Levantados do Chão: a formação da classe trabalhadora ... · para se tornar na classe social...

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Recebido em 14 de julho de 2011. Aprovado em 10 de outubro de 2011. 31 Levantados do Chão: a formação da classe trabalhadora alentejana (1926-1974) João Valente Aguiar** Resumo: Se a classe social está longe de se resumir a uma estrutura, a sua inserção histórica pode ser captada pelo pesquisador a partir da análise da sua processualidade. Assim, neste artigo procuraremos problematizar a pertinência do conceito de formação da classe trabalhadora na mobilização do operariado agrícola alentejano, durante o regime ditatorial do Estado Novo português. Palavras-chave: Formação da classe trabalhadora. Classes sociais. Processo histórico. Introdução. Edward Thompson e a formação da classe trabalhadora No seu estudo clássico Edward Thompson definiu a formação da classe trabalhadora como um conjunto de dinâmicas intrínsecas à classe social, “um processo ativo que deve tanto à agência como ao condicionamento” (Thompson, 1991: 8). Basicamente, Thompson trabalha a relação dialética entre capacidade -histórica e contextualmente variável- de organização própria e por iniciativa da classe e os freios ao desenvolvimento da auto-organização da classe colocados pelas estruturas sociais (Estado, mercado, ideologias) e pelas classes dominan- tes. Assim, a classe não é em Thompson uma estrutura mas um processo, ou seja, um conjunto articulado de práticas coletivas que perpassam os domínios econômico, político e ideológico-cultural. Conjunto de práticas dotado de his- toricidade, tanto quanto à situação social e temporal em que é produzido como à sua dimensão processual. Isto é, uma mesma classe social é passível de adotar diferentes comportamentos e ações coletivas ao longo da sua existência. Cada classe tem sempre uma margem mínima e máxima para a produção e efetivação *Pesquisador no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (Portugal). End. Eletrônico: [email protected]

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Recebido em 14 de julho de 2011. Aprovado em 10 de outubro de 2011. • 31

Levantados do Chão: a formação da classe trabalhadora alentejana (1926-1974)

João Valente Aguiar**

Resumo:Se a classe social está longe de se resumir a uma estrutura, a sua inserção histórica pode ser captada pelo pesquisador a partir da análise da sua processualidade. Assim, neste artigo procuraremos problematizar a pertinência do conceito de formação da classe trabalhadora na mobilização do operariado agrícola alentejano, durante o regime ditatorial do Estado Novo português.

Palavras-chave: Formação da classe trabalhadora. Classes sociais. Processo histórico.

Introdução. Edward Thompson e a formação da classe trabalhadora NoseuestudoclássicoEdwardThompsondefiniuaformaçãodaclassetrabalhadora como um conjunto de dinâmicas intrínsecas à classe social, “um processo ativo que deve tanto à agência como ao condicionamento” (Thompson, 1991:8).Basicamente,Thompsontrabalhaarelaçãodialéticaentrecapacidade-históricaecontextualmentevariável-deorganizaçãoprópriaeporiniciativadaclasseeosfreiosaodesenvolvimentodaauto-organizaçãodaclassecolocadospelas estruturas sociais (Estado, mercado, ideologias) e pelas classes dominan-tes.Assim,aclassenãoéemThompsonumaestruturamasumprocesso,ouseja, um conjunto articulado de práticas coletivas que perpassam os domínios econômico, político e ideológico-cultural. Conjunto de práticas dotado de his-toricidade,tantoquantoàsituaçãosocialetemporalemqueéproduzidocomoàsuadimensãoprocessual.Istoé,umamesmaclassesocialépassíveldeadotardiferentescomportamentoseaçõescoletivasaolongodasuaexistência.Cadaclassetemsempreumamargemmínimaemáximaparaaproduçãoeefetivação

*Pesquisador no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (Portugal). End. Eletrônico: [email protected]

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depráticaspróprias–culturaisepolíticas–quepodemfornecerou receberelementos de práticas de outras classes. Por conseguinte, a

classe entende-se como um fenômeno histórico unificando umnúmero deeventosaparentementedesconexos,tantonamatériabrutadaexperiênciacomonaconsciência.Enfatize-sequeesteéumfenômenohistórico.Nãovejoaclassecomo uma “estrutura”, nem mesmo como uma “categoria”, mas como algo que acontecenarealidade(equepodesermostradocomoaconteceudefato)dasrelaçõeshumanas(Thompson,1981:8).

