedila poderia ser constatada ou afirmada uma vez que a vizinhanccedila pressupotildee a dualidade de elementos O movimento estaria necessariamente vinculado ao dualismo ontoloacutegico e excluiacutedo do monismo pois neste natildeo haveria lugar para a alteridade ou vizinhanccedila

Na medida em que o ser e o vazio satildeo considerados conceitos fundantes no atomismo antigo a relaccedilatildeo de vizinhanccedila fica estabelecida nessa diferenciaccedilatildeo originaacuteria Assim o vazio (o nada) se coloca imediatamente em uma relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o ser no exato momento em que eacute compreendido como a sua radical alteridade E paradoxalmente eacute somente nesse sentido que o vazio eacute a saber na medida mesma em que ele natildeo eacute pleno E a reciacuteproca tambeacutem eacute

Platatildeo Releitura da metafiacutesica dos grandes diaacutelogos agrave luz das ldquoDoutrinas natildeo-escritasrdquo Satildeo Paulo Loyola 1991

29 Ibid p 164-165

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assim afirmada Como o vazio eacute o proacuteprio ser-outro porque instantaneamente se coloca nessa relaccedilatildeo de vizinhanccedila originaacuteria e imediata com o ser o ser tambeacutem se coloca nessa relaccedilatildeo primitiva com o vazio e somente neste sentido o ser eacute isto eacute na medida em que natildeo eacute vazio Platatildeo parece se aproximar dessa posiccedilatildeo atomista quando no Sofista introduz a seguinte indagaccedilatildeo atraveacutes das palavras do Estrangeiro de Eleia ldquoAssim pois estaacute claro que o movimento eacute realmente natildeo ser ainda que seja ser na medida em que participa do serrdquo E prossegue

Segue-se pois necessariamente que haacute um ser do natildeo-ser natildeo somente no movimento mas em toda a seacuterie dos gecircneros pois na verdade em todos eles a natureza do outro faz cada um deles outro que natildeo o ser e por isso mesmo natildeo-ser Assim universalmente por essa relaccedilatildeo chamaremos a todos corretamente natildeo-ser e ao contraacuterio pelo fato de eles participarem do ser diremos que satildeo seres30

Por esse ponto de vista o ser tambeacutem eacute definido em funccedilatildeo de sua relaccedilatildeo com o natildeo-ser que aqui alinhamos com o vazio como o outro do pleno Desse modo essa subordinaccedilatildeo do ser em relaccedilatildeo ao natildeo-ser (o vazio) ou do natildeo-ser (vazio) em relaccedilatildeo ao ser redunda em uma relaccedilatildeo de simetria entre ambos Como resultado temos que natildeo haacute um sentido uacutenico ou prioritaacuterio no condicionamento ontocausal entre ser e vazio A conclusatildeo eacute que ao assumir o movimento como um fato da natureza ou como princiacutepio o ser deixa de apresentar prioridade ontoloacutegica e causal

Nesse sentido ser e natildeo-ser perfazem de maneira equivalente as condiccedilotildees necessaacuterias para o movimento E ainda que a oposiccedilatildeo radical seja o elo constituinte desses princiacutepios originaacuterios ela natildeo implica a anulaccedilatildeo muacutetua de um pelo outro quando simultaneamente justapostos no pensamento assim como os eleatas tentaram mostrar atraveacutes dos paradoxos associados agrave divisibilidade e ao movimento31 Pelo contraacuterio a oposiccedilatildeo radical entre pleno e vazio entre ser e natildeo-ser eacute a proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade do movimento e por isso da efetividade do real Passa a valer por conseguinte nesse caso a necessidade da bicondicionalidade ontocausal entre ser e natildeo-ser radicada na relaccedilatildeo de vizinhanccedila entre ambos na constituiccedilatildeo do real como efetiva e cambiante multiplicidade

30PLATAtildeO Sofista (256e) opcit p 18931Cf ZENAtildeO In BORHEIM op cit p 60-63

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Sumariando as teses de Demoacutecrito e Leucipo temos que

1 O ser eacute quando colocado numa relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o vazio

2 O vazio eacute prefigura junto ao pleno como condiccedilatildeo necessaacuteria para o movimento

3 As teses anteriores se reduzem agrave maacutexima O natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser

4 uma Leitura De Kant a partir Das consiDeraccedilotildees anteriores

Passamos agora a considerar de que form eacute possiacutevel obter por meio do texto Ensaio para introduzir em filosofia o conceito de grandeza negativa32 um novo focirclego para a discussatildeo precedente33 Assim ao analisarmos esse texto manteremos sob nosso olhar aquela oposiccedilatildeo radical e fundamental acima apontada entre ser e natildeo-ser para tentar entendecirc-la atraveacutes daquilo que Kant chama ora de oposiccedilatildeo real ora de oposiccedilatildeo loacutegica sendo a primeira o tipo de oposiccedilatildeoequivalecircncia que relacionaremos com o atomismo antigo e a segunda aquilo que identificaremos como a oposiccedilatildeocontradiccedilatildeo denunciada nas formulaccedilotildees do eleatismo

No prefaacutecio ao Ensaio Kant deixa claro que a filosofia pode se utilizar das ciecircncias naturais e exatas seja copiando seus meacutetodos seja aplicando suas proposiccedilotildees deslocando-as para um novo contexto34 Procederaacute entatildeo com a tentativa de introduzir no seio da filosofia a ideia de grandeza negativa recurso jaacute empregado em matemaacutetica e fiacutesica

Eacute preciso distinguir o significado da proposiccedilatildeo grandeza negativa daquele outro de negaccedilatildeo de uma grandeza35 Uma grandeza negativa eacute a afirmaccedilatildeo de uma grandeza que simplesmente se opotildee a uma outra e que portanto revela uma positividade colocada numa relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo a outra positividade Jaacute na expressatildeo negaccedilatildeo de uma grandeza a grandeza eacute tomada

32 Com o tiacutetulo Versuch den Begriff der negativen Grossen in die Weltweisheit einzufuumlhren essa obra foi publicada pela primeira vez em 1763 Doravante iremos nos referir a ela de maneira abreviada apenas por Ensaio

33Ver nota 134No ano seguinte agrave publicaccedilatildeo do Ensaio essa posiccedilatildeo a respeito da filosofia e das ciecircncias eacute relativizada

com a publicaccedilatildeo de um texto intitulado ldquoInvestigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moralrdquo In KANT Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In______ Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 101-140

35 KANT Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia Ibid p 56

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isoladamente sem qualquer relaccedilatildeo com outra e por isso nenhuma oposiccedilatildeo eacute considerada a partir dela Aqui Kant toma para si a ideia de oposiccedilatildeo que estaacute na raiacutez do conceito de movimento ou de forccedila na Fiacutesica

Nesse sentido a negatividade da formulaccedilatildeo grandeza negativa deve ser interpretada como a projeccedilatildeo da oposiccedilatildeo sobre uma das grandezas polares da relaccedilatildeo que se estabelece entre forccedilas no mundo daiacute a expressatildeo oposiccedilatildeo real Tomemos o exemplo de Kant segundo o qual a atraccedilatildeo negativa que um corpo exerce sobre outro seraacute erroneamente interpretada se for compreendida como a negaccedilatildeo da forccedila de atraccedilatildeo por sua vez seraacute acertadamente compreendida se for tomada como uma grandeza negativa a forccedila de repulsatildeo36 Dessa maneira ela soacute poderaacute ser considerada como negativa se tomada relativamente a outra grandeza a atraccedilatildeo do contraacuterio ela eacute positiva Ou seja a negatividade ou a positividade das grandezas soacute pode ser estabelecida de maneira relativa isto eacute dada a situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre elas No exemplo considerado se o resultado da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre as duas forccedilas de atraccedilatildeo (positiva e negativa) for o repouso entatildeo temos a privaccedilatildeo (nihil privativum representabile) do movimento do objeto sobre o qual essas forccedilas estatildeo agindo e atraveacutes do qual elas puderam se colocar em confronto

Nesse caso eacute necessaacuterio natildeo tomar o efeito (repousoausecircncia do movimento do objeto) pela causa (o equiliacutebrio entre as forccedilas de atraccedilatildeo positiva e negativa) O resultado desse desacerto do juiacutezo seria confundir atraccedilatildeo negativa com ausecircncia de atraccedilatildeo ou a grandeza negativa com negaccedilatildeo de uma grandeza

Consideremos juntamente com Kant o conceito de grandeza negativa em geral para em seguida determinar os seus significados especiacuteficos Levando-se em conta que a chave para predicarmos as grandezas eacute a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo37 entatildeo temos que verificar as duas maneiras por meio das quais podemos considerar essa noccedilatildeo 1ordm como oposiccedilatildeo loacutegica 2ordm como oposiccedilatildeo real Assim Kant estabelece dois niacuteveis de anaacutelise para a apreciaccedilatildeo da noccedilatildeo de oposiccedilatildeo aquele da loacutegica e aquele da natureza Com isso ele pretende distinguir as respectivas funccedilotildees causais da oposiccedilatildeo considerada em cada um desses niacuteveis

Na oposiccedilatildeo loacutegica natildeo resta nenhuma consequecircncia da conexatildeo entre a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo nihil negativum irrepresentabile Dadas duas

36Ibid p 5637Ibid p 57

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afirmaccedilotildees absolutamente contraacuterias o pensamento se surpreende na situaccedilatildeo de natildeo poder prosseguir com seu trabalho obediente como eacute aos princiacutepios de contradiccedilatildeo e terceiro excluiacutedo (tertium non datur) Nesse sentido a contradiccedilatildeo que eacute como entendemos a oposiccedilatildeo loacutegica gera um tipo de vacuidade do pensamento um nada impensaacutevel um absoluto vazio que eacute como aquele nada asseverado por Parmecircnides ldquoNecessaacuterio eacute dizer e pensar que soacute o ser eacute pois o ser eacute e o nada ao contraacuterio nada eacute []rdquo38

Se pensarmos nos estados de movimento e de repouso referidos ao mesmo objeto e abstraindo-se o tempo encontraremos na base mais elementar desses estados contraacuterios os conceitos de ser e de natildeo-ser tidos como opostos no sentido exclusivamente loacutegico (contraacuterios) obtendo como resultado a contradiccedilatildeo e a impossibilidade do pensamento Nesse caso movimento e repouso deixaram de ser grandezas ou estados de coisas e se tornaram puras abstraccedilotildees Logo o natildeo-ser da negatividade natildeo apresenta nenhum tipo de positividade Isto eacute o natildeo-ser eacute absolutamente negativo e eacute tomado como logicamente dependente da positividade do ser como sua pura negaccedilatildeo Por sua vez o ser eacute tomado como conceito originaacuterio e absoluto cuja positividade independe de qualquer relaccedilatildeo apresentando assim precedecircncia loacutegica e exclusividade ontoloacutegica sobre o natildeo-ser

Por outro lado natildeo eacute possiacutevel afirmar que o ser ou o natildeo-ser possuam qualquer prevalecircncia um sobre o outro qualquer antecedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica quando considerados como grandezas no mundo

O movimento eacute tomado como algo positivo na medida em que eacute a efetivaccedilatildeo de um estado de coisas ldquoxrdquo no mundo por sua vez o repouso eacute tambeacutem uma positividade na medida em que significa um outro estado de coisas ldquoyrdquo oposto a ldquoxrdquo A negatividade nessa oposiccedilatildeo recai arbitrariamente sobre ldquoxrdquo ou ldquoyrdquo por meio de uma proposiccedilatildeo que estabelece a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo A negatividade recairaacute sobre ldquoxrdquo ou sobre ldquoyrdquo de acordo com a forma assumida pela proposiccedilatildeo que iraacute fazer variar a negatividade (ou a positividade) em funccedilatildeo da finalidade enfaacutetica que se queira dar a ldquoxrdquo ou a ldquoyrdquo

Somente quando se diz que um mesmo corpo estaacute e natildeo estaacute a um soacute tempo e na mesma relaccedilatildeo em repouso ou em movimento eacute que essa vacuidade no pensar aparece

38ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν[]rdquo PARMENIDES fragmento B6 In BORHEIM op cit p 55

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Um corpo em movimento eacute algo um corpo que natildeo estaacute em movimento eacute tambeacutem algo (cogitabile) no entanto um corpo que ao mesmo tempo e justamente sob a mesma relaccedilatildeo estivesse e natildeo estivesse em movimento eacute absolutamente nada39

A expressatildeo a um soacute tempo significa que o corpo eacute colocado na situaccedilatildeo em que se abstrai a seacuterie contiacutenua do tempo Isso quer dizer que uma uacutenica porccedilatildeo elementar do tempo foi tomada e isolada das demais Todavia uma porccedilatildeo assim isolada do tempo tomada em sentido absoluto natildeo eacute tempo algum Uma vez que a seacuterie de tempo eacute contiacutenua ou se toma uma porccedilatildeo do tempo que por sua vez conteacutem em si uma nova seacuterie temporal infinita (nesse caso a parte eacute igual ao todo) ou natildeo se toma tempo algum Em outras palavras a expressatildeo a um soacute tempo natildeo tem aqui nenhum significado temporal positivo mas apenas negativo significando fora do tempo

Assim procedeu Parmecircnides ao abstrair o tempo para todas as formas proposicionais vaacutelidas reduzindo toda forma de pensamento a uma expressatildeo proposicional afirmativa atemporal onde a positividade eacute sempre absoluta e por isso possui prioridade loacutegica e ontoloacutegica sobre a negatividade Nesse caso toda oposiccedilatildeo eacute sempre contradiccedilatildeo

Jaacute na oposiccedilatildeo real encontramos uma forma de pensamento que natildeo subtrai a seacuterie do tempo Nesse caso a oposiccedilatildeo real apresenta uma estrutura a qual pode ser esquematicamente apresentada como (+A ndashA = B) onde (B = 0) ou (B ne 0) e onde os elementos integrantes dessa operaccedilatildeo (+A) e (ndashA) natildeo deixam de ser pela atribuiccedilatildeo de uma negatividade meramente relativa mesmo quando (B=0) sendo ambos justamente a causa eficiente desse privatio

O (B = 0) como privatio natildeo eacute mera nulidade devendo ser tratado como a realizaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo resultante de um encontro entre potecircncias equivalentes mas opostas uma a outra Aqui natildeo existe contradiccedilatildeo em dizer que se trata de potecircncias equivalentes-opostas pois nesse caso tanto a negatividade como a positividade satildeo relativas e natildeo absolutas Natildeo existe autonomia ontoloacutegica da positividade nem da negatividade Trata-se aqui de predicados e natildeo de seres

Por sua vez o estado de coisas representado por (B = 0) esta efetividade eacute novamente um natildeo-ser poreacutem apenas em relaccedilatildeo a outro estado de coisas a que ele se opotildee Assim este (0) eacute um algo que eacute predicado a algo inserido na 39 Ibidem p 58 grifos nossos

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seacuterie contiacutenua do tempo e que eacute designado como privaccedilatildeo Apenas quando se abstrai da seacuterie do tempo eacute que x = 0 representa um nada absoluto Nesse caso o que eacute afirmado eacute inteira e instantaneamente anulado pelo que eacute negado e vice-versa pois a positividade e a negatividade do que eacute afirmado e negado se referem aos proacuteprios seres

Jaacute na oposiccedilatildeo real ainda que duas condiccedilotildees contraacuterias atuem simultaneamente sobre o mesmo objeto a contradiccedilatildeo (vacuidade do pensamento) natildeo eacute o resultado porque a expressatildeo simultaneamente (ausecircncia de sucessatildeo temporal) eacute aqui relativizada Se pensarmos na destruiccedilatildeo de um corpo esse movimento seraacute oposto ao de sua criaccedilatildeo No entanto tais movimentos natildeo satildeo contraditoacuterios um ao outro quando pensados juntos Natildeo inferimos uma vacuidade no pensamento da conjunccedilatildeo simultacircnea desses dois eventos desde que sejam pensados como eventos e portanto diluiacutedos no contiacutenuo temporal A contiacutenua transformaccedilatildeo (movimento) dos corpos vivos por exemplo tem por base um confronto entre a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo celular atuando nos organismos vivos quer dizer um estado de coisas manifestamente expresso como forccedilas antagocircnicas simultaneamente presentes no mesmo objeto No niacutevel celular essa simultaneidade eacute relativizada enquanto algumas ceacutelulas satildeo criadas outras satildeo destruiacutedas Essa relativizaccedilatildeo da simultaneidade natildeo exclui um efetivo antagonismo seja em que niacutevel for onde a positividade ou a negatividade satildeo arbitrariamente atribuiacutedas a um dos polos da oposiccedilatildeo natildeo havendo qualquer precedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica de um polo sobre o outro A geraccedilatildeo eacute negativa se a destruiccedilatildeo for tomada como positiva e vice-versa

Na dinacircmica uma forccedila motriz eacute dita positiva somente quando oposta a outra dita negativa a resistecircncia Ainda que opostas uma a outra forccedilas com vetores contraacuterios desse encontro natildeo se infere um absurdo como uma contradiccedilatildeo mas um estado de coisas real de oposiccedilatildeo de contrariedade O resultado pode ser tanto o repouso no caso das forccedilas opostas possuiacuterem a mesma potecircncia (serem equivalentes) ou o movimento que apresenta o mesmo vetor de uma das forccedilas conflitantes Em ambos os casos o resultante dessa oposiccedilatildeo eacute algo que pode ser efetivamente afirmado sobre o mundo e natildeo um vazio ou um nada irrepresentaacutevel Ainda que nesse caso o repouso possa ser representado por (B = 0) este (B = 0) natildeo deve ser entendido como uma indeterminaccedilatildeo mas sim como privaccedilatildeo Logo percebemos que a contradiccedilatildeo natildeo eacute aplicaacutevel a estados de coisas imersos na seacuterie contiacutenua do tempo

Tanto na oposiccedilatildeo loacutegica como na oposiccedilatildeo real o efeito pode ser representado como (=0) ou como vazio ou ainda como nada Entretanto

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o sentido desse vazio ou desse nada deve ser relativizado para cada situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo Na oposiccedilatildeo loacutegica significa contradiccedilatildeo (nihil negativum irrepresentabile) ou ausecircncia da possibilidade do pensamento A nosso ver este seria o caso do significado do natildeo-ser empregado por Parmecircnides onde localizamos a supressatildeo instantacircnea (anulaccedilatildeo ausecircncia absoluta) dos opostos Jaacute o nada ou o vazio da oposiccedilatildeo real eacute absolutamente representaacutevel Aqui eacute possiacutevel embora de maneira arbitraacuteria estabelecer os valores positivo e negativo dos elementos que se colocam na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo

5 concLusatildeo

Apoacutes oferecer alguns exemplos para o conceito de grandeza negativa na segunda seccedilatildeo do Ensaio Kant conduz suas consideraccedilotildees para o campo da filosofia que para ele deve se ocupar prioritariamente da metafiacutesica e cujo meacutetodo analiacutetico apresentado por ele em outro de seus textos desse periacuteodo40 jaacute fornece indiacutecios dos passos que daraacute no sentido de sua futura proposta mais amadurecida para uma teoria criacutetico-transcendental

Assim alerta Kant no Ensaio entendemos facilmente que algo natildeo seja se lhe carece a razatildeo positiva para sua existecircncia todavia temos dificuldades para entender como algo que efetivamente eacute deixa de ser41 isto eacute temos dificuldade em compreender o correto sentido de privaccedilatildeo O esclarecimento acerca dessa questatildeo eacute fundamental jaacute que o vir-a-ser isto eacute o deixar de ser como privaccedilatildeo eacute a maneira mais fundamental de entender o conceito de movimento Essa dificuldade em reconhecer o correto sentido de privaccedilatildeo eacute o que algumas vezes nos compele a confundi-la com a contradiccedilatildeo e por isso obter como resultado a negaccedilatildeo do movimento compreendendo-o erroneamente como gerador do absurdo

Assim sugere Kant se represento o Sol em minha imaginaccedilatildeo e se no instante seguinte deixo de ter presente essa representaccedilatildeo em minha mente isso natildeo significa que meu pensamento sobre o Sol tenha simplesmente desaparecido e se tornado um puro nada aniquilando-se na vacuidade de uma contradiccedilatildeo entre ser e natildeo-ser mas sim porque a representaccedilatildeo do sol foi suprimida por outra sorte qualquer de ideia que se impocircs com a intensidade

40KANT I Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In ______ Escritos Preacute-criacuteticos Trad Jair Barboza [et al] Satildeo Paulo UNESP 2005 p 116-117

41KANT opcit p 79

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suficiente para substituiacute-la parcial ou inteiramente segundo uma determinada relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo contingente ao espiacuterito

A simples negaccedilatildeo da representaccedilatildeo considerando que ela simplesmente anulou a si mesma deixando assim de existir nos remete para a situaccedilatildeo de um nada irrepresentaacutevel um impensaacutevel natildeo-ser como em Parmecircnides Jaacute na privaccedilatildeo existe uma interaccedilatildeo entre forccedilas opostas a qual natildeo aparece como contradiccedilatildeo uma vez que princiacutepios afirmativos opostos (representaccedilotildees opostas) coincidiriam sob a mesma forma do pensamento anulando assim o efeito de uma delas ou de ambas O resultado eacute a afirmaccedilatildeo de um ser que eacute tambeacutem natildeo-ser jaacute que a negatividade do natildeo-ser da representaccedilatildeo aqui eacute simplesmente relativa dada pela situccedilatildeo de oposiccedilatildeo A representaccedilatildeo arbitrariamente tomada como negativa natildeo eacute menos ser que aquela tomada como positiva A supressatildeo de uma pela outra natildeo se mostra como contradiccedilatildeo mas como a privaccedilatildeo

Eacute concebiacutevel assim pensar legitimamente o natildeo-ser da representaccedilatildeo desde que seja considerado como privaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel se falar com verdade em princiacutepios opostos e equivalentes e que produzem em seu encontro a afirmaccedilatildeo de algo como um nada Dessa maneira seja a1

a afirmaccedilatildeo (ser) de um determinado estado de coisas no mundo (ou de uma representaccedilatildeo de algo no mundo) e a2 o seu equivalente oposto (o natildeo-ser) temos que

a1 ndash a2 = 0

Arbitrariamente tomamos a2 como a representaccedilatildeo negativa contudo a negatividade aqui revela apenas a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre a1 e a2 e natildeo uma situaccedilatildeo absoluta de a2 Como grandezas equivalentes que se opotildeem o resultado (= 0) revela uma oposiccedilatildeo real natildeo uma contradiccedilatildeo Nem a1

e a2 podem ser ditas potecircncias contraditoacuterias nessa relaccedilatildeo visto que este (= 0) eacute a afirmaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo de um ser que eacute tambeacutem um natildeo-ser assim como o repouso eacute igualmente uma forma de natildeo-ser do movimento O pensamento que leva em conta os opostos eacute pois uma possibilidade real e mesmo necessaacuteria para a consideraccedilatildeo do movimento

Segundo a foacutermula de Demoacutecrito o natildeo-ser natildeo eacute mais nem menos que o ser Ora soacute podemos entender essa afirmaccedilatildeo de duas maneiras convergentes ou como afirmaccedilatildeo do mesmo estatuto ontoloacutegico para o ser e para o natildeo-ser ou como atribuiccedilatildeo da mesma funccedilatildeo causal (material) para ambos Nos dois casos o ser soacute eacute na presenccedila ou com a premissa do natildeo-ser e vice-versa E assim o natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser Estaacute claro que esse princiacutepio natildeo

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se ajusta sem qualquer intervenccedilatildeo agraves formulaccedilotildees de Parmecircnides Por esse desacordo eacute possiacutevel identificar no antigo atomismo uma negatividade do ser que natildeo engendra a vacuidade do pensamento Pelo contraacuterio o movimento do pensamento soacute eacute possiacutevel por meio dessa oposiccedilatildeo fundamental Em Platatildeo esse movimento do pensamento ganha o nome de dialeacutetica

Concluiremos este estudo com a seguinte afirmaccedilatildeo de Kant ldquoTodos os fundamentos reais do universo quando se somam todos que satildeo consonantes e se subtraem uns dos outros os que se opotildeem entre si datildeo um resultado igual a zerordquo42 Esse zero significa a afirmaccedilatildeo da efetividade do mundo Esse zero representa um repouso que nem por isso deixa de ser dinacircmico Assim esperamos ter aproximado o conteuacutedo do Ensaio com o pensamento daqueles filoacutesofos da natureza que se colocavam conformes a um princiacutepio universal sem negar a unidade do pensamento e do movimento do mundo De acordo com eles o mundo deve se ordenar segundo esses princiacutepios mutuamente opostos ser e natildeo-ser os quais estatildeo na origem desse repouso dinacircmico na exata medida da efetivaccedilatildeo de seus encontros

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ABSTRACT Initially we present the theory of Democritus and Leucippus whereby being is not more than the not-being (non-being) in contrast to Eleatic ideas about the necessary inexistence of the not-being This discussion leads us to the opposition between the whole (full) and the empty which will then be transposed into the opposition between being and nothingness (or not-being) Thus the opposition between whole and the empty is an opposition that moves to being and not-being Finally we will make an assessment of the Kantian pre-critical essay Attempt to introduce the concept of negative magnitude into philosophy in which we recognize a kind of opposition that as we believe would be interpreted as being in agreement with the position of Democritus and Leucippus regarding the ontological status of the not-being as an equivalent principle to the being understood here not as a mutual contradiction in a purely logical sense

KEYWORDS ancient atomism Eleatism ontology

referecircncias

ARISTOacuteTELES Da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo seguido de convite agrave filosofia Traduccedilatildeo de Renata Maria Pereira Cordeiro Satildeo Paulo Landy 2001

42 Ibid p 89

Leucipo Demoacutecrito e Kant Artigos Articles

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Recebido Received 07092014Aprovado Approved 10012015

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um afrouxamento de suas cadeias que nasccedila ou que pereccedila mas manteacutem-no firmerdquo18 Assim Parmecircnides deixa claro que o natildeo-ser natildeo eacute princiacutepio gerador do que quer que seja Trata-se de uma impossibilidade para o pensamento e portanto para o proacuteprio ser e para a natureza

E Platatildeo eacute tido como um disciacutepulo da henologia eleata Poreacutem tambeacutem eacute verdade que em pelo menos dois de seus Diaacutelogos o Sofista e o Parmecircnides19 fica evidente um desacordo entre ele Parmecircnides No Sofista (236e-237b) Platatildeo revela as dificuldades advindas de uma identificaccedilatildeo imediata loacutegica e ontoloacutegica entre verdade e ser excluindo assim o natildeo-ser de todo raciociacutenio legiacutetimo A consequecircncia dessa identificaccedilatildeo eacute a impossibilidade de se afirmar o falso Afirmar o falso apareceria como manifesta contradiccedilatildeo jaacute que seria afirmar o nada20 Contudo Platatildeo reconhece que essa impossibilidade tambeacutem se mostra como um risco epistemoloacutegico pois disso decorreria a impossibilidade de distinguir entre conhecimento (opiniatildeo verdadeira) e ignoracircncia (opiniatildeo falsa) Ao esclarecer Teeteto sobre esse fato diz o Estrangeiro de Eleia no Sofista

Eacute que realmente jovem feliz nos vemos frente a uma questatildeo extremamente difiacutecil pois mostrar e parecer sem ser dizer algo sem entretanto dizer com verdade satildeo maneiras que trazem grandes dificuldades tanto hoje como ontem e sempre Que modo encontrar na realidade para dizer ou pensar que o falso eacute real sem que jaacute ao proferi-lo nos encontremos enredados na contradiccedilatildeo [] A audaacutecia de uma tal afirmaccedilatildeo eacute supor o natildeo-ser como ser e na realidade nada de falso eacute possiacutevel sem esta condiccedilatildeo Era o que meu jovem jaacute afirmava o grande Parmecircnides tanto em prosa como em verso a noacutes que entatildeo eacuteramos jovens ldquoJamais obrigaraacutes os natildeo-seres a ser Antes afasta teu pensamento desse caminho de investigaccedilatildeo21

18ldquoΟὐδὲ ποτ΄ ἐκ μὴ ἐόντος ἐφήσει πίστιος ἰσχύς γίγνεσθαί τι παρ΄ αὐτόττοῦ εἵνεκεν οὔτε γενέσθαι οὔτ΄ ὄλλυσθαι ἀνῆκε Δίκη χαλάσασα πέδῃσινrdquo PARMEcircNIDES fragmento B8 ibid p 55 grifos nossos

19 Eacute oacutebvio que natildeo precisariacuteamos ficar restritos a apenas esses dois Diaacutelogos Por exemplo no Teeteto poderiacuteamos mencionar o problema da opiniatildeo falsa (187d-18a) PLATAtildeO Teeteto Lisboa Calouste Gulbenkian 2010 p 271-272 No Filebo a controveacutersia sobre o Uno e o Muacuteltiplo (14c-15c 23d) PLATAtildeO Filebo In ______ Diaacutelogos v 8 Universidade Federal do Paraacute 1974 No Timeu interessante notar as semelhanccedilas e dessemelhanccedilas entre o atomismo e a doutrina laacute apresentada principalmente em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo do ser e do devir enquanto imutaacutevel e mutaacutevel respectivamente (27d-28b) poderiacuteamos mencionar ainda a descriccedilatildeo da gecircnese do mundo como um ser vivo e sua forma arredondada numa espeacutecie de reconciliaccedilatildeo com o eleatismo de Parmecircnides (30d-40d) PLATAtildeO Timeu-Criacutetias Coimbra Universidade de Coimbra 2011 p 92-93 99-115

20 Sobre o paradoxo envolvendo a questatildeo de se afirmar o nada cf HEIDEGGER O que eacute metafiacutesica Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 p 235

21PLATAtildeO Sofista Satildeo Paulo Abril Cultural 1972 p 162

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Eacute notoacuterio que os esclarecimentos prestados ao jovem Teeteto pelo Estrangeiro conduzem a um ldquoparriciacutediordquo22 significando uma espeacutecie de rompimento de Platatildeo com a henologia eleata ortodoxa Todavia tatildeo pouco esse rompimento significa a aceitaccedilatildeo da posiccedilatildeo atomista por Platatildeo23 No diaacutelogo Parmecircnides (137ac-166c) o Outro do Uno (o ser outro) eacute afirmado como uma necessidade no acircmbito da dialeacutetica platocircnica24 sem o qual a Doutrina das Ideias natildeo escaparia agraves dificuldades apontadas (130c-134e) e que satildeo decorrentes de uma ortodoxia henoloacutegica advindas do proacuteprio eleatismo

Contudo o objetivo desta raacutepida explanaccedilatildeo foi o de apenas tornar um pouco mais evidente a oposiccedilatildeo entre o pluralismo ontoloacutegico e material de Demoacutecrito (como se acredita ser tambeacutem o de Leucipo) e o monismo de Parmecircnides Nas seccedilotildees subsequentes defenderemos que essa oposiccedilatildeo fundamental entre o ser e o vazio natildeo implica uma contradiccedilatildeo (loacutegica) como no eleatismo mas sim uma forma de oposiccedilatildeo jaacute percebida por Platatildeo como necessaacuteria (por exemplo no Sofista 256d - 259d) e que poderiacuteamos interpretar como sendo tambeacutem aquela apresentada por Kant e denominada por ele como oposiccedilatildeo real E para natildeo nos afastarmos desse intuito prossigamos nestas ponderaccedilotildees

3 equivaLecircncia entre Ser e natildeo-Ser

Na seccedilatildeo precedente refletimos sobre algumas das consideraccedilotildees mais centrais do eleatismo basicamente aquelas que afirmam o ser como necessariamente um e imoacutevel25 Tambeacutem tivemos a oportunidade de acompanhar como Demoacutecrito ao desenvolver a filosofia de seu mestre Leucipo eacute capaz de

22Ibid p 168 (241a-242b)23Apesar de apresentar pontos de contato com o atomismo de Demoacutecrito e Leucipo e com certos

aspectos do eleatismo ortodoxo a visatildeo cosmogocircnica exposta por Platatildeo no Timeu se distancia de ambos ao assumir a dialeacutetica como pressuposto metodoloacutegico e epistemoloacutegico Por exemplo quando da descriccedilatildeo da dinacircmica dos elementos de um ponto de vista puramente dialeacutetico (56c-61c) ou quando da apresentaccedilatildeo do terceiro princiacutepio que soacute ldquo[] acessiacutevel por meio de um certo raciociacutenio bastardo (logismocirc tini nothocirc) sem recurso aos sentidos a custo crediacutevel (52a-b) PLATAtildeO Timeu-Criacutetias op cit p 136-155

24Cf tambeacutem PLATAtildeO Sofista (253d - 254b) op cit p 184-18525 Aleacutem dessa definiccedilatildeo essencial do ser Parmecircnides especialmente no fragmento B8 fornece

uma seacuterie de outros atributos que poderiacuteamos considerar como derivados ou secundaacuterios como completude (plenitude) inteireza esfericidade indestrutibilidade limite externo compacidade homogeneidade continuidade que de certo modo podem ser reduzidos uns aos outros e referidos agravequeles dois que interpretamos como essenciais

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defender a proposiccedilatildeo ldquoO nada existe tanto quanto o lsquoalguma coisarsquordquo26 Assim na antiga escola atomista o movimento eacute aceito e justificado na medida em que admite o vazio (o natildeo-ser) pelo qual se opera o mecanismo da mudanccedila da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo no acircmbito do composto atraveacutes da junccedilatildeo e da dissoluccedilatildeo de suas partes elementares Tomando igualmente o vazio como princiacutepio os atomistas antigos satildeo capazes de oferecer uma resposta ao problema do movimento e do vir-a-ser problema este colocado pelo menos desde Parmecircnides

Dessa forma divergem as teses baacutesicas do eleatismo e do atomismo De um lado fica estabelecida a necessidade da postulaccedilatildeo do ser uno e pleno de maneira exclusiva e solitaacuteria excluindo por essa via a possibilidade de uma justificaccedilatildeo do vir-a-ser de outro encontramos a postulaccedilatildeo do vazio colocado como oposiccedilatildeo ao ser mas tambeacutem como seu equivalente formal e material servindo como canal comunicante sem o qual o movimento proacuteprio da natureza natildeo seria concebiacutevel ou racionalizaacutevel

Essa disputa entre escolas ou doutrinas aponta para uma oposiccedilatildeo mais fundamental trata-se da oposiccedilatildeo entre o ser e o natildeo-ser ou entre o pleno e o vazio No eleatismo o ser apresenta anterioridade loacutegica e ontoloacutegica Jaacute na filosofia da natureza de Demoacutecrito e Leucipo o ser e o natildeo-ser devem ser colocados lado a lado o que permite a essa filosofia se abrir para o vir-a-ser ao aceitar desde o iniacutecio essa radical alteridade do outro do ser como princiacutepio equivalente ao ser

A afirmaccedilatildeo da multiplicidade e do movimento pressupotildeem desde o iniacutecio a alteridade o outro do ser Isso parece ter ficado bastante evidente para Platatildeo que no Parmecircnides (130c-134e) apoacutes o momento em que o personagem que daacute nome ao Diaacutelogo ter elencado uma seacuterie de argumentos27 contra a Doutrina das Ideias apresenta uma revisatildeo da henologia eleaacutetica posicionando o Outro do Uno junto ao Uno como alteridade necessaacuteria para o equiliacutebrio do jogo dialeacutetico somente assim alcanccedilando ecircxito em tentar salvar essa doutrina dos ferozes ataques lanccedilados contra ela28 E no Filebo tambeacutem 26 DEMOacuteCRITO fragmento 156 In BORNHEIN op cit p 113 27 Sete no total Cf PLATAtildeO Parmecircnides op cit 130c-134e28 A estrutura dessa investigaccedilatildeo dialeacutetica no Parmecircnides pode ser concentrada nas oito consequecircncias

obtidas da anaacutelise da protoideia do uno Por meio do meacutetodo dialeacutetico satildeo obtidos resultados afirmativos e negativos tanto para a existecircncia como para a negaccedilatildeo da existecircncia do uno Esses resultados parecem se equilibrar gerando a impressatildeo de um resultado aparentemente nulo mas que ao final trazem resultados positivos seja para uma revisatildeo do eleatismo seja para uma sofisticaccedilatildeo da Teoria das Ideias Para uma anaacutelise desse assunto cf REALE G Para uma nova interpretaccedilatildeo de

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encontramos essa disposiccedilatildeo dualista atraveacutes da apresentaccedilatildeo da teoria dos princiacutepios formadores para as proacuteprias ideias Segundo essa teoria conhecida como Protologia Platocircnica29 as ideias as formas puras do mundo inteligiacutevel nasceriam do encontro e da uniatildeo do limite identificado com o Uno e do ilimite identificado com o muacuteltiplo infinito (Filebo 16d-e 23d-26d) Limite e ilimite satildeo tomados como princiacutepios absolutos poreacutem geradores das ideias apenas quando relativizados um pelo outro

Guardadas as respectivas diferenccedilas tanto em Platatildeo como nos atomistas fica estabelecida uma equivalecircncia entre ser e natildeo-ser Essa negaccedilatildeo do ser eacute concebida como o Outro-do-ser (oposto ao ser a sua alteridade) O muacuteltiplo eacute na sua essecircncia uacuteltima o composto formado pelo ser e pelo natildeo-ser que como vimos acima eacute entendido como vazio pelos atomistas A partir desse ponto de vista a natureza moacutevel apresenta-se como um tipo de extensatildeo discreta fundada em um dualismo ontoloacutegico no qual encontramos o mesmo (a unidade o limite a identidade o aacutetomo o ser) e o outro (a diferenccedila a alteridade o ilimite o vazio o natildeo-ser)

