LIA FRANCO BRAGA
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS
LIA FRANCO BRAGA
PERFORMANCES DE CORPOS
BRINCANTES: CULTURA
AFRICANA E ARTES
CÊNICAS NA EDUCAÇÃO
INFANTIL
NATAL/RN
2019
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LIA FRANCO BRAGA
PERFORMANCES DE CORPOS BRINCANTES: CULTURA
AFRICANA E ARTES CÊNICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Artes Cênicas – Stricto
Sensu –, Mestrado Acadêmico em Artes
Cênicas pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, como parte dos requisitos
para obtenção do título de Mestre em Artes
Cênicas.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Teodora de Araújo
Alves.
NATAL
2019
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FOLHA DE APROVAÇÃO
LIA FRANCO BRAGA
PERFORMANCES DE CORPOS BRINCANTES: CULTURA AFRICANA E ARTES
CÊNICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Artes Cênicas – Stricto
Sensu –, Mestrado Acadêmico em Artes
Cênicas pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, como parte dos requisitos
para obtenção do título de Mestre em Artes
Cênicas.
Aprovada em: _______ de __________________ de 2019.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________
Prof.ª Dr.ª Teodora de Araújo Alves
Presidente da Banca – Orientadora
__________________________________________
Prof.ª Dr.ª Karenine de Oliveira Porpino
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – Membro interno
_______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Kiusam Regina de Oliveira
Universidade Federal do Espírito Santo – Membro externo
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Dedico este trabalho a minha ancestralidade, a
minhas(meus) orixás e a meus guias espirituais.
Sem vocês, esta pesquisa não teria se
concretizado!
Em especial, aos gêmeos Ibejis, por abrirem
essa gira, à minha mãe Iemanjá, por guiar meus
passos junto às crianças, à mãe Oxum, pelas
surpresas e encantamentos e a erê Tapuiá, por
me ajudar na reta final!
A todas as crianças, principalmente as que
trilharam comigo este caminho afro-brincante.
Elas enriqueceram as descobertas, as trocas, os
aprendizados e os desafios que, juntas,
experienciamos!
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AGRADECIMENTOS
À minha espiritualidade, por me guiar na arte e na educação junto às crianças; obrigada
por me estimularem no exercício de um olhar, um fazer e um experienciar sensível com elas.
A minha avó Elza (in memoriam) por seu amor, carinho e dedicação regados pelas
primeiras histórias que escutei quando criança: obrigada por ter plantado em mim essa
sementinha afetuosa.
Aos meus pais, Elza e Pompeu, e à minha irmã Júlia, pelo amor, apoio e incentivo
incondicional, e pelas discussões que contribuem para meu crescimento pessoal e profissional.
À mamãe, pelo seu exemplo como mulher, mãe, profissional e amiga: obrigada pelo apoio
emocional e profissional. Ao papai, por ser tão afetuoso, protetor e amigo: obrigada por tornar
essa caminhada mais leve e prazerosa. À minha irmã, por poder lhe admirar como a guerreira
que é nessa vida: obrigada pelos questionamentos que me permitiram caminhos fecundos e
críticos, e pela ajuda na edição das fotografias.
Às amigas e aos amigos da vida e da profissão, por tantas trocas e aprendizados
engrandecedores. À Regina Parente, por seu acolhimento, carinho e apoio. À mestra Lenna
Beauty e às irmãs da dança, sempre em conexão na arte e com o sagrado feminino. À Prof.ª
Alba Carvalho, por seu carinho e exemplo como mulher negra e profissional comprometida.
Ao Prof. George Paulino, pelas contribuições iniciais. À Prof.ª Sandra Petit e ao grupo de
pesquisa NACE/FACED/UFC, por terem partilhado conhecimentos e me proporcionado
experiências afro-referenciadas.
Aos afetos do mestrado. À Nanda Mélo e à Natali Assunção, pelo apoio emocional e
as várias trocas artísticas e pessoais. A Ronildo Nóbrega, pelas boas conversas, carinho e auxílio
em algumas fotografias. À melhor amiga e irmã do coração, Daliana Cavalcanti, obrigada pela
sororidade que rege as nossas trocas, pelo apoio emocional e em minha dissertação, com a parte
musical, alguns recursos visuais e outras contribuições.
Ao curso de mestrado e ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN, pelo acolhimento e crescimento
proporcionados.
Às professoras Melissa Lopes e Karyne Coutinho, pelos ensinamentos e trocas: obrigada
pelas tardes sensíveis e poéticas. À Prof.ª Teodora Alves, minha orientadora, pela abertura,
acolhimento, parceria na arte e na educação: obrigada por me apoiar na elaboração de um
trabalho cuidadoso, por suas importantes contribuições, iluminando minha escrita, meu
percurso acadêmico e por sempre me tranquilizar com sua delicadeza. Às professoras Karenine
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Porpino e Kiusam de Oliveira, membros da minha banca, pelo acolhimento e pelos
ensinamentos partilhados: obrigada por me ajudarem com seus olhares sensíveis, atentos, e com
suas generosidades, redimensionando importantes cruzamentos artísticos e acadêmicos.
Ao Núcleo de Educação da Infância NEI/Cap/UFRN e aos seus profissionais. Ao
coordenador de projetos, à coordenadora pedagógica da Educação Infantil, ao bolsista de teatro,
à professora de música: obrigada pela abertura, acolhimento e apoio que proporcionaram para
a concretização desta pesquisa. Às professoras responsáveis pela turma participante desta
pesquisa: obrigada pela preciosa ajuda e parceria neste processo. Às crianças participantes da
pesquisa: obrigada por me permitirem brincar, me encantar, me sensibilizar e respeitar suas
narrativas, saberes e culturas afro-brincantes.
Ao revisor Marlo Lopes, pela dedicação e pelo trabalho criterioso, em tempo hábil.
Por fim, à vida, que se apresenta como um eterno retorno às nossas raízes, plantadas
nos chãos férteis de nossos ancestrais: obrigada às mais velhas e aos mais velhos, por nos
prepararem para as lutas cotidianas, sociais e culturais, que mobilizam nosso ser, nosso estar e
nosso experienciar no mundo contemporâneo!
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RESUMO
Nesta dissertação, desvelo experiências de performances dos corpos brincantes de crianças na
Educação Infantil, estimuladas por elementos da cultura africana, através do universo das
deusas e dos deuses orixás, com centralidade na nação Iorubá. Os processos de criação em arte
nesta pesquisa em Artes Cênicas, desenvolvidos no NEI/Cap/UFRN, envolveram um grupo de
crianças de 5 a 6 anos e contaram com a participação das duas professoras responsáveis pela
turma, bem como de outros profissionais da referida instituição. Foram desenvolvidas
observações, entrevistas com adultos, diálogos com as crianças e oficinas artísticas com
mediação lúdica: contações de histórias e jogos/brincadeiras corporais ancoradas nas
linguagens da dança e do teatro, assim como o uso de elementos de musicalidade. Os desenhos
das crianças, as fotografias e os registros em vídeo enriqueceram as narrativas e proporcionaram
uma maior aproximação com o fenômeno vivenciado. Os trabalhos de Merleau-Ponty em seu
olhar fenomenológico sobre o corpo e a infância, bem como a proposição da pesquisadora
Marina Machado, especialmente com o conceito de criança performer, entre outros autores,
fundamentaram meu percurso teórico-metodológico. As ancoragens sobre africanidades,
negritude e orixás, com base em autores como Kabengele Munanga, Clyde W. Ford, Teodora
Alves, Sandra Petit, Kiusam de Oliveira e Reginaldo Prandi, entre outros, com suas abordagens
e conceitos afro-referenciados, subsidiaram um olhar crítico e reflexivo para esta pesquisa, de
modo a reconhecer e valorizar as riquezas afrodescendentes na Educação Infantil. Este percurso
acadêmico, artístico e político corrobora a aplicabilidade da Lei nº 10.639/03, na medida em
que a arte no cotidiano escolar tem um papel relevante na disseminação de diálogos, saberes e
práticas que favoreçam relações étnico-raciais mais inclusivas e democráticas. A riqueza, a
intensidade, as trocas e os aprendizados com as crianças moveram um fazer afro-poético
respaldado em uma ancestralidade africana, alargando e intensificando nossas experiências
brincantes.
Palavras-Chave: Performances. Corpos Brincantes. Cultura Africana. Artes Cênicas. Educação
Infantil.
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ABSTRACT
In this dissertation I reveal experiences of the children’s playing bodies in kindergarten,
stimulated by elements of African culture, through the universe of the godness and gods orixás,
with centrality in the Yoruba nation. The art creation processes in performing arts research
developed at NEI / Cap / UFRN, involved a group of 5 and 6 year olds, the participation of the
2 teachers responsible for this class and other professionals of the institution. It was developed
observations, interviews with adults, dialogues with children and artistic workshops with
playful mediation: storytelling and body games, anchored in the languages of dance, theater
and the use of elements of musicality. Children's drawings, photographs and video records
enriched the narratives and a closer approximation of the phenomenon experienced. The author
Merleau-Ponty and his phenomenological look on the body and childhood, as well as the
proposition of the researcher Marina Machado, especially with the concept of child performer,
among other authors, supported my theoretical and methodological path. Anchorages on
Africanities, blackness, orishas, based on authors such as Kabengele Munanga, Clyde W. Ford,
Teodora Alves, Sandra Petit, Kiusam de Oliveira, Reginaldo Prandi, and others, with their Afro-
referenced approaches and concepts, subsidized a critical and reflective path in order to
recognize and value the African descent riches in early childhood education. This academic,
artistic and political course corroborates the applicability of Law No. 10,639 / 03, as art in
everyday school has a relevant role in the dissemination of dialogues, knowledge and practices
that favor more inclusive and democratic ethnic-racial relations. The richness, intensity,
exchanges and learning with the children moved an Afro-poetic doing backed by an African
ancestry, broadening and intensifying our playful experiences.
Keywords: Performances. Playful Bodies. African Culture. Performing Arts. Child Education.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Orixá Exu Mirim ................................................................................................. 13
Figura 2 – Exú ...................................................................................................................... 17
Figura 3 – Iemanjá por Carybé ............................................................................................ 20
Figuras 4 e 5 – Espetáculo Cearábia / Iemanjá .................................................................... 22
Figura 6 – Lia criança .......................................................................................................... 23
Figura 7 – Lia adulta ............................................................................................................ 24
Figura 8 – Logotipo Brincando com Africanidades............................................................. 28
Figura 9 – Terça-feira é dia de Ogum, o orixá dos caminhos e da guerra ......................... 35
Figura 10 – Ibejis ................................................................................................................. 58
Figuras 11 e 12 – Os gêmeos Ibejis numa aventura dançante ............................................. 61
Figura 13 – Retratos de Olinda, Baianinha .......................................................................... 79
Figura 14 – Oxum ganhou o título de protetora das crianças ............................................... 80
Figura 15 – Arquétipo de alguns orixás ............................................................................... 100
Figura 16 – Lia aos pés do Baobá, de 110 anos, no passeio público, em Fortaleza-CE ...... 111
Figura 17 – Oriki’s, as evocações poderosas dos orixás ..................................................... 127
Figura 18 – Ciranda de Lia ................................................................................................... 127
Figura 19 – Valores civilizatórios afro-brasileiros ............................................................... 129
Figura 20 – Circularidades afro-brincantes .......................................................................... 131
Figura 21 – Jogo/brincadeira corporal “Não deixe o balão cair” ......................................... 133
Figura 22 – Crianças representando Ibejis levando água para o povoado ........................... 143
Figura 23 – Kalimba ............................................................................................................. 146
Figura 24 – Oxum e seus encantos na contação de histórias ................................................ 153
Figura 25 – Dançando as águas de Oxum ............................................................................ 158
Figura 26 – Guerreiros e guerreiras de Ogum dançam ........................................................ 162
Figura 27 – Dançando o fogo de Xangô .............................................................................. 164
Figura 28 – Dançando os ventos de Iansã ........................................................................... 166
Figura 29 – Orixás pelas crianças ........................................................................................ 173
Figura 30 – Gingando e dançando capoeira ......................................................................... 174
Figura 31 – Lia mirando-se nos Abebés (espelhos) com as bonecas
Iemanjá orixá e Janaína sereia ..................................................................... 180
Figura 32 – Oxóssi ................................................................................................................ 191
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LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Síntese das(os) orixás ........................................................................................ 53
Quadro 2 – Perfil das(os) entrevistadas(os) ......................................................................... 75
Quadro 3 – Nomes fictícios e perfil das(os) participantes ................................................... 77
Quadro 4 – Circularidades afro-brincantes ........................................................................... 131
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO – EXU, SEM ELE NINGUÉM FAZ NADA......................................... 13
1.1 Conhecendo as(os) Orixás ............................................................................................. 14
1.2 Memórias Narradas ........................................................................................................ 17
1.3 Trajetos e Percursos ....................................................................................................... 20
1.4 Problematizações ........................................................................................................... 23
1.5 Situando o Objeto de Estudo e os Objetivos ................................................................. 28
1.6 Desenho da Pesquisa ..................................................................................................... 32
CAPÍTULO 1 – OGUM: O SENHOR DOS CAMINHOS ............................................. 35
2.1 A Fenomenologia como Eixo Metodológico e outras Correlações ............................... 35
2.2 Ancoragens Artísticas e Metodologias Lúdicas ............................................................ 42
2.3 Metodologias Afro-Brincantes e seus Desdobramentos ................................................ 47
2.4 Locus da Pesquisa .......................................................................................................... 66
2.5 Participantes da Pesquisa ............................................................................................... 73
CAPÍTULO 2 – OXUM: O ESPELHO DO ENCANTAMENTO ................................. 79
3.1 Percepções e Proposições sobre Infâncias ..................................................................... 80
3.2 Travessias entre Corpos Brincantes e Corpos-Porosos .................................................. 92
3.3 A Lei nº 10.639/03 e as Rodas Afro-brincantes: A Quantas Andam? ........................... 100
3.4 Histórias de Orixás: Contar e Brincar com o Corpo ...................................................... 114
CAPÍTULO 3 – BRINCANDO COM OS GÊMEOS IBEJIS E
OUTRAS(OS) ORIXÁS ............................................................................................. 127
4.1 Construindo Saberes Circulares ..................................................................................... 127
4.2 As Crianças e suas Criações Artísticas .......................................................................... 133
4.3 As Crianças e suas Imersões na Natureza ...................................................................... 143
4.4 As Crianças e suas Brincadeiras com as Deusas e os Deuses ....................................... 153
4.5 As Crianças e suas Relações com a Negritude .............................................................. 174
TRILHAS PERCORRIDAS... NOVOS HORIZONTES
OXÓSSI, O CAÇADOR: DESBRAVANDO SUAS MATAS ......................................... 191
REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 199
BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR ........................................................................... 204
MATERIAL AUDIOVISUAL COMPLEMENTAR ...................................................... 205
APÊNDICE: PLANEJAMENTO DAS OFICINAS ....................................................... 206
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INTRODUÇÃO – EXU: SEM ELE NINGUÉM FAZ NADA
Exu, o menino brincalhão
Exu me acordou no escuro e disse que sem ele ninguém faz nada
Eu é que fiquei no escuro sem entender nada
Exu, aquele menino negro e risonho me deixou na dúvida
Ele fez mesmo de propósito, mas não por maldade
Exu me apontou caminhos, possibilidades, possíveis descobertas
Eu me pus a chorar sem saber o que fazer
Ele então soprou no meu ouvido: “A resposta está dentro de você!”
Então comecei a buscar o que de fato eu queria
Buscar a mim mesma
Nessa busca por mim, compreendi que era feita de sombra e de luz
Os dois lados da mesma moeda se tornaram multicoloridos
E meu mundo ficou mais divertido
Assim como Exu, leve, sagaz, trapaceiro
Trapaceiro, como assim?
Exu trapaça com aquele que não quer olhar para si mesmo
Ou aquele que desrespeita a rua, sua morada
Exu na verdade é um bom parceiro
Pois só quem pode se iludir é você mesmo, que não quer enxergar
Que lugar de criança negra não é na enxada
Que ouvido de criança negra não foi feito para escutar desaforo como “cabelo de Bombril!”
Que olhos de criança negra não foram feitos para não se verem nas bonecas ou nos livros infantis
Que boca de criança negra não foi feita para dizer que “negro é feio!”
Criança negra é linda!
Ela é toda feita de noite, com seus cabelos cacheados, de nuvem ou trançados
Ela pode ser quem ela quiser
Aliás, toda e qualquer criança deveria ser respeitada e amada por ser quem é
Exu é brincalhão, mas quando quer ele não está para brincadeira
Exu, menino da noite, que se esconde nos becos das ruas e que brinca no chão dos terreiros
Solto, livre, aprendeu a se virar
Exu, mas porque mesmo ninguém faz nada sem ele?
Porque ele é um deus Iorubá, um dos primeiros deuses
Senhor do movimento, da comunicação, da energia vital, “Exu, a boca do universo!”
Exu, menino deus, me permita então iniciar essa nova jornada!
Que eu possa escutar as crianças, dar voz às mesmas e que, juntas, possamos brincar
Que eu também possa transmitir o que tanto aprendi com vocês: respeito, amor, cuidado e valorização!
A essa cultura que tanto pulsa em meu coração!
Vamos agora descobrir qual é?!
(Lia Braga, Natal/RN, novembro de 2018)
FIGURA 1 – ORIXÁ EXU MIRIM
Fonte: Google Imagens (internet).
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1.1 CONHECENDO AS(OS) ORIXÁS
[…] Corri para roda
E já fui logo brincando
Fui me achegando
E a lua quis me abraçar
Dancei ciranda Cirandei a noite
Inteira
E adormeci nos
Braços dos Orixás. (Valter Silva para Lia Itamaracá)
A partir do trecho da música Ciranda em Noite Clara, pertencente ao CD Ciranda dos
Orixás1, criado e produzido pelo grupo Tempo de Brincar, pode-se perceber relações intrínsecas
entre o divertir-se com o corpo através da dança, da natureza e do aconchego das(os) orixás.
Essa letra me faz recordar da minha ligação com essas deusas e deuses e a sensação, desde o
primeiro contato com este universo, de ter sentido o meu corpo pulsar, como em uma festa.
Uma festa repleta de alegria, conexão e encantamento. Um corpo-festa acolhido por um
encontro ancestral, ancestralidade esta que me guia nos rumos desta pesquisa2. Existe, nesta proposta, estreita relação com minha trajetória pessoal, artística e
acadêmica; portanto, um tom autobiográfico será bastante presente. Nesse sentido, aportarei
algumas memórias a partir de minha infância, e, assim, entrelaçarei algumas conexões com as
temáticas que aqui serão desenhadas ao longo da tessitura dessa narrativa poética e lúdica.
Mas antes de situar-me enquanto proponente e pesquisadora a partir destas
revisitações, faço um convite de aproximação ao universo das(os) orixás. Para nós, adeptos das
religiões de matriz afro-brasileira, orixás são deusas e deuses ou divindades ancestrais africanas
que representam, ou simbolizam, elementos da natureza, sendo guardiãs(ões) e protetoras(es)
desta. Por ocasião da banca de qualificação desta dissertação, Kiusam de Oliveira, educadora,
docente, escritora, artista e iyalorixá (mãe de santo) – zeladora espiritual, sacerdotisa de um
terreiro –, explicitou o seguinte sobre o termo orixá: “[…] de origem Iorubá, Ori significa
‘cabeça’, e Sá (Xá) significa ‘protetor’. Orixá é considerado, portanto, um ‘protetor de cabeça’,
uma espécie de anjo da guarda para quem é católico, por exemplo […]”.
1 TEMPO DE BRINCAR. Ciranda dos Orixás. Sorocaba, SP: Tratore, 2017. 1 CD (ca. 51 min.) 2 Junto ao Mestrado e Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN, vinculado à linha de pesquisa “Práticas investigativas da cena: poéticas, estéticas e pedagogias”.
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Essas divindades protegem a natureza e também a nós, seres humanos. Esses vínculos
de proteção e harmonização podem ser evidenciados nas falas de crianças, no documentário
Brincando com os deuses3, sobre a infância em um terreiro de Candomblé, em Guarulhos, São
Paulo, em 2010:
Ah, cada santo tem poder, meu santo mexe com o fogo, Iemanjá mexe cá água […]
Oxum mexe cá cachoeira, Ogum mexe cá guerra […] Xangô é o rei da justiça e… é o
dono do fogo, que mora na… nos altos, nos topos da montanha… que é meu orixá, e
eu gosto muito dele! (Pedrinho de Xangô).
[…] É uma rainha do mar [...]ela guerreia, tem espelho […]. Então, eu sou de Iemanjá
e Iemanjá é mãe de Omulu […] (Kailane de Iemanjá).
[…] Orixá… é um santo, que cuida das pessoa […] (Malu de Omulu).
[…] Orixá para mim é paz… é saúde […]. Para mim, ele é uma árvore, mas é um tipo
de humano que mora dentro da árvore […]. Essa árvore representa Iroco, que é uma
criança, que come canjica […] (Luana de Iroco).
[…] Aquele que… que, se você tem, ele fica com você; para mim [...] é um santo,
uma harmo… muita harmonia assim […] (Nicole de Iemanjá).
Para estas crianças de diversas idades, é interessante observar as relações que elas
estabelecem com essas divindades, a partir de experiências espirituais na religião do
Candomblé. Suas formas de perceber e compreender quem são essas(es) deusas(es), e as
associações entre os santos, segundo elas mesmas, evidenciam emoções ao explicitarem
sensações e representações de harmonia, paz, cuidado e saúde.
São divindades africanas que detêm poder sobre a natureza e, ao mesmo tempo em que
simbolizam ser a sua própria extensão, também expressam o homem incorporado a ela. Como
quando a menina Luana de Iroco afirma: “[…] Para mim, ele é uma árvore, mas é um tipo de
humano que mora dentro da árvore […]. Essa árvore representa Iroco, que é uma criança [...]”.
Mas, diferentemente de contextos ocidentais, esse poder está associado a valorização,
cuidado e manutenção da natureza, e não a destruição e exploração, como o que se observa na
devastação da Amazônia, atualmente centro das discussões políticas entre Brasil e outros países
do mundo. Esses e outros debates denotam uma postura autoritária dos governantes, além de
explicitarem interesses estratégicos e econômicos que fragilizam a sustentabilidade e a
soberania de nosso país.
A perspectiva de conscientização ecológica que o universo dessas divindades nos
propicia, ao construir várias relações, será melhor explicitada ao longo deste trabalho. A partir
3 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=9tzDZpOkHB8>. Acesso em: 10/07/2019.
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disso, pode-se refletir sobre possíveis caminhos metodológicos nesta pesquisa com crianças,
pelos cruzamentos afro-referenciados nas Artes Cênicas e na Educação.
O fotógrafo e antropólogo francês Pierre Verger dedicou parte de sua vida e obra a
pesquisar as expressões culturais afro-baianas e diaspóricas, principalmente as manifestações
religiosas do Candomblé. Morou em Salvador (Bahia/Brasil) e em África, foi iniciado como
babalaô – considerado o adivinho de um jogo do Ifá, jogo oracular africano jogado através de
búzios, com acesso a tradições orais dos Iorubás – e recebeu o nome espiritual de Fatumbi.
Suas vivências e pesquisas com as temáticas já mencionadas foram desenvolvidas
principalmente nos países da África Ocidental, principalmente Nigéria e Benin, a partir de 1948.
Em Salvador, em 1988, ele criou a Fundação Pierre Verger (FPV), tendo sido doador,
mantenedor e presidente até o seu falecimento, em 19964.
A partir das contribuições do autor (VERGER, 2018), percebe-se que em África, mais
especificamente em regiões onde se cultuam orixás, há dois importantes eixos que regem sua
lógica. O primeiro é a noção de pertencimento, da família vinculada a seus ancestrais, em vida
ou em morte. O segundo, já mencionado anteriormente, é a importância da relação com a
natureza, a que o ser humano é integrado:
[…] A religião dos orixás está ligada à noção de família. A família numerosa,
originária de um mesmo antepassado, que engloba os vivos e os mortos. O orixá seria,
em princípio, um ancestral divinizado, que, em vida, estabelecera vínculos que lhe
garantiam um controle sobre certas forças da natureza, como o trovão, o vento, as
águas doces ou salgadas, ou, então, assegurando-lhe a possibilidade de exercer certas
atividades, como a caça, o trabalho com metais ou, ainda, adquirindo o conhecimento
das propriedades das plantas e de sua utilização (VERGER, 2018, p. 26).
Pode-se analisar historicamente, a partir do tráfico negreiro, que africanos
escravizados em suas terras natais, obrigados a ir a outros lugares, vivendo e trabalhando em
condições desumanas, adaptaram-se de diferentes formas, ao resistirem e expressarem suas
manifestações culturais. No tocante a essas manifestações e expressões, observamos diferenças
entre o culto religioso das(os) orixás no continente africano e em nosso país, o Brasil. Na África,
uma divindade detém poder sobre uma determinada região, mas pode ser desconhecida em
outra, que possui regência de outra divindade (VERGER, 2018).
Já em nosso país, devido à necessidade de reorganização dos nossos ancestrais
africanos, as(os) orixás foram reunidos em uma espécie de mesmo aglomerado ou panteão, e
dezesseis são os mais cultuados no Brasil – mesmo que em um determinado terreiro, por
4 Informações extraídas do site oficial da Fundação, <http://pierreverger.org/br/>.
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exemplo, uma divindade esteja à frente, zelando pela casa espiritual, e, em outro terreiro, já
seja outra.
É importante frisar que no continente africano, territorialmente extenso e rico em sua
diversidade étnica, cultural e social, existem outras crenças não vinculadas a orixás; porém, em
nosso país, é inegável a herança africana vinculada a esse universo. Tal herança se manifesta,
por exemplo, nas religiões (Umbanda e Candomblé, entre outras), nas músicas, danças e
expressões culturais (samba, carnaval, capoeira, dança dos orixás, afoxé, músicas de cantoras
como Clara Nunes, Maria Bethânia e Mariene de Castro, entre outras), nas comidas (caruru e
acarajé, entre outras) e em vários aspectos de nossa cultura.
Tudo isso demonstra como um amplo campo de conhecimentos e de manifestações
estão entrelaçados entre África e Brasil. E, nessa reunião, um círculo se retroalimenta entre
aqueles que vieram antes e aqueles que perpetuam, hoje, seus ensinamentos. Um círculo que é
uma “gira”, expressão conhecida e vivenciada por nós de religião de matriz afro-brasileira.
“Gira”, que pode remeter à expressão “girar”: o ato de rodar em forma circular e que também
se refere às “giras”, encontros espirituais realizados no formato de rodas.
O conceito de gira me traz uma circularidade e maleabilidade interessante, para assim
percorrer os caminhos de minha escrita dentro de uma roda, em que a arte e a academia estão
de mãos dadas, a partir de minhas experienciações.
1.2 MEMÓRIAS NARRADAS
Após esta breve apresentação sobre orixás, reporto-me
então ao deus que abre esta escrita. Narra um mito que Exu (Figura
2) tinha uma fome voraz e nada o aplacava (PRANDI, 2001). Ele já
havia comido todos os animais da aldeia em que vivia, as frutas e os
vegetais; havia bebido a cerveja, o azeite de dendê e tantas outras
coisas; já estava devorando as árvores e até mesmo ameaçava engolir
o mar. Orunmilá, o deus da adivinhação, percebeu que Exu acabaria
até por comer o céu; então, ele pediu a Ogum, irmão de Exu, que ele
o parasse a qualquer custo, e eis que Ogum teve que matar Exu.
Mesmo assim, o espírito de Exu continuava esfomeado e não parava
de comer tudo e todos. Um sacerdote, então, consultou o oráculo de
Ifá, um sistema de adivinhação que revelou que o espírito de Exu
FIGURA 2 – EXU
Fonte: Google Imagens
(internet).
18
pedia atenção, e que sua fome precisava ser aplacada. Orunmilá, ao obedecer ao oráculo,
ordenou que, a partir daquele momento, nas oferendas que fizessem aos orixás, deveria ser
servida a comida a Exu em primeiro lugar, para que a paz e a tranquilidade reinassem entre os
homens (PRANDI, 2001).
Exu, portanto, é o deus ou a divindade a quem devemos pedir permissão primeiro; e,
diferentemente da imagem ocidental a que o associam, a do diabo, ele é um dos orixás mais
próximos de nós, humanos – visto que orixás são deuses e deusas imperfeitos(as), com
qualidades e defeitos, assim como nós. Com Exu eu sempre aprendi muito; por exemplo, que a
vida é transitória, visto que ele é também considerado o deus do movimento, o que nos conecta
com um lado mais jocoso e mais leve da vida.
Também tenho aprendido que a vida é feita de escolhas, visto que Exu aponta diversos
caminhos. Talvez por isso algumas pessoas tenham uma imagem de dubiedade desse deus, de
algo obscuro. Exu espelha nosso lado mais escondido, aquele para o qual não queremos olhar,
e é aí em que residem as saídas, a luz no fim do túnel. As respostas residem em nós mesmos.
Com Exu, eu espelho a minha fome de viver, esta que alimenta a vontade de pesquisar,
de buscar, de dizer a que vim ao mundo. Foi através de minha descoberta espiritual que minha
vida começou a ter mais sentido para mim, aos 23 anos de idade. Na Umbanda, religião
brasileira sincrética de matrizes – como a africana, a indígena e a cigana, entre outras –, deu-se
meu encanto por este diálogo diverso. Através de meus guias (espíritos protetores), descobri ter
relação com e herança do Candomblé, religião também brasileira, desencadeada no contexto
escravocrata, fortemente relacionada à matriz africana e um dos símbolos de resistência dos
nossos antepassados negros.
Entre o tempo em que fui de terreiro (com experiências com outros adeptos dessas
religiosidades) e os dias atuais, já se passaram sete anos – sete anos que me tornei “filha de
santo”, termo utilizado para designar os adeptos/praticantes das religiões de matriz afro-
brasileira. Apesar de não ter mais um laço espiritual com o terreiro e com seus adeptos, busco
praticar os ensinamentos que aprendi e me conectar com minha espiritualidade cotidianamente. Considero então que, após o meu despertar espiritual, eu renasci para mim mesma, e
tenho renascido sempre que a vida me impulsiona a ter um olhar mais maduro – outro
aprendizado com Exu, o de conectar-me com a pulsão de vida que existe em mim enquanto uma
mulher adulta.
Tornar-me mulher tem me proporcionado refletir sobre o sentido de ser mãe, do gerar
e do cuidar. Tenho experienciado uma pulsão de vida e de morte, toda entranhada em meu útero.
19
A morte me acompanha desde o meu nascimento, pois, quando nasci, minha mãe biológica
faleceu no parto; quando ela literalmente me deu a vida, o seu sopro físico se apagou.
Quando pequena, segundo minha mãe adotiva narrou – na época eu devia ter de três
para quatro anos de idade –, ao ver uma foto dela grávida de minha irmã, perguntei por que ela
não tinha uma foto comigo dentro da barriga dela. Acredito que esse foi o primeiro momento
em que ela revelou a minha história e me disse que ela era a minha mãe do coração, e que a
minha mãe da barriga estava no céu. Uma prima que cuidou muito de mim quando eu era
criança e quando meus pais viajavam também narrou que eu devia ter de quatro para cinco anos
quando lhe disse que eu tinha cinco mães: “[…] a mãe da barriga que eu nasci, a mãe Elza, que
me criava, a vovó Elza, a mamãe do céu e a Paulinha, que cuidava de mim quando mamãe
viajava […]”.
Sinto que, diante de tantos sentimentos e cuidados maternos, passei a me conectar mais
com minhas mães biológica e adotiva, e também com minha mãe de cabeça5, Iemanjá (Figura
3). Ainda assim, por um período extenso da minha vida, eu não conseguia suprir o vazio que
sentia em relação a minha origem.
Iemanjá é considerada a grande mãe de todas(os) as(os) orixás, e tem uma relação
especial com as crianças, protegendo-as da morte – assim como aconteceu comigo ao nascer.
Apesar de não ter certeza, eu desconfio que uma qualidade de minha Iemanjá – uma espécie de
atributo ou especificidade – seja Iemanjá Acurá.
5 Mãe ou pai de cabeça, na Umbanda ou no Candomblé, significa a(o) principal orixá que rege a sua vida e o seu
caminho espiritual, e do qual você herda principalmente as características. Contudo, pode haver outras(os) orixás
em sua coroa ou linhagem espiritual.
20
Iemanjá Acurá ou Akurá é a mais jovem de todas as Iemanjás. Tem um
caráter alegre e infantil, talvez por sua associação ao culto dos Ibejis
(Ibéji), aos quais devota profundo amor, conforme relatado por Lydia
Cabrera (CABRERA, 1989). Se Iemanjá Acurá está associada aos
Ibejis e, assim como eles, protege as crianças das doenças e da morte,
ela também participa de um outro rito propiciatório muito importante
no controle da mortalidade infantil, rito referente aos abicus (abíku).
Por outro lado, protege seus devotos do assédio de Icu (Ikú, a Morte)
(VALLADO, 2002, p. 46-47).
Sobre minha mãe biológica, tenho poucas
informações: ela era do interior do Ceará e tinha 19 anos
quando nasci. Espiritualmente falando, a revelação de meus
guias sobre minha herança de Candomblé vem através dela.
Sinto-a sempre espiritualmente ao meu lado e lhe agradeço
muito por ter me gerado a vida, e por eu sentir de fato essa
conexão com minha ancestralidade africana. Atualmente, não saber muito sobre a minha origem
dói menos; sei que algumas lacunas não serão preenchidas, e
perguntas sobre a minha origem talvez não sejam
respondidas. Essa invisibilização de minha história me motiva a me refazer na vida a partir de
minha outra família e das oportunidades que ela sempre me proporcionou.
Também considero a admiração que tenho por meus pais e minha irmã. Os dois
primeiros, sociólogos, me inspiram em minhas práticas artísticas e educacionais. Minha mãe,
além de professora, milita pelas causas sociais dos moradores de periferia, dos quilombolas e
da segurança alimentar e nutricional. Meu pai, ligado a questões agrárias, especificamente à
reforma agrária, atualmente tem se dedicando à causa dos direitos dos idosos. Eles sempre
proporcionaram, à minha irmã – artista e fotógrafa – e a mim, amor, cuidado e apoio ao longo
da vida, bem como o exercício de um olhar mais crítico e consciente diante das relações e
problemáticas sociais que, em muitos casos, geram processos de exclusão.
1.3 TRAJETOS E PERCURSOS
Tenho memórias curiosas, alegres e afetuosas de minha infância: os países em que já
morei, as cidades que visitei, as culturas que conheci, o contato íntimo com a natureza. Desde
criança, fui estimulada por meus pais e alguns professores a vivenciar o universo das artes, e
FIGURA 3 – IEMANJÁ POR CARYBÉ
Fonte: Google Imagens (internet).
21
foi nessa fase que me descobri como artista. Assistir a espetáculos, observar obras em museus,
escrever, desenhar, pintar, frequentar aulas de dança, teatro, canto, música e pintura foram
experiências que positiva e afetivamente influenciaram e motivaram minha escolha de propor
um estudo inserido no universo infantil.
Ao aprofundar essas vivências na adolescência, me assumi como artista e, na fase
adulta, destaco algumas experiências que foram fundamentais na minha trajetória profissional
em minha cidade, Fortaleza/CE: o curso Princípios Básicos de Teatro/CPBT, um dos principais
cursos de iniciação teatral em minha cidade, com o artista e educador João Andrade Joca; e o
grupo Centro de Experimentação em Movimentos/CEM, coletivo de teatro/dança
contemporânea coordenado pela artista Silvia Moura. Essas e outras vivências me
proporcionaram descobertas do corpo a partir do teatro e da dança, como poéticas sensíveis e
passíveis de criação e construção artística. Seus diversos estímulos geraram uma teia de
reflexões e experienciações híbridas ou múltiplas de sentidos acerca da conscientização,
sensibilização, criação e expressão corporal/artística.
A partir de 2010, ao cursar a graduação em Licenciatura em Teatro, do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), ingressei no campo do ensino em
Arte nas escolas públicas, o que redirecionou minha trajetória como artista e proporcionou a
minha descoberta como educadora. Em 2011, realizei minha primeira experiência de ensino no
Programa Mais Educação, do Ministério da Educação (MEC) em parceria com a Prefeitura de
Fortaleza/CE6. Outras práticas foram vivenciadas em minha época de bolsista, no período de
2012 a 2015, pelo Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência
(PIBID/CAPES/IFCE) de Teatro7.
O meu interesse pela Educação Infantil se aprofundou a partir da pesquisa realizada
com um grupo de crianças de cinco e seis anos, em instituição pré-escolar de Fortaleza/CE, por
ocasião de minha monografia de término do curso, publicada sob a forma de livro, cujo título é
Onde o Corpo é Jogo: Uma Mediação Lúdica na Educação Infantil (BRAGA, 2017).
Durante o desenvolvimento da pesquisa, verifiquei a possibilidade de o corpo tornar-
se jogo na Educação Infantil, com mediação lúdica através de brincadeiras/jogos corporais,
ancorados nas linguagens artísticas da dança e do teatro. Portanto, a partir de então, passei a
priorizar a pesquisa sobre corpos brincantes de crianças nessa etapa da Educação Básica.
6 Fui monitora de dança, recreação e teatro para alunos do Ensino Fundamental e alguns adolescentes com defasagem escolar, com idades entre seis e dezessete anos. Em 2013 e 2014, retomei a monitoria em dança em escolas de Ensino Fundamental. 7 Fui bolsista em duas escolas públicas: uma de Ensino Fundamental e Médio, de agosto de 2012 a março de 2014, e a outra, de Ensino Médio, de abril de 2014 a janeiro de 2015, ambas em Fortaleza/CE.
22
Recordo que em algumas de minhas experiências de ensino presenciei situações que
denotavam preconceitos contra pessoas negras. Por exemplo, vi crianças negando a sua
negritude e observei posturas de discriminação em relação às manifestações culturais africanas,
quando organizei e dirigi um processo artístico que culminou em uma apresentação inspirada
nos arquétipos e nas danças de orixás, da nação Iorubá8, com estudantes de Ensino Médio.
Dando continuidade à minha formação artística fora da universidade, entre 2015 e
2016, participei de alguns cursos e oficinas voltados para expressões de matrizes culturais
africanas e afro-brasileiras, envolvendo principalmente as danças e os arquétipos de orixás. Em
2016, comecei a dançar no Estúdio de Dança da bailarina Lenna Beauty, em minha cidade, com
foco em danças ciganas e orientais, privilegiando o contato com diversas origens e as fusões
destas danças. Em 2018 e 2019, integrei, como dançarina, o espetáculo Cearábia9, criado por
Lenna e pelo músico e produtor Yury Kalil, dirigido pela coreógrafa Cristiane Azem. Para além
do intenso processo artístico de estudo e de criação, esse espetáculo é muito significativo para
mim, pois, em um dos números, danço representando Iemanjá (Figuras 4 e 5):
Vale destacar ainda, minha inserção no grupo de pesquisa intitulado Núcleo das
Africanidades Cearenses (NACE), vinculado à Faculdade de Educação (FACED) da
8 Grupo étnico-linguístico originário da África Ocidental. No Brasil, reverberaram algumas de suas principais
manifestações religiosas e culturais, em que se cultuam orixás. 9 Este espetáculo reúne dança e música; é uma jornada através das origens da miscigenação e das influências
orientais, ciganas, africanas, indígenas, islâmicas, judaicas e cristãs no Ceará.
FIGURAS 4 E 5 – ESPETÁCULO CEARÁBIA/ IEMANJÁ
Fonte: Fotografias de Luiz Alves.
23
Universidade Federal do Ceará (UFC), entre 2016 e 2017, o que proporcionou-me
aprofundamentos teóricos e práticos sobre as africanidades. O NACE é coordenado pela
professora Dra. Sandra Petit, pesquisadora e educadora que procura problematizar e trazer
novas possibilidades em se tratando de uma educação afro-referenciada.
As experiências mencionadas foram importantes para ampliarem o meu olhar e o meu
repertório artístico, corporal e acadêmico, diante das temáticas e do estudo que aqui foi
desenvolvido.
1.4 PROBLEMATIZAÇÕES
Revisitando minhas memórias, lembro que,
quando criança (Figura 6), a tez da minha pele era mais
escura; e ao confundir minha data de nascimento, uma
amiga me dissera: “É, só podia ter nascido mesmo na
escravidão”. Esse comentário reproduzia racismo
quanto ao meu tom de pele, que na época era mais
escuro do que atualmente. Também meus cabelos
cacheados foram um traço a mais, certamente
associados à negritude. Na adolescência, alisei meus
cabelos para, provavelmente, tentar me enquadrar aos
padrões socialmente impostos de estética e beleza – o
padrão do embranquecimento como estratégia para
retirar, apagar ou minimizar traços associados à
negritude.
FIGURA 6 – LIA CRIANÇA
Fonte: Arquivo pessoal.
24
Com meu processo de amadurecimento pessoal,
concomitantemente ao desenvolvimento da pesquisa, foi
possível retomar e aprofundar as reflexões sobre o meu
pertencimento étnico-racial. Pelo censo do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sempre me
reconheci como parda, apesar de achar essa palavra muito
estranha. Passei por uma fase em que me reconheci como
negra de pele clara e, após o contato com pesquisadores
negros e alguns questionamentos, percebi a confusão que
pairava acerca do meu processo de identidade. Depois,
comecei a me reconhecer como mulher branca, mas sentia
que nem o lugar de negra, nem o lugar de branca
abarcavam a minha miscigenação. Assim sendo, hoje, me
reconheço como uma mulher miscigenada (Figura 7).
Este reconhecimento, por vezes ainda
inquietante para mim, é desassociado de um olhar
romântico sobre a ideia de que nós, brasileiros, convivemos bem e respeitosamente com as
diferenças, o que infelizmente não ocorre. Historicamente no Brasil, a mestiçagem se deu
inicialmente por um processo brutal de violência sexual em relação às mulheres indígenas e
africanas, e os primeiros mestiços são frutos dessa violência (DUARTE, 2015). A partir das contribuições do antropólogo e professor Kabengele Munanga, percebe-
se que a mestiçagem ocorre também de um ponto de vista biológico: “É concebida como uma
troca ou um fluxo de genes de intensidade e duração variáveis entre populações mais ou menos
contrastadas biologicamente […]” (MUNANGA, 1999, p. 17). Ainda assim, faz-se necessário
um olhar consciente e crítico para perceber que este é um processo marcado pela violência, e
também por uma construção sócio-histórica e cultural imposta ideologicamente pela classe
dominante, que visava a construir estratégias de poder para assim embranquecer a população
brasileira e enfatizar o mito da democracia racial:
[…] baseado na dupla mestiçagem biológica e cultural entre as três raças
originárias, tem uma penetração muito profunda na sociedade brasileira: exalta a
idéia de convivência harmoniosa entre os indivíduos de todas as camadas sociais e
grupos étnicos, permitindo às elites dominantes dissimular as desigualdades e
impedindo os membros das comunidades não-brancas de terem consciência dos
sutis mecanismos de exclusão da qual são vítimas na sociedade. Ou seja, encobre
os conflitos raciais, possibilitando a todos se reconhecerem como brasileiros e
afastando das comunidades subalternas a tomada de consciência de suas
FIGURA 7 – LIA ADULTA
Fonte: Arquivo pessoal.
25
características culturais que teriam contribuído para a construção e expressão de
uma identidade própria (MUNANGA, 1999, p. 80).
Nesse sentido, a depender do tom de pele ou de outras características do indivíduo, no
Brasil somos lidos por nossos fenótipos, e nem sempre por nossa herança ancestral ou por uma
posição político-ideológica. Esses fenótipos excluem ou incluem o indivíduo em certo grupo
ou local social. Eu mesma já fui lida ou enquadrada socialmente de diferentes formas: como
“branca”, “parda”, “miscigenada”, “morena”, “morena clara”, “morena cor de jambo” e “negra
de pele clara”.
Essas nomenclaturas me levam a dialogar com a obra Polvo, de 2014, da artista plástica
carioca Adriana Varejão. A obra faz alusão a 33 cores escolhidas por brasileiros, a partir de um
censo do IBGE – a Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílio (Pnad) de 1976 –, respondendo
à pergunta “Qual a sua cor de pele?”. As 136 respostas traziam vários nomes, e um deles,
“morena-jambo”, era uma das “cores” associadas a mim. A artista “[…] produziu um múltiplo,
uma caixa de madeira com 33 bisnagas, em tiragem de 200 unidades. Foi com essas tintas que
ela pintou máscaras indígenas, cada uma com uma cor, sobre 33 retratos seus” (O GLOBO,
2014).
Essa obra, em minha leitura, faz uma crítica sobre o imaginário racial perpetuado em
nossa sociedade. Expõe uma invisibilização e um silenciamento por parte de brasileiros que
tentam disfarçar ou minimizar traços ou características negras, com terminologias mais suaves
ou amenas. A provocação através das máscaras indígenas faz refletir também sobre este outro
grupo negligenciado e marginalizado na história de nosso país.
O “encontro” das três raças, como nos aponta Munanga (1999), e a mestiçagem
brasileira, como fato consumado historicamente, sempre acarretou uma série de problemáticas
e rupturas estruturais, sociais e psicológicas, principalmente para negros, indígenas e os
próprios mestiços. Reflito que os povos originários do Brasil, os indígenas, bem como nossos
também ancestrais negros, de fato construíram o que poderíamos denominar de uma “identidade
brasileira”, apesar de eu também considerar que muitas são as identidades que constituem o
nosso país. Porém, no Brasil, infelizmente somos pintados e encouraçados com uma
branquitude patriarcal, que sempre se organizou à base de exploração, sofrimento, violência e
perpetuação do medo.
No entanto, confundir o fato biológico da mestiçagem brasileira (a miscigenação) e
o fato transcultural dos povos envolvidos dessa miscigenação com o processo de
identificação e de identidade cuja essência é fundamentalmente político-ideológica,
26
é cometer um erro epistemológico notável. Se, do ponto de vista biológico e
sociológico, a mestiçagem e a transculturação entre povos que aqui se encontram é
um fato consumado, a identidade é um processo sempre negociado e renegociado,
de acordo com os critérios ideológico-políticos e as relações de poder
(MUNANGA, 1999, p. 108).
Sei que o lugar de fala que eu ocupo, mesmo às vezes sentindo-me em um limbo racial,
ainda assim é privilegiado, e se difere do lugar de fala de negras(os), historicamente
menosprezadas(os) e excluídas(os). Apesar do fato isolado ocorrido em minha infância, não
vivo diariamente o racismo e o preconceito que muitas(os) negras(os)vivem. Mas me
sensibilizo com essa problemática e construo minha identidade enquanto mulher e pesquisadora
com profundo respeito às dores, às histórias e a todo este legado histórico e cultural herdado
por nós, brasileiras(os), que busco na minha vida pessoal e profissional reconhecer e valorizar.
Sou apaixonada por esse universo e por essa ancestralidade africana, que marca minha história
espiritual e norteia minha pesquisa e minha atuação como artista e educadora. É importante frisar que, apesar das tentativas de apagamento histórico, muitas lutas e
reivindicações, principalmente dos movimentos negros, culminaram em uma mudança na
legislação brasileira, com a implementação da Lei nº 10.639/03. Ela determina a
obrigatoriedade do ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira em estabelecimentos
públicos e particulares, nos ensinos fundamental e médio (BRASIL, 2003). Essa lei foi alterada
para a Lei nº 11.645, em 2008, contemplando também a obrigatoriedade da temática “História
e Cultura Afro-brasileira e Indígena” (BRASIL, 2008). Como o meu projeto é focado na
perspectiva africana, irei me remeter à primeira lei, que representa uma ação afirmativa. Nesse
sentido,
[...] tal lei atendeu a uma demanda da população negra, no sentido de reparar séculos
de invisibilidade imposta ao povo negro brasileiro. Estamos falando aqui da
necessidade de adoção de políticas educacionais reparatórias, de ações afirmativas
que visem a desconstruir a ideia de democracia racial e superar as desigualdades
étnico-raciais, explicitando as práticas racistas, propondo epistemologias negras
capazes de combater o racismo e fortalecer identidades daquelas/es que sofrem
violências racistas em seus cotidianos (OLIVEIRA, 2018).
A referida lei não indica que esses conteúdos sejam trabalhados desde a Educação
Infantil; porém, a partir do plano nacional de implementação de suas diretrizes, indica-se a
necessidade de se problematizar as relações étnico-raciais desde esta etapa, pois
[…] o papel da Educação Infantil é significativo para o desenvolvimento humano, a
formação da personalidade, a construção da inteligência e da aprendizagem. Os
espaços coletivos educacionais, nos primeiros anos de vida, são espaços
privilegiados para promover a eliminação de qualquer forma de preconceito,
racismo e discriminação, fazendo com que crianças, desde muito pequenas,
27
compreendam e se envolvam conscientemente em ações que se conheçam,
reconheçam e valorizem a importância dos diferentes grupos étnico-raciais para a
história e a cultura brasileiras (BRASIL, 2009, p. 35).
Assim, cabe problematizar: como é possível que nós, artistas, docentes e
professoras(es)/educadoras(es), possamos contribuir para a construção da formação social,
cultural e emocional de estudantes? Como a arte, sendo parte do processo educativo, pode
ressignificar e desconstruir alguns padrões preconceituosos e preestabelecidos, e alargar a
concepção de mundo? Como a arte na educação de crianças pode incidir na ampliação dos
seus aprendizados e experienciações, sendo a arte produtora, mobilizadora e mediadora de
processos corpóreo-criativos que estimulem práticas inclusivas e o respeito à diversidade
cultural?
Nesse sentido, indica-se, dentre algumas ações educativas de combate ao racismo e
às discriminações, a “valorização da oralidade, da corporeidade e da arte, por exemplo, como
a dança, marcas da cultura de raiz africana, ao lado da escrita e da leitura” (BRASIL, 2009,
p. 71).
A partir dessas descobertas, experiências e problemáticas, passei a refletir sobre a
possibilidade de inovar práticas artísticas e educacionais que instigassem identificação,
afirmação, visibilidade e valorização da raiz africana constituinte, entre outras, da formação
sociocultural brasileira. A partir de novembro de 2016, tive a oportunidade de ministrar uma
oficina artística com temática lúdica e africana10.
10 Realizada em Fortaleza/CE nos seguintes espaços: Centro Cultural Banco do Nordeste (CCBNB), com
participação intergeracional (crianças a partir de 5 anos e seus responsáveis); Escola Municipal Profa. Terezinha
Ferreira Parente (em três turmas de 6º ano, alunos entre 11 e 12 anos); terreiro de Umbanda Tenda Espiritualista
Mãe Tutu, com participação intergeracional (mães residentes na localidade com crianças de colo e crianças a
partir de 2 anos, pré-adolescentes até 13 anos e trabalhadoras locais).
28
Estimulada com a experiência da oficina,
comecei a desenvolver o projeto artístico “Brincando
com Africanidades” (Figura 8). Nesse projeto,
estabeleço diálogos entre corpos brincantes e cultura
africana, a partir do universo de orixás desenvolvendo
intervenções artístico-educacionais sobre essas
temáticas, que estão voltadas ao público infantil e
abertas à experienciação com diversas idades11. São
realizadas contações de histórias e oficinas artísticas12,
bem como um espetáculo cênico, o Axé Odara: O
Encanto dos Orixás, que teve sua estreia em fevereiro
de 2018, na cidade de Sobral/CE13.
No atual contexto político e institucional do
Brasil, que parece retroceder em direitos humanos e nas conquistas daqueles que sempre foram
tratados como minorias – a exemplo dos negros e de outros grupos sociais –, é uma questão de
consciência lutar por uma postura política e crítica, visando galgar mudanças sociais efetivas.
Nesse sentido, a arte pode se afirmar enquanto processo de descoberta,
conscientização, despadronização, autonomia e liberdade. Proponho então, com esta pesquisa,
refletir e gestar possibilidades de atuação/intervenção que incorporem universos e temáticas
muitas vezes invisibilizados em nossa sociedade: corpo vinculado à infância, ludicidade e
cultura africana.
1.5 SITUANDO O OBJETO DE ESTUDO E OS OBJETIVOS
Diante deste pano de fundo inicial, para dar sentido e significado à construção do
objeto e dos objetivos do presente estudo, agora é o momento de maior aproximação com
11 No primeiro semestre de 2017, tive a oportunidade de facilitar uma oficina em Fortaleza/CE voltada para o
público adulto (artistas, professoras(es)/educadoras(es), pais e outros), com dois grupos/locais: curso de
pedagogia da Universidade Federal do Ceará (UFC); e Teatro Universitário Paschoal Carlos Magno (UFC), em
parceria com um laboratório de pesquisa do curso de Psicologia da UFC. No primeiro semestre de 2018, no
âmbito do mestrado, em Natal/RN, tive a oportunidade de ministrar esta oficina no 8º Congresso Brasileiro de
Extensão Universitária (CBEU/UFRN), e no segundo semestre, na disciplina “Dança e Educação”, do curso de
Licenciatura em Dança da UFRN, no qual fui estagiária. 12 Em setembro de 2017, em Fortaleza/CE, foram realizadas duas intervenções no Centro Cultural Banco do Nordeste (CCBNB): contação de história e oficina artística, com participação intergeracional (crianças a partir de 3 anos acompanhadas de seus responsáveis e outros interessados) em ambas as ações. 13 Espetáculo aprovado no edital público “Temporada de Artes #OcupaSobral”. Aborda o universo das(os) orixás e é voltado para o público infantil. Com minha direção e atuação, teve parceria cênico-musical com outra artista.
FIGURA 8 – LOGOTIPO
BRINCANDO COM
AFRICANIDADES
Fonte: Arte de Layla Fernandes.
29
alguns conceitos-chave que balizaram esta elaboração e a formulação da seguinte questão
norteadora desta pesquisa: “Como proporcionar a experiência de performances dos corpos
brincantes de crianças a partir de elementos da cultura africana?”
Cabe recorrer às contribuições do pesquisador das Artes Cênicas Zeca Ligiéro
(LIGIÉRO, 2011), que, dentre algumas características sobre a performance, explicita que
esta traz em sua gênese a hibridização das artes (música, teatro, dança, canto etc.).
Compreende-se como “híbrida” a fusão ou mistura das várias linguagens artísticas,
ampliando suas formas de expressão.
A partir da década de sessenta, pesquisadores como Jerzy Grotowski, Peter Brook,
Richard Schener e Eugênio Barba encontraram na palavra “performance” a
propriedade para definir esse teatro multicultural, includente (música, dança,
percussão e recursos visuais elaborados e, em muitos casos, ritualizado) (LIGIÉRO,
2011, p. 67).
O autor analisa essa perspectiva sob uma ótica próxima à das heranças africanas,
integralizando arte e vida, diversão e religiosidade:
O conceito “performance” tem sido usado também para compreender o teatro feito
pelo povo iletrado, seguindo a tradição oral alheia aos modelos greco-romanos.
Dessa forma, performance é utilizada como sinônimo de apresentação e
representação, de folguedo e brinquedo, quase sempre possuindo caráter festivo e/ou
religioso, mas em muitas destas formas preservando o seu alto grau ritualístico
(LIGIÉRO, 2011, p. 68).
É possível relacionar estes excertos com as proposições da escritora, psicóloga clínica,
docente e pesquisadora das Artes Cênicas Marina Marcondes Machado (MACHADO, 2010b),
que explicita que o performer assume seu estado de presença pessoal, agindo em seu próprio
nome, e não através de um personagem, por exemplo.