Emoutras palavras, amanifestação específicade umgrupo social numdeterminadocontextohistóricoenacionalnãodecorreobrigatoriamenteapenasdasuaposiçãosubalternizadanaestruturasocialglobal.ParaThompson,éotrajetoglobaldeumaclassenumaformaçãosocialeassuasmanifestaçõespolí-ticaseculturaisespecíficasqueimportacontemplar.Estasnãodecorremdireta,unívocaeunilateralmentedolugardaclassenasrelaçõessociaisdeproduçãoenasrelaçõesdepropriedade,mastodoesseprocessoémediadopelasinstânciaspolítica e cultural. Assim,esteartigoconcentraráesforçosnodesdobramentodestecomplexocategorialqueéaformaçãodaclassetrabalhadoraque.Emprimeirolugar,naseçãoIocorreráumdesdobramento(eumaprofundamento)teóricodoreferi-docomplexocategorial,comparticulardestaqueparaoqueiremosidentificarcomolimitesmínimosemáximosdaorganizaçãodaclassetrabalhadora.Numsegundo momento, o desdobramento preconizado será de ordem empírica e focalizadono exemplodooperariado agrícola alentejano, duranteoperíododo Estado Novo português. Nesta parte, será descrito o processo de crescente organizaçãodaquelafraçãodaclassetrabalhadoraportuguesacontraoregimefascistadoEstadoNovo.

I – Katznelson, formação da classe trabalhadora e a experiência de classe: limites mínimos e máximos da organização da classe trabalhadora Tomando como ponto de partida um conceito de classe social abrangente e multidimensional1,IraKatznelsonfundamentaráapossibilidadedeaclassetrabalhadoraconstituir-secomoumagentesocialcoletivoapartirdainterligaçãoentre a

estruturadasrelaçõesdeclassenumnívelmacroeconômico;aexperiênciadevidadaclassenolocaldetrabalhoenacomunidaderesidente;osgruposdepessoas

1 “Sugiro que a classe nas sociedades capitalistas pode ser pensada como um conceito com quatro camadas associadas: estrutura, estilos de vida, disposições e acão colectiva” (Katznelson, 1986: 14).

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dispostasaagiremtermosdeclasse;eumaaçãocoletivadeclasse(Katznelson,1986: 21).

Assim,aformaçãodaclassetrabalhadoraapresenta-secomo“aemergênciadeumaclassetrabalhadorarelativamentecoesa,auto-conscientedasuaposiçãonaestruturasocialecomvontadeecapazdeagirparaamodificar”(idem:11).Nofundo,trata-sedapossibilidadedeaclassetrabalhadora,numdeterminadocontextoespaço-temporalconstituir-secomoumsujeitohistórico,independen-temente dos resultados sociais e políticos atingidos. Por outro lado, quando se utilizaaexpressãodesujeitohistóriconãoseestáreivindicandoumpapeldemissãoteleológicaàclassetrabalhadora.Defato,nestecontexto,ressalte-seaproblemáticateóricadapossibilidade,definidahistóricaesocialmente,deaclassetrabalhadorapoderseapresentarnopalcopolíticoesocialcomumaatuaçãopolítico-programática independente2 ecomumaestruturação internade tipocoletivo. Sintetizando as diversificadas experiências de formação das classes tra-balhadoras francesa, alemã e norte-americana,AristideZolberg rejeita umaperspectiva que atribua um caráter de estrita singularidade a cada caso nacional. Secadacasoéumcaso,issonãosignificaquecertascaracterísticasprocessuaisnãotenhamafetadoasdiferentesformasdaconstituiçãodaclassetrabalhadoranummovimentocoletivo(Zolberg,1986:397-455).Portanto,importasomaràabordagemhistoriográfica, uma aproximação sociológicadestaproblemática.Umaaproximaçãoquepermitaretirarpadrõesgeraisdearticulaçãoentreestruturasocialeaçãocoletiva,entreinérciaeprocesso,entrerelaçõessociaisrelativamenteinvariantesepráticassociaismodificadoras(re-produtoras,re-pavimentadoras)do tecido social. Emsimultâneo,Zolbergesclareceaimportânciadenãoequivalerestruturaeaçãocoletivanoestudodaformaçãodaclassetrabalhadora:“Seoadventodocapitalismoindustrialnumdadopaísnecessariamentecrioucondiçõesàemer-gênciadeumaclassetrabalhadora”,essaestruturaeconômica“nãodeterminapor si só a dinâmica do desenvolvimento daquela e os resultados a que chega” (idem:400-401).Portanto,níveisrelativamentepróximosdedesenvolvimento(elevado) das forças produtivas e da configuraçãodas relações de produçãoempaísescomoInglaterra,França,AlemanhaouosEUA,produziramtrajetospolíticosdiferenciadosdasrespectivasclassestrabalhadoras.Poroutrolado,opesonuméricodaclasseoperárianapopulaçãoativatotalnãoéfatorcomuma