Em suma o movimento soacute pode ser assumido na medida em que o muacuteltiplo puder ser concebido como o composto formado pelo ser e pelo outro do ser ambos conectados pela relaccedilatildeo de vizinhanccedila Essa vizinhanccedila eacute definida como uma equivalecircncia ontoloacutegica entre o vazio (nadameacuteden) ao lado do ser o que garantiria a separabilidade atocircmica (divisibilidade finita) sem a qual o composto natildeo seria concebiacutevel Do contraacuterio natildeo havendo o vazio soacute haveria o ser-uno unidade simples homogecircnea indiferenciada e tambeacutem imoacutevel jaacute que sempre plena Nesse caso nenhuma vizinhanccedila poderia ser constatada ou afirmada uma vez que a vizinhanccedila pressupotildee a dualidade de elementos O movimento estaria necessariamente vinculado ao dualismo ontoloacutegico e excluiacutedo do monismo pois neste natildeo haveria lugar para a alteridade ou vizinhanccedila

Na medida em que o ser e o vazio satildeo considerados conceitos fundantes no atomismo antigo a relaccedilatildeo de vizinhanccedila fica estabelecida nessa diferenciaccedilatildeo originaacuteria Assim o vazio (o nada) se coloca imediatamente em uma relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o ser no exato momento em que eacute compreendido como a sua radical alteridade E paradoxalmente eacute somente nesse sentido que o vazio eacute a saber na medida mesma em que ele natildeo eacute pleno E a reciacuteproca tambeacutem eacute

Platatildeo Releitura da metafiacutesica dos grandes diaacutelogos agrave luz das ldquoDoutrinas natildeo-escritasrdquo Satildeo Paulo Loyola 1991

29 Ibid p 164-165

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assim afirmada Como o vazio eacute o proacuteprio ser-outro porque instantaneamente se coloca nessa relaccedilatildeo de vizinhanccedila originaacuteria e imediata com o ser o ser tambeacutem se coloca nessa relaccedilatildeo primitiva com o vazio e somente neste sentido o ser eacute isto eacute na medida em que natildeo eacute vazio Platatildeo parece se aproximar dessa posiccedilatildeo atomista quando no Sofista introduz a seguinte indagaccedilatildeo atraveacutes das palavras do Estrangeiro de Eleia ldquoAssim pois estaacute claro que o movimento eacute realmente natildeo ser ainda que seja ser na medida em que participa do serrdquo E prossegue

Segue-se pois necessariamente que haacute um ser do natildeo-ser natildeo somente no movimento mas em toda a seacuterie dos gecircneros pois na verdade em todos eles a natureza do outro faz cada um deles outro que natildeo o ser e por isso mesmo natildeo-ser Assim universalmente por essa relaccedilatildeo chamaremos a todos corretamente natildeo-ser e ao contraacuterio pelo fato de eles participarem do ser diremos que satildeo seres30

Por esse ponto de vista o ser tambeacutem eacute definido em funccedilatildeo de sua relaccedilatildeo com o natildeo-ser que aqui alinhamos com o vazio como o outro do pleno Desse modo essa subordinaccedilatildeo do ser em relaccedilatildeo ao natildeo-ser (o vazio) ou do natildeo-ser (vazio) em relaccedilatildeo ao ser redunda em uma relaccedilatildeo de simetria entre ambos Como resultado temos que natildeo haacute um sentido uacutenico ou prioritaacuterio no condicionamento ontocausal entre ser e vazio A conclusatildeo eacute que ao assumir o movimento como um fato da natureza ou como princiacutepio o ser deixa de apresentar prioridade ontoloacutegica e causal

Nesse sentido ser e natildeo-ser perfazem de maneira equivalente as condiccedilotildees necessaacuterias para o movimento E ainda que a oposiccedilatildeo radical seja o elo constituinte desses princiacutepios originaacuterios ela natildeo implica a anulaccedilatildeo muacutetua de um pelo outro quando simultaneamente justapostos no pensamento assim como os eleatas tentaram mostrar atraveacutes dos paradoxos associados agrave divisibilidade e ao movimento31 Pelo contraacuterio a oposiccedilatildeo radical entre pleno e vazio entre ser e natildeo-ser eacute a proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade do movimento e por isso da efetividade do real Passa a valer por conseguinte nesse caso a necessidade da bicondicionalidade ontocausal entre ser e natildeo-ser radicada na relaccedilatildeo de vizinhanccedila entre ambos na constituiccedilatildeo do real como efetiva e cambiante multiplicidade

30PLATAtildeO Sofista (256e) opcit p 18931Cf ZENAtildeO In BORHEIM op cit p 60-63

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Sumariando as teses de Demoacutecrito e Leucipo temos que

1 O ser eacute quando colocado numa relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o vazio

2 O vazio eacute prefigura junto ao pleno como condiccedilatildeo necessaacuteria para o movimento

3 As teses anteriores se reduzem agrave maacutexima O natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser

4 uma Leitura De Kant a partir Das consiDeraccedilotildees anteriores

Passamos agora a considerar de que form eacute possiacutevel obter por meio do texto Ensaio para introduzir em filosofia o conceito de grandeza negativa32 um novo focirclego para a discussatildeo precedente33 Assim ao analisarmos esse texto manteremos sob nosso olhar aquela oposiccedilatildeo radical e fundamental acima apontada entre ser e natildeo-ser para tentar entendecirc-la atraveacutes daquilo que Kant chama ora de oposiccedilatildeo real ora de oposiccedilatildeo loacutegica sendo a primeira o tipo de oposiccedilatildeoequivalecircncia que relacionaremos com o atomismo antigo e a segunda aquilo que identificaremos como a oposiccedilatildeocontradiccedilatildeo denunciada nas formulaccedilotildees do eleatismo

No prefaacutecio ao Ensaio Kant deixa claro que a filosofia pode se utilizar das ciecircncias naturais e exatas seja copiando seus meacutetodos seja aplicando suas proposiccedilotildees deslocando-as para um novo contexto34 Procederaacute entatildeo com a tentativa de introduzir no seio da filosofia a ideia de grandeza negativa recurso jaacute empregado em matemaacutetica e fiacutesica

Eacute preciso distinguir o significado da proposiccedilatildeo grandeza negativa daquele outro de negaccedilatildeo de uma grandeza35 Uma grandeza negativa eacute a afirmaccedilatildeo de uma grandeza que simplesmente se opotildee a uma outra e que portanto revela uma positividade colocada numa relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo a outra positividade Jaacute na expressatildeo negaccedilatildeo de uma grandeza a grandeza eacute tomada

32 Com o tiacutetulo Versuch den Begriff der negativen Grossen in die Weltweisheit einzufuumlhren essa obra foi publicada pela primeira vez em 1763 Doravante iremos nos referir a ela de maneira abreviada apenas por Ensaio

33Ver nota 134No ano seguinte agrave publicaccedilatildeo do Ensaio essa posiccedilatildeo a respeito da filosofia e das ciecircncias eacute relativizada

com a publicaccedilatildeo de um texto intitulado ldquoInvestigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moralrdquo In KANT Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In______ Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 101-140

35 KANT Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia Ibid p 56

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isoladamente sem qualquer relaccedilatildeo com outra e por isso nenhuma oposiccedilatildeo eacute considerada a partir dela Aqui Kant toma para si a ideia de oposiccedilatildeo que estaacute na raiacutez do conceito de movimento ou de forccedila na Fiacutesica

Nesse sentido a negatividade da formulaccedilatildeo grandeza negativa deve ser interpretada como a projeccedilatildeo da oposiccedilatildeo sobre uma das grandezas polares da relaccedilatildeo que se estabelece entre forccedilas no mundo daiacute a expressatildeo oposiccedilatildeo real Tomemos o exemplo de Kant segundo o qual a atraccedilatildeo negativa que um corpo exerce sobre outro seraacute erroneamente interpretada se for compreendida como a negaccedilatildeo da forccedila de atraccedilatildeo por sua vez seraacute acertadamente compreendida se for tomada como uma grandeza negativa a forccedila de repulsatildeo36 Dessa maneira ela soacute poderaacute ser considerada como negativa se tomada relativamente a outra grandeza a atraccedilatildeo do contraacuterio ela eacute positiva Ou seja a negatividade ou a positividade das grandezas soacute pode ser estabelecida de maneira relativa isto eacute dada a situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre elas No exemplo considerado se o resultado da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre as duas forccedilas de atraccedilatildeo (positiva e negativa) for o repouso entatildeo temos a privaccedilatildeo (nihil privativum representabile) do movimento do objeto sobre o qual essas forccedilas estatildeo agindo e atraveacutes do qual elas puderam se colocar em confronto

Nesse caso eacute necessaacuterio natildeo tomar o efeito (repousoausecircncia do movimento do objeto) pela causa (o equiliacutebrio entre as forccedilas de atraccedilatildeo positiva e negativa) O resultado desse desacerto do juiacutezo seria confundir atraccedilatildeo negativa com ausecircncia de atraccedilatildeo ou a grandeza negativa com negaccedilatildeo de uma grandeza

Consideremos juntamente com Kant o conceito de grandeza negativa em geral para em seguida determinar os seus significados especiacuteficos Levando-se em conta que a chave para predicarmos as grandezas eacute a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo37 entatildeo temos que verificar as duas maneiras por meio das quais podemos considerar essa noccedilatildeo 1ordm como oposiccedilatildeo loacutegica 2ordm como oposiccedilatildeo real Assim Kant estabelece dois niacuteveis de anaacutelise para a apreciaccedilatildeo da noccedilatildeo de oposiccedilatildeo aquele da loacutegica e aquele da natureza Com isso ele pretende distinguir as respectivas funccedilotildees causais da oposiccedilatildeo considerada em cada um desses niacuteveis

Na oposiccedilatildeo loacutegica natildeo resta nenhuma consequecircncia da conexatildeo entre a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo nihil negativum irrepresentabile Dadas duas

36Ibid p 5637Ibid p 57

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afirmaccedilotildees absolutamente contraacuterias o pensamento se surpreende na situaccedilatildeo de natildeo poder prosseguir com seu trabalho obediente como eacute aos princiacutepios de contradiccedilatildeo e terceiro excluiacutedo (tertium non datur) Nesse sentido a contradiccedilatildeo que eacute como entendemos a oposiccedilatildeo loacutegica gera um tipo de vacuidade do pensamento um nada impensaacutevel um absoluto vazio que eacute como aquele nada asseverado por Parmecircnides ldquoNecessaacuterio eacute dizer e pensar que soacute o ser eacute pois o ser eacute e o nada ao contraacuterio nada eacute []rdquo38

Se pensarmos nos estados de movimento e de repouso referidos ao mesmo objeto e abstraindo-se o tempo encontraremos na base mais elementar desses estados contraacuterios os conceitos de ser e de natildeo-ser tidos como opostos no sentido exclusivamente loacutegico (contraacuterios) obtendo como resultado a contradiccedilatildeo e a impossibilidade do pensamento Nesse caso movimento e repouso deixaram de ser grandezas ou estados de coisas e se tornaram puras abstraccedilotildees Logo o natildeo-ser da negatividade natildeo apresenta nenhum tipo de positividade Isto eacute o natildeo-ser eacute absolutamente negativo e eacute tomado como logicamente dependente da positividade do ser como sua pura negaccedilatildeo Por sua vez o ser eacute tomado como conceito originaacuterio e absoluto cuja positividade independe de qualquer relaccedilatildeo apresentando assim precedecircncia loacutegica e exclusividade ontoloacutegica sobre o natildeo-ser

Por outro lado natildeo eacute possiacutevel afirmar que o ser ou o natildeo-ser possuam qualquer prevalecircncia um sobre o outro qualquer antecedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica quando considerados como grandezas no mundo

O movimento eacute tomado como algo positivo na medida em que eacute a efetivaccedilatildeo de um estado de coisas ldquoxrdquo no mundo por sua vez o repouso eacute tambeacutem uma positividade na medida em que significa um outro estado de coisas ldquoyrdquo oposto a ldquoxrdquo A negatividade nessa oposiccedilatildeo recai arbitrariamente sobre ldquoxrdquo ou ldquoyrdquo por meio de uma proposiccedilatildeo que estabelece a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo A negatividade recairaacute sobre ldquoxrdquo ou sobre ldquoyrdquo de acordo com a forma assumida pela proposiccedilatildeo que iraacute fazer variar a negatividade (ou a positividade) em funccedilatildeo da finalidade enfaacutetica que se queira dar a ldquoxrdquo ou a ldquoyrdquo

Somente quando se diz que um mesmo corpo estaacute e natildeo estaacute a um soacute tempo e na mesma relaccedilatildeo em repouso ou em movimento eacute que essa vacuidade no pensar aparece

38ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν[]rdquo PARMENIDES fragmento B6 In BORHEIM op cit p 55

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Um corpo em movimento eacute algo um corpo que natildeo estaacute em movimento eacute tambeacutem algo (cogitabile) no entanto um corpo que ao mesmo tempo e justamente sob a mesma relaccedilatildeo estivesse e natildeo estivesse em movimento eacute absolutamente nada39

A expressatildeo a um soacute tempo significa que o corpo eacute colocado na situaccedilatildeo em que se abstrai a seacuterie contiacutenua do tempo Isso quer dizer que uma uacutenica porccedilatildeo elementar do tempo foi tomada e isolada das demais Todavia uma porccedilatildeo assim isolada do tempo tomada em sentido absoluto natildeo eacute tempo algum Uma vez que a seacuterie de tempo eacute contiacutenua ou se toma uma porccedilatildeo do tempo que por sua vez conteacutem em si uma nova seacuterie temporal infinita (nesse caso a parte eacute igual ao todo) ou natildeo se toma tempo algum Em outras palavras a expressatildeo a um soacute tempo natildeo tem aqui nenhum significado temporal positivo mas apenas negativo significando fora do tempo

Assim procedeu Parmecircnides ao abstrair o tempo para todas as formas proposicionais vaacutelidas reduzindo toda forma de pensamento a uma expressatildeo proposicional afirmativa atemporal onde a positividade eacute sempre absoluta e por isso possui prioridade loacutegica e ontoloacutegica sobre a negatividade Nesse caso toda oposiccedilatildeo eacute sempre contradiccedilatildeo

Jaacute na oposiccedilatildeo real encontramos uma forma de pensamento que natildeo subtrai a seacuterie do tempo Nesse caso a oposiccedilatildeo real apresenta uma estrutura a qual pode ser esquematicamente apresentada como (+A ndashA = B) onde (B = 0) ou (B ne 0) e onde os elementos integrantes dessa operaccedilatildeo (+A) e (ndashA) natildeo deixam de ser pela atribuiccedilatildeo de uma negatividade meramente relativa mesmo quando (B=0) sendo ambos justamente a causa eficiente desse privatio

O (B = 0) como privatio natildeo eacute mera nulidade devendo ser tratado como a realizaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo resultante de um encontro entre potecircncias equivalentes mas opostas uma a outra Aqui natildeo existe contradiccedilatildeo em dizer que se trata de potecircncias equivalentes-opostas pois nesse caso tanto a negatividade como a positividade satildeo relativas e natildeo absolutas Natildeo existe autonomia ontoloacutegica da positividade nem da negatividade Trata-se aqui de predicados e natildeo de seres

Por sua vez o estado de coisas representado por (B = 0) esta efetividade eacute novamente um natildeo-ser poreacutem apenas em relaccedilatildeo a outro estado de coisas a que ele se opotildee Assim este (0) eacute um algo que eacute predicado a algo inserido na 39 Ibidem p 58 grifos nossos

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seacuterie contiacutenua do tempo e que eacute designado como privaccedilatildeo Apenas quando se abstrai da seacuterie do tempo eacute que x = 0 representa um nada absoluto Nesse caso o que eacute afirmado eacute inteira e instantaneamente anulado pelo que eacute negado e vice-versa pois a positividade e a negatividade do que eacute afirmado e negado se referem aos proacuteprios seres

Jaacute na oposiccedilatildeo real ainda que duas condiccedilotildees contraacuterias atuem simultaneamente sobre o mesmo objeto a contradiccedilatildeo (vacuidade do pensamento) natildeo eacute o resultado porque a expressatildeo simultaneamente (ausecircncia de sucessatildeo temporal) eacute aqui relativizada Se pensarmos na destruiccedilatildeo de um corpo esse movimento seraacute oposto ao de sua criaccedilatildeo No entanto tais movimentos natildeo satildeo contraditoacuterios um ao outro quando pensados juntos Natildeo inferimos uma vacuidade no pensamento da conjunccedilatildeo simultacircnea desses dois eventos desde que sejam pensados como eventos e portanto diluiacutedos no contiacutenuo temporal A contiacutenua transformaccedilatildeo (movimento) dos corpos vivos por exemplo tem por base um confronto entre a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo celular atuando nos organismos vivos quer dizer um estado de coisas manifestamente expresso como forccedilas antagocircnicas simultaneamente presentes no mesmo objeto No niacutevel celular essa simultaneidade eacute relativizada enquanto algumas ceacutelulas satildeo criadas outras satildeo destruiacutedas Essa relativizaccedilatildeo da simultaneidade natildeo exclui um efetivo antagonismo seja em que niacutevel for onde a positividade ou a negatividade satildeo arbitrariamente atribuiacutedas a um dos polos da oposiccedilatildeo natildeo havendo qualquer precedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica de um polo sobre o outro A geraccedilatildeo eacute negativa se a destruiccedilatildeo for tomada como positiva e vice-versa

Na dinacircmica uma forccedila motriz eacute dita positiva somente quando oposta a outra dita negativa a resistecircncia Ainda que opostas uma a outra forccedilas com vetores contraacuterios desse encontro natildeo se infere um absurdo como uma contradiccedilatildeo mas um estado de coisas real de oposiccedilatildeo de contrariedade O resultado pode ser tanto o repouso no caso das forccedilas opostas possuiacuterem a mesma potecircncia (serem equivalentes) ou o movimento que apresenta o mesmo vetor de uma das forccedilas conflitantes Em ambos os casos o resultante dessa oposiccedilatildeo eacute algo que pode ser efetivamente afirmado sobre o mundo e natildeo um vazio ou um nada irrepresentaacutevel Ainda que nesse caso o repouso possa ser representado por (B = 0) este (B = 0) natildeo deve ser entendido como uma indeterminaccedilatildeo mas sim como privaccedilatildeo Logo percebemos que a contradiccedilatildeo natildeo eacute aplicaacutevel a estados de coisas imersos na seacuterie contiacutenua do tempo

Tanto na oposiccedilatildeo loacutegica como na oposiccedilatildeo real o efeito pode ser representado como (=0) ou como vazio ou ainda como nada Entretanto

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o sentido desse vazio ou desse nada deve ser relativizado para cada situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo Na oposiccedilatildeo loacutegica significa contradiccedilatildeo (nihil negativum irrepresentabile) ou ausecircncia da possibilidade do pensamento A nosso ver este seria o caso do significado do natildeo-ser empregado por Parmecircnides onde localizamos a supressatildeo instantacircnea (anulaccedilatildeo ausecircncia absoluta) dos opostos Jaacute o nada ou o vazio da oposiccedilatildeo real eacute absolutamente representaacutevel Aqui eacute possiacutevel embora de maneira arbitraacuteria estabelecer os valores positivo e negativo dos elementos que se colocam na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo

5 concLusatildeo

Apoacutes oferecer alguns exemplos para o conceito de grandeza negativa na segunda seccedilatildeo do Ensaio Kant conduz suas consideraccedilotildees para o campo da filosofia que para ele deve se ocupar prioritariamente da metafiacutesica e cujo meacutetodo analiacutetico apresentado por ele em outro de seus textos desse periacuteodo40 jaacute fornece indiacutecios dos passos que daraacute no sentido de sua futura proposta mais amadurecida para uma teoria criacutetico-transcendental

Assim alerta Kant no Ensaio entendemos facilmente que algo natildeo seja se lhe carece a razatildeo positiva para sua existecircncia todavia temos dificuldades para entender como algo que efetivamente eacute deixa de ser41 isto eacute temos dificuldade em compreender o correto sentido de privaccedilatildeo O esclarecimento acerca dessa questatildeo eacute fundamental jaacute que o vir-a-ser isto eacute o deixar de ser como privaccedilatildeo eacute a maneira mais fundamental de entender o conceito de movimento Essa dificuldade em reconhecer o correto sentido de privaccedilatildeo eacute o que algumas vezes nos compele a confundi-la com a contradiccedilatildeo e por isso obter como resultado a negaccedilatildeo do movimento compreendendo-o erroneamente como gerador do absurdo

Assim sugere Kant se represento o Sol em minha imaginaccedilatildeo e se no instante seguinte deixo de ter presente essa representaccedilatildeo em minha mente isso natildeo significa que meu pensamento sobre o Sol tenha simplesmente desaparecido e se tornado um puro nada aniquilando-se na vacuidade de uma contradiccedilatildeo entre ser e natildeo-ser mas sim porque a representaccedilatildeo do sol foi suprimida por outra sorte qualquer de ideia que se impocircs com a intensidade

40KANT I Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In ______ Escritos Preacute-criacuteticos Trad Jair Barboza [et al] Satildeo Paulo UNESP 2005 p 116-117

41KANT opcit p 79

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suficiente para substituiacute-la parcial ou inteiramente segundo uma determinada relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo contingente ao espiacuterito

A simples negaccedilatildeo da representaccedilatildeo considerando que ela simplesmente anulou a si mesma deixando assim de existir nos remete para a situaccedilatildeo de um nada irrepresentaacutevel um impensaacutevel natildeo-ser como em Parmecircnides Jaacute na privaccedilatildeo existe uma interaccedilatildeo entre forccedilas opostas a qual natildeo aparece como contradiccedilatildeo uma vez que princiacutepios afirmativos opostos (representaccedilotildees opostas) coincidiriam sob a mesma forma do pensamento anulando assim o efeito de uma delas ou de ambas O resultado eacute a afirmaccedilatildeo de um ser que eacute tambeacutem natildeo-ser jaacute que a negatividade do natildeo-ser da representaccedilatildeo aqui eacute simplesmente relativa dada pela situccedilatildeo de oposiccedilatildeo A representaccedilatildeo arbitrariamente tomada como negativa natildeo eacute menos ser que aquela tomada como positiva A supressatildeo de uma pela outra natildeo se mostra como contradiccedilatildeo mas como a privaccedilatildeo

Eacute concebiacutevel assim pensar legitimamente o natildeo-ser da representaccedilatildeo desde que seja considerado como privaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel se falar com verdade em princiacutepios opostos e equivalentes e que produzem em seu encontro a afirmaccedilatildeo de algo como um nada Dessa maneira seja a1

a afirmaccedilatildeo (ser) de um determinado estado de coisas no mundo (ou de uma representaccedilatildeo de algo no mundo) e a2 o seu equivalente oposto (o natildeo-ser) temos que

a1 ndash a2 = 0

Arbitrariamente tomamos a2 como a representaccedilatildeo negativa contudo a negatividade aqui revela apenas a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre a1 e a2 e natildeo uma situaccedilatildeo absoluta de a2 Como grandezas equivalentes que se opotildeem o resultado (= 0) revela uma oposiccedilatildeo real natildeo uma contradiccedilatildeo Nem a1

e a2 podem ser ditas potecircncias contraditoacuterias nessa relaccedilatildeo visto que este (= 0) eacute a afirmaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo de um ser que eacute tambeacutem um natildeo-ser assim como o repouso eacute igualmente uma forma de natildeo-ser do movimento O pensamento que leva em conta os opostos eacute pois uma possibilidade real e mesmo necessaacuteria para a consideraccedilatildeo do movimento

Segundo a foacutermula de Demoacutecrito o natildeo-ser natildeo eacute mais nem menos que o ser Ora soacute podemos entender essa afirmaccedilatildeo de duas maneiras convergentes ou como afirmaccedilatildeo do mesmo estatuto ontoloacutegico para o ser e para o natildeo-ser ou como atribuiccedilatildeo da mesma funccedilatildeo causal (material) para ambos Nos dois casos o ser soacute eacute na presenccedila ou com a premissa do natildeo-ser e vice-versa E assim o natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser Estaacute claro que esse princiacutepio natildeo

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se ajusta sem qualquer intervenccedilatildeo agraves formulaccedilotildees de Parmecircnides Por esse desacordo eacute possiacutevel identificar no antigo atomismo uma negatividade do ser que natildeo engendra a vacuidade do pensamento Pelo contraacuterio o movimento do pensamento soacute eacute possiacutevel por meio dessa oposiccedilatildeo fundamental Em Platatildeo esse movimento do pensamento ganha o nome de dialeacutetica

Concluiremos este estudo com a seguinte afirmaccedilatildeo de Kant ldquoTodos os fundamentos reais do universo quando se somam todos que satildeo consonantes e se subtraem uns dos outros os que se opotildeem entre si datildeo um resultado igual a zerordquo42 Esse zero significa a afirmaccedilatildeo da efetividade do mundo Esse zero representa um repouso que nem por isso deixa de ser dinacircmico Assim esperamos ter aproximado o conteuacutedo do Ensaio com o pensamento daqueles filoacutesofos da natureza que se colocavam conformes a um princiacutepio universal sem negar a unidade do pensamento e do movimento do mundo De acordo com eles o mundo deve se ordenar segundo esses princiacutepios mutuamente opostos ser e natildeo-ser os quais estatildeo na origem desse repouso dinacircmico na exata medida da efetivaccedilatildeo de seus encontros

SANTOS Eberth Eleuterio dos Leucippus Democritus and Kant a reflection on the equivalence between being and non-being TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 38 n 2 p 71-94 MaioAgo 2015

ABSTRACT Initially we present the theory of Democritus and Leucippus whereby being is not more than the not-being (non-being) in contrast to Eleatic ideas about the necessary inexistence of the not-being This discussion leads us to the opposition between the whole (full) and the empty which will then be transposed into the opposition between being and nothingness (or not-being) Thus the opposition between whole and the empty is an opposition that moves to being and not-being Finally we will make an assessment of the Kantian pre-critical essay Attempt to introduce the concept of negative magnitude into philosophy in which we recognize a kind of opposition that as we believe would be interpreted as being in agreement with the position of Democritus and Leucippus regarding the ontological status of the not-being as an equivalent principle to the being understood here not as a mutual contradiction in a purely logical sense

KEYWORDS ancient atomism Eleatism ontology

referecircncias

ARISTOacuteTELES Da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo seguido de convite agrave filosofia Traduccedilatildeo de Renata Maria Pereira Cordeiro Satildeo Paulo Landy 2001

42 Ibid p 89

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______ Fiacutesica I ndash II Traduccedilatildeo de Lucas Angioni Campinas Editora da UNICAMP 2009

______ Metafiacutesica texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterio de Giovanni Reale Traduccedilatildeo de Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2005 3v

BARNES J Filoacutesofos preacute-socraacuteticos Traduccedilatildeo de Juacutelio Fischer 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

BORNHEIM G Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Cultrix 2000

_______ O que eacute metafiacutesica Traduccedilatildeo de Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

HEIDEGGER M Die Zeit des Weltbildes (1938) In ______ Gesamtausgabe Frankfurt Klostermann 87-88 (1977) Bd 5 Holzwege

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______ Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur neacutegative Traduccedilatildeo de Roger Kempf 2 eacuted Paris J Vrin 1972 (Bibliothegraveque de textes philosophiques)

______ Versuch den Begriff der negative Grossen in die Weltweisheit einzufuhres Neueste Aufl Graz Andreas Leikam 1797 Disponiacutevel em lt httpsarchiveorgstreamversuchdenbegri00kantgoogpagen43mode2upgt Acesso em 22 dez 2013

PARMENIDES Fragmentos sobre a natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

______ Da natureza Traduccedilatildeo de Jose Gabriel Trindade Santos (modificada pelo tradutor) Satildeo Paulo Loyola 2002

PLATAtildeO Filebo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ O sofista Traduccedilatildeo de Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Abril Cultural 1972

______ Parmecircnides Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos v VIII Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ Teeteto Traduccedilatildeo de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri Lisboa Calouste Gulbenkian 2010

______ Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Rodolfo Lopes Coimbra Universidade de Coimbra 201143

Recebido Received 07092014Aprovado Approved 10012015

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Eacute notoacuterio que os esclarecimentos prestados ao jovem Teeteto pelo Estrangeiro conduzem a um ldquoparriciacutediordquo22 significando uma espeacutecie de rompimento de Platatildeo com a henologia eleata ortodoxa Todavia tatildeo pouco esse rompimento significa a aceitaccedilatildeo da posiccedilatildeo atomista por Platatildeo23 No diaacutelogo Parmecircnides (137ac-166c) o Outro do Uno (o ser outro) eacute afirmado como uma necessidade no acircmbito da dialeacutetica platocircnica24 sem o qual a Doutrina das Ideias natildeo escaparia agraves dificuldades apontadas (130c-134e) e que satildeo decorrentes de uma ortodoxia henoloacutegica advindas do proacuteprio eleatismo

Contudo o objetivo desta raacutepida explanaccedilatildeo foi o de apenas tornar um pouco mais evidente a oposiccedilatildeo entre o pluralismo ontoloacutegico e material de Demoacutecrito (como se acredita ser tambeacutem o de Leucipo) e o monismo de Parmecircnides Nas seccedilotildees subsequentes defenderemos que essa oposiccedilatildeo fundamental entre o ser e o vazio natildeo implica uma contradiccedilatildeo (loacutegica) como no eleatismo mas sim uma forma de oposiccedilatildeo jaacute percebida por Platatildeo como necessaacuteria (por exemplo no Sofista 256d - 259d) e que poderiacuteamos interpretar como sendo tambeacutem aquela apresentada por Kant e denominada por ele como oposiccedilatildeo real E para natildeo nos afastarmos desse intuito prossigamos nestas ponderaccedilotildees

3 equivaLecircncia entre Ser e natildeo-Ser

Na seccedilatildeo precedente refletimos sobre algumas das consideraccedilotildees mais centrais do eleatismo basicamente aquelas que afirmam o ser como necessariamente um e imoacutevel25 Tambeacutem tivemos a oportunidade de acompanhar como Demoacutecrito ao desenvolver a filosofia de seu mestre Leucipo eacute capaz de

22Ibid p 168 (241a-242b)23Apesar de apresentar pontos de contato com o atomismo de Demoacutecrito e Leucipo e com certos

aspectos do eleatismo ortodoxo a visatildeo cosmogocircnica exposta por Platatildeo no Timeu se distancia de ambos ao assumir a dialeacutetica como pressuposto metodoloacutegico e epistemoloacutegico Por exemplo quando da descriccedilatildeo da dinacircmica dos elementos de um ponto de vista puramente dialeacutetico (56c-61c) ou quando da apresentaccedilatildeo do terceiro princiacutepio que soacute ldquo[] acessiacutevel por meio de um certo raciociacutenio bastardo (logismocirc tini nothocirc) sem recurso aos sentidos a custo crediacutevel (52a-b) PLATAtildeO Timeu-Criacutetias op cit p 136-155

24Cf tambeacutem PLATAtildeO Sofista (253d - 254b) op cit p 184-18525 Aleacutem dessa definiccedilatildeo essencial do ser Parmecircnides especialmente no fragmento B8 fornece

uma seacuterie de outros atributos que poderiacuteamos considerar como derivados ou secundaacuterios como completude (plenitude) inteireza esfericidade indestrutibilidade limite externo compacidade homogeneidade continuidade que de certo modo podem ser reduzidos uns aos outros e referidos agravequeles dois que interpretamos como essenciais

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defender a proposiccedilatildeo ldquoO nada existe tanto quanto o lsquoalguma coisarsquordquo26 Assim na antiga escola atomista o movimento eacute aceito e justificado na medida em que admite o vazio (o natildeo-ser) pelo qual se opera o mecanismo da mudanccedila da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo no acircmbito do composto atraveacutes da junccedilatildeo e da dissoluccedilatildeo de suas partes elementares Tomando igualmente o vazio como princiacutepio os atomistas antigos satildeo capazes de oferecer uma resposta ao problema do movimento e do vir-a-ser problema este colocado pelo menos desde Parmecircnides

Dessa forma divergem as teses baacutesicas do eleatismo e do atomismo De um lado fica estabelecida a necessidade da postulaccedilatildeo do ser uno e pleno de maneira exclusiva e solitaacuteria excluindo por essa via a possibilidade de uma justificaccedilatildeo do vir-a-ser de outro encontramos a postulaccedilatildeo do vazio colocado como oposiccedilatildeo ao ser mas tambeacutem como seu equivalente formal e material servindo como canal comunicante sem o qual o movimento proacuteprio da natureza natildeo seria concebiacutevel ou racionalizaacutevel

Essa disputa entre escolas ou doutrinas aponta para uma oposiccedilatildeo mais fundamental trata-se da oposiccedilatildeo entre o ser e o natildeo-ser ou entre o pleno e o vazio No eleatismo o ser apresenta anterioridade loacutegica e ontoloacutegica Jaacute na filosofia da natureza de Demoacutecrito e Leucipo o ser e o natildeo-ser devem ser colocados lado a lado o que permite a essa filosofia se abrir para o vir-a-ser ao aceitar desde o iniacutecio essa radical alteridade do outro do ser como princiacutepio equivalente ao ser

A afirmaccedilatildeo da multiplicidade e do movimento pressupotildeem desde o iniacutecio a alteridade o outro do ser Isso parece ter ficado bastante evidente para Platatildeo que no Parmecircnides (130c-134e) apoacutes o momento em que o personagem que daacute nome ao Diaacutelogo ter elencado uma seacuterie de argumentos27 contra a Doutrina das Ideias apresenta uma revisatildeo da henologia eleaacutetica posicionando o Outro do Uno junto ao Uno como alteridade necessaacuteria para o equiliacutebrio do jogo dialeacutetico somente assim alcanccedilando ecircxito em tentar salvar essa doutrina dos ferozes ataques lanccedilados contra ela28 E no Filebo tambeacutem 26 DEMOacuteCRITO fragmento 156 In BORNHEIN op cit p 113 27 Sete no total Cf PLATAtildeO Parmecircnides op cit 130c-134e28 A estrutura dessa investigaccedilatildeo dialeacutetica no Parmecircnides pode ser concentrada nas oito consequecircncias

obtidas da anaacutelise da protoideia do uno Por meio do meacutetodo dialeacutetico satildeo obtidos resultados afirmativos e negativos tanto para a existecircncia como para a negaccedilatildeo da existecircncia do uno Esses resultados parecem se equilibrar gerando a impressatildeo de um resultado aparentemente nulo mas que ao final trazem resultados positivos seja para uma revisatildeo do eleatismo seja para uma sofisticaccedilatildeo da Teoria das Ideias Para uma anaacutelise desse assunto cf REALE G Para uma nova interpretaccedilatildeo de

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encontramos essa disposiccedilatildeo dualista atraveacutes da apresentaccedilatildeo da teoria dos princiacutepios formadores para as proacuteprias ideias Segundo essa teoria conhecida como Protologia Platocircnica29 as ideias as formas puras do mundo inteligiacutevel nasceriam do encontro e da uniatildeo do limite identificado com o Uno e do ilimite identificado com o muacuteltiplo infinito (Filebo 16d-e 23d-26d) Limite e ilimite satildeo tomados como princiacutepios absolutos poreacutem geradores das ideias apenas quando relativizados um pelo outro

Guardadas as respectivas diferenccedilas tanto em Platatildeo como nos atomistas fica estabelecida uma equivalecircncia entre ser e natildeo-ser Essa negaccedilatildeo do ser eacute concebida como o Outro-do-ser (oposto ao ser a sua alteridade) O muacuteltiplo eacute na sua essecircncia uacuteltima o composto formado pelo ser e pelo natildeo-ser que como vimos acima eacute entendido como vazio pelos atomistas A partir desse ponto de vista a natureza moacutevel apresenta-se como um tipo de extensatildeo discreta fundada em um dualismo ontoloacutegico no qual encontramos o mesmo (a unidade o limite a identidade o aacutetomo o ser) e o outro (a diferenccedila a alteridade o ilimite o vazio o natildeo-ser)

Em suma o movimento soacute pode ser assumido na medida em que o muacuteltiplo puder ser concebido como o composto formado pelo ser e pelo outro do ser ambos conectados pela relaccedilatildeo de vizinhanccedila Essa vizinhanccedila eacute definida como uma equivalecircncia ontoloacutegica entre o vazio (nadameacuteden) ao lado do ser o que garantiria a separabilidade atocircmica (divisibilidade finita) sem a qual o composto natildeo seria concebiacutevel Do contraacuterio natildeo havendo o vazio soacute haveria o ser-uno unidade simples homogecircnea indiferenciada e tambeacutem imoacutevel jaacute que sempre plena Nesse caso nenhuma vizinhanccedila poderia ser constatada ou afirmada uma vez que a vizinhanccedila pressupotildee a dualidade de elementos O movimento estaria necessariamente vinculado ao dualismo ontoloacutegico e excluiacutedo do monismo pois neste natildeo haveria lugar para a alteridade ou vizinhanccedila

Na medida em que o ser e o vazio satildeo considerados conceitos fundantes no atomismo antigo a relaccedilatildeo de vizinhanccedila fica estabelecida nessa diferenciaccedilatildeo originaacuteria Assim o vazio (o nada) se coloca imediatamente em uma relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o ser no exato momento em que eacute compreendido como a sua radical alteridade E paradoxalmente eacute somente nesse sentido que o vazio eacute a saber na medida mesma em que ele natildeo eacute pleno E a reciacuteproca tambeacutem eacute

Platatildeo Releitura da metafiacutesica dos grandes diaacutelogos agrave luz das ldquoDoutrinas natildeo-escritasrdquo Satildeo Paulo Loyola 1991