Nessa confluência, uma importante contribuição da autora – da qual me aproximei à
época de minha pesquisa monográfica, e que revisito no âmbito deste estudo – é o conceito de
criança como performer (MACHADO, 2010b). Essa perspectiva pode abrir espaço para
criações em que a criança acredita ser a personagem de teatro, em que o movimento
coreográfico é pertencente à sua lógica corporal e onde seus desenhos expressam imagens de
seus pensamentos, podendo assim assumir-se como performer. A criança não se preocupa em
decorar um texto ou uma partitura corporal; ela está mais interessada em vivenciar e expressar
verdadeiramente o que se faz registro em sua memória afetiva e corporal.
Trata-se de um acontecimento íntimo, sério e concentrado, no qual a criança também
se diverte. Ela poderá abrir espaço ao improviso cheio de performatividade, ao ampliar várias
30
formas de expressão, misturando elementos artísticos/ficcionais (suas criações) com seu
contexto de vida, sua realidade. A criança não faz de conta que joga ou brinca, ela acredita
vivenciar/ser o próprio jogo ou a própria brincadeira, a partir de seu corpo: um ciclo lúdico,
ativo, rico, instigante e desafiador.
[…] a criança é performer de sua vida cotidiana, suas ações presentificam algo
de si, dos pais, da cultura ao redor, e também algo por vir – e, se olhada nesta
chave, poderá desenvolver-se rumo à assunção de sua responsabilidade e
independência, no decorrer dos primeiros anos de sua presença no mundo
(MACHADO, 2010b, p. 123).
Além do processo de intervenção lúdica e artística com as crianças participantes da
pesquisa, interessou-me perceber as suas lógicas – se e como me permitiriam coabitar e criar
com elas a partir de seus universos. Nesse sentido, ter me aproximado do conceito de criança
como performer me ajudou a respeitar seus modos de ver, agir, estar e atuar no mundo, e a
dialogar com seus tempos, ritmos e interferências. Permitindo, assim, que vivenciassem suas
autonomias de escolhas e exercessem seus sentidos de independência em parceria comigo,
enquanto pesquisadora – também performer neste ato e entrecruzamento de universos.
Assim, o objeto de estudo desta pesquisa refere-se às performances dos corpos
brincantes de crianças em diálogo com elementos da cultura africana, a partir do universo de
orixás da nação Iorubá, na Educação Infantil. Procurei me certificar das pesquisas desenvolvidas sob essas perspectivas, e realizei
uma busca em repositórios institucionais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), da Universidade Federal do Ceará (UFC), da Universidade Federal da Bahia (UFBA),
da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e da Universidade de São Paulo
(USP). Nessa busca, utilizei os termos “corpo”, “ludicidade”, “crianças”, “educação infantil”,
“orixás” e “artes cênicas”.
Os trabalhos encontrados versam de forma mais isolada sobre essas temáticas. As
pesquisas situadas nos campos das Artes e da Educação trazem discussões principalmente sobre
a importância da ludicidade e da arte na infância e as relações entre corpo, ludicidade e dança;
as pesquisas que trazem temáticas africanas e afro-brasileiras estão situadas majoritariamente
nos campos da Educação e da Antropologia, com estudos voltados para orixás e meio ambiente,
orixás e religiosidade, crianças em contexto de Candomblé, infância afrodescendente,
contadores de histórias africanos e literatura, capoeira e Educação Infantil.
Portanto, esta pesquisa se propõe a preencher uma lacuna ao propor reunir essas
temáticas de maneira imbricada, compreendendo a via de mão dupla entre a arte e a educação
31
enquanto elementos potencializadores de transformação social e cultural. Realizar esta pesquisa
no âmbito das Artes Cênicas permite gerar uma ambiência na qual as crianças, a partir de suas
próprias experiências, possam se aproximar e/ou revisitar elementos da nossa cultura
afrodescendente; crianças que podem e devem olhar, observar, questionar, brincar e se encantar
com deusas e deuses orixás tão belas(os) e majestosas(os). Coloca-se aqui, também, indagações que convocam uma atenção e sensibilização para
refletirmos enquanto artistas, educadoras(es) e professoras(es): O brincar se constitui apenas
como passatempo, ou é estratégia metodológica na intervenção com crianças? O corpo é
território da experiência ou mera reprodução de padrões nas instituições escolares? Quais os
referenciais apresentados às crianças nas rotinas escolares? Estes referenciais dialogam com a
nossa cultura afro-brasileira? Quem são, e como elas percebem as características de
personagens apresentados nas histórias e nas brincadeiras? Como as crianças captam as
descobertas e expressam suas narrativas? Algumas crianças associam conhecimentos a
experiências anteriormente vivenciadas? Para quais crianças estamos querendo falar? Qual é a
cor da beleza? Ainda que nesta pesquisa eu busque trilhar uma trajetória mais focada nas crianças,
vale destacar os diálogos e as entrevistas com outros profissionais que atuam na instituição e
que possibilitaram gerar reflexões que enriqueceram o presente estudo – e que certamente são
estímulos para aprofundamentos na busca de subsídios a fim de construir este caminho afro-
brincante no âmbito da arte e da escola. O processo é lento e as resistências ainda são grandes; no entanto, alguns avanços
merecem destaque. Além de outros profissionais, na minha própria cidade, o artista e
pesquisador Edivaldo Batista vem produzindo alguns espetáculos cênicos que relacionam o
universo de orixás a uma proposição lúdica, a exemplo dos trabalhos O pequeno Ogum (2014),
Iroko (2015), dentre outros. Por vezes, tenho a grata surpresa de encontrar em notícias na internet ou em programas
de televisão algumas ações em escolas públicas de regiões diferentes do Brasil, por meio de
professores que procuram incorporar certas temáticas – como personalidades negras, capoeira,
dança afro-brasileira e orixás – nas suas realidades de sala de aula, mediando esses
conhecimentos com crianças e adolescentes. O projeto A Cor da Cultura e seus materiais14, bem como a publicação do livro
História e cultura africana e afro-brasileira na Educação Infantil (BRASIL, 2014), promovem
14 Para mais informações, consultar o site oficial do projeto: <http://www.acordacultura.org.br/kit>.
32
discussões e apresentam ferramentas e metodologias para a valorização da cultura afro-
brasileira a partir dos anos iniciais na educação.
Na busca de produções, alguns estudiosos e pesquisadores apresentam olhares
instigantes que são de extrema importância para uma ancoragem mais aprofundada neste
estudo. Assim, em síntese, o método de pesquisa escolhido, a fenomenologia, propõe o estudo
dos fenômenos pautados na experiência dos indivíduos. Para tanto, são valiosas as
contribuições do autor Maurice Merleau-Ponty (MERLEAU-PONTY, 1999) com o seu olhar
fenomenológico sobre o corpo e a infância, e também as contribuições da pesquisadora Marina
Marcondes Machado (MACHADO, 2010a, 2010b), entre outros.
Nos diálogos sobre corpo, ludicidade, arte e educação para crianças, retomo algumas
reflexões e alguns eixos trabalhados em minha publicação anterior (BRAGA, 2017) e recorro
aos trabalhos da autora Isabel Marques (MARQUES, 2004, 2012), entre outros. Na perspectiva de fundamentar os temas sobre africanidades, negritude, mitos
africanos, orixás e performances afro-brasileiras, destaco, dentre as contribuições mais
importantes: Kabengele Munanga (MUNANGA, 1999, 2001), Teodora Alves (ALVES, 2006),
Sandra Petit (PETIT, 2015), Clyde W. Ford (FORD, 1999), Kiusam de Oliveira (OLIVEIRA,
2008, 2009, 2010, 2019), Reginaldo Prandi (PRANDI, 2001), Zeca Ligiéro (LIGIÉRO, 2011),
entre outros(as).
Para dar maior convergência ao estudo, foi elaborado o seguinte objetivo geral:
compreender como as crianças estimuladas pelo universo das(os) orixás experienciam e
constituem as performances de seus corpos brincantes.
Para contemplar a complexidade anunciada, os objetivos específicos,
metodologicamente, contribuíram para tecer narrativas elucidativas capazes de: 1) vivenciar
processos de criação em arte com um grupo de crianças entre 5 e 6 anos, no NEI/Cap/UFRN;
2) registrar as performances dos seus corpos brincantes; e 3) desvelar o fenômeno dessas
performances, vivenciado durante a pesquisa.
1.6 DESENHO DA PESQUISA
Nessa tessitura, algumas divindades foram guiando-me especificamente no
desenvolvimento de cada capítulo. Assim sendo, organizo a presente dissertação da seguinte
maneira: nesta “Introdução – Exu: Sem ele ninguém faz nada”, este deus se apresenta como o
princípio mobilizador que abre e move caminhos, além de reger a comunicação, aqui
estabelecendo-se como o ponto de partida. Nesse sentido, apresento e caracterizo orixás como
33
ancestrais africanos divinizados e construo uma narrativa sobre minha trajetória pessoal e
profissional, explanando alguns aspectos relacionados à pesquisa, elucidando memórias e
chegando, assim, à elaboração das problematizações, ao objeto do estudo, ao objetivo geral, aos
objetivos específicos e ao desenho da pesquisa. No “Capítulo 1 – Ogum: O senhor dos caminhos”, este deus, que rege e é dono do
ferro, artesão e construtor, apresenta-se neste contexto como uma estrutura rígida e firme,
permitindo-me construir relações mais sólidas, das quais aqui explicito o tipo de pesquisa e o
método de base ao qual me ancoro. Também construo uma tessitura que inclui outros
referenciais teórico-metodológicos que fundamentam aspectos da cultura africana evidenciadas
neste estudo, bem como a caracterização de orixás como elementos de composição para uma
proposição e intervenção metodológica. Ainda neste capítulo são explicitadas as características
referentes ao percurso metodológico, à instituição na qual a pesquisa foi realizada, aos
participantes e aos métodos de intervenção e percepção da realidade.
No “Capítulo 2 – Oxum: O espelho do encantamento”, esta é a deusa do amor e da
riqueza, que com sua graça majestosa e o reflexo de seu espelho permitiu-me refletir, questionar
e revelar inicialmente algumas concepções sobre infâncias, a partir de perspectivas ocidentais
e africanas. Também aprofundo o conceito de corpo brincante enlaçando-o com a perspectiva
de corpo-poroso no fazer poético, que agrega experiências perceptíveis e múltiplas.
Posteriormente, revisitando algumas de minhas memórias e minha trajetória, questiono a
aplicabilidade de Lei nº 10.639/03, apontando algumas pistas para intervenção que destacam
fazeres artísticos e educacionais em consonância com essa lei. Finalizo o capítulo com a
proposição de contações de histórias focadas na mitologia de orixás.
No “Capítulo 3 – Brincando com os gêmeos Ibejis e outras(os) orixás”, estes meninos
relacionam-se intrinsicamente com o experienciar, o brincar, os saberes e as culturas das
diversas crianças. Juntamente com outras deusas e deuses, permitiram-se gestar e criar
perspectivas autorais e particulares a esta pesquisa. A partir destes elos, construo unidades
circulares no tocante às relações das crianças com a arte, a natureza, as divindades africanas e
alguns aspectos da negritude, destacando como alguns conceitos-chave para esta pesquisa se
entrelaçaram com essas relações produzidas. Revisito alguns autores e conceitos trabalhados
nos capítulos anteriores, procurando articular três especificidades que convergem para o
desenvolvimento da pesquisa de base fenomenológica. As instigantes experiências vivenciadas
com as(os) participantes abriram possibilidades para identificar suas narrativas, suas relações e
34
suas expressões corporais com a produção de significados em torno do universo simbólico e
cultural relacionado as(os) orixás.
Para tecer algumas considerações finais, em “Trilhas percorridas… Novos horizontes
– Oxóssi, o Caçador: Desbravando suas matas”, este deus é aquele provedor, que é rei-caçador
das grandes e belas matas, aquelas nas quais podemos estabelecer conexões e buscar por
descobertas, fazer achados e criar novas possibilidades. Neste sentido, retomo alguns aspectos
centrais do estudo realizado, pontuando a complexidade da construção de conhecimentos ao
abordar temas contemporâneos e desafiadores, sobretudo em uma conjuntura permeada de
descontinuidades e antagonismos. Assim, proponho a reinvenção de práticas democráticas que
abracem as diversidades e busquem valorizar e enaltecer as africanidades e as negritudes
presentes também em solo brasileiro.
Além das referências bibliográficas, consta também bibliografia complementar, com
outros referenciais relacionados com o presente estudo. Essas produções visam fortalecer
conhecimentos teórico-práticos afro-referenciados, abarcando tanto o universo lúdico e infantil
como o acadêmico, com transversalidades entre arte, cultura e educação.
Ainda são apresentados apêndices com a reunião do planejamento de oficinas
vivenciadas durante a pesquisa, para elucidar outros profissionais e inspirar suas práticas
artísticas e pedagógicas.
Ter desenvolvido esta pesquisa no mestrado acadêmico em Artes Cênicas expressa
meu desejo de aprofundamento profissional e pessoal, ao ampliar possibilidades e novos
horizontes em minha trajetória como artista, educadora e pesquisadora. A pesquisa me instigou
a aprofundar e a enlaçar eixos teórico-práticos, mediando intervenções que possibilitaram a
produção de conhecimento artístico e educacional com bases afro-referenciadas para a
Educação Infantil.
35
CAPÍTULO 1 – OGUM: O SENHOR DOS CAMINHOS
Ogum, menino-homem guerreiro
Ogum Que já foi menino
Sempre valente
Não levava desaforo para casa
E lutava como o bravo guerreiro que é Também ferreiro
Ao forjar sua espada
Cresceu em tamanho
Lutou em guerras E ganhou o mundo
Desbravando caminhos
Fez seus caminhos
Às vezes temido Às vezes invejado
Mas trilhou, buscou e conquistou
Ogum
Destemido Ogum Salve!
(Lia Braga, Fortaleza/CE, maio de 2019)
2.1 A FENOMENOLOGIA COMO EIXO METODOLÓGICO E OUTRAS
CORRELAÇÕES
Quando percebo, não penso o mundo,
ele organiza-se diante de mim.
(Maurice Merleau-Ponty)
O mundo, ao organizar-se diante de nós, aponta-nos possibilidades e caminhos a serem
vivenciados. São os caminhos da vida, abertos pelo orixá Ogum, porque esse deus, destemido
por natureza, não se cansa de lutar. Ele luta pelo que é seu, desbravando aventuras que o
possibilitam conhecer o mundo e experienciá-lo. Mundo este em que, às vezes, é preciso
guerrear, mas também permitir-se sentir. Sensações protegidas por esse guerreiro, que é
também ferreiro, com armadura para vencer e trilhar. A figura de Ogum como ferreiro pode ser
observada no mito Ogum cria a forja (PRANDI, 2011):
FIGURA 9– TERÇA-FEIRA É DIA DE OGUM, O
ORIXÁ DOS CAMINHOS E DA GUERRA
Fonte: Google Imagens (internet).
36
[...] O ferro era mais dura substância que ele conhecia,
Mas era maleável enquanto estava quente.
Ogum passou a modelar a massa quente.
Ogum forjou primeiro uma tenaz,
Um alicate para retirar o ferro quente do fogo.
E assim era mais fácil manejar a pasta incandescente.
Ogum então forjou uma faca e um facão.
Satisfeito, Ogum passou a produzir
Toda espécie de objetos de ferro,
Assim como passou a ensinar seu manuseio.
Veio fartura e abundância para todos […].
(PRANDI, 2011, p. 96).
As características atribuídas ao ferro, como substância mais dura e ao mesmo tempo
maleável sob temperatura quente, me faz refletir que precisamos, muitas vezes, assumir uma
postura mais firme e outras vezes, mais fluida, na vida. Esse ziguezague no ofício daquele que
cria suas próprias ferramentas ou armaduras potencializa a história de um inventor e
desbravador de seus próprios caminhos. Muitas vezes, essa figura que me remete ao orixá Ogum precisa guerrear consigo
mesma, para que, a partir de seus caminhos, possa engendrar ideias e práticas, assim como
quando buscamos construir pesquisas. Estas são tecidas nas histórias e vidas daqueles que
buscam elaborar hipóteses e questionar, com a intenção de também encontrar respostas – e,
principalmente, de criar e realizar seus próprios feitos.
Nessa perspectiva, é necessário ir em frente, em busca, sem medo, para conhecer o
mundo cheio de possibilidades. Desde criança, sempre fui estimulada a me abrir ao mundo, de
forma a percebê-lo e experienciá-lo através de minha sensibilidade artística. Assim, desde
pequena vivenciei minha realidade com imaginação e criatividade, ao criar histórias e
personagens a partir do que concretamente vivenciava, sozinha ou em coletivo.
O mundo para nós, artistas, muitas vezes funciona através de outras lógicas e com
outros tempos. Ele se apresenta cheio de cores, aromas, sabores e muitas possibilidades. Para
criarmos, muitas vezes ocorre uma inspiração já aguçada através de experiências anteriores;
outras vezes, o processo é mais lento e precisa ser digerido aos poucos.
Nesse sentido, a criação artística pode se configurar como um árduo processo
investigativo; a partir das diferenças e singularidades deste campo, procura-se abrir espaços
para diálogos e proposições artístico-acadêmicas. Pesquisar/sistematizar é, sim, desafiador; não
seriam também os modos de fazer arte?
Reflito que produzir arte não se relaciona apenas com apresentações cênicas no espaço
físico, o teatro: é também gestar possibilidades artísticas em outros ambientes. Assim sendo, os
modos de fazer arte e pesquisa constituem formas outras de refletir, questionar e intervir na
37
realidade. Esses modos são diferentes dos de outras áreas, e não menos complexos e árduos,
como apontam Braga, Baumgartel e Santos (2017): “[…] a pesquisa em Artes Cênicas acontece
de fato como uma aventura pensada e corporificada. Afinal, ela é ato criativo que pode apontar
para um caminho de descolonização de saberes” (p. 182).
Compreendo, a partir dessa reflexão, que tais pesquisas são atravessadas pelas
experiências das(os) investigadoras(es) e poderão construir-se como campos de atuação de um
saber em devir, conectadas e irmanadas ao corpo e às emoções, ou seja, ao próprio indivíduo,
abrindo espaço para os modos de ser e estar no mundo.
Modos estes que podem se articular com a fenomenologia proposta pelo filósofo
francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961). É importante mencionar que sua obra fora
influenciada pelo matemático e filósofo considerado como o “pai da fenomenologia”, Edmund
Husserl. Merleau-Ponty contribuiu principalmente entre as décadas de 1930 a 1960, como
professor, filósofo e autor de diversas obras relevantes para situar a fenomenologia e suas
especificidades como movimento filosófico e método de pesquisa.
Diante da diversidade de suas publicações e da densidade de seus conceitos, vale
destacar que, nesta dissertação, utilizei sobretudo as obras Fenomenologia da Percepção
(MERLEAU-PONTY, 1999) e Psicologia e Pedagogia da Criança (MERLEAU-PONTY,
2006), mas também trabalhei com as contribuições de outros autores comentadores das obras
do filósofo.
Como a fenomenologia visa a destacar as essências contidas nos fenômenos mediante
as experiências dos indivíduos, elas são compreendidas a partir do que os sujeitos vivenciam e
compartilham consigo e com o outro. Assim, para Merleau-Ponty, a fenomenologia “é o estudo
sistemático dessa vivência, descrição simples e tão plena quanto possível da experiência direta,
do que é e não é a coisa” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 435). Nesse sentido, é possível mergulhar em si mesmo, um mergulho por vezes incerto
sobre o que se pode encontrar ou sentir; porém, é intenso no processo de adentrar e sair das
águas. A experiência inunda o ser humano e faz emergir a sua essência, que está contida no
próprio ato de experienciar, revelando, assim, o fenômeno: “As essências de Husserl devem
trazer consigo todas as relações vivas da experiência, assim como a rede traz do fundo do mar
os peixes e as algas palpitantes […]” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 12).
Assim sendo, esse método busca a essência na própria existência humana e não fora
dela, pois “[…] as essências são meios e não o dado primeiro ou último da filosofia. Elas devem
servir a uma finalidade. São uma expressão segunda da experiência. São idealizações que
nascem da experiência” (PAVIANI, 1998, p. 14).
38
A aproximação com esse método de investigação se deu a partir de minhas
experiências e afinidades com essa proposição, bem como ao longo dos diálogos e das
recomendações de minha orientadora, a Profa. Dra. Teodora de Araújo Alves, bem como pela
sugestão da Profa. Dra. Karenine de Oliveira Porpino, membro da minha banca examinadora.
Esta apropriação metodológica instigou o desenvolvimento desta pesquisa com crianças na
etapa da Educação Infantil.
É preciso que reencontremos a origem do objeto no próprio coração de nossa
experiência, que descrevamos a aparição do ser e compreendamos como
paradoxalmente há, para nós, o em si (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 109-110).
As contribuições de Merleau-Ponty são inspiradoras e me aguçam enquanto
pesquisadora. Pode-se perceber que esse método permite vivenciar a pesquisa e assumir uma
atitude fenomenológica, no sentido de perceber como ela nos atravessa enquanto experiência.
Ao nos dispormos, através de um corpo uno com a mente, o espírito e a natureza,
experienciamos o mundo vivido, um mundo que está intimamente ligado com o sujeito
enquanto ser vivente, que vive, experiencia, descobre, desbrava. O mundo acontece fora e
dentro ao mesmo tempo, porque o sujeito une-se ao mundo como se houvesse um
entrelaçamento entre ambos (MERLEAU-PONTY, 1999).
Para Merleau-Ponty, as essências dos fenômenos já se apresentam na realidade, pois o
mundo já está “ali”, e é em nós mesmos que encontramos essa unidade fenomenológica. Há
também uma imbricação do sujeito com o mundo a partir do seu próprio corpo, onde as nossas
experiências são encarnadas. O filósofo reflete a ideia não apenas de um mundo vivido, mas
também de um sujeito e um corpo vivido, sujeito este que, a partir de suas experiências, vive
compartilhando diversos modos de ser e estar neste mundo. Esse corpo não é dividido entre
mente, alma e natureza; ele é um corpo-ser-mundo vivente e integral (MERLEAU-PONTY,
1999).
Considero importante explicitar que, mesmo que o filósofo venha de um contexto
europeu e tenha sido um homem branco, cruzamentos entre suas proposições e algumas
perspectivas afro-referenciadas me interessam nesta pesquisa.
A primeira delas é destacada por Paviani (1998): “O pensamento de Merleau-Ponty
situa-se entre os que investem toda a sua reflexão filosófica na tentativa de superar o
conhecimento dualista entre o sensível e o inteligível, típico do modo de pensar ocidental”
(PAVIANI, 1998, p. 9).
39
Enquanto o pensamento de Merleau-Ponty apresenta uma tentativa de superação do
dualismo, esta própria dualidade, para algumas cosmovisões africanas, é inexistente, pois o
corpo é o lugar próprio da experiência – um lugar integrador do saber, do sentir, do ser em
comunhão com o todo. Esclareço que alguns autores utilizam o conceito de cosmovisão africana
no singular, mas eu me refiro às “cosmovisões”, pois existem formas distintas de conceber e
perceber o mundo em se tratando de um território enorme e plural como o continente africano.
Nesse sentido, essa discussão me aproxima das contribuições da Profa. Sandra Petit
(PETIT, 2015), que considera a pretagogia como um referencial teórico-metodológico,
desenvolvido em diálogo com outros pesquisadores. A pretagogia aborda “[…] uma Pedagogia
que potencialize os aprendizados da nossa ancestralidade africana [e das cosmovisões], que se
alimenta dos saberes, conceitos e conhecimentos de matriz africana” (PETIT, 2015, p. 120).
A autora traz fortemente o sentido do corpo arraigado à dança como importante
maneira de expressão e conexão ancestral: “Dançar, na perspectiva afro-ancestral aqui tratada,
remete a uma visão circular do mundo, na qual início e fim se encontram, em eterna renovação
[…]” (PETIT, 2015, p. 72). Apresenta-se, portanto, uma dinâmica circular de retroalimentação,
e não de apartação; não há espaço para dicotomias, pois as separações podem promover um
estanque, uma parada que tenciona e priva o fluir da própria experiência, dado que, no círculo
da vida, as coisas, as energias e as pessoas necessitam se mover.
Também é perceptível nas contribuições de Merleau-Ponty a centralidade do corpo
como expressão da própria experiência: assim, é um corpo que, ao mesmo tempo, une
conhecimento e emoção, interior e exterior. Um corpo que intensifica as percepções de mundo,
a exemplo dos corpos vivenciados nos terreiros ou das danças de matriz afro-brasileira, que
expressam diversos territórios pessoais, sociais e culturais, e representam identidades ancoradas
em memórias:
A dança é também o que nos faz transcender a dor, a angústia, a injustiça, a
humilhação, a tentativa de redução e de aniquilamento, lembrando-nos de quem
somos, gerando a força espiritual que engrandece, potencializa e sacraliza. Para as
negras e negros desterrados brutalmente da África para as Américas e cujos algozes
procuraram por todos os meios destituir de humanidade, a dança foi um elo
indispensável à sobrevivência física e espiritual. Assim, para nós, descendentes
desses povos, a dança significa mais do que filosofia e cosmovisão, significa existir
(PETIT, 2015, p. 74).
Nesse sentido, a dança experienciada no corpo revela força e potencializa os sentidos
e o próprio conhecimento adquirido na vivência, que perpassa as vias do racional e do
emocional. Esse corpo dançante é marcado por experiências negativas e positivas; ele narra as
40
histórias desses povos sangrados em suas existências, as memórias de outrora que ainda expõem
feridas abertas nos dias de hoje.
Após essas breves interseções, retomo princípios da fenomenologia, visto que neste
método há três especificidades fundamentais para o desenvolvimento da pesquisa: a descrição,
a redução e a compreensão fenomenológica.
Na descrição, é importante que a consciência da(o) pesquisadora(or) esteja desperta, a
fim de que seja fiel ao ocorrido e vivenciado durante a pesquisa, sem buscar alterar fatos ou
interpretá-los previamente, pois
[…] a descrição não é uma operação simples. Requer postura específica perante o
fenômeno, e treinamento. Precisa de procedimentos técnicos capazes de, ao mesmo
tempo, distingui-la e articulá-la com outros meios próprios da análise, da
interpretação ou de qualquer outra operação intelectual. Deve evitar tanto o
dogmatismo do senso comum como da ciência objetivista. Descrever é um ver e um
perceber que não pertence à ordem dos juízos e do que já foi deliberado sobre o
mundo e o objeto […]. Necessita-se de uma pedagogia que nos ensine a descrever
os fenômenos assim como se manifestam e somente como os vemos e, de fato, são
(PAVIANI, 1998, p. 19).
Após a descrição dos fatos vividos e experienciados, a redução é a busca pelo cerne,
pela essência do que se está pesquisando; ou seja, é a busca para destacar o que for intimamente
ligado ao objeto e aos objetivos da pesquisa, percebendo o que de fato a expressa.
A atividade descritiva nos leva naturalmente ao problema da redução
fenomenológica despojada de todo idealismo transcendental. O vivido exige um
novo modo de entender o processo da redução, processo no qual a descrição tem
anterioridade, pois a análise reflexiva ignora problemas como o do Outro e do
Mundo. O Outro e eu somos um só no mundo e no conhecimento anterior à reflexão.
A relação paradoxal entre o eu e o Outro que o estudo da percepção e do corpo
mostra em plenitude precisa ser resolvida sem reduzir minha existência ou a do
Outro à consciência de que tenho de existir (PAVIANI, 1998, p. 19).
Há, portanto, um pleno exercício de respeito e também uma certa liberdade nas
convivências entre o outro e o eu, pois, nas experienciações, incorpora-se um mesmo mundo
vivido, expressando o fenômeno em profusão. Nesse sentido, para alcançar uma compreensão, é necessário que a(o)
pesquisadora(or) tente estabelecer diálogos no intuito de perceber e enxergar a experiência do
outro sem excluir a sua, destacando as subjetividades de ambos. Portanto, quem se propõe a
pesquisar é afetada(o), atravessada(o) pela experiência do outro, na qual presentifica seu estado
no mundo, compreendendo o do outro:
[…] nem de reduzir suas experiências às minhas, nem de coincidir com ele, nem de
ater-me ao meu ponto de vista, mas de explicitar minha experiência e sua experiência
41
tal como ela se indica na minha […]. Trata-se de compreender uma pela outra
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 453).
Ao corroborar esse pensamento, no contato com as crianças, dispus-me a vivenciar
com elas o processo da pesquisa, e fiquei atenta aos fenômenos evidenciados durante esse
contato, a partir de nossas experiências compartilhadas. Enquanto educadora, procuro perceber
o que as crianças querem falar e mostrar. Quais os seus modos de brincar e jogar? Quais os seus
modos de experienciar com o corpo? O que querem expressar? Merleau-Ponty (2006), com seu olhar fenomenológico para a infância, apresenta
percepções instigantes sobre as crianças, como a compreensão de que o pensamento e as formas
de se relacionarem não constituem, para elas, uma representação. Elas não representam, elas
vivem determinados sentimentos, brincadeiras ou situações, e, vivendo, podem nos afetar e
proporcionar a nós, adultos, aberturas para a compreensão dos seus modos de ser, estar e intervir
na realidade.
Nesse seguimento, na ambiência da pesquisa, procurei me distanciar de uma visão
adultocêntrica em relação às crianças, invertendo possíveis lógicas impostas histórica, social e
culturalmente. Exercitei a escuta de suas narrativas, seus dizeres e suas expressões, com
abertura e adaptação, no intuito de observar, agregar elementos às suas realidades e também
estar atenta às suas criações.
Visando a assumir uma atitude fenomenológica como pesquisadora, busquei aguçar o
olhar e o corpo e fiquei aberta, atenta, porosa, para observar, perceber, propor e proporcionar
visibilidades às suas experiências. Pude relacionar-me e afetar-me com os modos de ser, estar,
habitar, sentir, pensar, criar, brincar, jogar, teatralizar, dançar e contar histórias com essas
crianças, que tiveram participação ativa e, também, o papel de coautoras nesta pesquisa.
Além disso, é importante destacar que
[…] não existe, entretanto, uma metodologia fenomenológica previamente
elaborada, com regras, procedimentos e técnicas de pesquisa. Desde que se possam
mostrar as possibilidades epistemológicas da fenomenologia também é possível
elaborar uma metodologia para cada caso (PAVIANI, 1998, p. 27-28).
Portanto, a fenomenologia se apresenta como um caminho de características
específicas, porém aberto à singularidade desta pesquisa. É como um labirinto circular, onde
idas e voltas precisam ser realizadas na busca da fecunda experiência que abraça horizontes
afro-brincantes. Assim, intento experienciar e desvendar procedimentos lúdicos fundamentados
na metodologia do ensino em arte e da pesquisa em Artes Cênicas, em articulação com modos
de refletir e produzir afro-referenciados.
42
2.2 ANCORAGENS ARTÍSTICAS E METODOLOGIAS LÚDICAS
Nesta construção, no ato de escrever, no modo de pensar e formular minha pesquisa,
também inscrevo quem eu sou. Colocar-me no papel para quem sabe atravessar outros mundos
(pessoas, lugares) é para mim um ato poético de resistência da minha arte, rumo à descoberta
de saberes e criações oriundas dela. Na roda da vida, com seus ciclos e giros que me permitem
habitar o mundo, sinto um desejo de querer ser capaz de desvendar-me enquanto artista-
educadora-pesquisadora e, ao mesmo tempo, atualizar-me a cada nova pesquisa, indo na direção
dessas novas descobertas.
Compreendo a arte como campo de atuação abrangente e diverso, ao desarticular
lógicas formais. A inserção em espaços subjetivos, micro e macro, possibilita à(ao)
pesquisadora(or) construir diversas maneiras de atuação, com formas próprias e inovadoras de
intervenção? Ou seria uma desconstrução no sentido das lógicas formais?
A capacidade de errar, nas determinações acadêmicas, é vista como fracasso, pois não
se pretende correr riscos. Nas artes, essa mesma capacidade de errar pode ser um trampolim
interessante para novas descobertas ou adaptações outras. Mas o que é errar ou acertar? Seria o
erro uma forma de acerto ao contrário?
Nesse sentido, sinto que a cada dia eu erro um pouco para buscar acertar. Desaprendo
sobre mim mesma e sobre o meu modo de fazer artístico, na tentativa de respirar um pouco em
meio a tanta palavra e a tanta construção palavreada ou contada. Duvido de mim mesma, não
no sentido de duvidar de minha capacidade; duvido de mim porque, ao duvidar, coloco-me em
risco e rumo ao desconhecido.
Assim, vou buscando descobrir outras formas de dançar palavras ou contar/cantar
histórias, de jogar e brincar com o corpo, que é também fala, história e memória. Um corpo que
abre espaço ao me desafiar a lembrar do texto e a equilibrar-me enquanto realizo um giro no
meu próprio eixo, ao contar, cantar e dançar histórias de orixás.
Ao mesmo tempo, ao brincar com essas memórias corporais, eu me desprendo de mim
mesma, e a arte que pulsa em mim me lança ao desarticulado, desorientado, desconectado. Fios
invisíveis e rarefeitos, fios de investigação, fios que não me prendem e sim me jogam, me
lançam – e eu desato a girar, sem parar, como a pesquisa é para mim: um ciclo vivo.
Nesta ambiência, o ato de escrever sobre processos artísticos me desafia a incorporar
as palavras; uma construção que, além de investigativa, é criativa. Ao escrever, mesmo que
tomada pela escrita ou pelo pensamento de outra(o) autora(or), crio e recrio minha própria
43
forma de conexão com a temática em curso. Neste percurso, são estabelecidos diálogos e
questionamentos, diferentemente de uma exposição de verdades absolutas.
Será então o diálogo com o outro um modo operacional de organizar ideias? E a fala
do outro e a minha, em forma de escrita, poderão se tornar palavra encarnada no papel? Em
alguns momentos, fiquei imaginando se os diálogos realizados com as(os) profissionais da
instituição e com as crianças participantes desta pesquisa poderiam ser reestruturados como
contações de histórias, ou se poderiam vir a ter um tom que se aproximasse dessa estética.
Não sei se assim posso subverter a realidade; mas, de alguma maneira, creio que esta
– digamos – inspiração possa se relacionar com o que Cássia Navas nos aponta:
Dentre essas estratégias, há principalmente aquelas do campo das artes, em que a
busca por metodologias próprias e singulares, em diálogo com metodologias e formas
de trabalho mais generalizadas, deve ser uma constância (NAVAS, 2015, p. 570).
Criando assim, nesse contexto, palavras e falas “[…] sussurradas como cochichos ao
ouvido dos leitores” (NAVAS, 2015, p. 273). Poderei eu cochichar histórias ao pé do ouvido
de meus leitores?
Nesta confluência, ao dialogar com Pimentel (2015), que toma como base a referência
de Rey (1996), a pesquisa em arte adéqua-se ao presente estudo, pois nesta modalidade de
pesquisa a(o) própria(o) pesquisadora(or) atua no desenvolvimento de uma ação: seu objeto de
pesquisa. Assim, a experiência é importante para o processo artístico, e a(o) pesquisadora(or)
não apenas atua, mas também se deixa afetar, envolve-se com o todo, é despertada(o) nos
detalhes, no devir, no efêmero que muitas vezes a arte em si pode provocar. Isso porque
[…] em Arte, a completude se dá na imersão que acontece na atividade artística, quer
seja como elaborador ou como fruidor, uma vez que a experiência em arte acontece
na criação artística e na fruição da produção artística. O sujeito envolve-se ativa e
criativamente, de forma a integralizar a obra de arte […]. Pode-se conceituar
experiência em arte como sendo a sedimentação corpórea da interação sujeito-
ambiência que impulsiona novas ações sensório-perceptivas-reflexivas-cognitivas-
estéticas (PIMENTEL, 2015, p. 92-93).
A fruição dos processos na pesquisa em arte revela que ela desafia constantemente
quem se propõe a vivenciá-la e pesquisá-la. Em se tratando de pistas ou materiais que serão
percorridos e desvendados, o principal não é as estatísticas e os números, mas, sim, as emoções
e sensações, ainda que fundamentadas em métodos de pesquisa. O encontro com o outro – as(os) participantes da pesquisa, ou público –, mesmo que
previamente estabelecido, imaginado ou desenhado, é aberto ao imprevisível, ao novo.
44
Portanto, não há respostas prontas ou definitivas, e, sim, caminhos questionadores em que a
criação fala por si só, como menciona Braga (2006):
Nesse sentido, posso construir um pensamento inverso, isto é, não estudo para,
necessariamente, organizar dados do fenômeno criativo, verificar fundamentos do
próprio processo criador, qualificar alguns argumentos e contestar outros, descrever,
registrar ou avaliar os percursos das várias composições. Estes procedimentos
surgirão, inevitavelmente, numa proposta de sistematização do trabalho criador, com
parâmetros em certa pesquisa científica metódica, mas, o princípio, a motivação de
meu estudo do processo de criação é a criação em si mesma (BRAGA, 2006, p. 79).
A partir desta breve apresentação sobre a pesquisa em arte, vale destacar que este
estudo é de natureza qualitativa e pode ser compreendido através das reflexões de Florentino
(2012): “A pesquisa qualitativa abre um espaço nos diferentes modos de análise dos problemas
relativos ao campo das Artes Cênicas numa perspectiva social e cultural e pela adoção de
diversos procedimentos, como a análise de conteúdo e a análise do discurso” (p. 122-123).
A proposição desta pesquisa prioriza conhecimentos, saberes e fazeres das Artes
Cênicas. Nesse âmbito, a relação entre corpo, brincadeira e jogo se configura como espaço de
sensibilização, descoberta, conhecimento, prazer e criação artística.
Rememoro que, ao vivenciar experiências instigantes no ensino de arte,
principalmente com crianças em etapa de Educação Infantil, percebi nas aulas de dança e teatro
e em minha pesquisa monográfica que essas crianças mergulhavam de forma crítica e criativa
no processo – brincando, jogando, teatralizando e dançando. As metodologias lúdicas utilizadas
na proposta oportunizavam que elas se expressassem integralmente. Evidencio esse ponto em
minha publicação anterior:
Com o desenvolvimento do jogo15 e próximo à finalização da oficina, surgiu minha interação com eles, quando brinquei ao ser Lobo Mau e eles Chapeuzinhos. Assim, também pude oportunizar que todos fossem Chapeuzinhos já que demonstraram durante o jogo, quererem ser este personagem. Jardim16 expressou querer ser Lobo Mau junto a mim e, de forma bastante divertida, tentávamos pegar os demais. Também houve o surgimento do elemento Caçador, uma proposição de Raio, que salvaria os demais Chapeuzinhos pegos pelo Lobo Mau. Assim, pude criar e recriar, junto a eles, o jogo e suas regras (BRAGA, 2017, p. 144).
15 Trata-se do jogo Lobo Mau Velhinho e a rápida Chapeuzinho, surgido no contexto de minha pesquisa de
monografia, que culminou na publicação intitulada Onde o Corpo é Jogo: Uma Mediação Lúdica na Educação
Infantil (BRAGA, 2017). Nesse jogo, há um grupo de Lobos Maus Velhinhos e um jogador que não pertence a
esse grupo, que é um Chapeuzinho. O grupo anda lentamente até conseguir pegar o jogador que foge, utilizando
o ritmo e as estratégias que quiser.
16 Jardim, assim como Raio, refere-se a um nome fictício que utilizei para caracterizar e identificar as crianças participantes da pesquisa.
45
Ao refletir sobre os conceitos de jogo e brincadeira, considero, em geral, que o jogo
é mais associado a uma proposição lúdica, com regras definidas, no qual os oponentes têm
um mesmo objetivo, culminando em uma disputa dentro desse contexto (BRAGA, 2017). Já
a brincadeira possui um caráter mais livre:
A brincadeira como atividade social é atrelada, portanto, a uma perspectiva da criança
como sujeito ativo e criador, uma vez que proporciona contato com o outro, em que a
realidade se apresenta como mola propulsora para ressignificação de sentidos,
conceitos e atribuições, que é realizada no ato de brincar. Assim, denota-se, além dos
possíveis sentimentos de prazer, uma ação consciente que busca não um objetivo
específico ou um fim concreto, e sim a brincadeira pode revelar-se como um devir de
diversas possibilidades dialogadas entre os que se dispuseram a esta ação e, ainda,
apresentar novas e inesperadas situações. Em sua particularidade, o jogo assemelha-
se a uma cadeia constituinte de características próprias que também transporta a
criança para dimensões além-realidade propiciando vivências múltiplas (BRAGA,
2017, p. 54-55).
Nessa direção, a prática educativa denominada “ludopedagogia” – a que se refere o
doutor em Educação e Psicologia, mestre e pesquisador em Artes Cênicas, Ricardo Japiassu
(JAPIASSU, 2014) – caracteriza-se como um
[…] campo de pesquisa e estudo da dimensão educativa das práticas lúdicas em geral,
e das intervenções pedagógicas que fazem uso de variadas modalidades de jogos no
âmbito das ações culturais particularmente da escolarização” (JAPIASSU, 2014, p.
19).
O autor ainda nos aponta que “brincar é a principal ocupação do sujeito na infância: a
oportunidade para a imaginação criadora pôr em movimento a experimentação de modos de
ser, sentir e pensar culturalmente valorizados” (JAPIASSU, 2014, p. 28). Portanto, a ludicidade, manifestada a partir de ações e expressões das crianças, é
própria das culturas infantis, seja no jogar ou no brincar, envolvendo a imaginação e a criação.
Representa um locus e um espaço no qual elas experienciam seus modos de perceber, sentir e
estar/ser no mundo. Mundo este que abarca aberturas para a interação e a ação. Ação que
compreende estados de presença manifestados por corpos lúdicos. Para aprofundar esta e outras reflexões, cabe dialogar com a escritora e professora de
dança Isabel Marques (MARQUES, 2012). Ela explicita que a experienciação de ações lúdicas
ocorre de maneira imbricada com o corpo:
Não há quem não pense, não sinta e não se lembre do corpo quando o assunto é
brincar. O corpo está presente em praticamente todas as manifestações lúdicas do
ser humano […]. As brincadeiras não existiriam se não existissem corpos que
brincam: que brincam de esconder, de pegar, de correr, de agarrar. As brincadeiras
não podem prescindir dos corpos que jogam e brincam. Brincadeiras estão
intrinsicamente relacionadas a como sentimos, percebemos, conhecemos,
entendemos e dialogamos com nossos corpos, com os corpos dos outros e com os
46
espaços físico e virtual em que vivemos […]. Nessa abordagem, nossos corpos não
são meios, canais ou instrumentos, mas sim protagonistas das brincadeiras e das
danças. Aquilo que sabemos, conhecemos, sentimos, entendemos, construímos em
nossos corpos nos leva a estabelecer, ou não, múltiplas relações com os tempos e
espaços em nossa sociedade. Nossos corpos que brincam e dançam são importantes
em si (MARQUES, 2012, p. 32-33).
Essas considerações se articulam com as perspectivas apontadas por Merleau-Ponty,
no que se refere à centralidade de um corpo que é revelador de suas próprias experiências.
Corpo este que pulsa o mundo em si mesmo e que se constrói junto deste. Seria, então, um
corpo que performa a sua própria existência, um corpo que é sem simulações ou artifícios.
Assim sendo, também estabeleço relações com as proposições da autora Marina
Marcondes Machado (MACHADO, 2010a), quando expõe:
[…] isso nos leva à “desconstrução” de um teatro em que é preciso ter palco e plateia,
em que se ensaia e se decora falas, e a linguagem dessa “desconstrução” (desmanche
de algo criado pelo próprio adulto) encontra-se na vida infantil tal como ela se
apresenta: há grande potencial criador e dramatúrgico no brincar de faz de conta
(MACHADO, 2010a, p. 101).
Nessa confluência, Japiassu (2010, 2014) explicita manifestações que se relacionam
com a dramatização teatral; por exemplo, nos jogos, as crianças podem experimentar ser
personagens, no uso do corpo e da voz, apropriando-se da perspectiva ludopedagógica, como
na brincadeira “Gato e Rato”17.
A partir de minhas experiências em contextos educacionais e de minha pesquisa
monográfica, defendo que crianças possam experienciar e manifestar suas criatividades e
inventividades através de aulas de arte. Também defendo a apropriação e a sistematização de
uma metodologia que revele a ludicidade e a corporeidade como potencializadoras do saber e
do fazer artístico das expressões das crianças. Assim, o jogar e o brincar com o corpo não são
sinônimos de mera distração, ou alguma forma de “passar o tempo”.
Reconhecendo o caráter livre do brincar, é possível agregá-lo a conhecimentos e
propostas que percebam as crianças como protagonistas de suas realidades. Crianças que
observam, sentem, silenciam, recebem e, também, refletem, questionam, opinam, concebem e
criam:
Para que um professor introduza jogos no dia-a-dia de sua classe ou planeje atividades
que contenham características de jogo, é necessário algo mais do que apenas conhecer
essas características. O professor precisa, em primeiro lugar, reconhecer nas
brincadeiras e jogos um espaço de investigação e construção de conhecimentos sobre
17 Nesta brincadeira de “pega-pega”, as crianças podem se assumir como gatos ou ratos; a primeira personagem (gato) deve pegar a segunda (rato), que foge.
47
diferentes aspectos do meio social e cultural em que as crianças vivem. É necessário
também que ele veja a criança como sujeito ativo e criador no seu processo de
construção de conhecimento, e planeje para sua classe atividades a partir de conteúdos
significativos para as crianças. Isto quer dizer que é preciso que ele coloque as
crianças em situações de aprendizagem de aspectos da realidade que elas estão
buscando conhecer (BRASIL, 1995, p. 115).
Ainda que possa parecer repetitivo questionar e refletir sobre a relevância da
ludicidade como algo inerente às crianças e atrelada aos seus espaços de convivência e
sociabilidade, Marques (2012) reitera:
Em pleno século XXI, o ideal seria não ser mais necessário discutir a importância do
brincar na Educação Infantil: a ludicidade, sabemos, deve ser um denominador
comum às atividades de sala de aula. A situação educacional lúdica está relacionada
à criação e à transformação, […] e isso é imprescindível para produção de sentidos
(MARQUES, 2012, p. 29).
Sentidos que possam emergir a partir de propostas sensíveis às culturas produzidas
pelas crianças, e que considerem, por exemplo, o corpo imbrincado à experiência lúdica
refletida por Marques (2012), a “desconstrução” de um teatro, explicitada por Machado
(2010a), e a dramatização teatral expressa por Japiassu (2010, 2014). São propostas que podem
ou não se utilizar de objetos ou outros recursos físicos; são perspectivas que evidenciam os
saberes, dizeres e fazeres das crianças a partir de suas experienciações, dos seus corpos/mundos
vividos.
2.3 METODOLOGIAS AFRO-BRINCANTES E SEUS DESDOBRAMENTOS
Na mediação lúdica proposta nesta pesquisa, o corpo é a mola propulsora das
descobertas das crianças, a partir da centralidade nas performances de seus corpos brincantes,
estimuladas por elementos da cultura africana. Nesse sentido, segundo Brandão (2006), a
corporeidade é compreendida através de uma perspectiva afro-referenciada, quando o corpo
integra valores e ações vinculados social e culturalmente:
A corporeidade como um valor nos remete ao respeito ao corpo inteiro, corpo presente
em ação, em diálogo e interação com outros corpos. Descarta a dimensão racional
como imperativa, em detrimento da dimensão corporal [...] o corpo atua, registra nele
próprio a memória de vários modos, cantando, dançando, brincando, desenhando,
escrevendo, falando. Das músicas às danças. O que elas expressam, anunciam,
denunciam. Os corpos dançantes revelam histórias, memórias coletivas [...]
(BRANDÃO, 2006, p. 61-62).
48
Cabe dialogar também com Reis (2010), que evidencia:
Falar de corporeidade na Educação Infantil é falar de um corpo percebido em sua
totalidade, ideia diferente daquela propagada entre os séculos XVII e XIX, quando o
corpo era visto como algo separado da mente. Falar de corporeidade é falar da
existência simultânea entre corpo e mente; de um corpo que se movimenta, que
expressa vivências cotidianas, sentimentos, culturas. Uma cultura não cristalizada,
mas que se modifica no tempo e no espaço por nós vividos. A criança, no universo
infantil, na relação consigo e com os outros, cria, recria, aprende e transforma. Mas,
para que isto ocorra, é preciso que ela receba estímulos e seja instigada a participar de
jogos, brincadeiras, experiências e criações individuais e coletivas, aprendendo
através do movimento que o seu corpo pode proporcionar [...] questiono se a Educação
Infantil tem possibilitado à criança vivenciar atividades ligadas ao desenvolvimento
de sua corporeidade, ou se tenta manter um corpo disciplinado e obediente. Será que
a escola, na sua prática com a Educação Infantil, trabalha com a corporeidade
articulada à educação e as relações étnico-raciais? É possível fazer essa relação,
considerando a implementação da Lei nº 10.639/03? Como? (REIS, 2010, p. 23).
A partir destas problematizações e de algumas experiências pessoais, reflito que a
maioria das escolas não oportuniza o desenvolvimento de práticas pedagógicas e metodológicas
dentro das rotinas em sala de aula – práticas que priorizem a experienciação do corpo articuladas
às relações étnico-raciais.
Esse é um reflexo histórico, social e cultural que prioriza o saber racional, evidencia a
desvalorização de culturas como as africanas e afro-brasileiras, dentre outras (que justamente
tecem saberes integrados ao corpo), e ainda se utilizam de racismo e preconceito como
estratégia e manutenção de poder:
Brincar com a linguagem corporal possibilita, ainda, o conhecimento e a vivência de
outras manifestações culturais [...] Sabemos que, ao longo da história do Brasil, as
manifestações culturais afro- brasileiras foram marginalizadas, sofrendo, inclusive,
perseguições por não fazerem parte do universo cultural europeu e, também, por serem
produzidos por negros escravizados e seus descendentes. A partir do século XX, elas
começaram, aos poucos, a fazer parte das celebrações culturais da sociedade
brasileira. No entanto, o racismo e a discriminação racial presentes em nossa
sociedade impedem que estas expressões culturais de origem africana cheguem
efetivamente à escola, como em outros ambientes educacionais. Nesse sentido, a Lei
nº 10.639/03 estabelece que a cultura afro-brasileira faça parte das atividades
cotidianas da escola, não aparecendo apenas em datas comemorativas, como 20 de
novembro, por exemplo (REIS, 2010, p. 26).
Na realidade, existem materiais bibliográficos para pesquisa, além de vários livros
infanto-juvenis, bonecos e outros materiais, que possibilitam que as instituições escolares e
as(os) professoras(es) oportunizem às crianças espaços construtores para a articulação destas
temáticas. Apesar disso, a maioria das escolas e seus profissionais não se apropria de tais
materiais para introduzi-los em seus conteúdos e práticas pedagógicas.
49
Esta pesquisa pretende se somar a outras investigações aqui explicitadas, além de
instigar a imaginação, a criatividade e o desejo de outras(os) profissionais na construção de
propostas que protagonizem temas tão renegados e invisibilizados em nossa sociedade.
Como na vida não caminhamos sozinhos, foi de suma importância para a efetivação
desta proposta o acolhimento e a abertura da instituição NEI/Cap/UFRN (na qual a pesquisa foi
desenvolvida), bem como das professoras responsáveis pela turma participante. Nesse sentido,
essa instituição e as profissionais envolvidas são exceção diante de tantos entraves que
observamos em nossa sociedade.
Explicito que tanto as características da instituição como das(os) participantes da
pesquisa, dentre outras perspectivas, ainda serão detalhadas no próximo tópico deste capítulo.
Porém, é oportuno destacar aqui alguns trechos das entrevistas cedidas por alguns destes
profissionais durante a pesquisa. Elas evidenciam a abertura, a problematização e as ações
dentro do cotidiano escolar referentes às questões de corporeidade e de relações étnico-raciais
nessa instituição.
Primeiramente, em entrevista cedida no dia 6 de junho de 2019, quando questionei à
Coordenadora Pedagógica da Educação Infantil se a instituição propõe que os professores
desenvolvam atividades corporais com as turmas, ela afirma:
Sim [...] Na Educação Infantil [...] há os momentos... digamos de educação física são
realizados pelos professores. Então assim, é garantido, o trabalho com o movimento
e a própria questão da música, a gente entende muito essa música ligado ao
movimento também [...]entendendo que essa criança ela está sempre em movimento,
esse corpo fala muito… entendendo que o corpo é uma forma de linguagem, também,
então assim, agora na festa junina, eles têm essa [...] oportunidade de criar os seus
movimentos, você não vai vê movimentos aqui criados por professor e repetidos [...]
quando elas entram a questão das artes, das linguagens artísticas [...] de construir, de
experimentar, de criar, de apreciar... entender que há uma construção [...]
Percebe-se, portanto, que o corpo na Educação Infantil, nessa instituição, é concebido
e articulado a outras linguagens, como a Educação Física e a Música, além de ser fonte de
experienciação e criatividade, negando e distanciando-se de concepções que tolhem tal corpo –
que privam ou que compreendem esse corpo como mera reprodução de padrões e
comportamentos.
Quando questionei a profissional sobre se a instituição propõe que os professores
desenvolvam atividades com a temática étnico-racial com as turmas, a mesma destaca:
Sim, propõe sim! E isso... agora, não propõe de um modo isolado [...] se o tema de
pesquisa, contemplar... se as questões das crianças ou se o tema de pesquisa levar pra
caminhos, que trazem essas questões étnico-raciais, vão ser trabalhadas sim [...] como
outras questões também, né, do meio ambiente, por exemplo [palavra inaudível],
50
desde que o tema de pesquisa possibilite isso ou, se houver uma demanda na sala por
causa de um determinado aspecto, que esteja é, despertando no grupo esse interesse
ou que a professora veja que ali tá precisando de intervenção nesse interesse, há esse
trabalho [...] é tudo dentro de um contexto [...] a não ser no caso de uma pesquisa
como a sua, mas ainda assim, foi numa turma, que a professora já tinha desenvolvido
esse trabalho, né [...].
Indaguei se ela se recordava de outro trabalho – além do que a professora tinha
desenvolvido – que abordasse algum aspecto da cultura africana.
Sim! Eu não tenho propriedade pra falar porque eu tô na coordenação esse ano... então
eu falo do lugar de professora... já tivemos sim várias turmas, é... teve uma turma [...]
acho que foi ano passado... que ela [a professora responsável pela turma] trabalhou
inclusive muito com as questões de, de cabelo, dos... eu não sei os nomes... dos panos,
tinha uma bonequinha aqui, inclusive que foi desse trabalho [...] uma, aaaaa...
[interrompi falando “abayomi”]... abayoni, exato! Então assim, havendo o contexto é
trabalhado… e foi trabalhado [...].
Ainda sobre questões envolvendo as relações étnico-raciais e o interesse das crianças
por temáticas dessa natureza, a Professora Substituta da turma participante da pesquisa, em
entrevista inicial cedida no dia 23 de maio de 2019, salienta:
Olha, todos os dias a gente se depara com essa, essa temática. Nós temos crianças, com,
com traços afro muito, muito claros. Então, a gente incentiva o desenho, que elas desenhem
com, com pessoas de cores, cabelos e, formas de se vestir diferentes. Nós temos livros que
propiciam, a escolha dos livros da ciranda, nós temos alguns livros de matriz afro, que
conta a história da chegada desses povos, quando vamos a biblioteca procuramos livros
com a mesma temática e a todo tempo sempre abordando que somos diferentes e somos
ao mesmo tempo muito iguais, porque temos uma mesma matriz. Então, isso é muito
importante para que eles percebam [... ] como essas pessoas e [...] se, se percebam como
diferentes e ao mesmo tempo como iguais, gente dessa sociedade, que foi constituída assim
[...] A partir da metodologia da escola, de tema de pesquisa, essa turma, específico, fez
estudo de um tema de pesquisa sobre o Egito. Eles conhecem, sabem a localização do
Egito, que tá dentro da África, e sabem essa diversidade de povos que existem. Então, é
uma temática bem recorrente. Algumas vezes eles trazem isso. Nos livros que leem, eles
dizem algumas coisas que originaram da África, como a capoeira, muitas crianças
identificam a capoeira como sendo uma dança original e é um dos livros da nossa ciranda.