2 Variável nos maiores ou menores níveis de consciência com que os agentes têm ou não dos seus objetivos políticos.

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cargaheurísticarelevanteparaaexplicaçãodamobilizaçãooperária. Assim, os limites máximos e mínimos em que uma classe pode se movi-mentarnapaisagemsocialsãopercorridospornuancesepormúltiplascondicio-nantes que travejam uma realidade concreta riquíssima de exemplos, que podem semultiplicarquase infinitamentenasformasenascaracterísticasassumidas.Porém,aclassetrabalhadoraatuasempredentrodeumcampodepossibilidades,marcadoporumasériedepropriedadesestruturantesnasuamodulaçãohistórica.Zolbergnomeiataispropriedadesestruturantesde“variáveisconceituais”(idem:446),ondesepodemincluir,entreasmaissignificativas,aconfiguraçãodeumregimepolíticoearelaçãoqueestabelececomasclassesdominadas,aformadearticulaçãodasinstânciaseconômica,políticaeideológico-culturalnumadeter-minadaformaçãosocial,oposicionamentodeumpaísnosistemainternacionalde Estados ou os ritmos inscritos nas conjunturas históricas. Assim,importaacrescentarqueaclassetrabalhadoranãoatuanatessiturasócio-histórica aleatoriamente. Existem, constantemente, limites mínimos e máximosparaasuaprojeçãosocialepolítica.Assim,seexistemlimitesmíni-mosemáximosàatuaçãodaclassetrabalhadora,estanãoé,emessência,nemrevolucionárianemconservadora.Pelocontrário,“é”conservadoraquantomaispróxima do limite mínimo e revolucionária quanto mais próxima de se estruturar comoumagentecoletivocomumalinhapolíticaeumaproduçãoculturalau-tônomas.Clarificando,olimitemínimoparaaatuaçãosocialepolíticadaclassetrabalhadora constitui-se, na prática, o que poderemos chamar de grau mínimo de organizaçãointernadamesma.Istosignificaquequandoestaapenassereporta,nocampoeconômico,àproduçãoecirculaçãodamais-valiadeixa,portanto,deterumaorganicidadeecoesãointernaentreosseusmembros.Estegrau/limitemínimoapontaparaumestadodedesagregaçãointernadaclasse,comamplasconsequências,porexemplo,embaixastaxasdesindicalização,naconstruçãodeprogramaspolíticosoureivindicativoscircunscritosaquestõessociaiselaboraismomentâneas (quandoocorre) ouna desintegraçãode partidos políticos deorientaçãosocialistaousocializante.Emsuma,olimitemínimodeorganizaçãodaclassetrabalhadoraé,emtermoshipotéticos,oequivalenteaumtotalestadodeatomizaçãodaclassetrabalhadora. Inversamente, o graumáximo de organização emobilização da classetrabalhadora (tomada aqui como o conjunto dos trabalhadores assalariados) significariaqueessaclassesocialevidenciasseumníveldeprofusãodeentidadesorganizacionaispróprias,adefiniçãodeumavertenteprogramáticapolíticaeso-cial independente do veiculado pela classe dominante e do Estado, a capacidade parasemobilizarcoletivamentedeformamaisoumenosregularecomumaidentificaçãocoletivamuitoforteentreosváriosagentessociaisdessaclasse.

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Assim,o limitemáximodeorganizaçãoda classe trabalhadora resumiriaumestado de independência política, ideológica e organizacional relativamente às classesdominanteseàssuasinstituiçõesdepoder.Emúltimaanálise,talestadodeorganizaçãoapontariaparaapossibilidadedeaprópriaclassetrabalhadoraafrontarabertamenteopoderpolíticoeeconômicodominantes,concorrendoparase tornarnaclassesocialcapazde induzirnovas lógicasdeorganizaçãosocietal. Tanto o limite3mínimocomoolimitemáximodeorganizaçãodaclassetrabalhadorasubscrevemumaabordagemhipotética,namedidaemquesurgemcomo dois pólos antagônicos, dentro dos quais as possibilidades reais e concre-tasdeefetivaçãodepráticassociaisepolíticasdaquelaclassesedesenrolam.Naverdade,ambososlimitesdocampodeatuaçãodaclassetrabalhadorararamentesãotocadosnaconcreçãodoreal-socialdaclasse.Ageneralidadedosprocessoshistóricos desencadeados por essa classe situa-se precisamente entre os dois pólos, independentementedamaioroumenorproximidadecomumdeles,emdiferentesmomentoshistóricos.Olimitemínimoé,emcertamedida,aindamaisraroequaseumaimpossibilidadehistóricanamedidaemqueasuaconcretizaçãosignificaria,naprática,umatotalausênciadesindicatosedeorganizaçõessociaisepolíticasoperárias,pormenoresquefossem.Aomesmotempo,issoseriasinônimodeumacompletainexistênciadecontestação–individualecoletiva–dosassalariados,algoausentemesmonassociedadesmaisconformistas.Porseuturno,seolimitemáximoéumhorizontedeorganizaçãoedeconsciencializaçãosocialepolíticadaclassedifícildeseatingir–principalmenteporqueteoricamenteimplicariaumaquasetotal liberdadedemanobraedeproduçãoideológicadessaclasse,quando,defato,asváriasclassessociaiscondicionam-seentresi,apesardasuamaioroumenorforçasocialnumdeterminadomomentohistórico–averdadeéqueastentativashistóricasqueaclassetrabalhadoraempreendeunacontem-poraneidade(ComunadeParisde1871,RevoluçãoRussade1917,iniciativadaUnidadePopularnoChileem1973,RevoluçãoPortuguesade1974/75,etc.)aproximaram-se,emalgunscasosmais,noutrosmenos,doreferidolimitemáximodeorganização.Odesfechodessasexperiênciasapenasdemonstraprecisamenteohiatoquecontinuaaexistirentreaefetivaçãoconcretadasdinâmicascoletivasdaclassetrabalhadoraeassuaspossibilidadesdeatuaçãoemtermosideais.Poroutrolado,ofatodenãoteremsidoalcançadasouaproximadasdoseulimitemáximodeorganização,nãoquerdizerqueessapossibilidadehistóricaesteja