29 Ibid p 164-165

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assim afirmada Como o vazio eacute o proacuteprio ser-outro porque instantaneamente se coloca nessa relaccedilatildeo de vizinhanccedila originaacuteria e imediata com o ser o ser tambeacutem se coloca nessa relaccedilatildeo primitiva com o vazio e somente neste sentido o ser eacute isto eacute na medida em que natildeo eacute vazio Platatildeo parece se aproximar dessa posiccedilatildeo atomista quando no Sofista introduz a seguinte indagaccedilatildeo atraveacutes das palavras do Estrangeiro de Eleia ldquoAssim pois estaacute claro que o movimento eacute realmente natildeo ser ainda que seja ser na medida em que participa do serrdquo E prossegue

Segue-se pois necessariamente que haacute um ser do natildeo-ser natildeo somente no movimento mas em toda a seacuterie dos gecircneros pois na verdade em todos eles a natureza do outro faz cada um deles outro que natildeo o ser e por isso mesmo natildeo-ser Assim universalmente por essa relaccedilatildeo chamaremos a todos corretamente natildeo-ser e ao contraacuterio pelo fato de eles participarem do ser diremos que satildeo seres30

Por esse ponto de vista o ser tambeacutem eacute definido em funccedilatildeo de sua relaccedilatildeo com o natildeo-ser que aqui alinhamos com o vazio como o outro do pleno Desse modo essa subordinaccedilatildeo do ser em relaccedilatildeo ao natildeo-ser (o vazio) ou do natildeo-ser (vazio) em relaccedilatildeo ao ser redunda em uma relaccedilatildeo de simetria entre ambos Como resultado temos que natildeo haacute um sentido uacutenico ou prioritaacuterio no condicionamento ontocausal entre ser e vazio A conclusatildeo eacute que ao assumir o movimento como um fato da natureza ou como princiacutepio o ser deixa de apresentar prioridade ontoloacutegica e causal

Nesse sentido ser e natildeo-ser perfazem de maneira equivalente as condiccedilotildees necessaacuterias para o movimento E ainda que a oposiccedilatildeo radical seja o elo constituinte desses princiacutepios originaacuterios ela natildeo implica a anulaccedilatildeo muacutetua de um pelo outro quando simultaneamente justapostos no pensamento assim como os eleatas tentaram mostrar atraveacutes dos paradoxos associados agrave divisibilidade e ao movimento31 Pelo contraacuterio a oposiccedilatildeo radical entre pleno e vazio entre ser e natildeo-ser eacute a proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade do movimento e por isso da efetividade do real Passa a valer por conseguinte nesse caso a necessidade da bicondicionalidade ontocausal entre ser e natildeo-ser radicada na relaccedilatildeo de vizinhanccedila entre ambos na constituiccedilatildeo do real como efetiva e cambiante multiplicidade

30PLATAtildeO Sofista (256e) opcit p 18931Cf ZENAtildeO In BORHEIM op cit p 60-63

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Sumariando as teses de Demoacutecrito e Leucipo temos que

1 O ser eacute quando colocado numa relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o vazio

2 O vazio eacute prefigura junto ao pleno como condiccedilatildeo necessaacuteria para o movimento

3 As teses anteriores se reduzem agrave maacutexima O natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser

4 uma Leitura De Kant a partir Das consiDeraccedilotildees anteriores

Passamos agora a considerar de que form eacute possiacutevel obter por meio do texto Ensaio para introduzir em filosofia o conceito de grandeza negativa32 um novo focirclego para a discussatildeo precedente33 Assim ao analisarmos esse texto manteremos sob nosso olhar aquela oposiccedilatildeo radical e fundamental acima apontada entre ser e natildeo-ser para tentar entendecirc-la atraveacutes daquilo que Kant chama ora de oposiccedilatildeo real ora de oposiccedilatildeo loacutegica sendo a primeira o tipo de oposiccedilatildeoequivalecircncia que relacionaremos com o atomismo antigo e a segunda aquilo que identificaremos como a oposiccedilatildeocontradiccedilatildeo denunciada nas formulaccedilotildees do eleatismo

No prefaacutecio ao Ensaio Kant deixa claro que a filosofia pode se utilizar das ciecircncias naturais e exatas seja copiando seus meacutetodos seja aplicando suas proposiccedilotildees deslocando-as para um novo contexto34 Procederaacute entatildeo com a tentativa de introduzir no seio da filosofia a ideia de grandeza negativa recurso jaacute empregado em matemaacutetica e fiacutesica

Eacute preciso distinguir o significado da proposiccedilatildeo grandeza negativa daquele outro de negaccedilatildeo de uma grandeza35 Uma grandeza negativa eacute a afirmaccedilatildeo de uma grandeza que simplesmente se opotildee a uma outra e que portanto revela uma positividade colocada numa relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo a outra positividade Jaacute na expressatildeo negaccedilatildeo de uma grandeza a grandeza eacute tomada

32 Com o tiacutetulo Versuch den Begriff der negativen Grossen in die Weltweisheit einzufuumlhren essa obra foi publicada pela primeira vez em 1763 Doravante iremos nos referir a ela de maneira abreviada apenas por Ensaio

33Ver nota 134No ano seguinte agrave publicaccedilatildeo do Ensaio essa posiccedilatildeo a respeito da filosofia e das ciecircncias eacute relativizada

com a publicaccedilatildeo de um texto intitulado ldquoInvestigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moralrdquo In KANT Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In______ Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 101-140

35 KANT Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia Ibid p 56

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isoladamente sem qualquer relaccedilatildeo com outra e por isso nenhuma oposiccedilatildeo eacute considerada a partir dela Aqui Kant toma para si a ideia de oposiccedilatildeo que estaacute na raiacutez do conceito de movimento ou de forccedila na Fiacutesica

Nesse sentido a negatividade da formulaccedilatildeo grandeza negativa deve ser interpretada como a projeccedilatildeo da oposiccedilatildeo sobre uma das grandezas polares da relaccedilatildeo que se estabelece entre forccedilas no mundo daiacute a expressatildeo oposiccedilatildeo real Tomemos o exemplo de Kant segundo o qual a atraccedilatildeo negativa que um corpo exerce sobre outro seraacute erroneamente interpretada se for compreendida como a negaccedilatildeo da forccedila de atraccedilatildeo por sua vez seraacute acertadamente compreendida se for tomada como uma grandeza negativa a forccedila de repulsatildeo36 Dessa maneira ela soacute poderaacute ser considerada como negativa se tomada relativamente a outra grandeza a atraccedilatildeo do contraacuterio ela eacute positiva Ou seja a negatividade ou a positividade das grandezas soacute pode ser estabelecida de maneira relativa isto eacute dada a situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre elas No exemplo considerado se o resultado da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre as duas forccedilas de atraccedilatildeo (positiva e negativa) for o repouso entatildeo temos a privaccedilatildeo (nihil privativum representabile) do movimento do objeto sobre o qual essas forccedilas estatildeo agindo e atraveacutes do qual elas puderam se colocar em confronto

Nesse caso eacute necessaacuterio natildeo tomar o efeito (repousoausecircncia do movimento do objeto) pela causa (o equiliacutebrio entre as forccedilas de atraccedilatildeo positiva e negativa) O resultado desse desacerto do juiacutezo seria confundir atraccedilatildeo negativa com ausecircncia de atraccedilatildeo ou a grandeza negativa com negaccedilatildeo de uma grandeza

Consideremos juntamente com Kant o conceito de grandeza negativa em geral para em seguida determinar os seus significados especiacuteficos Levando-se em conta que a chave para predicarmos as grandezas eacute a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo37 entatildeo temos que verificar as duas maneiras por meio das quais podemos considerar essa noccedilatildeo 1ordm como oposiccedilatildeo loacutegica 2ordm como oposiccedilatildeo real Assim Kant estabelece dois niacuteveis de anaacutelise para a apreciaccedilatildeo da noccedilatildeo de oposiccedilatildeo aquele da loacutegica e aquele da natureza Com isso ele pretende distinguir as respectivas funccedilotildees causais da oposiccedilatildeo considerada em cada um desses niacuteveis

Na oposiccedilatildeo loacutegica natildeo resta nenhuma consequecircncia da conexatildeo entre a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo nihil negativum irrepresentabile Dadas duas

36Ibid p 5637Ibid p 57

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afirmaccedilotildees absolutamente contraacuterias o pensamento se surpreende na situaccedilatildeo de natildeo poder prosseguir com seu trabalho obediente como eacute aos princiacutepios de contradiccedilatildeo e terceiro excluiacutedo (tertium non datur) Nesse sentido a contradiccedilatildeo que eacute como entendemos a oposiccedilatildeo loacutegica gera um tipo de vacuidade do pensamento um nada impensaacutevel um absoluto vazio que eacute como aquele nada asseverado por Parmecircnides ldquoNecessaacuterio eacute dizer e pensar que soacute o ser eacute pois o ser eacute e o nada ao contraacuterio nada eacute []rdquo38

Se pensarmos nos estados de movimento e de repouso referidos ao mesmo objeto e abstraindo-se o tempo encontraremos na base mais elementar desses estados contraacuterios os conceitos de ser e de natildeo-ser tidos como opostos no sentido exclusivamente loacutegico (contraacuterios) obtendo como resultado a contradiccedilatildeo e a impossibilidade do pensamento Nesse caso movimento e repouso deixaram de ser grandezas ou estados de coisas e se tornaram puras abstraccedilotildees Logo o natildeo-ser da negatividade natildeo apresenta nenhum tipo de positividade Isto eacute o natildeo-ser eacute absolutamente negativo e eacute tomado como logicamente dependente da positividade do ser como sua pura negaccedilatildeo Por sua vez o ser eacute tomado como conceito originaacuterio e absoluto cuja positividade independe de qualquer relaccedilatildeo apresentando assim precedecircncia loacutegica e exclusividade ontoloacutegica sobre o natildeo-ser

Por outro lado natildeo eacute possiacutevel afirmar que o ser ou o natildeo-ser possuam qualquer prevalecircncia um sobre o outro qualquer antecedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica quando considerados como grandezas no mundo

O movimento eacute tomado como algo positivo na medida em que eacute a efetivaccedilatildeo de um estado de coisas ldquoxrdquo no mundo por sua vez o repouso eacute tambeacutem uma positividade na medida em que significa um outro estado de coisas ldquoyrdquo oposto a ldquoxrdquo A negatividade nessa oposiccedilatildeo recai arbitrariamente sobre ldquoxrdquo ou ldquoyrdquo por meio de uma proposiccedilatildeo que estabelece a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo A negatividade recairaacute sobre ldquoxrdquo ou sobre ldquoyrdquo de acordo com a forma assumida pela proposiccedilatildeo que iraacute fazer variar a negatividade (ou a positividade) em funccedilatildeo da finalidade enfaacutetica que se queira dar a ldquoxrdquo ou a ldquoyrdquo

Somente quando se diz que um mesmo corpo estaacute e natildeo estaacute a um soacute tempo e na mesma relaccedilatildeo em repouso ou em movimento eacute que essa vacuidade no pensar aparece

38ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν[]rdquo PARMENIDES fragmento B6 In BORHEIM op cit p 55

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Um corpo em movimento eacute algo um corpo que natildeo estaacute em movimento eacute tambeacutem algo (cogitabile) no entanto um corpo que ao mesmo tempo e justamente sob a mesma relaccedilatildeo estivesse e natildeo estivesse em movimento eacute absolutamente nada39

A expressatildeo a um soacute tempo significa que o corpo eacute colocado na situaccedilatildeo em que se abstrai a seacuterie contiacutenua do tempo Isso quer dizer que uma uacutenica porccedilatildeo elementar do tempo foi tomada e isolada das demais Todavia uma porccedilatildeo assim isolada do tempo tomada em sentido absoluto natildeo eacute tempo algum Uma vez que a seacuterie de tempo eacute contiacutenua ou se toma uma porccedilatildeo do tempo que por sua vez conteacutem em si uma nova seacuterie temporal infinita (nesse caso a parte eacute igual ao todo) ou natildeo se toma tempo algum Em outras palavras a expressatildeo a um soacute tempo natildeo tem aqui nenhum significado temporal positivo mas apenas negativo significando fora do tempo

Assim procedeu Parmecircnides ao abstrair o tempo para todas as formas proposicionais vaacutelidas reduzindo toda forma de pensamento a uma expressatildeo proposicional afirmativa atemporal onde a positividade eacute sempre absoluta e por isso possui prioridade loacutegica e ontoloacutegica sobre a negatividade Nesse caso toda oposiccedilatildeo eacute sempre contradiccedilatildeo

Jaacute na oposiccedilatildeo real encontramos uma forma de pensamento que natildeo subtrai a seacuterie do tempo Nesse caso a oposiccedilatildeo real apresenta uma estrutura a qual pode ser esquematicamente apresentada como (+A ndashA = B) onde (B = 0) ou (B ne 0) e onde os elementos integrantes dessa operaccedilatildeo (+A) e (ndashA) natildeo deixam de ser pela atribuiccedilatildeo de uma negatividade meramente relativa mesmo quando (B=0) sendo ambos justamente a causa eficiente desse privatio

O (B = 0) como privatio natildeo eacute mera nulidade devendo ser tratado como a realizaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo resultante de um encontro entre potecircncias equivalentes mas opostas uma a outra Aqui natildeo existe contradiccedilatildeo em dizer que se trata de potecircncias equivalentes-opostas pois nesse caso tanto a negatividade como a positividade satildeo relativas e natildeo absolutas Natildeo existe autonomia ontoloacutegica da positividade nem da negatividade Trata-se aqui de predicados e natildeo de seres

Por sua vez o estado de coisas representado por (B = 0) esta efetividade eacute novamente um natildeo-ser poreacutem apenas em relaccedilatildeo a outro estado de coisas a que ele se opotildee Assim este (0) eacute um algo que eacute predicado a algo inserido na 39 Ibidem p 58 grifos nossos

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seacuterie contiacutenua do tempo e que eacute designado como privaccedilatildeo Apenas quando se abstrai da seacuterie do tempo eacute que x = 0 representa um nada absoluto Nesse caso o que eacute afirmado eacute inteira e instantaneamente anulado pelo que eacute negado e vice-versa pois a positividade e a negatividade do que eacute afirmado e negado se referem aos proacuteprios seres

Jaacute na oposiccedilatildeo real ainda que duas condiccedilotildees contraacuterias atuem simultaneamente sobre o mesmo objeto a contradiccedilatildeo (vacuidade do pensamento) natildeo eacute o resultado porque a expressatildeo simultaneamente (ausecircncia de sucessatildeo temporal) eacute aqui relativizada Se pensarmos na destruiccedilatildeo de um corpo esse movimento seraacute oposto ao de sua criaccedilatildeo No entanto tais movimentos natildeo satildeo contraditoacuterios um ao outro quando pensados juntos Natildeo inferimos uma vacuidade no pensamento da conjunccedilatildeo simultacircnea desses dois eventos desde que sejam pensados como eventos e portanto diluiacutedos no contiacutenuo temporal A contiacutenua transformaccedilatildeo (movimento) dos corpos vivos por exemplo tem por base um confronto entre a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo celular atuando nos organismos vivos quer dizer um estado de coisas manifestamente expresso como forccedilas antagocircnicas simultaneamente presentes no mesmo objeto No niacutevel celular essa simultaneidade eacute relativizada enquanto algumas ceacutelulas satildeo criadas outras satildeo destruiacutedas Essa relativizaccedilatildeo da simultaneidade natildeo exclui um efetivo antagonismo seja em que niacutevel for onde a positividade ou a negatividade satildeo arbitrariamente atribuiacutedas a um dos polos da oposiccedilatildeo natildeo havendo qualquer precedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica de um polo sobre o outro A geraccedilatildeo eacute negativa se a destruiccedilatildeo for tomada como positiva e vice-versa

Na dinacircmica uma forccedila motriz eacute dita positiva somente quando oposta a outra dita negativa a resistecircncia Ainda que opostas uma a outra forccedilas com vetores contraacuterios desse encontro natildeo se infere um absurdo como uma contradiccedilatildeo mas um estado de coisas real de oposiccedilatildeo de contrariedade O resultado pode ser tanto o repouso no caso das forccedilas opostas possuiacuterem a mesma potecircncia (serem equivalentes) ou o movimento que apresenta o mesmo vetor de uma das forccedilas conflitantes Em ambos os casos o resultante dessa oposiccedilatildeo eacute algo que pode ser efetivamente afirmado sobre o mundo e natildeo um vazio ou um nada irrepresentaacutevel Ainda que nesse caso o repouso possa ser representado por (B = 0) este (B = 0) natildeo deve ser entendido como uma indeterminaccedilatildeo mas sim como privaccedilatildeo Logo percebemos que a contradiccedilatildeo natildeo eacute aplicaacutevel a estados de coisas imersos na seacuterie contiacutenua do tempo

Tanto na oposiccedilatildeo loacutegica como na oposiccedilatildeo real o efeito pode ser representado como (=0) ou como vazio ou ainda como nada Entretanto

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o sentido desse vazio ou desse nada deve ser relativizado para cada situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo Na oposiccedilatildeo loacutegica significa contradiccedilatildeo (nihil negativum irrepresentabile) ou ausecircncia da possibilidade do pensamento A nosso ver este seria o caso do significado do natildeo-ser empregado por Parmecircnides onde localizamos a supressatildeo instantacircnea (anulaccedilatildeo ausecircncia absoluta) dos opostos Jaacute o nada ou o vazio da oposiccedilatildeo real eacute absolutamente representaacutevel Aqui eacute possiacutevel embora de maneira arbitraacuteria estabelecer os valores positivo e negativo dos elementos que se colocam na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo

5 concLusatildeo

Apoacutes oferecer alguns exemplos para o conceito de grandeza negativa na segunda seccedilatildeo do Ensaio Kant conduz suas consideraccedilotildees para o campo da filosofia que para ele deve se ocupar prioritariamente da metafiacutesica e cujo meacutetodo analiacutetico apresentado por ele em outro de seus textos desse periacuteodo40 jaacute fornece indiacutecios dos passos que daraacute no sentido de sua futura proposta mais amadurecida para uma teoria criacutetico-transcendental

Assim alerta Kant no Ensaio entendemos facilmente que algo natildeo seja se lhe carece a razatildeo positiva para sua existecircncia todavia temos dificuldades para entender como algo que efetivamente eacute deixa de ser41 isto eacute temos dificuldade em compreender o correto sentido de privaccedilatildeo O esclarecimento acerca dessa questatildeo eacute fundamental jaacute que o vir-a-ser isto eacute o deixar de ser como privaccedilatildeo eacute a maneira mais fundamental de entender o conceito de movimento Essa dificuldade em reconhecer o correto sentido de privaccedilatildeo eacute o que algumas vezes nos compele a confundi-la com a contradiccedilatildeo e por isso obter como resultado a negaccedilatildeo do movimento compreendendo-o erroneamente como gerador do absurdo

Assim sugere Kant se represento o Sol em minha imaginaccedilatildeo e se no instante seguinte deixo de ter presente essa representaccedilatildeo em minha mente isso natildeo significa que meu pensamento sobre o Sol tenha simplesmente desaparecido e se tornado um puro nada aniquilando-se na vacuidade de uma contradiccedilatildeo entre ser e natildeo-ser mas sim porque a representaccedilatildeo do sol foi suprimida por outra sorte qualquer de ideia que se impocircs com a intensidade

40KANT I Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In ______ Escritos Preacute-criacuteticos Trad Jair Barboza [et al] Satildeo Paulo UNESP 2005 p 116-117

41KANT opcit p 79

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suficiente para substituiacute-la parcial ou inteiramente segundo uma determinada relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo contingente ao espiacuterito

A simples negaccedilatildeo da representaccedilatildeo considerando que ela simplesmente anulou a si mesma deixando assim de existir nos remete para a situaccedilatildeo de um nada irrepresentaacutevel um impensaacutevel natildeo-ser como em Parmecircnides Jaacute na privaccedilatildeo existe uma interaccedilatildeo entre forccedilas opostas a qual natildeo aparece como contradiccedilatildeo uma vez que princiacutepios afirmativos opostos (representaccedilotildees opostas) coincidiriam sob a mesma forma do pensamento anulando assim o efeito de uma delas ou de ambas O resultado eacute a afirmaccedilatildeo de um ser que eacute tambeacutem natildeo-ser jaacute que a negatividade do natildeo-ser da representaccedilatildeo aqui eacute simplesmente relativa dada pela situccedilatildeo de oposiccedilatildeo A representaccedilatildeo arbitrariamente tomada como negativa natildeo eacute menos ser que aquela tomada como positiva A supressatildeo de uma pela outra natildeo se mostra como contradiccedilatildeo mas como a privaccedilatildeo

Eacute concebiacutevel assim pensar legitimamente o natildeo-ser da representaccedilatildeo desde que seja considerado como privaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel se falar com verdade em princiacutepios opostos e equivalentes e que produzem em seu encontro a afirmaccedilatildeo de algo como um nada Dessa maneira seja a1

a afirmaccedilatildeo (ser) de um determinado estado de coisas no mundo (ou de uma representaccedilatildeo de algo no mundo) e a2 o seu equivalente oposto (o natildeo-ser) temos que

a1 ndash a2 = 0

Arbitrariamente tomamos a2 como a representaccedilatildeo negativa contudo a negatividade aqui revela apenas a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre a1 e a2 e natildeo uma situaccedilatildeo absoluta de a2 Como grandezas equivalentes que se opotildeem o resultado (= 0) revela uma oposiccedilatildeo real natildeo uma contradiccedilatildeo Nem a1

e a2 podem ser ditas potecircncias contraditoacuterias nessa relaccedilatildeo visto que este (= 0) eacute a afirmaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo de um ser que eacute tambeacutem um natildeo-ser assim como o repouso eacute igualmente uma forma de natildeo-ser do movimento O pensamento que leva em conta os opostos eacute pois uma possibilidade real e mesmo necessaacuteria para a consideraccedilatildeo do movimento

Segundo a foacutermula de Demoacutecrito o natildeo-ser natildeo eacute mais nem menos que o ser Ora soacute podemos entender essa afirmaccedilatildeo de duas maneiras convergentes ou como afirmaccedilatildeo do mesmo estatuto ontoloacutegico para o ser e para o natildeo-ser ou como atribuiccedilatildeo da mesma funccedilatildeo causal (material) para ambos Nos dois casos o ser soacute eacute na presenccedila ou com a premissa do natildeo-ser e vice-versa E assim o natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser Estaacute claro que esse princiacutepio natildeo

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se ajusta sem qualquer intervenccedilatildeo agraves formulaccedilotildees de Parmecircnides Por esse desacordo eacute possiacutevel identificar no antigo atomismo uma negatividade do ser que natildeo engendra a vacuidade do pensamento Pelo contraacuterio o movimento do pensamento soacute eacute possiacutevel por meio dessa oposiccedilatildeo fundamental Em Platatildeo esse movimento do pensamento ganha o nome de dialeacutetica

Concluiremos este estudo com a seguinte afirmaccedilatildeo de Kant ldquoTodos os fundamentos reais do universo quando se somam todos que satildeo consonantes e se subtraem uns dos outros os que se opotildeem entre si datildeo um resultado igual a zerordquo42 Esse zero significa a afirmaccedilatildeo da efetividade do mundo Esse zero representa um repouso que nem por isso deixa de ser dinacircmico Assim esperamos ter aproximado o conteuacutedo do Ensaio com o pensamento daqueles filoacutesofos da natureza que se colocavam conformes a um princiacutepio universal sem negar a unidade do pensamento e do movimento do mundo De acordo com eles o mundo deve se ordenar segundo esses princiacutepios mutuamente opostos ser e natildeo-ser os quais estatildeo na origem desse repouso dinacircmico na exata medida da efetivaccedilatildeo de seus encontros

SANTOS Eberth Eleuterio dos Leucippus Democritus and Kant a reflection on the equivalence between being and non-being TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 38 n 2 p 71-94 MaioAgo 2015

ABSTRACT Initially we present the theory of Democritus and Leucippus whereby being is not more than the not-being (non-being) in contrast to Eleatic ideas about the necessary inexistence of the not-being This discussion leads us to the opposition between the whole (full) and the empty which will then be transposed into the opposition between being and nothingness (or not-being) Thus the opposition between whole and the empty is an opposition that moves to being and not-being Finally we will make an assessment of the Kantian pre-critical essay Attempt to introduce the concept of negative magnitude into philosophy in which we recognize a kind of opposition that as we believe would be interpreted as being in agreement with the position of Democritus and Leucippus regarding the ontological status of the not-being as an equivalent principle to the being understood here not as a mutual contradiction in a purely logical sense

KEYWORDS ancient atomism Eleatism ontology

referecircncias

ARISTOacuteTELES Da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo seguido de convite agrave filosofia Traduccedilatildeo de Renata Maria Pereira Cordeiro Satildeo Paulo Landy 2001

42 Ibid p 89

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______ Fiacutesica I ndash II Traduccedilatildeo de Lucas Angioni Campinas Editora da UNICAMP 2009

______ Metafiacutesica texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterio de Giovanni Reale Traduccedilatildeo de Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2005 3v

BARNES J Filoacutesofos preacute-socraacuteticos Traduccedilatildeo de Juacutelio Fischer 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

BORNHEIM G Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Cultrix 2000

_______ O que eacute metafiacutesica Traduccedilatildeo de Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

HEIDEGGER M Die Zeit des Weltbildes (1938) In ______ Gesamtausgabe Frankfurt Klostermann 87-88 (1977) Bd 5 Holzwege

KANT I Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia In ______ Escritos preacute-criacuteticos Traduccedilatildeo de Viniacutecius de Figueiredo e Jair Barbosa Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 51-99

______ Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur neacutegative Traduccedilatildeo de Roger Kempf 2 eacuted Paris J Vrin 1972 (Bibliothegraveque de textes philosophiques)

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PARMENIDES Fragmentos sobre a natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

______ Da natureza Traduccedilatildeo de Jose Gabriel Trindade Santos (modificada pelo tradutor) Satildeo Paulo Loyola 2002

PLATAtildeO Filebo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ O sofista Traduccedilatildeo de Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Abril Cultural 1972

______ Parmecircnides Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos v VIII Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ Teeteto Traduccedilatildeo de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri Lisboa Calouste Gulbenkian 2010

______ Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Rodolfo Lopes Coimbra Universidade de Coimbra 201143

Recebido Received 07092014Aprovado Approved 10012015

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defender a proposiccedilatildeo ldquoO nada existe tanto quanto o lsquoalguma coisarsquordquo26 Assim na antiga escola atomista o movimento eacute aceito e justificado na medida em que admite o vazio (o natildeo-ser) pelo qual se opera o mecanismo da mudanccedila da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo no acircmbito do composto atraveacutes da junccedilatildeo e da dissoluccedilatildeo de suas partes elementares Tomando igualmente o vazio como princiacutepio os atomistas antigos satildeo capazes de oferecer uma resposta ao problema do movimento e do vir-a-ser problema este colocado pelo menos desde Parmecircnides

Dessa forma divergem as teses baacutesicas do eleatismo e do atomismo De um lado fica estabelecida a necessidade da postulaccedilatildeo do ser uno e pleno de maneira exclusiva e solitaacuteria excluindo por essa via a possibilidade de uma justificaccedilatildeo do vir-a-ser de outro encontramos a postulaccedilatildeo do vazio colocado como oposiccedilatildeo ao ser mas tambeacutem como seu equivalente formal e material servindo como canal comunicante sem o qual o movimento proacuteprio da natureza natildeo seria concebiacutevel ou racionalizaacutevel

Essa disputa entre escolas ou doutrinas aponta para uma oposiccedilatildeo mais fundamental trata-se da oposiccedilatildeo entre o ser e o natildeo-ser ou entre o pleno e o vazio No eleatismo o ser apresenta anterioridade loacutegica e ontoloacutegica Jaacute na filosofia da natureza de Demoacutecrito e Leucipo o ser e o natildeo-ser devem ser colocados lado a lado o que permite a essa filosofia se abrir para o vir-a-ser ao aceitar desde o iniacutecio essa radical alteridade do outro do ser como princiacutepio equivalente ao ser

A afirmaccedilatildeo da multiplicidade e do movimento pressupotildeem desde o iniacutecio a alteridade o outro do ser Isso parece ter ficado bastante evidente para Platatildeo que no Parmecircnides (130c-134e) apoacutes o momento em que o personagem que daacute nome ao Diaacutelogo ter elencado uma seacuterie de argumentos27 contra a Doutrina das Ideias apresenta uma revisatildeo da henologia eleaacutetica posicionando o Outro do Uno junto ao Uno como alteridade necessaacuteria para o equiliacutebrio do jogo dialeacutetico somente assim alcanccedilando ecircxito em tentar salvar essa doutrina dos ferozes ataques lanccedilados contra ela28 E no Filebo tambeacutem 26 DEMOacuteCRITO fragmento 156 In BORNHEIN op cit p 113 27 Sete no total Cf PLATAtildeO Parmecircnides op cit 130c-134e28 A estrutura dessa investigaccedilatildeo dialeacutetica no Parmecircnides pode ser concentrada nas oito consequecircncias

obtidas da anaacutelise da protoideia do uno Por meio do meacutetodo dialeacutetico satildeo obtidos resultados afirmativos e negativos tanto para a existecircncia como para a negaccedilatildeo da existecircncia do uno Esses resultados parecem se equilibrar gerando a impressatildeo de um resultado aparentemente nulo mas que ao final trazem resultados positivos seja para uma revisatildeo do eleatismo seja para uma sofisticaccedilatildeo da Teoria das Ideias Para uma anaacutelise desse assunto cf REALE G Para uma nova interpretaccedilatildeo de

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encontramos essa disposiccedilatildeo dualista atraveacutes da apresentaccedilatildeo da teoria dos princiacutepios formadores para as proacuteprias ideias Segundo essa teoria conhecida como Protologia Platocircnica29 as ideias as formas puras do mundo inteligiacutevel nasceriam do encontro e da uniatildeo do limite identificado com o Uno e do ilimite identificado com o muacuteltiplo infinito (Filebo 16d-e 23d-26d) Limite e ilimite satildeo tomados como princiacutepios absolutos poreacutem geradores das ideias apenas quando relativizados um pelo outro

Guardadas as respectivas diferenccedilas tanto em Platatildeo como nos atomistas fica estabelecida uma equivalecircncia entre ser e natildeo-ser Essa negaccedilatildeo do ser eacute concebida como o Outro-do-ser (oposto ao ser a sua alteridade) O muacuteltiplo eacute na sua essecircncia uacuteltima o composto formado pelo ser e pelo natildeo-ser que como vimos acima eacute entendido como vazio pelos atomistas A partir desse ponto de vista a natureza moacutevel apresenta-se como um tipo de extensatildeo discreta fundada em um dualismo ontoloacutegico no qual encontramos o mesmo (a unidade o limite a identidade o aacutetomo o ser) e o outro (a diferenccedila a alteridade o ilimite o vazio o natildeo-ser)

Em suma o movimento soacute pode ser assumido na medida em que o muacuteltiplo puder ser concebido como o composto formado pelo ser e pelo outro do ser ambos conectados pela relaccedilatildeo de vizinhanccedila Essa vizinhanccedila eacute definida como uma equivalecircncia ontoloacutegica entre o vazio (nadameacuteden) ao lado do ser o que garantiria a separabilidade atocircmica (divisibilidade finita) sem a qual o composto natildeo seria concebiacutevel Do contraacuterio natildeo havendo o vazio soacute haveria o ser-uno unidade simples homogecircnea indiferenciada e tambeacutem imoacutevel jaacute que sempre plena Nesse caso nenhuma vizinhanccedila poderia ser constatada ou afirmada uma vez que a vizinhanccedila pressupotildee a dualidade de elementos O movimento estaria necessariamente vinculado ao dualismo ontoloacutegico e excluiacutedo do monismo pois neste natildeo haveria lugar para a alteridade ou vizinhanccedila

Na medida em que o ser e o vazio satildeo considerados conceitos fundantes no atomismo antigo a relaccedilatildeo de vizinhanccedila fica estabelecida nessa diferenciaccedilatildeo originaacuteria Assim o vazio (o nada) se coloca imediatamente em uma relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o ser no exato momento em que eacute compreendido como a sua radical alteridade E paradoxalmente eacute somente nesse sentido que o vazio eacute a saber na medida mesma em que ele natildeo eacute pleno E a reciacuteproca tambeacutem eacute

Platatildeo Releitura da metafiacutesica dos grandes diaacutelogos agrave luz das ldquoDoutrinas natildeo-escritasrdquo Satildeo Paulo Loyola 1991

29 Ibid p 164-165

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assim afirmada Como o vazio eacute o proacuteprio ser-outro porque instantaneamente se coloca nessa relaccedilatildeo de vizinhanccedila originaacuteria e imediata com o ser o ser tambeacutem se coloca nessa relaccedilatildeo primitiva com o vazio e somente neste sentido o ser eacute isto eacute na medida em que natildeo eacute vazio Platatildeo parece se aproximar dessa posiccedilatildeo atomista quando no Sofista introduz a seguinte indagaccedilatildeo atraveacutes das palavras do Estrangeiro de Eleia ldquoAssim pois estaacute claro que o movimento eacute realmente natildeo ser ainda que seja ser na medida em que participa do serrdquo E prossegue

Segue-se pois necessariamente que haacute um ser do natildeo-ser natildeo somente no movimento mas em toda a seacuterie dos gecircneros pois na verdade em todos eles a natureza do outro faz cada um deles outro que natildeo o ser e por isso mesmo natildeo-ser Assim universalmente por essa relaccedilatildeo chamaremos a todos corretamente natildeo-ser e ao contraacuterio pelo fato de eles participarem do ser diremos que satildeo seres30

Por esse ponto de vista o ser tambeacutem eacute definido em funccedilatildeo de sua relaccedilatildeo com o natildeo-ser que aqui alinhamos com o vazio como o outro do pleno Desse modo essa subordinaccedilatildeo do ser em relaccedilatildeo ao natildeo-ser (o vazio) ou do natildeo-ser (vazio) em relaccedilatildeo ao ser redunda em uma relaccedilatildeo de simetria entre ambos Como resultado temos que natildeo haacute um sentido uacutenico ou prioritaacuterio no condicionamento ontocausal entre ser e vazio A conclusatildeo eacute que ao assumir o movimento como um fato da natureza ou como princiacutepio o ser deixa de apresentar prioridade ontoloacutegica e causal

Nesse sentido ser e natildeo-ser perfazem de maneira equivalente as condiccedilotildees necessaacuterias para o movimento E ainda que a oposiccedilatildeo radical seja o elo constituinte desses princiacutepios originaacuterios ela natildeo implica a anulaccedilatildeo muacutetua de um pelo outro quando simultaneamente justapostos no pensamento assim como os eleatas tentaram mostrar atraveacutes dos paradoxos associados agrave divisibilidade e ao movimento31 Pelo contraacuterio a oposiccedilatildeo radical entre pleno e vazio entre ser e natildeo-ser eacute a proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade do movimento e por isso da efetividade do real Passa a valer por conseguinte nesse caso a necessidade da bicondicionalidade ontocausal entre ser e natildeo-ser radicada na relaccedilatildeo de vizinhanccedila entre ambos na constituiccedilatildeo do real como efetiva e cambiante multiplicidade

30PLATAtildeO Sofista (256e) opcit p 18931Cf ZENAtildeO In BORHEIM op cit p 60-63

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Sumariando as teses de Demoacutecrito e Leucipo temos que

1 O ser eacute quando colocado numa relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o vazio

2 O vazio eacute prefigura junto ao pleno como condiccedilatildeo necessaacuteria para o movimento

3 As teses anteriores se reduzem agrave maacutexima O natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser

4 uma Leitura De Kant a partir Das consiDeraccedilotildees anteriores

Passamos agora a considerar de que form eacute possiacutevel obter por meio do texto Ensaio para introduzir em filosofia o conceito de grandeza negativa32 um novo focirclego para a discussatildeo precedente33 Assim ao analisarmos esse texto manteremos sob nosso olhar aquela oposiccedilatildeo radical e fundamental acima apontada entre ser e natildeo-ser para tentar entendecirc-la atraveacutes daquilo que Kant chama ora de oposiccedilatildeo real ora de oposiccedilatildeo loacutegica sendo a primeira o tipo de oposiccedilatildeoequivalecircncia que relacionaremos com o atomismo antigo e a segunda aquilo que identificaremos como a oposiccedilatildeocontradiccedilatildeo denunciada nas formulaccedilotildees do eleatismo

No prefaacutecio ao Ensaio Kant deixa claro que a filosofia pode se utilizar das ciecircncias naturais e exatas seja copiando seus meacutetodos seja aplicando suas proposiccedilotildees deslocando-as para um novo contexto34 Procederaacute entatildeo com a tentativa de introduzir no seio da filosofia a ideia de grandeza negativa recurso jaacute empregado em matemaacutetica e fiacutesica

Eacute preciso distinguir o significado da proposiccedilatildeo grandeza negativa daquele outro de negaccedilatildeo de uma grandeza35 Uma grandeza negativa eacute a afirmaccedilatildeo de uma grandeza que simplesmente se opotildee a uma outra e que portanto revela uma positividade colocada numa relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo a outra positividade Jaacute na expressatildeo negaccedilatildeo de uma grandeza a grandeza eacute tomada

32 Com o tiacutetulo Versuch den Begriff der negativen Grossen in die Weltweisheit einzufuumlhren essa obra foi publicada pela primeira vez em 1763 Doravante iremos nos referir a ela de maneira abreviada apenas por Ensaio

33Ver nota 134No ano seguinte agrave publicaccedilatildeo do Ensaio essa posiccedilatildeo a respeito da filosofia e das ciecircncias eacute relativizada

com a publicaccedilatildeo de um texto intitulado ldquoInvestigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moralrdquo In KANT Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In______ Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 101-140