E, além da diferença das próprias crianças, que elas vão identificando, socializando,
perguntando de onde é que surgiu? Porque surgiu essa criança diferente? [...]
Outro aspecto positivo que acredito ter facilitado o desenvolvimento do meu trabalho,
mesmo com algumas dificuldades surgidas durante o processo e que ainda serão destacadas, é
o fato de as relações étnico-raciais vinculadas à negritude e à África já serem abordadas e
problematizadas na instituição e com a turma participante da pesquisa.
A sensibilidade em utilizar, por exemplo, elementos lúdicos como a boneca de pano
negra abayomi, em desenvolver alguns aprofundamentos sobre o Egito e a apropriação das
crianças sobre a capoeira, a partir de livros, já oportunizou às crianças participantes da pesquisa
51
(e outras que estudam na instituição) a ampliação de seus horizontes e abertura para a temática
aqui proposta.
É muito importante que as instituições, a exemplo desta, abracem estes temas,
procurando trabalhá-los de maneira interdisciplinar nas rotinas de sala de aula desde a Educação
Infantil. Nesse sentido, as noções de diversidade étnica e cultural estimulam o respeito e a
valorização dessas diversidades desde os primeiros anos de vida das crianças.
Em consonância com as perspectivas desenvolvidas na instituição, no contexto da
pesquisa, promovi oficinas artísticas ancoradas nas linguagens da dança, do teatro e utilizei
alguns elementos de musicalidade. Elas foram desenvolvidas através de mediação lúdica com
um grupo de crianças entre 5 e 6 anos, contando também com a participação das professoras
responsáveis pela turma. Nessa ambiência, desenvolvi diálogo com a cultura africana a partir
do universo das deusas e dos deuses orixás, e os recursos lúdicos utilizados foram
jogos/brincadeiras corporais e contação de histórias, ao apropriar-me dos mitos de algumas
dessas divindades africanas. Com relação aos mitos, pode-se compreender, entre outros aspectos, que eles
apresentam símbolos, enigmas e imagens, e embasam o processo de conhecimento e a
apreensão de saberes. A mitologia referente as(os) orixás denota, além desses atributos,
relações com o divino, o sagrado, a ancestralidade e os costumes culturais. Desse modo, a
“narração oral constrói uma ponte entre os contemporâneos e os ancestrais. Particularmente me
permite beber permanentemente nas fontes de minhas raízes, fazer uma viajem interior,
redescobrir quem sou e de onde venho” (NKAMA, 2012, p. 260). Nesse sentido, ter me aproximado das contribuições do autor afro-americano Clyde
W. Ford (FORD, 1999), professor, quiroprata, terapeuta e diretor fundador do Instituto de
Mitologia Africana (IAM), em Washington, ampliou meu olhar, minha sensibilidade e meus
conhecimentos sobre uma perspectiva em relação aos mitos, principalmente os africanos, que
eu já intuía, mas não conseguia aprofundar. O autor articula e fundamenta vastos conhecimentos ancestrais a partir de mitologias
africanas, que apresentam uma perspectiva curativa. Através dessas sabedorias, essas fontes
espirituais e culturais nos auxiliam a ressignificar traumas, principalmente vinculados ao
histórico dos afrodescendentes. Também possibilitam encontrar possíveis respostas filosóficas
que sempre rondaram a existência humana e explicitar o empoderamento negro vinculado a
essas mitologias. Ou, como nos aponta o próprio Ford, um “enegrecimento”:
A questão é que, visto pelos olhos da mitologia africana, assim como outras mitologias
não-ocidentais, negro não tem intrinsicamente uma conotação negativa [...] Então,
52
acrescentemos agora esse significado à lista de acepções de negro e preto: povo da
água que corre areia adentro – uma imagem maravilhosa do poder transformador da
água em trazer vida à terra árida. Então, para grande surpresa, desponta do amplo
campo da mitologia ocidental uma conotação similar do significado e da força de
negro, confirmada por textos de alquimia da Europa medieval. Sabemos por eles que
o primeiro passo essencial da alquimia era conhecido como melanosis ou nigredo –
nos dois casos, um enegrecimento. Ora, a alquimia era uma metáfora elaborada
construída em torno dos mistérios da química, mas na verdade, voltada para os
mistérios da transformação humana; a conversão de um metal não precioso (como o
chumbo) em ouro simbolizava a transformação das preocupações humanas mais
triviais em anseios mais elevados da alma. Entretanto, o momento inicial dessa
transformação consistia em enegrecer o metal não-precioso por meio do fogo,
reduzindo-o a uma substância mais primitiva; só a partir dessa matéria primitiva se
conseguiria obter a transmutação em ouro (FORD, 1999, p. 36-38).
Se a partir do enegrecimento do metal não-precioso alcançamos o ouro, porque, ao
invés de embranquecermos as histórias, os bonecos e as nossas próprias características e
atitudes, não as enegrecemos? As histórias dos nossos ancestrais negros, que também narram
as nossas histórias, são marcadas por violência, desumanidade e estereotipias. Estamos
reforçando a lógica instituída ou a desconstruindo? É necessário que os fantasmas e traumas que rondam os universos negros sejam
ressignificados a partir de um outro olhar que identifica e reconhece, no continente africano, o
berço da humanidade:
[...] a África desfruta uma posição de destaque no registro ancestral da humanidade.
Arqueólogos, paleontólogos e biólogos moleculares reuniram uma quantidade
impressionante de provas fósseis e genéticas de que a África, é sem dúvida o berço da
espécie humana. Como útero, a África literalmente deu à luz os primeiros heróis e
heroínas humanos; as primeiras viagens heroicas ocorreram lá. Esses heróis ancestrais
arriscaram-se sozinhos na maior das aventuras, já que buscavam nada menos do que
o nascimento da humanidade (FORD, 1999, p. 41).
É a partir das histórias e das contribuições dessas heroínas e heróis africanas(os) que
pode-se explicitar mitos fundadores da humanidade e que eu me inspiro para construir
narrativas orais e corporais, atravessadas por deusas e deuses que vivenciam suas próprias
inquietações e tecem os seus destinos:
A mitologia volta-se para as questões eternas da humanidade: qual a relação entre a
vida humana e o grande mistério do ser por trás de toda vida? Como devemos entender
a relação entre o planeta que habitamos e o Cosmo em que nos encontramos? Como
devo vencer as etapas da minha vida? E como minha vida se coaduna com a sociedade
em que vivo? Não se pode colocar essas questões ao telescópio ou ao microscópio; é
melhor viver as respostas e depois transmiti-las aos que virão – e essa é a trajetória do
mito. Assim, a mitologia tem sido tradicionalmente um meio de tornar saudável o
indivíduo e a sociedade ajudando as pessoas a harmonizar as circunstâncias da vida
com essas inquietações mais amplas, mais permanentes. E é exatamente esse tipo de
cura que se pode obter ao abordar a experiência dos afrodescendentes pela mitologia
(FORD, 1999, p. 32).
53
Essas experiências podem nos trajar com armaduras ancestrais e potencializar em nós,
guerreiras e guerreiros contemporâneos, lutas menos violentas e sangrentas, mas não menos
densas ou intensas. Lutas em que nos responsabilizamos por honrar os que vieram antes de nós
e nos retiraram de “um mar de sangue”, resgatando o que de mais profundo reside na nossa
existência: a sabedoria curativa negra.
Após essas breves explanações sobre mitos africanos como reconstruções curativas e
harmonização para o ser humano, apresento uma caracterização de orixás que foram abordados
durante o processo de vivência das oficinas. Sobre essas divindades, é importante situar, a partir
das considerações de Oliveira (2008), que:
Cada orixá possui uma energia própria, associada a um elemento da natureza, seja
o ar, a água, o fogo ou a terra. O orixá cultua sua individualidade, ainda que
colocada em prol da coletividade; preserva suas características físicas, emocionais,
corporeidade, orikis/rezas e provérbios que exultam seus feitos, seus talentos e seus
ensinamentos [...] (OLIVEIRA, 2008, p. 65).
Nas oficinas, essas deusas e deuses foram abordados primeiramente através de mitos;
elas e eles foram apresentadas(os) de maneira mais aprofundada a título de conhecimento geral.
Mesmo assim destaco todas(os) as(os) orixás citados durante a pesquisa e quero deixar claro
que esta caracterização é um recorte, ou uma síntese, da complexidade das características e
especificidades de cada uma dessas divindades.
Para esta organização, não sigo uma ordem vinculada aos rituais religiosos, nem a
ordem em que foram apresentadas(os) nas oficinas. Resolvi ordená-las(os) a partir das
proximidades dos seus elementos da natureza, ou com as suas relações familiares. Ao criar o
Quadro 1, levei em consideração meus conhecimentos espirituais, além de referências de
autoras(es) como Magalhães (2003), Oliveira (2008, 2009) e Nobre (2015):
QUADRO 1 – SÍNTESE DAS(OS) ORIXÁS
Orixá Regência na
Natureza Características
Vínculos
Familiares
Ferramenta
Simbólica Cor Animal
Oxalá Ar;
Deus do céu,
da luz
Tranquilo,
atuando na
sabedoria e
junto à paz na
humanidade
Na qualidade de
velho Oxalufã, foi
casado com Nanã
– a mais velha
deusa do panteão
das(os) orixás,
que rege a lama e
a morte
Na qualidade
de velho
Oxalufã,
carrega seu
cajado
Opaxorô
Branca Pomba
branca
Iemanjá Água;
No Brasil, é
deusa/rainha
Maternal,
generosa e
superprotetora;
Considerada a
mãe das(os)
orixás, é mãe de
Coroa de
franjas
Branca,
azul claro,
prata
Peixe
54
do mar,
“mãe cujos
filhos são
peixes” –
YèYé Omó
Ejá
Protege as
cabeças e todos
que vivem ou
trabalham no
mar – animais e
seres marítimos,
marinheiros,
pescadores –;
Rege e atua
sobre a criação,
a fertilidade, as
emoções, e
assim como o
mar, oscila entre
calmaria e
tempestividade;
Possui
personalidade
forte e
majestosa, além
de ser vaidosa
Ossaim – orixá da
cura, das ervas,
das florestas –,
Oxóssi, Xangô,
dentre outros, e
tem também
filhos adotivos,
como o orixá
Obaluaiyê –
senhor da terra, da
saúde/doença
cobrindo o
rosto (Adê);
Leque-espelho
(Abebé);
A depender da
qualidade,
mais
vinculada à
guerreira
Iemanjá
Ogunté;
também
carrega uma
espada
Oxum Água;
Deusa/rainha
das águas
doces, rios,
cachoeiras,
córregos,
lagoas
Dona do ouro e
da riqueza;
Emotiva e
dengosa,
misteriosa e
feiticeira;
Bela, é
considerada a
mais vaidosa
dentre as iabás
– como são
chamadas as
orixás femininas
s –;
Rege e atua
sobre a
fertilidade e a
maternidade,
cuidando e
protegendo as
mães e as
crianças, desde
a fecundação até
os primeiros
anos de vida
Foi casada com
Ogum, Xangô – a
predileta de suas
esposas – e
Oxóssi
Coroa de
franjas
cobrindo o
rosto (Adê);
Leque-espelho
(Abebé);
A depender da
qualidade,
mais
vinculada à
guerreira
Oxum Apará;
Também
carrega uma
espada
Amarelo
em todos
os matizes,
dourado-
ouro
Peixe,
pássaro
Oxóssi Mata;
Deus/rei/
caçador das
matas
Provedor,
inteligente,
astucioso;
Protege aqueles
seres e espíritos
vinculados as
matas/florestas
– caçadores,
indígenas,
caboclos –;
Possui
conhecimentos
de cura por seus
aprendizados
Foi casado com
Oxum
Arco e flecha
(Ofá)
Verde e
azul
Pantera,
onça
pintada
55
com o orixá
Ossain
Logunedé Água –
deus/príncip
e das águas
doces – e da
mata
Um dos orixás
mais jovens,
belo, popular,
atuando sobre as
amizades
Filho de Oxum e
Oxóssi;
Nasceu com os
dois sexos,
passando 6 meses
com a mãe nas
águas doces,
como princesa,
ninfa das águas,
cultivando sua
energia feminina,
e 6 meses com o
pai, como caçador
nas
matas/floresta,
cultivando sua
energia masculina
Leque-espelho
(Abebé) e arco
e flecha (Ofá)
Amarelo,
verde e
azul-
turquesa
Pavão,
cavalo-
marinho
Ogum Fogo/Estrad
as;
Deus do
fogo, das
estradas, da
guerra, das
tecnologias,
das
inovações
Guerreiro,
ferreiro, que
forja suas
próprias
ferramentas;
Intempestivo,
conquistador,
desbravador,
aquele que abre
os caminhos,
violento
Foi casado com
Iansã e Oxum
Espada Azul-
escuro e
vermelho
Cachorro
Xangô Fogo/ Raios/
Trovões/
Montanhas;
Deus/rei da
justiça
Acredita-se que
já foi um grande
rei, de uma
antiga cidade
africana
chamada Oyó;
Valente, justo,
corajoso,
sedutor, glutão,
forte
Foi casado com
Obá –deusa/
guerreira das
águas fortes,
revoltas, das
pororocas –, sua
esposa mais
velha, Iansã e
Oxum
Machado
(Oxé) e coroa
Marrom,
vermelho e
branco
Leão
Oiá/Iansã Ar;
Deusa/rainha
dos ventos,
ventanias,
raios e
trovões
Sedutora, de
gênio forte,
intempestiva,
guerreira e
conquistadora;
Amante da
liberdade,
protege as
mulheres que
trabalham na
rua,
especialmente
as que fazem e
vendem
acarajé, uma de
suas comidas
Foi casada com
Xangô – tendo
sido sua
companheira nas
lutas e guerras –,
Ogum e Oxóssi
Coroa de
franjas
cobrindo o
rosto (Adê);
Espada;
Um “espanta-
mosca” de
rabo de boi
(Iruquerê) –
que é utilizado
também com
outras funções
definidas
dentro dos
seus rituais
Vermelho Borboleta,
búfalo
Euá Nascentes/
Fontes –
como cobra-
fêmea, mora
Rege a beleza, a
alegria, a
vidência e a
intuição;
Filha de Nanã, é
irmã-gêmea de
Oxumarê –
deus/deusa
Coroa de
franjas
cobrindo o
Vermelho,
amarelo e
branco
Pássaros
noturnos,
cobra-
d’água
56
nesses
habitats –;
Deusa do
chuvisco,
orvalho e
neblina,
ligada
também a
noite e a lua;
Dizem que
quando o
céu está cor
de rosa, é
porque é o
céu de Euá
Protege as
moças jovens,
principalmente
as virgens;
Também
protege os
animais da
mata; Chefe das
feiticeiras
Iyamis, é dona
das poções
mágicas;
Atua sobre a
limpeza e a
harmonia,
especialmente
nos lares
(possui os dois
sexos) da
transmutação, da
riqueza, do arco-
íris e das cobras,
transformando-se
em cobra-macho
rosto (Adê);
Espada;
Arpão – que
permite puxar
o sol no
horizonte e faz
anoitecer – e
cabaça – onde
carrega um pó
mágico
Ibeji Sem
regência
específica;
Deus
representado
por crianças
gêmeas,
sendo
protetor das
crianças,
especialment
e as que o
representam
Alegre,
dinâmico, por
vezes
“traquina”;
Inteligente,
guarda em si a
sabedoria
infantil;
Atua sobre os
cuidados, a
saúde, a
proteção das
crianças e da
família e
promove saúde,
amor e união;
Adora festas e
locais alegres e
coloridos, como
jardins,
brinquedos e
doces – pelo
sincretismo com
Cosme e
Damião, aonde
é celebrado nas
festas populares
através da
imagem desses
santos, aqui no
Brasil; Também
gosta de caruru,
uma de suas
principais
comidas
Em alguns mitos,
os gêmeos
aparecem como
filhos de Xangô e
Oxum e adotados
por Iemanjá, em
outros, são tidos
como filhos de
Xangô e Iansã,
tendo sido criados
por Oxum
Sem
especificação,
mas pelo
sincretismo já
mencionado,
podem
carregar folhas
da natureza,
com função
curativa
Tudo o que
for
colorido,
com
destaque
para azul,
verde e
rosa
Pássaros e,
em alguns
mitos,
macacos
Fonte: Elaboração própria.
Ainda foram citados durante o processo das oficinas orixás que, pelo menos aqui no
Brasil, são misteriosas(os) e um tanto desconhecidas(os), cabendo aqui apenas situá-las(os) em
suas especificidades mais gerais: Olodumare é considerado o ser supremo, o deus criador para
57
os Iorubás; Olocum é anfíbia, deusa/rainha dos oceanos; e Ajê Xalugá é uma deusa, irmã mais
nova de Iemanjá, que também vive nos mares, dominando a força das ondas e das marés,
possuindo um brilho tão intenso que, sem conseguir controlá-lo, cegou aos outros e a si mesma,
como será explicitado mais à frente.
Pode-se analisar que as(os) orixás possuem muitas especificidades e entrelaçamentos,
e são constituídas(os) por algumas diferenças, a partir do continente africano e aqui no Brasil,
o que demonstra uma adaptação dos cultos originários da África em nosso país. Por exemplo,
Iemanjá, em solo africano, mais especificamente cultuada pelos Egbá, nação Iorubá que foi
estabelecida entre Ifé e Ibadan, é reverenciada e associada aos rios, e inclusive possui a
existência de um rio com seu nome, Yemoja (VERGER, 2018).
Outra adaptação que se pode mencionar é o sincretismo religioso. Na época
escravocrata, devido à proibição de manifestação de sua fé e religiosidade, as(os) negras(os)
que cultuavam orixás as(os) associavam as(os) santa(os) católicas(os), como Iemanjá à Nossa
Senhora dos Navegantes, e Oxum à Nossa Senhora Aparecida, por exemplo. Até os dias atuais
essas associações são presentes, como o fato de Xangô ser associado a São Jerônimo, inclusive
nas festas juninas de São João; vinculado à cultura nordestina, ele também pode ser
homenageado na relação com as fogueiras.
Iemanjá também ganha outra figura, diferente da ancestral negra: a imagem de uma
mulher branca de longos cabelos lisos e negros, e com associação à figura mística e mitológica
da sereia. Costumo questionar as crianças em uma contação de história específica desta orixá:
“Será que ela é sereia?”, “Será que ela tem cauda de sereia?”. Algumas respondem que não,
que ela tem pernas, e outras respondem que sim, que ela tem cauda, e eu complemento: “Eu
acho que ela pode até se transformar em sereia, se ela quiser, mas acho que ela é mais mãe das
sereias e de tantos outros seres do mar, do que propriamente uma sereia!”. Apesar de respeitar
estas associações, acho necessário enfatizarmos, em trabalhos desta natureza, as características
negras, a fim de não endossarmos os processos de invisibilização ainda tão arraigados em nossa
sociedade.
58
Um dos orixás que escolhi para ter participação ativa no
processo foi o Ibeji (Figura 10), deus representado por duas
crianças gêmeas. Esse orixá estabelece um contato mais direto
com as crianças e representou, para mim, um território lúdico que
foi experienciado.
Em algumas cosmovisões africanas, como da nação
Iorubá, as crianças, principalmente as gêmeas, simbolizam a
continuidade, além de expressarem alegria, diversão, brincadeira,
jovialidade e jogos infantis (NASCIMENTO, 2018). Esta
divindade, em seu aspecto dual, relaciona-se com: harmonia e
desarmonia, conflito que move o mundo, dinamismo e aspectos
cíclicos, de ir e vir.
No processo das oficinas, contei histórias desta divindade
que estão presentes no livro Mitologia dos Orixás (PRANDI, 2001), que reúne uma diversidade
de mitos das deusas e deuses africanos. Dos sete mitos referente ao orixá Ibeji presentes no
livro, escolhi trabalhar com três mitos, que são Os Ibejis enganam a Morte, Os Ibejis são
transformados numa estatueta e Os Ibejis encontram água e salvam a cidade.
Optei em manter as características essenciais dos mitos, adaptando-os de maneira
lúdica, pois o texto é escrito para adultos. Os mitos dessa divindade puderam estabelecer
relações com outras(os) orixás, característica presente naturalmente na mitologia dessas deusas
e deuses, o que enriqueceu o material proposto.
O antropólogo e professor Vivaldo da Costa Lima (LIMA, 2005) discorre acerca do
culto aos gêmeos em países africanos e sua aproximação com a cultura afro-brasileira,
explicitando mitos e rituais da nação Iorubá. O autor diz: “Parir gêmeos é ter sorte. Ibêji traz
prosperidade e proteção [...]” (LIMA, 2005, p. 26). E esclarece: “Sendo, embora, patrono dos
gêmeos, Ibêji, como orixá, é um só. Ele é padroeiro dos dois gêmeos [...]” (LIMA, 2005, p. 34).
O autor correlaciona a existência e a união dos irmãos gêmeos através de símbolos
presentes nas culturas ancestrais dos Iorubá:
Um conhecimento menos superficial da mitologia e da teogonia ioruba faria lembrar
que as representações materiais e simbólicas de seus mitos se baseiam no princípio
arraigado da dualidade, da polaridade simbólica. Mas os gêmeos é que são,
precisamente, a exceção a essa regra, à regra da dualidade das representações. Isto
pelo fato que as figuras dos gêmeos não expressam o par complementar das
polaridades, o homem e a mulher, mas representam, na verdade, o gêmeo ou os
gêmeos mortos. Explico: quando morre um gêmeo entre os iorubas, na infância, antes
FIGURA 10 – IBEJIS
Fonte: Google Imagens
(internet).
59
da puberdade, a família manda fazer, pelo artesão da comunidade, uma estatueta que
substituirá o gêmeo morto simbolicamente, estatueta que, dali por diante, será zelada,
alimentada e vestida, pela mãe, a iábeji, e guardada, geralmente, nos aposentos do pai.
Se morrerem ambos os gêmeos, serão feitas duas imagens [...] (LIMA, 2005, p. 42).
Recordo que em uma das oficinas, ao contar o mito Os Ibejis são transformados numa
estatueta (PRANDI, 2001), algumas crianças expressaram surpresa negativa e grande
afetuosidade em relação aos Ibejis, pois, na história, ao brincarem em uma cachoeira, um dos
irmãos se afoga e morre acidentalmente. Após as súplicas do outro irmão, os dois são
transformados em imagens de madeira. Na oficina, adaptei para o material mais próximo que
eu dispunha, que era a imagem de dois bonecos idênticos trançados em palha.
Posteriormente, em diálogo final na última oficina, contraditoriamente, algumas
crianças expressaram que tinham gostado da história em que um dos Ibejis havia morrido, e
outras disseram que não. Penso que o princípio de dualidade desses gêmeos, através das falas
das crianças, estava ativo e se personificou. A relação com a morte, que para algumas pessoas
pode ser um acontecimento traumático, para outras pode ser lidada de maneira mais natural, e
esse acontecimento é presente em mais de uma das histórias dos Ibejis, com caráter
emblemático. Caráter este que pôde suscitar nas crianças a compreensão de que a vida e a morte
são ciclos recorrentes que ocorrem nas existências humanas.
Dentro do processo, também fui sentindo necessidade de contar histórias de outras
orixás, e recorri ao livro Omo-Oba: histórias de princesas (OLIVEIRA, 2009), que adapta e
recria mitos de algumas orixás femininas, caracterizadas como princesas crianças, denotando
suas forças, energias e misticidades. Dos seis mitos presentes no livro, escolhi quatro deles para
trabalhar, que são: Ajê Xalugá e o seu brilho intenso, Iemanjá e o poder da criação do mundo,
Oxum e seu mistério e Oiá e o búfalo interior.
Considero ter sido importante utilizar essa referência, que usa uma linguagem lúdica,
pois narrei algumas das histórias com o acompanhamento do livro, que é rico em imagens
textuais e ilustrações, fortalecendo o referencial da negritude e o imaginário da(os) orixás para
as crianças e as professoras participantes da pesquisa.
É relevante considerar que essas histórias estão centradas em figuras de orixás
femininas e suas narrativas míticas, o que penso ser uma abordagem necessária nos contextos
educacionais e infantis. Essa perspectiva feminista permite auxiliar a desconstrução do
imaginário e da realidade machista em que vivemos, a de que apenas homens, heróis, guerreiros,
príncipes, reis ou deuses masculinos são valentes, corajosos, fortes e empoderados.
Características que, por vezes, também podem se fazer presentes em histórias infanto-juvenis,
60
reforçando a imagem da mulher como “sexo frágil”. Nesse referencial e em outros mitos de
orixás, o poder feminino é vinculado à criação e à manutenção de saberes que integram a força,
a inteligência, a sabedoria, a intuição, a beleza e o empoderamento destas deusas
princesas/rainhas.
Me aproximo também das contribuições de Oliveira (2019) em relação à Pedagogia da
Ancestralidade, que propõe especialmente um recorte de gênero em relação a mulheres negras,
que socialmente são as que mais sofrem com racismo, preconceito e violência. A autora propõe
formas de empoderamento para estas mulheres, a partir de conhecimentos ancestrais
(OLIVEIRA, 2019).
Considero que minha dissertação dialoga com esse posicionamento. Tecerei algumas
relações com ele, ao longo desta escrita, sem centralizar esse recorte de gênero, visto que minha
pesquisa é focada em crianças da Educação Infantil. A autora explicita:
Pedagogia da Ancestralidade é antes de tudo um posicionamento político contrário ao
que se estabeleceu no país como uma lógica incontestável direcionada ao branco ser
considerado a norma e não-branco, desvio [...]. A Pedagogia da Ancestralidade, no
campo da educação, se opõe à hegemonia epistemológica eurocentrada, propondo
uma forma de ser-pesquisar -conhecer-pensar-juntar-articular-agir que reconheça o
continente africano como o Berço da Humanidade [...] (OLIVEIRA, 2019, no prelo).
É salutar que brancas(os), negras(os), mestiças(os) e indígenas (as crianças e os adultos
que residem em nosso país) tenham acesso e possam participar de práticas que evidenciem
conhecimentos e propostas que de fato reconheçam o continente africano e a diversidade, a
riqueza e a potência de seu legado histórico e cultural. Creio, nesse sentido, corroborar a luta
antirracista contra todo o apagamento e a exclusão histórica, social e cultural que negras(os)
vivenciam.
Nas oficinas, eu sempre iniciava contando uma história, narrando e corporificando
mitos de orixás. Mitos que possibilitaram introduzir a temática, criando uma ambiência
conectada com as proposições corporais já mencionadas, os jogos e as brincadeiras. Para
exemplificar, menciono uma das contações de histórias trabalhadas nesse contexto, que nomeio
de Os Gêmeos Ibejis numa aventura dançante (Figuras 11 e 12), criada a partir do mito original
Os Ibejis enganam a morte (PRANDI, 2001).
61
Nessa proposição, articulo alguns elementos da cultura africana Iorubá estabelecidas
nas relações entre os Ibejis (orixá representado por crianças gêmeas), Oxum (orixá das águas
doces), Xangô (orixá do fogo, raios e trovões), Iemanjá (orixá das águas salgadas ou do mar) e
Icu (morte). Ao narrar a história, brinco de assumir papéis, ora como contadora, ora como atriz,
ao assumir a voz e o corpo de alguns personagens; ora como dançarina, ao gingar com giros e
movimentos que remetem ao meu Corpo-Dança Afroancestral (PETIT, 2015).
Toco instrumentos musicais africanos – djembe/tambor, ganzá/espécie de chocalho e
sagatts/címbalos de dedo – ao entoar cânticos e músicas africanas, e outras criadas por mim,
inspiradas nesse universo. Também represento as personagens manipulando objetos cênicos –
bonecos Ibejis, espelhos de Oxum e Iemanjá, machados de Xangô, saia de Icu etc.
Na religiosidade de matriz africana, que é o fio que percorre e une a maioria das
manifestações culturais populares que se apresentam com ampla participação de
negros e negras, o Corpo-Dança Afroancestral é aquele que não só dança, como canta,
conta histórias e mitos, e manipula objetos simbólicos (PETIT, 2015, p. 79).
Ao propor contações nessas perspectivas, conecto-me com os ouvintes-participantes e
com uma tradição ancestral vinculada à palavra falada. Nesse sentido, o professor de Filosofia
e Bioética da Universidade de Brasília (UNB), Wanderson Flor do Nascimento
(NASCIMENTO, 2012), tece algumas reflexões sobre oralidade em alguns contextos africanos:
A palavra falada, instauradora da oralidade, é dinâmica, articulada, transformadora e
autocrítica. Ela tem o curioso poder de transmitir uma informação passada ou
inaugurar algo novo [...] A oralidade, é, neste cenário, o lugar por excelência do saber;
é a palavra falada que mantém viva a tradição [...] A ancestralidade é sempre uma
experiência relacional, que liga, inclui e se move na perspectiva da multiplicidade –
FIGURAS 11 E 12 – OS GÊMEOS IBEJIS NUMA AVENTURA DANÇANTE
Fonte: Fotografias de Lenna Beauty.
62
haja vista que somos herdeiros de diversos ancestrais. A memória, espelho da
ancestralidade, em uma movimentação vinculante com a palavra falada, apresenta-se
como uma manifestação da história que não cessa de mover-se tanto em direção ao
passado quanto ao futuro, com os pés orientados pelo presente. O mundo, a vida, a
existência são lidos pela ótica dessa ancestralidade [...] (NASCIMENTO, 2012, p. 43-
46).
Assim sendo, as contações de histórias aproximaram as(os) participantes da pesquisa
dos mitos de orixás, situando-os e apresentando-lhes dimensão cultural e características
simbólicas das deusas e deuses, bem como transmissão de saberes, passados de geração para
geração, através de uma retroalimentação circular.
Ainda refletindo sobre a palavra, pode-se compreender que em algumas filosofias ou
cosmovisões africanas ela é concebida como força vital e pode ser expressa no ato de contar
histórias, através de uma oralidade que se comunica de maneira integral e holística com o outro.
Nesse sentido, pode-se inclusive usar o corpo em manifestações artísticas, como a dramatização
teatral e a dança, para expressar histórias (PETIT, 2015). A autora explicita um conceito específico, mais abrangente e filosófico, a respeito da
tradição oral, que é apresentado pelo escritor africano, originário do país Mali, Hampâte Bâ:
Ele destaca os seguintes aspectos: o caráter sagrado da fala; a fala como força vital; a
fala como vibração que produz ritmo e música; a tradição como forma de
aprendizagem e de iniciação; a importância da viagem como dimensão formadora; a
importância da genealogia; os ofícios tradicionais; a visão de totalidade e de percepção
total. O caráter sagrado da fala é devido à sua origem divina e às forças ocultas dela
depositadas. Dessa forma, fala é um dom de Deus. A fala é força vital porque gera
movimento, vida e ação [...] (PETIT, 2015, p. 112-113).
Essa fala, que reflete conhecimentos e expressões múltiplas, é divina e terrena ao
mesmo tempo, quando incorpora no próprio corpo – daqueles que a proferem – tradições,
costumes e culturas germinadas em solos africanos. A valorização da oralidade como atitude
diante da vida, “e não simples verbalização; a expressividade e a gestualidade como formas de
fortalecer a palavra pronunciada, por vezes sendo o próprio corpo o protagonista da fala sem
verbalização” (PETIT, 2015, p. 140).
Assim, ter uma história para contar, e também ter uma história para brincar, reflete, a
partir dessa ancoragem, que o ato de contar histórias está intimamente ligado ao ato de jogar
com as palavras através de um corpo brincante, pois a fala é encarnada nesse corpo como
potência lúdica.
Nessa mesma direção, a professora e pesquisadora em Dança e Educação, Teodora
Alves (ALVES, 2006), dimensiona o corpo a partir de uma compreensão sobre uma herança
63
étnica e cultural afro-brasileira, que faz com que os corpos imprimam identidade cultural e
social:
Nesse contexto da dança, mais especificamente a afro-brasileira, buscar compreender
os saberes construídos étnica e culturalmente nos faz perceber o corpo como espaço
no qual se produz linguagem e existência no mundo e que muitos conhecimentos
construídos e vivenciados pelos nossos antepassados acabaram se mantendo em nós,
pela incorporação, ao longo das gerações. Há registros de nossos desejos e
necessidades, que se desvelam ou não, dependendo do meio em que vivemos. Refiro-
me não apenas à herança genética, mas a um tipo de herança corporal, de dimensão
expressiva, gestual, que nesse sentido, não é algo condicionado a um determinismo
genético, mas que, na tessitura da vida, se envolve com o inusitado, com o conhecido,
com a pluralidade, com a transcendência, emergindo nas vivências, nos contatos, nos
diálogos entre corpos que têm intencionalidades, expressividade, vida (ALVES, 2006,
p. 59).
A autora entrelaça o sentido de expressividade corporal a uma maneira lúdica de se
comunicar culturalmente: “No caso da cultura negra, em especial a da dança afro-brasileira, a
expressividade se traduz em linguagem extremamente criativa, comunicativa e fundada numa
relação lúdico-sagrada” (ALVES, 2006, p. 107). Ela ainda expressa que as vivências dos
sujeitos são amalgamadas às suas histórias, experienciadas pelos corpos que constroem saberes
“individuaiscoletivos”:
As práticas de saberes da cultura negra estão presentes na história da vida dos sujeitos
individuaiscoletivos numa dinâmica dialógica. É o que são, o que falam, o que pensam
sobre/no/do cotidiano. São seus gestos, sua linguagem habitual, seus costumes que
emergem através do corpo [...] (ALVES, 2006, p. 107).
Ou seja, os sujeitos se constituem como são através de lógicas que incorporam saberes
corporais em seus cotidianos e revelam costumes enraizados em culturas negras. Culturas estas
tão presentes, significativas e constituintes de nossas afrodescendências. Portanto, a partir deste diálogo presente nas oficinas que foram desenvolvidas, esta
expressividade corporal permeada pela cultura africana, teve espaço através de travessias
brincantes de corpos que dançam, teatralizam e performam por meio de histórias, músicas,
ritmos e gingas dos universos encantados de orixás.
Nesse contexto, após iniciar as oficinas com contações de histórias, desenvolvi
jogos/brincadeiras centradas na experienciação corporal, buscando articular alguns elementos
apresentados nas histórias a outros recursos lúdicos. Por exemplo, na oficina em que contei a história Ajê Xalugá e o seu brilho intenso
(OLIVEIRA, 2009), a menina princesa acaba ficando cega por conta de sua teimosia em não
saber colocar limites aos seus desejos:
64
No dia seguinte, Ajê Xalugá foi desbravar os mares, orgulhosa por ser detentora de
segredos. Estava tão orgulhosa de si que não se preocupou em se esconder das pessoas
que estavam à beira mar. E se mostrou com todo o seu brilho. O brilho era tão intenso
que ... [...] – O que eu der aos outros retornará a mim e cada segredo guarda um perigo.
Foi isso que Olocum profetizou. Meu brilho intenso cegou as pessoas à beira-mar e o
mesmo aconteceu comigo. Que situação! Eu nada mais enxergo (OLIVEIRA, 2009,
p. 39-40).
A partir de então, quem ajuda a menina é sua irmã mais velha, Iemanjá, guiando-a
pelas ondas do mar, até que a princesa Ajê Xalugá encontra um novo sentido para viver. Após
a contação, um dos jogos/brincadeiras vivenciados neste dia foi Cego e Condutor, no qual as
crianças ficavam em duplas, e uma delas, com os olhos vendados, era guiada pela outra, pelo
espaço (depois, ambas trocavam de lugar). Notei que nesta experienciação algumas crianças
andavam bem juntas e devagar, de mãos dadas e concentradas; outras divertiam-se tentando
agilizar o ritmo corporal, e ainda assim não se descuidando das outras.
Esta história e este jogo/brincadeira corporal, articulados entre si, explicitam a
importância do cuidar do outro, do respeito e do convívio com pessoas com deficiência.
Também revela que precisamos conhecer os nossos próprios limites e desenvolvermos um
autocuidado, para que não prejudiquemos nem aos outros, nem a nós mesmos.
Nesse sentido, as experienciações corporais, através dos olhos vendados e do auxílio
do próximo, despertam nas crianças a importância da utilização de outros sentidos, bem como
um trabalho de sensibilização corporal, ao testarem romper ou não limites e ressignificá-los.
Tanto nas contações de histórias como nos jogos/brincadeiras corporais, além da dança
e do teatro, elementos de musicalidade foram utilizados e contextualizados à proposta. Para
tanto, houve uma combinação de algumas formas de execução, que foram músicas ao vivo e
em versão gravada. Tais expressões musicais estimularam bastante as crianças em suas
experienciações e ampliaram seus repertórios corpóreos-criativos-brincantes.
Ao desvendar procedimentos lúdicos fundamentados na metodologia do ensino em
artes, Marques (2012) discorre sobre a relação criança/corpo e sobre como as crianças, ao
inventarem suas danças, são motivadas por dispositivos criativos contextualizados a partir de
suas realidades:
A criação de danças pelas próprias crianças é sem dúvida uma forma de sentir, de
dizer e de significar quem são. Obviamente, os sentimentos e emoções das crianças
estarão sempre presentes na fruição, na experiência e em suas composições se assim
for permitido e incentivado. A construção da arte, no entanto, lida mais com as visões,
sensações e percepções das relações eu/mundo do que com os sentimentos e emoções
pessoais de cada um. No corpo, com o corpo e pelo corpo a criança pode construir
65
suas próprias formas de dançar, construindo, assim, outros sentidos, outras formas de
ser/estar no mundo (MARQUES, 2012, p. 68-69).
A autora salienta ainda a importância de apresentar estruturas mínimas para apoiar o
contexto da mediação. Nesse sentido, ela argumenta que “a liberdade total sem estrutura, sem
apoio, sem metodologia definida priva o aluno do conhecimento específico da área de dança,
levando-o ao vazio da comunicação e da construção artística” (MARQUES, 2004, p. 141).
Assim sendo, contextos mediados com estruturas previamente elaboradas e definidas,
com abertura para o que a experiência em si pode provocar, potencializam descobertas de
corpos ativos, críticos, sensíveis e autores de suas criações. Posso então articular essas discussões com a narrativa da Professora Titular da turma
participante desta pesquisa, na ocasião da entrevista final cedida no dia 19 de junho de 2019.
Ela expressou, sobre a abordagem metodológica desenvolvida na pesquisa, o seguinte:
[...] havia uma história, essa história com muitos, muitos elementos, né? Muito rica!
E, para contextualizar, o segundo momento que era sempre uma brincadeira [...] Foi
muito importante essa metodologia para turma. Porque assim, a criança adora brincar,
né? É do perfil da criança brincar e ela aprende brincando. Mas, a turma, só... muitas
vezes, só quer brincar. Então foi importante também, ter um momento de prestar
atenção, de contextualizar, para eles mesmos poderem fazer uma relação, entre o que
eles escutaram e o que eles tavam brincando depois? [...]E, foi isso, eu achei que foi
muito boa, porque, havia contexto, havia sentido, na verdade, né? [...] Embora a
brincadeira ela tenha também o seu cunho livre, ela pode ser uma brincadeira livre
né? Mas era bacana, porque, os elementos da história, muitas vezes fizeram parte das
brincadeiras né? É como se eles tivessem um repertório a mais para brincar [...].
Outro recurso utilizado em algumas oficinas foi a criação de desenhos por parte das
crianças, a partir de um eixo questionador – qual brincadeira haviam gostado mais, ou qual
orixá haviam gostado mais. Este recurso, em específico, pôde também me auxiliar a perceber
outras formas de expressão das imaginações e das criatividades das crianças, bem como as
relações que estavam estabelecendo com as temáticas e as formas de sociabilidade vivenciadas. Portanto, a experiência das crianças é o eixo norteador da pesquisa, a partir das
interações estabelecidas comigo, com elas e com as professoras responsáveis pela turma. Nesse
contexto, utilizei observações, diário de campo, registros de narrativas escritas ou faladas,
gravações em áudio e em vídeo e fotografias.
No sentido de dar um ordenamento mais integrado às diferentes vertentes observadas
nas experienciações com as crianças, considerei importante construir uma Figura com o intuito
de situar unidades circulares – Criança Artista, Criança Natureza, Criança Orixás e Criança
Negritude –, bem como conceitos-chave – Corpo-Poroso, Corpo Brincante, Corpo-Dança
66
Afroancestral (PETIT, 2015) e Criança Performer (MACHADO, 2010b) – articulados entre si.
Estas proposições serão melhor desenvolvidas no Capítulo 3 – Brincando com os gêmeos Ibejis
e outras(os) orixás. Recorri a instrumentais e referenciais teórico-metodológicos que, em diálogo com a
pesquisa em arte, a abordagem fenomenológica e as proposições afro-referenciadas,
permitiram-me observar e compreender o objeto de pesquisa e os objetivos elencados. Estes
são ancorados nas próprias manifestações das crianças enquanto sujeitos criadores de suas
proposições, a partir das metodologias afro-brincantes que foram proporcionadas.
2.4 LOCUS DA PESQUISA
Conforme já mencionei de forma mais breve em outras partes da dissertação, explicito
aqui o critério de escolha da instituição para realizar o trabalho de campo. Além disso, faço
aqui uma caracterização mais sistemática do Núcleo de Educação da Infância (NEI), Colégio
de Aplicação (CAp) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), como locus de
experienciação.
Essa descrição é valiosa para entender alguns elementos a serem trabalhados no
Capítulo 3 – Brincando com os gêmeos Ibejis e outras(os) orixás. Também é o momento de
detalhar os vários procedimentos para efetivar o passo a passo da pesquisa empírica, realizada
no período de abril a junho de 2019, com periodicidade semanal. Os encontros das práticas das
oficinas tiveram duração entre 35 minutos e 1 hora e 20 minutos. Cabe aqui também mencionar
as oportunidades, os desafios e as estratégias de superação diante de alguns impasses existentes.
Para a escolha da instituição, levei em consideração os seguintes critérios: ser de
natureza pública; atender a crianças na etapa da Educação Infantil; demonstrar interesse face à
proposta do projeto de pesquisa; ter uma localização que favorecesse o meu deslocamento
enquanto pesquisadora, principalmente devido à necessidade de condução e utilização de
materiais específicos durante a pesquisa, tais como bonecos, instrumentos musicais,
equipamentos eletrônicos (como computador) e outros.
O NEI é uma instituição acolhedora tanto para os profissionais como para as crianças
que lá estudam. Inclusive porque recebe crianças com deficiência18 desde o berçário, o que
18 Segundo a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, o termo adequado a ser utilizado é “Pessoa com Deficiência”.
A Lei está disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm>.
67
considero um diferencial por trabalhar com a Educação Inclusiva19 e desenvolver a importância
do respeito e do convívio com as diferenças, desde os primeiros anos de vida das crianças.
Pude perceber também que alguns dos profissionais com quem tive contato buscam
estar sempre se capacitando – seja avançando na formação acadêmica, seja por participarem de
eventos científicos e/ou de grupos de estudo na própria instituição. Ou, por exemplo,
promovendo encontros a nível nacional, como o Encontro Nacional de Educação Infantil
(ENEI), promovido pelo Núcleo de Educação da Infância – NEI/CAp – e pelo Programa de
Pós-Graduação em Educação, ambos vinculados ao Centro de Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), onde tive a oportunidade de apresentar um trabalho
em 2018.
Em termos de estrutura física, considero que a instituição possui condições favoráveis
e agradáveis, tanto para o desenvolvimento das crianças como para o desenvolvimento do
trabalho dos profissionais envolvidos. Existe um prédio central e um anexo; neste último
ocorrem reuniões, estudos por parte dos profissionais e palestras. Foi nesse espaço que realizei
algumas das entrevistas.
No prédio central, no qual as crianças estudam, há divisões para berçário, Educação
Infantil e Ensino Fundamental. As salas da Educação Infantil são bem equipadas, com
brinquedos, livros, fantasias, materiais para escrita e desenho, mesas e cadeiras adaptadas ao
tamanho das crianças. Estão decoradas, muitas vezes pelos próprios trabalhos desenvolvidos
pelas crianças, e vários destes trabalhos são também fixados em outros espaços da instituição.
Há também sala de música, sala de audiovisual, biblioteca e dois parques, além de recepção,
sala de coordenação e outros espaços.
Outro fato que me chamou atenção positivamente a respeito da instituição, em
diferentes momentos das vivências, foi as concepções expressas no projeto pedagógico, as
atividades extracurriculares realizadas e o tratamento cotidiano prestado às crianças. Elas são
concebidas como sujeitos ativos, e são levados em consideração seus questionamentos, dizeres,
fazeres, vontades, curiosidades e sentimentos.
Cabe explicitar algumas considerações da Coordenadora Pedagógica da Educação
Infantil, em entrevista cedida no dia 6 de junho de 2019. Ela destaca a abordagem histórico-
19 Refiro-me à educação inclusiva como um modelo educacional que, mesmo sendo considerado por políticas
públicas, ainda está distante da realidade escolar brasileira. Trabalhar a educação inclusiva desde a Educação
Infantil, por ser esta a primeira etapa da Educação Básica, é importante, pois se considera este como um período
crítico no processo de desenvolvimento e aprendizagem de crianças com e sem deficiência, possibilitando a
construção de um mundo compartilhado entre elas.
68
cultural pautada principalmente nas contribuições do psicólogo e teórico Lev Vygotsky, que
salienta as interações sociais na constituição humana. A instituição também busca estar em
consonância com as diretrizes da Educação Infantil a partir de dois eixos orientadores, que são
as interações e as brincadeiras. Nesse sentido, menciona:
[...] não há uma criança única, mas muitas crianças, muitas infâncias, e, se eles são
sujeitos de interações, eles são sujeitos que participam, é, são sujeitos ativos, são
sujeitos que constroem esse conhecimento junto com o professor [...] a gente entende
essa criança como produtora de cultura, então, nesse espaço ela cria cultura, ela cria
modos próprios de ser e se relacionar aqui... Ela é transformada por esse ambiente, ao
mesmo tempo que transforma também, então [...] essa concepção aparece muito... na
nossa escolha metodológica do tema de pesquisa, a partir do momento que a gente diz
que ela é ativa, é participativa, é sujeito social, sujeito de direitos, de interações, que
têm que participar, opinar, que constrói junto, sim, mas, isso aparece como? No tema
de pesquisa, que é um tema que eles escolhem, eles trazem um conhecimento prévio
[...] eles dizem o que querem estudar, o que querem saber e junto com o professor eles
constroem, ele busca, trilha esse caminho, em busca de, das respostas desse
conhecimento, então, essa seria a nossa concepção de criança né, é, esse sujeito que
têm voz, a todo tempo essas crianças aqui têm voz, é dado esse lugar a elas. Aqui elas
não chegam para receber nada pronto, mas, sempre para construir. A infância como
esse tempo, de muitas infâncias, porque aí de novo, se a gente parte de que, é, de uma
concepção histórico e cultural, principalmente cultural, eu não posso dizer que só teve
infância quem viveu a infância do meu jeito, não né? [...] a concepção de Educação
Infantil, como esse espaço de interações, de aprendizagem, de brincadeira, de cuidar
e de educar, com uma função social [...] promover [...] muito diálogo, muita fala, né.
De modo que considere, essa criança e essa infância [...].
Cabe construir elos, a partir das narrativas da coordenadora, com estudos
desenvolvidos por Vygotsky acerca da importância das interações sociais no desenvolvimento
e na constituição humana. Vale explicitar, a partir de Smolka (2009), as influências de Vygotsky
(1896-1934) em seu contexto pessoal, que morreu jovem, aos 38 anos de idade:
Vygotsky é fruto de seu tempo. Nasce imerso em uma rica ambiência cultural. A
leitura e a literatura, a ciência e arte fazem parte do seu cotidiano. De família judaica,
vive a passagem do século XIX para o século XX em meio a uma enorme
efervescência de ideias. Impactado pelas demandas e propostas da Revolução Russa,
experiencia as contradições desse cotidiano: sente agudamente a discriminação;
percebe as diferenças sociais, a precariedade das condições de vida; adere à utopia da
construção do homem novo (SMOLKA, 2009, p. 129).
Decerto, as experiências pessoais do autor influenciaram suas inquietações e
produções. Atento aos problemas sociais, aos contextos individuais e coletivos, problematiza e
propõe percepções e conceitos que interligam Psicologia, Educação e Cultura na perspectiva da
promoção do desenvolvimento humano.
A concepção de Educação Infantil apresentada pela coordenadora, “[...] como esse
espaço de interações, de aprendizagem, de brincadeira, de cuidar e de educar, com uma função
69
social [...]”, permite construir articulações entre arte, imaginação e criatividade, como
instâncias fruidoras e potencializadoras da cultura e da formação de crianças.
Dada a raiz de toda criação infantil, o drama está diretamente relacionado à
brincadeira, mais do que qualquer outro tipo de criação. Por isso, é mais sincrético,
ou seja, contém em si elementos dos mais variados tipos de criação. Nisso, aliás, reside
a maior preciosidade da encenação teatral da criança, que fornece prova e material
para os mais diferentes tipos de criação infantil. As crianças criam, improvisam o
preparam a peça; improvisam os papéis e, às vezes, encenam um material literário
pronto. Essa criação verbal é necessária e compreensível para elas próprias porque
adquire sentido como parte de um todo; é a preparação ou a parte natural de toda uma
brincadeira divertida [...] (VYGOTSKY, 2009, p. 99).
As experienciações lúdicas, como a brincadeira, contextualizadas junto ao teatro,
potencializam as criações das crianças a partir da ênfase nos processos, oportunizando às
mesmas o protagonismo de suas criações:
Eis por que estão bem mais próximas da compreensão infantil as peças compostas
pelas próprias crianças ou produzidas e improvisadas por elas ao longo do processo
de criação. Daí, são possíveis as mais diferentes formas e graus, desde a preparação
prévia e o trabalho com o texto literário até o suave alinhavo de cada papel que a
própria criança deve desenvolver de forma improvisada num novo texto oral, num
processo de brincadeira. Tais peças [...] terão uma vantagem enorme por surgirem no
processo de criação infantil. Não se deve esquecer que a lei principal da criação
infantil consiste em ver seu valor não no resultado, não no produto da criação, mas no
processo. O importante não é o que as crianças criam, o importante é que criam,
compõem, exercitam-se na imaginação criativa e na encarnação dessa imaginação. Na
verdadeira encenação infantil, tudo – desde as cortinas até o desencadeamento final
do drama – deve ser feito pelas mãos e pela imaginação das crianças, e somente assim
a criação dramática adquire para elas todo o seu significado e toda a sua força
(VYGOTSKY, 2009, p. 100-101).
O autor ainda dimensiona que metodologias pautadas em linguagens artísticas, como
o recorte que ele faz em relação ao teatro, compreendem o corpo como dinâmica essencial aos
processos imaginativos: “Sabemos que alguns pedagogos introduzem a dramatização como
método de ensino pelo tanto que essa forma ativa de representação por meio do próprio corpo
responde à natureza motriz da imaginação infantil” (VYGOTSKY, 2009, p. 103). Essas reflexões me remetem à valorização das culturas infantis, em que as crianças são
as protagonistas de suas vivências, arraigadas nas suas corporeidades imaginativas. Há também
um enlace que percebo entre estas proposições e a dimensão da experiência, tão forte em
perspectivas afro-referenciadas, bem como nas reflexões produzidas por Merleau-Ponty. É a
partir de nossas experienciações que o mundo se revela no âmago de nossas sensações,
percepções, reflexões, questionamentos e emoções, tangenciadas por corpos que imprimem e
revelam criações.
70
Destaco que, na rotina escolar da turma participante da pesquisa, as crianças tinham
aulas de teatro e de música uma vez por semana, durante 60 minutos, cada uma. As aulas de
teatro eram ministradas pelo Bolsista de Teatro, e as de música, pela Professora de Música
acompanhada de um monitor. Ocorriam às quintas-feiras, no mesmo dia em que foram
desenvolvidas a maior parte das oficinas da pesquisa, o que avalio como positivo, por
proporcionar articulações entre as linguagens artísticas. As aulas ocorriam antes do recreio, e
as oficinas, após o recreio, o que de certo modo facilitou o processo e enriqueceu o repertório
artístico vivenciado pela turma.
Nesse sentido, destaco algumas abordagens e propostas desenvolvidas pelos
professores, a partir dos eixos corpo-ludicidade-arte, que dialogam com minha proposição. Em
entrevista cedida no dia 23 de maio de 2019, o Bolsista de Teatro explicita:
A minha abordagem ela se pauta muito na questão do faz de conta [...] e também na
questão visual [...] Eu acredito que isso é algo que, acrescenta muito para criança, né?
Essa turma especificamente tá trabalhando o NEI [tema de pesquisa], então eu
trabalhei muito o corpo [...] fiz leituras de imagens, de fotos, como você mesma viu,
já... E agora, que essa questão da dança popular ela tá chegando mais agora [...] É, se
eu começo o faz de conta eles... [eu ri]... né? [...] Eles despertam muito para isso! [...]
e coisas práticas, a, a questão do jogo [...] e da corporeidade, né? [...] enquanto, eles
tão nessa formação de corpo, de corporeidade, né, dessa coordenação também, é,
entender os processos do corpo, entender como é que o nosso corpo, principalmente
eles, como é que o corpo deles funciona [...]
Em entrevista cedida no dia 3 de junho de 2019, a Professora de Música explicita:
No início quando eu [...] para me apresentar pra turma eu utilizei, que até hoje eles
me pedem [risadas dela] é o paraquedas [...] é um círculo assim grande, é um papel, é
um papel? É um tecido, feito pra, pra esse propósito mesmo, que ele têm um, tecido
de paraquedas. Então ele é bem grande e ele é todo colorido. E aí eu contei uma
história para as crianças sobre a estrela do mar [...] tinha a história da estrela do mar,
só que a estrela, a história da estrela do mar, ela é toda, sonorizada. Então têm o sol
que é o pandeiro, têm a lua que é a panderola, têm a estrelinha, que é um sininho, aí
têm vários elementos que se fazem o som, e, dão [interrompo com “atmosfera”] [...]
uma outra atmosfera pra, pra essa história... E aí, quando terminou a história, a estrela
do ma... a estrela que morava lá no céu, caiu lá dentro do mar. E aí quando ela cai lá
dentro do mar, ela cai dentro desse paraquedas, que eu fiz com eles né? Só que eu,
peguei uma estrelinha mesmo que eu já tinha feito, e aí, trouxe... e trouxe uma música
pra poder fazer, o balanço do, do mar, com eles. Então todos poderiam segurar um
pedacinho, do, do mar ali em círculo e aí o mar, ele fica forte e as vezes ele fica lento,
então a música acontecia a mesma coisa, as vezes a música ficava mais lenta e eles
tinham que perceber isso e, porque agora todo mundo era o mar e ia fazer a estrelinha
nadar dentro do mar. Então eles, amaram essa atividade [...] o problema era mais
agente conseguir conter, porque no momento que estava todo mundo ali com o mar
agitado, todo mundo começava a gritar e pra voltar pra ficar lento [risadas dela] é um
processo, foi um processo, até eles conseguirem perceber mais a música, do que a
empolgação de, da atividade né? [...] trabalhei com eles depois, todo mundo ir pra
baixo do mar, todo mundo ir pra cima do mar, pra eles explorarem, porque eles
queriam... quando, quando o mar subia, todo mundo queria ir pra baixo, eu disse “não,
vai ter um momento para isso!” Aí depois eu botei todo mundo para explorar aquele
paraquedas. Então acho que foi uma atividade bem marcante [...]eu tento trazer para
esse corporal [...] e aí [...] trabalhei uma vez uma música que é [...] [ela canta]: “eu
71
vou pular, eu vou pular, eu vou pular...”, e aí, eles tem que fazer, aquilo que tá pedindo
a música, “paro em silêncio!”, e aí todo mundo faz estátua, “e agora andar... eu vou
andar...” e aí, eu vou mudando esses elementos... eu vou andar, depois eu vou correr,
eu vou girar, eu vou saltar... [...] pular... eu vou dançar, eu vou andar abaixando... e
assim eu vou, eu vou mudando [...]