3 Observe-se que existe igualmente uma relação estreita entre o limite mínimo de organização da classe trabalhadora e os efeitos das ideologias dominantes nesta classe social e, por outro lado, o limite máximo e o crescente rebater das influências políticas, ideológicas e institucionais das classes dominantes junto ao operariado.

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liminarmentedescartada.Pelocontrário,esseéumclarodesafioparaosfuturoseprováveisprocessosdeformaçãodasclassestrabalhadorasdaatualidade. Emoutro patamar de problematização, dada a possibilidade – nuncaconfundircominevitabilidade–históricadeaclassetrabalhadoraconstituir-secomoagentecoletivo relativamenteautônomo,opapelda suaorganizaçãoemobilizaçãoapartirdeentidadesdeclasse–sindicatos,partidos4 – ganha es-pecial relevo. Se estas entidades, quanto mais próxima a classe estiver do limite mínimo,decidempoucodatransformaçãodeumamassaamorfadeindivíduosquenãoseidentificamcoma(oucomo)classetrabalhadora,elasdesempenhampapéismaisdeterminantesquandoaclasseconstitui-secomosujeitocoletivo.Nãoesquecer,contudo,opapeldasorganizaçõesdeclassenatransformaçãodaclassetrabalhadoraemforçasocialepolítica.Sesindicatos,partidosououtrosmovimentos sociaisdecaráterpopular/operárionãoconseguem,por si sóenumcurtoespaçodetempo,transformaramplascamadasfragmentadasedes-politizadas da classe trabalhadora num sujeito coletivo mobilizado socialmente, sãoessasentidadesquepermitemmanterumcertoníveldeorganizaçãoedemobilizaçãomolecularesemcamadas–minoritárias–dessaclassesocial.Por-tanto,aatribuiçãodeumpapelmenosdeterminantenosprocessoshistóricosdessasorganizaçõesemperíodosemqueaclassetrabalhadoraaproxima-sedoseulimitemínimodeorganização,temaversomentecomoseumenorpesonaindução/propulsãodenovasdinâmicascoletivas.Paraumapossívelorganizaçãofuturadaclassetrabalhadora,essasentidadesdetêminequivocamenteomesmograu/intensidadedeimportânciaemdiferentesperíodoshistóricos.Naturalmente,a sua substânciaeasualocalizaçãoalteram-senoseionosprocessosdeformação5 daclassetrabalhadoraedemobilizaçãocoletivadestaclasse.

4 As lutas operárias que deixaram marcas mais profundas e duradouras nas estruturas sociais consubstanciaram regularmente a articulação entre luta política e luta reivindicativa.Em outras palavras, lutas e movimentações operárias e populares dirigidas contra executivos governamentais e/ou o aparelho de Estado e, ao mesmo tempo, lutas sindicais orientadas para a melhoria das condições de vida e de trabalho. Com efeito, os partidos operários eram, por um lado, constituídos por uma parte minoritária da classe trabalhadora (como a franja mais combativa e a mais vinculada a ações contestadoras da classe) e, por outro lado, atuavam na cena especificamente política. Inversamente, os sindicatos operam na esfera das reivindicações laborais e na defesa de interesses com um cariz mais imediato. Os sindicatos têm uma vertente mais aberta que procura integrar os mais vastos contingentes possíveis da classe trabalhadora, de um determinado setor profissional da classe trabalhadora.5 O deflagrar dos processos de formação da classe trabalhadora passa também por crises na formação social como um todo, no Estado (1917) ou num regime (exemplo, Revolução Portuguesa de 1974). Ou seja, a desestruturação das instâncias política, social e económica, quer dizer, a desfragmentação do papel unificador do conjunto da sociedade pelo Estado é um fator potenciador de lançar a classe trabalhadora para a frente da cena política, permitindo-lhe tomar a iniciativa na determinação da condução do processo político, independentemente das balizas estruturais em que uma crise social e política ocorre.