35 KANT Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia Ibid p 56

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isoladamente sem qualquer relaccedilatildeo com outra e por isso nenhuma oposiccedilatildeo eacute considerada a partir dela Aqui Kant toma para si a ideia de oposiccedilatildeo que estaacute na raiacutez do conceito de movimento ou de forccedila na Fiacutesica

Nesse sentido a negatividade da formulaccedilatildeo grandeza negativa deve ser interpretada como a projeccedilatildeo da oposiccedilatildeo sobre uma das grandezas polares da relaccedilatildeo que se estabelece entre forccedilas no mundo daiacute a expressatildeo oposiccedilatildeo real Tomemos o exemplo de Kant segundo o qual a atraccedilatildeo negativa que um corpo exerce sobre outro seraacute erroneamente interpretada se for compreendida como a negaccedilatildeo da forccedila de atraccedilatildeo por sua vez seraacute acertadamente compreendida se for tomada como uma grandeza negativa a forccedila de repulsatildeo36 Dessa maneira ela soacute poderaacute ser considerada como negativa se tomada relativamente a outra grandeza a atraccedilatildeo do contraacuterio ela eacute positiva Ou seja a negatividade ou a positividade das grandezas soacute pode ser estabelecida de maneira relativa isto eacute dada a situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre elas No exemplo considerado se o resultado da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre as duas forccedilas de atraccedilatildeo (positiva e negativa) for o repouso entatildeo temos a privaccedilatildeo (nihil privativum representabile) do movimento do objeto sobre o qual essas forccedilas estatildeo agindo e atraveacutes do qual elas puderam se colocar em confronto

Nesse caso eacute necessaacuterio natildeo tomar o efeito (repousoausecircncia do movimento do objeto) pela causa (o equiliacutebrio entre as forccedilas de atraccedilatildeo positiva e negativa) O resultado desse desacerto do juiacutezo seria confundir atraccedilatildeo negativa com ausecircncia de atraccedilatildeo ou a grandeza negativa com negaccedilatildeo de uma grandeza

Consideremos juntamente com Kant o conceito de grandeza negativa em geral para em seguida determinar os seus significados especiacuteficos Levando-se em conta que a chave para predicarmos as grandezas eacute a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo37 entatildeo temos que verificar as duas maneiras por meio das quais podemos considerar essa noccedilatildeo 1ordm como oposiccedilatildeo loacutegica 2ordm como oposiccedilatildeo real Assim Kant estabelece dois niacuteveis de anaacutelise para a apreciaccedilatildeo da noccedilatildeo de oposiccedilatildeo aquele da loacutegica e aquele da natureza Com isso ele pretende distinguir as respectivas funccedilotildees causais da oposiccedilatildeo considerada em cada um desses niacuteveis

Na oposiccedilatildeo loacutegica natildeo resta nenhuma consequecircncia da conexatildeo entre a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo nihil negativum irrepresentabile Dadas duas

36Ibid p 5637Ibid p 57

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afirmaccedilotildees absolutamente contraacuterias o pensamento se surpreende na situaccedilatildeo de natildeo poder prosseguir com seu trabalho obediente como eacute aos princiacutepios de contradiccedilatildeo e terceiro excluiacutedo (tertium non datur) Nesse sentido a contradiccedilatildeo que eacute como entendemos a oposiccedilatildeo loacutegica gera um tipo de vacuidade do pensamento um nada impensaacutevel um absoluto vazio que eacute como aquele nada asseverado por Parmecircnides ldquoNecessaacuterio eacute dizer e pensar que soacute o ser eacute pois o ser eacute e o nada ao contraacuterio nada eacute []rdquo38

Se pensarmos nos estados de movimento e de repouso referidos ao mesmo objeto e abstraindo-se o tempo encontraremos na base mais elementar desses estados contraacuterios os conceitos de ser e de natildeo-ser tidos como opostos no sentido exclusivamente loacutegico (contraacuterios) obtendo como resultado a contradiccedilatildeo e a impossibilidade do pensamento Nesse caso movimento e repouso deixaram de ser grandezas ou estados de coisas e se tornaram puras abstraccedilotildees Logo o natildeo-ser da negatividade natildeo apresenta nenhum tipo de positividade Isto eacute o natildeo-ser eacute absolutamente negativo e eacute tomado como logicamente dependente da positividade do ser como sua pura negaccedilatildeo Por sua vez o ser eacute tomado como conceito originaacuterio e absoluto cuja positividade independe de qualquer relaccedilatildeo apresentando assim precedecircncia loacutegica e exclusividade ontoloacutegica sobre o natildeo-ser

Por outro lado natildeo eacute possiacutevel afirmar que o ser ou o natildeo-ser possuam qualquer prevalecircncia um sobre o outro qualquer antecedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica quando considerados como grandezas no mundo

O movimento eacute tomado como algo positivo na medida em que eacute a efetivaccedilatildeo de um estado de coisas ldquoxrdquo no mundo por sua vez o repouso eacute tambeacutem uma positividade na medida em que significa um outro estado de coisas ldquoyrdquo oposto a ldquoxrdquo A negatividade nessa oposiccedilatildeo recai arbitrariamente sobre ldquoxrdquo ou ldquoyrdquo por meio de uma proposiccedilatildeo que estabelece a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo A negatividade recairaacute sobre ldquoxrdquo ou sobre ldquoyrdquo de acordo com a forma assumida pela proposiccedilatildeo que iraacute fazer variar a negatividade (ou a positividade) em funccedilatildeo da finalidade enfaacutetica que se queira dar a ldquoxrdquo ou a ldquoyrdquo

Somente quando se diz que um mesmo corpo estaacute e natildeo estaacute a um soacute tempo e na mesma relaccedilatildeo em repouso ou em movimento eacute que essa vacuidade no pensar aparece

38ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν[]rdquo PARMENIDES fragmento B6 In BORHEIM op cit p 55

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Um corpo em movimento eacute algo um corpo que natildeo estaacute em movimento eacute tambeacutem algo (cogitabile) no entanto um corpo que ao mesmo tempo e justamente sob a mesma relaccedilatildeo estivesse e natildeo estivesse em movimento eacute absolutamente nada39

A expressatildeo a um soacute tempo significa que o corpo eacute colocado na situaccedilatildeo em que se abstrai a seacuterie contiacutenua do tempo Isso quer dizer que uma uacutenica porccedilatildeo elementar do tempo foi tomada e isolada das demais Todavia uma porccedilatildeo assim isolada do tempo tomada em sentido absoluto natildeo eacute tempo algum Uma vez que a seacuterie de tempo eacute contiacutenua ou se toma uma porccedilatildeo do tempo que por sua vez conteacutem em si uma nova seacuterie temporal infinita (nesse caso a parte eacute igual ao todo) ou natildeo se toma tempo algum Em outras palavras a expressatildeo a um soacute tempo natildeo tem aqui nenhum significado temporal positivo mas apenas negativo significando fora do tempo

Assim procedeu Parmecircnides ao abstrair o tempo para todas as formas proposicionais vaacutelidas reduzindo toda forma de pensamento a uma expressatildeo proposicional afirmativa atemporal onde a positividade eacute sempre absoluta e por isso possui prioridade loacutegica e ontoloacutegica sobre a negatividade Nesse caso toda oposiccedilatildeo eacute sempre contradiccedilatildeo

Jaacute na oposiccedilatildeo real encontramos uma forma de pensamento que natildeo subtrai a seacuterie do tempo Nesse caso a oposiccedilatildeo real apresenta uma estrutura a qual pode ser esquematicamente apresentada como (+A ndashA = B) onde (B = 0) ou (B ne 0) e onde os elementos integrantes dessa operaccedilatildeo (+A) e (ndashA) natildeo deixam de ser pela atribuiccedilatildeo de uma negatividade meramente relativa mesmo quando (B=0) sendo ambos justamente a causa eficiente desse privatio

O (B = 0) como privatio natildeo eacute mera nulidade devendo ser tratado como a realizaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo resultante de um encontro entre potecircncias equivalentes mas opostas uma a outra Aqui natildeo existe contradiccedilatildeo em dizer que se trata de potecircncias equivalentes-opostas pois nesse caso tanto a negatividade como a positividade satildeo relativas e natildeo absolutas Natildeo existe autonomia ontoloacutegica da positividade nem da negatividade Trata-se aqui de predicados e natildeo de seres

Por sua vez o estado de coisas representado por (B = 0) esta efetividade eacute novamente um natildeo-ser poreacutem apenas em relaccedilatildeo a outro estado de coisas a que ele se opotildee Assim este (0) eacute um algo que eacute predicado a algo inserido na 39 Ibidem p 58 grifos nossos

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seacuterie contiacutenua do tempo e que eacute designado como privaccedilatildeo Apenas quando se abstrai da seacuterie do tempo eacute que x = 0 representa um nada absoluto Nesse caso o que eacute afirmado eacute inteira e instantaneamente anulado pelo que eacute negado e vice-versa pois a positividade e a negatividade do que eacute afirmado e negado se referem aos proacuteprios seres

Jaacute na oposiccedilatildeo real ainda que duas condiccedilotildees contraacuterias atuem simultaneamente sobre o mesmo objeto a contradiccedilatildeo (vacuidade do pensamento) natildeo eacute o resultado porque a expressatildeo simultaneamente (ausecircncia de sucessatildeo temporal) eacute aqui relativizada Se pensarmos na destruiccedilatildeo de um corpo esse movimento seraacute oposto ao de sua criaccedilatildeo No entanto tais movimentos natildeo satildeo contraditoacuterios um ao outro quando pensados juntos Natildeo inferimos uma vacuidade no pensamento da conjunccedilatildeo simultacircnea desses dois eventos desde que sejam pensados como eventos e portanto diluiacutedos no contiacutenuo temporal A contiacutenua transformaccedilatildeo (movimento) dos corpos vivos por exemplo tem por base um confronto entre a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo celular atuando nos organismos vivos quer dizer um estado de coisas manifestamente expresso como forccedilas antagocircnicas simultaneamente presentes no mesmo objeto No niacutevel celular essa simultaneidade eacute relativizada enquanto algumas ceacutelulas satildeo criadas outras satildeo destruiacutedas Essa relativizaccedilatildeo da simultaneidade natildeo exclui um efetivo antagonismo seja em que niacutevel for onde a positividade ou a negatividade satildeo arbitrariamente atribuiacutedas a um dos polos da oposiccedilatildeo natildeo havendo qualquer precedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica de um polo sobre o outro A geraccedilatildeo eacute negativa se a destruiccedilatildeo for tomada como positiva e vice-versa

Na dinacircmica uma forccedila motriz eacute dita positiva somente quando oposta a outra dita negativa a resistecircncia Ainda que opostas uma a outra forccedilas com vetores contraacuterios desse encontro natildeo se infere um absurdo como uma contradiccedilatildeo mas um estado de coisas real de oposiccedilatildeo de contrariedade O resultado pode ser tanto o repouso no caso das forccedilas opostas possuiacuterem a mesma potecircncia (serem equivalentes) ou o movimento que apresenta o mesmo vetor de uma das forccedilas conflitantes Em ambos os casos o resultante dessa oposiccedilatildeo eacute algo que pode ser efetivamente afirmado sobre o mundo e natildeo um vazio ou um nada irrepresentaacutevel Ainda que nesse caso o repouso possa ser representado por (B = 0) este (B = 0) natildeo deve ser entendido como uma indeterminaccedilatildeo mas sim como privaccedilatildeo Logo percebemos que a contradiccedilatildeo natildeo eacute aplicaacutevel a estados de coisas imersos na seacuterie contiacutenua do tempo

Tanto na oposiccedilatildeo loacutegica como na oposiccedilatildeo real o efeito pode ser representado como (=0) ou como vazio ou ainda como nada Entretanto

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o sentido desse vazio ou desse nada deve ser relativizado para cada situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo Na oposiccedilatildeo loacutegica significa contradiccedilatildeo (nihil negativum irrepresentabile) ou ausecircncia da possibilidade do pensamento A nosso ver este seria o caso do significado do natildeo-ser empregado por Parmecircnides onde localizamos a supressatildeo instantacircnea (anulaccedilatildeo ausecircncia absoluta) dos opostos Jaacute o nada ou o vazio da oposiccedilatildeo real eacute absolutamente representaacutevel Aqui eacute possiacutevel embora de maneira arbitraacuteria estabelecer os valores positivo e negativo dos elementos que se colocam na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo

5 concLusatildeo

Apoacutes oferecer alguns exemplos para o conceito de grandeza negativa na segunda seccedilatildeo do Ensaio Kant conduz suas consideraccedilotildees para o campo da filosofia que para ele deve se ocupar prioritariamente da metafiacutesica e cujo meacutetodo analiacutetico apresentado por ele em outro de seus textos desse periacuteodo40 jaacute fornece indiacutecios dos passos que daraacute no sentido de sua futura proposta mais amadurecida para uma teoria criacutetico-transcendental

Assim alerta Kant no Ensaio entendemos facilmente que algo natildeo seja se lhe carece a razatildeo positiva para sua existecircncia todavia temos dificuldades para entender como algo que efetivamente eacute deixa de ser41 isto eacute temos dificuldade em compreender o correto sentido de privaccedilatildeo O esclarecimento acerca dessa questatildeo eacute fundamental jaacute que o vir-a-ser isto eacute o deixar de ser como privaccedilatildeo eacute a maneira mais fundamental de entender o conceito de movimento Essa dificuldade em reconhecer o correto sentido de privaccedilatildeo eacute o que algumas vezes nos compele a confundi-la com a contradiccedilatildeo e por isso obter como resultado a negaccedilatildeo do movimento compreendendo-o erroneamente como gerador do absurdo

Assim sugere Kant se represento o Sol em minha imaginaccedilatildeo e se no instante seguinte deixo de ter presente essa representaccedilatildeo em minha mente isso natildeo significa que meu pensamento sobre o Sol tenha simplesmente desaparecido e se tornado um puro nada aniquilando-se na vacuidade de uma contradiccedilatildeo entre ser e natildeo-ser mas sim porque a representaccedilatildeo do sol foi suprimida por outra sorte qualquer de ideia que se impocircs com a intensidade

40KANT I Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In ______ Escritos Preacute-criacuteticos Trad Jair Barboza [et al] Satildeo Paulo UNESP 2005 p 116-117

41KANT opcit p 79

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suficiente para substituiacute-la parcial ou inteiramente segundo uma determinada relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo contingente ao espiacuterito

A simples negaccedilatildeo da representaccedilatildeo considerando que ela simplesmente anulou a si mesma deixando assim de existir nos remete para a situaccedilatildeo de um nada irrepresentaacutevel um impensaacutevel natildeo-ser como em Parmecircnides Jaacute na privaccedilatildeo existe uma interaccedilatildeo entre forccedilas opostas a qual natildeo aparece como contradiccedilatildeo uma vez que princiacutepios afirmativos opostos (representaccedilotildees opostas) coincidiriam sob a mesma forma do pensamento anulando assim o efeito de uma delas ou de ambas O resultado eacute a afirmaccedilatildeo de um ser que eacute tambeacutem natildeo-ser jaacute que a negatividade do natildeo-ser da representaccedilatildeo aqui eacute simplesmente relativa dada pela situccedilatildeo de oposiccedilatildeo A representaccedilatildeo arbitrariamente tomada como negativa natildeo eacute menos ser que aquela tomada como positiva A supressatildeo de uma pela outra natildeo se mostra como contradiccedilatildeo mas como a privaccedilatildeo

Eacute concebiacutevel assim pensar legitimamente o natildeo-ser da representaccedilatildeo desde que seja considerado como privaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel se falar com verdade em princiacutepios opostos e equivalentes e que produzem em seu encontro a afirmaccedilatildeo de algo como um nada Dessa maneira seja a1

a afirmaccedilatildeo (ser) de um determinado estado de coisas no mundo (ou de uma representaccedilatildeo de algo no mundo) e a2 o seu equivalente oposto (o natildeo-ser) temos que

a1 ndash a2 = 0

Arbitrariamente tomamos a2 como a representaccedilatildeo negativa contudo a negatividade aqui revela apenas a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre a1 e a2 e natildeo uma situaccedilatildeo absoluta de a2 Como grandezas equivalentes que se opotildeem o resultado (= 0) revela uma oposiccedilatildeo real natildeo uma contradiccedilatildeo Nem a1

e a2 podem ser ditas potecircncias contraditoacuterias nessa relaccedilatildeo visto que este (= 0) eacute a afirmaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo de um ser que eacute tambeacutem um natildeo-ser assim como o repouso eacute igualmente uma forma de natildeo-ser do movimento O pensamento que leva em conta os opostos eacute pois uma possibilidade real e mesmo necessaacuteria para a consideraccedilatildeo do movimento

Segundo a foacutermula de Demoacutecrito o natildeo-ser natildeo eacute mais nem menos que o ser Ora soacute podemos entender essa afirmaccedilatildeo de duas maneiras convergentes ou como afirmaccedilatildeo do mesmo estatuto ontoloacutegico para o ser e para o natildeo-ser ou como atribuiccedilatildeo da mesma funccedilatildeo causal (material) para ambos Nos dois casos o ser soacute eacute na presenccedila ou com a premissa do natildeo-ser e vice-versa E assim o natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser Estaacute claro que esse princiacutepio natildeo

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se ajusta sem qualquer intervenccedilatildeo agraves formulaccedilotildees de Parmecircnides Por esse desacordo eacute possiacutevel identificar no antigo atomismo uma negatividade do ser que natildeo engendra a vacuidade do pensamento Pelo contraacuterio o movimento do pensamento soacute eacute possiacutevel por meio dessa oposiccedilatildeo fundamental Em Platatildeo esse movimento do pensamento ganha o nome de dialeacutetica

Concluiremos este estudo com a seguinte afirmaccedilatildeo de Kant ldquoTodos os fundamentos reais do universo quando se somam todos que satildeo consonantes e se subtraem uns dos outros os que se opotildeem entre si datildeo um resultado igual a zerordquo42 Esse zero significa a afirmaccedilatildeo da efetividade do mundo Esse zero representa um repouso que nem por isso deixa de ser dinacircmico Assim esperamos ter aproximado o conteuacutedo do Ensaio com o pensamento daqueles filoacutesofos da natureza que se colocavam conformes a um princiacutepio universal sem negar a unidade do pensamento e do movimento do mundo De acordo com eles o mundo deve se ordenar segundo esses princiacutepios mutuamente opostos ser e natildeo-ser os quais estatildeo na origem desse repouso dinacircmico na exata medida da efetivaccedilatildeo de seus encontros

SANTOS Eberth Eleuterio dos Leucippus Democritus and Kant a reflection on the equivalence between being and non-being TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 38 n 2 p 71-94 MaioAgo 2015

ABSTRACT Initially we present the theory of Democritus and Leucippus whereby being is not more than the not-being (non-being) in contrast to Eleatic ideas about the necessary inexistence of the not-being This discussion leads us to the opposition between the whole (full) and the empty which will then be transposed into the opposition between being and nothingness (or not-being) Thus the opposition between whole and the empty is an opposition that moves to being and not-being Finally we will make an assessment of the Kantian pre-critical essay Attempt to introduce the concept of negative magnitude into philosophy in which we recognize a kind of opposition that as we believe would be interpreted as being in agreement with the position of Democritus and Leucippus regarding the ontological status of the not-being as an equivalent principle to the being understood here not as a mutual contradiction in a purely logical sense

KEYWORDS ancient atomism Eleatism ontology

referecircncias

ARISTOacuteTELES Da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo seguido de convite agrave filosofia Traduccedilatildeo de Renata Maria Pereira Cordeiro Satildeo Paulo Landy 2001

42 Ibid p 89

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Recebido Received 07092014Aprovado Approved 10012015

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encontramos essa disposiccedilatildeo dualista atraveacutes da apresentaccedilatildeo da teoria dos princiacutepios formadores para as proacuteprias ideias Segundo essa teoria conhecida como Protologia Platocircnica29 as ideias as formas puras do mundo inteligiacutevel nasceriam do encontro e da uniatildeo do limite identificado com o Uno e do ilimite identificado com o muacuteltiplo infinito (Filebo 16d-e 23d-26d) Limite e ilimite satildeo tomados como princiacutepios absolutos poreacutem geradores das ideias apenas quando relativizados um pelo outro

Guardadas as respectivas diferenccedilas tanto em Platatildeo como nos atomistas fica estabelecida uma equivalecircncia entre ser e natildeo-ser Essa negaccedilatildeo do ser eacute concebida como o Outro-do-ser (oposto ao ser a sua alteridade) O muacuteltiplo eacute na sua essecircncia uacuteltima o composto formado pelo ser e pelo natildeo-ser que como vimos acima eacute entendido como vazio pelos atomistas A partir desse ponto de vista a natureza moacutevel apresenta-se como um tipo de extensatildeo discreta fundada em um dualismo ontoloacutegico no qual encontramos o mesmo (a unidade o limite a identidade o aacutetomo o ser) e o outro (a diferenccedila a alteridade o ilimite o vazio o natildeo-ser)

Em suma o movimento soacute pode ser assumido na medida em que o muacuteltiplo puder ser concebido como o composto formado pelo ser e pelo outro do ser ambos conectados pela relaccedilatildeo de vizinhanccedila Essa vizinhanccedila eacute definida como uma equivalecircncia ontoloacutegica entre o vazio (nadameacuteden) ao lado do ser o que garantiria a separabilidade atocircmica (divisibilidade finita) sem a qual o composto natildeo seria concebiacutevel Do contraacuterio natildeo havendo o vazio soacute haveria o ser-uno unidade simples homogecircnea indiferenciada e tambeacutem imoacutevel jaacute que sempre plena Nesse caso nenhuma vizinhanccedila poderia ser constatada ou afirmada uma vez que a vizinhanccedila pressupotildee a dualidade de elementos O movimento estaria necessariamente vinculado ao dualismo ontoloacutegico e excluiacutedo do monismo pois neste natildeo haveria lugar para a alteridade ou vizinhanccedila

Na medida em que o ser e o vazio satildeo considerados conceitos fundantes no atomismo antigo a relaccedilatildeo de vizinhanccedila fica estabelecida nessa diferenciaccedilatildeo originaacuteria Assim o vazio (o nada) se coloca imediatamente em uma relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o ser no exato momento em que eacute compreendido como a sua radical alteridade E paradoxalmente eacute somente nesse sentido que o vazio eacute a saber na medida mesma em que ele natildeo eacute pleno E a reciacuteproca tambeacutem eacute

Platatildeo Releitura da metafiacutesica dos grandes diaacutelogos agrave luz das ldquoDoutrinas natildeo-escritasrdquo Satildeo Paulo Loyola 1991

29 Ibid p 164-165

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assim afirmada Como o vazio eacute o proacuteprio ser-outro porque instantaneamente se coloca nessa relaccedilatildeo de vizinhanccedila originaacuteria e imediata com o ser o ser tambeacutem se coloca nessa relaccedilatildeo primitiva com o vazio e somente neste sentido o ser eacute isto eacute na medida em que natildeo eacute vazio Platatildeo parece se aproximar dessa posiccedilatildeo atomista quando no Sofista introduz a seguinte indagaccedilatildeo atraveacutes das palavras do Estrangeiro de Eleia ldquoAssim pois estaacute claro que o movimento eacute realmente natildeo ser ainda que seja ser na medida em que participa do serrdquo E prossegue

Segue-se pois necessariamente que haacute um ser do natildeo-ser natildeo somente no movimento mas em toda a seacuterie dos gecircneros pois na verdade em todos eles a natureza do outro faz cada um deles outro que natildeo o ser e por isso mesmo natildeo-ser Assim universalmente por essa relaccedilatildeo chamaremos a todos corretamente natildeo-ser e ao contraacuterio pelo fato de eles participarem do ser diremos que satildeo seres30

Por esse ponto de vista o ser tambeacutem eacute definido em funccedilatildeo de sua relaccedilatildeo com o natildeo-ser que aqui alinhamos com o vazio como o outro do pleno Desse modo essa subordinaccedilatildeo do ser em relaccedilatildeo ao natildeo-ser (o vazio) ou do natildeo-ser (vazio) em relaccedilatildeo ao ser redunda em uma relaccedilatildeo de simetria entre ambos Como resultado temos que natildeo haacute um sentido uacutenico ou prioritaacuterio no condicionamento ontocausal entre ser e vazio A conclusatildeo eacute que ao assumir o movimento como um fato da natureza ou como princiacutepio o ser deixa de apresentar prioridade ontoloacutegica e causal

Nesse sentido ser e natildeo-ser perfazem de maneira equivalente as condiccedilotildees necessaacuterias para o movimento E ainda que a oposiccedilatildeo radical seja o elo constituinte desses princiacutepios originaacuterios ela natildeo implica a anulaccedilatildeo muacutetua de um pelo outro quando simultaneamente justapostos no pensamento assim como os eleatas tentaram mostrar atraveacutes dos paradoxos associados agrave divisibilidade e ao movimento31 Pelo contraacuterio a oposiccedilatildeo radical entre pleno e vazio entre ser e natildeo-ser eacute a proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade do movimento e por isso da efetividade do real Passa a valer por conseguinte nesse caso a necessidade da bicondicionalidade ontocausal entre ser e natildeo-ser radicada na relaccedilatildeo de vizinhanccedila entre ambos na constituiccedilatildeo do real como efetiva e cambiante multiplicidade

30PLATAtildeO Sofista (256e) opcit p 18931Cf ZENAtildeO In BORHEIM op cit p 60-63

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Sumariando as teses de Demoacutecrito e Leucipo temos que

1 O ser eacute quando colocado numa relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o vazio

2 O vazio eacute prefigura junto ao pleno como condiccedilatildeo necessaacuteria para o movimento

3 As teses anteriores se reduzem agrave maacutexima O natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser

4 uma Leitura De Kant a partir Das consiDeraccedilotildees anteriores

Passamos agora a considerar de que form eacute possiacutevel obter por meio do texto Ensaio para introduzir em filosofia o conceito de grandeza negativa32 um novo focirclego para a discussatildeo precedente33 Assim ao analisarmos esse texto manteremos sob nosso olhar aquela oposiccedilatildeo radical e fundamental acima apontada entre ser e natildeo-ser para tentar entendecirc-la atraveacutes daquilo que Kant chama ora de oposiccedilatildeo real ora de oposiccedilatildeo loacutegica sendo a primeira o tipo de oposiccedilatildeoequivalecircncia que relacionaremos com o atomismo antigo e a segunda aquilo que identificaremos como a oposiccedilatildeocontradiccedilatildeo denunciada nas formulaccedilotildees do eleatismo

No prefaacutecio ao Ensaio Kant deixa claro que a filosofia pode se utilizar das ciecircncias naturais e exatas seja copiando seus meacutetodos seja aplicando suas proposiccedilotildees deslocando-as para um novo contexto34 Procederaacute entatildeo com a tentativa de introduzir no seio da filosofia a ideia de grandeza negativa recurso jaacute empregado em matemaacutetica e fiacutesica

Eacute preciso distinguir o significado da proposiccedilatildeo grandeza negativa daquele outro de negaccedilatildeo de uma grandeza35 Uma grandeza negativa eacute a afirmaccedilatildeo de uma grandeza que simplesmente se opotildee a uma outra e que portanto revela uma positividade colocada numa relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo a outra positividade Jaacute na expressatildeo negaccedilatildeo de uma grandeza a grandeza eacute tomada

32 Com o tiacutetulo Versuch den Begriff der negativen Grossen in die Weltweisheit einzufuumlhren essa obra foi publicada pela primeira vez em 1763 Doravante iremos nos referir a ela de maneira abreviada apenas por Ensaio

33Ver nota 134No ano seguinte agrave publicaccedilatildeo do Ensaio essa posiccedilatildeo a respeito da filosofia e das ciecircncias eacute relativizada

com a publicaccedilatildeo de um texto intitulado ldquoInvestigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moralrdquo In KANT Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In______ Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 101-140

35 KANT Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia Ibid p 56

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isoladamente sem qualquer relaccedilatildeo com outra e por isso nenhuma oposiccedilatildeo eacute considerada a partir dela Aqui Kant toma para si a ideia de oposiccedilatildeo que estaacute na raiacutez do conceito de movimento ou de forccedila na Fiacutesica

Nesse sentido a negatividade da formulaccedilatildeo grandeza negativa deve ser interpretada como a projeccedilatildeo da oposiccedilatildeo sobre uma das grandezas polares da relaccedilatildeo que se estabelece entre forccedilas no mundo daiacute a expressatildeo oposiccedilatildeo real Tomemos o exemplo de Kant segundo o qual a atraccedilatildeo negativa que um corpo exerce sobre outro seraacute erroneamente interpretada se for compreendida como a negaccedilatildeo da forccedila de atraccedilatildeo por sua vez seraacute acertadamente compreendida se for tomada como uma grandeza negativa a forccedila de repulsatildeo36 Dessa maneira ela soacute poderaacute ser considerada como negativa se tomada relativamente a outra grandeza a atraccedilatildeo do contraacuterio ela eacute positiva Ou seja a negatividade ou a positividade das grandezas soacute pode ser estabelecida de maneira relativa isto eacute dada a situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre elas No exemplo considerado se o resultado da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre as duas forccedilas de atraccedilatildeo (positiva e negativa) for o repouso entatildeo temos a privaccedilatildeo (nihil privativum representabile) do movimento do objeto sobre o qual essas forccedilas estatildeo agindo e atraveacutes do qual elas puderam se colocar em confronto

Nesse caso eacute necessaacuterio natildeo tomar o efeito (repousoausecircncia do movimento do objeto) pela causa (o equiliacutebrio entre as forccedilas de atraccedilatildeo positiva e negativa) O resultado desse desacerto do juiacutezo seria confundir atraccedilatildeo negativa com ausecircncia de atraccedilatildeo ou a grandeza negativa com negaccedilatildeo de uma grandeza

Consideremos juntamente com Kant o conceito de grandeza negativa em geral para em seguida determinar os seus significados especiacuteficos Levando-se em conta que a chave para predicarmos as grandezas eacute a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo37 entatildeo temos que verificar as duas maneiras por meio das quais podemos considerar essa noccedilatildeo 1ordm como oposiccedilatildeo loacutegica 2ordm como oposiccedilatildeo real Assim Kant estabelece dois niacuteveis de anaacutelise para a apreciaccedilatildeo da noccedilatildeo de oposiccedilatildeo aquele da loacutegica e aquele da natureza Com isso ele pretende distinguir as respectivas funccedilotildees causais da oposiccedilatildeo considerada em cada um desses niacuteveis

Na oposiccedilatildeo loacutegica natildeo resta nenhuma consequecircncia da conexatildeo entre a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo nihil negativum irrepresentabile Dadas duas

36Ibid p 5637Ibid p 57

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afirmaccedilotildees absolutamente contraacuterias o pensamento se surpreende na situaccedilatildeo de natildeo poder prosseguir com seu trabalho obediente como eacute aos princiacutepios de contradiccedilatildeo e terceiro excluiacutedo (tertium non datur) Nesse sentido a contradiccedilatildeo que eacute como entendemos a oposiccedilatildeo loacutegica gera um tipo de vacuidade do pensamento um nada impensaacutevel um absoluto vazio que eacute como aquele nada asseverado por Parmecircnides ldquoNecessaacuterio eacute dizer e pensar que soacute o ser eacute pois o ser eacute e o nada ao contraacuterio nada eacute []rdquo38

Se pensarmos nos estados de movimento e de repouso referidos ao mesmo objeto e abstraindo-se o tempo encontraremos na base mais elementar desses estados contraacuterios os conceitos de ser e de natildeo-ser tidos como opostos no sentido exclusivamente loacutegico (contraacuterios) obtendo como resultado a contradiccedilatildeo e a impossibilidade do pensamento Nesse caso movimento e repouso deixaram de ser grandezas ou estados de coisas e se tornaram puras abstraccedilotildees Logo o natildeo-ser da negatividade natildeo apresenta nenhum tipo de positividade Isto eacute o natildeo-ser eacute absolutamente negativo e eacute tomado como logicamente dependente da positividade do ser como sua pura negaccedilatildeo Por sua vez o ser eacute tomado como conceito originaacuterio e absoluto cuja positividade independe de qualquer relaccedilatildeo apresentando assim precedecircncia loacutegica e exclusividade ontoloacutegica sobre o natildeo-ser

Por outro lado natildeo eacute possiacutevel afirmar que o ser ou o natildeo-ser possuam qualquer prevalecircncia um sobre o outro qualquer antecedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica quando considerados como grandezas no mundo

O movimento eacute tomado como algo positivo na medida em que eacute a efetivaccedilatildeo de um estado de coisas ldquoxrdquo no mundo por sua vez o repouso eacute tambeacutem uma positividade na medida em que significa um outro estado de coisas ldquoyrdquo oposto a ldquoxrdquo A negatividade nessa oposiccedilatildeo recai arbitrariamente sobre ldquoxrdquo ou ldquoyrdquo por meio de uma proposiccedilatildeo que estabelece a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo A negatividade recairaacute sobre ldquoxrdquo ou sobre ldquoyrdquo de acordo com a forma assumida pela proposiccedilatildeo que iraacute fazer variar a negatividade (ou a positividade) em funccedilatildeo da finalidade enfaacutetica que se queira dar a ldquoxrdquo ou a ldquoyrdquo

Somente quando se diz que um mesmo corpo estaacute e natildeo estaacute a um soacute tempo e na mesma relaccedilatildeo em repouso ou em movimento eacute que essa vacuidade no pensar aparece

38ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν[]rdquo PARMENIDES fragmento B6 In BORHEIM op cit p 55

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Um corpo em movimento eacute algo um corpo que natildeo estaacute em movimento eacute tambeacutem algo (cogitabile) no entanto um corpo que ao mesmo tempo e justamente sob a mesma relaccedilatildeo estivesse e natildeo estivesse em movimento eacute absolutamente nada39

A expressatildeo a um soacute tempo significa que o corpo eacute colocado na situaccedilatildeo em que se abstrai a seacuterie contiacutenua do tempo Isso quer dizer que uma uacutenica porccedilatildeo elementar do tempo foi tomada e isolada das demais Todavia uma porccedilatildeo assim isolada do tempo tomada em sentido absoluto natildeo eacute tempo algum Uma vez que a seacuterie de tempo eacute contiacutenua ou se toma uma porccedilatildeo do tempo que por sua vez conteacutem em si uma nova seacuterie temporal infinita (nesse caso a parte eacute igual ao todo) ou natildeo se toma tempo algum Em outras palavras a expressatildeo a um soacute tempo natildeo tem aqui nenhum significado temporal positivo mas apenas negativo significando fora do tempo

Assim procedeu Parmecircnides ao abstrair o tempo para todas as formas proposicionais vaacutelidas reduzindo toda forma de pensamento a uma expressatildeo proposicional afirmativa atemporal onde a positividade eacute sempre absoluta e por isso possui prioridade loacutegica e ontoloacutegica sobre a negatividade Nesse caso toda oposiccedilatildeo eacute sempre contradiccedilatildeo

Jaacute na oposiccedilatildeo real encontramos uma forma de pensamento que natildeo subtrai a seacuterie do tempo Nesse caso a oposiccedilatildeo real apresenta uma estrutura a qual pode ser esquematicamente apresentada como (+A ndashA = B) onde (B = 0) ou (B ne 0) e onde os elementos integrantes dessa operaccedilatildeo (+A) e (ndashA) natildeo deixam de ser pela atribuiccedilatildeo de uma negatividade meramente relativa mesmo quando (B=0) sendo ambos justamente a causa eficiente desse privatio

O (B = 0) como privatio natildeo eacute mera nulidade devendo ser tratado como a realizaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo resultante de um encontro entre potecircncias equivalentes mas opostas uma a outra Aqui natildeo existe contradiccedilatildeo em dizer que se trata de potecircncias equivalentes-opostas pois nesse caso tanto a negatividade como a positividade satildeo relativas e natildeo absolutas Natildeo existe autonomia ontoloacutegica da positividade nem da negatividade Trata-se aqui de predicados e natildeo de seres

Por sua vez o estado de coisas representado por (B = 0) esta efetividade eacute novamente um natildeo-ser poreacutem apenas em relaccedilatildeo a outro estado de coisas a que ele se opotildee Assim este (0) eacute um algo que eacute predicado a algo inserido na 39 Ibidem p 58 grifos nossos

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seacuterie contiacutenua do tempo e que eacute designado como privaccedilatildeo Apenas quando se abstrai da seacuterie do tempo eacute que x = 0 representa um nada absoluto Nesse caso o que eacute afirmado eacute inteira e instantaneamente anulado pelo que eacute negado e vice-versa pois a positividade e a negatividade do que eacute afirmado e negado se referem aos proacuteprios seres

Jaacute na oposiccedilatildeo real ainda que duas condiccedilotildees contraacuterias atuem simultaneamente sobre o mesmo objeto a contradiccedilatildeo (vacuidade do pensamento) natildeo eacute o resultado porque a expressatildeo simultaneamente (ausecircncia de sucessatildeo temporal) eacute aqui relativizada Se pensarmos na destruiccedilatildeo de um corpo esse movimento seraacute oposto ao de sua criaccedilatildeo No entanto tais movimentos natildeo satildeo contraditoacuterios um ao outro quando pensados juntos Natildeo inferimos uma vacuidade no pensamento da conjunccedilatildeo simultacircnea desses dois eventos desde que sejam pensados como eventos e portanto diluiacutedos no contiacutenuo temporal A contiacutenua transformaccedilatildeo (movimento) dos corpos vivos por exemplo tem por base um confronto entre a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo celular atuando nos organismos vivos quer dizer um estado de coisas manifestamente expresso como forccedilas antagocircnicas simultaneamente presentes no mesmo objeto No niacutevel celular essa simultaneidade eacute relativizada enquanto algumas ceacutelulas satildeo criadas outras satildeo destruiacutedas Essa relativizaccedilatildeo da simultaneidade natildeo exclui um efetivo antagonismo seja em que niacutevel for onde a positividade ou a negatividade satildeo arbitrariamente atribuiacutedas a um dos polos da oposiccedilatildeo natildeo havendo qualquer precedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica de um polo sobre o outro A geraccedilatildeo eacute negativa se a destruiccedilatildeo for tomada como positiva e vice-versa