Nessa entrevista, a partir das explicitações da professora, pude fazer relações com a
metodologia que desenvolvo na pesquisa:
Tem um jogo que eu faço, que é no contexto de uma floresta [ela diz animada:
“Sim!”], aí, eu falo [cantando] “caminha, caminha, caminha, você tá caminhando,
caminha, caminha, caminha, você é um passarinho!”, aí eles vão se transformando
nos animais... [ela, animada: “Ai, que legal!”]... aí dá para usar também! [ela diz:
“Com certeza!”] [...] O pular, o dançar! Eu utilizo muito assim, a música como um
apoio, né? Ela não é central, né? O central é o movimento, a dança, o teatro. Mas a
música ela tá muito forte, até porque a questão africana, ela pede isso [...] Então eu
lembrei quando cê falou [risos de ambas]... Nossa, que conexão, né?
Ela complementa:
[...] na verdade eu acho que são os propósitos que mudam mas os entrelaçamentos,
porque a gente usa muito a questão do, do, teatro né, quando eu falei da história [eu
digo: “Com certeza!”] [...] A história toda teatral... Aí o sol [ela faz barulho]: “PÁ,
PÁ”, chegou o sol e aí o sol, né? O sol, é o quê? Depois eu pergunto, “o sol é muito
brabo!” [com entonação de brabeza]... Ah... [eu digo: “Que linda, eu fiquei curiosa
para ver essa história!].
Para além das aulas específicas de teatro e música, é importante salientar que, na rotina
escolar, a arte é um eixo pensado, valorizado, estimulado e desenvolvido com as crianças, como
pode ser verificado em entrevista inicial cedida no dia 23 de maio de 2019, pela Professora
Titular:
A abordagem metodológica utilizada na instituição, é a abordagem triangular, de Ana
Mae Barbosa [educadora e pioneira em arte- educação no Brasil, pela sistematização
da abordagem citada pela professora]. A gente sempre, é, desenvolve atividades
artísticas, esse ano a mais significativa, foi com a vinda de uma bolsista [...] a gente
estava tratando das brincadeiras de antigamente, da instituição, do NEI [tema de
pesquisa] e a gente trouxe a amarelinha [...] ela, é, colaborou para esse
desenvolvimento também, mas a gente foi fazer uma obra de releitura de, um artista
chamado Ivan Cruz [artista plástico carioca], que, destaca as brincadeiras, nas suas
obras. [...] a metodologia de Ana Mae Barbosa é, a gente aprecia, contextualiza e faz,
então, a gente apreciou a obra dele, a gente contextualiza, em relação, porque ele fez
aquilo? E qual o ano que fez aquilo? O material utilizado? Como a gente poderia fazer
aquilo do nosso... do seu jeito, nu é? Porque, a releitura apenas, é, algo de referência,
mas, ele não é o produto, então assim, a gente luta muito para que as crianças não
produzam cópias, embora muitas tenham a necessidade de fazer a cópia e, a gente
tenta lutar contra isso, para que eles utilizem... não é necessário utilizar a mesma cor
que o artista utilizou ou fazer a casinha do mesmo jeito que ele fez e aí, as crianças
conseguiram. Para gente, a gente tá, tão mais preocupado com o processo do que com
o produto, então, eles amam [enfatiza essa palavra] atividades, de arte né? Eles
adoram, porque, meche com o processo criativo e eu acho, que é, que é, inerente a
criança né? [...] A todos nós [risos de ambas], mas a criança está mais aflorada e mais
livre para criar.
72
Pode-se perceber, nas entrevistas, que a instituição, através de seus profissionais,
valoriza e prioriza na Educação Infantil as atividades de cunho lúdico, no cotidiano e nas
disciplinas desenvolvidas com proposições artístico-pedagógicas.
Nessas proposições, a Arte, como linguagem e abordagem metodológica, promove
inúmeros atravessamentos, como a apreciação estética, perpassada pela experienciação
corporal, por meio do uso de recursos visuais e do “faz de conta” proposto pelo Bolsista de
Teatro. Também em suas aulas, o desenvolvimento do estudo e da prática com danças populares
se deu naquela ocasião, devido ao contexto da comemoração e das apresentações nas festas
juninas. A música e o teatro em diálogo promovem imersão da experiência das crianças,
estimulando a imaginação delas, a valorização da natureza e o cruzamento com a vivência
corporal proposta pela Professora de Música. O enfoque nas culturas infantis, envolvendo as
brincadeiras, permitiu às crianças recriar obras do artista plástico Ivan Cruz, atividade mediada
pela Professora Titular da turma e uma bolsista, pautada na abordagem triangular, de Ana Mae
Barbosa. Para finalizar a caracterização da instituição, destaco a metodologia utilizada, na qual
o conteúdo temático e as práticas se articulam e permitem uma participação proativa das
próprias crianças, como também possibilita uma convergência com a proposta das(os)
professoras(es). A pedagoga e professora do NEI, Uiliete Márcia Silva de Mendonça, destaca: “[...]
enquanto escola, entende que tem um papel relevante no processo do desenvolvimento infantil,
como mediadora-dinamizadora entre as experiências e conhecimentos da criança e os
conhecimentos acumulados histórica e socialmente pela humanidade” (MENDONÇA, 2012, p.
38). Ela menciona também a importância da contextualização dos temas de pesquisa a partir do
currículo proposto e das propostas do educador Paulo Freire, e da pedagoga e doutora em
educação Sonia Kramer:
[...] foram introduzidos no NEI os temas de pesquisa, trabalhos de forma
interdisciplinar e articulando três dimensões básicas: o conhecimento das áreas de
conteúdo, ou sejam, os conhecimentos produzidos e sistematizados nas áreas de
matemática, linguagem, ciências naturais e sociais; o contexto sócio-cultural das
crianças, que pressupõe um conhecimento da realidade em que a criança está inserida,
considerando os conhecimentos, os valores e as várias linguagens trazidas do
cotidiano e os aspectos vinculados diretamente à aprendizagem, ou seja, o nível de
desenvolvimento da criança, sendo respeitadas as características próprias do seu
desenvolvimento (MENDONÇA, 2012).
73
A autora ainda articula a proposta dos temas de pesquisa, como metodologia base, a
partir da proposta pedagógica do ano de 2004, desenvolvida na instituição:
Nesse sentido, vale ressaltar que o tema de pesquisa é trabalhado no NEI como forma
de articular as experiências de vida e valores socioculturais das crianças, o
conhecimento das áreas de conteúdo e o seu nível de desenvolvimento, viabilizando
a proposta interdisciplinar da escola, constituindo-se num parâmetro básico da
dinâmica pedagógica (MENDONÇA, 2012, p. 60).
Pude observar que a comunidade escolar é envolvida ao longo do ano na colaboração,
no desenvolvimento e na execução da metodologia proposta. As crianças, portanto, vão
construindo conhecimentos a partir de suas próprias inquietações, em mediação com os adultos,
tendo a concepção e a vivência da importância de se pesquisar, e não, por exemplo, decorando
fórmulas ou datas.
São crianças que podem articular conhecimentos adquiridos na escola com saberes
vivenciados a partir de suas realidades e dinâmicas sócio-culturais. Elas aprendem
questionando, propondo e pesquisando, e também ensinam e possibilitam aos adultos ampliar
suas visões e práticas pedagógicas a partir delas mesmas. Pequenas e pequenos em tamanho,
porém grandes em suas inteligências, sensibilidades e contribuições.
Destaco que esta apresentação sobre a instituição não esgota e nem aprofunda a sua
potência agregadora, que permite às crianças e aos adultos vivenciarem e compartilharem
aprendizados construídos conjuntamente.
2.5 PARTICIPANTES DA PESQUISA
Em relação aos sujeitos da pesquisa, participaram 12 crianças de uma turma da
Educação Infantil, entre 5 e 6 anos (participação direta); 2 professoras responsáveis pela turma
destas crianças, a Professora Titular e a Professora Substituta (participação direta); 1
Coordenadora Pedagógica da Educação Infantil (participação indireta); 1 Bolsista de Teatro
(participação indireta); e 1 Professora de Música (participação indireta).
Neste contexto, a participação direta das crianças envolveu minha observação em
relação a elas, durante a rotina escolar, e suas participações no processo das oficinas, em que
vivenciaram e criaram junto à proposta. No caso das professoras vinculadas à turma das
crianças, suas participações diretas ocorreram nos seguintes momentos: quando as observei
durante suas aulas; ao colaborarem no processo das oficinas, apoiando na organização das
74
crianças e ao participarem das práticas lúdicas; e, em determinados momentos, emitindo
opiniões ao prestarem seus depoimentos durante as entrevistas. Em relação à Coordenadora Pedagógica da Educação Infantil, ao Bolsista de Teatro e
a Professora de Música, considero que a participação destes sujeitos foi indireta por não
vivenciarem o desenrolar da pesquisa. As entrevistas em que essas(es) profissionais emitem
opiniões sobre a instituição e o envolvimento das crianças nas práticas pedagógicas, conforme
já foram referidas, serão retomadas em outros momentos deste trabalho.
No desenvolvimento da pesquisa, foram utilizadas diferentes formas de apreensão da
realidade. Inicialmente as observações seguiram um roteiro orientado a partir do objeto de
pesquisa, focado nas crianças participantes. Elas se realizaram em dois ambientes da instituição:
dentro da sala de aula e na hora do recreio, no parque, durante uma semana. O intuito era perceber inicialmente a maneira como as crianças se expressavam e se
relacionavam entre si, e, para tanto, as observações seguiram um roteiro a ser verificado:
sociabilidade e interação das crianças em relação aos colegas; a existência ou inexistência de
alguma forma de preconceito ou exclusão externalizada entre elas – e, em caso afirmativo, quais
seriam as motivações; o que motivava as crianças a brincarem; quais as características das
brincadeiras; se eram brincadeiras que necessitavam de algum recurso físico ou de outra ordem
– e, em caso afirmativo, quais eram esses recursos e o que provocavam nas crianças; como as
crianças brincavam com o seu próprio corpo e com o corpo das outras crianças.
As entrevistas foram outro recurso importante para a compreensão da realidade. A
partir de Florentino (2012), pode-se refletir que “o propósito da entrevista, na abordagem
qualitativa, é obter descrições do mundo vivido pelas pessoas entrevistadas a fim de se chegar
a lograr interpretações fidedignas do significado que os fenômenos descritos assumem no
contexto em que estão inscritos” (p. 136).
A realização de entrevistas com as(os) profissionais da instituição objetivou
compreender a orientação pedagógica desta instituição em relação às temáticas propostas no
projeto: corpo, arte, ludicidade e cultura africana no contexto da Educação Infantil. Também
busquei apreender subsídios complementares para compreender o contexto em que as crianças
estavam inseridas, e o grau de estimulação em relação a essas perspectivas. Nas entrevistas com
as professoras responsáveis pela turma, algumas questões foram direcionadas sobre o processo
vivenciado com elas e com as crianças durante as oficinas.
Por se compreender que tanto o entrevistador quanto o entrevistado podem estar
abertos ao fluxo da entrevista, sem se fecharem a esquemas rígidos de questões, nesta pesquisa
o roteiro de entrevistas foi elaborado com perguntas semiestruturadas.
75
As entrevistas foram realizadas de forma individual, dentro da instituição, coincidindo
com o período das oficinas. Em relação às duas professoras responsáveis pela turma
participante, foram realizadas duas entrevistas, uma inicial e outra final, pois era importante
captar a narrativa delas, que acompanharam todo o processo de realização da pesquisa. Com os
demais entrevistados, houve a necessidade de realização de apenas uma entrevista. Devido à participação com as crianças, as professoras que acompanharam diretamente
este processo são nomeadas no presente estudo com nomes fictícios. As(os) outras(os)
profissionais são identificadas(os) a partir de suas funções dentro da instituição. Para uma
melhor apreciação sobre as(os) entrevistadas(os), segue o perfil dos mesmos:
QUADRO 2 – PERFIL DAS(OS) ENTREVISTADAS(OS)
Entrevistados Perfil
Coordenadora Pedagógica da Educação Infantil Pedagoga e Doutora em Educação pela UFRN,
trabalha na instituição há 12 anos e já trabalhou lá como
professora
Professora Titular (da turma participante da
pesquisa)
Pedagoga e Doutora em Educação pela UFRN,
trabalha como professora na instituição há 10 anos
Professora Substituta (da turma participante da
pesquisa)
Pedagoga, com Especialização em Libras pela UFRN,
trabalha como professora na instituição há 1 ano, também
tendo sido bolsista anteriormente na mesma instituição
Bolsista de Teatro Graduando em Licenciatura em Teatro pela UFRN,
bolsista de um projeto de Teatro e Educação na instituição
desde o início de 2019
Professora de Música Violoncelista e mestranda em Música pela UFRN, trabalha
como professora substituta na instituição desde o início de
2019, já tendo sido bolsista na mesma instituição em 2015
No contexto das oficinas, as contações de histórias, brincadeiras/jogos corporais e
desenhos estimularam a experiência vivida das crianças e as suas diversas percepções acerca
das temáticas propostas. Durante o processo de vivência artística, foram lançadas questões
abertas às crianças com o intuito de que elas pudessem expressar suas opiniões através de
narrativas orais. Algumas delas versaram sobre o que as crianças achavam sobre os
jogos/brincadeiras corporais, sobre as histórias e sobre as personagens das histórias. Outras
questões surgiram durante o processo, tanto minhas quanto das professoras e das próprias
crianças. Esta pesquisa em arte, no campo das Artes Cênicas é de natureza qualitativa e dialoga
com a subjetividade dos sujeitos envolvidos, o que me leva a retomar o diálogo com Merleau-
Ponty (1999), quando este considera que “o mundo é não aquilo que eu penso, mas aquilo que
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eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo,
ele é inesgotável [...]” (p. 14). Reflito que, quando experienciamos o mundo, nós o tornamos
um mundo vivido, que nos afeta e nos atravessa enquanto seres em constante descoberta. Dessa maneira, minha relação com as crianças na pesquisa foi pautada pelo sentido de
abertura para experienciar o mundo com elas e a partir delas, ampliar minha percepção às suas
inquietações, emoções, seus estados de presença no mundo, suas formas de intervir, brincar e
interagir a partir dos temas propostos.
Destaco, a título de informação geral, que na turma havia crianças com características
psicossociais e físicas diferenciadas. Havia crianças diagnosticadas com leve TEA (Transtorno
do Espectro Autista), com Síndrome de Down, crianças negras de cabelos crespos/afros, outras
de cabelos lisos, crianças miscigenadas, com tons de pele que variavam entre mais próximo do
escuro e mais próximo do claro, algumas com cabelos cacheados, outras com cabelos lisos,
outras brancas, com cabelos claros e olhos claros. A maior parte das crianças provinha de
famílias de classe média e baixa, e poucas, pelas suas próprias falas, manifestavam ser de
família de classe média alta. Essa caracterização socioeconômica não se baseou em dados
objetivos, mas tão somente pelas observações, interações e diálogos com as crianças e com uma
das professoras responsáveis pela turma.
Respeitando os termos de autorização de participação das crianças, no sentido de
garantir o anonimato delas, utilizo nomes fictícios que remetem à natureza, pela própria relação
com as(os) orixás, bem como características de personalidade e traços emocionais dessas(es)
participantes; destaco também a idade delas e o seu envolvimento no processo participativo. Inicialmente, pensei em escolher os nomes fictícios das crianças, mas, para minha
surpresa, na segunda oficina, duas meninas sugeriram os nomes com que gostariam de ser
chamadas. Posteriormente, em roda de conversa com a turma e as professoras, explicitei este
procedimento e sondei os nomes desejados. Para tanto, disponibilizei um tambor africano
djembe, e cada participante tocava um pouco e falava em voz alta o seu nome, passando depois
o instrumento para o próximo participante, e assim sucessivamente. Manifestei assim uma
postura de abertura a um acontecimento não planejado anteriormente; através das próprias
expressões das crianças, senti que fomos construindo o desenvolvimento da pesquisa juntos.
Para uma melhor visualização sobre as(os) participantes, seguem os seus nomes
fictícios e o perfil das(os) mesmas(os):
77
QUADRO 3 – NOMES FICTÍCIOS E PERFIL DAS(OS) PARTICIPANTES
Participantes Perfil
Professora Iemanjá Professora Titular;
Carinhosa, acolhedora, aberta, extrovertida, expansiva,
alegre;
Gostava de participar dos momentos com
experimentação corporal
Professora Sol Professora Substituta;
Amável, tranquila, reservada, observadora;
Gostava de interagir nos momentos de contação de
histórias
Gatinha Folha
Sexo feminino, 5 anos;
Simpática, carinhosa, extrovertida;
Sua participação foi intensa, se relacionava e transitava
bem entre meninas e meninos nas proposições;
Expressava uma intensa criatividade corporal
Coelhinha
Sexo feminino, 5 anos;
Carinhosa, disposta a ajudar;
Sua participação foi boa, mesmo tendo ficado doente
do meio para o final do processo e não ter ido mais;
Quando participava, se expressava bastante oralmente,
construindo uma percepção positiva sobre as temáticas
trabalhadas, diferente do início, ao demonstrar
percepção negativa
Gato Ninja do Fogo
Sexo masculino, 5 anos;
Sensível, questionador, tranquilo, aberto;
Sua participação foi intensa, mesmo tendo faltado
algumas vezes;
Apresentava disponibilidade nas experienciações
corporais
Cachoeira
Sexo feminino, 5 anos;
Muito afetiva, emotiva, entusiasmada, aberta;
Sua participação foi intensa, em alguns momentos
deixando-se levar por suas emoções
Leoa Oxóssi
Sexo feminino, 5 anos;
Educada, reservada, cooperativa;
Sua participação foi intensa, mesmo tendo faltado
algumas vezes;
Expressava uma intensa criatividade corporal
Leão Fogo
Sexo masculino, 5 anos;
Agitado, curioso, ágil;
Sua participação foi intensa, transitava em alguns
momentos entre dispersão e concentração;
Expressava uma agilidade, inteligência e criatividade
corporal aguçada
Raposa
Sexo feminino, 6 anos;
Curiosa, expansiva, interessada pelo tema vinculado à
África;
Sua participação foi intensa, mesmo em alguns
momentos se isolando de atividades em grupo;
Expressava uma intensa criatividade corporal
Borboleta Sexo feminino, 5 anos;
Empoderada, vaidosa, criativa;
Sua participação foi boa, mesmo tendo entrado depois
(devido à autorização dos pais) e faltado algumas vezes
Onça Preta Sexo masculino, 5 anos;
Extremamente carinhoso, agitado, voluntarioso;
Sua participação foi boa, mesmo em alguns momentos
se negando a participar;
78
Por vezes apresentava uma visão negativa sobre as(os)
negras(os)
Oceano Tubarão Tigre Sexo masculino, 5 anos;
Sensível, educado, concentrado, participativo,
entusiasmado, aberto;
Sua participação foi intensa;
Expressava também uma intensa criatividade corporal
Lua Sexo feminino, 5 anos;
Extremamente carinhosa, curiosa, agitada,
voluntariosa;
Sua participação foi boa, mesmo tendo entrado depois
(devido à autorização dos pais) e não participado na
maior parte das atividades que em geral envolvia o
grupo;
Quando participava, expressava uma agilidade,
inteligência e criatividade corporal e musical aguçada
Onça Pintada Sexo masculino, 5 anos;
Engraçado, questionador, voluntarioso;
Sua participação foi boa, mesmo tendo entrado depois
(devido à autorização dos pais) e se negado a participar
em alguns momentos
De posse desta pluralidade de informações, registros e narrativas, esta dissertação é
estruturada a partir da descrição e da compreensão do processo investigativo, das
recomendações indicadas nos encontros com minha orientadora, das sugestões apresentadas
nos momentos de seminários e das recomendações pela banca de qualificação e defesa.
79
CAPÍTULO 2 – OXUM: O ESPELHO DO ENCANTAMENTO
Oxum, a menina dourada
Oxum
Ora Yê Yê Ô menininha Oxum! Oxum
Do cheiro perfumado de mel
Das brincadeiras encantadas nas águas de suas cachoeiras Das danças que todos querem dançar com ela Oxum
Princesa menina doce
E também guerreira Com seu abebé a se mirar
É toda mimosa a rodopiar
É menina valente
E sua maior arma é o amor Amor por si que transborda para o outro
Amor dourado
Negra majestosa Oxum
Quem poderá resistir aos seus encantos?
(Lia Braga, Fortaleza/CE, maio de 2019)
FIGURA 13 – RETRATOS
DE OLINDA, BAIANINHA
Fonte: Fotografia de Carol Andrade
Fotografia Carol Andrade
80
3.1 PERCEPÇÕES E PROPOSIÇÕES SOBRE INFÂNCIAS
Eu amo a Oxum, porque ela vai me proteger!
(Menina Raposa, 6 anos)
Ao experienciar a pesquisa com as crianças,
algumas vezes percebi a menina Raposa expressar seu
carinho por Oxum (Figura 14). É difícil não se encantar
com essa orixá; ela é considerada uma iabá ou aiabá,
como são chamadas as orixás femininas. “Ia”, ou “iya”,
significa “mãe” em Iorubá. Oxum é considerada a mãe das
águas doces, aquela que provê a fartura do mundo através
de suas águas, córregos, riachos, rios, lagos, lagoas e
cachoeiras. Uma das qualidades – especificidades – de
Oxum é que ela gera e cuida da fertilidade, da procriação
e da gravidez das mulheres, sendo responsável por cuidar
das crianças recém-nascidas. É uma das mais vaidosas,
senão a mais vaidosa, das iabás, além de misteriosa,
dengosa e doce (LIMA, 2007).
Apesar de Oxum – a dona do ouro, com sua pele de ébano dourada – não ser minha
mãe, em minha linhagem espiritual me identifico com sua energia, por ter vivenciado um antigo
amor, e desde então sinto como se ela tivesse me adotado.
Com seus cuidados, ela me mostra – através de seu leque dourado com espelho no
meio, o seu abebé, uma de suas ferramentas – a necessidade de, ao me olhar refletida em seu
espelho, primeiro cultivar o amor-próprio, para depois cultivar o amor pelo outro, como se pode
observar na história Oxum e seu mistério (OLIVEIRA, 2009):
Oxum era muito linda e perfumada e todos os meninos e meninas desejavam ficar
perto dela. Desde criança, Oxum tinha como atributos a beleza, a vaidade, o
atrevimento, a genialidade, a determinação e a maternidade. Sabia ser guerreira, mas
preferia cuidar de sua beleza: de suas unhas, de seus cabelos, de sua pele e das joias
de ouro que só ela possuía. Mas a princesa menina Oxum tinha conhecimentos que
ninguém mais tinha: ela conseguia hipnotizar com a sua beleza quem ela quisesse.
Suas cores preferidas eram amarelo-ouro e dourado (OLIVEIRA, 2009, p. 17).
Nesse reflexo amoroso pude perceber, ao vivenciar a pesquisa, que cada criança possui
um universo próprio, que deve ser respeitado e considerado. Com algumas delas precisei criar
outras estratégias para estimular as suas participações, pois algumas não gostavam de interagir
FIGURA 14 – OXUM GANHOU O
TÍTULO DE PROTETORA DAS
CRIANÇAS
Fonte: Google Imagens (internet)
81
nos momentos coletivos. A menina Lua, por exemplo, gostava bastante dos instrumentos
musicais e de dançar, e esses eram os momentos em que eu tentava prender a sua atenção,
surpreendendo-me com sua disponibilidade e habilidade musical e corporal. Muitas delas, por
exemplo, gostavam de interpretar/representar personagens, e procurei criar estratégias
diferenciadas, a fim de que todas pudessem participar das contações de histórias.
Ao refletir que as crianças são diversas em suas características e formas de expressão,
considero, em vez da concepção de “infância”, a concepção de “infâncias”. Assim ampliamos
o nosso olhar para os diferentes contextos territoriais, sociais, culturais e financeiros, bem como
para as características físicas, emocionais e intelectuais referentes às crianças (OLIVEIRA,
2019).
Por exemplo, o continente africano abriga diversos modos de expressões culturais,
portanto, crianças que moram em países africanos diversos manifestam formas culturais
distintas. Uma criança brasileira, que mora na cidade de Fortaleza, no nordeste, vivencia
costumes diferentes de uma criança que mora na cidade de São Paulo, no sudeste. Uma criança
de terreiro, que vivencia a espiritualidade afro-brasileira, possui outras lógicas de pensamento
e experienciação no mundo, diferentes de uma criança que vivencia a espiritualidade vinculada
ao catolicismo. Uma criança negra poderá, desde muito pequena, enfrentar preconceito e
racismo, diferentemente de uma criança branca.
Os exemplos são numerosos por existirem diversas infâncias, e todas as crianças
devem ser respeitadas como são e terem a oportunidade e o acesso à educação, à arte e à cultura,
dentre outros direitos, sem nenhum tipo de exclusão. Assim sendo, retomo algumas reflexões
relacionadas à Pedagogia da Ancestralidade, quando a autora Oliveira (2019) explicita:
A Pedagogia da Ancestralidade nos traz esse conhecimento sobre a necessidade do
uso de infâncias no plural, uma vez que as entende como múltiplas, afinal, crianças
que vivem as experiências culturais propostas pelos seus grupos de afeto a partir do
lugar são capazes de reproduzir as ações que as/os adultas/os executam de forma
visceral, prazerosa e a partir do corpo mergulhado na experiência e na repetição que
traz o sentido e o significado (OLIVEIRA, 2019, no prelo).
As crianças, ao terem oportunidade de vivenciar prazerosamente e intensamente junto
com seus grupos de afeto, descobrem-se como desbravadoras de suas experienciações. O “corpo
mergulhado na experiência”, guiado por exemplos catalizadores de vivências positivas e não
impositivas, como a autora reflete, se traduz de maneira muito benéfica para a construção e
significação das experiências de crianças no mundo.
82
Porém, pode-se verificar algumas expressões de preconceito e racismo em relação à
turma participante desta pesquisa, no cotidiano escolar do NEI, a partir da explicitação da
Professora Titular, na ocasião da entrevista inicial, realizada no dia 9 de maio de 2019:
[…] o tema de pesquisa nesse momento […], as perguntas e as questões dele não
suscitaram as questões étnicas, étnicas agora. Mas elas não deixam de ser vivenciadas
no dia a dia, por alunas negras que têm o cabelo afro, por exemplo, “Fulana, sai do
meio que o seu cabelo tá atrapalhando”. Então, essas situações surgiram, e ali, com
conversas, né, digamos que informais, sem um tema planejado, a gente vai
conduzindo essas situações, com leitura de histórias. Agora sempre essas histórias a
gente traz, as questões étnicas-raciais [sic], porque também é curricular [...]?
As atitudes das professoras, como essa destacada acima e outras explicitadas
anteriormente, estão em consonância com as problematizações e indicações destacadas na
publicação História e Cultura Africana e Afro-brasileira na Educação Infantil (BRASIL,
2014):
O papel da professora e do professor da educação infantil nesse processo é
importantíssimo. A esses profissionais cabe a realização de práticas pedagógicas que
objetivem ampliar o universo sociocultural das crianças e introduzi-las em um
contexto no qual o educar e o cuidar não omitam a diversidade. Desde muito cedo,
podemos ser educados e reconhecer a diferença como um trunfo e a diversidade como
algo fascinante em nossa aventura humana. Desde muito cedo, podemos aprender e
conhecer diferentes realidades e compreender que a experiência social do mundo é
muito maior do que a nossa experiência local, e que esse mesmo mundo é constituído
e formado por civilizações, histórias, grupos sociais e etnias ou raças diversas. É
também bem cedo em sua formação que as crianças podem ser reeducadas a lidar com
os preconceitos aprendidos no ambiente familiar e nas relações sociais mais amplas.
Essas mesmas crianças têm o direito de ser e se sentir acolhidas e respeitadas nas suas
diferenças, como sujeitos de direitos. Sua corporeidade, estética, religião, gênero,
raça/etnia ou deficiência deverão ser respeitadas, não por um apelo moral,
assistencialista ou religioso, mas sim porque essa é a postura esperada da sociedade e
da escola democrática que zelam pela sua infância. Por isso, as ações e o currículo da
educação infantil, deverão se indagar sobre qual tem sido o trato pedagógico dado às
crianças negras, brancas e de outros grupos étnico-raciais, bem como a suas famílias
e histórias (BRASIL, 2014, p. 15).
Nesse sentido, a Professora Titular, já na ocasião da entrevista final, realizada no dia 19
de junho de 2019, expressou, sobre algumas problemáticas para a contribuição da pesquisa na
formação das crianças, o seguinte:
[...] “Sim, ah, seu filho lanchou bem, mas, hoje, ele, teve uma atitude que não foi
bacana com a colega, porque falou que o cabelo da colega tava atrapalhando ele e ela
tinha de cortar o cabelo”, um exemplo. Mas aí… ele… não fez nada, não fez nenhuma
mediação, não conversou com o filho, mas todos os dias pergunta sobre esse lanche
[a professora expressou o diálogo que teve com um dos responsáveis de uma das
crianças]. Então, isso é algo que me chama atenção, nas famílias e na escola [...] se a
gente puder proporcionar e mostrar as crianças, que o mundo é diverso, e, que todos
nós temos direito de viver nesse mundo... eu, acho que isso contribui muito para
formação deles, formação de valor. A família carrega muita coisa, né? Carrega os
principais valores, mas a escola também, quando passa a dizer que a gente tem de
83
respeitar… que respeito é esse? Têm que vivenciar o respeito. Aí, as brincadeiras, as
histórias, as interações, tudo isso ajuda a construir essa noção de respeito.
Assim, em alguns momentos da vida cotidiana, é importante fazer mediações no
sentido de contribuir para que as crianças, desde pequenas e em contato com outras crianças,
percebam as diferenças entre as pessoas. Quiçá, com exemplos, atitudes e práticas positivas,
possamos minimizar as inúmeras expressões de preconceito e racismo. Os desafios,
contradições, aceitações ou não aceitações surgem a partir das questões étnico-raciais e de
outras ordens, e as relações se estabelecem justamente no convívio, entre os pares que se
reconhecem como iguais – mas também, entre aqueles que se reconhecem diferentes entre si.
No entanto, em uma perspectiva ocidental, algumas sociedades, em alguns períodos
históricos, não consideravam as crianças como sujeitos de direitos. A partir das contribuições
do historiador francês Philipe Ariès (ARIÈS, 2012), verificamos que, por um longo período,
muitas crianças conviviam e vivenciavam atividades com adultos, e a educação delas era de
responsabilidade das famílias. Essas situações, dentre outras, poderiam ter sido abordadas de
uma maneira salutar e positiva; porém, com base nas considerações do supracitado autor, refleti
em outra direção:
[…] no período compreendido entre os séculos XV e XIX, havia certo menosprezo
em reconhecer a capacidade das crianças. Havia o uso de punições corporais bem
como a mistura de idades e certa aproximação da criança de um sentimento da
responsabilidade em ser adulto. As instituições, muitas vezes, também não se
preocupavam com o significado da formação e sensibilização do humano com base
em sua educação, e sim com o sentido da apropriação e aprendizado técnico […]. A
partir do fim da Idade Média, instaurou-se, na sociedade, uma nova forma de
organização de princípios de comando e de autoritarismo hierárquico ou com o
estabelecimento do absolutismo monárquico. Isso deflagrou, no ensino, uma forma
disciplinar rigorosa que, dentre algumas características, encontrou-se o amplo uso de
castigos corporais como forma de correção e punição. Portanto, a expressão corporal,
nessa época, nem sequer era compreendida como forma sadia, natural espontânea de
manifestação. Não havia aberturas estratégicas para a criança desenvolver seu
potencial criativo, visto que os alunos ou pré-alunos, se assim é possível dizer,
deveriam apenas atender às regras e condutas impostas (BRAGA, 2017, p. 39-41).
Nesse contexto, as crianças, além de sofrerem punições corporais, eram consideradas
como um “adulto em miniatura” ou uma “folha em branco”, e iriam apenas reproduzir o que os
adultos lhes impusessem. Eram menosprezadas em suas capacidades, não eram consideradas
como sujeitos sociais, não eram ouvidas e nem respeitadas.
Nessa mesma direção, convém dialogar também com o filósofo francês Michel
Foucault, que, em sua obra Vigiar e punir: Nascimento da prisão, publicada originalmente em
1975, reflete sobre o período compreendido entre os séculos XIV e XVI, e se refere ao conceito
84
de “corpos dóceis” reproduzido no âmbito de muitas instituições de ensino (FOUCAULT,
1999).
O autor menciona a escola como instituição de confinamento, associando-a à imagem
de prisão, fábrica e quartel, que assume uma estratégia de poder e visa a imprimir um
comportamento disciplinado e docilizado dos corpos. Inclusive, o autor compara a metodologia
educacional dos alunos nas instituições de ensino ao treinamento de regimentos para soldados,
destacando o conceito de corpos dóceis: “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode
ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado […]” (FOUCAULT, 1999, p. 118).
Nesse sentido, Foucault explicita, em relação aos processos educacionais, um sistema
demasiadamente rígido, com regras de funcionamento a serem seguidas. Havia o intuito de
enquadrar o aluno e o seu corpo, limitando-os a reproduções de condutas, disciplinando-os:
O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo
humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco
aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o
torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma
política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada
de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra
numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe […]
(FOUCAULT, 1999, p. 119).
Essas visões ocidentais, ainda existentes em algumas sociedades, são inexistentes
para algumas sabedorias afro-referenciadas em contextos africanos e afro-brasileiros, dentre
outros. Portanto, nessas outras perspectivas, o corpo tem centralidade, integra-se à natureza, à
mente, ao espírito, e se coaduna com o todo, com o seu entorno:
Não se trata mais de falar pelo corpo, mas proporcionar situações para que o próprio
corpo fale por si, alimentado pela cultura vivida na carne. Esse corpo-templo que se
(re) significa na e para a resistência, acaba por estar conectado com a realidade vivida
na coletividade, em seu entorno e, desta forma, é um corpo que está mergulhado na
linguagem e nas informações (OLIVEIRA, 2019, no prelo).
Para me aproximar de alguns pensamentos africanos sobre crianças ou infâncias, é
importante, primeiramente, nos atentarmos ao que o autor Wanderson Flor do Nascimento
(NASCIMENTO, 2012) desmitifica sobre o imaginário social: a existência de apenas uma
África, como o processo colonizador no Brasil construiu. Vale ressaltar que a África, como
continente imenso territorialmente, é diversa, rica em etnias, costumes, culturas, saberes e
modos de pensar e habitar o mundo.
Nessa linha de pensamento, existem diversos modos de pensar ou de se conectar com
a África: diversas cosmovisões africanas. Assim sendo, estou trazendo esta palavra,
“cosmovisão”, e outras correlatas, com o intuito de aproximar-me de um modo de pensar e
85
habitar o mundo diferente do modelo ocidental, bem como do colonizador. Diante da infinidade
de horizontes do continente africano, nesta pesquisa destaco o universo das deusas e deuses
orixás da nação/etnia Iorubá:
Termos étnicos como nagôs, jejes, angolas, congos, fulas, representavam identidades
criadas pelo tráfico de escravos, onde cada termo continha um leque de nações
escravizadas de cada região. Os Yorùbá (como se escreve na ortografia Iorubá) são
um dos maiores grupos étnicos na África Ocidental. A maioria dos Iorubás fala a
língua Yoruba (èdè iorubá) […]. Nagô é o nome que se dá ao iorubano ou a todo
negro da Costa dos Escravos que falava ou entendia o Iorubá (BRITO, 2010, p. 1).
A partir das contribuições de Nascimento (2012, 2018) e Oliveira (2009, 2019), pode-
se destacar que as formas de concepção sobre crianças ou infâncias, para algumas cosmovisões
africanas, seguem outras lógicas, distintas da cultura ocidental.
Destacarei, a partir de um breve recorte, algumas perspectivas com as quais busco
dialogar nesta dissertação; e, apesar de não ter vivenciado este processo com crianças africanas
iorubanas, procuro aproximar-me de algumas concepções dessa nação, através de pesquisa
bibliográfica.
Ressalto que esta ainda é uma tentativa de acercamento; neste curto período de
mestrado, o tempo da lógica ocidental não me permitiu um aprofundamento maior. Creio, ainda
assim, serem importantes esses destaques, como expressão de respeito e busca por maior
aproximação com as perspectivas aqui propostas.
Assim sendo, o tempo afro-referenciado é afetado pela ancestralidade que rege toda a
comunidade:
“A criança é recebida como uma espécie de mensageira da ancestralidade, de modo
que a infância é um signo de continuidade dinâmica, que traz em si toda a potência da
memória ancestral, que deverá ser atualizada na formação” […], de modo que toda
essa potência encarna o caráter dinâmico da tradição. A infância não é, portanto, uma
condenação à repetição do mesmo ou a mera conformação de algo já previsto, mas a
argamassa tradicional através da qual toda a possibilidade de transformação se
instaura. A infância é, assim, a marca de um recomeço que, partindo do já dado na
história, na cultura e nos valores, abre a possibilidade de que outras experiências se
instaurem. A infância, para os bantos e iorubas, recusa a noção de propriedade ou
patria potestas. As crianças são filhas de uma grande família, a comunidade, e trazem
consigo toda a ancestralidade desta (NASCIMENTO, 2012, p. 47).
Os aprendizados, conhecimentos, saberes e vivências partilhados entre os mais velhos
e os mais novos são retroalimentados a cada nova geração. De certa maneira, esse tempo, que
não segue uma lógica ocidental, pode se apresentar em uma ordem não-sequencial; um tempo
em que as experiências são validadas pela qualidade, e não pela quantidade:
86
O tempo com o qual a criança está conectada aqui é expresso nessa repetição do
dinâmico, do instável, do incerto, com um compromisso com esse passado que a
todos rege. Não há aqui um eterno retorno do mesmo, mas um eterno retorno da
pirueta, que tem sempre o compromisso com o chão, que vem antes [...]
(NASCIMENTO, 2018, p. 589).
[...] a criança para o pensamento tradicional africano é a marca da continuidade,
uma expressão da ancestralidade. Ela nem é nova e nem começa. Ela segue. Mas
não segue monotonamente. Ela segue em inversões, deslocamentos, fissuras.
Inclusive da própria temporalidade. Um interessante exemplo disso, aparece no
pensamento iorubá. Na figura dos gêmeos, nos partos naturais, uma criança nasce
antes da outra. A primeiro a nascer, é chamada Taiwo – que significa quem vem
experimentar o gosto do mundo – e a segunda, Kehinde – quem chega depois da
outra […]. A criança que nasce primeiro irá verificar o mundo, e quando der o sinal
de que está tudo bem, através de seu choro, Kehindé chegará. E já chegará com os
privilégios que sua senioridade sobre Taiwo lhe garante. Essa relação com a
ancestralidade nos apresenta uma criança marcada pela velhice da história. Quem
chega depois é sempre mais velho, na medida em que traz as bagagens acumuladas
por quem lhe antecedeu, adicionadas à própria experiência de seu nascimento [...]
(NASCIMENTO, 2018, p. 592).
O corpo em consonância com a sacralidade possui experiências que o atravessam
através das danças, em contato e união com a natureza, por exemplo. É um corpo, inclusive,
que pode narrar histórias através de mitos e afirmar a conexão com a sua ancestralidade, ao
enaltecer o empoderamento, a beleza e a realeza negra, como se pode observar em Oxum e seu
mistério (OLIVEIRA, 2009):
O menino Ogum, mesmo criança, trabalhava muito e tinha a responsabilidade de
construir objetos de ferro: utensílios e ferramentas agrícolas em geral. Ele era o melhor
e nem homens adultos conseguiam fazer o que o menino Ogum conseguia. Mas, um
dia, Ogum se cansou de tudo aquilo, parou de produzir tais objetos e decidiu a ir morar
sozinho, no meio da floresta [...]. Quando a princesa Oxum avistou a cabana de Ogum,
fingindo não ter visto nada, começou a dançar com a graça das águas calmas,
delicada... suave... num leve vaivém. Dos movimentos que seu corpinho de princesa
fazia, um perfume delicioso exalava e este perfume chegou à cabana de Ogum.
Conforme Oxum dançava para Ogum, que já estava escondido entre os arbustos, cada
vez mais ela se aproximava dele. Quando Oxum estava bem pertinho dele, já
hipnotizado por tanta graça e beleza, viu uma colmeia de abelhas […]. As abelhas,
encantadas com a beleza de Oxum e com a delicadeza com que havia feito o pedido,
abriram uma fenda na colmeia e o mel começou a escorrer nas mãos de Oxum [...]
(OLIVEIRA, 2009, p. 18-22).
Também se evidencia uma ancestralidade vinculada a uma energia espiritual infantil
que nos acompanha. Nesse sentido, podemos vivenciar relações e aprendizados com as
infâncias que nos cercam, ou ressignificar as relações com a nossa própria infância, outrora
experienciada:
Sobre a infância importante exemplificar: no candomblé, ela é cultuada durante a vida
inteira de uma pessoa, pois mesmo ao envelhecer nesse espaço é possível preservar,
87
dentro de si, a energia das crianças, dos erês, “dando erê”, isto é, incorporando a
essência ancestral infantil. As crianças, portanto, vivenciam a infância não somente
nos corpos infantis, mas desde cedo compreendem que a infância pode estar presente
também em corpos não infantis e tem assim, a possibilidade de compreenderem que
os corpos são perecíveis e fenecem, mas a infância não: ela é um traço da
personalidade que deve ser cultivado, para manter-se ativo (OLIVEIRA, 2019, no
prelo).
[…] mais do que uma recusa da infância, como se alguém que se educasse ou se
iniciasse “deixasse” de ser criança, se estabelecem outras relações com ela. Ela retoma
o lugar fundamental da ancestralidade, que estará sempre presente, embora não mais
da mesma forma que experimentada antes. Nunca deixamos de ser o que somos,
mesmo que nos tornemos outra coisa […]. As crianças bantos e iorubas são
completamente dotadas de passado e memória (NASCIMENTO, 2012, p. 48).
A partir dessas percepções, pode-se compreender que crianças instauram um saber a
partir de si e de suas experiências, porque estão fortemente conectadas com suas organicidades,
intuições, sinceridades e lógicas próprias de estar e habitar no mundo. Lógicas estas movidas
por um saber ancestral e coletivo. Nesse sentido, as formas de ver e perceber das crianças diante
do mundo experienciado, por vezes, são permeadas por saberes compartilhados, por imaginação
e criatividade, passíveis de uma realidade vivida.
É relevante situar os aportes apresentados por Merleau-Ponty (2006), que também se
distancia de percepções apontadas por Ariès (2012) a respeito de algumas concepções
ocidentais sobre crianças. Merleau-Ponty (2006) destaca que a consciência infantil das crianças
se difere da consciência do adulto:
[…] se entende que a consciência infantil é diferente da consciência do adulto não
apenas em termos de conteúdo mas também de organização. Ao contrário do que se
pensava antigamente, a criança não é um “adulto em miniatura”, com uma consciência
semelhante à do adulto, porém inacabada, imperfeita – essa idéia é puramente
negativa. A criança possui outro equilíbrio, e é preciso tratar a consciência infantil
como um fenômeno positivo (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 166).
São outras as lógicas movidas pelas crianças, diferentes das dos adultos. Merleau-
Ponty (2006) questiona inclusive a possível “representação do mundo” feita pelas crianças. Na
verdade, esse pensamento reduz e engessa a experiência das crianças, como se elas precisassem
“falsear” a realidade ou produzir uma espécie de encenação das situações. Partindo das
problematizações propostas por Merleau-Ponty (2006), compreende-se que as crianças
vivenciam o mundo, integralizando-o às situações incorporadas em seu cotidiano.
De maneira figurativa, é como se as crianças colassem figuras em cima de um papel
em branco (o que pode simbolizar o encontro com a experiência). A colagem adere-se ao
“vazio” ou ao “nada” anteriormente evidenciado no papel (o que pode simbolizar a experiência
sendo vivenciada). Depois, há a criação de formas emolduradas, repletas de vida, imaginação e
88
criatividade (o que pode simbolizar a experiência concretizada, através dos corpos/mundos-
vividos das crianças). Elas são ao mesmo tempo aprendizes e mestras de suas próprias
experiências, e instauram em si saberes particulares às suas expressões e culturas,
compartilhadas também com os mais velhos.
A partir das reflexões de Machado (2010a), que se referenciam nas contribuições de
Merleau-Ponty (2006), compreende-se que crianças e adultos convivem em um mesmo mundo,
assim como em algumas cosmovisões africanas – quando, por exemplo, crianças e adultos
experienciam juntos as partilhas em suas comunidades. A autora destaca que “[…] portanto, o
filósofo não trabalha em termos de ‘mundo infantil’ e de ‘mundo adulto’, mas, antes, um mesmo
mundo percebido de maneiras diversas” (MACHADO, 2010a, p. 58).
Particularmente, esse pensamento descortinou minha maneira de refletir sobre as
crianças, pois, mesmo com um olhar atento às suas formas de expressão, até então eu
comungava com o pensamento de um “mundo infantil” que se diferenciava do “mundo adulto”.
Em minha ingenuidade, ou imaturidade, era como se eu acreditasse que as crianças vivessem
dentro de uma redoma, de um mundo colorido e fossem mais inocentes ou pueris.
Assim, posso redefinir minha percepção e relembrar que, em minhas experiências com
as crianças, elas demonstram curiosidades, inquietações e desafios como nós, adultos, também
vivenciamos. Por exemplo, elas convivem e vivenciam a diversidade étnica, cultural, religiosa,
sexual e social, dentre outras especificidades, e se relacionam com as mesmas em seus
cotidianos. Também podem reproduzir algumas formas de pensamento e atitudes internalizadas
a partir da convivência com adultos, como preconceito e racismo.
Mesmo que compartilhem um mesmo mundo com os adultos, ainda assim, crianças
expressam formas específicas de pensamento, de se fazerem presentes e de vivenciarem o aqui
e o agora concretamente, sinceramente e criticamente, em que uma realidade próxima do
onírico e do non sense se evidencia. Ou seja, elas expressam uma realidade vivenciada a partir
de símbolos e imagens que podem parecer ilógicos ou sem sentido para a percepção por vezes
fechada ou racionalizada dos adultos, mas que, para o pensamento polimorfo das crianças, não
é. Esse pensamento é híbrido, aberto e poroso, e se apresenta de diversas formas (MACHADO,
2010a).
Especialmente em áreas que propiciam uma riqueza de possibilidades, como as artes,
a perspectiva do polimorfismo das crianças nos desafia, enquanto educadoras(es), a estarmos
atentos a algumas questões. Por exemplo, à questão de que crianças demonstram uma
adaptabilidade específica diante das situações, e que muitas vezes essa adaptabilidade não é
89
compreendida por nós, adultas(os); como se as crianças estivessem fazendo “birra”, não
acompanhando o exercício ou o ritmo do grupo.
Ao partilharem o mesmo mundo com adultas(os), crianças também vivenciam regras,
limites, desafios, desejos e frustrações – porém, em um espaço que pode propiciar suas
autonomias e processos criativos. Penso ser mais importante intuir e perceber que, após
apresentadas as regras de uma brincadeira, por exemplo, vale a pena abrir mão da insistência
para que brinquem como nós, educadoras(es) pensamos ou idealizamos. Nesse sentido,
expandimos espaços para que as formas de brincar das crianças se expressem de maneira natural
e verdadeira, e para que as possíveis mudanças e múltiplas possibilidades potencializem seus
fluxos criativos.
Como exemplo, quero sublinhar aqui que fui surpreendida na 2ª oficina e pude
aprender com uma criança a importância de escutá-la e validar o seu desejo. Na situação, após
contar uma história com um livro de pano, quando apresentei características de algumas deusas
e deuses orixás, o menino Oceano Tubarão Tigre me pediu para que eu lhe mostrasse o livro.
Eu disse que lhe mostraria no final e lhe convidei a brincar. Ele não entrou inicialmente na
brincadeira; insisti duas vezes e ele me disse que não queria brincar porque queria ver se
encontrava outros deuses no livro. Não insisti mais, deixando-o à vontade, pois percebi que o
tema da história lhe suscitara curiosidade e interesse. Também notei que ele oscilou em alguns
momentos entre se concentrar no livro e entrar para a brincadeira.
Seria então a atitude do menino uma maneira de estabelecer relações mútuas com a
história contada anteriormente e a brincadeira subsequente? Assim nos dimensiona a autora,
“[…] é parte do próprio código da brincadeira ser mutante. Isso faz do jogo corporal e do brincar
de faz de conta atividades relacionadas à linguagem do teatro das mais interessantes e
desafiadoras” (MACHADO, 2010a, p. 87).
No decorrer da trajetória que trilhei com as crianças participantes, e ao ter me
fundamentado também nos conceitos de Merleau-Ponty (1999), foi possível perceber a
dimensão do corpo como um despertar para conhecer e acessar o mundo, de entrar em contato
com ele a partir de um corpo-próprio. Corpo este que é a maneira como nos colocamos e
interagimos com o mundo, um mundo que está intimamente ligado com a nossa experiência.
Evidencia-se não um corpo apartado do mundo ou vice-versa, mas sim um corpo que
abraça o mundo em si mesmo e o mundo que abraça o corpo em sua experienciação. Corpo e
mundo refletem um ao outro, interligados e íntimos, como em um diálogo e uma dança de pares,
corpo e mundo vividos.
90
Outra perspectiva que trago de meu livro (BRAGA, 2017) é a relação
experiência/sentido proposta pelo professor de Filosofia da Educação, da Universidade de
Barcelona, Jorge Larrosa (LARROSA, 2015), relação esta que se configura como um campo
fecundo para vivências instigantes. Segundo o autor, em sua etimologia, a palavra “experiência”
significa “travessia” e “perigo”, sendo necessário dar-se tempo/espaço para que ela ocorra e,
assim, para que nos deixemos ser afetados por ela. O sentido é enfocado a partir do sujeito da
experiência, considerando a abertura para a sua transformação e para o desconhecido: “É
experiência aquilo que ‘nos passa’, ou que nos toca, ou que nos acontece, e, ao nos passar, nos
forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria
transformação (LARROSA, 2015, p. 28).
Larrosa (2015) ainda nos aponta uma maneira de nos relacionarmos com a experiência;
uma maneira que cultiva a delicadeza e o cuidado, bem mais distante de modelos ocidentais e
bem mais próxima de perspectivas afro-referenciadas:
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto
de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar
para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais
devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar- se
nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender
o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos,
falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte
do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA, 2015, p.
25).
O “dar-se tempo e espaço” proposto por Larrosa (2015) parece fazer referência a
marcadores temporais que, através de uma ótica africana, revelam forte vinculação com o
passado, como refletido por Nascimento (2012, 2018) e Oliveira (2019). Não é um passado
construído à base de um muro de lamentações, arrependimentos ou saudosismos, mas sim de
um tempo circular que nos ajuda a entender quem somos e o nosso presente, ancorado no
passado. Ele nos permite abrir espaços para rememorar relações afetivas construídas através de
vivências com os mais velhos. Figuras estas que nos remetem às avós e aos avôs, aos sábios e
aos griots – africanos mantenedores da cultura, mediadores sociais, artistas que desempenham
diversas funções e têm várias habilidades, além de serem exímios contadores de histórias.
O ator, diretor e doutor em teatro pela UNIRIO, Isaac Bernat (BERNAT, 2013), revela
o encontro pessoal e profissional que estabeleceu durante anos com o renomado griot Sotigui
Kouyaté. Em sua pesquisa, o autor desenvolve a arte de contar histórias a partir de uma
perspectiva africana e dos ensinamentos de seu mestre, que influenciaram sua prática como
91
ator. Assim, ele constrói referências que subsidiam práticas em termos de processo/criação
artística com base nesses conhecimentos, saberes e vivências.
A partir das reflexões de Bernat (2013), pode-se compreender que a palavra griot tem
origem francesa, a partir de processos de colonização estabelecidos por este país no continente
africano. Apesar dessa figura ter ficado popularmente conhecida por este nome, a depender da
região da África, ela pode ser conhecida de outra forma – como djeli, para o povo Maninca, de
onde vem a família de Sotigui, os Kouyaté.
Os griots são chamados de djeli, que significa sangue em maninca. Uma das
explicações para esta atribuição é que da mesma forma como o sangue circula pelo
corpo humano, os griots circulam pelo corpo da sociedade podendo curá-lo ou deixa-
lo doente, conforme atenuem ou aumentem os conflitos através da sua palavra
(BERNAT, 2013, p. 60).
Nesse contexto, os griots, através de conhecimentos ancestrais e hereditários, exercem
uma importante função sociocultural: questionam e mediam conflitos, preservam tradições e
costumes e podem atuar como conselheiros de reis, tendo a possibilidade de ir e vir pelos lugares
através das histórias, chegando até as mais diversas pessoas:
Desde tempos imemoriais os Kouyaté estão a serviço dos príncipes Keita do
Mandinga: nós somos os sacos de palavras, nós somos os sacos que guardam os
segredos muitas vezes seculares. A arte de falar não tem segredo para nós: sem nós os
nomes dos reis cairiam no esquecimento, nós somos a memória dos homens, pela
palavra damos vida aos fatos e gestos dos reis perante as novas gerações (NIANE,
1960, p. 9 apud BERNAT, 2013, p. 50-51).
Ao consultar a publicação História e Cultura africana e afro-brasileira na Educação
Infantil (BRASIL, 2014), constatei que ela explicita metodologias e atividades afro-
referenciadas, em Projeto: Espaço Griô e Projeto: Capoeira. Os referenciais teórico-práticos
destacam a importância social e cultural dos griots, e como eles são tratados em contextos
africanos:
Os griôs são bibliotecas vivas da tradição oral de vários povos africanos. No
continente africano, um griô nasce griô, seu ofício não é escolhido, relaciona-se a uma
herança e à sua origem. Quando nasce um griô, a ele são atribuídos direitos e deveres,
ele é responsável por guardar e transmitir a história do seu povo. Quando um griô
morre, diz-se que uma biblioteca se foi, porque ele carrega consigo a sabedoria e as
tradições desse povo. É por meio da tradição oral que o griô transmite às novas
gerações o que sabe, especialmente às crianças. Existem mulheres e homens que são
griôs e griotes (BRASIL, 2014, p. 33).
As sábias e sábios, avós e avôs, à luz do luar, pegam na mão de suas netas e netos,
amigos, familiares e outras pessoas da comunidade; os convidam a escutarem suas histórias já
92
vivenciadas e as histórias dos seus antepassados, que auxiliam a tecer as histórias do hoje.
Todos, inclusive as crianças, são regidos por essa ancestralidade.
Nesse sentido, a senioridade ancestral não pode e nem deve ser atropelada, pois se
assim o for, mata-se uma das particularidades da própria expressão da experiência, que esses
povos tanto prezam: suas identidades vestidas com tecidos negros, que evidenciam memórias
calçadas no chão da terra em que outros outrora pisaram. Nesse chão, repleto de pisadas e
vestígios, ao som do rufar dos tambores, os sentidos despertam-se e afloram-se. Assim, o corpo
se abre para experienciar e se transformar com a música, o ritmo, os gestos, as narrativas orais
(histórias) e as danças.