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II. A formação do operariado agrícola alentejano (1926-1974) Estaseçãoabordaaformaçãoedesenvolvimentodasmovimentaçõesso-ciaisepolíticasdooperariadoalentejanoentreoiníciodadécadade30eo25deAbrilde1974.Defato,oselementosdocumentais(excertosdejornaisedadosestatísticos)sofreram,nestecapítulo,umprocessointerpretativo,acentuandoostraçosfundamentaisacercadamovimentaçãodaclasseoperáriaalentejana. Aestetítulo,atente-separaaslutasemovimentaçõescoletivasdooperariadoagrícolacontraoregimeditatorialdoEstadoNovo.Comefeito,opadrãodaslutasoperáriasduranteaditadurafascistaportuguesaderivoudamatrizculturaldaclassetrabalhadoraagrícolaalentejana,mastambémdaorganizaçãointernadaestruturafundiária.Sucintamenteinterligandoterritório,recursoserelaçõessociais,caracterizaramamanchaclassistanoAlentejo.Dessemodo,ocritérioposse/propriedadesdaterra(principalmeioerecursosocialdeprodução)surgiucomoofatormaisestruturanteparaadefiniçãodasclassessociaisdaregiãoantesde1974.Comefeito,aliadaaumabaixataxadeurbanizaçãonaregião,chegaàsvésperasdaRevoluçãodosCravoscomaseguintedistribuiçãodasclassessociais:

Aconcentraçãodaterraeranítida,naviradadadécadade70.Aclassedomi-nantenoscampos–umaparteínfimadapopulação,poucomaisde2%–detinhamaisdedoisterçosdasterras,ecercade30%deterrasrestantesnasmãosdospequenosagricultoreseramparamerasubsistência/sobrevivênciafamiliar,ouerampropriedadescomsolospoucoférteis.Poroutrolado,osassalariadosagrí-colas–querepresentavampoucomaisde80%dapopulação–encontravam-sedestituídos do recurso em que eles trabalhavam quotidianamente: a terra. E isto quandotinhamemprego.QuandoocorreuaRevoluçãoqueinstaurouoregimedemocrático,estimam-secercade14mildesempregadosagrícolas(Piçarra,2004:212).Paralelamente,asituaçãoeconômicadooperariadoagrícoladaregiãoera,nomínimo,precária.Paraalémdotrabalhodesolasol,queiriapintararegiãodesdetemposimemoriaisaté1962,edodesemprego,atente-seque,porexemplo,entre1960e1962asdiáriaseramde24a30$(15centavosdeeuro,nomáximo)

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paraoshomensede13a16$(8centavosdeeuropordia)paraasmulheres(Gervásio,2004:182). Quantoàatividadeeconômica,atravésdeumaleituraatentadoProjetodoIIPlanodeFomento(1958)paraaagricultura,nãoseencontraumalinhasobreamelhoriadascondiçõesdevidadaspopulaçõestrabalhadorasdaregião.TodooPlano,alegadamentedestinadoafomentarodesenvolvimentoeconômicodopaís,nãocontemplanuncaamelhoriadossaláriosnaregião,ocombateaode-semprego,aintroduçãodemecanismoslegaistraduzidosemtermosdecontratostrabalhista,amodificaçãodoshoráriosdetrabalho,etc.Emtodoessetextooficialdo regime apenas se encontram tópicos relacionados com “hidráulica agrícola”, “povoamentoflorestal”e“reorganizaçãoagrária”(VVAA,1958).Mesmooúl-timoponto–reorganizaçãoagrária–apenasenfocaaquestãodamelhorformadereconfiguraraestruturadapropriedadeparatornarolatifúndiomaisrentáveldo ponto de vista capitalista. Porconseguinte,acontestaçãoaoregimedoEstadoNovosurgiucomoumaextensãodestadupladinâmicafirmadanaesferasimbólico-ideológica–aculturapopulardaregião–enasrelaçõesdepropriedadepreponderantesnolatifúndio. AconsolidaçãoinstitucionaldoregimepolíticodoEstadoNovonãoteveapenasconsequênciasaoníveldaprópriasobrevivênciadeumaformafundiáriaarcaica:olatifúndio.Essaconsolidaçãoinstitucionaldoregimefascista–promo-vidapelodesbaratarviolentodetodaaoposiçãopopular,desdeo“reviralho”atéàilegalizaçãodetodosospartidoseàrepressãobrutaldagrevegeralde18deJa-neirode19346–tevetambémreflexosnaprópriadinâmicadaclassetrabalhadoraalentejana.Aprimeiraobservaçãoéanecessidadequeaclasseoperáriaagrícoladaregiãoteveemadotarformasdelutaqueexigissemumaclaraconsciênciapo-lítica/socialdalongaduraçãodosenfrentamentosdeclasse.Emoutraspalavras,afascizaçãodavidanacional–assentadanaproliferaçãodeorganizaçõesestataisepara-estataiscomoCasasdoPovo,oMovimentoNacionalFeminino,aLegiãoPortuguesa,aMocidadePortuguesa,osSindicatosNacionais,etc.,quedenotamumaclarasustentaçãoerobustezorgânicainternadoregime,pelomenosatéàsuaprimeiragrandecrisecomofimdaSegundaGuerraMundialeàderrotadasexperiênciasfascistasportodaaEuropa.Atéentão,oapoiointernacionaldaspotênciasautoritárias(Itália,Alemanha,Espanhafranquista,etc.)eoeficazeseletivamenteorientadorecursoàviolênciafísicaedecensuracontraosseus

6 O regime realizou “um total de 696 presos”, no rescaldo dessa iniciativa de luta operária, constituindo o “esfrangalhar dos núcleos de resistência à organização corporativa” (Patriarca, 2000: 458;490).