Na dinacircmica uma forccedila motriz eacute dita positiva somente quando oposta a outra dita negativa a resistecircncia Ainda que opostas uma a outra forccedilas com vetores contraacuterios desse encontro natildeo se infere um absurdo como uma contradiccedilatildeo mas um estado de coisas real de oposiccedilatildeo de contrariedade O resultado pode ser tanto o repouso no caso das forccedilas opostas possuiacuterem a mesma potecircncia (serem equivalentes) ou o movimento que apresenta o mesmo vetor de uma das forccedilas conflitantes Em ambos os casos o resultante dessa oposiccedilatildeo eacute algo que pode ser efetivamente afirmado sobre o mundo e natildeo um vazio ou um nada irrepresentaacutevel Ainda que nesse caso o repouso possa ser representado por (B = 0) este (B = 0) natildeo deve ser entendido como uma indeterminaccedilatildeo mas sim como privaccedilatildeo Logo percebemos que a contradiccedilatildeo natildeo eacute aplicaacutevel a estados de coisas imersos na seacuterie contiacutenua do tempo

Tanto na oposiccedilatildeo loacutegica como na oposiccedilatildeo real o efeito pode ser representado como (=0) ou como vazio ou ainda como nada Entretanto

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o sentido desse vazio ou desse nada deve ser relativizado para cada situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo Na oposiccedilatildeo loacutegica significa contradiccedilatildeo (nihil negativum irrepresentabile) ou ausecircncia da possibilidade do pensamento A nosso ver este seria o caso do significado do natildeo-ser empregado por Parmecircnides onde localizamos a supressatildeo instantacircnea (anulaccedilatildeo ausecircncia absoluta) dos opostos Jaacute o nada ou o vazio da oposiccedilatildeo real eacute absolutamente representaacutevel Aqui eacute possiacutevel embora de maneira arbitraacuteria estabelecer os valores positivo e negativo dos elementos que se colocam na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo

5 concLusatildeo

Apoacutes oferecer alguns exemplos para o conceito de grandeza negativa na segunda seccedilatildeo do Ensaio Kant conduz suas consideraccedilotildees para o campo da filosofia que para ele deve se ocupar prioritariamente da metafiacutesica e cujo meacutetodo analiacutetico apresentado por ele em outro de seus textos desse periacuteodo40 jaacute fornece indiacutecios dos passos que daraacute no sentido de sua futura proposta mais amadurecida para uma teoria criacutetico-transcendental

Assim alerta Kant no Ensaio entendemos facilmente que algo natildeo seja se lhe carece a razatildeo positiva para sua existecircncia todavia temos dificuldades para entender como algo que efetivamente eacute deixa de ser41 isto eacute temos dificuldade em compreender o correto sentido de privaccedilatildeo O esclarecimento acerca dessa questatildeo eacute fundamental jaacute que o vir-a-ser isto eacute o deixar de ser como privaccedilatildeo eacute a maneira mais fundamental de entender o conceito de movimento Essa dificuldade em reconhecer o correto sentido de privaccedilatildeo eacute o que algumas vezes nos compele a confundi-la com a contradiccedilatildeo e por isso obter como resultado a negaccedilatildeo do movimento compreendendo-o erroneamente como gerador do absurdo

Assim sugere Kant se represento o Sol em minha imaginaccedilatildeo e se no instante seguinte deixo de ter presente essa representaccedilatildeo em minha mente isso natildeo significa que meu pensamento sobre o Sol tenha simplesmente desaparecido e se tornado um puro nada aniquilando-se na vacuidade de uma contradiccedilatildeo entre ser e natildeo-ser mas sim porque a representaccedilatildeo do sol foi suprimida por outra sorte qualquer de ideia que se impocircs com a intensidade

40KANT I Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In ______ Escritos Preacute-criacuteticos Trad Jair Barboza [et al] Satildeo Paulo UNESP 2005 p 116-117

41KANT opcit p 79

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suficiente para substituiacute-la parcial ou inteiramente segundo uma determinada relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo contingente ao espiacuterito

A simples negaccedilatildeo da representaccedilatildeo considerando que ela simplesmente anulou a si mesma deixando assim de existir nos remete para a situaccedilatildeo de um nada irrepresentaacutevel um impensaacutevel natildeo-ser como em Parmecircnides Jaacute na privaccedilatildeo existe uma interaccedilatildeo entre forccedilas opostas a qual natildeo aparece como contradiccedilatildeo uma vez que princiacutepios afirmativos opostos (representaccedilotildees opostas) coincidiriam sob a mesma forma do pensamento anulando assim o efeito de uma delas ou de ambas O resultado eacute a afirmaccedilatildeo de um ser que eacute tambeacutem natildeo-ser jaacute que a negatividade do natildeo-ser da representaccedilatildeo aqui eacute simplesmente relativa dada pela situccedilatildeo de oposiccedilatildeo A representaccedilatildeo arbitrariamente tomada como negativa natildeo eacute menos ser que aquela tomada como positiva A supressatildeo de uma pela outra natildeo se mostra como contradiccedilatildeo mas como a privaccedilatildeo

Eacute concebiacutevel assim pensar legitimamente o natildeo-ser da representaccedilatildeo desde que seja considerado como privaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel se falar com verdade em princiacutepios opostos e equivalentes e que produzem em seu encontro a afirmaccedilatildeo de algo como um nada Dessa maneira seja a1

a afirmaccedilatildeo (ser) de um determinado estado de coisas no mundo (ou de uma representaccedilatildeo de algo no mundo) e a2 o seu equivalente oposto (o natildeo-ser) temos que

a1 ndash a2 = 0

Arbitrariamente tomamos a2 como a representaccedilatildeo negativa contudo a negatividade aqui revela apenas a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre a1 e a2 e natildeo uma situaccedilatildeo absoluta de a2 Como grandezas equivalentes que se opotildeem o resultado (= 0) revela uma oposiccedilatildeo real natildeo uma contradiccedilatildeo Nem a1

e a2 podem ser ditas potecircncias contraditoacuterias nessa relaccedilatildeo visto que este (= 0) eacute a afirmaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo de um ser que eacute tambeacutem um natildeo-ser assim como o repouso eacute igualmente uma forma de natildeo-ser do movimento O pensamento que leva em conta os opostos eacute pois uma possibilidade real e mesmo necessaacuteria para a consideraccedilatildeo do movimento

Segundo a foacutermula de Demoacutecrito o natildeo-ser natildeo eacute mais nem menos que o ser Ora soacute podemos entender essa afirmaccedilatildeo de duas maneiras convergentes ou como afirmaccedilatildeo do mesmo estatuto ontoloacutegico para o ser e para o natildeo-ser ou como atribuiccedilatildeo da mesma funccedilatildeo causal (material) para ambos Nos dois casos o ser soacute eacute na presenccedila ou com a premissa do natildeo-ser e vice-versa E assim o natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser Estaacute claro que esse princiacutepio natildeo

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se ajusta sem qualquer intervenccedilatildeo agraves formulaccedilotildees de Parmecircnides Por esse desacordo eacute possiacutevel identificar no antigo atomismo uma negatividade do ser que natildeo engendra a vacuidade do pensamento Pelo contraacuterio o movimento do pensamento soacute eacute possiacutevel por meio dessa oposiccedilatildeo fundamental Em Platatildeo esse movimento do pensamento ganha o nome de dialeacutetica

Concluiremos este estudo com a seguinte afirmaccedilatildeo de Kant ldquoTodos os fundamentos reais do universo quando se somam todos que satildeo consonantes e se subtraem uns dos outros os que se opotildeem entre si datildeo um resultado igual a zerordquo42 Esse zero significa a afirmaccedilatildeo da efetividade do mundo Esse zero representa um repouso que nem por isso deixa de ser dinacircmico Assim esperamos ter aproximado o conteuacutedo do Ensaio com o pensamento daqueles filoacutesofos da natureza que se colocavam conformes a um princiacutepio universal sem negar a unidade do pensamento e do movimento do mundo De acordo com eles o mundo deve se ordenar segundo esses princiacutepios mutuamente opostos ser e natildeo-ser os quais estatildeo na origem desse repouso dinacircmico na exata medida da efetivaccedilatildeo de seus encontros

SANTOS Eberth Eleuterio dos Leucippus Democritus and Kant a reflection on the equivalence between being and non-being TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 38 n 2 p 71-94 MaioAgo 2015

ABSTRACT Initially we present the theory of Democritus and Leucippus whereby being is not more than the not-being (non-being) in contrast to Eleatic ideas about the necessary inexistence of the not-being This discussion leads us to the opposition between the whole (full) and the empty which will then be transposed into the opposition between being and nothingness (or not-being) Thus the opposition between whole and the empty is an opposition that moves to being and not-being Finally we will make an assessment of the Kantian pre-critical essay Attempt to introduce the concept of negative magnitude into philosophy in which we recognize a kind of opposition that as we believe would be interpreted as being in agreement with the position of Democritus and Leucippus regarding the ontological status of the not-being as an equivalent principle to the being understood here not as a mutual contradiction in a purely logical sense

KEYWORDS ancient atomism Eleatism ontology

referecircncias

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42 Ibid p 89

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______ Parmecircnides Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos v VIII Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ Teeteto Traduccedilatildeo de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri Lisboa Calouste Gulbenkian 2010

______ Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Rodolfo Lopes Coimbra Universidade de Coimbra 201143

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assim afirmada Como o vazio eacute o proacuteprio ser-outro porque instantaneamente se coloca nessa relaccedilatildeo de vizinhanccedila originaacuteria e imediata com o ser o ser tambeacutem se coloca nessa relaccedilatildeo primitiva com o vazio e somente neste sentido o ser eacute isto eacute na medida em que natildeo eacute vazio Platatildeo parece se aproximar dessa posiccedilatildeo atomista quando no Sofista introduz a seguinte indagaccedilatildeo atraveacutes das palavras do Estrangeiro de Eleia ldquoAssim pois estaacute claro que o movimento eacute realmente natildeo ser ainda que seja ser na medida em que participa do serrdquo E prossegue

Segue-se pois necessariamente que haacute um ser do natildeo-ser natildeo somente no movimento mas em toda a seacuterie dos gecircneros pois na verdade em todos eles a natureza do outro faz cada um deles outro que natildeo o ser e por isso mesmo natildeo-ser Assim universalmente por essa relaccedilatildeo chamaremos a todos corretamente natildeo-ser e ao contraacuterio pelo fato de eles participarem do ser diremos que satildeo seres30

Por esse ponto de vista o ser tambeacutem eacute definido em funccedilatildeo de sua relaccedilatildeo com o natildeo-ser que aqui alinhamos com o vazio como o outro do pleno Desse modo essa subordinaccedilatildeo do ser em relaccedilatildeo ao natildeo-ser (o vazio) ou do natildeo-ser (vazio) em relaccedilatildeo ao ser redunda em uma relaccedilatildeo de simetria entre ambos Como resultado temos que natildeo haacute um sentido uacutenico ou prioritaacuterio no condicionamento ontocausal entre ser e vazio A conclusatildeo eacute que ao assumir o movimento como um fato da natureza ou como princiacutepio o ser deixa de apresentar prioridade ontoloacutegica e causal

Nesse sentido ser e natildeo-ser perfazem de maneira equivalente as condiccedilotildees necessaacuterias para o movimento E ainda que a oposiccedilatildeo radical seja o elo constituinte desses princiacutepios originaacuterios ela natildeo implica a anulaccedilatildeo muacutetua de um pelo outro quando simultaneamente justapostos no pensamento assim como os eleatas tentaram mostrar atraveacutes dos paradoxos associados agrave divisibilidade e ao movimento31 Pelo contraacuterio a oposiccedilatildeo radical entre pleno e vazio entre ser e natildeo-ser eacute a proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade do movimento e por isso da efetividade do real Passa a valer por conseguinte nesse caso a necessidade da bicondicionalidade ontocausal entre ser e natildeo-ser radicada na relaccedilatildeo de vizinhanccedila entre ambos na constituiccedilatildeo do real como efetiva e cambiante multiplicidade

30PLATAtildeO Sofista (256e) opcit p 18931Cf ZENAtildeO In BORHEIM op cit p 60-63

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Sumariando as teses de Demoacutecrito e Leucipo temos que

1 O ser eacute quando colocado numa relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o vazio

2 O vazio eacute prefigura junto ao pleno como condiccedilatildeo necessaacuteria para o movimento

3 As teses anteriores se reduzem agrave maacutexima O natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser

4 uma Leitura De Kant a partir Das consiDeraccedilotildees anteriores

Passamos agora a considerar de que form eacute possiacutevel obter por meio do texto Ensaio para introduzir em filosofia o conceito de grandeza negativa32 um novo focirclego para a discussatildeo precedente33 Assim ao analisarmos esse texto manteremos sob nosso olhar aquela oposiccedilatildeo radical e fundamental acima apontada entre ser e natildeo-ser para tentar entendecirc-la atraveacutes daquilo que Kant chama ora de oposiccedilatildeo real ora de oposiccedilatildeo loacutegica sendo a primeira o tipo de oposiccedilatildeoequivalecircncia que relacionaremos com o atomismo antigo e a segunda aquilo que identificaremos como a oposiccedilatildeocontradiccedilatildeo denunciada nas formulaccedilotildees do eleatismo

No prefaacutecio ao Ensaio Kant deixa claro que a filosofia pode se utilizar das ciecircncias naturais e exatas seja copiando seus meacutetodos seja aplicando suas proposiccedilotildees deslocando-as para um novo contexto34 Procederaacute entatildeo com a tentativa de introduzir no seio da filosofia a ideia de grandeza negativa recurso jaacute empregado em matemaacutetica e fiacutesica

Eacute preciso distinguir o significado da proposiccedilatildeo grandeza negativa daquele outro de negaccedilatildeo de uma grandeza35 Uma grandeza negativa eacute a afirmaccedilatildeo de uma grandeza que simplesmente se opotildee a uma outra e que portanto revela uma positividade colocada numa relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo a outra positividade Jaacute na expressatildeo negaccedilatildeo de uma grandeza a grandeza eacute tomada

32 Com o tiacutetulo Versuch den Begriff der negativen Grossen in die Weltweisheit einzufuumlhren essa obra foi publicada pela primeira vez em 1763 Doravante iremos nos referir a ela de maneira abreviada apenas por Ensaio

33Ver nota 134No ano seguinte agrave publicaccedilatildeo do Ensaio essa posiccedilatildeo a respeito da filosofia e das ciecircncias eacute relativizada

com a publicaccedilatildeo de um texto intitulado ldquoInvestigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moralrdquo In KANT Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In______ Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 101-140

35 KANT Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia Ibid p 56

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isoladamente sem qualquer relaccedilatildeo com outra e por isso nenhuma oposiccedilatildeo eacute considerada a partir dela Aqui Kant toma para si a ideia de oposiccedilatildeo que estaacute na raiacutez do conceito de movimento ou de forccedila na Fiacutesica

Nesse sentido a negatividade da formulaccedilatildeo grandeza negativa deve ser interpretada como a projeccedilatildeo da oposiccedilatildeo sobre uma das grandezas polares da relaccedilatildeo que se estabelece entre forccedilas no mundo daiacute a expressatildeo oposiccedilatildeo real Tomemos o exemplo de Kant segundo o qual a atraccedilatildeo negativa que um corpo exerce sobre outro seraacute erroneamente interpretada se for compreendida como a negaccedilatildeo da forccedila de atraccedilatildeo por sua vez seraacute acertadamente compreendida se for tomada como uma grandeza negativa a forccedila de repulsatildeo36 Dessa maneira ela soacute poderaacute ser considerada como negativa se tomada relativamente a outra grandeza a atraccedilatildeo do contraacuterio ela eacute positiva Ou seja a negatividade ou a positividade das grandezas soacute pode ser estabelecida de maneira relativa isto eacute dada a situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre elas No exemplo considerado se o resultado da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre as duas forccedilas de atraccedilatildeo (positiva e negativa) for o repouso entatildeo temos a privaccedilatildeo (nihil privativum representabile) do movimento do objeto sobre o qual essas forccedilas estatildeo agindo e atraveacutes do qual elas puderam se colocar em confronto

Nesse caso eacute necessaacuterio natildeo tomar o efeito (repousoausecircncia do movimento do objeto) pela causa (o equiliacutebrio entre as forccedilas de atraccedilatildeo positiva e negativa) O resultado desse desacerto do juiacutezo seria confundir atraccedilatildeo negativa com ausecircncia de atraccedilatildeo ou a grandeza negativa com negaccedilatildeo de uma grandeza

Consideremos juntamente com Kant o conceito de grandeza negativa em geral para em seguida determinar os seus significados especiacuteficos Levando-se em conta que a chave para predicarmos as grandezas eacute a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo37 entatildeo temos que verificar as duas maneiras por meio das quais podemos considerar essa noccedilatildeo 1ordm como oposiccedilatildeo loacutegica 2ordm como oposiccedilatildeo real Assim Kant estabelece dois niacuteveis de anaacutelise para a apreciaccedilatildeo da noccedilatildeo de oposiccedilatildeo aquele da loacutegica e aquele da natureza Com isso ele pretende distinguir as respectivas funccedilotildees causais da oposiccedilatildeo considerada em cada um desses niacuteveis

Na oposiccedilatildeo loacutegica natildeo resta nenhuma consequecircncia da conexatildeo entre a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo nihil negativum irrepresentabile Dadas duas

36Ibid p 5637Ibid p 57

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afirmaccedilotildees absolutamente contraacuterias o pensamento se surpreende na situaccedilatildeo de natildeo poder prosseguir com seu trabalho obediente como eacute aos princiacutepios de contradiccedilatildeo e terceiro excluiacutedo (tertium non datur) Nesse sentido a contradiccedilatildeo que eacute como entendemos a oposiccedilatildeo loacutegica gera um tipo de vacuidade do pensamento um nada impensaacutevel um absoluto vazio que eacute como aquele nada asseverado por Parmecircnides ldquoNecessaacuterio eacute dizer e pensar que soacute o ser eacute pois o ser eacute e o nada ao contraacuterio nada eacute []rdquo38

Se pensarmos nos estados de movimento e de repouso referidos ao mesmo objeto e abstraindo-se o tempo encontraremos na base mais elementar desses estados contraacuterios os conceitos de ser e de natildeo-ser tidos como opostos no sentido exclusivamente loacutegico (contraacuterios) obtendo como resultado a contradiccedilatildeo e a impossibilidade do pensamento Nesse caso movimento e repouso deixaram de ser grandezas ou estados de coisas e se tornaram puras abstraccedilotildees Logo o natildeo-ser da negatividade natildeo apresenta nenhum tipo de positividade Isto eacute o natildeo-ser eacute absolutamente negativo e eacute tomado como logicamente dependente da positividade do ser como sua pura negaccedilatildeo Por sua vez o ser eacute tomado como conceito originaacuterio e absoluto cuja positividade independe de qualquer relaccedilatildeo apresentando assim precedecircncia loacutegica e exclusividade ontoloacutegica sobre o natildeo-ser

Por outro lado natildeo eacute possiacutevel afirmar que o ser ou o natildeo-ser possuam qualquer prevalecircncia um sobre o outro qualquer antecedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica quando considerados como grandezas no mundo

O movimento eacute tomado como algo positivo na medida em que eacute a efetivaccedilatildeo de um estado de coisas ldquoxrdquo no mundo por sua vez o repouso eacute tambeacutem uma positividade na medida em que significa um outro estado de coisas ldquoyrdquo oposto a ldquoxrdquo A negatividade nessa oposiccedilatildeo recai arbitrariamente sobre ldquoxrdquo ou ldquoyrdquo por meio de uma proposiccedilatildeo que estabelece a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo A negatividade recairaacute sobre ldquoxrdquo ou sobre ldquoyrdquo de acordo com a forma assumida pela proposiccedilatildeo que iraacute fazer variar a negatividade (ou a positividade) em funccedilatildeo da finalidade enfaacutetica que se queira dar a ldquoxrdquo ou a ldquoyrdquo

Somente quando se diz que um mesmo corpo estaacute e natildeo estaacute a um soacute tempo e na mesma relaccedilatildeo em repouso ou em movimento eacute que essa vacuidade no pensar aparece

38ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν[]rdquo PARMENIDES fragmento B6 In BORHEIM op cit p 55

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Um corpo em movimento eacute algo um corpo que natildeo estaacute em movimento eacute tambeacutem algo (cogitabile) no entanto um corpo que ao mesmo tempo e justamente sob a mesma relaccedilatildeo estivesse e natildeo estivesse em movimento eacute absolutamente nada39

A expressatildeo a um soacute tempo significa que o corpo eacute colocado na situaccedilatildeo em que se abstrai a seacuterie contiacutenua do tempo Isso quer dizer que uma uacutenica porccedilatildeo elementar do tempo foi tomada e isolada das demais Todavia uma porccedilatildeo assim isolada do tempo tomada em sentido absoluto natildeo eacute tempo algum Uma vez que a seacuterie de tempo eacute contiacutenua ou se toma uma porccedilatildeo do tempo que por sua vez conteacutem em si uma nova seacuterie temporal infinita (nesse caso a parte eacute igual ao todo) ou natildeo se toma tempo algum Em outras palavras a expressatildeo a um soacute tempo natildeo tem aqui nenhum significado temporal positivo mas apenas negativo significando fora do tempo

Assim procedeu Parmecircnides ao abstrair o tempo para todas as formas proposicionais vaacutelidas reduzindo toda forma de pensamento a uma expressatildeo proposicional afirmativa atemporal onde a positividade eacute sempre absoluta e por isso possui prioridade loacutegica e ontoloacutegica sobre a negatividade Nesse caso toda oposiccedilatildeo eacute sempre contradiccedilatildeo

Jaacute na oposiccedilatildeo real encontramos uma forma de pensamento que natildeo subtrai a seacuterie do tempo Nesse caso a oposiccedilatildeo real apresenta uma estrutura a qual pode ser esquematicamente apresentada como (+A ndashA = B) onde (B = 0) ou (B ne 0) e onde os elementos integrantes dessa operaccedilatildeo (+A) e (ndashA) natildeo deixam de ser pela atribuiccedilatildeo de uma negatividade meramente relativa mesmo quando (B=0) sendo ambos justamente a causa eficiente desse privatio

O (B = 0) como privatio natildeo eacute mera nulidade devendo ser tratado como a realizaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo resultante de um encontro entre potecircncias equivalentes mas opostas uma a outra Aqui natildeo existe contradiccedilatildeo em dizer que se trata de potecircncias equivalentes-opostas pois nesse caso tanto a negatividade como a positividade satildeo relativas e natildeo absolutas Natildeo existe autonomia ontoloacutegica da positividade nem da negatividade Trata-se aqui de predicados e natildeo de seres

Por sua vez o estado de coisas representado por (B = 0) esta efetividade eacute novamente um natildeo-ser poreacutem apenas em relaccedilatildeo a outro estado de coisas a que ele se opotildee Assim este (0) eacute um algo que eacute predicado a algo inserido na 39 Ibidem p 58 grifos nossos

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seacuterie contiacutenua do tempo e que eacute designado como privaccedilatildeo Apenas quando se abstrai da seacuterie do tempo eacute que x = 0 representa um nada absoluto Nesse caso o que eacute afirmado eacute inteira e instantaneamente anulado pelo que eacute negado e vice-versa pois a positividade e a negatividade do que eacute afirmado e negado se referem aos proacuteprios seres

Jaacute na oposiccedilatildeo real ainda que duas condiccedilotildees contraacuterias atuem simultaneamente sobre o mesmo objeto a contradiccedilatildeo (vacuidade do pensamento) natildeo eacute o resultado porque a expressatildeo simultaneamente (ausecircncia de sucessatildeo temporal) eacute aqui relativizada Se pensarmos na destruiccedilatildeo de um corpo esse movimento seraacute oposto ao de sua criaccedilatildeo No entanto tais movimentos natildeo satildeo contraditoacuterios um ao outro quando pensados juntos Natildeo inferimos uma vacuidade no pensamento da conjunccedilatildeo simultacircnea desses dois eventos desde que sejam pensados como eventos e portanto diluiacutedos no contiacutenuo temporal A contiacutenua transformaccedilatildeo (movimento) dos corpos vivos por exemplo tem por base um confronto entre a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo celular atuando nos organismos vivos quer dizer um estado de coisas manifestamente expresso como forccedilas antagocircnicas simultaneamente presentes no mesmo objeto No niacutevel celular essa simultaneidade eacute relativizada enquanto algumas ceacutelulas satildeo criadas outras satildeo destruiacutedas Essa relativizaccedilatildeo da simultaneidade natildeo exclui um efetivo antagonismo seja em que niacutevel for onde a positividade ou a negatividade satildeo arbitrariamente atribuiacutedas a um dos polos da oposiccedilatildeo natildeo havendo qualquer precedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica de um polo sobre o outro A geraccedilatildeo eacute negativa se a destruiccedilatildeo for tomada como positiva e vice-versa

Na dinacircmica uma forccedila motriz eacute dita positiva somente quando oposta a outra dita negativa a resistecircncia Ainda que opostas uma a outra forccedilas com vetores contraacuterios desse encontro natildeo se infere um absurdo como uma contradiccedilatildeo mas um estado de coisas real de oposiccedilatildeo de contrariedade O resultado pode ser tanto o repouso no caso das forccedilas opostas possuiacuterem a mesma potecircncia (serem equivalentes) ou o movimento que apresenta o mesmo vetor de uma das forccedilas conflitantes Em ambos os casos o resultante dessa oposiccedilatildeo eacute algo que pode ser efetivamente afirmado sobre o mundo e natildeo um vazio ou um nada irrepresentaacutevel Ainda que nesse caso o repouso possa ser representado por (B = 0) este (B = 0) natildeo deve ser entendido como uma indeterminaccedilatildeo mas sim como privaccedilatildeo Logo percebemos que a contradiccedilatildeo natildeo eacute aplicaacutevel a estados de coisas imersos na seacuterie contiacutenua do tempo

Tanto na oposiccedilatildeo loacutegica como na oposiccedilatildeo real o efeito pode ser representado como (=0) ou como vazio ou ainda como nada Entretanto

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o sentido desse vazio ou desse nada deve ser relativizado para cada situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo Na oposiccedilatildeo loacutegica significa contradiccedilatildeo (nihil negativum irrepresentabile) ou ausecircncia da possibilidade do pensamento A nosso ver este seria o caso do significado do natildeo-ser empregado por Parmecircnides onde localizamos a supressatildeo instantacircnea (anulaccedilatildeo ausecircncia absoluta) dos opostos Jaacute o nada ou o vazio da oposiccedilatildeo real eacute absolutamente representaacutevel Aqui eacute possiacutevel embora de maneira arbitraacuteria estabelecer os valores positivo e negativo dos elementos que se colocam na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo

5 concLusatildeo

Apoacutes oferecer alguns exemplos para o conceito de grandeza negativa na segunda seccedilatildeo do Ensaio Kant conduz suas consideraccedilotildees para o campo da filosofia que para ele deve se ocupar prioritariamente da metafiacutesica e cujo meacutetodo analiacutetico apresentado por ele em outro de seus textos desse periacuteodo40 jaacute fornece indiacutecios dos passos que daraacute no sentido de sua futura proposta mais amadurecida para uma teoria criacutetico-transcendental

Assim alerta Kant no Ensaio entendemos facilmente que algo natildeo seja se lhe carece a razatildeo positiva para sua existecircncia todavia temos dificuldades para entender como algo que efetivamente eacute deixa de ser41 isto eacute temos dificuldade em compreender o correto sentido de privaccedilatildeo O esclarecimento acerca dessa questatildeo eacute fundamental jaacute que o vir-a-ser isto eacute o deixar de ser como privaccedilatildeo eacute a maneira mais fundamental de entender o conceito de movimento Essa dificuldade em reconhecer o correto sentido de privaccedilatildeo eacute o que algumas vezes nos compele a confundi-la com a contradiccedilatildeo e por isso obter como resultado a negaccedilatildeo do movimento compreendendo-o erroneamente como gerador do absurdo

Assim sugere Kant se represento o Sol em minha imaginaccedilatildeo e se no instante seguinte deixo de ter presente essa representaccedilatildeo em minha mente isso natildeo significa que meu pensamento sobre o Sol tenha simplesmente desaparecido e se tornado um puro nada aniquilando-se na vacuidade de uma contradiccedilatildeo entre ser e natildeo-ser mas sim porque a representaccedilatildeo do sol foi suprimida por outra sorte qualquer de ideia que se impocircs com a intensidade

40KANT I Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In ______ Escritos Preacute-criacuteticos Trad Jair Barboza [et al] Satildeo Paulo UNESP 2005 p 116-117

41KANT opcit p 79

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suficiente para substituiacute-la parcial ou inteiramente segundo uma determinada relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo contingente ao espiacuterito

A simples negaccedilatildeo da representaccedilatildeo considerando que ela simplesmente anulou a si mesma deixando assim de existir nos remete para a situaccedilatildeo de um nada irrepresentaacutevel um impensaacutevel natildeo-ser como em Parmecircnides Jaacute na privaccedilatildeo existe uma interaccedilatildeo entre forccedilas opostas a qual natildeo aparece como contradiccedilatildeo uma vez que princiacutepios afirmativos opostos (representaccedilotildees opostas) coincidiriam sob a mesma forma do pensamento anulando assim o efeito de uma delas ou de ambas O resultado eacute a afirmaccedilatildeo de um ser que eacute tambeacutem natildeo-ser jaacute que a negatividade do natildeo-ser da representaccedilatildeo aqui eacute simplesmente relativa dada pela situccedilatildeo de oposiccedilatildeo A representaccedilatildeo arbitrariamente tomada como negativa natildeo eacute menos ser que aquela tomada como positiva A supressatildeo de uma pela outra natildeo se mostra como contradiccedilatildeo mas como a privaccedilatildeo

Eacute concebiacutevel assim pensar legitimamente o natildeo-ser da representaccedilatildeo desde que seja considerado como privaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel se falar com verdade em princiacutepios opostos e equivalentes e que produzem em seu encontro a afirmaccedilatildeo de algo como um nada Dessa maneira seja a1

a afirmaccedilatildeo (ser) de um determinado estado de coisas no mundo (ou de uma representaccedilatildeo de algo no mundo) e a2 o seu equivalente oposto (o natildeo-ser) temos que

a1 ndash a2 = 0

Arbitrariamente tomamos a2 como a representaccedilatildeo negativa contudo a negatividade aqui revela apenas a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre a1 e a2 e natildeo uma situaccedilatildeo absoluta de a2 Como grandezas equivalentes que se opotildeem o resultado (= 0) revela uma oposiccedilatildeo real natildeo uma contradiccedilatildeo Nem a1

e a2 podem ser ditas potecircncias contraditoacuterias nessa relaccedilatildeo visto que este (= 0) eacute a afirmaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo de um ser que eacute tambeacutem um natildeo-ser assim como o repouso eacute igualmente uma forma de natildeo-ser do movimento O pensamento que leva em conta os opostos eacute pois uma possibilidade real e mesmo necessaacuteria para a consideraccedilatildeo do movimento

Segundo a foacutermula de Demoacutecrito o natildeo-ser natildeo eacute mais nem menos que o ser Ora soacute podemos entender essa afirmaccedilatildeo de duas maneiras convergentes ou como afirmaccedilatildeo do mesmo estatuto ontoloacutegico para o ser e para o natildeo-ser ou como atribuiccedilatildeo da mesma funccedilatildeo causal (material) para ambos Nos dois casos o ser soacute eacute na presenccedila ou com a premissa do natildeo-ser e vice-versa E assim o natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser Estaacute claro que esse princiacutepio natildeo

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se ajusta sem qualquer intervenccedilatildeo agraves formulaccedilotildees de Parmecircnides Por esse desacordo eacute possiacutevel identificar no antigo atomismo uma negatividade do ser que natildeo engendra a vacuidade do pensamento Pelo contraacuterio o movimento do pensamento soacute eacute possiacutevel por meio dessa oposiccedilatildeo fundamental Em Platatildeo esse movimento do pensamento ganha o nome de dialeacutetica

Concluiremos este estudo com a seguinte afirmaccedilatildeo de Kant ldquoTodos os fundamentos reais do universo quando se somam todos que satildeo consonantes e se subtraem uns dos outros os que se opotildeem entre si datildeo um resultado igual a zerordquo42 Esse zero significa a afirmaccedilatildeo da efetividade do mundo Esse zero representa um repouso que nem por isso deixa de ser dinacircmico Assim esperamos ter aproximado o conteuacutedo do Ensaio com o pensamento daqueles filoacutesofos da natureza que se colocavam conformes a um princiacutepio universal sem negar a unidade do pensamento e do movimento do mundo De acordo com eles o mundo deve se ordenar segundo esses princiacutepios mutuamente opostos ser e natildeo-ser os quais estatildeo na origem desse repouso dinacircmico na exata medida da efetivaccedilatildeo de seus encontros

SANTOS Eberth Eleuterio dos Leucippus Democritus and Kant a reflection on the equivalence between being and non-being TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 38 n 2 p 71-94 MaioAgo 2015

ABSTRACT Initially we present the theory of Democritus and Leucippus whereby being is not more than the not-being (non-being) in contrast to Eleatic ideas about the necessary inexistence of the not-being This discussion leads us to the opposition between the whole (full) and the empty which will then be transposed into the opposition between being and nothingness (or not-being) Thus the opposition between whole and the empty is an opposition that moves to being and not-being Finally we will make an assessment of the Kantian pre-critical essay Attempt to introduce the concept of negative magnitude into philosophy in which we recognize a kind of opposition that as we believe would be interpreted as being in agreement with the position of Democritus and Leucippus regarding the ontological status of the not-being as an equivalent principle to the being understood here not as a mutual contradiction in a purely logical sense

KEYWORDS ancient atomism Eleatism ontology

referecircncias

ARISTOacuteTELES Da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo seguido de convite agrave filosofia Traduccedilatildeo de Renata Maria Pereira Cordeiro Satildeo Paulo Landy 2001

42 Ibid p 89

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______ Fiacutesica I ndash II Traduccedilatildeo de Lucas Angioni Campinas Editora da UNICAMP 2009

______ Metafiacutesica texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterio de Giovanni Reale Traduccedilatildeo de Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2005 3v

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PARMENIDES Fragmentos sobre a natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

______ Da natureza Traduccedilatildeo de Jose Gabriel Trindade Santos (modificada pelo tradutor) Satildeo Paulo Loyola 2002

PLATAtildeO Filebo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ O sofista Traduccedilatildeo de Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Abril Cultural 1972

______ Parmecircnides Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos v VIII Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

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______ Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Rodolfo Lopes Coimbra Universidade de Coimbra 201143

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Sumariando as teses de Demoacutecrito e Leucipo temos que

1 O ser eacute quando colocado numa relaccedilatildeo de vizinhanccedila com o vazio

2 O vazio eacute prefigura junto ao pleno como condiccedilatildeo necessaacuteria para o movimento

3 As teses anteriores se reduzem agrave maacutexima O natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser

4 uma Leitura De Kant a partir Das consiDeraccedilotildees anteriores

Passamos agora a considerar de que form eacute possiacutevel obter por meio do texto Ensaio para introduzir em filosofia o conceito de grandeza negativa32 um novo focirclego para a discussatildeo precedente33 Assim ao analisarmos esse texto manteremos sob nosso olhar aquela oposiccedilatildeo radical e fundamental acima apontada entre ser e natildeo-ser para tentar entendecirc-la atraveacutes daquilo que Kant chama ora de oposiccedilatildeo real ora de oposiccedilatildeo loacutegica sendo a primeira o tipo de oposiccedilatildeoequivalecircncia que relacionaremos com o atomismo antigo e a segunda aquilo que identificaremos como a oposiccedilatildeocontradiccedilatildeo denunciada nas formulaccedilotildees do eleatismo

No prefaacutecio ao Ensaio Kant deixa claro que a filosofia pode se utilizar das ciecircncias naturais e exatas seja copiando seus meacutetodos seja aplicando suas proposiccedilotildees deslocando-as para um novo contexto34 Procederaacute entatildeo com a tentativa de introduzir no seio da filosofia a ideia de grandeza negativa recurso jaacute empregado em matemaacutetica e fiacutesica

Eacute preciso distinguir o significado da proposiccedilatildeo grandeza negativa daquele outro de negaccedilatildeo de uma grandeza35 Uma grandeza negativa eacute a afirmaccedilatildeo de uma grandeza que simplesmente se opotildee a uma outra e que portanto revela uma positividade colocada numa relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo a outra positividade Jaacute na expressatildeo negaccedilatildeo de uma grandeza a grandeza eacute tomada

32 Com o tiacutetulo Versuch den Begriff der negativen Grossen in die Weltweisheit einzufuumlhren essa obra foi publicada pela primeira vez em 1763 Doravante iremos nos referir a ela de maneira abreviada apenas por Ensaio

33Ver nota 134No ano seguinte agrave publicaccedilatildeo do Ensaio essa posiccedilatildeo a respeito da filosofia e das ciecircncias eacute relativizada

com a publicaccedilatildeo de um texto intitulado ldquoInvestigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moralrdquo In KANT Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In______ Escritos preacute-criacuteticos Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 101-140