Portanto, trata-se de um tempo e um espaço que preservam a essência da experiência,
visto que ela “cultiva a arte do encontro” e “nos passa, nos toca e nos acontece”
verdadeiramente, assim como reflete Larrosa (2015). Ela se instaura e se incorpora ao ser, que
vive e revive tudo o que lhe passou e o que lhe passa. A experiência toca intimamente as
memórias, afagando-as no colo dos sábios griots, ou dos avôs e das avós, assim como a minha
avó contava histórias para mim quando eu era pequena, para que eu pudesse dormir e sonhar.
Com suas sabedorias, as mais velhas e os mais velhos acarinham crianças, jovens e adultos,
contando e revivendo as histórias afro-afetivas e compartilhando experiências junto a toda a
comunidade. No céu, a lua cheia e as estrelas brilham intensamente, sendo a natureza a
testemunha de toda essa afro-poética.
3.2 TRAVESSIAS ENTRE CORPOS BRINCANTES E CORPOS-POROSOS
Para as trilhas afro-referenciadas que orientaram as vivências no âmbito desta
pesquisa, duas importantes perspectivas transitaram e relacionaram-se: a experienciação dos
corpos brincantes e dos corpos-porosos das crianças.
Dessa forma, é importante identificar e referenciar que a acepção do conceito de corpo
brincante é vinculada à cultura popular. Nesse sentido, é também relacionada às várias
manifestações populares (como folguedos, brincadeiras, danças etc.) e aos seus brincantes,
aqueles que brincam com o próprio corpo através de suas danças e dramatizações.
Cabe dialogar aqui com a atriz, arte-educadora e dançarina Juliana Bittencourt
Manhães (MANHÃES, 2010), que analisa o conceito de corpo brincante sob a ótica da cultura
popular, na articulação entre jogo e brincadeira: “É um corpo que se move na espontaneidade
da brincadeira […]. Os brincantes são aqueles que brincam, se divertem […]” (p. 1). A autora
93
evidencia que os brincantes vivenciam as ações lúdicas primeiro em torno de si, para depois se
comunicarem e se expressarem aos outros e para o mundo. Portanto,
[…] falamos de um corpo que se comunica a partir da sua gestualidade, e vive os seus
movimentos a partir da sua relação pessoal com a brincadeira, sua memória afetiva e
sua disponibilidade. Seus movimentos são elaborados a partir da repetição, ou seja, a
força de sua sustentação, enquanto brincadeira, é a resistência de um comportamento
restaurado que, através da reiteração, se renova, criando variadas nuances, integrando
divertimento e jogo, transformados em dança (MANHÃES, 2010, p. 3).
Entretanto, os corpos brincantes integrantes das culturas populares são corpos que
resistem às opressões e visões pejorativas construídas em torno de si. Se o corpo já é
estigmatizado social e culturalmente, o corpo que se diverte ao brincar e dançar, que sente
alegria e prazer, muitas vezes é rebaixado a um nível não condizente de fato com a potência
que ele é. Nem de longe se reconhece e se valoriza as suas riquezas, assim como ocorreu com
as culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas, entre outras. Com isso, é possível convocar
as reflexões de Alves (2019a):
As chamadas culturas populares são na verdade culturas repletas de sentidos e
significados, de saberes e fazeres, de racionalidades/sensibilidades próprias e,
inclusive, que possuem relações de poder específicas de cada lugar, de cada povo, de
cada contexto vivido e não era simplesmente incorporá-las de modo romântico, mas
antes de tudo não negligenciá-las, inclusive no espaço acadêmico e das políticas
públicas (ALVES, 2019a, no prelo).
A autora ainda explicita as memórias registradas nos corpos sociais e culturais:
A história vivida pelo corpo está inscrita nele mesmo, com seus registros negativos e
positivos que dão o tom e a melodia da auto-estima, do respeito, da tolerância, da
aceitação de si mesmo e do outro. O que de fato precisamos é entender um pouco mais
dessa sinfonia que rege nossa vida cotidiana, desvelando suas disritmias, suas
melodias, seus timbres, suas letras e canções (ALVES, 2006, p. 81).
O músico multi-instrumentista, cantor, dançarino e ator pernambucano, Antonio
Nóbrega, que possui 48 anos de carreira e pesquisas relacionadas às músicas e danças populares
e às manifestações de culturas brincantes, questiona sobre o lugar do corpo em nossa sociedade,
em entrevista concedida à revista Comunicação e Educação:
Em primeiro lugar, o corpo sempre foi estigmatizado. Nossa herança, principalmente
judaico-cristã, sempre estigmatizou o corpo. Isso já deu à cultura corporal um atraso
em relação às demais artes. O corpo é muito mais relacionado, por exemplo, com a
entidade do mal do que a música; veja a expressão: “Está com o diabo no corpo!”. O
corpo que faz determinados trejeitos é quase condenado, visto com desdém. O corpo
lascivo presente nas nossas danças negras é sempre visto com muito cuidado. Os
batuques raramente chegavam à casa grande, por exemplo (NÓBREGA, 2009, p. 88).
94
Porém, o ser que brinca é teimoso por natureza, ele “deita e rola”, “pinta e borda”: é a
antítese do corpo dócil explicitado por Foucault (1999). Às vezes previsível, é um corpo que
pode seguir uma métrica, um compasso, uma base de passos, mas às vezes imprevisível,
surpreende ao criar, no ato de brincar e jogar, que também pode ser um ato de improvisar. Ainda
assim, só de fato aquele que respeita e se conecta com as suas raízes consegue criar e recriar da
maneira mais fluida, intensa e instigante possível.
A atriz, dançarina e professora Rosane Almeida fundou, juntamente com Antonio
Nóbrega, seu marido, o Instituto Brincante, “espaço que há mais de duas décadas se dedica a
estudar e disseminar a cultura popular brasileira […]” (GARCIA, 2018, on-line). Em entrevista
concedida a Cecília Garcia para o site Portal Aprendiz, a artista explicita os sentidos que são
atribuídos pelos próprios brincantes, a partir de seus modos de ser e de suas atividades, bem
como os compartilhamentos de seus saberes:
Os artistas populares se autodenominam brincantes porque brincam uma
“brincadeira” ou “folguedo” quando performam dentro de manifestações culturais.
Suas origens remontam a brincadeiras que foram reivindicadas com muita convicção
em cenários de infrações da dignidade humana, como processos coloniais de
escravidão e genocídio. Ou seja, conclamadas por pessoas que não podiam e não
distinguiam seu fazer artístico de sua vida áspera. Quando alguém se considera
brincante, ele está fazendo uma escolha: quer dar o melhor de si todo tempo. Ele
performa rituais onde concretiza o ideal de uma beleza interior que altera a visão que
os brasileiros mantêm de seu próprio povo, exclamando: “Não somos um povo cinza,
somos coloridos, não somos analfabetos, temos potência, somos reis e rainhas!” […].
O objetivo final de dançar ou encenar um personagem fantástico no cavalo-marinho
deve ser a manutenção de uma integridade psíquica e de um ganho emocional. A
perseguição de uma inteireza do ser (ALMEIDA, 2018, on-line).
A artista situa historicamente o contexto das brincadeiras em períodos coloniais e
escravocratas:
[…] quando as brincadeiras começaram a ser semeadas, o tempo era de caos: você
tinha negros que falavam línguas diferentes a dividirem estruturas únicas, índios
tratados como animais e portugueses que vinham povoar o país como punição por
delitos em sua terra natal. Foram justamente esses encontros forçosos que fizeram
com que nossas festas se desenvolvessem de maneira rica, pois as culturas que as
criaram tinham na memória elementos muito bem estruturados. Repare nos
primórdios do cavalo-marinho, brincadeira tradicional da zona da mata
pernambucana. Quando esses povos se encontraram, todos comemoravam de formas
particulares o solstício de verão. Para se comunicar festivamente, essas populações
trocaram memórias de alegria: os negros trouxeram a pulsão de sua memória rítmica.
O índio, por sua vez, levou uma lembrança de desenhos espaciais, ocupando terrenos
em roda. E o europeu fechou o folguedo com a estrutura melódica (ALMEIDA, 2018,
on-line).
Nesse sentido, as brincadeiras que possibilitam aos sujeitos experienciarem seus
corpos evidenciam memórias e identidades, pautadas na arte e na cultura, que ressignificam o
ser na busca do seu melhor – uma viajem em torno de si e em diálogo com a sua realidade.
95
A arte e a cultura popular propõem um chão de desafios para nos tornarmos indivíduos
melhores. Na medida em que você toca, dança ou canta, você se realiza em estruturas
que se refletem em todos os aspectos de sua vida. O cantar te coloca diante de palavras
que proporcionam um discurso melhor, orientando o seu falar. O dançar te coloca de
maneira orgânica de encontro com o outro e o território ocupado. E quando você
menos percebe, você está brincando (ALMEIDA, 2018, on-line).
Convém revisitar Alves (2006), que reflete a centralidade do corpo nas culturas afro-
brasileiras, corpo este amalgamado de sentidos e experiências:
A presença do corpo como foco central de muitas manifestações culturais parece ser
ainda mais evidente quando direcionamos nosso olhar para expressões da cultura afro-
brasileira. Nelas é marcante a presença de um corpo que brinca e se diverte, envolve-
se com aspectos místicos, religiosos, étnicos e de resistência. São os Maracatus, as
rodas de Capoeira, os Sambas de Roda, os Tambores de Crioula etc. (ALVES, 2006,
p. 18).
Esses corpos brincam e se retroalimentam de marcadores afro-referenciados,
desvelando as histórias ancestrais que residem nas brincadeiras simbólicas e nos divertimentos
que expressam o pertencimento negro.
A partir de minha pesquisa monográfica, dialogando com esses autores nesta
dissertação, e ao trabalhar no âmbito da arte e da Educação Infantil, contextualizo o conceito
de corpo brincante para esta pesquisa. Reflito que as crianças, ao manifestarem suas lógicas e
seus estados de criações através de suas experiências, podem expressar corpos que são
brincantes no próprio ato de jogar e brincar. Nesse sentido, as crianças, agentes desbravadoras
de suas sensações e criações, experienciam e brincam com seu próprio corpo, adaptando-se ao
fluxo das atividades. Assim, elas revisitam seus próprios desejos e lógicas, fazendo emergir
seus corpos brincantes ao vivenciarem desafios diante do processo de fruição em arte (BRAGA,
2017).
Ao propor a possibilidade de que crianças se sintam à vontade para experienciar suas
corporeidades, e para me aproximar disso de maneira mais brincante, poetizo a ideia de um
corpo-casa:
A menina e o seu corpinho-casinha
Logo pela manhã, quando o sol sorriu para ela
A menina acordou cedinho e logo se espreguiçou
Ela se esparramou todinha da cabeça aos pés
Sua caminha era ela mesma, às vezes bem preguiçosa
Ela queria ficar um pouquinho mais
Mas suas amiguinhas já corriam em frente à sua varanda
Varanda que é o desenho dos olhos dela quando abrem ao
espreguiçar
Cheio de remela, de quem muito sonhou
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Remela feliz de um sonho animado de uma criança que
quis… brincar, pois já era a hora “Tic tac”, passa o tempo
Todo o tempo vai brincando, passando, passarinhando
“Vamos voar? Eu tenho asas! Olha aqui!
De um lado para o outro, de um lado para o outro, olha!”
Brincava a menina com uma de suas amiguinhas Dançando com os seus bracinhos feitos de asa ou seriam de ar?
Ela respirava o seu cheiro limpinho e às vezes sujinho
Menina que era a sua casinha, corpinho-casinha
Verde, azul, rosa, roxa, preta, branca, amarela
Assim, multicolorida, da cor que ela queria e pintava
Afinal ela podia ser da cor que quisesse pois na sua
imaginação brincavam muitas cores
De uma decoração viva e alegre
E quando ela abria a portinha principal que era o seu coração
Era tanta luzinha, tanto “abracinho”, tanto “amorzinho”
Que saía e avoava que nem passarinho livre e feliz
Porque no seu corpinho-casinha
Ela não era engaiolada e sim bem soltinha Para livre brincar e girar, dançar e cantar
Se esparramar, sujar, deitar
Porque as estrelinhas já chegaram para brincar com ela
Agora nos seus sonhos, pois já era a hora de “mimi”
Dar descanso para o seu corpinho-casinha
Que de manhãzinha até a noitinha
Muito brincou e se desmanchou
Soprando palavras soltas ao vento
Que sussurravam nos seus ouvidos
Seus sonhos de menina criança
Brincante, aprendiz, que diz, um giz, “Coloriz”, ela mesma, feliz!
(Lia Braga, Natal/RN, julho de 2018)
A necessidade de afirmar a não separação entre mente, corpo e espírito se deu no
contexto de minha pesquisa monográfica, ao perceber, através do diálogo com alguns autores e
de minhas experiências de ensino, que na sociedade ocidental muitas vezes estes aspectos são
vistos de modo fragmentado. Busquei investigar e percebi as crianças como seres integrais, o
que se aproxima também das perspectivas afro-referenciadas que menciono em várias partes
desta dissertação.
Ao caminhar de acordo com essas percepções, as crianças podem expressar-se através
de corporeidades lúdicas, em experimentações individuais e coletivas, emocionais e físicas, ou
seja, de diversas afetações e transformações. E, ao vivenciarem a ludicidade a partir dos seus
próprios corpos, as crianças podem criar, a partir do brincar:
A palavra brincar tem origem latina, vem de vinculum, que quer dizer laço, é derivada
do verbo vincire, que significa prender, seduzir, encantar. Vinculum virou brinco e
originou o verbo brincar […]. A dança, quando compreendida como linguagem,
também é um sistema, uma rede de relações, portanto, de vínculos […]; os vínculos
se processam entre os corpos dos brincantes e dos dançantes […]. As relações entre
as pessoas que brincam e dançam são eminentemente corporais […]. Corpos em
97
relação já formam vínculos, e, ao estabelecerem relações, podem tecer redes
significativas de transformação (MARQUES, 2012, p. 29-30).
As relações estabelecidas por esses vínculos podem constituir pontes para
transformações, expressando corpos brincantes que dançam – corpos estes em estado de
abertura, sensibilidade, flexibilidade, maleabilidade e porosidade. Assim reflito sobre a ideia,
ou composição, de um corpo-poroso, este que propõe um estado diferente daquele corpo muitas
vezes atrelado às culturas ocidentais; este corpo-poroso se difere de um estado de tensão e
prisão.
Cabe dialogar aqui com as contribuições de Herley Medeiros Lins, em sua dissertação
de mestrado em Saúde Pública, cujo título é Corpo Poroso: Passagens Entre Formação em
Saúde e Arte (LINS, 2016). O autor explicita:
O que temos chamado de corpo poroso é uma produção que se dá na imanência da
vida, que extrapola tanto a razão, quanto o binarismo corpo/mente, razão/emoção,
sujeito/objeto, eu/outro, aparência/essência, interior/exterior […]. Sempre coletiva,
ainda quanto individual – cada indivíduo é também habitado e atravessado por
populações, compondo agenciamentos (LINS, 2016, p. 14).
“Poroso” vem de “poros”, o que nos remete aos poros da pele, que expelem suor e
toxinas, auxiliando nossa respiração e nosso bem-estar. Assim, “[...] O poro é descontinuidade
e multiplicidade […]. Trata-se a todo momento de fazer o corpo escoar pelos poros” (LINS,
2016, p. 38). Poros que permitem ao corpo se abrir, sentir e respirar a inteireza da vida: O poro
é abertura, permeabilidade seletiva [...] é multiplicidade […]; o que interessa ao poro é o
movimento – rápido ou lento –, a impermanência. Um corpo poroso está sempre diferindo,
passando, em devir (LINS, 2016, p. 49).
Uma figura de associação interessante é a dos poríferos, que a professora de biologia
Lana Magalhães explica: “Os poríferos, também chamados de esponjas ou espongiários, são
animais invertebrados aquáticos e fixos em um substrato. O nome do grupo deve-se pela
presença de poros pelo corpo” (MAGALHÃES, 2018, on-line). Esses poríferos apresentam
uma gama de formas e cores, diversidade esta que os corpos brincantes em estado de porosidade
também podem apresentar: “os poríferos pertencem ao filo Porifera. Eles possuem as mais
variadas formas, tamanhos e cores […]” (MAGALHÃES, 2018, on-line).
Na própria natureza encontramos a sabedoria desses animais, que filtram (mas não
prendem) e permitem que a água se mova em sua cadência. Água que dá vida, proporcionando
o ato de respirar:
Os poríferos são animais filtradores. Eles promovem uma corrente de água que entra
pelos poros, passa pelo átrio e sai pelo ósculo. Ao entrar, a água fornece oxigênio e
98
ao sair, carrega dióxido de carbono e resíduos. Assim, ocorre a respiração, através das
trocas gasosas por difusão (MAGALHÃES, 2018, on-line).
A proposição de um corpo-poroso pode ser observada em danças de matriz africana
ou afro-brasileiras; elas evidenciam que esses corpos se conectam com a natureza e os seus
ciclos, como reflete Petit (2015) a partir do diálogo com o mestre em capoeira “pavão” e doutor
em Artes, Eusébio Lôbo da Silva:
Na dança negra, o fenômeno respiratório, princípio criador, é simbolizado por
movimentos alternados de contração e de expansão, sem rigidez. O Corpo-Dança
Afroancestral precisa estar suficientemente arejado para promover o caráter de
relaxamento, ou como se diz na capoeira, de “atenção sem tensão” […]. Daí decorre
a fluência, outro princípio dessa dança, em que o corpo se move sempre de modo
predominantemente descontraído. A respiração é base para o jeito descontraído do
corpo se mover, pois, para isso, precisa estar em condição de relaxamento ativo: “[…]
partindo do pressuposto de que o molejo ou a flexibilidade nasce do relaxamento
ativo, que por sua vez, nasce da respiração” […]. O movimento de contração e de
expansão é próprio não somente da nossa respiração, mas também da natureza e do
universo como um todo, o que equivale dizer que a natureza funciona de forma
circular, pelos ciclos diferenciados que se alternam de modo sempre igual e diferente,
pois dentro de certa estabilidade dada pela repetição de fenômenos, ela se apresenta a
todo o momento em movimento, e mesmo quando retorna, não volta igual […]. Ora,
tudo que acontece de modo circular, em contraposição ao quadrado, gera o que Silva
chama de princípio de fluência, algo que vemos nas outras manifestações corporais
afro, ou seja, tudo ocorre com o máximo de naturalidade e de relaxamento, o que não
impede movimentos por vezes bem rápidos, e sobretudo ágeis e imprevisíveis, assim
como acontece com os fenômenos da natureza (PETIT, 2015, p. 99-101).
Esse princípio criador, associado ao fenômeno respiratório e relacionado também aos
ciclos da natureza, expressa uma fluência de movimentos, assim como as águas de Iemanjá.
Esta deusa e rainha do mar possui o poder de criação, como representado na história Iemanjá e
o poder da criação do mundo (OLIVEIRA, 2009):
Iemanjá era muito linda e também muito perfumada, mais conhecida como a Rainha
do Mar. Desde criança, Iemanjá tinha atributos como a beleza, a maternidade, a
tranquilidade, o equilíbrio e a determinação. Adorava enfeitar seus cabelos crespos
com pérolas brilhantes e estrelas do mar. Isto porque o mar era a sua morada. Mas a
princesinha Iemanjá tinha poderes especiais: podia criar, de dentro dela, as estrelas,
as nuvens e os orixás [...] (OLIVEIRA, 2009, p. 24).
Assim sendo, os corpos-porosos são aqueles que, em estado de abertura, podem
respirar e sentir a pulsão da criação. Criação que se instaura na pulsação da brincadeira, no
prazer, no divertimento e na alegria dos corpos brincantes, que assim se constituem, no ato de
jogar e de brincar, dançando, teatralizando, performando ritmos e gingas.
Para possibilitar que crianças possam experienciar atividades lúdicas e artísticas
através desses corpos brincantes em estado de porosidade, muitas vezes é necessário que o
processo ocorra de maneira a preservar a qualidade dessas experienciações: os prazeres, os
99
desafios e os aprendizados a serem gerados. Precisamos permitir que as crianças se apropriem
de seus tempos para que a experiência em si seja vivenciada, sentida, respirada.
Neste sentido, com esta pesquisa procurei respeitar os tempos das crianças e estar
atenta às performances dos seus corpos brincantes, bem como, através da metodologia artística
e lúdica que fora proposta, fazer emergir algumas características e alguns elementos da cultura
africana. Esses corpos brincantes, quando despertos, puderam ampliar seus repertórios
corpóreos-criativos nas dinâmicas e experienciações acerca do universo cultural africano.
Nessa ambiência dialógica, Ligiéro (2011) utiliza importantes conceitos e reflexões,
dentre as quais destaco as performances culturais afro-brasileiras inseridas no conceito de
motrizes culturais. O autor explica que, em se tratando de cultura, considerar uma única matriz
africana refere-se a um processo identitário. Ainda assim, esse processo não reúne as diversas
características relacionadas à formação histórico-social-cultural afro-brasileira. Sobretudo ao
considerar que, com a chegada das diversas etnias/nações africanas ao nosso país, estas, tendo
em vista as tensões e os conflitos existentes, viram-se obrigadas a se reconstituírem em meio à
diversidade. Assim, construíram elos de união e irmandade, enquanto grupos sociais,
ressignificando seus diversos aspectos, tais como o religioso, artístico e outros.
O autor, portanto, considera o conceito de motrizes culturais mais adequado, além de
identificar que a palavra “motriz” pode ser traduzida como “força que produz movimento”
(LIGIÉRO, 2011, p. 111). Esse conceito se conecta a um dos aspectos de algumas cosmovisões
africanas, ao refletir que o corpo está vivo se está em movimento, ao produzir energia e
dinamicidade. Ligiéro (2011) ressalta ainda a importância das dinâmicas culturais:
O conceito de motrizes culturais será empregado para definir um conjunto de
dinâmicas culturais utilizadas na diáspora africana para recuperar comportamentos
ancestrais africanos. A este conjunto chamamos de práticas performativas, e se refere
à combinação de elementos como a dança, o canto, a música, o figurino, o espaço,
entre outros, agrupados em celebrações religiosas em distintas manifestações do
mundo afro-brasileiro (LIGIÉRO, 2011, p. 107).
O autor ainda explicita que “as dinâmicas das motrizes culturais se processam no corpo
do performer como um todo. Nesse sentido, o corpo é seu texto. Nele se corporifica uma
literatura viva, desenvolvida a cada apresentação, refletindo o conhecimento da tradição”
(LIGIÉRO, 2011, p. 110-111). E complementa: “A performance de origem africana, ao mesclar
o jogo (a brincadeira) com o ritual, empresta a toda tradição popular brasileira um tônus e uma
rítmica próprios, criando uma literatura corporal que muitos identificam genericamente como
‘brasileira” (LIGIÉRO, 2011, p. 114).
100
No contexto desta pesquisa, a partir dessas relações, os corpos brincantes permeados
por elementos da cultura africana Iorubá puderam manifestar-se no contexto artístico e lúdico
das oficinas, através de danças e músicas, quer sejam africanas, afro-brasileiras ou criadas por
mim. Pôde ser vivenciado também o divertimento do jogo e da brincadeira, conectados com
elementos simbólicos e míticos expressados através dessas performances.
Alguns elementos relacionados à espiritualidade afro-brasileira, trabalhados do ponto
de vista lúdico e cultural, explicitaram particularidades da compreensão espiritual de algumas
culturas africanas, como da nação Iorubá: a compreensão de que a natureza evoca a
ancestralidade expressada através das deusas e deuses orixás. Nesse sentido, a consciência
ecológica, o respeito à natureza e a essas divindades foram destacados no processo com as
crianças.
No entanto, apesar das características culturais afro-brasileiras estarem presentes em
vários territórios brasileiros há, ainda, um processo de invisibilização, desvalorização e
preconceito, historicamente construídos. O estabelecimento de institucionalidades conquistadas
por todos aqueles que vivenciam, valorizam e respeitam esta ascendência cultural, vem sendo
lentamente conquistado e será contemplado, de forma mais explicita, no próximo tópico.
3.3 A LEI Nº 10.639/03 E AS RODAS AFRO-BRINCANTES: A QUANTAS ANDAM?
Iansã, a menina ventarola, e Xangô, o menino fogo Iansã era uma linda menina negra que adorava dançar como os ventos
Xangô era um valente menino negro que adorava brincar com o fogo
Juntos, ninguém podia com eles
Era só aparecerem que logo os seus amigos comentavam:
“Lá vêm, lá vêm o casal do dendê!”
Dendê? O que é dendê? Dendê é um óleo de origem africana
Que dá um liga e uma junção maravilhosa gostosa e surpreendente E dessa união do dendê
Além de adorarem brincar de manipular dois de seus elementos, o vento e o fogo
FIGURA 15 – ARQUÉTIPO DE ALGUNS ORIXÁS
Fonte: Google Imagens (internet)
101
Iansã e Xangô eram muito atentos as atitudes das pessoas Eles também tinham o dom de mexerem com os raios as tempestades e os trovões
Ou seja, era melhor não contrariar esses dois furacões da natureza
Eles detestavam quem tratava mal as pessoas
Seja pelo tom de pele, por ser pobre, por ter uma cultura diferente do outro
Quando notavam que alguém era maltratado... sai de perto!
Pois lá do céu se ouviam os estrondos de Iansã e Xangô
Avisando que aquilo deveria mudar
Pois ninguém gosta de ser maltratado
Mas muitas vezes as pessoas fazem coisas erradas
E ainda querem seus direitos assegurados
Mas com os direitos também vêm os deveres
Tratar bem aos outros para ser bem tratado
E se assim não for
Deixe que os ventos de Iansã levem toda essa má intenção para bem longe
E que o fogo de Xangô destrua a mesma Porque para brincar com o casal do dendê é preciso ser justo
A justiça que abre espaço para se brincar com o coração e sentir o quão intensa e divertida pode ser a
brincadeira com esses dois juntos, que são bem apimentados!
(Lia Braga, Natal/RN, novembro de 2018)
Iansã e Xangô, orixás que abrem este tópico, foram escolhidos justamente por serem
considerados o casal da justiça, além de muito parceiros. Narra o mito Oiá liberta Xangô da
prisão usando o raio (PRANDI, 2001) – sendo Oiá um outro nome dado a Iansã – que eram
realizadas festas em homenagem a Xangô, com mulheres aos seus pés e homens que o
invejavam. Porém, eram festas hipócritas, tanto que em uma delas prenderam Xangô,
trancando-o em um calabouço.
Ele possuía uma gamela (uma vasilha encantada), onde via tudo o que acontecia, mas
a havia deixado na casa de Iansã. Passados alguns dias, nada do retorno de Xangô; Iansã então
olhou pela gamela e viu que ele estava preso. Xangô pressentiu que ela havia mexido em seu
objeto, lançando então muitos trovões como sinal. Ela entendeu o pedido de socorro, acendeu
sua fogueira e começou seus encantamentos, com cânticos. Pronunciou palavras, cruzando os
braços em direção aos céus. Foi então que o desenho do número sete se formou no céu, e um
raio partiu as grades da cela em que Xangô se encontrava; e, assim, ele foi liberto. Ao sair,
Xangô avistou Iansã dançando no céu como um redemoinho, levando-o para longe daquela
terra de falsidades.
Os mitos de orixás nos surpreendem com imagens diferentes daquelas criadas em torno
dos(as) negros(as). Tanto Xangô quanto Iansã são divindades empoderadas, com suas forças
místicas e ancestrais, representando a inquietude com as injustiças e o lutar perante elas; um
lutar presente e persistente nesses povos negros de origem africana, que foram violados e
invisibilizados ao longo da história.
102
Inclusive, Iansã é uma das deusas guerreiras do panteão Iorubá, que não está nem
abaixo e nem acima de seu parceiro, e sim ao seu lado. Ela lutou junto de seu marido e
companheiro Xangô em guerras, o que enaltece o empoderamento feminino vinculado a essas
deusas africanas.
Porém, mesmo com toda a força dos ancestrais e tantas lutas dos movimentos negros,
percebe-se um problema sistêmico no exercício da política, um problema que interfere em
vários âmbitos de nossa sociedade. Apesar de promulgada há 16 anos, a Lei nº 10.639/03 ainda
encontra entraves para a sua prática em determinadas instituições escolares e por alguns
profissionais, como já explicitava Munanga (2001):
[…] alguns professores, por falta de preparo ou por preconceitos neles introjetados,
não sabem lançar mão das situações flagrantes de discriminação no espaço escolar e
na sala de aula como momento pedagógico privilegiado para discutir a diversidade e
conscientizar seus alunos sobre a importância e riqueza que ela traz à nossa cultura e
à nossa identidade nacional (MUNANGA, 2001, p. 7-8).
O autor menciona a importância da transformação através da educação. Transformação
esta que não deve ocorrer apenas nos estudantes, mas também, e primeiramente, em nós,
professoras(es) e educadoras(es):
[…] cremos que a educação é capaz de oferecer tanto aos jovens como aos adultos a
possibilidade de questionar e desconstruir os mitos de superioridade e inferioridade
entre grupos humanos que foram introjetados neles pela cultura racista da qual foram
socializados. Apesar da complexidade da luta contra o racismo, que
consequentemente exige várias frentes de batalhas, não temos dúvida de que a
transformação de nossas cabeças de professores é uma tarefa preliminar
importantíssima. Essa transformação fará de nós os verdadeiros educadores, capazes
de contribuir no processo de construção da democracia brasileira, que não poderá ser
plenamente cumprida enquanto perdurar a destruição das individualidades históricas
e culturais das populações que formaram a matriz plural do povo e da sociedade
brasileira (MUNANGA, 2001, p. 9).
Nesse sentido, creio que a transformação, quando também nos toca e nos atravessa,
permite-nos auxiliar os processos dos outros, que também são nossos, à medida que vão sendo
tecidos e compartilhados. Possibilitando, dessa maneira, mesmo entre tensões e diferenças,
relacionarmo-nos com os demais de forma mais respeitosa.
Assim sendo, com esta dissertação, proponho reconhecer e valorizar riquezas
afrodescendentes na Educação Infantil, momento crucial na formação das crianças; além disso,
procuro contribuir para a aplicabilidade da Lei nº 10.639/03, oportunizando também uma ação
política através de uma ambiência lúdica e artística.
A escritora e doutora em Educação Eliane Cavalleiro, há 19 anos, já problematizava
questões sobre racismo, preconceito e discriminação no âmbito da Educação Infantil. Ela
103
refletia na época sobre a necessidade de aprofundamento da questão étnica nesta etapa de
ensino:
A realização de pesquisas com o objetivo de compreender a dinâmica das relações
multiétnicas no âmbito da educação infantil representa um recurso de avanço no
combate ao racismo brasileiro, visto que estudos dessa natureza revelam como se dão
as relações interpessoais, seus benefícios e seus prejuízos para os indivíduos que
convivem na escola, bem como fornecem subsídios para a elaboração de novas
práticas educacionais, quer seja na família, quer seja na escola (CAVALLEIRO, 2000,
p. 37).
Mesmo que as problematizações apontadas pela autora tenham ocorrido há quase 20
anos, relatarei aqui algumas expressões e situações que me chamaram a atenção no âmbito da
realização da pesquisa no NEI.
Vale salientar que alguns dos responsáveis pelas crianças demoraram a entregar o
termo de autorização de participação delas, o que retardou a entrada de algumas crianças. Diante
dessa dificuldade inicial, foi preciso que a Professora Titular da turma participante e eu
dialogássemos com alguns pais sobre a necessidade e a importância da participação delas.
Inclusive, foi necessário solicitar mais de uma vez a autorização para alguns dos responsáveis.
Em alguns casos percebi, nas entrelinhas, uma atitude de relutância em relação à abordagem da
cultura africana; em outros casos, foram verbalizadas desculpas pelo esquecimento da entrega
do referido termo.
Em contrapartida, recordo-me de uma curiosidade positiva expressada pelo pai da
menina Raposa, que não retardou a entrega da autorização. O diálogo com ele, antes do início
das oficinas, foi o seguinte:
Pai: “Cultura africana, e é o quê? A cultura e as coisas de lá, é?”
Eu: “Sim, são algumas histórias de lá que têm a ver com o Brasil, com essa herança
que ficou conosco; tudo com lúdico, contações de histórias, o brincar, que é próprio
da idade.”
Pai: “Com certeza! É tudo o que ela gosta. Ela adora essa coisa de África!”
Reflito que, mesmo com a demora da entrada de algumas crianças, isso não prejudicou
a riqueza e a intensidade vivenciada por nós. Outro fato é que precisei adaptar a mediação
artística e lúdica e reduzir o número de oficinas (oito no total), devido à demora do Comitê de
Ética em Pesquisa/CEP em emitir sua liberação para que eu pudesse iniciar a pesquisa no NEI.
Também cancelei a apresentação de uma culminância artística para a comunidade escolar,
inicialmente planejada. Ela tinha o objetivo de mostrar a outras pessoas o que fora vivenciado
104
pelas crianças nesta pesquisa, com a reunião de alguns momentos vividos com as mesmas e
com algumas de suas criações: exercícios, cenas, desenhos etc.
Um aspecto que considero importante e positivo foi que, dentre as 14 crianças da
turma, apenas duas não entregaram a autorização. Vale destacar que, enquanto a pesquisa era
realizada com o restante da turma, as professoras se alternavam durante o processo, entre
participar junto à turma ou ficar realizando outras atividades com as crianças não participantes.
Para a Professora Titular, um dos responsáveis, que não autorizou a participação de
uma das crianças, disse: “Eu não conheço essa pessoa”, referindo-se a mim. E como não houve
uma expressão de abertura, optei por não insistir. Já com o outro responsável relutante, tentei
dialogar duas vezes. Na primeira tentativa, busquei ir ao seu encontro, pessoalmente, na
instituição; mas, diante de alguns desencontros, dialogamos por telefone e explicitei os
objetivos e a metodologia da pesquisa. O mesmo me pediu desculpas, argumentou que algumas
questões ainda estavam confusas e por isso não autorizava a participação da criança. Eu
expressei que lamentava, mas que compreendia e respeitava sua decisão.
Essas expressões de resistência e a não abertura para essas temáticas demonstra, em
alguns casos, desconhecimento em relação a elas. Isso pode também estar associado a posturas
de preconceito e racismo reproduzidas nos cotidianos sociais e educacionais. Ainda hoje, esses
posicionamentos têm relação com os contextos históricos de corte colonial e escravocrata que
são refletidos em nossa sociedade. Nessa contextualização, Alves (2019a, no prelo) explicita:
“É fato que com o processo de colonização vieram as dicotomias, exclusões, a racionalização
do mundo sob a ótica eurocêntrica […]”. A autora ainda alerta e propõe:
[…] em meio a preconceitos, exclusões, desrespeito vamos negando o outro como
legítimo outro e restringindo a ideia de educação, de cultura, de sabedoria, de
conhecimento a outras tiranas categorias e dicotomias referentes a poder, a status, a
classe social, a ambiente delimitado, entre outras. Será, portanto, preciso postular à
educação um maior envolvimento com outros espaços e tempos educativos, se
desvencilhando, por exemplo, dessas categorias ocidentais, dicotômicas e
colonizadoras (ALVES, 2019a, no prelo).
Muitas dessas expressões negativas reafirmam posturas intransigentes que não visam
a ampliar os modos de percepção e abertura para conhecerem outras maneiras de concepção de
mundo e de se relacionar com ele.
Quebrar as colonialidades significa, entre outras coisas, considerar outros modos de
ser e viver, outras perspectivas sobretudo daqueles que foram colocados a margem
pela dominação epistêmica eurocêntrica, a exemplo dos negros, indígenas, pobres,
produtores de outros saberes que não necessariamente o científico (ALVES, 2019a,
no prelo).
105
Nesse sentido, cabe dialogar com as reflexões desenvolvidas pelo antropólogo,
museólogo e especialista em Arte Africana, Raul Lody, e pelo bailarino e pesquisador sobre
etnografia da dança de matriz africana, Jorge Sabino. No livro Danças de Matriz Africana:
Antropologia do movimento, os autores explicitam:
Se os europeus recém-chegados ao Brasil Colônia viam e estranham o cenário, e
chamavam todo tipo de música ou dança de matriz africana de batuque, há de se
compreender inicialmente que, diante do que é diferente, o impulso primeiro é passar
pela banalização dos fatos, os quais se encontram sedimentados no desconhecimento,
na xenofobia e no preconceito, principalmente (LODY; SABINO, 2011, p. 79).
Posturas advindas desse contexto negam, portanto, as identidades que constroem quem
somos, e também a nossa história, inscrita na memória do corpo:
Os africanos e seus descendentes, despojados de qualquer referência material,
contavam somente com o corpo e a memória, que traziam como referências, revivendo
e reativando identidades no contexto perverso da escravidão no Brasil […]. Sem
dúvida, o corpo é o principal instrumento de transmissão e de expressão pessoal e
coletiva, porquanto comunica patrimônios traduzidos nas inúmeras possibilidades das
danças (LODY; SABINO, 2011, p. 79-80).
Assim sendo, é de suma importância que professoras(es) e instituições problematizem,
junto aos estudantes e seus responsáveis, o significado histórico, social, cultural e político ao
desenvolverem ações, estudos e metodologias que priorizem estes saberes.
Valorizar as experiências e as memórias culturais experimentadas no cotidiano e em
espaços sociais singulares como os terreiros, as associações de afoxés, de maracutus,
de samba, de jongo e demais formas coreográficas de matriz africana, torna-se
imperioso, porquanto constituintes e formadoras da identidade do povo brasileiro
(LODY; SABINO, 2011, p. 181).
Nesta pesquisa, a valorização da história e da cultura afro-brasileira e africana, e o
destaque atribuído às deusas e deuses orixás de forma contextualiza à Educação Infantil, bem
como a referência destas divindades como forças, elementos e protetoras(es) da natureza,
possibilitaram construir uma relação com as crianças na perspectiva ecológica do cuidado, do
respeito e da preservação da natureza. Durante o desenvolvimento das oficinas, a cultura
africana foi abordada e mediada com contações de histórias e jogos/brincadeiras corporais,
associadas às linguagens da dança e do teatro, com uso de elementos de musicalidade.
Acredito que o entrelaçamento entre a metodologia, as linguagens artísticas e os
aspectos simbólicos, culturais e sociais da nação africana Iorubá propiciou o envolvimento
lúdico-corpóreo das crianças, não gerando nenhuma reclamação nem das professoras, nem dos
responsáveis e muito menos do público-alvo desta proposição. A pesquisa ter sido aprovada
106
pelo Comitê de Ética, o apoio institucional do NEI e os responsáveis das crianças terem abertura
para dialogarem com as professoras da turma geraram uma ambiência de confiança e aprovação
em relação aos procedimentos realizados.
De maneira natural e progressiva, as crianças foram manifestando afetuosidade em
relação à minha pessoa e às divindades africanas, como será explicitado mais à frente. Levo em
consideração que o bem-estar, o interesse e o envolvimento das crianças durante o processo
vivenciado contaram positivamente para a postura de aceitação de seus responsáveis.
Porém, apesar das relações positivas manifestadas na pesquisa, cabe explicitar que,
durante o seu desenvolvimento, algumas expressões de preconceito e racismo foram
externalizadas por algumas crianças, mesmo que em minoria. Por exemplo, em uma das
oficinas, ao contar histórias com acompanhamento do livro Omo-Oba: histórias de princesas
(OLIVEIRA, 2009), perguntei às crianças qual era a cor daquelas personagens; algumas falaram
“preta”, e eu disse “preta, negra”, e o menino Onça Preta disse: “Eu não dou muito valor a essa
cor!” Na hora eu expressei que adorava essa cor e que achava os negros muito bonitos.
Uma situação extremamente delicada e polêmica foi quando o referido livro sofreu
tentativa de censura em março de 2018:
Escolhido pelo Sesi Volta Redonda (interior do Rio de Janeiro) para compor o projeto
pedagógico, [o livro] sofreu “questionamentos de alguns pais em relação ao conteúdo”
– isto é, críticas em relação à sua temática, fundada na cultura afro-brasileira – e correu
o risco de ser excluído. A reação da autora e de apoiadores nas redes sociais evitou
que isso ocorresse (OLIVEIRA, 2018, on-line).
Pode-se analisar que a problemática vivenciada pela autora, em pleno século XXI,
evidencia o contexto social e político que estamos vivendo, com posturas extremistas, direitistas
e fascistas, e com um perfil de políticos que preservam uma bancada evangélica com o intuito
de priorizar suas crenças em detrimento de outras. Estes tempos obscuros parecem refletir um
retrocesso diante de alguns avanços recentes alcançados; eles nos fazem lembrar dos períodos
históricos como a ditadura militar, a escravidão e a colonização em nosso território. Porém,
como nos foi legado também a inteligência, a força, a resistência e as estratégias encabeçadas
por nossos ancestrais, a luta continua em diversas frentes e esferas. Assim sendo, corroboro
com as reflexões de Alves (2019b, no prelo):
[…] o corpo, as africanidades e as artes são três palcos de uma mesma história
paradoxal: Uma História de submissão e resistência; de dualismos e
complexidades; de limitações e liberdade de expressão. Isto se reflete nos cenários
de lutas e conquistas da população negra brasileira, por exemplo, na política de
cotas; na inserção de artistas negros nas mídias; na educação, que muito embora
ainda seja predominantemente eurocêntrica já dá sinais de avanços ao incluir, por
exemplos, livros sobre a história da África; já abre espaço para outras práticas de
107
saberes na escola – porém isto não foi gratuitamente; isto é fruto de lutas do
movimento negro; de novas políticas institucionalizadas: como a Lei nº 10.639 de
2003 e a Lei nº 11.645 de 2008 (ALVES, 2019b, no prelo).
Diante da censura em relação ao seu livro, Kiusam de Oliveira ainda manifesta na
entrevista que o teor da obra busca auxiliar a tentativa de romper com a supremacia de padrões
estéticos brancos e europeus, presentes e reforçados na literatura. Essa situação me faz refletir
que expressões como a do menino Onça Preta, “Eu não dou muito valor a essa cor!”, não se
apresenta como um caso isolado:
Minha preocupação é contar histórias que rompam com as grandes narrativas
universais, também presentes no nosso país e que reforçam, por exemplo, a existência
de princesas brancas, de origem europeia, presentes de forma massificada num país
de negros e mestiços como é o nosso. A partir dessa massificação, apresentam-se tais
princesas como se fossem o ideal a ser seguido, e é exatamente isso que as crianças
entendem. Elas são capazes de afirmar, mesmo lendo meu livro Omo-Oba, que
princesas negras não existem ou que as princesas do livro são feias porque são negras
(OLIVEIRA, 2018, on-line).
Concordo com as considerações da autora, em outra entrevista cedida a Camilla
Hoshino para o portal Lunetas. Oliveira (2017) explicita que as concepções sobre infância estão
atreladas aos modos de tratamento, intervenção e mediação, que nós adultas(os) desenvolvemos
com as crianças:
Penso numa infância em que as crianças são consideradas partes fundamentais de um
todo bem maior que elas, já preestabelecido e onde devem participar de uma gama
variada de experiências que as coloquem frente à frente com novos desafios e
situações para que sejam capazes de desenvolver suas capacidades de protagonizar,
de escolher, de opinar, de se emocionar, de enfrentar problemas e de se solidarizar. É
nessa perspectiva conceitual que haverá quem pense que tratar de preconceito,
estigma, discriminação e racismo estrutural no Brasil não são assuntos para a infância,
inclusive acrescentando que nenhuma criança é racista. Haverá um outro grupo de
pessoas que estimularão as crianças a enfrentarem tais assuntos de frente, porque
mesmo acreditando que a criança não seja racista, se aceita que ela é capaz de
reproduzir o racismo que vê, ouve e aprende em casa. E uma vez que o racismo é
estrutural, isto é, faz parte da construção educativa desde a infância brasileira, precisa
ser desconstruído por pessoas com visões mais dinâmicas sobre a constituição do país,
sem que emitam juízo de valor ou afirmem que as contribuições dos brancos no Brasil
são mais significativas que as contribuições de negros e indígenas (OLIVEIRA, 2017,
on-line).
É possível problematizar certas posturas marcadas por pudor, excesso de zelo e
enquadramento, nas quais adultas(os) supõem ser possível colocar as crianças em uma redoma
de vidro, na tentativa de privá-las de perceber a discriminação, o preconceito, o racismo e a
exclusão ainda existentes em nossa sociedade.
108
A prevenção de práticas discriminatórias, penso, requer um trabalho sistemático de
reconhecimento precoce da diversidade étnica e dos possíveis problemas que o
preconceito e a discriminação acarretam em solo brasileiro, desde a educação infantil
– familiar e escolar. Tal prática pode agir preventivamente no sentido de evitar que
pensamentos preconceituosos e práticas discriminatórias sejam interiorizados e
cristalizados pelas crianças, num período em que elas se encontram muito sensíveis
às influências externas, cujas marcas podem determinar sérias consequências para a
vida adulta (CAVALLEIRO, 2000, p. 37).
Ao mesmo tempo, ao acreditar que mesmo inconscientemente o menino Onça Preta
tenha expressado uma visão negativa em relação à cor preta, as(os) negras(os), era curioso para
mim o fato de ele expressar ter uma referência familiar: em uma conversa informal entre ele e
eu, em outro dia de oficina, o menino disse que a sua tia era africana. Eu perguntei se ele sabia
de que parte da África ela tinha vindo, e ele disse que não sabia, mas que só sabia que ela era
africana e negra. Depois, ao conversar com a Professora Sol sobre o que o menino tinha falado,
ela disse que ele deveria estar se referindo à sua madrasta, que já havia morado na África.
Mesmo com um período relativamente curto na experienciação das oficinas, foi
interessante perceber que, na escolha do seu nome para a pesquisa, o menino disse,
primeiramente no meu ouvido, “Aquele do Arco e Flecha”, referindo-se ao orixá Oxóssi; depois
quis ser chamado de Pantera Negra, e depois trocou para Onça Preta, incorporando a palavra
em sua identificação com uma expressão positiva e de valorização do tema, o que me
surpreendeu diante da expressão de cunho preconceituoso inicialmente manifestada.
Pode-se observar, a partir do diálogo final com as crianças, na última oficina, uma
expressão positiva em relação aos personagens que apareciam tanto nos mitos que contei dos
Ibejis, através do livro Mitologia dos Orixás (PRANDI, 2001), quanto a orixás que apareciam
no livro Omo-Oba: histórias de princesas (OLIVEIRA, 2009). Ao perguntar se teve alguma
história que as crianças haviam gostado mais, uma delas disse:
Menina Gatinha Folha: “A preferida foi aquela que em vê, aqueles Ibejis que têm
pele negra, que você contou aquela história que tinha um monte de princesas, essa
foi a minha predileta! […] a minha preferida foi da… da… daquela princesa do mar,
Ie…”
Eu: “Ahhhhh! Foi a dos Ibejis e a da princesa do mar! Quem é a princesa-rainha do
mar, gente?”
Quando questionei quem era a princesa-rainha do mar, a maioria das crianças
respondeu que era Iemanjá. Acredito que o processo de vivência artístico e lúdico da pesquisa
tenha auxiliado as crianças a perceberem as deusas e deuses orixás – com características negras
109
de beleza e de realeza, como a própria menina Gatinha Folha especificou em sua opinião – de
forma positiva.
Há de se considerar que o NEI demarca uma diferenciação em relação à maioria das
instituições escolares, pois a maneira como seus profissionais articulam e problematizam
discussões propicia às crianças vivências diversas e plurais, salientando o respeito e a
valorização de culturas e indivíduos da maneira como se constituem e são. Nesse sentido, posso
destacar que temas afins à cultura africana e africanidades já foram trabalhados na instituição,
inclusive com essa turma de crianças. Também, na turma, há convivência com crianças
deficientes e não deficientes, crianças com características físicas diferentes e com situação
socioeconômica distinta.
O racismo estrutural existente em nosso país, fruto das marcas históricas de negação,
opressão e violência, acarretou em nossa sociedade desconhecimento em relação às verdadeiras
origens de nossas(os) ancestrais negras(os), bem como uma invisibilização em relação a toda a
contribuição histórica, social e cultural com que nos foi legada por elas(es). Infelizmente, o
processo histórico de colonização brasileiro imprimiu a imagem das(os) africanas(os) que
foram aprisionadas(os) em suas terras natais e forçadas(os) a virem para nosso país apenas como
escravas(os). Em contextos educacionais, por vezes essa associação ainda pode ser ressaltada,
a depender do projeto pedagógico da escola e/ou da abordagem da(o) professora(or) e dos
materiais utilizados.
Porém, muitos de nossas(os) ancestrais negras e negros e africanas(os) eram rainhas e
reis, princesas e príncipes, guerreiras e guerreiros. Na etnia e cultura Iorubá, o orixá Xangô,
por exemplo, deus do fogo, raios, trovões e justiça, já foi considerado um grande rei guerreiro
de uma antiga cidade africana chamada Oyo, que lutava de forma justa por seu povo.
Desde que comecei a desenvolver o projeto Brincando com Africanidades, percebo o
desconhecimento das pessoas quando procuro trazer uma imagem positiva em relação aos(às)
negros(as). Esse fato não é isolado, se considerarmos que a maioria das instituições escolares
prioriza o conteúdo eurocêntrico e a escola como espaço de saber; nestes casos, ela introjeta
uma história marcada por preconceito e estereótipos.
Revisitando algumas de minhas memórias que se relacionam diretamente com essas
problemáticas, não me recordo de ter tido alguma boneca negra para brincar quando era criança,
ou algum livro de história que priorizasse positivamente a imagem das(os) negras(os). Ganhei
uma boneca de pano negra de minha mãe, já adulta, após ter me despertado para trabalhar com
esta temática; e eu ainda hoje a chamo carinhosamente de Calunguinha. Calunga foi o nome
sugerido pelo meu pai, e dentre alguns de seus significados, aqui no nordeste, significa boneca;
110
é muito utilizado no maracatu, uma expressão cultural afro-brasileira que envolve cortejo, dança
e música.
Na escola, sempre gostei de história, literatura, arte e religião. Recordo-me que eu
devia ter de 13 para 14 anos quando vi uma imagem, em um livro de história, de negros
escravizados tentando fugir dos capatazes. Mas no livro a história não tratava de suas origens,
e eu, naquela época, me questionava sobre elas; aquelas pessoas não poderiam ser somente
escravas, elas deveriam ter sua história, uma família, uma origem a qual eu não conhecia e que
por muito tempo continuei a desconhecer.
Já com 16 para 17 anos, em uma das escolas que estudei, recordo que fui chamada por
uma colega de turma e grupo de teatro para participar de uma esquete, um exercício teatral em
torno de 20 minutos que problematizava a violência urbana em relação aos negros. Recordo
também que fiz parte do elenco de uma adaptação livre do espetáculo O Fantasma da Ópera,
um romance gótico de origem francesa, e um dos personagens principais, o próprio Fantasma
da Ópera, foi protagonizado por um colega e ator negro. Este colega também era bastante
atuante nos exercícios ou espetáculos de teatro e dança de que participávamos nesta escola.
Já na graduação, convivi com dois colegas negros, e houve em duas disciplinas (que
eu me lembre) algumas explanações e práticas sobre algumas manifestações culturais e
religiosas das(os) negras(os)em nosso país. No período entre a graduação e o mestrado,
experiências anteriormente citadas na introdução foram importantes para que eu pudesse me
aprofundar nestas temáticas. No âmbito do mestrado, também tive a oportunidade de conviver
com pessoas negras: estudantes, pesquisadoras(es) e colegas, e também me relacionei com um
rapaz negro. Nesta relação, percebi algumas tensões sociais referentes aos nossos tons de pele,
como olhares que demonstravam, para mim, um preconceito velado em relação a nós dois.
Assim sendo, a partir dessas relações e convívios, questionei-me de forma mais
profunda sobre privilégios, lugar de fala e pertencimento étnico-racial, tanto a nível social
quanto pessoal. Porém, desde a minha infância até a fase adulta, eu conto nos dedos quais foram
as pessoas negras de meu convívio.
Se eu, que me considero miscigenada e reconheço minha ancestralidade africana,
reflito sobre um processo de invisibilização, que não se restringe apenas às minhas memórias,
e sim é um reflexo de dores e violências históricas profundas, como negras e negros poderão se
reconhecer ou se identificar com os conteúdos que são trabalhados nas escolas? Ou como
poderão se sentir valorizadas(os) com a maneira como são tratadas(os) social e culturalmente?
Nesse sentido, compactuo com as considerações da pesquisadora e doutora em
educação, Stela Guedes Caputo, ao afirmar que:
111
Volta-me agora o relato do líder nagô sobre a árvore do esquecimento. Ao reproduzir
uma visão homogênea da sociedade, a escola colocaria as diferenças culturais para
andar em torno da árvore do esquecimento. Seria, ela própria, uma grande árvore do
esquecimento, na qual alunos (as) negros, bem como suas culturas, religiões, formas
de ver o mundo estariam dando voltas até que esquecessem completamente sua
história […]. Quando olha para a TV, o negro não se vê e não se reconhece. Ao olhar
para a escola também não (CAPUTO, 2012, p. 242).
E ainda alerta que “uma das consequências mais perversas do preconceito é que ele se
naturaliza, ou seja, passa a ser visto como normal tanto para quem promove como para suas
vítimas. Só que as consequências de dor, frustração e baixa autoestima ficam com os
vitimizados” (CAPUTO, 2012, p. 244).
Acredito que as tentativas para que outros referenciais sejam trabalhados no cotidiano
escolar sobre a história e a cultura africana e afro-brasileira, referenciais estes que não
depreciem, menosprezem ou excluam, e sim que respeitem e valorizem – permitam que
andemos em torno não da árvore do esquecimento, e sim da árvore Baobá.
O Baobá, cultuado por vários povos africanos, simboliza a árvore da vida, e algumas
das mesmas podem viver até 3 mil anos. Por sua longevidade e grandiosidade, o Baobá pode
ser compreendido também como um parente antigo que protege tudo ao redor e serve de abrigo
tanto para pessoas como para animais (SILVA, 2015).
Pode-se relacionar também o Baobá com uma
árvore mítica, mística e ancestral, que ao invés de
eternizar o esquecimento, perpetua a memória e os
laços afetivos daqueles que se sentem abrigados
por essa grande “árvore-vovô” (Figura 16):
A árvore é um dos símbolos fundamentais das culturas africanas
tradicionais. Os velhos baobás africanos de troncos enormes suscitam
a impressão de serem testemunhas dos tempos imemoriais. Os mitos e
o pensamento mágico-religioso yorubá têm na simbologia da árvore
um de seus temas recorrentes. Na sua cosmogonia, a árvore surge
como o princípio da conexão entre o mundo sobrenatural e o mundo
material. As árvores estão associadas a ìgbá ì wà ñû – o tempo quando
a existência sobreveio – e numerosos mitos começam pela fórmula
“numa época em que o homem adorava árvores” (geledes.org.br, on-
line).
Que possamos então adorar árvores como o Baobá,
que guardam a nossa memória ancestral africana; e que, assim, possamos preservar o passado
em comunhão com o presente, permitindo-nos construir um futuro mais democrático e justo.
FIGURA 16 – LIA AOS PÉS DO BAOBÁ,
DE 110 ANOS, NO PASSEIO PÚBLICO,
EM FORTALEZA/CE
Fonte: Arquivo Pessoal
112
Reflito que através da arte em intervenção na Educação possa-se construir estratégias
para abrir espaços no intuito de que essas temáticas sejam incorporadas no cotidiano social e
cultural. Estratégias que rompam com o imaginário estigmatizado e negativo associado
as(os)negras(os). Portanto, a arte, por meio de diversas transversalidades, de maneira sensorial
e estética, abrange a dimensão poética e crítica de maneira atemporal, nas variadas formas e
relações organizacionais, e em espaços socioculturais.