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adversáriospolíticos,forneciamumaestabilidadeaoregimefascistadeSalazareaslutasdeafrontamentoabertoestariamfadadasaoinsucesso. Assim,faceaopoderdoEstadofascistadaépoca,alutaoperárianoscam-posalentejanosassumiuformasrelativamentenovasàsocorridasnaPrimeiraRepública: iniciativas influenciadaspeloanarco-sindicalismoassentesnaaçãodireta.Aindamaisrelevante,iriacresceraconsciênciadequeamovimentaçãocoletiva dessa classe teria de ser orientada para um longo processo de acumu-laçãodeforças.Estanoçãodamovimentaçãocoletivaconcretizou-seporumapersistente luta econômica e reivindicatória de suprir as gritantes necessidades básicasdostrabalhadoresalentejanose,deoutrolado,pelaconstruçãodeumaclassesocialcomumelevadograudepolitizaçãoedeconsciencializaçãodasuasituaçãocomoassalariadosagrícolaseconomicamenteexploradospelolatifúndioepoliticamenteoprimidospeloregime.EstadimensãodelongaduraçãoébemexpressanaspalavrasdeAméricoLeal:

após muitas lutas contra o trabalho de sol a sol e pela redução do horário de trabalho em certasatividades,comonacavadasvinhasenoutrostrabalhospontuais,foiapartirde1960queostrabalhadoresagrícolasdoAlentejopassaramaternoVerãoduashorasparaoalmoçoemeiahoraparaamerenda,oque,mesmoassim,osobrigava a trabalhar 11 e 12 horas por dia. Os salários, embora sempre depen-dentesdalutadostrabalhadoresemcadaregião,eporvezesemcadaherdade,eram,em1940,de8a10escudospordiaparaoshomensede2a3escudosparaasmulheres,passando,em1960,naHerdadedaPalmaedevido a constantes ações reivindicativas,para15escudosparaoshomense7escudosparaasmulheres(Leal,2005:28)[grifosmeus].

Repare-sequeoaumentosalarialcitadopeloautordemoroucercade20anosparaserconcedido.Daquisepercebeocaráterdelongaduraçãodaslutasoperárias no Alentejo, decorrente da própria natureza do regime e da estrutura fundiáriaexistente. Amutaçãonotipodelutasoperáriasnaregiãoiriaobedeceradoisfunda-mentos principais: 1)desenvolvernoplanopolíticooslaçosdesolidariedadeedefraternidadejáexistentesaoníveldassociabilidadesculturais,oquesignificavaadotarlutasreivindicatóriasemtornodeobjetivosconcretosedesatisfaçãoimediatadostrabalhadoresagrícolas(salários,horáriosdetrabalho,períodosdedescanso,etc.); 2) à luta descoordenada em cada herdade procurar agregar essas lutas par-ciaisporvilaoualdeia,apostando-se,paraisso,naintervençãoreivindicatórianaspraçasdepagamentosexistentesemcadaunidadeadministrativaterritorial.

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Nasdécadasde40e50,aoladodasmobilizaçõesparareivindicaçõesdecaráctereconômico,acrescentaram-seaspectospolíticosàsmobilizaçõesoperá-rias.Sobretudonadécadade50,recorreu-secommaiorfrequênciaàgrevecomoformadeluta,eoafrontamentocomoregimetornou-semaisviolento.Semqualquerformadelegitimaçãoideológicaoudecaráternormativoparabarrarasmobilizaçõesoperárias,sóumamaisimplacávelrepressãopoderiadeteracres-centemagnitudedaorganizaçãocoletivadosassalariadosagrícolasalentejanos.Aliás,arepressãoporsisóéinsuficienteparafazerretrocederummovimentopopularascendente,sobretudosenãoconseguirdestruirasbasesprodutorasdoseu viver social: no caso do operariado agrícola alentejano, a sua base cultural, a suaposiçãonasrelaçõessociaisdeproduçãodapropriedadelatifundiária,anãodestruiçãodaorganizaçãopolíticaquedessaclasse.Ocasodoassassinatodeváriasfiguraspolíticasalentejanas(contamosapenasoscasosantesde1958)pelasforçaspoliciais(GNRePIDE)doregime,comoGermanoVidigal(assassinadoemJunhode1945àpancadanopostodaGNR),AntónioJoséPatoleia(morto,em1947,nasededapolíciapolíticadeVilaViçosa),AlfredoLima–(mortoatiropelaGNRdalocalidadeem1950)eCatarinaEufémia–(assassinadaàqueima-roupaem19deMaiode1954naaldeiadeBaleizão)evidenciamcomo,nocasodalutaoperáriaalentejanacontraoregimeepormelhorescondiçõesdevida,aviolêncianãoésuficienteparadesorganizarumaclassequecontacomumníveldeestruturaçãointernamuitoforte,quantoàsolidariedadeentreosoperáriosemlutacomoàsuadisposiçãoparalutareparaenfrentarasforçaspoliciais,comobjetivos políticos muito precisos. Nadécadade60,haveráumdosacontecimentosmaisimportantesemaismarcantesdecentenasdeanosde lutadosassalariadosdaregião:a lutapelaconquistadasoitohorasdiáriasdetrabalho.Ofimdoseculartrabalhodesolasolseriapossívelnumcontextodedesagregaçãointernadoregime(agravadapeloinício da Guerra Colonial em 1961 e pelas lutas estudantis de 1962) e de crescente capacidade organizativa da classe operária agrícola alentejana. A conquista das oitohorasdiáriasdetrabalhofoiprecedidadecentenasecentenasdeaçõesdeprotestoe reivindicativasao longo,pelomenos,dasduasdécadasanteriores.Poroutrolado,numperíododetempomaiscurto,amobilizaçãooperáriadeAbrileMaiode62resumiutodoumlongoprocessode“pequenasreuniõesdetrabalhadoresparadiscutiroPrimeirodeMaioeas8horasdetrabalhopordia”(Gervásio,1996:20).Aproliferaçãodereuniões–quasetodasclandestinas–peloscamposalentejanosfoiacompanhadadadefiniçãopelabasedostrabalhadoresagrícolasdeumconjuntodereivindicaçõesqueseriampublicadasnojornaldoPartido Comunista dedicado para aquela classe social – O Camponês – na sua ediçãodeJunhodaqueleano:

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asnossasreivindicaçõeseconómicasmaisimediatasepelasquaisdevemoslutarsão:1º-Garantiadetrabalho;2º-Saláriosmínimosde30escudosparahomense20escudosparamulheres.Queninguémtrabalhepormenosdestessalários;3º-Jornadade8horas.Queninguémtrabalhedesolasol(VVAA,Jun.1962:1).

Este era um caderno reivindicativo encontrado desde 1954 (VVAA.,Mai.1954:1).Assim,aproveitandoacomemoraçãodoPrimeirodeMaio,operá-riosdoAlentejoedamargemsuldoRibatejolevaramacaboumaaçãodelutaverdadeiramenteeficazecriativa.Naprática,dezenasdemilharesdeoperáriosagrícolasnasprimeirassemanasdeMaiotrabalharamapenasduranteoitohoras,tirandoumahoraparaoalmoço. Como registrou António Gervásio, principal dirigente das lutas operárias de 1962 no Alentejo,

a conquista das 8 horas pelos operários agrícolas do Sul constitui uma importan-tíssimavitóriapolíticadostrabalhadoresdocampo.Maisde250miltrabalhadorestêmparticipadonestalutaatravésdagreve,deconcentrações,delevantamentosderanchos,dechoquescomasforçasrepressivas,etc.Alutanãotemsidofácil.Muitostrabalhadorestêmsidopresoseoutrosobrigadosafugiremdassuasterras.Seosagráriosnãotêmresistidomaiséporquealutatomouumatalenvergaduraqueassustouosfascistas.OmêsdeMaiode1962ficarásendoumadatahistóricanomovimentodosoperáriosagrícolas.As8horassãoumadasreivindicaçõesmaissentidasdosassalariadosagrícolasdoSul(Gervásio,1996:45).

Assim,dava-seumanevrálgicamachadadana formadepropriedadedolatifúndioemdecadência.Nãosepense,todavia,queessagrandeondademo-bilizaçãooperáriafoialcançadapacificamente.DepoisdoassassinatodeAdelinodosSantos,mortoatiroemfrenteàCâmaraMunicipaldeMontemorem1958,António Adângio seria assassinado a tiro nas ruas de Aljustrel a 28 de Abril de 1962,precisamentenomomentoemqueaondade250miloperáriosagrícolascomeçavaaerguer.Percebe-setambémograudedecomposiçãodoregimeeasuaincapacidadeemdestruirascondições–sociais,econômicas,culturaisepolíticas–degerminaçãodaescaladademobilizaçãodooperariadoagrícolaalentejano. Destajornadade1962,retiremosduasrelevantesnotasdebalanço.Primeira:a jornadadiáriadeoitohorasfoiconseguidaporintermédiodaaçãopolíticadostrabalhadoresagrícolasenãodeumaqualquerbenessedoEstadoNovoedasclassesdirigentes.Asoitohorasnuncaforamregulamentadasjuridicamente,