35 KANT Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia Ibid p 56

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isoladamente sem qualquer relaccedilatildeo com outra e por isso nenhuma oposiccedilatildeo eacute considerada a partir dela Aqui Kant toma para si a ideia de oposiccedilatildeo que estaacute na raiacutez do conceito de movimento ou de forccedila na Fiacutesica

Nesse sentido a negatividade da formulaccedilatildeo grandeza negativa deve ser interpretada como a projeccedilatildeo da oposiccedilatildeo sobre uma das grandezas polares da relaccedilatildeo que se estabelece entre forccedilas no mundo daiacute a expressatildeo oposiccedilatildeo real Tomemos o exemplo de Kant segundo o qual a atraccedilatildeo negativa que um corpo exerce sobre outro seraacute erroneamente interpretada se for compreendida como a negaccedilatildeo da forccedila de atraccedilatildeo por sua vez seraacute acertadamente compreendida se for tomada como uma grandeza negativa a forccedila de repulsatildeo36 Dessa maneira ela soacute poderaacute ser considerada como negativa se tomada relativamente a outra grandeza a atraccedilatildeo do contraacuterio ela eacute positiva Ou seja a negatividade ou a positividade das grandezas soacute pode ser estabelecida de maneira relativa isto eacute dada a situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre elas No exemplo considerado se o resultado da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre as duas forccedilas de atraccedilatildeo (positiva e negativa) for o repouso entatildeo temos a privaccedilatildeo (nihil privativum representabile) do movimento do objeto sobre o qual essas forccedilas estatildeo agindo e atraveacutes do qual elas puderam se colocar em confronto

Nesse caso eacute necessaacuterio natildeo tomar o efeito (repousoausecircncia do movimento do objeto) pela causa (o equiliacutebrio entre as forccedilas de atraccedilatildeo positiva e negativa) O resultado desse desacerto do juiacutezo seria confundir atraccedilatildeo negativa com ausecircncia de atraccedilatildeo ou a grandeza negativa com negaccedilatildeo de uma grandeza

Consideremos juntamente com Kant o conceito de grandeza negativa em geral para em seguida determinar os seus significados especiacuteficos Levando-se em conta que a chave para predicarmos as grandezas eacute a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo37 entatildeo temos que verificar as duas maneiras por meio das quais podemos considerar essa noccedilatildeo 1ordm como oposiccedilatildeo loacutegica 2ordm como oposiccedilatildeo real Assim Kant estabelece dois niacuteveis de anaacutelise para a apreciaccedilatildeo da noccedilatildeo de oposiccedilatildeo aquele da loacutegica e aquele da natureza Com isso ele pretende distinguir as respectivas funccedilotildees causais da oposiccedilatildeo considerada em cada um desses niacuteveis

Na oposiccedilatildeo loacutegica natildeo resta nenhuma consequecircncia da conexatildeo entre a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo nihil negativum irrepresentabile Dadas duas

36Ibid p 5637Ibid p 57

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afirmaccedilotildees absolutamente contraacuterias o pensamento se surpreende na situaccedilatildeo de natildeo poder prosseguir com seu trabalho obediente como eacute aos princiacutepios de contradiccedilatildeo e terceiro excluiacutedo (tertium non datur) Nesse sentido a contradiccedilatildeo que eacute como entendemos a oposiccedilatildeo loacutegica gera um tipo de vacuidade do pensamento um nada impensaacutevel um absoluto vazio que eacute como aquele nada asseverado por Parmecircnides ldquoNecessaacuterio eacute dizer e pensar que soacute o ser eacute pois o ser eacute e o nada ao contraacuterio nada eacute []rdquo38

Se pensarmos nos estados de movimento e de repouso referidos ao mesmo objeto e abstraindo-se o tempo encontraremos na base mais elementar desses estados contraacuterios os conceitos de ser e de natildeo-ser tidos como opostos no sentido exclusivamente loacutegico (contraacuterios) obtendo como resultado a contradiccedilatildeo e a impossibilidade do pensamento Nesse caso movimento e repouso deixaram de ser grandezas ou estados de coisas e se tornaram puras abstraccedilotildees Logo o natildeo-ser da negatividade natildeo apresenta nenhum tipo de positividade Isto eacute o natildeo-ser eacute absolutamente negativo e eacute tomado como logicamente dependente da positividade do ser como sua pura negaccedilatildeo Por sua vez o ser eacute tomado como conceito originaacuterio e absoluto cuja positividade independe de qualquer relaccedilatildeo apresentando assim precedecircncia loacutegica e exclusividade ontoloacutegica sobre o natildeo-ser

Por outro lado natildeo eacute possiacutevel afirmar que o ser ou o natildeo-ser possuam qualquer prevalecircncia um sobre o outro qualquer antecedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica quando considerados como grandezas no mundo

O movimento eacute tomado como algo positivo na medida em que eacute a efetivaccedilatildeo de um estado de coisas ldquoxrdquo no mundo por sua vez o repouso eacute tambeacutem uma positividade na medida em que significa um outro estado de coisas ldquoyrdquo oposto a ldquoxrdquo A negatividade nessa oposiccedilatildeo recai arbitrariamente sobre ldquoxrdquo ou ldquoyrdquo por meio de uma proposiccedilatildeo que estabelece a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo A negatividade recairaacute sobre ldquoxrdquo ou sobre ldquoyrdquo de acordo com a forma assumida pela proposiccedilatildeo que iraacute fazer variar a negatividade (ou a positividade) em funccedilatildeo da finalidade enfaacutetica que se queira dar a ldquoxrdquo ou a ldquoyrdquo

Somente quando se diz que um mesmo corpo estaacute e natildeo estaacute a um soacute tempo e na mesma relaccedilatildeo em repouso ou em movimento eacute que essa vacuidade no pensar aparece

38ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν[]rdquo PARMENIDES fragmento B6 In BORHEIM op cit p 55

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Um corpo em movimento eacute algo um corpo que natildeo estaacute em movimento eacute tambeacutem algo (cogitabile) no entanto um corpo que ao mesmo tempo e justamente sob a mesma relaccedilatildeo estivesse e natildeo estivesse em movimento eacute absolutamente nada39

A expressatildeo a um soacute tempo significa que o corpo eacute colocado na situaccedilatildeo em que se abstrai a seacuterie contiacutenua do tempo Isso quer dizer que uma uacutenica porccedilatildeo elementar do tempo foi tomada e isolada das demais Todavia uma porccedilatildeo assim isolada do tempo tomada em sentido absoluto natildeo eacute tempo algum Uma vez que a seacuterie de tempo eacute contiacutenua ou se toma uma porccedilatildeo do tempo que por sua vez conteacutem em si uma nova seacuterie temporal infinita (nesse caso a parte eacute igual ao todo) ou natildeo se toma tempo algum Em outras palavras a expressatildeo a um soacute tempo natildeo tem aqui nenhum significado temporal positivo mas apenas negativo significando fora do tempo

Assim procedeu Parmecircnides ao abstrair o tempo para todas as formas proposicionais vaacutelidas reduzindo toda forma de pensamento a uma expressatildeo proposicional afirmativa atemporal onde a positividade eacute sempre absoluta e por isso possui prioridade loacutegica e ontoloacutegica sobre a negatividade Nesse caso toda oposiccedilatildeo eacute sempre contradiccedilatildeo

Jaacute na oposiccedilatildeo real encontramos uma forma de pensamento que natildeo subtrai a seacuterie do tempo Nesse caso a oposiccedilatildeo real apresenta uma estrutura a qual pode ser esquematicamente apresentada como (+A ndashA = B) onde (B = 0) ou (B ne 0) e onde os elementos integrantes dessa operaccedilatildeo (+A) e (ndashA) natildeo deixam de ser pela atribuiccedilatildeo de uma negatividade meramente relativa mesmo quando (B=0) sendo ambos justamente a causa eficiente desse privatio

O (B = 0) como privatio natildeo eacute mera nulidade devendo ser tratado como a realizaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo resultante de um encontro entre potecircncias equivalentes mas opostas uma a outra Aqui natildeo existe contradiccedilatildeo em dizer que se trata de potecircncias equivalentes-opostas pois nesse caso tanto a negatividade como a positividade satildeo relativas e natildeo absolutas Natildeo existe autonomia ontoloacutegica da positividade nem da negatividade Trata-se aqui de predicados e natildeo de seres

Por sua vez o estado de coisas representado por (B = 0) esta efetividade eacute novamente um natildeo-ser poreacutem apenas em relaccedilatildeo a outro estado de coisas a que ele se opotildee Assim este (0) eacute um algo que eacute predicado a algo inserido na 39 Ibidem p 58 grifos nossos

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seacuterie contiacutenua do tempo e que eacute designado como privaccedilatildeo Apenas quando se abstrai da seacuterie do tempo eacute que x = 0 representa um nada absoluto Nesse caso o que eacute afirmado eacute inteira e instantaneamente anulado pelo que eacute negado e vice-versa pois a positividade e a negatividade do que eacute afirmado e negado se referem aos proacuteprios seres

Jaacute na oposiccedilatildeo real ainda que duas condiccedilotildees contraacuterias atuem simultaneamente sobre o mesmo objeto a contradiccedilatildeo (vacuidade do pensamento) natildeo eacute o resultado porque a expressatildeo simultaneamente (ausecircncia de sucessatildeo temporal) eacute aqui relativizada Se pensarmos na destruiccedilatildeo de um corpo esse movimento seraacute oposto ao de sua criaccedilatildeo No entanto tais movimentos natildeo satildeo contraditoacuterios um ao outro quando pensados juntos Natildeo inferimos uma vacuidade no pensamento da conjunccedilatildeo simultacircnea desses dois eventos desde que sejam pensados como eventos e portanto diluiacutedos no contiacutenuo temporal A contiacutenua transformaccedilatildeo (movimento) dos corpos vivos por exemplo tem por base um confronto entre a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo celular atuando nos organismos vivos quer dizer um estado de coisas manifestamente expresso como forccedilas antagocircnicas simultaneamente presentes no mesmo objeto No niacutevel celular essa simultaneidade eacute relativizada enquanto algumas ceacutelulas satildeo criadas outras satildeo destruiacutedas Essa relativizaccedilatildeo da simultaneidade natildeo exclui um efetivo antagonismo seja em que niacutevel for onde a positividade ou a negatividade satildeo arbitrariamente atribuiacutedas a um dos polos da oposiccedilatildeo natildeo havendo qualquer precedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica de um polo sobre o outro A geraccedilatildeo eacute negativa se a destruiccedilatildeo for tomada como positiva e vice-versa

Na dinacircmica uma forccedila motriz eacute dita positiva somente quando oposta a outra dita negativa a resistecircncia Ainda que opostas uma a outra forccedilas com vetores contraacuterios desse encontro natildeo se infere um absurdo como uma contradiccedilatildeo mas um estado de coisas real de oposiccedilatildeo de contrariedade O resultado pode ser tanto o repouso no caso das forccedilas opostas possuiacuterem a mesma potecircncia (serem equivalentes) ou o movimento que apresenta o mesmo vetor de uma das forccedilas conflitantes Em ambos os casos o resultante dessa oposiccedilatildeo eacute algo que pode ser efetivamente afirmado sobre o mundo e natildeo um vazio ou um nada irrepresentaacutevel Ainda que nesse caso o repouso possa ser representado por (B = 0) este (B = 0) natildeo deve ser entendido como uma indeterminaccedilatildeo mas sim como privaccedilatildeo Logo percebemos que a contradiccedilatildeo natildeo eacute aplicaacutevel a estados de coisas imersos na seacuterie contiacutenua do tempo

Tanto na oposiccedilatildeo loacutegica como na oposiccedilatildeo real o efeito pode ser representado como (=0) ou como vazio ou ainda como nada Entretanto

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o sentido desse vazio ou desse nada deve ser relativizado para cada situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo Na oposiccedilatildeo loacutegica significa contradiccedilatildeo (nihil negativum irrepresentabile) ou ausecircncia da possibilidade do pensamento A nosso ver este seria o caso do significado do natildeo-ser empregado por Parmecircnides onde localizamos a supressatildeo instantacircnea (anulaccedilatildeo ausecircncia absoluta) dos opostos Jaacute o nada ou o vazio da oposiccedilatildeo real eacute absolutamente representaacutevel Aqui eacute possiacutevel embora de maneira arbitraacuteria estabelecer os valores positivo e negativo dos elementos que se colocam na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo

5 concLusatildeo

Apoacutes oferecer alguns exemplos para o conceito de grandeza negativa na segunda seccedilatildeo do Ensaio Kant conduz suas consideraccedilotildees para o campo da filosofia que para ele deve se ocupar prioritariamente da metafiacutesica e cujo meacutetodo analiacutetico apresentado por ele em outro de seus textos desse periacuteodo40 jaacute fornece indiacutecios dos passos que daraacute no sentido de sua futura proposta mais amadurecida para uma teoria criacutetico-transcendental

Assim alerta Kant no Ensaio entendemos facilmente que algo natildeo seja se lhe carece a razatildeo positiva para sua existecircncia todavia temos dificuldades para entender como algo que efetivamente eacute deixa de ser41 isto eacute temos dificuldade em compreender o correto sentido de privaccedilatildeo O esclarecimento acerca dessa questatildeo eacute fundamental jaacute que o vir-a-ser isto eacute o deixar de ser como privaccedilatildeo eacute a maneira mais fundamental de entender o conceito de movimento Essa dificuldade em reconhecer o correto sentido de privaccedilatildeo eacute o que algumas vezes nos compele a confundi-la com a contradiccedilatildeo e por isso obter como resultado a negaccedilatildeo do movimento compreendendo-o erroneamente como gerador do absurdo

Assim sugere Kant se represento o Sol em minha imaginaccedilatildeo e se no instante seguinte deixo de ter presente essa representaccedilatildeo em minha mente isso natildeo significa que meu pensamento sobre o Sol tenha simplesmente desaparecido e se tornado um puro nada aniquilando-se na vacuidade de uma contradiccedilatildeo entre ser e natildeo-ser mas sim porque a representaccedilatildeo do sol foi suprimida por outra sorte qualquer de ideia que se impocircs com a intensidade

40KANT I Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In ______ Escritos Preacute-criacuteticos Trad Jair Barboza [et al] Satildeo Paulo UNESP 2005 p 116-117

41KANT opcit p 79

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suficiente para substituiacute-la parcial ou inteiramente segundo uma determinada relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo contingente ao espiacuterito

A simples negaccedilatildeo da representaccedilatildeo considerando que ela simplesmente anulou a si mesma deixando assim de existir nos remete para a situaccedilatildeo de um nada irrepresentaacutevel um impensaacutevel natildeo-ser como em Parmecircnides Jaacute na privaccedilatildeo existe uma interaccedilatildeo entre forccedilas opostas a qual natildeo aparece como contradiccedilatildeo uma vez que princiacutepios afirmativos opostos (representaccedilotildees opostas) coincidiriam sob a mesma forma do pensamento anulando assim o efeito de uma delas ou de ambas O resultado eacute a afirmaccedilatildeo de um ser que eacute tambeacutem natildeo-ser jaacute que a negatividade do natildeo-ser da representaccedilatildeo aqui eacute simplesmente relativa dada pela situccedilatildeo de oposiccedilatildeo A representaccedilatildeo arbitrariamente tomada como negativa natildeo eacute menos ser que aquela tomada como positiva A supressatildeo de uma pela outra natildeo se mostra como contradiccedilatildeo mas como a privaccedilatildeo

Eacute concebiacutevel assim pensar legitimamente o natildeo-ser da representaccedilatildeo desde que seja considerado como privaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel se falar com verdade em princiacutepios opostos e equivalentes e que produzem em seu encontro a afirmaccedilatildeo de algo como um nada Dessa maneira seja a1

a afirmaccedilatildeo (ser) de um determinado estado de coisas no mundo (ou de uma representaccedilatildeo de algo no mundo) e a2 o seu equivalente oposto (o natildeo-ser) temos que

a1 ndash a2 = 0

Arbitrariamente tomamos a2 como a representaccedilatildeo negativa contudo a negatividade aqui revela apenas a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre a1 e a2 e natildeo uma situaccedilatildeo absoluta de a2 Como grandezas equivalentes que se opotildeem o resultado (= 0) revela uma oposiccedilatildeo real natildeo uma contradiccedilatildeo Nem a1

e a2 podem ser ditas potecircncias contraditoacuterias nessa relaccedilatildeo visto que este (= 0) eacute a afirmaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo de um ser que eacute tambeacutem um natildeo-ser assim como o repouso eacute igualmente uma forma de natildeo-ser do movimento O pensamento que leva em conta os opostos eacute pois uma possibilidade real e mesmo necessaacuteria para a consideraccedilatildeo do movimento

Segundo a foacutermula de Demoacutecrito o natildeo-ser natildeo eacute mais nem menos que o ser Ora soacute podemos entender essa afirmaccedilatildeo de duas maneiras convergentes ou como afirmaccedilatildeo do mesmo estatuto ontoloacutegico para o ser e para o natildeo-ser ou como atribuiccedilatildeo da mesma funccedilatildeo causal (material) para ambos Nos dois casos o ser soacute eacute na presenccedila ou com a premissa do natildeo-ser e vice-versa E assim o natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser Estaacute claro que esse princiacutepio natildeo

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se ajusta sem qualquer intervenccedilatildeo agraves formulaccedilotildees de Parmecircnides Por esse desacordo eacute possiacutevel identificar no antigo atomismo uma negatividade do ser que natildeo engendra a vacuidade do pensamento Pelo contraacuterio o movimento do pensamento soacute eacute possiacutevel por meio dessa oposiccedilatildeo fundamental Em Platatildeo esse movimento do pensamento ganha o nome de dialeacutetica

Concluiremos este estudo com a seguinte afirmaccedilatildeo de Kant ldquoTodos os fundamentos reais do universo quando se somam todos que satildeo consonantes e se subtraem uns dos outros os que se opotildeem entre si datildeo um resultado igual a zerordquo42 Esse zero significa a afirmaccedilatildeo da efetividade do mundo Esse zero representa um repouso que nem por isso deixa de ser dinacircmico Assim esperamos ter aproximado o conteuacutedo do Ensaio com o pensamento daqueles filoacutesofos da natureza que se colocavam conformes a um princiacutepio universal sem negar a unidade do pensamento e do movimento do mundo De acordo com eles o mundo deve se ordenar segundo esses princiacutepios mutuamente opostos ser e natildeo-ser os quais estatildeo na origem desse repouso dinacircmico na exata medida da efetivaccedilatildeo de seus encontros

SANTOS Eberth Eleuterio dos Leucippus Democritus and Kant a reflection on the equivalence between being and non-being TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 38 n 2 p 71-94 MaioAgo 2015

ABSTRACT Initially we present the theory of Democritus and Leucippus whereby being is not more than the not-being (non-being) in contrast to Eleatic ideas about the necessary inexistence of the not-being This discussion leads us to the opposition between the whole (full) and the empty which will then be transposed into the opposition between being and nothingness (or not-being) Thus the opposition between whole and the empty is an opposition that moves to being and not-being Finally we will make an assessment of the Kantian pre-critical essay Attempt to introduce the concept of negative magnitude into philosophy in which we recognize a kind of opposition that as we believe would be interpreted as being in agreement with the position of Democritus and Leucippus regarding the ontological status of the not-being as an equivalent principle to the being understood here not as a mutual contradiction in a purely logical sense

KEYWORDS ancient atomism Eleatism ontology

referecircncias

ARISTOacuteTELES Da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo seguido de convite agrave filosofia Traduccedilatildeo de Renata Maria Pereira Cordeiro Satildeo Paulo Landy 2001

42 Ibid p 89

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______ Fiacutesica I ndash II Traduccedilatildeo de Lucas Angioni Campinas Editora da UNICAMP 2009

______ Metafiacutesica texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterio de Giovanni Reale Traduccedilatildeo de Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2005 3v

BARNES J Filoacutesofos preacute-socraacuteticos Traduccedilatildeo de Juacutelio Fischer 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

BORNHEIM G Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Cultrix 2000

_______ O que eacute metafiacutesica Traduccedilatildeo de Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

HEIDEGGER M Die Zeit des Weltbildes (1938) In ______ Gesamtausgabe Frankfurt Klostermann 87-88 (1977) Bd 5 Holzwege

KANT I Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia In ______ Escritos preacute-criacuteticos Traduccedilatildeo de Viniacutecius de Figueiredo e Jair Barbosa Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 51-99

______ Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur neacutegative Traduccedilatildeo de Roger Kempf 2 eacuted Paris J Vrin 1972 (Bibliothegraveque de textes philosophiques)

______ Versuch den Begriff der negative Grossen in die Weltweisheit einzufuhres Neueste Aufl Graz Andreas Leikam 1797 Disponiacutevel em lt httpsarchiveorgstreamversuchdenbegri00kantgoogpagen43mode2upgt Acesso em 22 dez 2013

PARMENIDES Fragmentos sobre a natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

______ Da natureza Traduccedilatildeo de Jose Gabriel Trindade Santos (modificada pelo tradutor) Satildeo Paulo Loyola 2002

PLATAtildeO Filebo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ O sofista Traduccedilatildeo de Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Abril Cultural 1972

______ Parmecircnides Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos v VIII Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ Teeteto Traduccedilatildeo de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri Lisboa Calouste Gulbenkian 2010

______ Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Rodolfo Lopes Coimbra Universidade de Coimbra 201143

Recebido Received 07092014Aprovado Approved 10012015

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isoladamente sem qualquer relaccedilatildeo com outra e por isso nenhuma oposiccedilatildeo eacute considerada a partir dela Aqui Kant toma para si a ideia de oposiccedilatildeo que estaacute na raiacutez do conceito de movimento ou de forccedila na Fiacutesica

Nesse sentido a negatividade da formulaccedilatildeo grandeza negativa deve ser interpretada como a projeccedilatildeo da oposiccedilatildeo sobre uma das grandezas polares da relaccedilatildeo que se estabelece entre forccedilas no mundo daiacute a expressatildeo oposiccedilatildeo real Tomemos o exemplo de Kant segundo o qual a atraccedilatildeo negativa que um corpo exerce sobre outro seraacute erroneamente interpretada se for compreendida como a negaccedilatildeo da forccedila de atraccedilatildeo por sua vez seraacute acertadamente compreendida se for tomada como uma grandeza negativa a forccedila de repulsatildeo36 Dessa maneira ela soacute poderaacute ser considerada como negativa se tomada relativamente a outra grandeza a atraccedilatildeo do contraacuterio ela eacute positiva Ou seja a negatividade ou a positividade das grandezas soacute pode ser estabelecida de maneira relativa isto eacute dada a situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre elas No exemplo considerado se o resultado da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre as duas forccedilas de atraccedilatildeo (positiva e negativa) for o repouso entatildeo temos a privaccedilatildeo (nihil privativum representabile) do movimento do objeto sobre o qual essas forccedilas estatildeo agindo e atraveacutes do qual elas puderam se colocar em confronto

Nesse caso eacute necessaacuterio natildeo tomar o efeito (repousoausecircncia do movimento do objeto) pela causa (o equiliacutebrio entre as forccedilas de atraccedilatildeo positiva e negativa) O resultado desse desacerto do juiacutezo seria confundir atraccedilatildeo negativa com ausecircncia de atraccedilatildeo ou a grandeza negativa com negaccedilatildeo de uma grandeza

Consideremos juntamente com Kant o conceito de grandeza negativa em geral para em seguida determinar os seus significados especiacuteficos Levando-se em conta que a chave para predicarmos as grandezas eacute a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo37 entatildeo temos que verificar as duas maneiras por meio das quais podemos considerar essa noccedilatildeo 1ordm como oposiccedilatildeo loacutegica 2ordm como oposiccedilatildeo real Assim Kant estabelece dois niacuteveis de anaacutelise para a apreciaccedilatildeo da noccedilatildeo de oposiccedilatildeo aquele da loacutegica e aquele da natureza Com isso ele pretende distinguir as respectivas funccedilotildees causais da oposiccedilatildeo considerada em cada um desses niacuteveis

Na oposiccedilatildeo loacutegica natildeo resta nenhuma consequecircncia da conexatildeo entre a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo nihil negativum irrepresentabile Dadas duas

36Ibid p 5637Ibid p 57

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afirmaccedilotildees absolutamente contraacuterias o pensamento se surpreende na situaccedilatildeo de natildeo poder prosseguir com seu trabalho obediente como eacute aos princiacutepios de contradiccedilatildeo e terceiro excluiacutedo (tertium non datur) Nesse sentido a contradiccedilatildeo que eacute como entendemos a oposiccedilatildeo loacutegica gera um tipo de vacuidade do pensamento um nada impensaacutevel um absoluto vazio que eacute como aquele nada asseverado por Parmecircnides ldquoNecessaacuterio eacute dizer e pensar que soacute o ser eacute pois o ser eacute e o nada ao contraacuterio nada eacute []rdquo38

Se pensarmos nos estados de movimento e de repouso referidos ao mesmo objeto e abstraindo-se o tempo encontraremos na base mais elementar desses estados contraacuterios os conceitos de ser e de natildeo-ser tidos como opostos no sentido exclusivamente loacutegico (contraacuterios) obtendo como resultado a contradiccedilatildeo e a impossibilidade do pensamento Nesse caso movimento e repouso deixaram de ser grandezas ou estados de coisas e se tornaram puras abstraccedilotildees Logo o natildeo-ser da negatividade natildeo apresenta nenhum tipo de positividade Isto eacute o natildeo-ser eacute absolutamente negativo e eacute tomado como logicamente dependente da positividade do ser como sua pura negaccedilatildeo Por sua vez o ser eacute tomado como conceito originaacuterio e absoluto cuja positividade independe de qualquer relaccedilatildeo apresentando assim precedecircncia loacutegica e exclusividade ontoloacutegica sobre o natildeo-ser

Por outro lado natildeo eacute possiacutevel afirmar que o ser ou o natildeo-ser possuam qualquer prevalecircncia um sobre o outro qualquer antecedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica quando considerados como grandezas no mundo

O movimento eacute tomado como algo positivo na medida em que eacute a efetivaccedilatildeo de um estado de coisas ldquoxrdquo no mundo por sua vez o repouso eacute tambeacutem uma positividade na medida em que significa um outro estado de coisas ldquoyrdquo oposto a ldquoxrdquo A negatividade nessa oposiccedilatildeo recai arbitrariamente sobre ldquoxrdquo ou ldquoyrdquo por meio de uma proposiccedilatildeo que estabelece a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo A negatividade recairaacute sobre ldquoxrdquo ou sobre ldquoyrdquo de acordo com a forma assumida pela proposiccedilatildeo que iraacute fazer variar a negatividade (ou a positividade) em funccedilatildeo da finalidade enfaacutetica que se queira dar a ldquoxrdquo ou a ldquoyrdquo

Somente quando se diz que um mesmo corpo estaacute e natildeo estaacute a um soacute tempo e na mesma relaccedilatildeo em repouso ou em movimento eacute que essa vacuidade no pensar aparece

38ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν[]rdquo PARMENIDES fragmento B6 In BORHEIM op cit p 55

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Um corpo em movimento eacute algo um corpo que natildeo estaacute em movimento eacute tambeacutem algo (cogitabile) no entanto um corpo que ao mesmo tempo e justamente sob a mesma relaccedilatildeo estivesse e natildeo estivesse em movimento eacute absolutamente nada39

A expressatildeo a um soacute tempo significa que o corpo eacute colocado na situaccedilatildeo em que se abstrai a seacuterie contiacutenua do tempo Isso quer dizer que uma uacutenica porccedilatildeo elementar do tempo foi tomada e isolada das demais Todavia uma porccedilatildeo assim isolada do tempo tomada em sentido absoluto natildeo eacute tempo algum Uma vez que a seacuterie de tempo eacute contiacutenua ou se toma uma porccedilatildeo do tempo que por sua vez conteacutem em si uma nova seacuterie temporal infinita (nesse caso a parte eacute igual ao todo) ou natildeo se toma tempo algum Em outras palavras a expressatildeo a um soacute tempo natildeo tem aqui nenhum significado temporal positivo mas apenas negativo significando fora do tempo

Assim procedeu Parmecircnides ao abstrair o tempo para todas as formas proposicionais vaacutelidas reduzindo toda forma de pensamento a uma expressatildeo proposicional afirmativa atemporal onde a positividade eacute sempre absoluta e por isso possui prioridade loacutegica e ontoloacutegica sobre a negatividade Nesse caso toda oposiccedilatildeo eacute sempre contradiccedilatildeo

Jaacute na oposiccedilatildeo real encontramos uma forma de pensamento que natildeo subtrai a seacuterie do tempo Nesse caso a oposiccedilatildeo real apresenta uma estrutura a qual pode ser esquematicamente apresentada como (+A ndashA = B) onde (B = 0) ou (B ne 0) e onde os elementos integrantes dessa operaccedilatildeo (+A) e (ndashA) natildeo deixam de ser pela atribuiccedilatildeo de uma negatividade meramente relativa mesmo quando (B=0) sendo ambos justamente a causa eficiente desse privatio

O (B = 0) como privatio natildeo eacute mera nulidade devendo ser tratado como a realizaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo resultante de um encontro entre potecircncias equivalentes mas opostas uma a outra Aqui natildeo existe contradiccedilatildeo em dizer que se trata de potecircncias equivalentes-opostas pois nesse caso tanto a negatividade como a positividade satildeo relativas e natildeo absolutas Natildeo existe autonomia ontoloacutegica da positividade nem da negatividade Trata-se aqui de predicados e natildeo de seres

Por sua vez o estado de coisas representado por (B = 0) esta efetividade eacute novamente um natildeo-ser poreacutem apenas em relaccedilatildeo a outro estado de coisas a que ele se opotildee Assim este (0) eacute um algo que eacute predicado a algo inserido na 39 Ibidem p 58 grifos nossos

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seacuterie contiacutenua do tempo e que eacute designado como privaccedilatildeo Apenas quando se abstrai da seacuterie do tempo eacute que x = 0 representa um nada absoluto Nesse caso o que eacute afirmado eacute inteira e instantaneamente anulado pelo que eacute negado e vice-versa pois a positividade e a negatividade do que eacute afirmado e negado se referem aos proacuteprios seres

Jaacute na oposiccedilatildeo real ainda que duas condiccedilotildees contraacuterias atuem simultaneamente sobre o mesmo objeto a contradiccedilatildeo (vacuidade do pensamento) natildeo eacute o resultado porque a expressatildeo simultaneamente (ausecircncia de sucessatildeo temporal) eacute aqui relativizada Se pensarmos na destruiccedilatildeo de um corpo esse movimento seraacute oposto ao de sua criaccedilatildeo No entanto tais movimentos natildeo satildeo contraditoacuterios um ao outro quando pensados juntos Natildeo inferimos uma vacuidade no pensamento da conjunccedilatildeo simultacircnea desses dois eventos desde que sejam pensados como eventos e portanto diluiacutedos no contiacutenuo temporal A contiacutenua transformaccedilatildeo (movimento) dos corpos vivos por exemplo tem por base um confronto entre a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo celular atuando nos organismos vivos quer dizer um estado de coisas manifestamente expresso como forccedilas antagocircnicas simultaneamente presentes no mesmo objeto No niacutevel celular essa simultaneidade eacute relativizada enquanto algumas ceacutelulas satildeo criadas outras satildeo destruiacutedas Essa relativizaccedilatildeo da simultaneidade natildeo exclui um efetivo antagonismo seja em que niacutevel for onde a positividade ou a negatividade satildeo arbitrariamente atribuiacutedas a um dos polos da oposiccedilatildeo natildeo havendo qualquer precedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica de um polo sobre o outro A geraccedilatildeo eacute negativa se a destruiccedilatildeo for tomada como positiva e vice-versa

Na dinacircmica uma forccedila motriz eacute dita positiva somente quando oposta a outra dita negativa a resistecircncia Ainda que opostas uma a outra forccedilas com vetores contraacuterios desse encontro natildeo se infere um absurdo como uma contradiccedilatildeo mas um estado de coisas real de oposiccedilatildeo de contrariedade O resultado pode ser tanto o repouso no caso das forccedilas opostas possuiacuterem a mesma potecircncia (serem equivalentes) ou o movimento que apresenta o mesmo vetor de uma das forccedilas conflitantes Em ambos os casos o resultante dessa oposiccedilatildeo eacute algo que pode ser efetivamente afirmado sobre o mundo e natildeo um vazio ou um nada irrepresentaacutevel Ainda que nesse caso o repouso possa ser representado por (B = 0) este (B = 0) natildeo deve ser entendido como uma indeterminaccedilatildeo mas sim como privaccedilatildeo Logo percebemos que a contradiccedilatildeo natildeo eacute aplicaacutevel a estados de coisas imersos na seacuterie contiacutenua do tempo

Tanto na oposiccedilatildeo loacutegica como na oposiccedilatildeo real o efeito pode ser representado como (=0) ou como vazio ou ainda como nada Entretanto

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o sentido desse vazio ou desse nada deve ser relativizado para cada situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo Na oposiccedilatildeo loacutegica significa contradiccedilatildeo (nihil negativum irrepresentabile) ou ausecircncia da possibilidade do pensamento A nosso ver este seria o caso do significado do natildeo-ser empregado por Parmecircnides onde localizamos a supressatildeo instantacircnea (anulaccedilatildeo ausecircncia absoluta) dos opostos Jaacute o nada ou o vazio da oposiccedilatildeo real eacute absolutamente representaacutevel Aqui eacute possiacutevel embora de maneira arbitraacuteria estabelecer os valores positivo e negativo dos elementos que se colocam na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo

5 concLusatildeo

Apoacutes oferecer alguns exemplos para o conceito de grandeza negativa na segunda seccedilatildeo do Ensaio Kant conduz suas consideraccedilotildees para o campo da filosofia que para ele deve se ocupar prioritariamente da metafiacutesica e cujo meacutetodo analiacutetico apresentado por ele em outro de seus textos desse periacuteodo40 jaacute fornece indiacutecios dos passos que daraacute no sentido de sua futura proposta mais amadurecida para uma teoria criacutetico-transcendental

Assim alerta Kant no Ensaio entendemos facilmente que algo natildeo seja se lhe carece a razatildeo positiva para sua existecircncia todavia temos dificuldades para entender como algo que efetivamente eacute deixa de ser41 isto eacute temos dificuldade em compreender o correto sentido de privaccedilatildeo O esclarecimento acerca dessa questatildeo eacute fundamental jaacute que o vir-a-ser isto eacute o deixar de ser como privaccedilatildeo eacute a maneira mais fundamental de entender o conceito de movimento Essa dificuldade em reconhecer o correto sentido de privaccedilatildeo eacute o que algumas vezes nos compele a confundi-la com a contradiccedilatildeo e por isso obter como resultado a negaccedilatildeo do movimento compreendendo-o erroneamente como gerador do absurdo

Assim sugere Kant se represento o Sol em minha imaginaccedilatildeo e se no instante seguinte deixo de ter presente essa representaccedilatildeo em minha mente isso natildeo significa que meu pensamento sobre o Sol tenha simplesmente desaparecido e se tornado um puro nada aniquilando-se na vacuidade de uma contradiccedilatildeo entre ser e natildeo-ser mas sim porque a representaccedilatildeo do sol foi suprimida por outra sorte qualquer de ideia que se impocircs com a intensidade

40KANT I Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In ______ Escritos Preacute-criacuteticos Trad Jair Barboza [et al] Satildeo Paulo UNESP 2005 p 116-117

41KANT opcit p 79

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suficiente para substituiacute-la parcial ou inteiramente segundo uma determinada relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo contingente ao espiacuterito

A simples negaccedilatildeo da representaccedilatildeo considerando que ela simplesmente anulou a si mesma deixando assim de existir nos remete para a situaccedilatildeo de um nada irrepresentaacutevel um impensaacutevel natildeo-ser como em Parmecircnides Jaacute na privaccedilatildeo existe uma interaccedilatildeo entre forccedilas opostas a qual natildeo aparece como contradiccedilatildeo uma vez que princiacutepios afirmativos opostos (representaccedilotildees opostas) coincidiriam sob a mesma forma do pensamento anulando assim o efeito de uma delas ou de ambas O resultado eacute a afirmaccedilatildeo de um ser que eacute tambeacutem natildeo-ser jaacute que a negatividade do natildeo-ser da representaccedilatildeo aqui eacute simplesmente relativa dada pela situccedilatildeo de oposiccedilatildeo A representaccedilatildeo arbitrariamente tomada como negativa natildeo eacute menos ser que aquela tomada como positiva A supressatildeo de uma pela outra natildeo se mostra como contradiccedilatildeo mas como a privaccedilatildeo

Eacute concebiacutevel assim pensar legitimamente o natildeo-ser da representaccedilatildeo desde que seja considerado como privaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel se falar com verdade em princiacutepios opostos e equivalentes e que produzem em seu encontro a afirmaccedilatildeo de algo como um nada Dessa maneira seja a1

a afirmaccedilatildeo (ser) de um determinado estado de coisas no mundo (ou de uma representaccedilatildeo de algo no mundo) e a2 o seu equivalente oposto (o natildeo-ser) temos que

a1 ndash a2 = 0

Arbitrariamente tomamos a2 como a representaccedilatildeo negativa contudo a negatividade aqui revela apenas a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre a1 e a2 e natildeo uma situaccedilatildeo absoluta de a2 Como grandezas equivalentes que se opotildeem o resultado (= 0) revela uma oposiccedilatildeo real natildeo uma contradiccedilatildeo Nem a1

e a2 podem ser ditas potecircncias contraditoacuterias nessa relaccedilatildeo visto que este (= 0) eacute a afirmaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo de um ser que eacute tambeacutem um natildeo-ser assim como o repouso eacute igualmente uma forma de natildeo-ser do movimento O pensamento que leva em conta os opostos eacute pois uma possibilidade real e mesmo necessaacuteria para a consideraccedilatildeo do movimento