Assim, na atualidade e especificamente no cenário de nosso país, ao romper limites de
intervenção e interação com as pessoas, a arte transita através de rotas efêmeras, mas não menos
intensas, percorrendo caminhos e territórios e materializando-se em nichos/locais/grupos
diversos. De maneira interdisciplinar, ela se fundamenta em várias lógicas e formas de
abordagem. Diante disso, questiono: quais os caminhos possíveis e passíveis da arte como
potência cultural e política? Nesse sentido, Alves (2019b, no prelo) reflete sobre algumas
possibilidades com relação às diversas artes africanas:
Há muitas possibilidades de artes africanas, seja a criação de máscaras, esculturas,
pinturas, danças, cânticos, arquitetura, entre outros presentes nesse universo
diversificado, rico em etnicidade, ancestralidade e estética. Porém o que por vezes
falta é o olhar sensível de professores, estudantes, pesquisadores e de um modo geral
da sociedade, para perceber essa diversidade de referências culturais, artísticas e
estéticas presente no contexto da arte brasileira. Estará de fato, sensível nosso olhar,
ao ponto de nos permitir enxergar para além das referências eurocêntricas, inclusive
no campo da arte? Aqui fica o convite para nos sensibilizarmos de corpo inteiro e
vivermos a experiência estética com as várias possibilidades de expressão da arte de
matrizes africanas (ALVES, 2019b, no prelo).
Analiso que, em algumas escolas, os projetos pedagógicos ainda tendem a reproduzir
padrões tradicionais de ensino, carecendo de uma abordagem interdisciplinar e crítica. As
formas homogêneas e/ou “estanques” como os temas e conteúdos são trabalhados intensificam
um processo, em geral, acrítico e de massificação das(os) estudantes. Ou seja, o estudo reflexivo
e problematizado através de experimentações nos contextos individual e coletivo pode
contribuir para ressignificar esse cenário e dialogar com outras áreas, como a arte (BRAGA,
2017).
A partir deste campo do saber, posso fazer relações com outros campos, como a
cultura, a educação e a história – sem, no entanto, minimizar o protagonismo da arte como
mediação de um saber pautado na relação entre teoria e empiria, e também na subjetividade
das(os) participantes.
Referimo-nos aqui a uma pesquisa teórico-prática, seja o pesquisador o próprio feitor,
seja ele testemunha de uma prática. Trata-se então de uma pesquisa em arte. O objeto
de estudo não se encontra pronto, suas fronteiras ainda não são dimensionáveis: está
em processo, na formação, transformação e deformação. Como seria então registrar
113
as diferentes passagens desse processo sensível, permitindo-se à esta categoria de
registro como instâncias vivas? (JUNIOR; BONFITTO, 2015, p. 112).
Ao refletir sobre o sentido de um processo sensível que permeia o campo de
intervenção das Artes Cênicas, eu, enquanto artista, educadora e pesquisadora, pude participar
ativamente da experienciação com as crianças. Assim, ressignificando a importância da arte
como componente cultural, educativo e formativo, e, enquanto mediadora, pude ser atravessada
e afetada por proposições das crianças.
Por sua gênese crítica, reflexiva, questionadora, a arte estimula diálogos, vivências e
liberdade de expressão acerca de temas geralmente invisibilizados ou tidos como tabus na
sociedade. Trabalhar com a cultura africana através do universo das deusas e deuses orixás é
valorizar nosso legado ancestral negro e estabelecer relações com nossa herança afro-brasileira
presente em nosso cotidiano através de suas comidas, costumes, crenças, atitudes, palavras,
moda, arte, música etc.
Intervir artisticamente com crianças na etapa da Educação Infantil abre um campo de
possibilidades nas quais elas podem vivenciar um pouco desse legado de forma positiva,
oportunizando-as para o acesso à cultura na tentativa de desmistificar alguns preconceitos e
conceitos erroneamente construídos histórica, social e também culturalmente. As crianças, por
meio de suas experienciações, foram afetadas e, ao estabelecerem relações afetivas com os
eixos e as temáticas trabalhadas, puderam reconhecer ou não sua negritude, e, principalmente,
conhecerem a diversidade cultural e os elementos da cultura africana e afro-brasileira.
Nesse contexto, ao se desenvolver uma pesquisa em Artes Cênicas e intervir no âmbito
da Educação Infantil, envolvendo aspectos da cultura africana, permitiu-se às crianças
vivenciarem alguns elementos dessa perspectiva. Petit (2015), ao refletir sobre conhecimentos
pautados em uma ancestralidade africana, concebe que as manifestações coletivas são
recuperadas através das memórias do corpo e dos gestos. As histórias são contadas e recriadas,
através da oralidade, pelas(os) mais velhas(os), para as novas gerações. No cotidiano, as danças
e brincadeiras celebram a vida, a natureza, as divindades e a religiosidade, e perpassam os
saberes dialogados e construídos por todos em comunhão. Os saberes encontram expressão na
beleza que há na simplicidade da vida, no caráter místico dos rituais, na arte e na educação.
Interessava-me, também, intervir e vivenciar com as crianças o processo de criação em
arte; um processo que propusesse a liberdade imaginativa e a autonomia de descoberta dessas
crianças, como artesãs/performers de suas próprias criações, a partir de suas experiências.
A transversalidade entre arte, corpo, ludicidade e cultura africana, em intervenção
escolar, constituiu um desafio que me propiciou vivenciar, junto às crianças, diálogos
114
interdisciplinares influenciados por múltiplas poéticas contemporâneas, na busca das
performances de seus corpos brincantes e das possibilidades no campo da pesquisa em Artes
Cênicas. Portanto, a pesquisa priorizou o processo artístico como forma de experienciação e
criação.
O entrelaçamento entre arte e educação evidenciou o corpo e o lúdico como trajetos
sensíveis que foram sendo experienciados com as crianças nesta etapa da Educação Infantil. Na
produção de conhecimento artístico, ao valorizar o processo de criação das crianças, procurei
respeitar as suas individualidades em contexto coletivo e instigar uma postura de criticidade em
oposição à naturalização de comportamentos discriminatórios e excludentes.
3.4 HISTÓRIAS DE ORIXÁS: CONTAR E BRINCAR COM O CORPO
Neste recorte específico, busco refletir sobre a perspectiva das contações de histórias
através do universo e das mitologias das deusas e deuses orixás. Desde que me descobri também
como contadora de histórias, há quase três anos, decidi que eram as histórias dessas divindades
que eu iria compartilhar com os outros. Nessa confluência, cabe o pensamento do historiador e
antropólogo Vansina (2010, p. 140): “A oralidade é uma atitude diante da realidade […]”. Isso
me faz reafirmar que minha ação reflete uma escolha espiritual, artística e política.
Espiritual, pela minha ligação com as religiosidades de Umbanda e Candomblé, ao
procurar relacionar os saberes compreendidos nessa ambiência ao meu cotidiano e ao meu
trabalho, dialogando e perpassando estes saberes para outras pessoas; artística, porque a partir
do meu fazer teórico e prático no campo das Artes Cênicas, evidencio outros modos de pensar
e criar arte, diferentes do que tradicionalmente foram sendo impostos como conhecimento a
partir de uma hegemonia branca e eurocêntrica; política, porque minha motivação foi trabalhar
com temas invisibilizados ou tidos como tabus socialmente, como a cultura africana e afro-
brasileira.
Considero ser necessário, frente a todo o legado herdado historicamente e
culturalmente de nossas(os) ancestrais negras(os), problematizar de forma positiva as relações
étnico-raciais presentes em nossa sociedade brasileira. Assim sendo, a partir também de minha
herança espiritual, sinto-me responsável por contribuir positivamente para a desconstrução de
estereótipos construídos em torno de pessoas e culturas negras. Busco me ancorar em outras
formas de concepção e relação com o mundo, como as cosmovisões africanas, nas artes e na
Educação. O desafio de trabalhar com essas temáticas traz também uma teia de afetos gestados
a partir de minha identificação cultural e espiritual.
115
Quando conto histórias de orixás, evoco conexão e me comunico com a força de minha
ancestralidade africana. Perpetuo alguns de seus mitos, não como a detentora da verdade, e sim
como aquela que está aberta ao ouvinte-participante, construindo e reconstruindo um
imaginário instaurado em nossa memória social e corporal.
Ao me embasar nessas perspectivas, compreendo que a(o) contadora(or) de histórias é
aquele que carrega consigo toda uma tradição, mas se adapta às situações e fica atenta(o) ao seu
público – que é também artesão de histórias, junto com a(o) contadora(or), assim como as
figuras dos griots, já mencionados anteriormente e que me inspiram para este trabalho. Como
exemplo, Bernat (2013) destaca alguns dos relatos de seu mestre Sotigui Kouyaté:
Aliás, quando um griot se apresenta num espaço fechado pede que as luzes da plateia
fiquem acesas, pois precisa ver e sentir o público, perceber sua temperatura, para, de
acordo com a recepção da plateia, alterar a forma e o ritmo de contar a história […]
(BERNAT, 2013, p. 71).
Foi com as histórias dessas divindidades que comecei a aprender a falar e a buscar uma
forma de expressão própria, a partir de minha subjetividade. Aprender, sim, pois o ato de contar
histórias, muitas vezes, permite-nos a escuta e a conversação com o ouvinte-participante-
contador, que ora é passivo, no aspecto de abertura, e ora é ativo, no aspecto de poder
pronunciar-se a partir de si. Nessa confluência, aproximo-me da contribuição de Bernat (2013),
quando o autor explicita:
O ato de contar histórias nos aproxima de nós mesmos, pois a parceria com a história
e a cumplicidade com os ouvintes só se estabelecem se o contador compreender que
não há uma diferença hierárquica em relação ao público, mas sim uma diferença de
circunstância. Por isso costuma-se dizer que na África todos são contadores de
histórias. Isso deveria ser uma aptidão natural na vida de qualquer homem, ter uma
história para contar (BERNAT, 2013, p. 221).
Quando conto histórias, seja em palco ou em outro espaço, procuro, em geral,
organizar a plateia em semicírculo, de modo a garantir maior proximidade e interação. É
desafiante estar bem próxima, olhar “olho no olho” e contar com a participação, por vezes bem
ativa, do público. A partir de perguntas temáticas e outros estímulos, instigo o público para que
interaja em algum momento da encenação junto a mim, como personagens/contadores. Nesse
sentindo, propicio um fazer artístico aberto ao imprevisível e à construção conjunta com os
ouvintes-contadores das histórias. Principalmente quando estou em contato com as crianças, as
surpresas são diversas e os desafios, maiores. Suas lógicas e proposições me permitem brincar
com o corpo, com a voz e com a própria narrativa oral. Cabe aqui contextualizar a contação de
histórias Os Gêmeos Ibejis numa Aventura Dançante, que experienciei com as crianças na
116
pesquisa e também em outros contextos. Os gêmeos africanos Ibejis são grandes, não em
tamanho físico, mas sim em inteligência, coragem e força. Com suas grandezas de espírito,
tiveram uma ideia para deter Icu, a morte; mobilizaram um desfecho positivo da história, apesar
de alguns desafios e percalços que foram enfrentados ao longo da aventura. Apresento, então,
o mito original que inspirou esta contação de histórias:
Os Ibejis enganam a Morte
Os Ibejis, os Orixás gêmeos, viviam para se divertir.
Não é por acaso que eram filhos de Oxum e Xangô.
Viviam tocando uns pequenos tambores mágicos, que ganharam de presente de sua mãe adotiva, Iemanjá.
Nessa mesma época, a Morte colocou armadilhas
em todos os caminhos e começou a comer todos os humanos
que caíam na suas arapucas.
Homens, mulheres, velhos ou crianças,
ninguém escapava da voracidade de Icu, a Morte.
Icu pegava todos antes de seu tempo de morrer haver chegado.
O terror se alastrou entre os humanos. Sacerdotes, bruxos, adivinhos, curandeiros,
todos se juntaram para pôr um fim à obsessão de Icu.
Mas todos foram vencidos.
Os humanos continuavam morrendo antes do tempo.
Os Ibejis, então, armaram um plano para deter Icu.
Um deles foi pela trilha perigosa
onde Icu armara sua mortal armadilha. O outro seguia o irmão escondido,
acompanhando-o à distância por dentro do mato. O Ibeji que ia pela trilha ia tocando seu pequeno tambor.
Tocava com tanto gosto e maestria que
a Morte ficou maravilhada,
não quis que ele morresse
e o avisou da armadilha. Icu se pôs a dançar inebriadamente,
enfeitiçada pelo som do tambor do menino.
Quando o irmão se cansou de tocar,
o outro, que estava escondido no mato,
trocou de lugar com o irmão,
sem que Icu nada percebesse. E assim um irmão substituía o outro
e a música jamais cessava.
E Icu dançava sem fazer sequer uma pausa.
Icu, ainda que estivesse muito cansada,
não conseguiu parar de dançar. E o tambor continuava soando seu ritmo irresistível.
Icu já estava esgotada
e pediu ao menino que parasse a música por uns instantes,
para que ela pudesse descansar.
Icu implorava, queria descansar um pouco.
Icu já não aguentava mais dançar seu tétrico bailado.
Os Ibejis então lhe propuseram um pacto.
A música pararia,
mas a Morte teria que jurar que retiraria todas as armadilhas.
Icu não tinha escolha, rendeu-se.
Os gêmeos venceram. Foi assim que os Ibejis salvaram os homens
117
e ganharam fama de muito poderosos, porque nenhum outro orixá conseguiu ganhar
aquela peleja com a Morte. Os Ibejis são poderosos,
mas o que eles gostam mesmo é de brincar.
(PRANDI, 2001, p. 375-377).
Essa história, em especial, me remete à proposta curativa através de mitos africanos,
que Ford (1999) propõe. Ao ler o prefácio de sua obra, me pus a chorar, quando em
arrebatamento compreendi um processo de auto-cura: “Eu sabia que o ponto de virada do
processo de cura individual geralmente ocorria no momento em que as ‘histórias pessoais’ de
traumas transformavam-se de ladainhas sobre a condição de vítima em lendas sobre o poder”
(FORD, 1999, p. 7).
Assim como os Ibejis, eu, criança, tão pequena e recém-nascida, enfrentei Icu, a morte:
eu poderia ter me despedido deste mundo, junto com a minha mãe biológica. De certo, eu não
tinha um tambor mágico para despistá-la, mas meu choro de pequena guerreira evocava os
gritos de guerras de meus ancestrais e a fez perceber que eu ainda tinha muitas lutas a vivenciar,
e que ainda não era a minha hora. Mas sou grata à morte, pois com ela eu pude brincar com o
tempo e costurar as minhas próprias feridas, para que elas se tornassem bálsamos curativos.
Além do mais, creio que esta história incorpora um sentido às crianças, como
protagonistas de suas próprias trajetórias, assim como ocorreu com a protagonista que fui do
meu próprio destino, ao nascer. É através do som mágico do tambor dos Ibejis que Icu, sem
conseguir parar de dançar, é ludibriada. Sem compreender como o som não parava de ecoar,
com a alternância dinâmica dos gêmeos, ela, de tão cansada de dançar, rendeu-se ao acordo
feito com os meninos, deixando em paz toda a comunidade.
Assim também as crianças podem perceber a morte, não como algo que devemos temer
– sentimento propagado em muitas culturas ocidentais. Mas, sim, como um fato natural, que
devemos enfrentar ao nos relacionarmos dinamicamente com ela, assim como os meninos
Ibejis; mesmo que neste processo possamos sentir tristeza, dor, revolta e incompreensão, como
por muitos anos senti em relação à morte de minha mãe biológica.
Tradicionalmente, o contar público dos mitos fornece uma âncora tanto para os
indivíduos quanto para as coletividades. Os mitos são, realmente as “histórias sociais”
que curam. Isso porque nos dão mais do que o desfecho moral que aprendemos a
associar há muito tempo às quadrinhas infantis e aos contos de fadas. Lidos
apropriadamente, os mitos nos deixam harmonizados com os eternos mistérios do ser,
nos ajudam a lidar com as inevitáveis transições da vida e fornecem modelos para o
nosso relacionamento com as sociedades em que vivemos e para o relacionamento
dessas sociedades com o mundo que partilhamos com todas as formas de vida. Quando
enfrentamos um trauma, individual ou coletivamente, as lendas e os mitos são uma
maneira de restabelecer a harmonia à beira do caos (FORD, 1999, p. 9).
118
O autor ainda explicita que esses mitos nos levam a buscar, juntamente com aqueles
com quem partilhamos as histórias mitológicas, a figura do herói. Mas esse herói não está longe
ou fora de nós, e sim em nosso interior. Se somos integrados ao todo, em uma perspectiva afro-
referenciada, então habitam em cada um de nós, além de heroínas e heróis, deusas e deuses,
guerreiras e guerreiros, rainhas e reis, princesas e príncipes, refletidos nessas histórias curativas.
Em última análise, a busca do herói não se dá num caminho isolado, mas naquele
percorrido por toda a humanidade; não é uma vitória sobre forças externas, mas, sim,
internas; não é uma viajem a mundos distantes, mas ao âmago do self de cada um […].
Como a viajem do herói, a experiência afro-descendente me faz defrontar com
questões como morte e vida, bem e mal, dor e sofrimento, triunfo e tragédia, trauma
e cura, servidão e liberdade, desigualdade e justiça – não apenas como questões
abstratas associadas há muito com meus antepassados, mas como inquietações atuais
relativas à minha vida e à viajem do “herói dentro de mim” (FORD, 1999, p. 31).
Um aspecto significativo dos contos míticos do panteão iorubá é que a terra, e não o
céu, é o palco de suas façanhas. Ao contrário de vários mitos de busca espiritual, os
deuses e as deusas iorubás vêm do céu para a terra em busca da nossa humanidade,
não o contrário […]. Na lógica dos orixás, podemos ver aquele reino diante de nós –
e encontrar os deuses e as deusas, os santos e os sábios no nosso interior (FORD,
1999, p. 210).
Ford (1999) reflete que a mitologia nos faz questionar a vida filosoficamente; e que, a
partir de nossas experiências, encontraremos possíveis caminhos os quais, nos ajudando
mutuamente, auxiliaremos os processos uns dos outros, especialmente os dos afrodescendentes.
A mitologia volta-se para as questões eternas da humanidade: qual a relação entre a
vida humana e o grande mistério do ser por trás de toda vida? Como devemos entender
a relação entre o planeta que habitamos e o Cosmo em que nos encontramos? Como
devo vencer as etapas da minha vida? E como minha vida se coaduna com a sociedade
em que vivo? Não se pode colocar essas questões ao telescópio ou ao microscópio; é
melhor viver as respostas e depois transmiti-las aos que virão – e essa é a trajetória do
mito. Assim, a mitologia tem sido tradicionalmente um meio de tornar saudável o
indivíduo e a sociedade ajudando as pessoas a harmonizar as circunstâncias da vida
com essas inquietações mais amplas, mais permanentes. E é exatamente esse tipo de
cura que se pode obter ao abordar a experiência dos afrodescendentes pela mitologia
(FORD, 1999, p. 32).
Dentro dessa contextualização, pode-se compreender que as(os) orixás nos apontam
perspectivas curativas em relação ao ser humano integrado à natureza.
[…] onde as deidades são vistas como personificações de forças básicas da natureza
e de nós mesmos, as narrativas sobre elas são compreendidas simbolicamente. Como
fatos, as divindades são adoradas e acreditadas principalmente como entidades fora
do indivíduo – “acima” ou “abaixo”, de um céu ou de um inferno para além da
existência humana. Mas, como símbolos representantes das forças básicas da vida, as
divindades são sentidas como partes do self individual: do nascimento à morte, da
fome à raiva, do amor à dor, as forças que nos motivam são em si os deuses e as deusas
que existem em nós (FORD, 1999, p. 206).
119
Através de um trecho de um mito Iorubá, que fala do princípio da criação de lugares e
pessoas por esta ótica, pode-se perceber a relação próxima das(os) orixás com os humanos. Pois
fora incumbida as deusas e deuses não somente a função de protetoras(es) da natureza, mas também
de protetoras(es) de nós, seres humanos:
À medida que a aldeia de Ifé se transformava em cidade grande, Obatalá ansiava cada
vez mais por voltar a seu lar atrás das nuvens. Certo dia ele subiu pela corrente de
ouro e foi recebido no reino de Olorum com uma grande comemoração em sua honra.
Quando os outros orixás ouviram-no contar dos lugares e das pessoas que ele criara
lá embaixo, muitos resolveram descer à terra para viver junto à humanidade. Eles se
aprontaram para a partida com esse código de conduta ditado por Olorum: “Como
orixás, nunca se esqueçam de que vocês devem proteger até o mais humilde dos seres
humanos. Atendam sempre às preces deles e ofereçam ajuda sempre que necessitarem.
Obatalá, que desceu primeiro pela corrente de ouro para criar esse mundo de seres
vivos, controlará todas as questões terrenas, mas cada um de vocês deverá cumprir
uma função específica entre os seres humanos. Sejam condizentes com essa confiança
e responsabilidade” (FORD, 1999, p. 215).
Ao refletir que essas divindades também residem em nós, pode-se dizer que suas
energias, características e elementos, bem como os ciclos da natureza, são expressados através
de nossas experiências. Nesse sentido, exemplifico, através das(os) orixás mais desenvolvidos
nesta dissertação, o seguinte: quando a fluidez de minha comunicação se presentifica, é Exu
que move o meu discurso; ao enfrentar meus medos e desafios diante da vida, eu guerreio como
Ogum; quando me indigno frente às injustiças do mundo e luto por uma sociedade mais
igualitária, é a coroa de Xangô que impera nos meus atos; quando eu me liberto de meus
opressores, são os ventos de Iansã que banem todas as violências que já vivenciei; quando eu
alimento o meu amor próprio e compreendo que minha beleza não é frágil, e sim empoderada,
são as águas douradas de Oxum que me purificam e me enriquecem; quando eu movo as minhas
emoções e crio ondas ora tranquilas, ora intensas, é Iemanjá generosa que me permite navegar
por seus mares; e quando eu brinco com as crianças, são os Ibejis que fazem a festa, nos alegram
e se divertem junto de nós. Por mais que tenhamos uma(um) orixá que rege e é dona(o) da nossa
cabeça –com quem somos mais parecidos –, outras(os) podem circular em nossa coroa
espiritual, e cada divindade possui uma função específica em nossa vida e na sociedade. Quando
poluímos ou violentamos a natureza, não são apenas essas(es) deusas(es) que estamos
machucando: é também a parte de nós que se espelha nas terras, nas matas, nos ares e nas águas,
e o fogo que poderia purificar acaba externalizando o seu lado negativo, o de destruição.
Como convivermos harmoniosamente com a natureza através de posturas de
destruição? Como respirarmos um ar tão poluído inflamado por desmatamentos e incêndios,
como os que assolam a Amazônia, afetando o nosso planeta, e que de forma recorrente se faz
120
presente nas discussões mundiais sobre preservação do meio ambiente? Quantas pessoas ainda
precisarão ser soterradas em desastres não-acidentais, como os de Mariana e Brumadinho?
Como viver bem e com saúde, se em muitos alimentos que comemos há venenos (agrotóxicos)
e as sementes são transgênicas (geneticamente modificadas em laboratórios), situações muitas
vezes naturalizadas em nossa sociedade? Como inverter a lógica predominante, que ao apostar
na doença, e não na saúde, tem aumentando o surgimento de novas doenças, alavancando a
indústria farmacêutica, visando ao lucro? Quem serão os próximos assassinados além de
indígenas, negros, mulheres e LGBTQIAP+21? Quantas crianças e adolescentes precisarão
passar fome, sofrer violência sexual e até mesmo se prostituir, ao invés de brincar e estudar?
Até quando a nossa população sofrerá com péssimas condições em termos de saúde pública,
saneamento básico e ensino? Vamos realmente deixar que as nossas universidades públicas se
privatizem para atender aos interesses do capital e do lucro? Quantos terreiros de Umbanda e
Candomblé ainda precisarão ser destruídos para dolorosamente darem visibilidade ao fato de
que, no Brasil, existe preconceito, racismo e intolerância religiosa?
Infelizmente o rosto brasileiro é pintado por homens brancos – um rosto distorcido,
violento, e que não condiz com a real e atual face do Brasil: uma face de diversos rostos e
realidades, e majoritariamente de negros(as), mestiços(as), indígenas e pessoas em situação de
refúgio. O universo das(os) orixás, portanto, toca não apenas nas feridas raciais e religiosas,
mas em tantas outras que, por vezes, não queremos enxergar.
Foi também através dos mitos de orixás e, principalmente, com a referência do livro
Omo-Oba: histórias de princesas (OLIVEIRA, 2009) que pude perceber a importância do
enaltecimento do empoderamento feminino, que nós, mulheres, também carregamos através da
relação com nossas ancestrais e, especificamente nesse contexto, com as orixás femininas.
Porém, muitas vezes me recordo do apagamento e silenciamento desse empoderamento em
minha vida e na vida de muitas mulheres cujos registros de violência familiar e urbana (bem
como de feminicídios) crescem assombrosamente e infelizmente. Ainda somos submetidas a
essa violência, em decorrência de um modelo de sociedade machista e patriarcal, como é a
brasileira.
Felizmente, hoje posso reconstruir-me e minimizar as feridas emocionais vivenciadas
em antigas relações abusivas, o que decerto me faz construir um outro olhar, mais atento, não
apenas para mim, mas também para meninas e meninos, a fim de que essas crianças não
21 Sigla que se refere a pessoas que são Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer/Questionando, Intersexo,
Assexuais/Arromânticas/Agênero, Pan/Poli ou outros.
121
reproduzam relações de submissão e dominação nas perspectivas étnico-raciais, de gênero e de
outras ordens.
Assim sendo, cabe dialogar com Oliveira (2018), quando a autora explicita na sua obra
a relevância de uma abordagem que visa ao empoderamento feminino calçado na ancestralidade
africana:
Tal leitura é fundamental também por revelar princesas, que são na realidade rainhas,
que não estão preocupadas com casamento aos 15/16 anos com um homem jovem,
rico e branco, montado num cavalo também branco; essas princesas mostram um jeito
autônomo de ser associado aos elementos da natureza, trazendo a ideia de que cada
uma de nós guarda dentro de si um poder incrível que nos dá força para enfrentar
qualquer situação, porque carregamos o poder da transformação como grande mistério
e ferramenta para a nossa libertação: uma realeza feminina capaz de se transformar
em abelhas, borboletas ou mesmo búfalos, o que revela algo no trato das questões
raciais em territórios racistas e sexistas como vivemos. A depender da situação, devo
sobrevoar as pessoas para compreender o que de fato está ocorrendo, aí eu procurarei
a energia da borboleta; em outras situações, eu devo adoçar com firmeza as pessoas
que estão amargas, então procurarei a energia da abelha; em outros momentos devo
ser capaz de trazer para o campo de ação a energia de um búfalo, porque é com força
e determinação a resposta a ser dada às pessoas (OLIVEIRA, 2018, on-line).
Destaco alguns trechos da história Oiá e o búfalo interior – Oiá é um outro nome de
Iansã –, que compõe também o livro e caracteriza o que a autora explicitou acima.
Desde criança, Oiá tinha como atributos a beleza, a graça, a rapidez, a determinação
e a genialidade. Era de fato uma menina guerreira. Mas a menina Oiá tinha
conhecimentos que ninguém mais possuía: ela podia transformar-se em animais.
Dentre eles, o búfalo era o que ela mais gostava (OLIVEIRA, 2009, p. 9).
[…] Ogum viu sua amiguinha parar, olhar para os lados e ir atrás de uma árvore,
quando... – Mas o que é isto? – gritou Ogum. Era um búfalo, um búfalo filhote, um
búfalo que sorria e que corria como o vento e que, conforme corria, fazia levantar um
poeirão vermelhão do chão (OLIVEIRA, 2009, p. 13).
Ao que Oiá respondeu: - Toda menina, toda mocinha e toda mulher tem dentro de si
a força e o poder de um animal selvagem sagrado que, em certos momentos, devem
ser colocados para fora, devem explodir para o universo com a mensagem de que
fazemos parte de tudo isto[…] (OLIVEIRA, 2009, p. 15).
A autora caracteriza em sua tese de doutorado em Educação, Candomblé de Ketu e
Educação: Estratégias para o empoderamento da mulher negra (OLIVEIRA, 2008), um
momento específico nas vivências religiosas do Candomblé: o xirê das(os) orixás, a festa
pública onde homenageiam as divindades, através de louvações, cânticos e danças.
Neste âmbito, a autora explicita que, por meio do ato de incorporar (receber espíritos
e divindades nos corpos dos fiéis, filhas/os de santo), as(os) orixás narram suas histórias através
do corpo, compartilhando com a comunidade princípios que as(os) reafirmam como
protetoras(es) dos humanos e ancestrais negras(os) vinculados à realeza:
122
Os orixás retornam para dançar e reviver trechos de suas histórias de vida diante
daquela grande família. Essa segunda entrada é marcada pela elegância das vestes que
recobrem os corpos dos iniciados, por um motivo justo: naquele momento, os
iniciados estão incorporados com seus respectivos orixás. É o momento tão
aguardado: aquele em que os orixás se revelam de forma concreta a todos os presentes;
é o momento em que o orixá vem brincar e compartilhar energias positivas de
prosperidade, de cura, de amor e de equilíbrio de vida. Assim, os orixás, mulheres e
homens divinizados, adentram o salão demonstrando toda a pompa que somente reis
e rainhas portam em seus semblantes, em suas posturas corporais e em suas
ferramentas de poder (OLIVEIRA, 2008, p. 79).
São divindades que estão sempre prontas(os) para atender aqueles que acreditam
nelas(es), seus fiéis e filhas(os), ou mesmo pessoas que necessitam de alento e conforto:
As pessoas se jogam aos pés dos seus orixás preferidos, entregam presentes, gritam,
sorriem, aplaudem: enfim, querem estas junto dos orixás. Enfim, é pura emoção,
porque aquelas deusas e deuses não se negaram a estar próximos de pessoas comuns,
pelo contrário: com humildade e satisfação, eles vêm compartilhar poder com todos
os presentes. Dançam, abraçam, gesticulam, abençoam, aconselham: enfim,
manifestam-se como partes integradas e integrantes do coletivo (OLIVEIRA, 2008,
p. 79).
Ao compreendermos que as divindades estão próximas e suas energias residem em
nós, tornamo-nos seres muito mais conscientes de nosso lugar e atuação no mundo, sempre
visando ao bem do coletivo.
Ali, não existem mais estudantes, doutores, empregadas domésticas, prostitutas,
auxiliares de escritório, o que existem são rainhas e reis que chegaram para
compartilhar o axé, a energia vital, com todos ali presentes; o que prevalece é a ligação
entre o sagrado e o profano revelando, ainda que de forma muito delicada, que existe
uma linha muito tênue, entre deuses, deusas e pessoas comuns ou que, de fato, nosso
corpo é um templo sagrado e guardamos, dentro dele, nossas divindades, expondo-as
em momentos raros, porém coletivos, visando ao bem-estar do grupo (OLIVEIRA,
2008, p. 80-81).
A autora questiona e procura assinalar possibilidades sobre qual a função do dançar
dos orixás no Candomblé, sobre as quais vejo relações com a minha pesquisa, no sentido das
experienciações corporais que foram propostas a partir desse universo.
É possível que seja buscar o êxtase coletivo para revelar, a todos, que nossos corpos
são habitats naturais em perfeita comunhão com a natureza e abrigam corporeidades
africanas capazes de provocar uma grande revolução pessoal e social. Esses corpos
são os grandes receptáculos e guardiões da nossa ancestralidade africana, conhecidos
por nós como orixás, que devidamente acordados, vêm a público para mostrar a
possibilidade de seus mitos estarem sendo revividos por seus fiéis, o que possibilita a
fácil resolução de qualquer problema. Os corpos expressam, a partir da dança dos
orixás, fragmentos de suas vidas e possibilidades de cura dos mais variados aspectos
da vida humana (OLIVEIRA, 2008, p. 81).
123
A partir dessas articulações, compreende-se que orixás são divindades muito distantes
das imagens demoníacas que foram associadas historicamente a elas(es) – e que, por vezes,
ainda podem ser. Eu não conheço um demônio que se preocupe em preservar a natureza e
auxiliar o próximo. Seriam estes demônios (na cabeça daqueles que assim o chamam) aqueles,
internos, que algumas pessoas não querem enfrentar? Sim, pois é mais fácil continuar em uma
redoma classista, purista, machista, preconceituosa, racista e violenta, enquanto muitos
realmente sofrem com essas segregações e humilhações.
Pode-se compreender, portanto, que orixás são ancestrais divinizadas(os) que abrem
portais para que possamos traçar caminhos. Nesta pesquisa, procuro percorrê-los galgada nas
perspectivas afro-referenciadas. Essas perspectivas concebem o ser humano como parte da
natureza, e a partir das relações com a cultura, os mitos, a espiritualidade e o coletivo. Assim
sendo, essas divindades permitem que lutemos por uma sociedade mais justa, humanitária e
democrática.
Esse universo também provoca um estado de abertura e respeito para com o outro, pois
através das experiências compartilhadas podemos aprender mutuamente. E, como é possível
perceber através do recorte da figura dos griots, a tradição oral africana vai além do ato de
contar histórias; é uma transmissão intimamente ligada ao respeito às tradições, galgada nos
conhecimentos transmitidos por ancestrais.
Nas sociedades africanas, a oralidade é um elemento central na produção e
manutenção das mais diversas culturas, dos valores, conhecimentos, ciência, história,
modos de vida, formas de compreender a religiosidade, arte e ludicidade. A palavra
falada, para os povos africanos, possui uma energia vital, capaz de criar e transformar
o mundo e de preservar os ensinamentos. As narrativas orais são registros tão
complexos como os textos escritos. Essas narrativas se articulam à musicalidade, à
entonação, ao ritmo, à expressão corporal e à interpretação. São guardadas e
verbalizadas por narradores ou griôs, treinados desde a infância no ofício da palavra
oral. Eles se apropriam e transmitem crenças, lendas, lições de vida, segredos, saberes,
e têm o compromisso com aquilo que dizem (BRASIL, 2014, p. 34).
Tradições estas de base sólida, porém não rígidas. Por vezes, é necessário que as
sociedades se adaptem ou reestruturem-se a partir das mudanças sociais, culturais e
tecnológicas, mas preservem a essência: “Eu ensinei aos reis a história dos seus ancestrais, a
fim de que a vida dos antigos lhes sirva de exemplo, pois o mundo é velho, mas o futuro vem
do passado” (NIANE, 1960, p. 9 apud BERNAT, 2013, p. 51). Dialogo também com Vansina
(2010), quando afirma:
Uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação
diária, mas também como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais,
venerada no que poderíamos chamar elocuções-chave, isto é, a tradição oral. A
124
tradição pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de
uma geração para outra. Quase em toda parte, a palavra tem um poder misterioso, pois
palavras criam coisas. Isso, pelo menos, é o que prevalece na maioria das civilizações
africanas (VANSINA, 2010, p. 139-140).
“Palavras criam coisas”, pois elas possuem axé – que, para o povo Iorubá, significa
“força vital”, ao evocar poder ancestral e pulsão de vida. Assim nos indica o mestre da tradição
oral africana e escritor Hampaté Bâ: “Se a fala é força, é porque ela cria uma ligação de vaivém
(yaa-warta, em fulfulde) que gera movimento e ritmo, e, portanto, vida e ação […]” (BÂ, 2010,
p. 172).
Quando narro os mitos que escolhi narrar, todo o meu ser se move em direção ao
rememoramento do que está inscrito em minha história corporal, abrindo-me para
possibilidades imaginativas e criativas. Assim, enquanto contadoras(es) de histórias, podemos
criar ou possivelmente dar formas ao invisível, ao soprarmos ou desenharmos palavras no ar,
para tornar críveis as histórias que queremos contar.
No momento em que me descobri como contadora de histórias, momento frenético, fui
engolindo e sendo engolida pelas histórias. Tenho a necessidade de abocanhar as palavras e
deixar que se vistam de meu corpo, pintem-no e enfeitem-no de maneira versátil. A palavra-
corpo para mim é como a correnteza dos rios ou as ondas do mar, pois, ondulando, cria
movimentos, ora sutis, ora intensos, um mergulhar interno e externo de múltiplas palavras e
sensações. Quando encarno a palavra, não é somente eu que recrio as histórias: os meus
ancestrais africanos também falam, brincam e dançam comigo, através de mim.
Nessa confluência, Hampaté Bâ reflete, a partir de sua própria experiência de vida,
conceitos sobre a oralidade enquanto tradição africana, vetor de conexão ancestral e espiritual:
“E se é considerada como tendo o poder de agir sobre os espíritos, é porque sua harmonia cria
movimentos, movimentos que geram forças, forças que agem sobre os espíritos que são, por
sua vez, as potências da ação” (BÂ, 2010, p. 174).
Mente, corpo e espírito – em diversas tradições ou cosmovisões africanas,
diferentemente de um contexto ocidental – são compreendidos de maneira integral. Há uma
vivência experienciada na vida que percebe o humano a partir desses três eixos interligados
entre si. Portanto, a oralidade africana é expressada pela fala, pelo gesto, pelo movimento, em
um corpo que está na terra, mas que também se conecta e expressa o espiritual.
Aquilo que se aprende na escola ocidental, por mais útil que seja, nem sempre é vivido,
enquanto o conhecimento herdado da tradição oral encarna-se na totalidade do ser. Os
instrumentos ou ferramentas de um ofício materializam as Palavras sagradas; o
contato do aprendiz com o ofício o obriga a viver a Palavra a cada gesto (BÂ, 2010,
p. 189).
125
Reflito que, apesar de não ter tido uma iniciação em África, minha necessidade e
tentativa de aproximação com as perspectivas africanas em meu trabalho, na arte e na educação,
simboliza meu encontro pessoal, espiritual e cultural com uma ancestralidade vinculada as(os)
orixás.
Assim sendo, uma perspectiva que me interessa nesta dissertação é apontada por
Ligiéro (2011), ao se ancorar no filósofo do Congo, Bunseki K. Kia Fu-Kiau, sobre a importante
tríade “Cantar-Dançar-Batucar” que este último pensador propõe. Ligiéro (2011), dentro de sua
pesquisa, reflete que essa tríade pode caracterizar algumas performances afro-brasileiras:
Ao considerar a junção das artes corporais às musicais e, sobretudo, acrescido do uso
do canto como algo simultâneo e percebido como uma unidade dentro da performance
africana, Fu-Kiau destaca um dispositivo que, sem dúvida, continua sendo
característico das performances da diáspora africana nas Américas – não é possível
existir performance negra africana sem este poderoso trio, e o mesmo é aplicável em
relação às performances afro-brasileiras (LIGIÉRO, 2011, p. 108-109).
Na ambiência das oficinas, por exemplo, as crianças eram estimuladas a
experienciarem seus corpos brincantes através do despertar do corpo ao som do tambor africano
djembe, e a se transformarem em animais na floresta, estimulados por música cantada por mim
– entre outros exemplos, que serão mais explicitados no próximo capítulo.
Ainda nessa confluência, é importante cruzar alguns conhecimentos propostos pela
poetisa, professora e pesquisadora da cultura afro-brasileira, Leda Maria Martins (MARTINS,
2003):
Cada uma dessas práticas (o teatro, a dança, o ritual, o esporte, as atividades lúdicas,
os jogos, encenações, coletivas, atos artísticos e mesmo expressões pulsionais
emotivas) são modos subjuntivos, liminares, gêneros performáticos cujas convenções,
procedimentos e processos não são apenas meios de expressão simbólica, mas
constituem em si o que institui a própria performance. Ou seja, numa performance da
oralidade, por exemplo, o gesto não é apenas uma representação mimética de um
sentido possível, veiculado pela performance, mas também institui e instaura a própria
performance (MARTINS, 2003, p. 65).
Nesse sentido, aproximo-me da performance entrelaçada à perspectiva africana, que
ressalta um corpo amalgamado de memória ancestral:
Nas danças rituais brasileiras, sejam de ascendência banto ou nagô-iroubá, as
coreografias côncavas e convexas que criam um espaço de circunscrição do sujeito e
do cosmos remetem-nos não apenas ao universo semântico e simbólico da ação ali
reapresentada, mas constituem em si mesmas a própria ação instituída e constituída
pela performance do corpo. Dançar é performar, inscrever. A performance ritual é,
pois, um ato de inscrição. Nas culturas predominantemente orais e gestuais, como as
africanas e as indígenas, por exemplo, o corpo é por excelência, o local da memória,
o corpo em performance, o corpo que é performance. Como tal esse corpo/corpus não
apenas repete um hábito, mas também institui, interpreta e revisa o ato reencenado.
Daí a importância de ressaltarmos nas tradições performáticas sua natureza meta-
126
constitutiva, nas quais o fazer não elide o ato de reflexão; o conteúdo embrinca-se na
forma, a memória grafa-se no corpo, que a registra, transmite e modifica
dinamicamente. O corpo, nessas tradições, não é, portanto, apenas a extensão de um
saber reapresentado, e nem arquivo de uma cristalização estática. Ele é, sim, local de
um saber em contínuo movimento de recriação formal, remissão e transformações
perenes do corpus cultural. Nas tradições rituais afro-brasileiras, alerquinadas pelos
seus diversos cruzamentos simbólicos constitutivos, o corpo é um corpo de adereços:
movimentos, voz, coreografias, propriedades de linguagem, figurinos, desenhos na
pele e no cabelo, adornos e adereços grafam esse corpo/corpus, estilística e
metonimicamente como locus e ambiente do saber e da memória. Os sujeitos e suas
formas artísticas que daí emergem são tecidos de memória, escrevem história.
(MARTINS, 2003, p. 78).
As relações entre oralidade e corporeidade em perspectivas afro-referenciadas são
marcantes, justamente por ser o corpo, esse produtor de saberes, constituído por narrativas e
manifestações experienciadas no mundo. É, portanto, um corpo que se dispõe, que é aberto,
poroso e brincante. Um corpo que me remete aos griots ou djeli, e que evocam uma
corpo(oral)idade: pois ele evidencia as histórias com o axé, a força de minhas(meus) ancestrais
orixás. Texto e corpo são um só, as histórias são encarnadas, presentificadas; são como um
presente, uma oferenda dessas(es) orixás para nós, que a escutamos e a experienciamos.
Após tecer estas considerações, caminho em direção às narrativas construídas por
ocasião das experienciações junto as(os) participantes. Desta maneira retomo e articulo
conhecimentos de alguns autores já apresentados, com os saberes dimensionados nas giras ou
rodas afro-brincantes desta pesquisa.
127
CAPÍTULO 3 – BRINCANDO COM OS GÊMEOS IBEJIS E OUTRAS(OS) ORIXÁS
Cirandando com as crianças e as(os) orixás
Nessa ciranda colorida de mãos dadas com deusas e deuses
Brinquei e dancei com meninas e meninos
Nas histórias e brincadeiras nos encantamos e nos embalamos
Éramos princesas e príncipes, rainhas e reis, guerreiras e guerreiros
Aos sons da natureza e ao rufar dos tambores
Giramos sorrimos e nos divertimos nesse embalo afroancestral
Com a mãe Iemanjá embarcamos nos seus mares
Com Oxum nos embelezamos e nos refrescamos em suas águas doces
Com Iansã dançamos os seus ventos
Com Oxóssi caçamos e desbravamos as suas matas
Com Xangô criamos o seu fogo guerreamos e fomos coroados
Com Ogum abrimos os caminhos e lutamos por suas terras
Aonde os Ibejis cavaram buraquinhos e chegaram até a fonte
Para junto à deusa sagrada a água conquistarem e assim retornarmos ao povoado
Para reavivarmos as memórias aquecermos os corações e nos empoderarmos
Com as belas, alegres, festeiras e lúdicas
Negritudes afrodescendentes
(Lia Braga, Fortaleza/CE, outubro 2019)
4.1 CONSTRUINDO SABERES CIRCULARES
Ao experienciar esta pesquisa com as crianças e as professoras da turma participante,
partilhamos uma lúdica viagem ao universo das(os) orixás, mutuamente afetuosa, com diversas
emoções e construção de conhecimentos. Foram vivenciados inúmeros momentos intensos,
divertidos, problematizadores e com uma riqueza de descobertas e desafios instigantes.
FIGURA 17 – ORÍKÌ'S, AS EVOCAÇÕES
PODEROSAS DOS ORIXÁS
Fonte: Google Imagens (internet).
FIGURA 18 – CIRANDA DE LIA
Fonte: Arquivo da pesquisa.
Edição: Lia Braga e Ronildo Nóbrega.
128
Para articular, a partir desse processo, relações embebidas em pensamentos afro-
referenciados, proponho criar unidades circulares que trazem em sua essência os principais
temas vivenciados na pesquisa; mas antes é necessário mencionar algumas referências.
Primeiramente, no desenvolvimento desta construção, inspirei-me nas proposições de
Oliveira (2008), que em sua tese de doutorado tece as relações “corpo-natureza”, “corpo-mito”,
“corpo-dança”, “corpo-identidade” e “corpo-feminino”, explicitando concepções afro-
referenciadas a partir de conhecimentos tradicionais de terreiros de Candomblé da nação Ketu.
A autora revisita essas relações no texto Religiosidade de Matriz Africana:
Desconstruindo Preconceitos (OLIVEIRA, 2010), abordando a visão de algumas integrantes
das comunidades tradicionais de terreiro. Aqui, irei me deter em breves explicitações sobre as
relações “corpo-natureza”, “corpo-mito” e “corpo-dança”, pois considero que elas perpassam
minha pesquisa.
A relação “corpo-natureza” expressa uma intrínseca percepção de unidade, integração,
sustentabilidade e respeito entre ser humano e natureza: “No Candomblé a gente tá muito ligada
à água, à terra e à folha, a gente não pega uma folha a mais do que precisa, a gente trabalha com
a terra porque é lá que plantamos o que nós vamos comer e na água está a fertilidade dos peixes”
(EBOMI VERA D’OXUM apud OLIVEIRA, 2010, p. 58).
A relação “corpo-mito” potencializa a identidade, o empoderamento e o fortalecimento
feminino, promovendo diálogos entre meninas e meninos: “Eu costumo dizer que os orixás nos
mitos têm algo de mulheres muito guerreiras […]. A gente precisa tirar esses conhecimentos
dessas mitologias e passar para o dia atual, porque fortalece” (EBOMI VERA D’OXUM apud
OLIVEIRA, 2010, p. 58).
Na relação “corpo-dança” existe um sentido, uma entrega, um reconhecimento e uma
conexão com a energia de uma(um) ancestral divinizada(o), através de uma experiência vivida
no corpo:
[…] como será que dança para cada orixá? Comecei a pesquisar e comecei a pensar:
‘se essa energia é capaz de me dominar dessa forma, de me dar esse poder, ela pode
fazer muito mais.’ E a dança mexe com todas as partes de meu corpo, você dança e
está naquele contato, dançando para Oxum você está lá fazendo todas as reverências
para aquela mulher […] (EBOMI ELIANA D’OXUM apud OLIVEIRA, 2010, p. 58-
59).
Inspirei-me também nos Valores Civilizatórios Afro-Brasileiros, do projeto A Cor da
Cultura22 (Figura 19):
22 “A Cor da Cultura é um projeto educativo de valorização da cultura afro-brasileira, fruto de uma parceria entre
o Canal Futura, a Petrobras, o Cidan - Centro de Informação e Documentação do Artista Negro, o MEC, a
129
No portal A Cor da Cultura, pode-se perceber algumas particularidades referentes a
esses valores, e aqui irei me deter em alguns deles, por considerar que foram aqueles
vivenciados de maneira mais intensa junto as(os) participantes nesta pesquisa – apesar dos
demais também terem circulado em minha proposição.
A circularidade possui centralidade nas vivências comunitárias, por congregar todos
e evidenciar união, ciclicidade e transitoriedade:
Todos nós conhecemos o prazer que advém do ato de sentar em roda com amigos para
contar histórias, fazer música, brincar com jogos ou manifestar a religiosidade. Os
próprios valores civilizatórios são bons exemplos de circularidade. A vida é cíclica.
Podemos estar muito bem agora e numa posição ruim depois até que voltemos a um
estado satisfatório. A humanidade inteira permanece unida por este sentimento
circular (www.acordacultura.org.br/kit, on-line).
A corporeidade como eixo mobilizador de experiências individuais e coletivas nos
reporta a memórias sociais e culturais:
Este conceito nos ensina a respeitar cada milímetro do corpo humano, que deve estar
presente em cada ação e em diálogo com outros corpos. As demandas corporais devem
ser consideradas. Afinal, o corpo atua, registra nele próprio a memória de várias
maneiras, seja através da dança, da brincadeira, do desenho, da escrita, da fala. Das
Fundação Palmares, a TV Globo e a Seppir - Secretaria de políticas de promoção da igualdade racial. O projeto
teve seu início em 2004 e, desde então, tem realizado produtos audiovisuais, ações culturais e coletivas que visam
práticas positivas, valorizando a história deste segmento sob um ponto de vista afirmativo”. Informações extraídas
do site oficial do projeto, <http://www.acordacultura.org.br/>.
FIGURA 19 – VALORES CIVILIZATÓRIOS AFRO-BRASILEIROS
Fonte: Google Imagens (internet).
130
músicas às danças, com tudo o que elas anunciam e denunciam. Os corpos dançantes
revelam memórias coletivas [...] (www.acordacultura.org.br/kit, on-line).
A musicalidade como um valor agregado à corporeidade – corpo este que dança e vibra
sons e melodias afrodescendentes:
Famosa no mundo inteiro pela sua qualidade inconteste, a música brasileira tem os
dois pés bem fincados no Continente Negro. Quem resiste aos encantos de uma
batucada? A musicalidade, a dimensão do corpo que dança e vibra em resposta aos
sons só reafirma a consciência de que o corpo humano também é melódico e
potencializa a musicalidade como um valor [...] (www.acordacultura.org.br/kit, on-
line).
A ancestralidade nos reporta a uma teia ancestral que nos guia a cada passo, tecida
nas memórias do passado e reavivadas no presente, construindo o nosso futuro:
Quando se pensa em ancestralidade, faz-se uma imediata ponte com a história e a
memória. Convém não esquecer o passado. Não há fórmulas complexas para vivenciar
o que é, de fato, a ancestralidade. Quer provar? Então saia em busca do relato dos
mais velhos, que trazem o rico imaginário afro-brasileiro [...]
(www.acordacultura.org.br/kit, on-line).
Com a ludicidade aprendemos de maneira divertida e coletiva, com os mais velhos,
juntos aos mais novos:
Entre suas variadas utilidades, os jogos sempre viabilizaram o aprendizado. Também
serviram para transmitir as conquistas da sociedade em diversos campos do
conhecimento. Quando os membros mais velhos de um grupo revelam aos jovens
como funciona um determinado jogo de tabuleiro, por exemplo, eles transmitem uma
série de conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural daquele grupo [...]
(www.acordacultura.org.br/kit, on-line).
A oralidade como elo entre memória, passado e presente, que se corporifica em nossos
atos, gestos e ações, mobilizando a expressão e a inteireza do nosso ser:
Herança direta da cultura africana, a expressão oral é uma força comunicativa a ser
potencializada. Jamais como negação da escrita, mas como afirmação de
independência. A oralidade está associada ao corpo porque é através da voz, da
memória e da música, por exemplo, que nos comunicamos e nos identificamos com o
próximo (www.acordacultura.org.br/kit, on-line).
Além destas referências, os diferentes momentos vivenciados na pesquisa me
inspiraram a construir no contexto desta dissertação as unidades circulares Criança Artista,
Criança Natureza, Criança Orixás e Criança Negritude. Para cada uma delas, afloram
reflexões a partir de suas características específicas e dos temas mais instigantes que emergiram
durante o processo vivenciado. Ainda procurei perceber como alguns conceitos-chave que
131
nortearam o desenvolvimento da pesquisa foram se vinculando ou se manifestando no contexto
dessas unidades, com especificidades. Para uma melhor visualização, organizei um quadro com
as respectivas unidades circulares e conceitos-chave, além de ter criado uma figura para
apresentá-los de forma mais integrada e circular.
QUADRO 4 – CIRCULARIDADES AFRO-BRINCANTES
Unidades Circulares Conceitos-chave
Criança Artista: experienciações das crianças
com processos criativos a partir de elementos
lúdicos e artísticos;
Corpo-Poroso: corpo aberto, maleável, que se
permite a relação entre respiração e criação. Petit
(2015) apresenta pistas que me fazem refletir esta
última relação;
Criança Natureza: experienciações das crianças
com elementos e características vinculadas à
natureza, tais quais, ar, terra, fogo, água e outros;
Corpo Brincante: corpo que é brincante no
próprio ato de jogar e brincar. Conceito vinculado
à cultura popular e contextualizado em minha
pesquisa monográfica (BRAGA, 2017);
Criança Orixás: experienciações das crianças
com as deusas e os deuses africanas(os), através
da oralidade e da corporeidade;
Corpo-Dança Afroancestral: corpo que
experiencia a dança ou expressões corporais,
conectado e emergido em uma ancestralidade
africana. Conceito criado e fundamentado por
Petit (2015);
Criança Negritude: experienciações das crianças
com manifestações simbólicas, culturais, dentre
outras, que perpassam a negritude, e também,
expressões positivas como valorização,
reconhecimento, etc. ou negativas, como
preconceito, racismo, etc.
Criança Performer: a criança é performer quando
assume o seu estado de presença no mundo,
através de sua realidade, bem como em contextos
de criação artística. Conceito criado e
fundamentado por Machado (2010b).
FIGURA 20 – CIRCULARIDADES AFRO-BRINCANTES
Concepção: Lia Braga.
Arte: Daliana Medeiros Cavalcanti.
132
A partir de alguns questionamentos e sugestões da banca no exame de defesa desta
dissertação, bem como com a contribuição de minha irmã Júlia Braga para a criação desta
figura, escolhi o símbolo do infinito como base e elo entre as unidades circulares e os conceitos-
chave. Sobre o seu significado é possível destacar que ele “[...] representa eternidade,
divindade, evolução, amor e equilíbrio entre o físico e o espiritual. É representado por um oito
deitado, ou seja, uma curva geométrica com um traço contínuo. Simboliza a inexistência do
início e do fim [...]”23.
Neste sentido, acredito que este símbolo reflete alguns valores afro-referenciados,
principalmente os princípios de integração, circularidade e ciclicidade. Contextualizando-o na
pesquisa, ele fora escolhido para que pudesse imbricar dentro de si as unidades circulares e os
conceitos-chave com a ideia do eterno retorno do que vai e do que vem de maneira fluída e
constante, como os ciclos da natureza se apresentam na vida, sem um início ou fim específico.
Na criação e na construção conjunta com minha amiga Daliana Cavalcanti, escolhemos
o marrom como cor base para se fazer presente no símbolo, com algumas nuances de tons, pois
os mesmos nos remetem à terra, aos chãos sagrados de solos africanos. Solos estes que
germinam e brotam unidades e conceitos desta pesquisa, e que são circundados e embelezados
com o amarelo dourado da deusa Oxum. Também elencamos imagens brincantes para
acompanhar estas nomenclaturas e dar mais vida e riqueza a elas.
Neste contexto, escolhemos a orixá Oxum como o centro da figura, estando esta deusa
dentro do seu próprio espelho (abebé), o espelho do encantamento. Oxum e seu abebé refletem
a união dos cruzamentos das circularidades afro-brincantes, unidades e conceitos que estão
dentro do símbolo do infinito e se movem na dinâmica das águas doces desta deusa. Suas
correntezas suaves proporcionam que estas circularidades se renovem a cada leve e ainda assim
intenso vai e vem de suas águas.