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masasuapráticaefetivafoiconcretizadanageneralidadedasgrandesherdadesalentejanas.Umprimeirosinaldapossibilidadedamudançadasestruturasso-ciais,pelaaçãodeumsujeitosocialcoletivo,podeserevidenciadonestepontoespecífico.Umasegundanotarefere-seao“entrelaçamentodalutapolíticacomalutaeconômica”(idem:64).ComaescolhadoPrimeirodeMaiocomoaber-turadashostilidades,ooperariadoagrícoladaregiãodeuumsaltoqualitativonasuaprópriapercepçãodesujeitosocial.Deumsujeitovocacionadoparalutarporobjetivosimediatos–oquetambémaconteceunasjornadasde1962–ooperariado alentejano assumiu-se como um sujeito político capaz de, por toda a planície alentejana (e ribatejana), se mobilizar pelo que considerava serem as suas aspiraçõesmaisprofundas,eobendoconquistasquerepresentavamdurosgolpesnopoderdolatifúndioedopróprioregimenoAlentejo.ComoafirmouAntónioGervásio,“ostrabalhadoresligaramacomemoraçãodo1ºdeMaiocomalutapelaconquistadas8horas,comalutaporumsaláriocertode40escudosparaasceifasede30escudosparaosserviçosdosarrozais”(idem).Ocruzamentodasduasmodalidadesdemobilizaçãopolíticaesocialdescrevemumgraudeorganizaçãoedeconsciencializaçãomuitomaisagudodooperariadoagrícola,comforterepercussãonasduasdécadasseguintes. NosdozeanosseguintesatéàRevoluçãodeAbrilde1974,constata-sequeas lutas reivindicatórias, greves e concentrações continuaram, solidificando aunidadeinternadessaclassesocial.Aomesmotempo,acontestaçãodaGuerraColonialpolitizouaindamaisoprópriooperariadoagrícolaalentejano.DesdepequenaslutasreivindicatóriasnasCâmarasMunicipaisdeÉvoraedeAlcácerdoSal (VVAA,Jan.1963:06),atéàgrevedosoperáriosagrícolasdeAlpiarçaemAbrilde64porumaumentode5escudosnasuajorna(VVAA.,Abr.1964:01),àsgrevesemAviseVendasNovasem1965pormelhoressalários(VVAA.,Mai.66:2-3),passandopelasmanifestaçõessucessivasdoPrimeirodeMaioedaconquistadesaláriosde90escudosemváriaslocalidades(VVAA.,Jun.69:03)eàsgrevesdeseismiloperáriosagrícolasemJaneirode1974(VVAA.,Jan.1974:03),ressalte-seaconsolidaçãodeumapolíticareivindicatóriaqueiriaajudaraformaralgunsjovensoperáriosparaocontextoinesperadodaReformaAgrária,desencadeadaapósaRevoluçãodosCravosde1974.

Brevesnotasfinais Tal como uma semente, a classe trabalhadora alentejana pôde elevar-se à posiçãodeumaclassesocialcapazdeafrontarasclassesdominantesdaregiãopelocontroledaproduçãodavidasocialeeconômicanoAlentejo,namedidaem que tinha: a)umaprolíficaproduçãoculturalauto-centradanasuavidasocietárialocal

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enoseuprópriocaráterdeauto-produçãocultural,portanto,altamentedesco-nectadodaproduçãoculturaleideológicaexterioràssuascomunidadeseàsuaregião; b)umoperariadoagrícolacomumagrandecoesãopolíticaeorganizativa,frutodedécadasdeembatescomospoderesdominantes,nomeadamenteatra-vésdaslutaspeloemprego,salários,horáriosdetrabalho.Emsuma,forjou-seumaculturaregional(algoúniconopaísduranteaditadura)queprojetouumaculturasocietáriadesolidariedadeaummaisabertoconfrontocomaditadurade Salazar. Constituiu-se, assim, uma cultura política, um tabuleiro axiológico operacionalizadoemtermosdeaçõespolíticasereivindicatórias.Porconseguin-te,mesmoaspráticaspolíticasnãoseseparamdevariáveisdeíndoleculturalesignificacionalnasuaprópriagêneseeconstituiçãointerna; c) um regime político e uma estrutura agrária arcaica que, apesar da repres-sãoimpiedosaàsrevoltasoperárias,fermentaramumterrenomaisfavorávelàmobilizaçãocoletiva,namedidaemqueasualongadecadênciaeraincapazderebentar a sociabilidade interna do operariado agrícola. Comefeito,amobilizaçãosocialdestaclasseparecedemonstraraperti-nênciaanalíticadoconceitodeformaçãodaclassetrabalhadora,namedidaemqueintegrasimultaneamente:1)osefeitosdasestruturaseconômicas,sociaisepolíticasdeumdeterminadocontextoespaço-temporalnaconfiguraçãointernadeumaclassesocialespecífica;2)ainserçãodaspráticascoletivasdeumaclassetrabalhadora no tabuleiro mais ou menos plástico e moldável da processualidade histórica;3)aretroatividadedaspráticassobreasestruturas,rejeitandoasnoçõesestruturalistasquedefendemumarelaçãounicausaleunidirecionaldasestrutu-ras sobre os comportamentos dos indivíduos. Assim, as possibilidades, sempre variáveis em cada contexto histórico, de as classes trabalhadoras se mobilizarem pelo que consideram ser o seu interesse, podem ser contempladas pelas Ciências Sociais, evitando, desse modo, a queda no precipício de abordagens tecnicistas quereduzemasclassessociaisamerosenunciadosestatísticosedemográficos,portanto,despidasdasuaespessurahistóricaecultural.Énestequadroqueaconceitualizaçãodacategoriadaformaçãodaclassetrabalhadoraadquireumrelevo ainda mais atual.

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