Segundo a foacutermula de Demoacutecrito o natildeo-ser natildeo eacute mais nem menos que o ser Ora soacute podemos entender essa afirmaccedilatildeo de duas maneiras convergentes ou como afirmaccedilatildeo do mesmo estatuto ontoloacutegico para o ser e para o natildeo-ser ou como atribuiccedilatildeo da mesma funccedilatildeo causal (material) para ambos Nos dois casos o ser soacute eacute na presenccedila ou com a premissa do natildeo-ser e vice-versa E assim o natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser Estaacute claro que esse princiacutepio natildeo

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se ajusta sem qualquer intervenccedilatildeo agraves formulaccedilotildees de Parmecircnides Por esse desacordo eacute possiacutevel identificar no antigo atomismo uma negatividade do ser que natildeo engendra a vacuidade do pensamento Pelo contraacuterio o movimento do pensamento soacute eacute possiacutevel por meio dessa oposiccedilatildeo fundamental Em Platatildeo esse movimento do pensamento ganha o nome de dialeacutetica

Concluiremos este estudo com a seguinte afirmaccedilatildeo de Kant ldquoTodos os fundamentos reais do universo quando se somam todos que satildeo consonantes e se subtraem uns dos outros os que se opotildeem entre si datildeo um resultado igual a zerordquo42 Esse zero significa a afirmaccedilatildeo da efetividade do mundo Esse zero representa um repouso que nem por isso deixa de ser dinacircmico Assim esperamos ter aproximado o conteuacutedo do Ensaio com o pensamento daqueles filoacutesofos da natureza que se colocavam conformes a um princiacutepio universal sem negar a unidade do pensamento e do movimento do mundo De acordo com eles o mundo deve se ordenar segundo esses princiacutepios mutuamente opostos ser e natildeo-ser os quais estatildeo na origem desse repouso dinacircmico na exata medida da efetivaccedilatildeo de seus encontros

SANTOS Eberth Eleuterio dos Leucippus Democritus and Kant a reflection on the equivalence between being and non-being TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 38 n 2 p 71-94 MaioAgo 2015

ABSTRACT Initially we present the theory of Democritus and Leucippus whereby being is not more than the not-being (non-being) in contrast to Eleatic ideas about the necessary inexistence of the not-being This discussion leads us to the opposition between the whole (full) and the empty which will then be transposed into the opposition between being and nothingness (or not-being) Thus the opposition between whole and the empty is an opposition that moves to being and not-being Finally we will make an assessment of the Kantian pre-critical essay Attempt to introduce the concept of negative magnitude into philosophy in which we recognize a kind of opposition that as we believe would be interpreted as being in agreement with the position of Democritus and Leucippus regarding the ontological status of the not-being as an equivalent principle to the being understood here not as a mutual contradiction in a purely logical sense

KEYWORDS ancient atomism Eleatism ontology

referecircncias

ARISTOacuteTELES Da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo seguido de convite agrave filosofia Traduccedilatildeo de Renata Maria Pereira Cordeiro Satildeo Paulo Landy 2001

42 Ibid p 89

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______ Fiacutesica I ndash II Traduccedilatildeo de Lucas Angioni Campinas Editora da UNICAMP 2009

______ Metafiacutesica texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterio de Giovanni Reale Traduccedilatildeo de Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2005 3v

BARNES J Filoacutesofos preacute-socraacuteticos Traduccedilatildeo de Juacutelio Fischer 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

BORNHEIM G Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Cultrix 2000

_______ O que eacute metafiacutesica Traduccedilatildeo de Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

HEIDEGGER M Die Zeit des Weltbildes (1938) In ______ Gesamtausgabe Frankfurt Klostermann 87-88 (1977) Bd 5 Holzwege

KANT I Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia In ______ Escritos preacute-criacuteticos Traduccedilatildeo de Viniacutecius de Figueiredo e Jair Barbosa Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 51-99

______ Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur neacutegative Traduccedilatildeo de Roger Kempf 2 eacuted Paris J Vrin 1972 (Bibliothegraveque de textes philosophiques)

______ Versuch den Begriff der negative Grossen in die Weltweisheit einzufuhres Neueste Aufl Graz Andreas Leikam 1797 Disponiacutevel em lt httpsarchiveorgstreamversuchdenbegri00kantgoogpagen43mode2upgt Acesso em 22 dez 2013

PARMENIDES Fragmentos sobre a natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

______ Da natureza Traduccedilatildeo de Jose Gabriel Trindade Santos (modificada pelo tradutor) Satildeo Paulo Loyola 2002

PLATAtildeO Filebo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ O sofista Traduccedilatildeo de Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Abril Cultural 1972

______ Parmecircnides Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos v VIII Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ Teeteto Traduccedilatildeo de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri Lisboa Calouste Gulbenkian 2010

______ Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Rodolfo Lopes Coimbra Universidade de Coimbra 201143

Recebido Received 07092014Aprovado Approved 10012015

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afirmaccedilotildees absolutamente contraacuterias o pensamento se surpreende na situaccedilatildeo de natildeo poder prosseguir com seu trabalho obediente como eacute aos princiacutepios de contradiccedilatildeo e terceiro excluiacutedo (tertium non datur) Nesse sentido a contradiccedilatildeo que eacute como entendemos a oposiccedilatildeo loacutegica gera um tipo de vacuidade do pensamento um nada impensaacutevel um absoluto vazio que eacute como aquele nada asseverado por Parmecircnides ldquoNecessaacuterio eacute dizer e pensar que soacute o ser eacute pois o ser eacute e o nada ao contraacuterio nada eacute []rdquo38

Se pensarmos nos estados de movimento e de repouso referidos ao mesmo objeto e abstraindo-se o tempo encontraremos na base mais elementar desses estados contraacuterios os conceitos de ser e de natildeo-ser tidos como opostos no sentido exclusivamente loacutegico (contraacuterios) obtendo como resultado a contradiccedilatildeo e a impossibilidade do pensamento Nesse caso movimento e repouso deixaram de ser grandezas ou estados de coisas e se tornaram puras abstraccedilotildees Logo o natildeo-ser da negatividade natildeo apresenta nenhum tipo de positividade Isto eacute o natildeo-ser eacute absolutamente negativo e eacute tomado como logicamente dependente da positividade do ser como sua pura negaccedilatildeo Por sua vez o ser eacute tomado como conceito originaacuterio e absoluto cuja positividade independe de qualquer relaccedilatildeo apresentando assim precedecircncia loacutegica e exclusividade ontoloacutegica sobre o natildeo-ser

Por outro lado natildeo eacute possiacutevel afirmar que o ser ou o natildeo-ser possuam qualquer prevalecircncia um sobre o outro qualquer antecedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica quando considerados como grandezas no mundo

O movimento eacute tomado como algo positivo na medida em que eacute a efetivaccedilatildeo de um estado de coisas ldquoxrdquo no mundo por sua vez o repouso eacute tambeacutem uma positividade na medida em que significa um outro estado de coisas ldquoyrdquo oposto a ldquoxrdquo A negatividade nessa oposiccedilatildeo recai arbitrariamente sobre ldquoxrdquo ou ldquoyrdquo por meio de uma proposiccedilatildeo que estabelece a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo A negatividade recairaacute sobre ldquoxrdquo ou sobre ldquoyrdquo de acordo com a forma assumida pela proposiccedilatildeo que iraacute fazer variar a negatividade (ou a positividade) em funccedilatildeo da finalidade enfaacutetica que se queira dar a ldquoxrdquo ou a ldquoyrdquo

Somente quando se diz que um mesmo corpo estaacute e natildeo estaacute a um soacute tempo e na mesma relaccedilatildeo em repouso ou em movimento eacute que essa vacuidade no pensar aparece

38ldquoΧρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν[]rdquo PARMENIDES fragmento B6 In BORHEIM op cit p 55

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Um corpo em movimento eacute algo um corpo que natildeo estaacute em movimento eacute tambeacutem algo (cogitabile) no entanto um corpo que ao mesmo tempo e justamente sob a mesma relaccedilatildeo estivesse e natildeo estivesse em movimento eacute absolutamente nada39

A expressatildeo a um soacute tempo significa que o corpo eacute colocado na situaccedilatildeo em que se abstrai a seacuterie contiacutenua do tempo Isso quer dizer que uma uacutenica porccedilatildeo elementar do tempo foi tomada e isolada das demais Todavia uma porccedilatildeo assim isolada do tempo tomada em sentido absoluto natildeo eacute tempo algum Uma vez que a seacuterie de tempo eacute contiacutenua ou se toma uma porccedilatildeo do tempo que por sua vez conteacutem em si uma nova seacuterie temporal infinita (nesse caso a parte eacute igual ao todo) ou natildeo se toma tempo algum Em outras palavras a expressatildeo a um soacute tempo natildeo tem aqui nenhum significado temporal positivo mas apenas negativo significando fora do tempo

Assim procedeu Parmecircnides ao abstrair o tempo para todas as formas proposicionais vaacutelidas reduzindo toda forma de pensamento a uma expressatildeo proposicional afirmativa atemporal onde a positividade eacute sempre absoluta e por isso possui prioridade loacutegica e ontoloacutegica sobre a negatividade Nesse caso toda oposiccedilatildeo eacute sempre contradiccedilatildeo

Jaacute na oposiccedilatildeo real encontramos uma forma de pensamento que natildeo subtrai a seacuterie do tempo Nesse caso a oposiccedilatildeo real apresenta uma estrutura a qual pode ser esquematicamente apresentada como (+A ndashA = B) onde (B = 0) ou (B ne 0) e onde os elementos integrantes dessa operaccedilatildeo (+A) e (ndashA) natildeo deixam de ser pela atribuiccedilatildeo de uma negatividade meramente relativa mesmo quando (B=0) sendo ambos justamente a causa eficiente desse privatio

O (B = 0) como privatio natildeo eacute mera nulidade devendo ser tratado como a realizaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo resultante de um encontro entre potecircncias equivalentes mas opostas uma a outra Aqui natildeo existe contradiccedilatildeo em dizer que se trata de potecircncias equivalentes-opostas pois nesse caso tanto a negatividade como a positividade satildeo relativas e natildeo absolutas Natildeo existe autonomia ontoloacutegica da positividade nem da negatividade Trata-se aqui de predicados e natildeo de seres

Por sua vez o estado de coisas representado por (B = 0) esta efetividade eacute novamente um natildeo-ser poreacutem apenas em relaccedilatildeo a outro estado de coisas a que ele se opotildee Assim este (0) eacute um algo que eacute predicado a algo inserido na 39 Ibidem p 58 grifos nossos

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seacuterie contiacutenua do tempo e que eacute designado como privaccedilatildeo Apenas quando se abstrai da seacuterie do tempo eacute que x = 0 representa um nada absoluto Nesse caso o que eacute afirmado eacute inteira e instantaneamente anulado pelo que eacute negado e vice-versa pois a positividade e a negatividade do que eacute afirmado e negado se referem aos proacuteprios seres

Jaacute na oposiccedilatildeo real ainda que duas condiccedilotildees contraacuterias atuem simultaneamente sobre o mesmo objeto a contradiccedilatildeo (vacuidade do pensamento) natildeo eacute o resultado porque a expressatildeo simultaneamente (ausecircncia de sucessatildeo temporal) eacute aqui relativizada Se pensarmos na destruiccedilatildeo de um corpo esse movimento seraacute oposto ao de sua criaccedilatildeo No entanto tais movimentos natildeo satildeo contraditoacuterios um ao outro quando pensados juntos Natildeo inferimos uma vacuidade no pensamento da conjunccedilatildeo simultacircnea desses dois eventos desde que sejam pensados como eventos e portanto diluiacutedos no contiacutenuo temporal A contiacutenua transformaccedilatildeo (movimento) dos corpos vivos por exemplo tem por base um confronto entre a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo celular atuando nos organismos vivos quer dizer um estado de coisas manifestamente expresso como forccedilas antagocircnicas simultaneamente presentes no mesmo objeto No niacutevel celular essa simultaneidade eacute relativizada enquanto algumas ceacutelulas satildeo criadas outras satildeo destruiacutedas Essa relativizaccedilatildeo da simultaneidade natildeo exclui um efetivo antagonismo seja em que niacutevel for onde a positividade ou a negatividade satildeo arbitrariamente atribuiacutedas a um dos polos da oposiccedilatildeo natildeo havendo qualquer precedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica de um polo sobre o outro A geraccedilatildeo eacute negativa se a destruiccedilatildeo for tomada como positiva e vice-versa

Na dinacircmica uma forccedila motriz eacute dita positiva somente quando oposta a outra dita negativa a resistecircncia Ainda que opostas uma a outra forccedilas com vetores contraacuterios desse encontro natildeo se infere um absurdo como uma contradiccedilatildeo mas um estado de coisas real de oposiccedilatildeo de contrariedade O resultado pode ser tanto o repouso no caso das forccedilas opostas possuiacuterem a mesma potecircncia (serem equivalentes) ou o movimento que apresenta o mesmo vetor de uma das forccedilas conflitantes Em ambos os casos o resultante dessa oposiccedilatildeo eacute algo que pode ser efetivamente afirmado sobre o mundo e natildeo um vazio ou um nada irrepresentaacutevel Ainda que nesse caso o repouso possa ser representado por (B = 0) este (B = 0) natildeo deve ser entendido como uma indeterminaccedilatildeo mas sim como privaccedilatildeo Logo percebemos que a contradiccedilatildeo natildeo eacute aplicaacutevel a estados de coisas imersos na seacuterie contiacutenua do tempo

Tanto na oposiccedilatildeo loacutegica como na oposiccedilatildeo real o efeito pode ser representado como (=0) ou como vazio ou ainda como nada Entretanto

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o sentido desse vazio ou desse nada deve ser relativizado para cada situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo Na oposiccedilatildeo loacutegica significa contradiccedilatildeo (nihil negativum irrepresentabile) ou ausecircncia da possibilidade do pensamento A nosso ver este seria o caso do significado do natildeo-ser empregado por Parmecircnides onde localizamos a supressatildeo instantacircnea (anulaccedilatildeo ausecircncia absoluta) dos opostos Jaacute o nada ou o vazio da oposiccedilatildeo real eacute absolutamente representaacutevel Aqui eacute possiacutevel embora de maneira arbitraacuteria estabelecer os valores positivo e negativo dos elementos que se colocam na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo

5 concLusatildeo

Apoacutes oferecer alguns exemplos para o conceito de grandeza negativa na segunda seccedilatildeo do Ensaio Kant conduz suas consideraccedilotildees para o campo da filosofia que para ele deve se ocupar prioritariamente da metafiacutesica e cujo meacutetodo analiacutetico apresentado por ele em outro de seus textos desse periacuteodo40 jaacute fornece indiacutecios dos passos que daraacute no sentido de sua futura proposta mais amadurecida para uma teoria criacutetico-transcendental

Assim alerta Kant no Ensaio entendemos facilmente que algo natildeo seja se lhe carece a razatildeo positiva para sua existecircncia todavia temos dificuldades para entender como algo que efetivamente eacute deixa de ser41 isto eacute temos dificuldade em compreender o correto sentido de privaccedilatildeo O esclarecimento acerca dessa questatildeo eacute fundamental jaacute que o vir-a-ser isto eacute o deixar de ser como privaccedilatildeo eacute a maneira mais fundamental de entender o conceito de movimento Essa dificuldade em reconhecer o correto sentido de privaccedilatildeo eacute o que algumas vezes nos compele a confundi-la com a contradiccedilatildeo e por isso obter como resultado a negaccedilatildeo do movimento compreendendo-o erroneamente como gerador do absurdo

Assim sugere Kant se represento o Sol em minha imaginaccedilatildeo e se no instante seguinte deixo de ter presente essa representaccedilatildeo em minha mente isso natildeo significa que meu pensamento sobre o Sol tenha simplesmente desaparecido e se tornado um puro nada aniquilando-se na vacuidade de uma contradiccedilatildeo entre ser e natildeo-ser mas sim porque a representaccedilatildeo do sol foi suprimida por outra sorte qualquer de ideia que se impocircs com a intensidade

40KANT I Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In ______ Escritos Preacute-criacuteticos Trad Jair Barboza [et al] Satildeo Paulo UNESP 2005 p 116-117

41KANT opcit p 79

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suficiente para substituiacute-la parcial ou inteiramente segundo uma determinada relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo contingente ao espiacuterito

A simples negaccedilatildeo da representaccedilatildeo considerando que ela simplesmente anulou a si mesma deixando assim de existir nos remete para a situaccedilatildeo de um nada irrepresentaacutevel um impensaacutevel natildeo-ser como em Parmecircnides Jaacute na privaccedilatildeo existe uma interaccedilatildeo entre forccedilas opostas a qual natildeo aparece como contradiccedilatildeo uma vez que princiacutepios afirmativos opostos (representaccedilotildees opostas) coincidiriam sob a mesma forma do pensamento anulando assim o efeito de uma delas ou de ambas O resultado eacute a afirmaccedilatildeo de um ser que eacute tambeacutem natildeo-ser jaacute que a negatividade do natildeo-ser da representaccedilatildeo aqui eacute simplesmente relativa dada pela situccedilatildeo de oposiccedilatildeo A representaccedilatildeo arbitrariamente tomada como negativa natildeo eacute menos ser que aquela tomada como positiva A supressatildeo de uma pela outra natildeo se mostra como contradiccedilatildeo mas como a privaccedilatildeo

Eacute concebiacutevel assim pensar legitimamente o natildeo-ser da representaccedilatildeo desde que seja considerado como privaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel se falar com verdade em princiacutepios opostos e equivalentes e que produzem em seu encontro a afirmaccedilatildeo de algo como um nada Dessa maneira seja a1

a afirmaccedilatildeo (ser) de um determinado estado de coisas no mundo (ou de uma representaccedilatildeo de algo no mundo) e a2 o seu equivalente oposto (o natildeo-ser) temos que

a1 ndash a2 = 0

Arbitrariamente tomamos a2 como a representaccedilatildeo negativa contudo a negatividade aqui revela apenas a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre a1 e a2 e natildeo uma situaccedilatildeo absoluta de a2 Como grandezas equivalentes que se opotildeem o resultado (= 0) revela uma oposiccedilatildeo real natildeo uma contradiccedilatildeo Nem a1

e a2 podem ser ditas potecircncias contraditoacuterias nessa relaccedilatildeo visto que este (= 0) eacute a afirmaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo de um ser que eacute tambeacutem um natildeo-ser assim como o repouso eacute igualmente uma forma de natildeo-ser do movimento O pensamento que leva em conta os opostos eacute pois uma possibilidade real e mesmo necessaacuteria para a consideraccedilatildeo do movimento

Segundo a foacutermula de Demoacutecrito o natildeo-ser natildeo eacute mais nem menos que o ser Ora soacute podemos entender essa afirmaccedilatildeo de duas maneiras convergentes ou como afirmaccedilatildeo do mesmo estatuto ontoloacutegico para o ser e para o natildeo-ser ou como atribuiccedilatildeo da mesma funccedilatildeo causal (material) para ambos Nos dois casos o ser soacute eacute na presenccedila ou com a premissa do natildeo-ser e vice-versa E assim o natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser Estaacute claro que esse princiacutepio natildeo

SANTOS E E

92 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 38 n 2 p 71-94 MaioAgo 2015

se ajusta sem qualquer intervenccedilatildeo agraves formulaccedilotildees de Parmecircnides Por esse desacordo eacute possiacutevel identificar no antigo atomismo uma negatividade do ser que natildeo engendra a vacuidade do pensamento Pelo contraacuterio o movimento do pensamento soacute eacute possiacutevel por meio dessa oposiccedilatildeo fundamental Em Platatildeo esse movimento do pensamento ganha o nome de dialeacutetica

Concluiremos este estudo com a seguinte afirmaccedilatildeo de Kant ldquoTodos os fundamentos reais do universo quando se somam todos que satildeo consonantes e se subtraem uns dos outros os que se opotildeem entre si datildeo um resultado igual a zerordquo42 Esse zero significa a afirmaccedilatildeo da efetividade do mundo Esse zero representa um repouso que nem por isso deixa de ser dinacircmico Assim esperamos ter aproximado o conteuacutedo do Ensaio com o pensamento daqueles filoacutesofos da natureza que se colocavam conformes a um princiacutepio universal sem negar a unidade do pensamento e do movimento do mundo De acordo com eles o mundo deve se ordenar segundo esses princiacutepios mutuamente opostos ser e natildeo-ser os quais estatildeo na origem desse repouso dinacircmico na exata medida da efetivaccedilatildeo de seus encontros

SANTOS Eberth Eleuterio dos Leucippus Democritus and Kant a reflection on the equivalence between being and non-being TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 38 n 2 p 71-94 MaioAgo 2015

ABSTRACT Initially we present the theory of Democritus and Leucippus whereby being is not more than the not-being (non-being) in contrast to Eleatic ideas about the necessary inexistence of the not-being This discussion leads us to the opposition between the whole (full) and the empty which will then be transposed into the opposition between being and nothingness (or not-being) Thus the opposition between whole and the empty is an opposition that moves to being and not-being Finally we will make an assessment of the Kantian pre-critical essay Attempt to introduce the concept of negative magnitude into philosophy in which we recognize a kind of opposition that as we believe would be interpreted as being in agreement with the position of Democritus and Leucippus regarding the ontological status of the not-being as an equivalent principle to the being understood here not as a mutual contradiction in a purely logical sense

KEYWORDS ancient atomism Eleatism ontology

referecircncias

ARISTOacuteTELES Da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo seguido de convite agrave filosofia Traduccedilatildeo de Renata Maria Pereira Cordeiro Satildeo Paulo Landy 2001

42 Ibid p 89

Leucipo Demoacutecrito e Kant Artigos Articles

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 38 n 2 p 71-94 MaioAgo 2015 93

______ Fiacutesica I ndash II Traduccedilatildeo de Lucas Angioni Campinas Editora da UNICAMP 2009

______ Metafiacutesica texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterio de Giovanni Reale Traduccedilatildeo de Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2005 3v

BARNES J Filoacutesofos preacute-socraacuteticos Traduccedilatildeo de Juacutelio Fischer 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

BORNHEIM G Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Cultrix 2000

_______ O que eacute metafiacutesica Traduccedilatildeo de Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

HEIDEGGER M Die Zeit des Weltbildes (1938) In ______ Gesamtausgabe Frankfurt Klostermann 87-88 (1977) Bd 5 Holzwege

KANT I Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia In ______ Escritos preacute-criacuteticos Traduccedilatildeo de Viniacutecius de Figueiredo e Jair Barbosa Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 51-99

______ Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur neacutegative Traduccedilatildeo de Roger Kempf 2 eacuted Paris J Vrin 1972 (Bibliothegraveque de textes philosophiques)

______ Versuch den Begriff der negative Grossen in die Weltweisheit einzufuhres Neueste Aufl Graz Andreas Leikam 1797 Disponiacutevel em lt httpsarchiveorgstreamversuchdenbegri00kantgoogpagen43mode2upgt Acesso em 22 dez 2013

PARMENIDES Fragmentos sobre a natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

______ Da natureza Traduccedilatildeo de Jose Gabriel Trindade Santos (modificada pelo tradutor) Satildeo Paulo Loyola 2002

PLATAtildeO Filebo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ O sofista Traduccedilatildeo de Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Abril Cultural 1972

______ Parmecircnides Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos v VIII Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ Teeteto Traduccedilatildeo de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri Lisboa Calouste Gulbenkian 2010

______ Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Rodolfo Lopes Coimbra Universidade de Coimbra 201143

Recebido Received 07092014Aprovado Approved 10012015

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Um corpo em movimento eacute algo um corpo que natildeo estaacute em movimento eacute tambeacutem algo (cogitabile) no entanto um corpo que ao mesmo tempo e justamente sob a mesma relaccedilatildeo estivesse e natildeo estivesse em movimento eacute absolutamente nada39

A expressatildeo a um soacute tempo significa que o corpo eacute colocado na situaccedilatildeo em que se abstrai a seacuterie contiacutenua do tempo Isso quer dizer que uma uacutenica porccedilatildeo elementar do tempo foi tomada e isolada das demais Todavia uma porccedilatildeo assim isolada do tempo tomada em sentido absoluto natildeo eacute tempo algum Uma vez que a seacuterie de tempo eacute contiacutenua ou se toma uma porccedilatildeo do tempo que por sua vez conteacutem em si uma nova seacuterie temporal infinita (nesse caso a parte eacute igual ao todo) ou natildeo se toma tempo algum Em outras palavras a expressatildeo a um soacute tempo natildeo tem aqui nenhum significado temporal positivo mas apenas negativo significando fora do tempo

Assim procedeu Parmecircnides ao abstrair o tempo para todas as formas proposicionais vaacutelidas reduzindo toda forma de pensamento a uma expressatildeo proposicional afirmativa atemporal onde a positividade eacute sempre absoluta e por isso possui prioridade loacutegica e ontoloacutegica sobre a negatividade Nesse caso toda oposiccedilatildeo eacute sempre contradiccedilatildeo

Jaacute na oposiccedilatildeo real encontramos uma forma de pensamento que natildeo subtrai a seacuterie do tempo Nesse caso a oposiccedilatildeo real apresenta uma estrutura a qual pode ser esquematicamente apresentada como (+A ndashA = B) onde (B = 0) ou (B ne 0) e onde os elementos integrantes dessa operaccedilatildeo (+A) e (ndashA) natildeo deixam de ser pela atribuiccedilatildeo de uma negatividade meramente relativa mesmo quando (B=0) sendo ambos justamente a causa eficiente desse privatio

O (B = 0) como privatio natildeo eacute mera nulidade devendo ser tratado como a realizaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo resultante de um encontro entre potecircncias equivalentes mas opostas uma a outra Aqui natildeo existe contradiccedilatildeo em dizer que se trata de potecircncias equivalentes-opostas pois nesse caso tanto a negatividade como a positividade satildeo relativas e natildeo absolutas Natildeo existe autonomia ontoloacutegica da positividade nem da negatividade Trata-se aqui de predicados e natildeo de seres

Por sua vez o estado de coisas representado por (B = 0) esta efetividade eacute novamente um natildeo-ser poreacutem apenas em relaccedilatildeo a outro estado de coisas a que ele se opotildee Assim este (0) eacute um algo que eacute predicado a algo inserido na 39 Ibidem p 58 grifos nossos

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seacuterie contiacutenua do tempo e que eacute designado como privaccedilatildeo Apenas quando se abstrai da seacuterie do tempo eacute que x = 0 representa um nada absoluto Nesse caso o que eacute afirmado eacute inteira e instantaneamente anulado pelo que eacute negado e vice-versa pois a positividade e a negatividade do que eacute afirmado e negado se referem aos proacuteprios seres

Jaacute na oposiccedilatildeo real ainda que duas condiccedilotildees contraacuterias atuem simultaneamente sobre o mesmo objeto a contradiccedilatildeo (vacuidade do pensamento) natildeo eacute o resultado porque a expressatildeo simultaneamente (ausecircncia de sucessatildeo temporal) eacute aqui relativizada Se pensarmos na destruiccedilatildeo de um corpo esse movimento seraacute oposto ao de sua criaccedilatildeo No entanto tais movimentos natildeo satildeo contraditoacuterios um ao outro quando pensados juntos Natildeo inferimos uma vacuidade no pensamento da conjunccedilatildeo simultacircnea desses dois eventos desde que sejam pensados como eventos e portanto diluiacutedos no contiacutenuo temporal A contiacutenua transformaccedilatildeo (movimento) dos corpos vivos por exemplo tem por base um confronto entre a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo celular atuando nos organismos vivos quer dizer um estado de coisas manifestamente expresso como forccedilas antagocircnicas simultaneamente presentes no mesmo objeto No niacutevel celular essa simultaneidade eacute relativizada enquanto algumas ceacutelulas satildeo criadas outras satildeo destruiacutedas Essa relativizaccedilatildeo da simultaneidade natildeo exclui um efetivo antagonismo seja em que niacutevel for onde a positividade ou a negatividade satildeo arbitrariamente atribuiacutedas a um dos polos da oposiccedilatildeo natildeo havendo qualquer precedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica de um polo sobre o outro A geraccedilatildeo eacute negativa se a destruiccedilatildeo for tomada como positiva e vice-versa

Na dinacircmica uma forccedila motriz eacute dita positiva somente quando oposta a outra dita negativa a resistecircncia Ainda que opostas uma a outra forccedilas com vetores contraacuterios desse encontro natildeo se infere um absurdo como uma contradiccedilatildeo mas um estado de coisas real de oposiccedilatildeo de contrariedade O resultado pode ser tanto o repouso no caso das forccedilas opostas possuiacuterem a mesma potecircncia (serem equivalentes) ou o movimento que apresenta o mesmo vetor de uma das forccedilas conflitantes Em ambos os casos o resultante dessa oposiccedilatildeo eacute algo que pode ser efetivamente afirmado sobre o mundo e natildeo um vazio ou um nada irrepresentaacutevel Ainda que nesse caso o repouso possa ser representado por (B = 0) este (B = 0) natildeo deve ser entendido como uma indeterminaccedilatildeo mas sim como privaccedilatildeo Logo percebemos que a contradiccedilatildeo natildeo eacute aplicaacutevel a estados de coisas imersos na seacuterie contiacutenua do tempo

Tanto na oposiccedilatildeo loacutegica como na oposiccedilatildeo real o efeito pode ser representado como (=0) ou como vazio ou ainda como nada Entretanto

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90 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 38 n 2 p 71-94 MaioAgo 2015

o sentido desse vazio ou desse nada deve ser relativizado para cada situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo Na oposiccedilatildeo loacutegica significa contradiccedilatildeo (nihil negativum irrepresentabile) ou ausecircncia da possibilidade do pensamento A nosso ver este seria o caso do significado do natildeo-ser empregado por Parmecircnides onde localizamos a supressatildeo instantacircnea (anulaccedilatildeo ausecircncia absoluta) dos opostos Jaacute o nada ou o vazio da oposiccedilatildeo real eacute absolutamente representaacutevel Aqui eacute possiacutevel embora de maneira arbitraacuteria estabelecer os valores positivo e negativo dos elementos que se colocam na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo

5 concLusatildeo

Apoacutes oferecer alguns exemplos para o conceito de grandeza negativa na segunda seccedilatildeo do Ensaio Kant conduz suas consideraccedilotildees para o campo da filosofia que para ele deve se ocupar prioritariamente da metafiacutesica e cujo meacutetodo analiacutetico apresentado por ele em outro de seus textos desse periacuteodo40 jaacute fornece indiacutecios dos passos que daraacute no sentido de sua futura proposta mais amadurecida para uma teoria criacutetico-transcendental

Assim alerta Kant no Ensaio entendemos facilmente que algo natildeo seja se lhe carece a razatildeo positiva para sua existecircncia todavia temos dificuldades para entender como algo que efetivamente eacute deixa de ser41 isto eacute temos dificuldade em compreender o correto sentido de privaccedilatildeo O esclarecimento acerca dessa questatildeo eacute fundamental jaacute que o vir-a-ser isto eacute o deixar de ser como privaccedilatildeo eacute a maneira mais fundamental de entender o conceito de movimento Essa dificuldade em reconhecer o correto sentido de privaccedilatildeo eacute o que algumas vezes nos compele a confundi-la com a contradiccedilatildeo e por isso obter como resultado a negaccedilatildeo do movimento compreendendo-o erroneamente como gerador do absurdo

Assim sugere Kant se represento o Sol em minha imaginaccedilatildeo e se no instante seguinte deixo de ter presente essa representaccedilatildeo em minha mente isso natildeo significa que meu pensamento sobre o Sol tenha simplesmente desaparecido e se tornado um puro nada aniquilando-se na vacuidade de uma contradiccedilatildeo entre ser e natildeo-ser mas sim porque a representaccedilatildeo do sol foi suprimida por outra sorte qualquer de ideia que se impocircs com a intensidade

40KANT I Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In ______ Escritos Preacute-criacuteticos Trad Jair Barboza [et al] Satildeo Paulo UNESP 2005 p 116-117

41KANT opcit p 79

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suficiente para substituiacute-la parcial ou inteiramente segundo uma determinada relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo contingente ao espiacuterito

A simples negaccedilatildeo da representaccedilatildeo considerando que ela simplesmente anulou a si mesma deixando assim de existir nos remete para a situaccedilatildeo de um nada irrepresentaacutevel um impensaacutevel natildeo-ser como em Parmecircnides Jaacute na privaccedilatildeo existe uma interaccedilatildeo entre forccedilas opostas a qual natildeo aparece como contradiccedilatildeo uma vez que princiacutepios afirmativos opostos (representaccedilotildees opostas) coincidiriam sob a mesma forma do pensamento anulando assim o efeito de uma delas ou de ambas O resultado eacute a afirmaccedilatildeo de um ser que eacute tambeacutem natildeo-ser jaacute que a negatividade do natildeo-ser da representaccedilatildeo aqui eacute simplesmente relativa dada pela situccedilatildeo de oposiccedilatildeo A representaccedilatildeo arbitrariamente tomada como negativa natildeo eacute menos ser que aquela tomada como positiva A supressatildeo de uma pela outra natildeo se mostra como contradiccedilatildeo mas como a privaccedilatildeo

Eacute concebiacutevel assim pensar legitimamente o natildeo-ser da representaccedilatildeo desde que seja considerado como privaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel se falar com verdade em princiacutepios opostos e equivalentes e que produzem em seu encontro a afirmaccedilatildeo de algo como um nada Dessa maneira seja a1

a afirmaccedilatildeo (ser) de um determinado estado de coisas no mundo (ou de uma representaccedilatildeo de algo no mundo) e a2 o seu equivalente oposto (o natildeo-ser) temos que

a1 ndash a2 = 0

Arbitrariamente tomamos a2 como a representaccedilatildeo negativa contudo a negatividade aqui revela apenas a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre a1 e a2 e natildeo uma situaccedilatildeo absoluta de a2 Como grandezas equivalentes que se opotildeem o resultado (= 0) revela uma oposiccedilatildeo real natildeo uma contradiccedilatildeo Nem a1

e a2 podem ser ditas potecircncias contraditoacuterias nessa relaccedilatildeo visto que este (= 0) eacute a afirmaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo de um ser que eacute tambeacutem um natildeo-ser assim como o repouso eacute igualmente uma forma de natildeo-ser do movimento O pensamento que leva em conta os opostos eacute pois uma possibilidade real e mesmo necessaacuteria para a consideraccedilatildeo do movimento

Segundo a foacutermula de Demoacutecrito o natildeo-ser natildeo eacute mais nem menos que o ser Ora soacute podemos entender essa afirmaccedilatildeo de duas maneiras convergentes ou como afirmaccedilatildeo do mesmo estatuto ontoloacutegico para o ser e para o natildeo-ser ou como atribuiccedilatildeo da mesma funccedilatildeo causal (material) para ambos Nos dois casos o ser soacute eacute na presenccedila ou com a premissa do natildeo-ser e vice-versa E assim o natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser Estaacute claro que esse princiacutepio natildeo

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se ajusta sem qualquer intervenccedilatildeo agraves formulaccedilotildees de Parmecircnides Por esse desacordo eacute possiacutevel identificar no antigo atomismo uma negatividade do ser que natildeo engendra a vacuidade do pensamento Pelo contraacuterio o movimento do pensamento soacute eacute possiacutevel por meio dessa oposiccedilatildeo fundamental Em Platatildeo esse movimento do pensamento ganha o nome de dialeacutetica

Concluiremos este estudo com a seguinte afirmaccedilatildeo de Kant ldquoTodos os fundamentos reais do universo quando se somam todos que satildeo consonantes e se subtraem uns dos outros os que se opotildeem entre si datildeo um resultado igual a zerordquo42 Esse zero significa a afirmaccedilatildeo da efetividade do mundo Esse zero representa um repouso que nem por isso deixa de ser dinacircmico Assim esperamos ter aproximado o conteuacutedo do Ensaio com o pensamento daqueles filoacutesofos da natureza que se colocavam conformes a um princiacutepio universal sem negar a unidade do pensamento e do movimento do mundo De acordo com eles o mundo deve se ordenar segundo esses princiacutepios mutuamente opostos ser e natildeo-ser os quais estatildeo na origem desse repouso dinacircmico na exata medida da efetivaccedilatildeo de seus encontros

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ABSTRACT Initially we present the theory of Democritus and Leucippus whereby being is not more than the not-being (non-being) in contrast to Eleatic ideas about the necessary inexistence of the not-being This discussion leads us to the opposition between the whole (full) and the empty which will then be transposed into the opposition between being and nothingness (or not-being) Thus the opposition between whole and the empty is an opposition that moves to being and not-being Finally we will make an assessment of the Kantian pre-critical essay Attempt to introduce the concept of negative magnitude into philosophy in which we recognize a kind of opposition that as we believe would be interpreted as being in agreement with the position of Democritus and Leucippus regarding the ontological status of the not-being as an equivalent principle to the being understood here not as a mutual contradiction in a purely logical sense

KEYWORDS ancient atomism Eleatism ontology

referecircncias

ARISTOacuteTELES Da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo seguido de convite agrave filosofia Traduccedilatildeo de Renata Maria Pereira Cordeiro Satildeo Paulo Landy 2001

42 Ibid p 89

Leucipo Demoacutecrito e Kant Artigos Articles

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______ Fiacutesica I ndash II Traduccedilatildeo de Lucas Angioni Campinas Editora da UNICAMP 2009

______ Metafiacutesica texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterio de Giovanni Reale Traduccedilatildeo de Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2005 3v