Mamãe Oxum, com toda a sua beleza, graça, doçura, sensibilidade e riqueza, é água
fértil que gesta e faz prosperar as crianças, estando sempre em conexão com as mesmas. Dos
seus rios nascem meninas e meninos, como a continuidade desta ancestralidade que reafirma
valores e cosmovisões afro-referenciadas. Assim sendo, possibilitar que as crianças revelem
suas potencialidades artísticas, a partir e em comunhão com a natureza e as(os) orixás,
evidenciam as negritudes afrodescendentes. Com isto, o ato de respirar e de criar promove que
o brincar, o dançar e o performar das crianças se expressem organicamente e circularmente
nesta infinidade de possibilidades, de entrecruzamentos e diversos encantamentos.
23 Definição retirada de https://www.dicionariodesimbolos.com.br/infinito/.
133
O Quadro 4 e a Figura 20, anteriormente apresentados, constituem um recurso
metodológico construído para materializar o conjunto de elementos que compõem o todo, as
Circularidades Afro-Brincantes e seus vínculos. Assim sendo, as unidades circulares e os
conceitos-chave me guiarão no processo de tessitura deste capítulo, que é central na minha
trajetória investigativa e, consequentemente, o mais desafiador.
Nesta construção, apresento algumas descrições fenomenológicas com o intuito de ser
o mais fiel possível em relação às experiências e narrativas das(os) participantes. Busquei ir ao
cerne do que fora experienciado, visando à redução fenomenológica para assim desvelar o
fenômeno vivenciado nesta pesquisa. As múltiplas descobertas e os achados com as crianças e
as professoras da turma desvendaram nossa experiência conjunta e orientaram as articulações
aqui tecidas.
4.2 AS CRIANÇAS E SUAS CRIAÇÕES ARTÍSTICAS
FIGURA 21 – JOGO/BRINCADEIRA CORPORAL “NÃO DEIXE O BALÃO CAIR”
Fonte: Arquivo da Pesquisa
Edição: Júlia Braga e Lia Braga
Neste tópico, irei me aprofundar mais na unidade circular Criança Artista, cuja
especificidade são as experienciações das crianças com processos criativos a partir de elementos
lúdicos e artísticos. Mas, antes, trarei de forma resumida minha aproximação inicial com o locus
da pesquisa, o NEI/Cap/UFRN, a fim de explicitar algumas abordagens desenvolvidas na
instituição que se aproximam com a referida unidade circular.
Desde novembro de 2018, realizei os primeiros contatos com a instituição, reunindo-
me presencialmente com a antiga coordenadora pedagógica da Educação Infantil. Depois, em
fevereiro de 2019, fui contatada pelo coordenador de projetos, e, posteriormente, em março,
134
nos reunimos juntamente com a nova Coordenadora Pedagógica da Educação Infantil, a fim de
explicitar algumas questões sobre a pesquisa.
Também participei de um ciclo de oficinas ofertadas pelo NEI, abordando diversos
temas. Minha participação foi importante para que eu pudesse compreender e dialogar com
algumas diretrizes e concepções desenvolvidas pela instituição ao longo do tempo.
Desde os encontros com os profissionais já citados nas reuniões sobre o meu projeto,
bem como a partir destas oficinas, percebi que minha pesquisa se afinava com a proposta
pedagógica e metodológica da instituição, e também com as formas de percepção sobre as
crianças.
Anteriormente a esse ciclo de oficinas, contatei a Professora Titular da turma
participante da pesquisa, e desde o princípio percebi sua abertura, de modo que socializei o
planejamento das oficinas. Na reunião seguinte, percebi, por parte da professora, acolhimento
e afinidade em relação à proposta, o que foi muito positivo. Dialogamos sobre o planejamento
e ajustamos algumas questões práticas, como dia e horário para a realização das oficinas, bem
como o encaminhamento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) aos
pais/responsáveis pelas crianças, termo este que permitiu a participação delas na pesquisa.
Na ocasião, ela mencionou algumas características da turma: duas crianças com
deficiência, a existência de diversidade étnica e física e o fato de algumas crianças serem muito
agitadas. Mencionou também que, certamente, elas iriam se afinar com a proposta, pois
gostavam muito de atividades corporais, tais como dança e teatro, e que, portanto, iriam se
sentir bem – que não teriam dificuldade ou rejeição diante das propostas vinculadas ao projeto.
Inclusive, a professora ressaltou em entrevista inicial, no dia 9 de maio de 2019, aspectos sobre
as crianças da turma: “Elas utilizam esse corpo, elas se colocam, elas são donas dos seus
processos criativos [...]”.
Como já explicitado anteriormente, trarei alguns exemplos da rotina escolar das
crianças, o que demonstra que elas vivenciavam atividades lúdicas e artísticas no cotidiano da
instituição – inclusive com a experienciação corporal, nas aulas com as professoras
responsáveis pela turma e nas aulas de teatro e música, com os seus respectivos professores.
Neste seguimento, a narrativa da Professora Substituta, em entrevista inicial cedida no dia 23
de maio de 2019, é bem elucidativa:
[...] a nossa rotina é constituída para as crianças, para o lúdico, então, são momentos
que eles participam. Nós brincamos, brincamos de brincadeiras típicas da infância,
ensinamos a brincar. Muitas crianças ainda não, não conseguem diferenciar
brinquedos de brincadeiras ou não conhecem algumas brincadeiras. Então nós
reservamos momentos fora da sala de aula para brincar de roda, nós temos o espaço
135
faz de conta que nós brincamos e nesse faz de conta, as crianças podem, vestir
fantasias, usar desse momento para viver de situações [...] do dia a dia [...] em que
eles são protagonistas dessa história e, temos outros espaços dentro da escola que nós
usamos também, as aulas de música, têm a brinquedoteca, a própria biblioteca e o
momento de contação de história, é um momento de ludicidade de interpretação, onde
eles podem viver e recriar personagens.
Assim sendo, é possível articular essas especificidades mencionadas pelas professoras
com as considerações de Japiassu (2010, p. 78), quando o autor explicita: “Costumam-se
introduzir as atividades com a linguagem teatral por meio de jogos tradicionais infantis nos
quais é ressaltado algum aspecto original de teatralidade”.
Nesse sentido, a Coordenadora Pedagógica da Educação Infantil, na entrevista
realizada no dia 06 de junho de 2019, salienta como as linguagens artísticas desenvolvidas nas
aulas de artes contribuem para o processo formativo das crianças:
[...] de modo muito significativo [...] entendemos também que as linguagens artísticas
envolvem a música, o teatro, a dança e as artes visuais, então são aspectos que são
contemplados [...] na nossa proposta e que ensinam muito as crianças, não só questões
relacionadas a esse conhecimento estético e crítico, né, mas também à questão da
expressão delas, de poderem... da criação, expressão, contextualização, de poder
apreciar, né, também de modo lúdico [...] É um dos recursos que nós estabelecemos
também pra questão da aprendizagem e do desenvolvimento das crianças.
Cabe revisitar em Braga (2017), a partir de diálogo com as contribuições do filósofo
em Educação e professor doutor no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas,
João Francisco Duarte Júnior (DUARTE JÚNIOR, 1981), ao mencionar que a partir da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação/LDB nº 5.692/71 a Educação Artística tornou-se obrigatória no
ensino de 1º e 2º graus no Brasil, compreendendo os ensinos de música, teatro e artes plásticas.
Porém, insatisfeito com este direcionamento, o movimento arte-educação passou a
discutir e problematizar esta e outras questões, objetivando uma nova orientação vinculada ao
ensino de Arte por parte das entidades24.
A partir destas articulações e de avanços alcançados com a LDB de 1996, o ensino de
Arte tornou-se obrigatório nos diversos níveis da Educação Básica, sem, no entanto, indicar os
tipos de linguagens artísticas. Já na LDB de 2016 houve a inclusão específica das artes visuais,
24 A Federação de Arte-Educadores do Brasil/FAEB solicitou retificação do termo que designa a área de
conhecimento “Educação Artística” pela designação “Arte, com base na formação específica plena em uma das
linguagens: Artes Visuais, Dança, Música e Teatro”. A Federação ressalta que, na LDB de 1971, o ensino de Arte,
intitulada Educação Artística, considerada como “atividade educativa” e não como disciplina, gerou uma
consequência negativa: “a perda da qualidade dos saberes específicos das diversas formas de arte, dando lugar a uma
aprendizagem reprodutiva” (BRASIL, 2005, p. 1).
136
da dança, da música e do teatro, como linguagens que constituem o componente curricular
obrigatório do ensino de Arte.
Marques (2012) explicita a importância da compreensão da arte como linguagem, ao
destacar a dança como potencialização da expressividade da criança na fruição do fazer artístico:
Partindo desse olhar para a arte, os processos criativos pelos próprios alunos tornam-
se vitais para que compreendam em seus corpos/mentes esses outros caminhos – os
deslocamentos – para as leituras de mundo. A dança [...] quando trabalhada como
linguagem – e não como um conjunto de passos a serem ensaiados, repetidos,
decorados mecanicamente e apresentados displicentemente – pode abrir caminhos
para que cada criança seja protagonista em/de seu próprio corpo, de seus próprios
movimentos, de sua própria dança, de sua própria vida, enfim. A dança, se
compreendida como arte, linguagem e conhecimento tem o grande potencial de abrir
canais para a expressividade da própria criança no universo da fruição e do fazer arte
(MARQUES, 2012, p. 62).
Nessa confluência é possível também dialogar com as contribuições de Alves (2019),
quando a autora articula as experiências da criança com a dança, o que amplia seus aprendizados
corporais e artísticos, bem como as interações sociais:
Vivenciar a dança na infância, além de poder conhecer aspectos da dança em si, a
criança pode experienciar novos estímulos motores, afetivos, criativos, sociais,
visuais, entre outros, e isso pode levá-la a se perceber como um ser expressivo, com
senso de confiança e convivência em grupo (ALVES, 2019, p. 228).
A autora também evidencia que o processo artístico e pedagógico, através do ensino
de dança, possibilita à criança se desafiar a partir das descobertas vivenciadas:
Ressaltamos que o ensino da dança precisa considerar as possibilidades e dificuldades
da criança, auxiliando-a a se conhecer e a se expressar corporalmente e desenvolvendo
a aquisição de novas habilidades e interações sociais. O relevante, nesse sentido, não
é restringir o ensino da dança em ensaios ou espetáculos para festas da escola. A
prioridade é possibilitar à criança a vivenciar processos pedagógicos de conhecimento
do corpo e de suas possibilidades motoras e expressivas no campo da arte de dançar
(ALVES, 2019, p. 231).
As abordagens interdisciplinares desenvolvidas na instituição NEI, envolvendo as
linguagens artísticas integradas à ludicidade, com certeza auxiliaram o processo de abertura e
envolvimento das(os) participantes diante desta proposta artística. A mesma agregou novos
conhecimentos e experiências às crianças e também às professoras responsáveis pela turma
participante, de maneira articulada com as diretrizes e concepções desenvolvidas na instituição.
Ainda convém destacar o desenvolvimento de atividades corporais com a turma, sendo
o corpo pensado e articulado a partir de estudos e práticas na instituição, conforme depoimento
da Professora Titular, na entrevista inicial:
137
Também é uma característica da escola, a gente tá muito preocupado, a gente têm
grupos de estudo, que discutem o movimento e o corpo na infância né? Porque, o
corpo está presente né? Ali, é um fato, mas [...] é muito diferente eu sair [...] do ensino
fundamental [...] e voltei para a educação infantil, onde eles são muito o corpo, eu
acho que muito mais até, por N motivos. Então, é, um dos eixos que a gente trabalhou
esse ano já, foi, através da brincadeira, esse corpo nas brincadeiras [...] E aí a gente
têm também na proposta pedagógica, um trabalho com esses movimentos [...] Porque
assim, a gente faz, práticas de relaxamento, é, são pequenos detalhes [...] esse corpo
que, as vezes é muito travado, é muito rígido, então a todo momento, eu estou tentando
soltar esse corpo e o trabalho metodológico têm sido feito com as brincadeiras, dentro
da proposta... dentro do tema de pesquisa deles, que é o NEI [...].
No 1º dia de observação, em um determinado momento da rotina do dia, as crianças
fizeram uma roda em pé, pois a Professora Iemanjá havia proposto uma brincadeira com uma
música que estimulava experimentação corporal. Percebi que eles gostavam de se expressar
com o corpo, às vezes com movimentos rápidos e intensos, e às vezes caíam no chão. Nesse
sentido, as crianças expressaram seu Corpo Brincante, que é brincante no próprio ato de jogar
e brincar, estimulado pela proposição lúdica.
Nessa dinâmica, quando a professora sugeriu “corpo livre para voar!”, percebi também
a manifestação do Corpo-Poroso, aberto e maleável quando a menina Gatinha Folha fez
movimentos de soltar os quadris e outras crianças exploraram um pouco mais o espaço da sala.
Ainda nessa contextualização, a música inicialmente foi colocada em uma caixa de
som, mas a professora se lembrou da falta de luz daquele dia: algumas crianças caíram no chão
e disseram “Ah, eu estou morrendo!”. A expressão verbal e corporal delas me remete ao
conceito-chave Criança Performer e à contribuição de Machado (2010b), quando a autora
explicita que a criança é performer ao assumir o seu estado de presença no mundo, através de
sua realidade, bem como em contextos de criação artística.
Dialogo agora com outra situação, vivenciada na 4ª oficina, quando, ao contar a
história Os Ibejis são transformados numa estatueta (PRANDI, 2001), narrei que um dos
irmãos gêmeos Ibejis caiu em uma cachoeira, foi levado pela correnteza e morreu; demonstrei
a cena movimentando um dos dois bonecos que utilizei para representar este orixá.
A menina Gatinha Folha se aproximou devagar e decidida, pegou o boneco que estava
no chão, levou-o para trás da bolsa de palha e, ao retornar, disse: “Tá lá enterrado!”. Depois a
menina Cachoeira foi para trás da bolsa. A Professora Sol, que naquele dia me acompanhou,
chamou atenção para a menina voltar para o seu lugar. Gatinha Folha então correu para
verificar se o boneco estava no mesmo lugar que ela havia deixado, e só depois voltou para
perto das outras crianças.
138
Essas situações vivenciadas sobre a morte e a maneira como as crianças relacionaram-
se com ela explicita o que Machado (2010b) expõe: “[...] haveria, na experiência da criança
pequena, uma ‘aderência às situações’ que a impede de representar o mundo: ela não representa,
ela o vive” (MACHADO, 2010b, p. 128). Na primeira situação, é como se a falta de luz abafasse
e reduzisse a vida das crianças, minguando seus corpos performáticos ao chão. Já na segunda,
a menina performou e personificou a morte “enterrando” o boneco, e ainda garantiu que
nenhuma perturbação o retirasse de lá, ao verificar que ele estava seguro atrás da bolsa.
Na 3ª oficina, mesmo sem cogitar inicialmente, decidi repetir o jogo/brincadeira
corporal Espelho, organizando as crianças em duplas ou trios a fim de brincarem de serem o
espelho, imitando umas às outras; primeiro uma se movimentava, e a outra repetia, depois
trocavam e alternavam os movimentos. Quando coloquei a música africana chamada Olélé
moliba makasi – Chanson africaine pour les enfants (avec paroles)25, a maioria das crianças
quis correr, e então solicitei que elas retornassem à dinâmica dos espelhos.
Nessa dinâmica, percebi uma linda experimentação por parte da menina Leoa Oxóssi,
que freneticamente se movimentava no seu eixo, com tremidinhas no corpo e movimentos que
lembravam a ondulação de ondas nos braços, de um lado para o outro; depois deu dois giros
em volta de si mesma e, nesse momento, com os braços juntos, parecia que ela segurava uma
bola. Depois a menina se deslocou pelo espaço, desacelerou o ritmo, fazendo movimentos mais
lentos, tocou em seus cabelos, girou em volta de si, juntou os braços com a imagem da bola e,
posteriormente, com os braços soltos, a imagem era a de que estivesse escorrendo água através
das suas ondulações – esta foi a imagem que se formou em meus olhos.
Notei que a menina Leoa Oxóssi estimulou sua parceira de espelho Coelhinha, e as
duas seguiram no mesmo ritmo e no mesmo desenho corporal, sempre com a sensação de
tremidinhas nos corpos e movimentos ondulares nos braços. Coelhinha girou em seu próprio
eixo e, em seguida, Leoa Oxóssi a imitou, depois com movimentos de braço para o mesmo lado,
que pareciam ser, para mim, a “correnteza” jorrando água para fora.
As experienciações corporais estimuladas e em conexão com a música africana,
através da dança criada pelas meninas, me remeteram ao potencial de criação da orixá Iemanjá,
podendo também ser associadas às manifestações de duas unidades circulares, Criança
Natureza e Criança Orixás, que serão desenhadas nos próximos tópicos.
25 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=kd6ZTylHUx4>. Acesso em: 25/10/2019.
139
Nesse sentido, Lody e Sabino (2011) explicitam: “Então se vivem o mar, a água, o
peixe, os oceanos nas suas fantásticas e míticas extensões; vive-se a sereia, como diz a lenda
[...] yorubá: ‘Dos grandes seios de Iemanjá jorram dois rios de onde nascem os demais orixás.
Todos chegam das águas’ (LODY; SABINO, 2011, p. 157). Assim sendo, a primeira menina
estimulou a outra a sentir e vivenciar corporalmente o mover e o jorrar de águas, e juntas
estiveram irmanadas nessas proposições.
Ainda na mesma dinâmica, elas se jogaram no chão, como se girassem em cima de
uma grama bem gostosa: primeiro Coelhinha, depois Leoa Oxóssi, girando para a esquerda e
para a direita. As construções coreográficas experienciadas pelas duas meninas revelaram o
Corpo Brincante e dançante delas neste jogo/brincadeira corporal do Espelho. Assim:
Outra proposição bem interessante e que as crianças gostam muito é o jogo do espelho.
De frente uma para outra, é escolhido um condutor (depois há revezamento) entre
movimentos prolongados e repentinos. O espelho (criança que não está conduzindo a
dança) trata de colocar/sentir em seu corpo as proposições do condutor [...] perceber
em si mesmo a maneira como o movimento criado pelo colega se realiza. O divertido
nessa proposta é que o espelho não pode “bobear” quando o condutor passa
rapidamente de um fator de tempo a outro – do prolongado ao repentino, voltando
para o prolongado e assim por diante (MARQUES, 2012, p. 139-140).
As meninas espontaneamente dialogaram com seus corpos em estado de abertura,
plasticidade, inventividade e criação:
[...] é necessário que possibilitemos e motivemos as crianças a criar, inventar,
descobrir, experimentar e experienciar outras formas de estar no mundo com seus
corpos; é necessário que sintam no corpo o prazer dessa inserção e de diálogos
transformadores – e não reprodutores – com o mundo. Uma das possibilidades para
que isso aconteça é engajarmos as crianças em atividades de dança, de arte
(MARQUES, 2012, p. 59).
Ainda no momento das observações, no 5º dia, a Professora Iemanjá propôs um
momento de relaxamento, no qual as crianças iriam meditar, e colocou uma música própria para
meditação. Eu havia pensado que em algum momento poderia propor uma atividade com
respiração, então perguntei a ela se eu poderia ajudar, e ela expressou que sim, dizendo à turma:
“Lia quer nos ensinar uma coisa!”
Algumas crianças já estavam na roda sentadas; eu me aproximei e falei para
organizarmos o corpo e sentarmos, convidando as que ainda não estavam na roda, para
meditarmos. Percebi que a menina Gatinha Folha estava sentada com uma postura que
lembrava o ato de meditar, então pedi para olharmos a sua postura e tentarmos ficar como ela.
O restante das crianças se organizou, mas algumas delas, como a menina Cachoeira, ficou
140
dentro da roda tentando chamar atenção. Perguntei a ela se me deixaria continuar e depois
comecei a explicar e demonstrar a respiração:
Eu: “Essa é uma respiração simples e que ajuda a gente a ficar tranquilo.”
[A menina Raposa comentou sobre meu colar, que em outra ocasião já havíamos
comentado; algumas crianças vieram até mim, querendo sentir o cheiro com óleo
essencial de lavanda do colar difusor.]
Eu: “Olha como é cheiroso!”
[As crianças demonstraram achar bom o cheiro, e o menino Gato Ninja do Fogo
comentou que conhecia esse cheiro, porque a sua mãe o usava.]
Eu: “Pois vamos sentar para aprender a respirar?”
[Demonstrei uma técnica de respiração que havia explicado para algumas crianças no
3º dia de observação, em uma ocasião no recreio.]
Eu: “Eu quero ver quem vai fazer bem bonito, no final eu vou colocar o cheirinho em
quem fez bem bonito!”
[As crianças foram fechando os olhos, se organizando, praticando a respiração, e eu
mudei de ideia.]
Eu: “Eu tenho uma ideia: enquanto vocês fazem bem bonito, eu vou passar em cada
um para colocar o cheirinho!” [Orientei a respiração.] Puxa o ar pelo nariz e solta pela
boca, e se quiser soltar o som do ar pode soltar, ahhhhhhh!”
[Fui passando de um por um, colocando o óleo essencial no pulso e dizendo para eles
sentirem o cheiro, enquanto relembrava como era a respiração. Eles esperavam
pacientemente, na postura, fazendo a respiração, e a maioria se mantinha de olhos
fechados.]
Eu [ao ver uma menina]: “Gente, vamos olhar um minuto para ela, ela está fazendo
uma postura bem bonita da Yoga26, que é a Flor de Lótus, é uma flor na perninha dela...
Vamos fazer como ela?”
Menina: “Ah, eu ensino!”
Eu: “Pois ensine!”
[A menina começou a explicar e as outras crianças também iam realizando a postura.]
26 Yoga, em linhas gerais, refere-se a uma filosofia e prática física e, dentre outras características, reúne
espiritualidade, bem-estar físico e emocional. Na hora não expliquei isso, ou perguntei às crianças se elas
conheciam Yoga, porque me interessava mais articular as posturas corporais que elas mesmas iam propondo.
141
Professora Iemanjá: “Eu não consigo.”
Eu: “Ah, cada um vai no seu limite!”
[Depois que passei por todos e me sentei, tentei fazer a postura, mas não consegui
realizá-la completamente.]
Menina Raposa: “Ah, se esforça!”
Eu: “Mas eu não consigo, só consigo a meia Lótus!”
A Professora Iemanjá perguntou se poderia deitar, e eu disse que sim, que quem
quisesse poderia ficar deitado e quem quisesse poderia ficar sentado. Aos poucos começaram a
se dispersar, e percebi que não deveria mais intervir.
Esse foi um momento muito bonito e especial para mim, pois percebi que tanto para
as crianças como para as professoras houve uma vivência de relaxamento, concentração e bem-
estar. Houve momentos, por exemplo, em que todas(os) estavam bastante concentrados, e eu
expressava: “Olha como é bom estarmos assim tranquilos, não precisa estar toda hora
gritando!”, e a Professora Iemanjá expressou, “É ótimo!”. Tanto ela quanto a Professora Sol
agradeceram, no momento em que passei o cheiro nelas. Percebi que tanto o menino Gato Ninja
do Fogo quanto outra menina fizeram mãos de agradecimento no peito, como na prática de
meditação ou Yoga.
Percebo que essa prática, no meu último dia de observação, abriu espaço para uma
maior aproximação com as crianças e também com as professoras, introduzindo outras formas
de experienciar e sentir o corpo, promovendo tranquilidade, sinergia e bem-estar coletivo. Essa
vivência improvisada estabeleceu vínculos, compondo outras maneiras de experienciação
corporal, mais sutil, sensível e sensorial.
Em meio a períodos tão turbulentos, agitados e com tantos estímulos eletrônicos, um
momento para parar, sentir, respirar e relaxar é também um momento para cuidarmos da nossa
saúde física e mental. Penso que as crianças, desde bem pequenas, podem e devem experienciar
outras rotinas e ampliar suas percepções corporais e sinestésicas; afinal, o corpo é livre para
sentir, estar e se mover no mundo, é um amálgama de sentidos, percepções e expressões
múltiplas e híbridas. Sentir, refletir, questionar e experienciar o corpo, a meu ver, está bem
longe de regras, condutas, padrões ou caixinhas de enquadramento. Essa forma de perceber o
corpo também se faz presente nas perspectivas afro-referenciadas: um corpo uno e integral com
o todo, um corpo em que nele próprio a vida pulsa, gira e se move.
Daí se pode dizer que, nesta experienciação, as crianças puderam se conectar com o
Corpo-Poroso, ao aprender umas com as outras, ampliando e socializando novas posturas
142
corporais. Corpos estes em estados de abertura e maleabilidade na relação entre respiração e
criação, pois, através do ato de respirar, sentimos e criamos vínculos com o mundo, que nos
atravessa enquanto experiência. A respiração é o vento que não cessa de se mover; sem ela de
fato não existiríamos.
Assim, é oportuno destacar que, nessa dinâmica, os corpos das crianças em estado de
disponibilidade ampliaram a percepção de seus corpos e mundos vividos, cabendo revisitar e
articular as proposições de Alves (2019):
Desse modo e a partir de um olhar fenomenológico, entendemos que o ser humano é
antes de tudo o seu próprio corpo, e portanto, as relações estabelecidas com o outro,
com o meio, com os objetos é o que permite, em grande parte, o seu desenvolvimento
e o desenvolvimento de sua capacidade perceptiva. São suas experiências que o
tornam corpos-sujeitos de suas ações e, nesse sentido, estando a criança em um
ambiente favorável que a possibilite vivenciar práticas variadas, mais possibilidades
ela terá de se desenvolver e de perceber o seu mundo-vivido. O corpo e o movimento
tornam-se referenciais de percepção, o ponto de partida para toda experiência humana,
de modo que ao explorar o mundo por meio de experiências concretas, a criança se
desenvolve desde os primeiros dias de vida (ALVES, 2019, p. 228-229).
A incorporação dessas vivências reflete o corpo-próprio das crianças, que, em diálogo
com a sua experiência, ressignifica a si mesmo, conforme salienta Merleau-Ponty (1999):
Assim, a permanência do corpo próprio, se a psicologia clássica a tivesse analisado,
podia conduzi-la ao corpo não mais como objeto do mundo, mas como meio de nossa
comunicação com ele, ao mundo não mais como soma de objetos determinados, mas
como horizonte latente de nossa experiência, presente sem cessar, ele também, antes
de todo pensamento determinante [...]. O corpo surpreende-se a si mesmo do exterior
prestes a exercer uma função de conhecimento, ele tenta tocar-se tocando [...]
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 136-137).
Corroborando essas reflexões, Machado (2010a) sensibiliza educadoras(es) e
pesquisadoras(es) ao dar relevo à noção de corporalidade, dialogando, assim, com as
contribuições da fenomenologia proposta por Merleau-Ponty (1999, 2006):
Para chegar perto da noção de corporalidade, o educador ou pesquisador deve “olhar
com os olhos”, “cheirar com o nariz”, “tocar com as mãos e pés”, “saborear com a
boca” todas as cores da vida infantil, perscrutando as relações das crianças consigo
mesma, com o outro e com o mundo: “somente a análise da situação infantil e da
situação adulta pode fundamentar a pesquisa fenomenológica” […]. Para saber a
corporalidade, é preciso vivê-la. Para compreender a corporalidade da criança
pequena, o adulto precisa ser um bom observador, capaz de descrever em palavras o
que vê. O dom da imaginação é um ingrediente importante [...] Procurar pensar com
os cincos sentidos, com a memória e a imaginação; partindo da noção de
distanciamento fenomenológico [...] a criança será o foco, não o “eu” adulto – ou,
ainda, a relação criança-adulto será o mote para praticar o modo fenomenológico de
compreensão de contextos e situações vividas (MACHADO, 2010a, p. 42-43).
143
No decorrer desta pesquisa, “pensar com os cincos sentidos, com a memória e a
imaginação”, como sugere a autora, mobilizou minha experiência junto às crianças, ampliando
nossos olhares, horizontes e corpos-vividos. Os corpos pulsantes das crianças, nos momentos
afro-brincantes, com as experienciações lúdicas, artísticas e os processos de criação, vão ao
encontro do pensamento de Alves (2019):
Dançar é expressar-se, é sentir-se enquanto corpo, é poder brincar com os movimentos
e interligá-los, fragmentá-los, relacioná-los com as variações de tempo e espaço, é
poder construir significado a partir do meu próprio corpo e do corpo do outro, é
perceber-se sendo artista. E quando esse universo é construído com e para crianças,
ele se torna ainda mais propenso à criatividade, ao jogo, ao prazer de dançar [...]
(ALVES, 2019, p. 231).
Portanto, toda a imbricação lúdica dos corpos-porosos, brincantes, dançantes e
performáticos das crianças alargou minha sensibilidade e percepção na construção de férteis
ancoramentos para a unidade circular Criança Artista.
4.3 AS CRIANÇAS E SUAS IMERSÕES NA NATUREZA
FIGURA 22 – CRIANÇAS REPRESENTANDO IBEJIS LEVANDO ÁGUA PARA O POVOADO
Fonte: Arquivo da pesquisa.
Edição: Júlia Braga e Lia Braga.
Neste tópico, a unidade circular Criança Natureza dará visibilidade às experienciações
das crianças com elementos e características vinculadas à natureza, tais como ar, terra, fogo,
água e outros.
Ao apresentar às crianças, na 2ª oficina, algumas(uns) orixás e suas relações com a
natureza, percebi, inicialmente, uma certa dispersão, mas continuei explicando que na África
há muita natureza e um povo chamado Iorubá, e que esse povo “acredita em deuses encantados,
que têm poderes mágicos e mexem com elementos da natureza!”
144
A Professora Sol chamou a minha atenção e a das crianças, dizendo que já tinha ouvido
falar desse povo; que as pessoas se vestiam para cultuar os seus deuses, mas que ela desconhecia
seus nomes, e que eram divindades da natureza: o deus do sol, da lua, da floresta etc. Eu disse
que era isso mesmo, e complementei falando que esses deuses eram chamados de orixás.
Passei a narrar de forma adaptada uma história do princípio da criação do mundo,
segundo esse povo. Olodumare, ou Olorúm, o deus criador dos Iorubá, vivia no orum (céu) e
de lá olhava para o aiyê (terra). Avistava toda a natureza que fora criada, achando-a muito bela,
mas percebeu que faltavam os protetores da natureza; além disso, ele se sentia sozinho. Ele teve
uma ideia e deu um sopro, gerando a vida dos orixás, que, além de deuses protetores da
natureza, são guerreiros e guerreiras, reis e rainhas, príncipes e princesas. Convidei as crianças
para conhecermos alguns deles; algumas concordaram, outras não.
Utilizando um livro de pano, falei os nomes e as principais características de
algumas(uns) orixás: Oxalá, Oxossi, Ogum, Iemanjá, Xangô, Iansã e Oxum; e enquanto isso,
mostrava os desenhos para as crianças. Em alguns momentos, o menino Oceano Tubarão Tigre
tentava pronunciar alguns nomes, como Oxalá e Oxóssi, e nesses momentos passei a utilizar o
corpo para representar esses orixás e dinamizar a ação a partir da energia e das características
de cada um deles – como a representação de um velho corcunda, em Oxalá, e de um caçador
desbravador, em Oxóssi.
Ao utilizar as demonstrações em forma de narrativa corporificada, fui ganhando a
atenção das crianças; algumas me olhavam com curiosidade e começaram a interagir mais.
Quando indaguei qual era a cor preferida de Oxóssi, já que ele era o rei da mata, um caçador,
eles imediatamente afirmaram que era verde. Falei também que esse orixá protegia as pessoas
que moravam na natureza, tais como os índios27, e o menino Onça Pintada frisou: “E os
bichos”. Já o menino Leão Fogo disse que na mata havia “ninja”, e o menino Onça Pintada
disse que não. Eu disse: “O Oxóssi é um guerreiro, como se fosse um ninja, porque ele defende
toda a natureza!”, o que empolgou o menino Leão Fogo.
Também explicitei que, na realidade, muitos humanos não protegem a natureza, e
perguntei se iríamos respeitá-la e valorizá-la; elas disseram unanimemente que sim. Neste
momento, o menino Oceano Tubarão Tigre expressou uma linda reflexão: “Lia, as árvores e a
27 É de conhecimento histórico e antropológico que o termo “índio” foi atribuído pelos portugueses aos vários
povos originários que aqui viviam no período da colonização do Brasil, o que ocasionou generalizações. Um termo
mais adequado seria “indígena” ou “povos indígenas”, não dando margem a rotulações pejorativas em referência
a estes povos e a seus descendentes que aqui residem. Porém, em alguns momentos da pesquisa, nos diálogos
desenvolvidos com as crianças, utilizei o termo “índio”, e não “indígena”. Este uso se deu para facilitar a
compreensão por parte das crianças, já que o segundo termo não é usual para elas e necessitaria de um tempo para
ser aprofundado.
145
mata são seres vivos!”, e a menina Raposa narrou que, uma vez, uns amigos dela estavam
descascando uma árvore e tirando as suas folhas; a mãe de um deles dissera que a árvore
chorava, e um menino disse que a árvore nem tinha vida, mas a menina Raposa afirmou que
ela tinha, sim. Verifiquei, a partir dos conhecimentos prévios das crianças e da contextualização
das(os) orixás com a natureza, que as expressões utilizadas pelas crianças evidenciaram uma
consciência ecológica de valorização da natureza – inclusive, associando-a a seres vivos que
devem ser respeitados. Esses e outros diálogos vão ao encontro de um dos ensinamentos e
princípios do referencial teórico-metodológico da pretagogia: “O reconhecimento da
sacralidade como dimensão que perpassa todos os saberes das culturas de matriz africana,
levando uma postura de identificação, respeito e espiritualidade para com a natureza [...]”
(PETIT, 2015, p. 122).
Quando comecei a falar de Iemanjá, perguntei se alguém já tinha ouvido falar dela. O
menino Leão Fogo disse que sim, e que ela era uma princesa. Eu disse: “É por aí”. O menino
Oceano Tubarão Tigre, ao ver o desenho, disse: “É da água… da lua!” E eu disse: “Tem a ver
com a lua também”, complementando que, sendo uma rainha do mar, ela protegia também os
animais. Nesse momento, ao questionar as crianças sobre o nome de animais marítimos, o
menino Leão Fogo falou sem parar algumas possibilidades, como “peixe” e “tubarão”. Eu
também disse que ela protegia os seres encantados marítimos, como a sereia, e, em algumas
histórias, ela poderia se tornar uma, como diz a música Ciranda do Anel: “Será que parou na
goela da Baleia? Ou no dedo da sereia? Ou quem sabe o pescador encontrou o anel e deu para
o seu amor”. Essa música as crianças cantaram em atividade anterior à minha, e a revisitamos
para abrir o momento de contação de histórias naquele dia.
Por ocasião da 5ª oficina, ao iniciar a contação de histórias com Os Ibejis encontram
água e salvam a cidade (PRANDI, 2001), dialoguei com as crianças sobre o instrumento
africano kalimba, que toquei em uma música de abertura. O menino Onça Preta disse: “Isso é
tipo... um mini-violão!”. Quando perguntei de onde ele tinha vindo, este menino, e também o
menino Oceano Tubarão Tigre, em um clima de animação, expressaram: “Da África!”. Ao
mostrar o som, o primeiro menino disse: “É tipo... um piano!”, e o menino Gato Ninja do Fogo
expressou: “Tipo um... xi-lou-fo-ne!”
Ao perguntar o que aquele som lembrava em relação à natureza, o menino Oceano
Tubarão Tigre disse: “Jesus dando amor para a gente!”, e eu respondi: “Pode ser, pode ser... o
amor, né... a África!”. Insisti na relação com a natureza, fazendo novamente sons com o
instrumento. O menino Gato Ninja do Fogo disse: “Eu lembro... daquele... [alguma palavra
inaudível, e o menino ficou pensativo] aquele deus da natureza!”, e eu disse: “O deus da
146
natureza, os orixás, muito bem!”. E o menino: “Nãoooo! Orixássss!”. A menina Gatinha Folha
disse: “A mãe da água!”, e eu falei: “Muito bem!”, e a chamei por seu nome. O menino Oceano
Tubarão Tigre complementou: “A água, as árvores, a mata!”, e eu afirmei: “A kalimba lembra
o som das águas!”
Nas oficinas que se sucederam, apresentei às crianças outros instrumentos, com o
objetivo de torná-los conhecidos e de afirmar a identidade de sons afrodescendentes. No caso
específico do instrumento kalimba, seu som se assemelha a alguns sons de elementos da
natureza, como “a água, as árvores, a mata”, expressados pelo menino Oceano Tubarão Tigre,
bem como a conexão com “a mãe da água”, segundo a menina Gatinha Folha. Houve um
sentimento positivo e de amorosidade quando o primeiro menino expressou, sobre o som do
instrumento, “Jesus dando amor para a gente!”. Nesse sentido, cabe explicitar:
A kalimba é um instrumento de origem africana muito antigo, milenar, cujo nome
original é mbira. A mbira, ou “piano de dedo”, remonta à idade em que o metal chegou
na África, mais precisamente na região sul do Zimbábue. Conforme foi disseminada
pelos diversos povos, apareceram variadas formas e tamanhos de acordo com cada
região [...]; em sua versão moderna, adaptou-se aos formatos orgânicos de cabaças e
madeiras originais para uma caixa de ressonância retangular ou redonda com teclas
de metal afinadas em uma escala ocidental, distante das escalas originais pouco
familiares aos ouvidos europeus. Sua sonoridade remete a uma caixinha de música ou
a gotas de água, de fato este é um instrumento que trabalha o elemento água em nós,
ou seja, nossas emoções [...]; a kalimba evoca o retorno ao lar, o carinho, a doçura e
trabalha o arquétipo da criança interior, pois sua suavidade cria um espaço de bem-
estar instantâneo. Desde a África, sempre esteve associado à contação de estórias em
educação infantil através de inúmeras cantigas que transmitem a sabedoria e coragem
de muitos povos. Até hoje é comum encontrar grupos de crianças a caminho da escola
cantarolando essas cantigas em suas kalimbinhas, ao longo de sinuosos caminhos de
aprendizagem (www.pierrestocker.com, on-line).
Na história, a seca começou a chegar no povoado, e os meninos Ibejis começaram a
cavar buraquinhos na terra. Perguntei se as crianças sabiam por que eles estavam cavando esses
buracos. Algumas delas, como a menina Gatinha Folha, expressou que era para achar água, e
o menino Gato Ninja do Fogo disse: “É, porque debaixo da terra tem água!”
Estimulei todos a entrarem em ação como personagens, pois, no início da contação,
combinei com as crianças que, por ter percebido que adoravam personagens, em determinado
momento elas iriam representar um personagem muito importante, e que todos iriam fazer uma
mesma ação. O menino Onça Preta perguntou: “E aquele menino que morreu?”, referindo-se
ao Ibeji que havia morrido em outra história. Eu disse: “Tem a ver com esse menino [...]. Agora
todo mundo juntinho [...]. Vocês vão dar as mãos e vão fazer os Ibejis procurando no chão o
FIGURA 23 – KALIMBA
Fonte: Arquivo Pessoal
147
buraquinho, porque vocês vão se encontrar com outro personagem...”. O menino Onça Pintada
perguntou: “Pode ser eu hoje?”, e eu respondi: “Vocês todos vão fazer os Ibejis!”
Pedi então para as crianças darem as mãos, e indiquei que elas iriam para outro ponto
da sala, conduzindo-as. Depois indiquei que se agachariam, procurando os buracos no chão;
algumas engatinharam e foram criando a cena comigo a partir de minha narração. Então eu
disse: “Até que eles encontraram uma deusa da fonte sagrada!”, e uma criança perguntou: “É
você?”. Comecei a interpretar a personagem: “Olá, meninos e meninas, mas o que vocês fazem
no meu reino?”. O menino Oceano Tubarão Tigre olhou para outras crianças e sorriu, e várias
crianças responderam: “A gente tá procurando água!”. A menina Cachoeira expressou: “A
gente tá procurando a água da terra!”, e a menina Gatinha Folha disse: “E também a gente tá
sem água! Não tem água para beber!”. Então eu disse: “Pois eu, a deusa das águas, eu vou... dar
um desafio para vocês, para que vocês possam levar água para o povoado de vocês!”
Com a participação das crianças como personagens, foram vivenciados elementos de
teatralidade próximos do jogo teatral. Japiassu (2010) explicita as suas características,
fundamentando-se na sistematização dos jogos teatrais proposta pela autora e diretora de teatro
norte-americana Viola Spolin (SPOLIN, 1992):
Os jogos teatrais são atividades pedagógicas para aquisição, leitura, domínio e
fluência da comunicação por meio do teatro, de uma perspectiva improvisacional
(sem roteiros nem combinações apriorísticas de como será a atuação na área de jogo
e sem textos de sustentação à representação teatral previamente elaborados).
Basicamente, os jogos teatrais constituem desafios (problemas cênicos de atuação)
apresentados aos jogadores, na forma de jogos com regras (JAPIASSU, 2010, p. 80).
As indicações iniciais para as crianças buscaram estabelecer direcionamento e regras,
para que elas pudessem vivenciar comigo o desafio seguinte, A Ciranda das Águas; mas, por
não apresentar uma sequência cênica, nem textual, as crianças foram encorajadas a improvisar
ações e falas a partir do mote central.
Quando as crianças prontamente se assumiram como personagens Ibejis, permitindo-
se aos acontecimentos, o Corpo-Poroso delas foi ativado na medida em que foram
compreendendo e vivenciando a situação cênica, buscando soluções coletivas e improvisadas,
a fim de resolver o problema e alcançar o objetivo final. Nesse sentido, convém mencionar a
contribuição de Japiassu (2010):
A busca de soluções para o problema cênico colocado para o grupo deve ser
necessariamente ativa, quer dizer, corporal, física, e não apenas intelectual, verbal.
O professor ou coordenador (teatro-educador responsável pela condução das
atividades) deve, se necessário, reativar a atenção dos jogadores no foco da atividade
que lhes foi proposta por meio de instruções (observações, dicas), que são
“cantadas”, isto é, pronunciadas em voz alta (JAPIASSU, 2010, p. 81).
148
Prosseguindo, comecei a formar uma roda com eles para que realizássemos, dentro da
história, o jogo/brincadeira corporal A Ciranda das Águas – uma proposição de ciranda com o
tema “água” e uma música que criei com essa temática. Mencionei que essa ciranda era parecida
com a que eles conheciam (na época e pela contextualização do São João, eles estavam
estudando a manifestação de coco de roda), mas que eu lhes ensinaria como a dinâmica
particular da brincadeira dançada.
Perguntei se sabiam como era o passo da ciranda, e o menino Gato Ninja do Fogo fez
que não com a cabeça. Então tentei explicar e exercitar ao mesmo tempo com elas: “Bota um
pé para frente, a mãozinha sobe, o pé para trás, a mãozinha vai para... isso, para trás!”. Procurei
incentivá-las para que andássemos na ciranda, mas as crianças faziam os movimentos sempre
no mesmo lugar, sem andarem. Usando o recurso da estátua por alguns segundos, expliquei:
“Agora eu vou cantar uma música e a gente vai fazer esse passo, depois a gente vai... descobrir
outros passos!”, lembrando-lhes do desafio para poderem conquistar o direito de levarem a água
para o povoado deles, enquanto personagens Ibejis. Comecei a cantar uma música criada por
mim:
“E 1-2-3-4-5-6… vaaaaamos todos cirandar no balanço das águas... Parou!”
[Expliquei que mudaríamos a direção de onde a roda estava indo]
“E 1-2-3-4-5-6… vaaaaaamos todos cirandar no balanço das águas.”
[Expliquei que ainda haveria o passo que estávamos fazendo, mas que existiriam outros, e indiquei o lado de
direção da roda]
“E 1-2-3-4-5-6… e o som das águas fazem chuá chuá!”
[Perguntei se eles entenderam o movimento do chuá, em que os braços vão para um lado e para outro, e
repetimos esse movimento]
“E 1-2-3-4-5-6… e o som das águas fazem chuá chuá!”
[Expliquei o próximo movimento, em que todos íamos entrando na roda e subindo os braços, indicando
possibilidades para facilitar o movimento, tais como: “Abre bem grandão para fazer bonito!”; então abrimos
mais a roda, expandindo-a]
“Chuá chuá, chuá chuá, chuá chuááááááá”
[Devagar, fomos entrando na roda, dando passos a cada chuá e frisando uma entonação mais vibrante no
último].
Inicialmente a ciranda pareceu um pouco desengonçada; porém, à medida que ia
cantando, explicando e fazendo junto com as crianças, ela começou a ter mais forma – ainda
assim um pouco parada, sem muito ritmo. Após algumas interrupções, perguntei se poderíamos
149
fazer de novo a brincadeira, e o menino Onça Preta expressou com animação: “Pode, pode,
pode!”. Acrescentei uma segunda proposta musical e corporal:
“E 1-2-3-4-5-6… vaaaaamos todos cirandar no balanço das águas... Parou!”
[Expliquei que a ciranda ia andar e que seria para o outro lado]
“E 1-2-3-4-5-6… vaaaamos todos cirandar no balanço das águas... Parou!”
[Como a roda havia fechado bastante, pedi para abrirmos mais]
“E as águas vão prum lado e as águas vão prum outro”
[Indiquei movimentação com o corpo para a esquerda e para a direita]
“E vão para cima e vão para baixo também”
[Indiquei movimentação com o corpo levantando para cima e agachando para baixo]
“E as águas vão prum lado e as águas vão prum outro”
[Indiquei movimentação com o corpo para a esquerda e para a direita]
“E vão para cima e vão para baixo também”
[Indiquei movimentação com o corpo levantando para cima e agachando para baixo]
Na segunda tentativa, inicialmente, houve um pouco mais de dinâmica e ritmo; porém,
algumas crianças ainda ficavam mais paradas, o que fazia com que a ciranda não andasse muito.
Depois de uma grande dispersão, mostrei como seria o movimento da ciranda andando, e disse
que queria concluir a história para passar para outras brincadeiras: fizemos uma última vez com
a primeira proposta musical e corporal.
Engatei novamente a história pegando um pano cintilante na cor azul clara, abrindo e
espalhando-o pelas crianças que o seguravam, o que formou uma imagem que pode ser
observada na Figura 22: uma grande corda azul. Eu disse: “Eu, a deusa da água, a deusa da
fonte sagrada, determino que agora vocês possam levar, um do ladinho do outro, as águas... as
águas pro povoado de vocês!”. Puxei as crianças e voltamos para o início, onde eu estava
contando a história; pedi para elas deixarem o pano que simbolizava as águas no chão e
sentarem.
Outro momento em que utilizei a experienciação corporal dentro da contação de
histórias foi na 6ª oficina, ao narrar a história Iemanjá e o poder da criação do mundo
(OLIVEIRA, 2009). Resumidamente, esta história demonstra os desafios que Iemanjá, quando
criança, enfrentou, vivenciando alguns sentimentos como a solidão. Ela encontrou o poder de
superação dentro de si, e também o poder de criar e dar vida a elementos da natureza e outras(os)
orixás, com a ajuda do deus criador. Em uma determinada situação da história,
Olodumare/Olorum, deus supremo e criador, vendo a tristeza da menina, coloca as mãos em
150
sua barriga, que cresce muito, e lhe diz para não falar nada, apenas abrir a boca. E “da boca
encantada de Iemanjá...” ele fez com que surgissem primeiro as estrelas.
Enquanto eu representava Iemanjá, a personagem menina interagia com as crianças,
perguntando quem gostava de girar; várias responderam “eu”, e o menino Onça Pintada girou
em seu próprio eixo, em cima de uma almofada, e depois caiu em cima dela dizendo “Gira,
gira, gira!”. A personagem convidou então as crianças para irem a outro lugar da sala, por conta
do espaço. Ao perguntar se as crianças poderiam brincar com ela, as crianças afirmaram que
sim, e ela passou a explicar como ocorreria a brincadeira. O menino Onça Pintada expressou:
“Essa voz é muito linda... pelo amo de deus!”. A personagem cantava uma música (adaptei-a
do meu contexto espiritual) e, na hora em que falasse as palavras “Brilha, brilha”, elas iriam
girar, devagar para que ninguém se machucasse. “E... brilha brilha brilha estrelinha Brilha brilha
brilha estrelinha Brilha brilha brilha estrelinha assim como um raio de sol [ritmo devagar]. E...
brilha brilha brilha estrelinha Brilha brilha brilha estrelinha Brilha brilha brilha estrelinha... e
parou! [ritmo rápido]”.
As crianças e eu girávamos, umas mais devagar, outras mais rápido, com muito
divertimento; a maioria em seu próprio eixo, mas o menino Leão Fogo saiu um pouco do seu
centro girando com os braços abertos e na lateral, bem como o menino Onça Pintada, que girou
bem rápido quando a música aumentou a velocidade. Ao final, todas pararam prontamente e
ficaram firmes em seus locais. Porém, mesmo depois de ter pedido para retornarmos para o
local no qual eu estava contando inicialmente a história, o menino Onça Preta e o menino Leão
Fogo continuaram girando, e depois falaram que estavam tontos; eu pedi para eles sentarem.
Retomando a 5ª oficina, ao final da contação de história Os Ibejis encontram água e
salvam a cidade (PRANDI, 2001), dialoguei com as crianças sobre alguns cuidados para
preservarmos a água no contexto urbano, como fechar a torneira na hora do banho – as crianças
disseram que faziam isso. Depois contextualizei para a natureza: “No mar, no riacho, nas lagoas,
a gente faz o quê?”. A menina Gatinha Folha disse (com expressão de obviedade): “Toma
banho na água!”, e eu: “Toma banho, mas ela precisa tá limpa. E quais são os cuidados?”. A
menina respondeu: “Tem o rio, que… que... não pode tomar banho nele, porque ele tem cocô!”;
e o menino Onça Preta (demonstrando em seu braço): “E tem sanguessuga, aquele bicho que
puxa o sangue!”. Eu: “Certo, e para que a gente possa tomar banho na água limpa, o que é que
a gente faz?”. A menina Gatinha Folha disse: “Não jogar lixo no mar!”, e o menino Leão Fogo
complementou, bem sério e um tanto brabo: “Não pode jogar nada no mar!”. O menino Oceano
Tubarão Tigre disse: “Não pode jogar lixo no oceano!”, e a menina Cachoeira: “Ei,
professora... não pode jogar lixo na praia!”
151
Ao observar as narrativas das crianças, considero que o universo das(os) orixás
propicia a nós, artistas, educadoras(es) e professoras(es), a possibilidade de desenvolvermos
metodologias que articulem oralidade, corporeidade, perspectivas sociais, históricas e culturais
e educação ambiental. Ao experienciarem, através do corpo, uma consciência ecológica, as
crianças reafirmaram a importância do ato de relacionar-se harmonicamente com a natureza,
valorizando-a, respeitando-a e cuidando da mesma.
Nesse sentido, Marques (2012) menciona interações entre dança e sociedade à medida
que as crianças vivenciam e compreendem o corpo interligado ao mundo e às experiências
coletivas:
Nas propostas de articulação entre a dança e a sociedade devemos nos lembrar da
importância de fazer com que as crianças percebam que seus corpos também são
articulados e conectados ao mundo, à sociedade, às pessoas; é muito importante para
que elas percebam, compreendam e saibam opinar/agir sobre as dinâmicas das
interações sociais em que vivem (MARQUES, 2012, p. 100).
A partir dessas proposições, percebi a interação entre o Corpo-Poroso e o Corpo
Brincante das crianças. Nesse contexto, elas demonstraram abertura, maleabilidade,
adaptabilidade e criatividade em suas experienciações corporais. Como, por exemplo, ao
representarem os Ibejis, passando pelo desafio lúdico de dançarem as águas, através da ciranda
– bem como ao brincarem e girarem como estrelas, o que lhes propiciou uma perspectiva de
integração com a natureza. Houve também um sentido de valorização e cuidado com a natureza,
quando as crianças vivenciaram e venceram o desafio, até conseguirem levar as águas para o
povoado, manejando em suas mãos o elemento.
Essas dinâmicas propiciaram fecundas articulações entre as linguagens artísticas do
teatro e da dança, permitindo, tanto a mim quanto às crianças, aberturas e experienciações
performáticas. Vale mencionar Machado (2010b), quando a autora enlaça proposições entre as
vivências dos professores e das crianças, tendo elas um papel fundamental quando se aproxima
a experiência à performance:
[...] na medida em que os alunos são parte intrínseca de toda e qualquer performance
vivida e/ou proposta por seu professor: momentos da convivência e da continuidade
dos processos de conhecimento, nos quais o professor se faz e comunica algo aos
alunos, seja por meio de diferentes tipos de narrativas ou brincadeiras teatrais a serem
experienciadas pelas crianças [...]; a criança que cria seu faz de conta e que o organiza
durante uma aula de teatro, não exige de si nem do companheiro uma lógica formal;
seja em termos de tempo, seja em termos de espaço, a criança modifica, quase, o
tempo todo, seus roteiros de improviso, e aproxima, recorrentemente, suas narrativas
teatrais da sua vida cotidiana (MACHADO, 2010b, p. 117-118).
152
Ainda na 5ª oficina, a experienciação de corporificar elementos da natureza também
pôde ser observada no jogo/brincadeira corporal Caminhando com diversas sensações. Aqui,
as crianças caminham e respondem corporalmente a vários estímulos; por exemplo, quando eu
disse que o sol estava muito quente, e que fazia muito calor, perguntei: “Como é sentir calor
sendo o sol?”, e a maioria das crianças, ao chegar próximo a mim, tremiam e vibravam as mãos,
e algumas faziam sons (de modo que cheguei a exclamar “Eita!”).
Continuei: “Agora… vocês estão muito, muito quentes e se transformaram no fogo!”,
e elas correram, gritavam, algumas pulavam, e os meninos Gato Ninja do Fogo, Leão Fogo e
Onça Preta simularam uma luta, em que o primeiro menino caiu no chão – o que me passou
uma ideia de que tinha sido derrotado –, e ainda assim, antes da queda, lançou a energia de fogo
com os braços e as mãos para cima. Onça Preta se agachou para ver o menino, assim como
Leão Fogo. Este último pegou no menino deitado e disse: “Meu amigo!”, e depois se levantou,
expressou algo e finalizou com sons e movimentos de luta.
As experienciações dos meninos me remeteram ao orixá Xangô, não apenas por este
deus manejar e controlar o elemento fogo, da natureza, mas também pela proposição das
crianças, que lutaram umas com as outras. Ao lançar para cima essa energia, a meus olhos, o
menino Gato Ninja do Fogo aproximou-se da imagem do rei, e vale ressaltar que Xangô é
considerado também um grande guerreiro:
Une-se a fogueira de São João à fogueira de Xangô, orixá da civilização yorubá que
é o próprio fogo. É o poder masculino aliado à capacidade de produzir e,
principalmente, de controlar esse elemento (LODY; SABINO, 2011, p. 22).
Em determinados momentos da coreografia, esse orixá representa o ato de lançar
pedras e as atira sobre o mundo. Essas pedras são os coriscos, pedras do raio, das
trovoadas, dos relâmpagos que anunciam o poder do fogo, o poder do rei (LODY;
SABINO, 2011, p. 146).
Pode-se também associar esta proposição com a unidade circular Criança Orixás –
que será delineada no próximo tópico –, visto que essas divindades são a própria expressão da
natureza, em alguns momentos; e, em outros, manipulam seus elementos.
A partir desse diálogo, observo que a natureza se expressa em nós mesmos, quando,
por exemplo, movemos as águas de nossas lágrimas ou de nosso suor, respiramos através dos
nossos pulmões que geram ar, caminhamos de pés descalços em conexão com a terra, muitas
vezes enfrentando desafios de maneira forte e direta, como guerreiras e guerreiros, ou quando
intensamente vivenciamos pulsões, emoções e criações através do fogo, que liga e movimenta
a vida.