BARNES J Filoacutesofos preacute-socraacuteticos Traduccedilatildeo de Juacutelio Fischer 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

BORNHEIM G Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Cultrix 2000

_______ O que eacute metafiacutesica Traduccedilatildeo de Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

HEIDEGGER M Die Zeit des Weltbildes (1938) In ______ Gesamtausgabe Frankfurt Klostermann 87-88 (1977) Bd 5 Holzwege

KANT I Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia In ______ Escritos preacute-criacuteticos Traduccedilatildeo de Viniacutecius de Figueiredo e Jair Barbosa Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 51-99

______ Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur neacutegative Traduccedilatildeo de Roger Kempf 2 eacuted Paris J Vrin 1972 (Bibliothegraveque de textes philosophiques)

______ Versuch den Begriff der negative Grossen in die Weltweisheit einzufuhres Neueste Aufl Graz Andreas Leikam 1797 Disponiacutevel em lt httpsarchiveorgstreamversuchdenbegri00kantgoogpagen43mode2upgt Acesso em 22 dez 2013

PARMENIDES Fragmentos sobre a natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

______ Da natureza Traduccedilatildeo de Jose Gabriel Trindade Santos (modificada pelo tradutor) Satildeo Paulo Loyola 2002

PLATAtildeO Filebo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ O sofista Traduccedilatildeo de Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Abril Cultural 1972

______ Parmecircnides Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos v VIII Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ Teeteto Traduccedilatildeo de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri Lisboa Calouste Gulbenkian 2010

______ Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Rodolfo Lopes Coimbra Universidade de Coimbra 201143

Recebido Received 07092014Aprovado Approved 10012015

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seacuterie contiacutenua do tempo e que eacute designado como privaccedilatildeo Apenas quando se abstrai da seacuterie do tempo eacute que x = 0 representa um nada absoluto Nesse caso o que eacute afirmado eacute inteira e instantaneamente anulado pelo que eacute negado e vice-versa pois a positividade e a negatividade do que eacute afirmado e negado se referem aos proacuteprios seres

Jaacute na oposiccedilatildeo real ainda que duas condiccedilotildees contraacuterias atuem simultaneamente sobre o mesmo objeto a contradiccedilatildeo (vacuidade do pensamento) natildeo eacute o resultado porque a expressatildeo simultaneamente (ausecircncia de sucessatildeo temporal) eacute aqui relativizada Se pensarmos na destruiccedilatildeo de um corpo esse movimento seraacute oposto ao de sua criaccedilatildeo No entanto tais movimentos natildeo satildeo contraditoacuterios um ao outro quando pensados juntos Natildeo inferimos uma vacuidade no pensamento da conjunccedilatildeo simultacircnea desses dois eventos desde que sejam pensados como eventos e portanto diluiacutedos no contiacutenuo temporal A contiacutenua transformaccedilatildeo (movimento) dos corpos vivos por exemplo tem por base um confronto entre a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo celular atuando nos organismos vivos quer dizer um estado de coisas manifestamente expresso como forccedilas antagocircnicas simultaneamente presentes no mesmo objeto No niacutevel celular essa simultaneidade eacute relativizada enquanto algumas ceacutelulas satildeo criadas outras satildeo destruiacutedas Essa relativizaccedilatildeo da simultaneidade natildeo exclui um efetivo antagonismo seja em que niacutevel for onde a positividade ou a negatividade satildeo arbitrariamente atribuiacutedas a um dos polos da oposiccedilatildeo natildeo havendo qualquer precedecircncia loacutegica ou ontoloacutegica de um polo sobre o outro A geraccedilatildeo eacute negativa se a destruiccedilatildeo for tomada como positiva e vice-versa

Na dinacircmica uma forccedila motriz eacute dita positiva somente quando oposta a outra dita negativa a resistecircncia Ainda que opostas uma a outra forccedilas com vetores contraacuterios desse encontro natildeo se infere um absurdo como uma contradiccedilatildeo mas um estado de coisas real de oposiccedilatildeo de contrariedade O resultado pode ser tanto o repouso no caso das forccedilas opostas possuiacuterem a mesma potecircncia (serem equivalentes) ou o movimento que apresenta o mesmo vetor de uma das forccedilas conflitantes Em ambos os casos o resultante dessa oposiccedilatildeo eacute algo que pode ser efetivamente afirmado sobre o mundo e natildeo um vazio ou um nada irrepresentaacutevel Ainda que nesse caso o repouso possa ser representado por (B = 0) este (B = 0) natildeo deve ser entendido como uma indeterminaccedilatildeo mas sim como privaccedilatildeo Logo percebemos que a contradiccedilatildeo natildeo eacute aplicaacutevel a estados de coisas imersos na seacuterie contiacutenua do tempo

Tanto na oposiccedilatildeo loacutegica como na oposiccedilatildeo real o efeito pode ser representado como (=0) ou como vazio ou ainda como nada Entretanto

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o sentido desse vazio ou desse nada deve ser relativizado para cada situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo Na oposiccedilatildeo loacutegica significa contradiccedilatildeo (nihil negativum irrepresentabile) ou ausecircncia da possibilidade do pensamento A nosso ver este seria o caso do significado do natildeo-ser empregado por Parmecircnides onde localizamos a supressatildeo instantacircnea (anulaccedilatildeo ausecircncia absoluta) dos opostos Jaacute o nada ou o vazio da oposiccedilatildeo real eacute absolutamente representaacutevel Aqui eacute possiacutevel embora de maneira arbitraacuteria estabelecer os valores positivo e negativo dos elementos que se colocam na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo

5 concLusatildeo

Apoacutes oferecer alguns exemplos para o conceito de grandeza negativa na segunda seccedilatildeo do Ensaio Kant conduz suas consideraccedilotildees para o campo da filosofia que para ele deve se ocupar prioritariamente da metafiacutesica e cujo meacutetodo analiacutetico apresentado por ele em outro de seus textos desse periacuteodo40 jaacute fornece indiacutecios dos passos que daraacute no sentido de sua futura proposta mais amadurecida para uma teoria criacutetico-transcendental

Assim alerta Kant no Ensaio entendemos facilmente que algo natildeo seja se lhe carece a razatildeo positiva para sua existecircncia todavia temos dificuldades para entender como algo que efetivamente eacute deixa de ser41 isto eacute temos dificuldade em compreender o correto sentido de privaccedilatildeo O esclarecimento acerca dessa questatildeo eacute fundamental jaacute que o vir-a-ser isto eacute o deixar de ser como privaccedilatildeo eacute a maneira mais fundamental de entender o conceito de movimento Essa dificuldade em reconhecer o correto sentido de privaccedilatildeo eacute o que algumas vezes nos compele a confundi-la com a contradiccedilatildeo e por isso obter como resultado a negaccedilatildeo do movimento compreendendo-o erroneamente como gerador do absurdo

Assim sugere Kant se represento o Sol em minha imaginaccedilatildeo e se no instante seguinte deixo de ter presente essa representaccedilatildeo em minha mente isso natildeo significa que meu pensamento sobre o Sol tenha simplesmente desaparecido e se tornado um puro nada aniquilando-se na vacuidade de uma contradiccedilatildeo entre ser e natildeo-ser mas sim porque a representaccedilatildeo do sol foi suprimida por outra sorte qualquer de ideia que se impocircs com a intensidade

40KANT I Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In ______ Escritos Preacute-criacuteticos Trad Jair Barboza [et al] Satildeo Paulo UNESP 2005 p 116-117

41KANT opcit p 79

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suficiente para substituiacute-la parcial ou inteiramente segundo uma determinada relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo contingente ao espiacuterito

A simples negaccedilatildeo da representaccedilatildeo considerando que ela simplesmente anulou a si mesma deixando assim de existir nos remete para a situaccedilatildeo de um nada irrepresentaacutevel um impensaacutevel natildeo-ser como em Parmecircnides Jaacute na privaccedilatildeo existe uma interaccedilatildeo entre forccedilas opostas a qual natildeo aparece como contradiccedilatildeo uma vez que princiacutepios afirmativos opostos (representaccedilotildees opostas) coincidiriam sob a mesma forma do pensamento anulando assim o efeito de uma delas ou de ambas O resultado eacute a afirmaccedilatildeo de um ser que eacute tambeacutem natildeo-ser jaacute que a negatividade do natildeo-ser da representaccedilatildeo aqui eacute simplesmente relativa dada pela situccedilatildeo de oposiccedilatildeo A representaccedilatildeo arbitrariamente tomada como negativa natildeo eacute menos ser que aquela tomada como positiva A supressatildeo de uma pela outra natildeo se mostra como contradiccedilatildeo mas como a privaccedilatildeo

Eacute concebiacutevel assim pensar legitimamente o natildeo-ser da representaccedilatildeo desde que seja considerado como privaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel se falar com verdade em princiacutepios opostos e equivalentes e que produzem em seu encontro a afirmaccedilatildeo de algo como um nada Dessa maneira seja a1

a afirmaccedilatildeo (ser) de um determinado estado de coisas no mundo (ou de uma representaccedilatildeo de algo no mundo) e a2 o seu equivalente oposto (o natildeo-ser) temos que

a1 ndash a2 = 0

Arbitrariamente tomamos a2 como a representaccedilatildeo negativa contudo a negatividade aqui revela apenas a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre a1 e a2 e natildeo uma situaccedilatildeo absoluta de a2 Como grandezas equivalentes que se opotildeem o resultado (= 0) revela uma oposiccedilatildeo real natildeo uma contradiccedilatildeo Nem a1

e a2 podem ser ditas potecircncias contraditoacuterias nessa relaccedilatildeo visto que este (= 0) eacute a afirmaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo de um ser que eacute tambeacutem um natildeo-ser assim como o repouso eacute igualmente uma forma de natildeo-ser do movimento O pensamento que leva em conta os opostos eacute pois uma possibilidade real e mesmo necessaacuteria para a consideraccedilatildeo do movimento

Segundo a foacutermula de Demoacutecrito o natildeo-ser natildeo eacute mais nem menos que o ser Ora soacute podemos entender essa afirmaccedilatildeo de duas maneiras convergentes ou como afirmaccedilatildeo do mesmo estatuto ontoloacutegico para o ser e para o natildeo-ser ou como atribuiccedilatildeo da mesma funccedilatildeo causal (material) para ambos Nos dois casos o ser soacute eacute na presenccedila ou com a premissa do natildeo-ser e vice-versa E assim o natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser Estaacute claro que esse princiacutepio natildeo

SANTOS E E

92 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 38 n 2 p 71-94 MaioAgo 2015

se ajusta sem qualquer intervenccedilatildeo agraves formulaccedilotildees de Parmecircnides Por esse desacordo eacute possiacutevel identificar no antigo atomismo uma negatividade do ser que natildeo engendra a vacuidade do pensamento Pelo contraacuterio o movimento do pensamento soacute eacute possiacutevel por meio dessa oposiccedilatildeo fundamental Em Platatildeo esse movimento do pensamento ganha o nome de dialeacutetica

Concluiremos este estudo com a seguinte afirmaccedilatildeo de Kant ldquoTodos os fundamentos reais do universo quando se somam todos que satildeo consonantes e se subtraem uns dos outros os que se opotildeem entre si datildeo um resultado igual a zerordquo42 Esse zero significa a afirmaccedilatildeo da efetividade do mundo Esse zero representa um repouso que nem por isso deixa de ser dinacircmico Assim esperamos ter aproximado o conteuacutedo do Ensaio com o pensamento daqueles filoacutesofos da natureza que se colocavam conformes a um princiacutepio universal sem negar a unidade do pensamento e do movimento do mundo De acordo com eles o mundo deve se ordenar segundo esses princiacutepios mutuamente opostos ser e natildeo-ser os quais estatildeo na origem desse repouso dinacircmico na exata medida da efetivaccedilatildeo de seus encontros

SANTOS Eberth Eleuterio dos Leucippus Democritus and Kant a reflection on the equivalence between being and non-being TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 38 n 2 p 71-94 MaioAgo 2015

ABSTRACT Initially we present the theory of Democritus and Leucippus whereby being is not more than the not-being (non-being) in contrast to Eleatic ideas about the necessary inexistence of the not-being This discussion leads us to the opposition between the whole (full) and the empty which will then be transposed into the opposition between being and nothingness (or not-being) Thus the opposition between whole and the empty is an opposition that moves to being and not-being Finally we will make an assessment of the Kantian pre-critical essay Attempt to introduce the concept of negative magnitude into philosophy in which we recognize a kind of opposition that as we believe would be interpreted as being in agreement with the position of Democritus and Leucippus regarding the ontological status of the not-being as an equivalent principle to the being understood here not as a mutual contradiction in a purely logical sense

KEYWORDS ancient atomism Eleatism ontology

referecircncias

ARISTOacuteTELES Da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo seguido de convite agrave filosofia Traduccedilatildeo de Renata Maria Pereira Cordeiro Satildeo Paulo Landy 2001

42 Ibid p 89

Leucipo Demoacutecrito e Kant Artigos Articles

TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 38 n 2 p 71-94 MaioAgo 2015 93

______ Fiacutesica I ndash II Traduccedilatildeo de Lucas Angioni Campinas Editora da UNICAMP 2009

______ Metafiacutesica texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterio de Giovanni Reale Traduccedilatildeo de Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2005 3v

BARNES J Filoacutesofos preacute-socraacuteticos Traduccedilatildeo de Juacutelio Fischer 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

BORNHEIM G Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Cultrix 2000

_______ O que eacute metafiacutesica Traduccedilatildeo de Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

HEIDEGGER M Die Zeit des Weltbildes (1938) In ______ Gesamtausgabe Frankfurt Klostermann 87-88 (1977) Bd 5 Holzwege

KANT I Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia In ______ Escritos preacute-criacuteticos Traduccedilatildeo de Viniacutecius de Figueiredo e Jair Barbosa Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 51-99

______ Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur neacutegative Traduccedilatildeo de Roger Kempf 2 eacuted Paris J Vrin 1972 (Bibliothegraveque de textes philosophiques)

______ Versuch den Begriff der negative Grossen in die Weltweisheit einzufuhres Neueste Aufl Graz Andreas Leikam 1797 Disponiacutevel em lt httpsarchiveorgstreamversuchdenbegri00kantgoogpagen43mode2upgt Acesso em 22 dez 2013

PARMENIDES Fragmentos sobre a natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

______ Da natureza Traduccedilatildeo de Jose Gabriel Trindade Santos (modificada pelo tradutor) Satildeo Paulo Loyola 2002

PLATAtildeO Filebo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ O sofista Traduccedilatildeo de Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Abril Cultural 1972

______ Parmecircnides Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos v VIII Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ Teeteto Traduccedilatildeo de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri Lisboa Calouste Gulbenkian 2010

______ Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Rodolfo Lopes Coimbra Universidade de Coimbra 201143

Recebido Received 07092014Aprovado Approved 10012015

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o sentido desse vazio ou desse nada deve ser relativizado para cada situaccedilatildeo de oposiccedilatildeo Na oposiccedilatildeo loacutegica significa contradiccedilatildeo (nihil negativum irrepresentabile) ou ausecircncia da possibilidade do pensamento A nosso ver este seria o caso do significado do natildeo-ser empregado por Parmecircnides onde localizamos a supressatildeo instantacircnea (anulaccedilatildeo ausecircncia absoluta) dos opostos Jaacute o nada ou o vazio da oposiccedilatildeo real eacute absolutamente representaacutevel Aqui eacute possiacutevel embora de maneira arbitraacuteria estabelecer os valores positivo e negativo dos elementos que se colocam na relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo

5 concLusatildeo

Apoacutes oferecer alguns exemplos para o conceito de grandeza negativa na segunda seccedilatildeo do Ensaio Kant conduz suas consideraccedilotildees para o campo da filosofia que para ele deve se ocupar prioritariamente da metafiacutesica e cujo meacutetodo analiacutetico apresentado por ele em outro de seus textos desse periacuteodo40 jaacute fornece indiacutecios dos passos que daraacute no sentido de sua futura proposta mais amadurecida para uma teoria criacutetico-transcendental

Assim alerta Kant no Ensaio entendemos facilmente que algo natildeo seja se lhe carece a razatildeo positiva para sua existecircncia todavia temos dificuldades para entender como algo que efetivamente eacute deixa de ser41 isto eacute temos dificuldade em compreender o correto sentido de privaccedilatildeo O esclarecimento acerca dessa questatildeo eacute fundamental jaacute que o vir-a-ser isto eacute o deixar de ser como privaccedilatildeo eacute a maneira mais fundamental de entender o conceito de movimento Essa dificuldade em reconhecer o correto sentido de privaccedilatildeo eacute o que algumas vezes nos compele a confundi-la com a contradiccedilatildeo e por isso obter como resultado a negaccedilatildeo do movimento compreendendo-o erroneamente como gerador do absurdo

Assim sugere Kant se represento o Sol em minha imaginaccedilatildeo e se no instante seguinte deixo de ter presente essa representaccedilatildeo em minha mente isso natildeo significa que meu pensamento sobre o Sol tenha simplesmente desaparecido e se tornado um puro nada aniquilando-se na vacuidade de uma contradiccedilatildeo entre ser e natildeo-ser mas sim porque a representaccedilatildeo do sol foi suprimida por outra sorte qualquer de ideia que se impocircs com a intensidade

40KANT I Investigaccedilatildeo sobre a evidecircncia dos princiacutepios da teologia natural e da moral In ______ Escritos Preacute-criacuteticos Trad Jair Barboza [et al] Satildeo Paulo UNESP 2005 p 116-117

41KANT opcit p 79

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suficiente para substituiacute-la parcial ou inteiramente segundo uma determinada relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo contingente ao espiacuterito

A simples negaccedilatildeo da representaccedilatildeo considerando que ela simplesmente anulou a si mesma deixando assim de existir nos remete para a situaccedilatildeo de um nada irrepresentaacutevel um impensaacutevel natildeo-ser como em Parmecircnides Jaacute na privaccedilatildeo existe uma interaccedilatildeo entre forccedilas opostas a qual natildeo aparece como contradiccedilatildeo uma vez que princiacutepios afirmativos opostos (representaccedilotildees opostas) coincidiriam sob a mesma forma do pensamento anulando assim o efeito de uma delas ou de ambas O resultado eacute a afirmaccedilatildeo de um ser que eacute tambeacutem natildeo-ser jaacute que a negatividade do natildeo-ser da representaccedilatildeo aqui eacute simplesmente relativa dada pela situccedilatildeo de oposiccedilatildeo A representaccedilatildeo arbitrariamente tomada como negativa natildeo eacute menos ser que aquela tomada como positiva A supressatildeo de uma pela outra natildeo se mostra como contradiccedilatildeo mas como a privaccedilatildeo

Eacute concebiacutevel assim pensar legitimamente o natildeo-ser da representaccedilatildeo desde que seja considerado como privaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel se falar com verdade em princiacutepios opostos e equivalentes e que produzem em seu encontro a afirmaccedilatildeo de algo como um nada Dessa maneira seja a1

a afirmaccedilatildeo (ser) de um determinado estado de coisas no mundo (ou de uma representaccedilatildeo de algo no mundo) e a2 o seu equivalente oposto (o natildeo-ser) temos que

a1 ndash a2 = 0

Arbitrariamente tomamos a2 como a representaccedilatildeo negativa contudo a negatividade aqui revela apenas a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre a1 e a2 e natildeo uma situaccedilatildeo absoluta de a2 Como grandezas equivalentes que se opotildeem o resultado (= 0) revela uma oposiccedilatildeo real natildeo uma contradiccedilatildeo Nem a1

e a2 podem ser ditas potecircncias contraditoacuterias nessa relaccedilatildeo visto que este (= 0) eacute a afirmaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo de um ser que eacute tambeacutem um natildeo-ser assim como o repouso eacute igualmente uma forma de natildeo-ser do movimento O pensamento que leva em conta os opostos eacute pois uma possibilidade real e mesmo necessaacuteria para a consideraccedilatildeo do movimento

Segundo a foacutermula de Demoacutecrito o natildeo-ser natildeo eacute mais nem menos que o ser Ora soacute podemos entender essa afirmaccedilatildeo de duas maneiras convergentes ou como afirmaccedilatildeo do mesmo estatuto ontoloacutegico para o ser e para o natildeo-ser ou como atribuiccedilatildeo da mesma funccedilatildeo causal (material) para ambos Nos dois casos o ser soacute eacute na presenccedila ou com a premissa do natildeo-ser e vice-versa E assim o natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser Estaacute claro que esse princiacutepio natildeo

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se ajusta sem qualquer intervenccedilatildeo agraves formulaccedilotildees de Parmecircnides Por esse desacordo eacute possiacutevel identificar no antigo atomismo uma negatividade do ser que natildeo engendra a vacuidade do pensamento Pelo contraacuterio o movimento do pensamento soacute eacute possiacutevel por meio dessa oposiccedilatildeo fundamental Em Platatildeo esse movimento do pensamento ganha o nome de dialeacutetica

Concluiremos este estudo com a seguinte afirmaccedilatildeo de Kant ldquoTodos os fundamentos reais do universo quando se somam todos que satildeo consonantes e se subtraem uns dos outros os que se opotildeem entre si datildeo um resultado igual a zerordquo42 Esse zero significa a afirmaccedilatildeo da efetividade do mundo Esse zero representa um repouso que nem por isso deixa de ser dinacircmico Assim esperamos ter aproximado o conteuacutedo do Ensaio com o pensamento daqueles filoacutesofos da natureza que se colocavam conformes a um princiacutepio universal sem negar a unidade do pensamento e do movimento do mundo De acordo com eles o mundo deve se ordenar segundo esses princiacutepios mutuamente opostos ser e natildeo-ser os quais estatildeo na origem desse repouso dinacircmico na exata medida da efetivaccedilatildeo de seus encontros

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ABSTRACT Initially we present the theory of Democritus and Leucippus whereby being is not more than the not-being (non-being) in contrast to Eleatic ideas about the necessary inexistence of the not-being This discussion leads us to the opposition between the whole (full) and the empty which will then be transposed into the opposition between being and nothingness (or not-being) Thus the opposition between whole and the empty is an opposition that moves to being and not-being Finally we will make an assessment of the Kantian pre-critical essay Attempt to introduce the concept of negative magnitude into philosophy in which we recognize a kind of opposition that as we believe would be interpreted as being in agreement with the position of Democritus and Leucippus regarding the ontological status of the not-being as an equivalent principle to the being understood here not as a mutual contradiction in a purely logical sense

KEYWORDS ancient atomism Eleatism ontology

referecircncias

ARISTOacuteTELES Da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo seguido de convite agrave filosofia Traduccedilatildeo de Renata Maria Pereira Cordeiro Satildeo Paulo Landy 2001

42 Ibid p 89

Leucipo Demoacutecrito e Kant Artigos Articles

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______ Fiacutesica I ndash II Traduccedilatildeo de Lucas Angioni Campinas Editora da UNICAMP 2009

______ Metafiacutesica texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterio de Giovanni Reale Traduccedilatildeo de Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2005 3v

BARNES J Filoacutesofos preacute-socraacuteticos Traduccedilatildeo de Juacutelio Fischer 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

BORNHEIM G Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Cultrix 2000

_______ O que eacute metafiacutesica Traduccedilatildeo de Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

HEIDEGGER M Die Zeit des Weltbildes (1938) In ______ Gesamtausgabe Frankfurt Klostermann 87-88 (1977) Bd 5 Holzwege

KANT I Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia In ______ Escritos preacute-criacuteticos Traduccedilatildeo de Viniacutecius de Figueiredo e Jair Barbosa Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 51-99

______ Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur neacutegative Traduccedilatildeo de Roger Kempf 2 eacuted Paris J Vrin 1972 (Bibliothegraveque de textes philosophiques)

______ Versuch den Begriff der negative Grossen in die Weltweisheit einzufuhres Neueste Aufl Graz Andreas Leikam 1797 Disponiacutevel em lt httpsarchiveorgstreamversuchdenbegri00kantgoogpagen43mode2upgt Acesso em 22 dez 2013

PARMENIDES Fragmentos sobre a natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

______ Da natureza Traduccedilatildeo de Jose Gabriel Trindade Santos (modificada pelo tradutor) Satildeo Paulo Loyola 2002

PLATAtildeO Filebo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ O sofista Traduccedilatildeo de Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Abril Cultural 1972

______ Parmecircnides Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos v VIII Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ Teeteto Traduccedilatildeo de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri Lisboa Calouste Gulbenkian 2010

______ Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Rodolfo Lopes Coimbra Universidade de Coimbra 201143

Recebido Received 07092014Aprovado Approved 10012015

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suficiente para substituiacute-la parcial ou inteiramente segundo uma determinada relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo contingente ao espiacuterito

A simples negaccedilatildeo da representaccedilatildeo considerando que ela simplesmente anulou a si mesma deixando assim de existir nos remete para a situaccedilatildeo de um nada irrepresentaacutevel um impensaacutevel natildeo-ser como em Parmecircnides Jaacute na privaccedilatildeo existe uma interaccedilatildeo entre forccedilas opostas a qual natildeo aparece como contradiccedilatildeo uma vez que princiacutepios afirmativos opostos (representaccedilotildees opostas) coincidiriam sob a mesma forma do pensamento anulando assim o efeito de uma delas ou de ambas O resultado eacute a afirmaccedilatildeo de um ser que eacute tambeacutem natildeo-ser jaacute que a negatividade do natildeo-ser da representaccedilatildeo aqui eacute simplesmente relativa dada pela situccedilatildeo de oposiccedilatildeo A representaccedilatildeo arbitrariamente tomada como negativa natildeo eacute menos ser que aquela tomada como positiva A supressatildeo de uma pela outra natildeo se mostra como contradiccedilatildeo mas como a privaccedilatildeo

Eacute concebiacutevel assim pensar legitimamente o natildeo-ser da representaccedilatildeo desde que seja considerado como privaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel se falar com verdade em princiacutepios opostos e equivalentes e que produzem em seu encontro a afirmaccedilatildeo de algo como um nada Dessa maneira seja a1

a afirmaccedilatildeo (ser) de um determinado estado de coisas no mundo (ou de uma representaccedilatildeo de algo no mundo) e a2 o seu equivalente oposto (o natildeo-ser) temos que

a1 ndash a2 = 0

Arbitrariamente tomamos a2 como a representaccedilatildeo negativa contudo a negatividade aqui revela apenas a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo estabelecida entre a1 e a2 e natildeo uma situaccedilatildeo absoluta de a2 Como grandezas equivalentes que se opotildeem o resultado (= 0) revela uma oposiccedilatildeo real natildeo uma contradiccedilatildeo Nem a1

e a2 podem ser ditas potecircncias contraditoacuterias nessa relaccedilatildeo visto que este (= 0) eacute a afirmaccedilatildeo de um estado de coisas no mundo de um ser que eacute tambeacutem um natildeo-ser assim como o repouso eacute igualmente uma forma de natildeo-ser do movimento O pensamento que leva em conta os opostos eacute pois uma possibilidade real e mesmo necessaacuteria para a consideraccedilatildeo do movimento

Segundo a foacutermula de Demoacutecrito o natildeo-ser natildeo eacute mais nem menos que o ser Ora soacute podemos entender essa afirmaccedilatildeo de duas maneiras convergentes ou como afirmaccedilatildeo do mesmo estatuto ontoloacutegico para o ser e para o natildeo-ser ou como atribuiccedilatildeo da mesma funccedilatildeo causal (material) para ambos Nos dois casos o ser soacute eacute na presenccedila ou com a premissa do natildeo-ser e vice-versa E assim o natildeo-ser natildeo eacute menos que o ser Estaacute claro que esse princiacutepio natildeo

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se ajusta sem qualquer intervenccedilatildeo agraves formulaccedilotildees de Parmecircnides Por esse desacordo eacute possiacutevel identificar no antigo atomismo uma negatividade do ser que natildeo engendra a vacuidade do pensamento Pelo contraacuterio o movimento do pensamento soacute eacute possiacutevel por meio dessa oposiccedilatildeo fundamental Em Platatildeo esse movimento do pensamento ganha o nome de dialeacutetica

Concluiremos este estudo com a seguinte afirmaccedilatildeo de Kant ldquoTodos os fundamentos reais do universo quando se somam todos que satildeo consonantes e se subtraem uns dos outros os que se opotildeem entre si datildeo um resultado igual a zerordquo42 Esse zero significa a afirmaccedilatildeo da efetividade do mundo Esse zero representa um repouso que nem por isso deixa de ser dinacircmico Assim esperamos ter aproximado o conteuacutedo do Ensaio com o pensamento daqueles filoacutesofos da natureza que se colocavam conformes a um princiacutepio universal sem negar a unidade do pensamento e do movimento do mundo De acordo com eles o mundo deve se ordenar segundo esses princiacutepios mutuamente opostos ser e natildeo-ser os quais estatildeo na origem desse repouso dinacircmico na exata medida da efetivaccedilatildeo de seus encontros

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ABSTRACT Initially we present the theory of Democritus and Leucippus whereby being is not more than the not-being (non-being) in contrast to Eleatic ideas about the necessary inexistence of the not-being This discussion leads us to the opposition between the whole (full) and the empty which will then be transposed into the opposition between being and nothingness (or not-being) Thus the opposition between whole and the empty is an opposition that moves to being and not-being Finally we will make an assessment of the Kantian pre-critical essay Attempt to introduce the concept of negative magnitude into philosophy in which we recognize a kind of opposition that as we believe would be interpreted as being in agreement with the position of Democritus and Leucippus regarding the ontological status of the not-being as an equivalent principle to the being understood here not as a mutual contradiction in a purely logical sense

KEYWORDS ancient atomism Eleatism ontology

referecircncias

ARISTOacuteTELES Da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo seguido de convite agrave filosofia Traduccedilatildeo de Renata Maria Pereira Cordeiro Satildeo Paulo Landy 2001

42 Ibid p 89

Leucipo Demoacutecrito e Kant Artigos Articles

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______ Fiacutesica I ndash II Traduccedilatildeo de Lucas Angioni Campinas Editora da UNICAMP 2009

______ Metafiacutesica texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterio de Giovanni Reale Traduccedilatildeo de Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2005 3v

BARNES J Filoacutesofos preacute-socraacuteticos Traduccedilatildeo de Juacutelio Fischer 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

BORNHEIM G Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Cultrix 2000

_______ O que eacute metafiacutesica Traduccedilatildeo de Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

HEIDEGGER M Die Zeit des Weltbildes (1938) In ______ Gesamtausgabe Frankfurt Klostermann 87-88 (1977) Bd 5 Holzwege

KANT I Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia In ______ Escritos preacute-criacuteticos Traduccedilatildeo de Viniacutecius de Figueiredo e Jair Barbosa Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 51-99

______ Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur neacutegative Traduccedilatildeo de Roger Kempf 2 eacuted Paris J Vrin 1972 (Bibliothegraveque de textes philosophiques)

______ Versuch den Begriff der negative Grossen in die Weltweisheit einzufuhres Neueste Aufl Graz Andreas Leikam 1797 Disponiacutevel em lt httpsarchiveorgstreamversuchdenbegri00kantgoogpagen43mode2upgt Acesso em 22 dez 2013

PARMENIDES Fragmentos sobre a natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

______ Da natureza Traduccedilatildeo de Jose Gabriel Trindade Santos (modificada pelo tradutor) Satildeo Paulo Loyola 2002

PLATAtildeO Filebo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ O sofista Traduccedilatildeo de Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Abril Cultural 1972

______ Parmecircnides Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos v VIII Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ Teeteto Traduccedilatildeo de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri Lisboa Calouste Gulbenkian 2010

______ Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Rodolfo Lopes Coimbra Universidade de Coimbra 201143

Recebido Received 07092014Aprovado Approved 10012015

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se ajusta sem qualquer intervenccedilatildeo agraves formulaccedilotildees de Parmecircnides Por esse desacordo eacute possiacutevel identificar no antigo atomismo uma negatividade do ser que natildeo engendra a vacuidade do pensamento Pelo contraacuterio o movimento do pensamento soacute eacute possiacutevel por meio dessa oposiccedilatildeo fundamental Em Platatildeo esse movimento do pensamento ganha o nome de dialeacutetica

Concluiremos este estudo com a seguinte afirmaccedilatildeo de Kant ldquoTodos os fundamentos reais do universo quando se somam todos que satildeo consonantes e se subtraem uns dos outros os que se opotildeem entre si datildeo um resultado igual a zerordquo42 Esse zero significa a afirmaccedilatildeo da efetividade do mundo Esse zero representa um repouso que nem por isso deixa de ser dinacircmico Assim esperamos ter aproximado o conteuacutedo do Ensaio com o pensamento daqueles filoacutesofos da natureza que se colocavam conformes a um princiacutepio universal sem negar a unidade do pensamento e do movimento do mundo De acordo com eles o mundo deve se ordenar segundo esses princiacutepios mutuamente opostos ser e natildeo-ser os quais estatildeo na origem desse repouso dinacircmico na exata medida da efetivaccedilatildeo de seus encontros

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ABSTRACT Initially we present the theory of Democritus and Leucippus whereby being is not more than the not-being (non-being) in contrast to Eleatic ideas about the necessary inexistence of the not-being This discussion leads us to the opposition between the whole (full) and the empty which will then be transposed into the opposition between being and nothingness (or not-being) Thus the opposition between whole and the empty is an opposition that moves to being and not-being Finally we will make an assessment of the Kantian pre-critical essay Attempt to introduce the concept of negative magnitude into philosophy in which we recognize a kind of opposition that as we believe would be interpreted as being in agreement with the position of Democritus and Leucippus regarding the ontological status of the not-being as an equivalent principle to the being understood here not as a mutual contradiction in a purely logical sense

KEYWORDS ancient atomism Eleatism ontology

referecircncias

ARISTOacuteTELES Da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo seguido de convite agrave filosofia Traduccedilatildeo de Renata Maria Pereira Cordeiro Satildeo Paulo Landy 2001

42 Ibid p 89

Leucipo Demoacutecrito e Kant Artigos Articles

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______ Fiacutesica I ndash II Traduccedilatildeo de Lucas Angioni Campinas Editora da UNICAMP 2009

______ Metafiacutesica texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterio de Giovanni Reale Traduccedilatildeo de Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2005 3v

BARNES J Filoacutesofos preacute-socraacuteticos Traduccedilatildeo de Juacutelio Fischer 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

BORNHEIM G Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Cultrix 2000

_______ O que eacute metafiacutesica Traduccedilatildeo de Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

HEIDEGGER M Die Zeit des Weltbildes (1938) In ______ Gesamtausgabe Frankfurt Klostermann 87-88 (1977) Bd 5 Holzwege

KANT I Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia In ______ Escritos preacute-criacuteticos Traduccedilatildeo de Viniacutecius de Figueiredo e Jair Barbosa Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 51-99

______ Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur neacutegative Traduccedilatildeo de Roger Kempf 2 eacuted Paris J Vrin 1972 (Bibliothegraveque de textes philosophiques)

______ Versuch den Begriff der negative Grossen in die Weltweisheit einzufuhres Neueste Aufl Graz Andreas Leikam 1797 Disponiacutevel em lt httpsarchiveorgstreamversuchdenbegri00kantgoogpagen43mode2upgt Acesso em 22 dez 2013

PARMENIDES Fragmentos sobre a natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

______ Da natureza Traduccedilatildeo de Jose Gabriel Trindade Santos (modificada pelo tradutor) Satildeo Paulo Loyola 2002

PLATAtildeO Filebo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ O sofista Traduccedilatildeo de Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Abril Cultural 1972

______ Parmecircnides Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos v VIII Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ Teeteto Traduccedilatildeo de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri Lisboa Calouste Gulbenkian 2010

______ Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Rodolfo Lopes Coimbra Universidade de Coimbra 201143

Recebido Received 07092014Aprovado Approved 10012015

SANTOS E E

94 TransFormAccedilatildeo Mariacutelia v 38 n 2 p 71-94 MaioAgo 2015

Leucipo Demoacutecrito e Kant Artigos Articles

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______ Fiacutesica I ndash II Traduccedilatildeo de Lucas Angioni Campinas Editora da UNICAMP 2009

______ Metafiacutesica texto grego com traduccedilatildeo e comentaacuterio de Giovanni Reale Traduccedilatildeo de Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2005 3v

BARNES J Filoacutesofos preacute-socraacuteticos Traduccedilatildeo de Juacutelio Fischer 2 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

BORNHEIM G Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo Cultrix 2000

_______ O que eacute metafiacutesica Traduccedilatildeo de Ernildo Stein Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

HEIDEGGER M Die Zeit des Weltbildes (1938) In ______ Gesamtausgabe Frankfurt Klostermann 87-88 (1977) Bd 5 Holzwege

KANT I Ensaio para introduzir a noccedilatildeo de grandezas negativas em filosofia In ______ Escritos preacute-criacuteticos Traduccedilatildeo de Viniacutecius de Figueiredo e Jair Barbosa Satildeo Paulo Editora UNESP 2005 p 51-99

______ Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur neacutegative Traduccedilatildeo de Roger Kempf 2 eacuted Paris J Vrin 1972 (Bibliothegraveque de textes philosophiques)

______ Versuch den Begriff der negative Grossen in die Weltweisheit einzufuhres Neueste Aufl Graz Andreas Leikam 1797 Disponiacutevel em lt httpsarchiveorgstreamversuchdenbegri00kantgoogpagen43mode2upgt Acesso em 22 dez 2013

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______ Da natureza Traduccedilatildeo de Jose Gabriel Trindade Santos (modificada pelo tradutor) Satildeo Paulo Loyola 2002

PLATAtildeO Filebo Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes In ______ Diaacutelogos Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1974 v 8

______ O sofista Traduccedilatildeo de Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa Satildeo Paulo Abril Cultural 1972

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______ Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas de Rodolfo Lopes Coimbra Universidade de Coimbra 201143

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