153
Com as proposições lúdicas e corporais, as crianças imergiram em cheiros e cores e
nas florestas afro-ancestrais, nas quais deusas e deuses dominam as águas, o fogo e outros
elementos da natureza. Nessa ambiência, as pequenas e os pequenos brincantes, como estrelas,
brilharam no céu, e sorriram, correram, giraram e rodopiaram, evidenciado a unidade circular
Criança Natureza como um princípio mobilizador de integração entre o ser humano e a
natureza.
4.4 AS CRIANÇAS E SUAS BRINCADEIRAS COM AS DEUSAS E OS DEUSES
FIGURA 24 – OXUM E SEUS ENCANTOS NA CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS
Fonte: Arquivo da pesquisa.
Edição: Júlia Braga e Lia Braga.
Ao discorrermos sobre a unidade circular Criança Orixás, foram destacadas as
experienciações das crianças com as deusas e deuses africanos, através da oralidade e da
corporeidade, buscando estabelecer vínculos com a ancestralidade africana.
Por ocasião da 2ª oficina, na contação de histórias Conhecendo as(os) orixás, quando
acompanhada do livro de pano, fui apresentando alguns deuses e deusas e suas características.
Ao falar de Oxum e mostrar o seu desenho, registrei algumas expressões: o menino Gato Ninja
do Fogo se pôs na frente do menino Oceano Tubarão Tigre e disse, tentando afastá-lo: “Eu
quero ver!”; a menina Gatinha Folha tocou no livro de pano; a menina Leoa Oxóssi falou
animadamente: “Ela ama o amarelo!”; o menino Leão Fogo disse: “É igual uma rainha, que a
gente viu!”, a Professora Sol disse: “Pessoal, eu gosto muito de Iansã, mas eu confesso que
Oxum é a orixá mais bonita!”; o menino Onça Pintada ficou curioso porque, na imagem, ela
usava uma coroa que cobria o seu rosto, o adê. Diante do comentário, aproveitei para explicar
que as orixás femininas usavam esse tipo de coroa porque gostavam de manter o mistério delas.
154
Quando disse que Oxum amava crianças e as protegia, eles se surpreenderam e
animaram-se. A menina Raposa pulou e disse: “Ela protege a gente?”, e, em outro momento,
quando afirmei que ela cuidava dos recém-nascidos, a menina perguntou: “Ela cuida da minha
irmãzinha?”, e eu disse que sim. Depois a menina Gatinha Folha tentou puxar para si o livro
de pano, beijando algumas vezes o desenho de Oxum; a menina Raposa também o beijou,
enquanto o menino Oceano Tubarão Tigre sorria. A partir das expressões afetuosas das
crianças, é possível articular que “Oxum é relacionada também à maternidade e, por isso, às
águas. Águas do nascimento, águas doces para beber e viver: rios, cachoeiras, regatos, todos
esses locais lembram e significam Oxum” (LODY; SABINO, 2011, p. 151).
Por ocasião da 3ª oficina, pude perceber algumas expressões que as crianças fizeram
na tentativa de compreender as(os) orixás. Ao relatar naquele dia que iríamos continuar
escutando histórias dos deuses encantados da natureza, o menino Onça Preta, que não havia
participado da oficina anterior, disse: “Ah, não!”. Eu perguntei: “Como é mesmo o nome dos
protetores da natureza?”, e ele disse: “Índios!”. Então eu frisei: “Os orixás são deuses
encantados que têm poderes mágicos e são protetores da natureza!”, e o mesmo menino disse:
“São seres mágicos!”
Quando perguntei se as crianças se lembravam de onde vinham, muitas começaram a
falar, e a menina Raposa levantou o braço e disse que era da África. Depois perguntei o que
elas lembravam da África e das deusas e deuses, e a menina disse: “Eu lembro que tem um deus
da paz e aí ele deixa [alguma palavra inaudível] tooooooda a paz!”, referindo-se a Oxalá. A
menina Gatinha Folha disse: “A rainha que protege as crianças!”, referindo-se a Oxum. E o
menino Oceano Tubarão Tigre disse: “Tem o que... o que cria armas!”, referindo-se a Ogum.
Um momento interessante ocorreu na 4ª oficina, ao contar a história Os Ibejis são
transformados numa estatueta (PRANDI, 2001): a energia de Oxum mobilizou, a meu ver,
algumas experienciações intuitivas das crianças, sem ter vinculação com nenhum tipo de
jogo/brincadeira corporal.
No enredo da história, os meninos Ibejis vão tomar banho em uma cachoeira. Então eu
aproveitei a deixa para trazer um cântico de Oxum, dizendo que, quando os Ibejis foram para
lá, cantaram para a mãe deles. Eu cantei realizando movimentos de ondulação com todo o corpo
e girei com os dois Ibejis bonecos, segurando um em cada mão. A menina Cachoeira me
acompanhou cantando e o menino Leão Fogo realizou sons com um instrumento de madeira
155
em formato de peixe, que eu havia levado naquele dia. Esse trecho do cântico pode ser
encontrado na música Canto para Oxum, de Bantos Iguape28:
Oro mi má
Oro mi maió
Oro mi maió
Yabado oyeyeo
Oro mi má
Oro mi maió
Oro mi maió
Yabado oyeyeo O o o Yabado oyeyeo O o o Yabado oyeyeo
Com base na minha sensibilidade espiritual, posso intuir que as crianças se sentiram
embaladas pela energia ancestral de Oxum e pelo cântico em Iorubá, uma língua até então
desconhecida para elas. O fato de a menina Cachoeira ter cantando a música comigo me
chamou atenção, pois não era uma pronúncia habitual para ela; além disso, esta menina
incorporou em seu nome uma das associações que se pode fazer a Oxum: “cachoeira”.
Em outro momento, observei uma maior identificação da menina Cachoeira com essa
orixá, o que foi expressado na 7ª oficina. Primeiramente, para contextualizar esse dia, resolvi
propor as contações de histórias em círculo, e as crianças foram se sentando junto a mim, nas
almofadas. Depois, ao se dispersarem, expliquei a necessidade de termos aquela roda, pois elas
iriam fazer as personagens da história, e duas crianças iriam para o meio do círculo, depois
ficando em estátua – aí trocaríamos com outras crianças, ocorrendo um revezamento.
Após um primeiro momento com música, comecei a narrar a primeira história, Oxum
e seu mistério (OLIVEIRA, 2009), com acompanhamento do livro, apresentando inicialmente
as personagens principais da história, Oxum e Ogum. Na hora da escolha das crianças, como a
roda já estava desfeita e as mesmas já estavam acomodadas de outra maneira, combinei que iria
me afastar dali, ficando mais atrás; e, enquanto eu narrasse, as crianças iriam entrar em ação.
Chamei duas crianças: o menino Leão Fogo havia se levantado e o menino Oceano
Tubarão Tigre também. Este expressou, animado: “Eu e Leão Fogo [chamando pelo nome do
menino]!”. Eles se aproximaram, mas, ao frisar que Oxum era uma menina, a menina Cachoeira
se levantou, pulou e disse: “Eu, eu, eu!”. Pedi para ela ter calma e perguntei se um dos dois
poderia representar a menina – e nenhum dos dois quis. Então pedi para o menino Leão Fogo
se sentar e perguntei se alguma outra menina ou menino gostaria de fazer Oxum, e a menina
Cachoeira expressou novamente: “Eu quero ser, eu quero ser!”, e a chamei.
28 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_D0YjZoyqBw>. Acesso em: 27/09/2019.
156
Na hora em que a menina iria representar Oxum, no começo, segurei na mão dela, para
centralizá-la, e ela fez um pouco a voz da personagem e as ações de mexer os dedos. Na hora
em que narro e indico as ações para a menina Cachoeira – “Oxum vestiu uma saia com cinco
lenços pendurados e perfumados que, com o vento, esvoaçavam. Tirou seu adê, sua coroa,
soltou seus lindos cabelos negros e crespos e colocou os pés em contato com a terra [...]”
(OLIVEIRA, 2009, p. 20) –, a menina propõe uma dança.
Ela soltou um som que lembrou vento ao tomar impulso com os pés e as pernas, que
primeiramente tocavam o chão, o que fazia com que suas pernas ficassem flexionadas e depois
uma delas fosse para o alto, enquanto a outra lhe dava apoio ao tocar o chão. Esse momento
pode ser observado na Figura 24, que abre este tópico. Os seus cabelos esvoaçavam; e ela dava
giros, várias vezes, a partir dos impulsos que se repetiam e demonstravam uma dança com
movimentos livres e circulares, em volta de si mesma e também se deslocando pelo espaço,
com braços para o lado e às vezes para cima, em um desenho redondo.
Depois a menina correu dando uma volta por trás das outras crianças e um pulinho, e
quando eu indiquei para ela voltar, ela retornou à cena. Na hora da narração das características
dos cabelos de Oxum, toquei e afaguei os cabelos da menina Cachoeira; e, no contato com a
terra, mostrei a ela meus pés fincados no chão, ao que a menina se posicionou ao meu lado.
Enquanto ela dançava e fazia a cena, a Professora Sol disse: “Bem linda, bem linda... ô, que
linda!”, e eu também frisei: “Bem linda!”
Dando seguimento à história, Oxum avista a cabana de Ogum e, fingindo não vê-lo, se
põe a dançar. A menina Cachoeira propôs uma movimentação próxima à da sua primeira dança,
com a diferença de que ela dançou mais para a lateral; e, como o próprio texto propõe, “começou
a dançar com a graça das águas calmas, delicada... suave... num leve vai e vem” (OLIVEIRA,
2009, p. 21). Então ela fez movimentos mais suaves e lentos, e por vezes os braços iam para
cima e agarravam a sua barriga, cintura e pernas, e seus pés acompanhavam a inclinação de seu
corpo, para um lado e depois para o outro.
Ao analisar algumas características da dança de Oxum, posso dizer que a menina
Cachoeira improvisou, experienciou e criou uma dança com alguns elementos característicos
da dança desta orixá. Com a graça e a beleza de se movimentar livremente, com giros e
movimentos circulares, dentre outros, a menina Cachoeira dançava como em um balançar
suave das águas doces das cachoeiras ou dos rios de Oxum. Assim, encontrei semelhanças entre
a proposição da menina e o pensamento da doutora em Artes Cênicas, professora, bailarina,
coreógrafa e diretora Denise Mancebo Zenicola, sobre a dança de Oxum:
157
Sua dinâmica postural é mais suave do que a encontrada na dança de Iansã. Seu tronco
ondula mais e o corpo divide-se em movimentos ora para o lado direito, ora repetidos
pelo lado esquerdo, alternadamente. A transferência do peso é igualmente suave,
contendo pouca oscilação de tronco para compensar a transferência. A expressividade
de sua dança é composta por um fluxo livre de movimentos, leveza, um tempo
desacelerado e contínuo (ZENICOLA, 2014, p. 106).
Após esta e outra contação de histórias, as almofadas foram guardadas e passamos para
a próxima dinâmica: o jogo/brincadeira corporal Dançando com as(os) Orixás, na qual foram
experienciadas seis danças: Iemanjá, Ogum, Oxum, Oxóssi, Oiá-Iansã e Xangô. Aqui farei um
recorte para me deter a quatro danças experienciadas. Tentei explicar em roda, mas as crianças
demoraram um pouco a prestarem atenção. Depois explicitei as regras: primeiro eu iria mostrar
a dança de alguns orixás, colocaria uma música e, então, eles iriam “brincar com essa música,
dançar essa música!”
Depois de vivenciarmos a dança de algumas(uns) orixás, fomos para a dança de Oxum,
e a menina Cachoeira, após um tempo, reclamou, chorando um pouco, porque eu não lhe dera
atenção – outra associação com a deusa Oxum, pois é muito emotiva, chorona e dengosa. Em
contextos espirituais, por vezes, Oxum, ao se manifestar (incorporar) em seus filhos, chora, com
lágrimas, expressando sons, ou até mesmo quando as(os) participantes sentem sua energia – há
uma comoção emotiva, o que me faz recordar um cântico espiritual: “Foi na beira do rio / Aonde
Oxum chorou / Foi na beira do rio / Aonde Oxum chorou / Chora aiê êo / Ô chora pelos filhos
seus / Chora aiê êo / Ô chora pelos filhos seus...”
Eu expliquei à menina que não tinha como dar atenção apenas a ela, e assim ela se
recusou a continuar brincando. Porém, ao perguntar quem era Oxum na história, ela, animada,
disse: “Eu sou ela!”, e um dos meninos disse que era uma menina. Eu lhe perguntei: “De onde?”,
e o menino Leão Fogo disse: “Do mar!”. Eu disse: “Das águas doces, da cachoeira, e protege
as crianças!”, e o menino Oceano Tubarão Tigre disse para o menino Leão Fogo: “Então agora
eu sou Oxum, tá?”
Expliquei que Oxum dança como as cachoeiras; fiz movimentos com braços e, depois,
me movimentei como se tomasse um banho de cachoeira, fazendo como se ela se olhasse em
seu espelho e girasse. Algumas crianças faziam seus movimentos junto a mim, a partir de minha
narração e demonstração, como a menina Gatinha Folha e o menino Onça Preta. A menina
Cachoeira ficou pulando e caminhando pelo espaço, dizendo: “Ei, ela pode fazer assim!” – e
fazia movimentos ondulares com os braços e as mãos para cima.
Coloquei a música Canto para Oxum, de Bantos Iguape, e os meninos Oceano
Tubarão Tigre e Leão Fogo, lado a lado, fizeram movimentos ondulares com os braços e com
as mãos para frente, enquanto a menina Cachoeira fazia movimentos com os braços soltos,
158
como se nadasse. Quando indiquei que Oxum estava se olhando no espelho, os meninos Oceano
Tubarão Tigre e Leão Fogo fizeram, com uma das mãos, espelhos imaginários, e giraram no
próprio eixo, depois se deslocando pelo espaço sem parar e cada vez mais rápidos. O primeiro
menino depois apoiou o braço que estava com o espelho no outro braço; já o segundo menino
deixou o outro braço, sem ser o do espelho, livre.
Como eles giraram muito, pedi que parassem um pouco, para não ficarem tontos;
depois, voltariam a dançar como se estivessem nas cachoeiras. O menino Oceano Tubarão
Tigre disse: “Eu já tô tonto!”, enquanto Leão Fogo se apoiava nele. Os meninos saíram com
um braço esticado para frente, com a mão para baixo; depois, quando perguntei: “Cadê a
cachoeira?”, Oceano Tubarão Tigre intensificou com a mão e o braço um movimento ondular.
Enquanto isso, o menino Leão Fogo e a menina Cachoeira corriam pelo espaço.
A menina Cachoeira afirmou sua identificação e conexão com a mamãe Oxum – como
a chamamos em contextos espirituais – ao expressar: “Eu sou ela!”. Até mesmo o menino
Oceano Tubarão Tigre expressou essa identificação, quando disse para o amigo “Então agora
eu sou Oxum, tá?” – em uma vivência que agregou meninas e meninos, independente do gênero
feminino da deusa. Em outro momento, a menina Cachoeira compartilhou seus conhecimentos
a partir de sua vivência criativa com a dança de Oxum,
ao me dizer: “Ei, ela pode fazer assim!”, com os
movimentos ondulares dos braços e das mãos.
As crianças, ao experienciarem a dança de
Oxum, demonstraram autorias em suas criações, ao
serem estimuladas pelas características simbólicas e
mitológicas da deusa, além da música escolhida para
esse momento. Mergulhados nas cachoeiras de Oxum,
os Corpos Brincantes e dançantes das crianças
potencializaram uma conexão energética afroancestral,
na qual meninos e meninas, ao se balançarem no vai e
vem das águas doces de Oxum, evidenciaram o Corpo-
Dança Afroancestral (PETIT, 2015). Esse corpo, ao
experienciar a dança ou as expressões corporais, conecta-se à e evidencia uma ancestralidade
africana.
Nesse sentido, Ford (1999) potencializa a compreensão espiritual vinculada as(os)
deusas(es) orixás, em conexão com o indivíduo, a partir de diversas expressões artísticas e
cotidianas:
FIGURA 25 – DANÇANDO
AS ÁGUAS DE OXUM
159
Portanto, pode-se chegar à segunda parte dessa fórmula espiritual do panteão iorubá:
se você seguir os deuses e as deusas, se você se envolver com os arquétipos presentes
nos seus inconscientes, por meio do mito, do ritual, da dança, da poesia, da intuição e
de outros modos de meditar sobre eles, também você será levado de volta à plenitude
divina original. Depois, por fim, existe a revelação de que o mesmo ciclo que dá vida
a deuses e deusas, dá vida a você, já que a grande pedra de Atunda [segundo o autor,
a palavra de origem Iorubá significa “aquele que destrói e cria de novo”] ressoa em
todos os momentos da sua vida, para a sua consciência de que: você está sempre sendo
esmagado de numerosas maneiras só para ser gerado outra vez física, mental e
espiritualmente (FORD, 1999, p. 209).
Observei outros momentos de curiosidade e interesse nas crianças, bem como de
identificação energética em relação a outras(os) orixás. Na 2ª oficina, utilizei um livro de pano
para a contação de histórias Conhecendo as(os) orixás, na qual falei de Xangô e disse que ele
também era um guerreiro lutador, que tinha dois machadinhos. Imediatamente, o menino
Oceano Tubarão Tigre, ao ver o nome no desenho, disse: “E o nome dos machados é Oxé!”, e
a menina Gatinha Folha repetiu o nome da ferramenta. Ao falar de algumas características
desse orixá, os meninos Leão Fogo e Onça Pintada brincaram com movimentos corporais que
lembravam uma luta. Algo que me chamou atenção foi o fato de o menino Leão Fogo afirmar
que esse deus poderia ser do bem ou do mal, e explicitou algum motivo, incompreensível na
gravação do vídeo. Eu lhe disse que ele era do bem.
O menino Oceano Tubarão Tigre, nessa oficina em questão, expressou, após o término
da contação de histórias, que gostaria de continuar olhando o livro para ver se encontrava outros
deuses: ele ficava alternando entre olhar o livro e entrar para a dinâmica do jogo/brincadeira
corporal Animais e emoções na floresta. Ao final da oficina, ele me devolveu o livro,
aproximou-se de outras crianças e se preparou para ir embora. Eu me aproximei do menino e
disse que iríamos continuar conhecendo os orixás nas outras oficinas, e ele demonstrou uma
expressão de alegria, surpresa e curiosidade.
Ao perguntar-lhe se havia gostado da oficina, e de qual dos orixás tinha gostado mais,
ele disse que gostou, sim, e manifestou interesse por “aquele que tem arma!”. Perguntei se era
“Oxóssi, o da mata”, e ele indicou que não; virando a página, mostrou Ogum e continuou
insistindo: “Aquele da arma!”. Além disso, indagou: “Ogum é aquele do trovão?”, e eu disse
que não. Mostrei Xangô, então ele disse: “Eu quero ser os dois!”. Eu disse ao menino que ainda
haveria uma brincadeira para ele escolher ser os deuses, e o menino ficou me mostrando e
indicando quem iria ser, através do livro.
Essa possibilidade de o menino Oceano Tubarão Tigre vir a “ser” os deuses ocorreu
na 7ª oficina, no momento das contações de histórias, quando ele interpretou o personagem
Ogum, destacando-se na primeira história Oxum e seu mistério (OLIVEIRA, 2009).
160
Apresentei Ogum como o segundo personagem da história, amigo de Oxum, já
anunciando que estava próximo o momento de as crianças entrarem em ação. Nesse momento
a roda já tinha se desfeito, e todas as crianças estavam na minha frente, umas deitadas e outras
sentadas. O menino Oceano Tubarão Tigre perguntou: “É aquele dos reis dos trovões?”,
referindo-se a Xangô. Eu disse: “Não, não é esse, mas ele é da guerra, do ferro, ele faz armas!”.
Como já explicitado anteriormente, esse menino foi escolhido para representar Ogum, e a
menina Cachoeira, para representar Oxum.
Continuei narrando que Ogum, mesmo criança, trabalhava, e pedi para o menino
Oceano Tubarão Tigre ir mais para frente, para fazer a cena; ele ficou em uma postura que
lembrou como se estivesse mexendo na terra. Ogum construía ferramentas de ferro e o menino
continuou na sua proposição. É oportuno destacar que “Ogum é o desbravador, aquele que na
mitologia yorubá transformou a natureza criando as primeiras ferramentas. Por essa razão,
Ogum é relacionado à agricultura, à fabricação de armas brancas e à descoberta de inúmeras
técnicas artesanais” (LODY; SABINO, 2011, p. 129).
Esse mesmo menino também teve a oportunidade de experienciar “ser” os deuses no
jogo/brincadeira corporal Dançando com as(os) Orixás. Na dança do orixá Ogum, eu lhes
perguntei: “Na história, Ogum era quem?”, e Oceano Tubarão Tigre disse: “Um menino?”. Eu
disse: “Um menino que fazia o quê?”, e ele: “Armas”. Eu falei: “Armas, muito bem!”, e depois
ele vibrou pulando e dizendo: “Eu quero ser ele, eu quero ser ele!”
Mostrei alguns movimentos da dança de Ogum, como o de cortar as plantas, por
exemplo, portando uma espada (no caso imaginária), com as mãos fechadas, e com um desenho
pontudo nelas, passando uma por cima da outra várias vezes: “As duas mãos espalmadas, com
os dedos unidos, fazem movimentos alternados como se fossem lâminas, ora para cima, ora
para baixo” (LODY; SABINO, 2011, p. 131).
Ao caminhar e depois pular, o menino Oceano Tubarão Tigre expressou novamente:
“Ô, Lia, Lia, eu posso ser?”, e eu respondi: “Pode, pode”. E continuei a narração e a
demonstração dos movimentos: “Aí ele vai cortando aqui [fiz movimentos para baixo], aí ele
corta para cima, corta para baixo, aí ele puuuulaaa e ele giiiiiraaaa!”. Ao mesmo tempo em que
eu narrava e demonstrava, o menino Oceano Tubarão Tigre me acompanhava, fazendo à sua
maneira, com bastante vigor e energia – “assim, ô Lia” –, pulando com intensidade, com os
braços e a cabeça bastante energéticos, e os seus pés, ao tocar o chão, estalavam sons de pisada,
assemelhando-se à dança desse orixá, conforme descrição a seguir:
Ogum é o orixá do movimento, da rapidez, das descobertas, e tudo isso está
identificado nas coreografias das suas danças, que relatam de maneira teatral seus
161
papéis na natureza e no mundo. Ogum também vive nas matas e possui um caráter tão
determinado e forte quanto o ferro, elemento de imediata identificação [...]. Ogum
desloca-se com velocidade, empreendendo trajetórias contínuas, como se estivesse
caminhando apressadamente ou mesmo correndo ao encontro de uma caça ou de um
material que será recolhido e por ele transformado (LODY; SABINO, 2011, p. 129-
130).
Reconheço que há, metodologicamente, outras formas de estabelecer relações com as
danças das(os) orixás – não apenas coreográficas –, que possibilite às crianças, além de
dançarem com seus corpos, vivenciarem a brincadeira no corpo e com as deusas e deuses. Essa
perspectiva foi experienciada quando eu disse que Ogum tinha um cavalo, no qual ele andava,
e fiz uma movimentação – som de cavalgada –, ao que o menino Oceano Tubarão Tigre me
acompanhou.
A relação com o cavalo se dá mais pelo sincretismo na Umbanda, entre Ogum e São
Jorge, mas achei interessante levar a figura deste animal, assim como do ser mitológico da
sereia, em Iemanjá, na ocasião da contação de histórias desta orixá, para que as crianças
tivessem mais elementos para brincar e dançar corporalmente.
Em uma segunda demonstração, o menino Leão Fogo também fez sua movimentação
de cavalgada, e depois Oceano Tubarão Tigre sentou em cima do outro menino, como se ele
fosse o cavaleiro, e o amigo, o cavalo. A Professora Sol lhes chamou atenção, mas eles
continuaram nessa movimentação.
Coloquei a música São Jorge, Ogum29, pertencente ao CD Ciranda dos Orixás, criado
e produzido pelo grupo Tempo de Brincar. O menino Oceano Tubarão Tigre, que era o
cavaleiro, uniu esta proposição com a outra, de Ogum, quando fez movimentos de corte com as
mãos para frente, passando uma mão em cima da outra, montado no cavalo representado pelo
menino Leão Fogo, que caminhava pelo espaço.
Solicitei que os dois meninos fizessem sozinhos, e distantes um do outro, movimentos
semelhantes de pular e soltar – o movimento de “corte no ar” –, o que depois se transformou
neles correndo pelo espaço, como se Leão Fogo seguisse Oceano Tubarão Tigre. Assim,
demonstraram uma espécie de luta, não entre si, mas com inimigos imaginários, e enquanto
Leão Fogo soltava sons fortes, Oceano Tubarão Tigre, ao final, girava um pouco.
Algumas danças simulam uma luta com facões, relatando nas coreografias o caráter
guerreiro do orixá [...]. Um comportamento ágil, repleto de impulsos rápidos, faz com
que as danças de Ogum sejam vigorosas e extremamente masculinas, [...] cada gesto,
cada movimento circular com o corpo, saltos (LODY; SABINO, 2011, p. 130).
29 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=m5Apebl43B8>. Acesso em: 24/10/2019.
162
FIGURA 26 – GUERREIROS E GUERREIRAS DE OGUM DANÇAM
Fonte: Arquivo da Pesquisa
Edição: Lia Braga
Era a vez da dança de Xangô, e além do menino Oceano Tubarão Tigre, outro menino
se destacou na experienciação, que foi Leão Fogo. Algumas vezes, inclusive, senti que Leão
Fogo comandava energética e coreograficamente a dança.
Explicitei que Xangô era o deus do raio, dos trovões, e logo os dois meninos se
colocaram à minha frente, pulando animados, demonstrando que queriam participar. Oceano
Tubarão Tigre perguntou: “Eu posso ser, Lia?”, e Leão Fogo: “Eu também?”. Eu afirmei que
sim e continuei: “Vocês agora vão observar como é que Xangô dança! Xangô é o deus, é o rei
do fogo, dos raios e dos trovões, e da justiça! Vocês sabiam que Xangô tem a ver com o São
João?”. Enquanto eu falava, o menino Leão Fogo abraçava o menino Oceano Tubarão Tigre e
afagava o seu cabelo. O primeiro menino disse, colocando o peito para frente e os braços para
trás: “Eu sou o raio!”. A Professora Sol perguntou sobre a relação com o São João: “É mesmo,
Lia?”, e eu respondi que sim.
A menina Raposa perguntou: “Lia, ô Lia, a menina do vento [referiu-se a Oiá-Iansã],
ela ajuda Xangô?”, e eu confirmei que sim. Continuei narrando e demonstrando as
movimentações dançadas: “Xangô tem a ver com o São João por quê? O que é que tem no São
João? Uma fogueira! Aí Xangô, ele tem duas machadinhas que ele usa para se proteger”. O
menino Oceano Tubarão Tigre disse: “Sei, sei!”, e eu levantei as mãos para o alto, como se
segurasse os objetos imaginários, depois os cruzei em frente ao peito, e o menino Leão Fogo
também fez esse movimento. Continuei: “Aí ele dança assim, ó, em volta do fogo, girando com
as suas machadinhas [eu girei e as crianças giraram em volta de mim], ele usa seu machado
para atacar e defender”. Fiz uma movimentação que deu essa ideia, e os meninos Leão Fogo e
Oceano Tubarão Tigre também fizeram.
163
Enquanto eu colocava a música São João, Xangô Menino30, de autoria de Caetano
Veloso e Gilberto Gil, interpretada pela dupla musical Palavra Cantada, o menino Leão Fogo
disse: “Esse é o machado!”, olhando para seu amigo Oceano Tubarão Tigre, que respondeu:
“Ei, esse é o machado de Xangô!”
Com a música, os meninos começaram a pular, e o menino Leão Fogo fez movimentos
como se soltasse algo pelas mãos; a menina Cachoeira também pulava freneticamente, e uma
hora se agachou bem rápido, e depois levantou rodopiando. O mesmo menino levantou os
braços para cima com energia e disse gritando: “Trovãooooooo! Fogo!”, enquanto o menino
Oceano Tubarão Tigre se posicionava de forma a se proteger.
Depois o menino Leão Fogo saiu um pouco da posição em que estava, colocou uma
das mãos em sua cabeça, girou com os braços bem abertos, depois parou e lançou um dos braços
para cima – o que me remeteu à imagem de lançar raios. Enquanto isso, eu disse: “Olha aí, o
que é que a música diz? Vamos lá, Xangô, o fogo!”. O menino Oceano Tubarão Tigre disse:
“Ahhhh, a gente tá fazendo o fogo!”, e eu, sorrindo, pedi: “Pois mostra aí o fogo, bem bonito
para eu ver!”. O menino lançou rapidamente um braço para baixo e foi para o chão; enquanto
isso, Leão Fogo, que vinha acompanhando, disse: “Eu também sou o fogo!”, e lançou os braços
para baixo, também se agachando.
Quando eu disse: “O machado de Xangô, o machado, o machado!”, eles se levantaram.
Leão Fogo fez como se marchasse com os machados imaginários para cima, depois os
posicionou em frente ao peito. Ao correr com o outro menino, eles começaram a lutar. O menino
Leão Fogo girou sem parar, de braços abertos, e o menino Oceano Tubarão Tigre girou uma
vez, tentou golpeá-lo, lançando um braço para frente. Depois, o outro menino, parando de girar,
lançou os dois braços para cima do outro. O menino Oceano Tubarão Tigre pulou um pouco e
soltou um som com a mão para cima do amigo, enquanto o primeiro menino girava e lançava
os braços para cima do outro.
A partir dessas experimentações corporais teatralizadas e dançadas, é possível
relacioná-las com a dança de Xangô:
A dança de Xangô é caracterizada pelo sentido de majestade, pela solenidade em estilo
marcial, cadenciado. Em determinados momentos da coreografia, esse orixá
representa o ato de lançar pedras e as atira sobre o mundo. Essas pedras são os
coriscos, pedras do raio, das trovoadas, dos relâmpagos que anunciam o poder do
fogo, o poder do rei [...] ao som do alujá [ritmo específico de Xangô] é uma dança
viril, que mostra o poder masculino daquele que, segundo a mitologia yorubá, conhece
e domina o fogo. A dança do alujá é uma sequência coreográfica à qual se pode
chamar de expansão, dança com grande plasticidade, que exige de quem dança
capacidade física e grande energia para poder acompanhar todos os gestos [...]. A
30 Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=UaM7Hmmbs_c>. Acesso em: 27/10/2019.
164
culminância dessa dança se dá pela realização de vários giros do corpo em torno do
próprio eixo, tendo os braços estendidos para cima e as mãos espalmadas, podendo
essa sequência ser intercalada com saltos, retornando-se depois a coreografia, desde
o começo (LODY; SABINO, 2011, p. 145-146).
FIGURA 27 – DANÇANDO O FOGO DE XANGÔ
Fonte: Arquivo da pesquisa.
Edição: Lia Braga.
Os arquétipos das(os) orixás, também como guerreirass e guerreiros, aproximaram a
experienciação dançada das crianças às possibilidades cênicas teatrais, como quando elas
simulavam lutas entre si. Portanto, uma hibridização entre as linguagens da dança e do teatro,
principalmente, tornou possível a performance das crianças, quando elas criavam as suas danças
ou vivenciavam personagens diversos, dentro das suas lógicas.
Nesse sentido, aproximo essas atitudes e experienciações das crianças às contribuições
de Merleau-Ponty (2006). O autor explicita o caráter essencial do pensamento infantil:
Pode-se falar de verdadeira representação do mundo na criança? [...] Supor na criança
alguma coisa desse tipo talvez seja desconhecer o essencial da mentalidade infantil
[...] Diferença essencial entre adulto e criança, é que para a criança tudo é, em certo
sentido, evidência, não há lugar para dúvidas [...] Atribuir à criança uma
“representação do mundo” é certamente fazê-la semelhante demais ao adulto, no
sentido de atribuir-lhe um conjunto de teses e explicações de adultos - e ao mesmo
tempo diferente demais do adulto -, pois a experiência infantil, cristalizada em
“representação do mundo”, aparece como absolutamente estranha à do adulto e
baseada em outra lógica. Talvez não falar de “representação do mundo” na criança
fosse a condição para chegarmos a tomar consciência dessa aderência às situações
dadas, que seria o caráter essencial do pensamento infantil (MERLEAU-PONTY,
2006, p. 230).
165
Ainda no contexto da 7ª oficina, comecei a narrar a história Oiá e o búfalo interior
(OLIVEIRA, 2009), e perguntei se as crianças conheciam ou sabiam o que era um búfalo. A
maioria disse que não, e eu falei: “O búfalo parece um touro, ele tem um chifre, assim, ele é
grandão, o búfalo é muito legal!”
No início pedi para que o menino Leão Fogo e a menina Raposa, que iam representar
as personagens, ficassem lado a lado. A menina começou a representar Oiá-Iansã, caminhando
pelo espaço de forma diferente do seu andar cotidiano, e eu a incentivei. Depois fez movimentos
como se pulasse, abrindo as pernas e os braços retos para os lados; primeiro para um, depois
para o outro lado, de costas e de frente. O menino ficou um pouco perdido em suas
movimentações, andando um pouco, e depois se escorou nas paredes. A menina tentava falar
as falas da personagem, e pedi para ela: “Devagarinho, você vai rodopiar como o vento!”. A
menina repetiu a mesma proposição anterior, só que mais devagar, e em alguns momentos seus
pés ficavam em meia ponta, e ela pulava um pouco. Em outra ocasião, descobri que a menina
fazia aulas de ballet clássico; nesse sentido, ela já tinha uma experiência anterior em dança. Em
alguns momentos, a menina reproduziu as falas da personagem olhando para o público.
Em outro momento da história, quando expliquei que a personagem Oiá-Iansã se
transformara em búfalo – pois “a menina Oiá tinha conhecimentos que ninguém mais possuía:
ela podia transformar-se em animais. Dentre eles, o búfalo era o que ela mais gostava [...]”
(OLIVEIRA, 2009, p. 29) –, a menina Gatinha Folha e o menino Onça Preta expressaram que
queriam representar o animal: eu os chamei, mas não vieram.
Percebi que as crianças estavam muito dispersas, então resolvi terminar a história,
resumindo-a. Representei um pouco o búfalo com o meu corpo, enquanto narrava, agora sem o
livro, e o menino Leão Fogo, acocorado, imitou os chifres do animal. Terminei com a
mensagem final da história, adaptando-a, porque sua escrita original propõe uma profundidade
e um sentido filosófico maior. Na hora da contação, expressei desta forma: “Oiá-Iansã disse
assim para eles: ‘Toda menina tem dentro de si, e todo menino também, um animal, que tem a
força da natureza! E todos nós temos que respeitar os animais da natureza!’”
No jogo/brincadeira corporal Dançando com as(os) Orixás, quando experienciamos a
dança de Iansã (“Nós vamos conhecer a dança de Oiá-Iansã, lá da história, quem é Oiá-
Iansã?”), o menino Oceano Tubarão Tigre empurrou a menina Raposa, que até então estava
sentada e só observando as danças anteriores. Assim, ela se aproximou de mim, em meio a
outras crianças que já estavam participando, manifestando que queriam continuar, e eu disse:
“Ela é a menina dos ventos, dos raios… e também, ela se transforma no búfalo… Olha aqui
166
como é que ela dança, ela dança muito rápido, com as mãos como se fossem os ventos, olha
aqui... Lá vem Iansã muito forte... e ela roda no vento, muito linda!”
Enquanto ia narrando, demonstrei alguns movimentos característicos da dança de Oiá-
Iansã, como um rápido deslocamento pelo espaço com os braços levantados para cima, com
movimentações para cima e para baixo, como se
chicoteasse algo, pelo uso do seu iruquerê (um
“espanta-mosca” de rabo de boi) nos rituais. Os autores
explicitam algumas características:
Suas sequências de ações […] apresentam as mãos como se
espanassem e empurrassem o vento ou os seres invisíveis […];
através dos movimentos da pessoa que dança, se entra em contato
com os eguns – ancestrais […] (LODY; SABINO, 2011, p. 141).
Como se pode observar na Figura 28, girei com
essa movimentação de braços, e as crianças me
acompanharam; o menino Oceano Tubarão Tigre, com
uma rápida caminhada, com suas perninhas e bracinhos
ágeis pelo espaço; e as meninas Cachoeira e Raposa
nos giros, comigo no centro e elas em volta de mim –
depois giraram intensamente e sem parar. No momento da caminhada eu pisava com força no
chão, provocando alguns sons, e a Professora Sol incentivou as crianças: “Com o pé bem forte,
pisa o pé bem forte no chão!”
Antes mesmo de colocar a música Oiá31, da dupla musical Palavra Cantada, a menina
Raposa continuou girando, com os braços bem abertos, para cima, e as palmas de suas mãos
estavam bem vivas; depois caminhou em meia ponta pelo espaço. Durante o início da música,
a menina continuava a girar e se movimentar pelo espaço, e, à sua maneira, realizou o
movimento de chicote que eu havia mostrado com os braços.
A menina Cachoeira girou com os braços abertos na lateral e depois os fechou para
baixo; já a menina Borboleta caminhou com os braços para cima e punhos cerrados, e marcava
bem os pés no chão, realizando sons. A menina Raposa continuou girando para um lado e para
o outro, se deslocando bastante pelo espaço, e por vezes dando saltinhos, sempre realizando as
“chicotadas” à sua maneira: “O voo – mobilidade das danças de Iansã – tem como princípio
31 Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=BM_Z-zjxwfQ>. Acesso em: 27/10/2019.
Fonte: Arquivo da pesquisa.
Edição: Júlia Braga e Lia Braga.
FIGURA 28 – DANÇANDO OS
VENTOS DE IANSÃ
167
um sentimento, uma intenção; é um estilo de quase flutuação no ar, implicando movimentos
rápidos de tronco e pequenos saltos sucessivos [...]” (LODY; SABINO, 2011, p. 142).
Algumas crianças se afastaram e a menina Raposa destacou-se, bailou sozinha pelo
espaço por alguns segundos, e seus braços ficaram no alto e também na lateral, para frente.
Algumas vezes a incentivei com “Linda!”. Quando eu disse “O vento, a liberdade!”, as outras
crianças retornaram, e a menina Raposa soltou mais seus braços, repetiu os movimentos e
depois girou várias vezes, enquanto a menina Cachoeira e o menino Leão Fogo realizaram
movimentos que me remeteram à ideia de soltarem raios com as mãos, fazendo sons. As
“danças de expansão de Iansã mostram diálogos coreográficos com o vento e com o ar, seu
principal elemento. Em suas coreografias há muita movimentação, exigindo-se rápidos
deslocamentos e trabalhos intensos com os braços” (LODY; SABINO, 2011, p. 141).
Ao propor o jogo/brincadeira corporal Dançando com as(os) Orixás, afino-me com as
reflexões e proposições de Oliveira (2010):
A Dança Mítica dos Orixás traz, em seu bojo, a história do protagonismo feminino e
negro na criação e manutenção do planeta Terra, as guerras vencidas, as conquistas
de terras, a nobreza de mulheres e homens negros. É preciso que se tenha a noção de
que, antes de se tornarem orixás, em solos africanos, tiveram uma história social para
além da mitológica, que ficou mais conhecida. Nesse sentido, levar à escola uma
professora de dança afro com esse conhecimento específico [...] capaz de mostrar o
movimento da dança [...] feito por Oxum nas águas dos rios, se olhando no espelho
enquanto penteava seus cabelos crespos; ou o movimento do rei Ogum quando, com
um facão na mão, abria clareias nas florestas, pode ser uma brincadeira bem
interessante: a professora faz os movimentos e os demais repetem. Além das
explicações dos movimentos e seus significados associados aos elementos da
natureza, o/a educador/a poderá contar algumas histórias, mitos afro-brasileiros para
ilustrar a oficina de dança [...]. Será um momento pedagógico inesquecível
(OLIVEIRA, 2010, p. 63).
A partir das experienciações e criações das crianças no jogo/brincadeira corporal
Dançando com as(os) Orixás, saliento a percepção da Professora Sol em relação às temáticas
propostas na pesquisa, na entrevista final cedida no dia 17 de junho de 2019:
Primeiro... eu adorei, assim. Achei uma prática bem inovadora, bem diferente. Gostei
do que foi proposto pras crianças... achei que você veio com uma proposta própria pra
idade delas... pro tema e procurou adequar sempre o tema e como eles intitularam as
brincadeiras... foi um tema intitulado por eles... uma ação intitulada por eles e eu achei
que ela ainda podia crescer mais sabe... sair de dentro da sala... a gente promover uma
ação maior, por exemplo, ali fora da sala, no pátio... aproveitar os movimentos... a
última… eu acho que a última intervenção que eu assisti foram dos movimentos... que
cada uma fazia um movimento... e eles conseguiram reproduzir movimentos bem
característicos dos orixás… eles reproduziam a mão pra frente, o balanço das ondas,
do vento... eu achei bem proveitoso.
168
Outras relações interessantes entre as crianças e as(os) orixás ocorreu na 6ª oficina,
quando, na contação de histórias Iemanjá e o poder da criação do mundo (OLIVEIRA, 2009),
após algumas organizações iniciais, comecei com uma música criada por mim, com
acompanhamento do som do instrumento kalimba: “Vêm para cá vêm brincar com as ondas do
mar / Junto à mãe Iemanjá, a mãe dos orixás / É rainha do mar a mamãe Iemanjá / Odociabá
odociabá Odô Iyá”. Cantar “o-do-cia-bá” pode soar como “ô, doce iabá (mãe)”.
Na hora da música, uma criança tentou cantar, e a menina Gatinha Folha ficou atrás
da bolsa de palha que eu levava. Quando comecei “Junto à mãe…”, ela se levantou majestosa
e começou a dançar. Ela expressou movimentos circulares com o corpo e os braços em
amplitude, para um lado e para o outro, depois para baixo e com as mãos para frente. Também
moveu bastante os quadris de um lado para o outro, e por vezes acentuando-os para cima, como
se a menina manejasse as ondas do mar em seu próprio corpo.
O menino Leão Fogo, logo depois da menina Gatinha Folha, saiu detrás da bolsa, foi
para frente, movendo os braços para um lado, depois tocou rapidamente nas suas coxas, barriga,
peito e coxas novamente, realizando percussão corporal. Na última estrofe, “Odociabá…”,
levantou devagar os braços, bem abertos, para cima e para baixo, como se fossem asas de um
pássaro, levantando-os para cima em “Odô Iyá”. A menina Leoa Oxóssi, sentada na plateia,
também fez movimentos de braços para um lado, como se fossem pequenas ondas, e depois
levantou os braços na última frase musical. A menina Cachoeira levantou o dedo e disse: “Eu
adorei essa música!”
Considero que as crianças, encantadas e estimuladas pelo canto “da sereia”,
experienciaram e performaram, à sua maneira, o mar de Iemanjá. Assim, observo o Corpo-
Poroso delas, corpo este que respirou a maresia do mar, abrindo-se à criação na cadência das
ondas fluentes de seus movimentos, conectando-se também ao Corpo-Dança Afroancestral
(PETIT, 2015) evocado pela mãe das(os) orixás, Iemanjá, e seus filhinhos peixes – YèYé Omó
Ejá, “mãe cujos filhos são peixes”, no caso, as crianças.
Em um outro momento da contação, foi emocionante perceber o encantamento das
crianças diante da personagem/orixá Iemanjá. Por vezes, elas pareciam imaginar ser eu a
própria deusa. Acredito que, dada a minha conexão espiritual, a energia de minha mãe Iemanjá
estava comigo, me orientando, assim como a energia das(os) outras(os) orixás esteve presente
durante todo o processo com as crianças – sempre me inspirando e me guiando para este
trabalho.
Há um momento no desenvolvimento da ação cênica, de transição da Iemanjá criança
para a Iemanjá adulta, no qual pego uma saia branca de três camadas e a visto por cima de um
169
vestido longo, azul-claro com estrelinhas prateadas, acrescentando um cinto prateado enfeitado
com búzios, imitando pérolas e outros elementos, além de uma fitinha azul com búzios e outras
composições, amarrada em minha cabeça. Então, expresso como narradora: “A menina Iemanjá
foi crescendo e deixou de ser uma menina, para se tornar...”. Nesse momento, a menina Gatinha
Folha apontou o dedo para mim e perguntou: “É você a Iemanjá?”, e eu respondi: “Não, eu não
sou a Iemanjá, eu estou representando Iemanjá!”. Continuei: “Ela se tornou uma grande mulher,
uma linda deusa do mar!”
Em momentos anteriores e também neste, várias crianças, com espontaneidade,
demonstraram expressões carinhosas: a menina Leoa Oxóssi cheirou meus cabelos cacheados
e expressou: “Uhmmmm, como você tá cheirosa!”; o menino Onça Pintada disse: “Tá
lindona!”; o menino Onça Preta, levantando os braços, disse: “Você tá muito, muito, muito
linda!”; o menino Onça Pintada, novamente, se manifestou: “Tá linda do tamanho do planeta!”;
o menino Onça Preta, dessa vez, se levantou, chegou perto de mim e, pulando, disse: “Você tá
linda do tamanho do sol!”, entre outras expressões.
Enquanto as crianças se manifestavam, eu agradeci e busquei continuar a narração, um
tanto envergonha e achando graça, como a Professora Iemanjá, que riu em alguns momentos.
Ela interveio no final, quando expressou: “Eu também tô achando a Lia muito linda, porque
agora ela não é Lia, ela é Iemanjá!”
Cabe mencionar a narrativa da Professora Iemanjá, por ocasião da entrevista final,
cedida no dia 19 de junho de 2019, ao considerar a contribuição de minha intervenção
metodológica, artística e pedagógica, sob a forma de pesquisa:
[...] eu sou fã de pesquisa, eu acho que, não existe docência sem pesquisa, né? E as
pessoas pensam que os professores de Educação Infantil não precisam pesquisar, é
bem assim, é um engano! Porque a gente tem que pesquisar muito! Até porque a nossa
metodologia se constitui através de um tema de pesquisa [metodologia desenvolvida
no NEI], então a gente pesquisa sobre as crianças, a gente pesquisa o que é melhor
para elas, a gente pesquisa a metodologia da escola, a gente pesquisa a melhor maneira
de ensinar, material, tanta coisa, antes de estar ali, na sala de aula, né? É, muita coisa
envolvida, então, quando vem um pesquisador, que traz coisas novas, por exemplo,
eu também, nunca mais tinha me fantasiado, para ler história? Isso era uma coisa que
eu fazia muito quando eu entrei na escola, e eu adoro! [...] Aí, eu lembro, eu vejo que
eles, quando estão prestando atenção, na história, que você tá contando, e você está
com os trajes, isso faz [ela riu] muita diferença, né? Para [...] essa entrada na, na
ludicidade. É como se eles [expressão e som de surpresa] imaginassem realmente que
você era Iemanjá.
A professora destaca que as crianças realmente imaginaram que eu fosse Iemanjá, ao
representar a personagem/deusa, dando voz e corpo a ela, com adereços e figurinos específicos
– como coroa de cabeça, que simboliza o adê; o espelho, que simpoliza o abebé; dentre outros.
170
Procurei utilizar também referências, como três bonecas negras: uma abayomi – que a simboliza
criança –, uma sereia chamada Janaína, amiga da Iemanjá criança, e uma outra boneca, maior,
com as características dessa orixá, simbolizando-a na fase adulta. Essa especificidade será
retomada e aprofundada no próximo tópico.
Ao propor performar as personagens, articulando dança, teatro e música, acredito que
a(o) proponente ou facilitadora(or), seja professora(or), educadora(or), artista ou
pesquisadora(or), pode estimular as crianças a trilharem novos caminhos de aprendizagem e
construírem novas relações e visões de mundo. Assim sendo, crianças podem ser instigadas a
exercitarem suas percepções, imaginações, sensibilidades e criações, bem como interpretarem,
vivenciarem e performarem, com seus corpos, as personagens, as músicas, as histórias, os jogos
e as brincadeiras, como destacado em alguns exemplos.
Nesse sentido, adultos e crianças, aprendem mutuamente, construindo juntos
articulações propositivas e criativas, artísticas e educacionais. Nesse cenário, as contribuições
de Martins (2003) enriquecem a discussão, ao explicitarem relações entre corpo, performance
e espiritualidade afro-brasileira:
[...] Minha hipótese é a de que o corpo em performance é, não apenas, expressão ou
representação de uma ação, que nos remete simbolicamente a um sentido, mas
principalmente local de inscrição de conhecimento, conhecimento este que se grafa
no gesto, no movimento, na coreografia; nos solfejos da vocalidade, assim como nos
adereços que performativamente o recobrem [...]. No âmbito dos rituais afro-
brasileiros, a palavra poética, cantada e vocalizada, ressoa como efeito de uma
linguagem pulsional e mimética do corpo, inscrevendo o sujeito emissor, que a porta,
e o receptor, a quem também circunscreve, em um determinado circuito de expressão,
potência e poder. Como sopro, hálito, dicção e acontecimento performático, a palavra
proferida e cantada grafa-se na performance do corpo, portal de sabedoria. Como
índice de conhecimento, a palavra [...] é essencialmente [...] movimento dinâmico, e
carece de uma escuta atenciosa, pois nos remete a toda uma poesia da memória
performática dos cânticos sagrados e das falas cantadas no contexto dos rituais
(MARTINS, 2003, p. 66-67).
Destaco algumas expressões das crianças e da Professora Iemanjá em relação as(os)
orixás, por ocasião da 8ª oficina, nos Afrodiálogos finais, quando formei uma roda e desenvolvi
diálogos sobre a pesquisa:
Eu: “Certo, e sobre as histórias...”
Menino Gato Ninja do Fogo: “Eu achei triste, quando aquele irmãozinho Ibeji
morreu!”
Menina Borboleta: “A parte que eu mais gostei foi quando o irmão Ibeji viveu de novo!
Eu tô toda doida!”
171
[Várias crianças falaram ao mesmo tempo, e outra disse: “Quando o Ibeji morreu!”]
Eu: “Certo. […] E dos personagens das histórias, o que é que vocês acharam deles?”
Menina Gatinha Folha: “Bem legal!”
Professora Iemanjá: “Qual foi? Diz aí um que vocês se lembram”.
Menina Gatinha Folha: “Oxóssi!”
Professora Iemanjá: “Pois, eu lembro de uma, que eu mais gostei, Lia...”
Menina Raposa: “A mãe do mar?”
Professora Iemanjá: “Foi essa! Como é o nome dela?”
Algumas crianças: “Iemanjá!”
Eu: “Iemanjá, que legal! [...] Para vocês, o que é que vocês aprenderam sobre os
orixás?”
Menina Raposa: “Eu aprendi que o Oxóssi, ele fazia muitas armas, e plantas [...] pra
se defender dos inimigos! [...] Ele gostava muito dos animais que tinha lá, ele brincava
muito com eles! Mas [...] os inimigos, ele [...] combatia os animais, com suas
armaduras!”
Menina Gatinha Folha: “E também eu aprendi que, [...] Oxóssi [...], ele gosta muito
da cor verde, ele tem o bicho de estimação, que é uma onça!”
Eu: “Muito bem! Diga, Gato Ninja do Fogo!”
Menino Gato Ninja do Fogo: “Eu sei que quem criou as armas foi o cara que Raposa
falou, que era o irmão...”
Alguma criança: “Oxóssi!”
Eu: “Quem criou as armas foi Ogum! Oxóssi também tinha um arco e flecha da mata!
Por isso que ele usava essa arma para proteger os animais!”
Menina Gatinha Folha: “[Alguma palavra inaudível] falar uma coisa ainda! Eu acho
que os orixás são, são [...] deuses, deuses da mata, deuses do... da água e deuses da...
África!”
Menina Borboleta: “Irmão gêmeos!”
Eu: “Os irmãos gêmeos são um orixá! Para você, eles eram pessoas comuns, eram
deuses? Eram o quê?”
Algumas crianças: “Deuses!”
Menino Gato Ninja do Fogo: “Eles eram filhos de...”
Menina Gatinha Folha: “Da mãe do mar!”
[Menina Raposa começou a puxar a música “Iemanjá é a mãe do mar / Iemanjá é
Iemanjá…”, e algumas crianças também começaram a cantar.]
172
Professora Iemanjá: “É, Lia, é porque durante o São João a gente escutou essa
música... ‘Coco para mãe do mar, coco de roda32.’”
Eu: “Pronto! E aí, gente, o que é que vocês aprenderam sobre a África? Vocês já
conheciam a África?”
Menina Gatinha Folha: “Eu aprendi que lá tem muitos deuses, bem legais!”
Menina Raposa: “Eu também aprendi que [frase que não consegui compreender pelo
barulho]… que ele era o orixá da paz! Tem, tem um orixá que ama o branco [...] ele é
da paz e, e, então por isso que toda vez que um alguém tá estressado, ele faz a paz pra,
pra, se alguém ficar, ficar… fica bem tranquilo! Então, ele nunca está estressado, ele
está seeeempre da paz!”
Eu: “Você lembra o nome dele?”
Menina Raposa: “Nããão!”
Eu: “O-xa...”
Alguma criança: “…ssi!”
Eu: “O-xa-lá! É o nome desse orixá!”
Menina Gatinha Folha: “E também… Aí... aquele que… tem a paz, ele… adorava
ficar com armas!”
Eu: “Ele era velho!” [A partir de um comentário de uma criança]
Menina Gatinha Folha: “E ele adorava ficar, adorava armas!”
Eu: “O da paz adorava armas? Eu acho que não!”
Menina Gatinha Folha: “Não, é porque ele tinha um negócio aqui...”
Eu: “Um cajado!”
Várias crianças: “Um cajado!”
Eu: “Porque ele era velho, né?”
[Algumas crianças falaram ao mesmo tempo]
Menina Gatinha Folha: “E também ele… gostava muito de tambores, eu acho!”
Eu: “É, gostava de tambores, com certeza!”
Alguma criança: “Deixa eu fazer uma música?”
Por ocasião da 7ª oficina, após o jogo/brincadeira corporal Dançando com as(os)
Orixás, reservei um tempo para que, com base nos conhecimentos e práticas desenvolvidas, as
crianças realizassem desenhos, na atividade Desenhando as(os) Orixás.
32 Música escutada na versão da cantora Khrystal. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=W9S4piYHxHc>. Acesso em: 07/10/2019.
173
Inicialmente elogiei a todos, dizendo: “Meus amores, eu achei lindo vocês dançando!”.
Depois fomos ver um cartaz que elaborei com os nomes e algumas características das
divindades trabalhadas durante a pesquisa, para auxiliar no processo de escolha das crianças
em relação a(o) orixá que gostariam de desenhar.
Destaco alguns comentários naquele momento preparatório. Quando falei de Oxum, a
menina Raposa expressou: “A que eu mais gosto é a que você disse que ama!”, e eu respondi:
“É a Oxum!”, e ela disse: “Eu amo a Oxum, porque ela vai me proteger!”. Eu falei: “Exatamente,
que coisa boa, eu também amo Oxum!”. Questionei as crianças: “Os orixás, qual é a cor dos
orixás, da pele deles?”, e o menino Onça Preta disse: “Neeegra, como sempre!”. A seguir,
apresento os desenhos das crianças que participaram da 7ª oficina:
FIGURA 29 – ORIXÁS PELAS CRIANÇAS
Edição: Daliana Medeiros Cavalcanti e Lia Braga
A partir das intensas experienciações das crianças estimuladas pelo universo das(os)
orixás, por meio das histórias, das músicas, das encenações teatrais, das danças, dos jogos, das
brincadeiras e de suas performances corporais, os quatro conceitos-chave propostos aqui –
Corpo-Poroso, Corpo Brincante, Corpo-Dança Afroancestral e Criança Performer – se
articularam nessa gira contextualizada na unidade circular Criança Orixás. Evidenciamos assim
174
o encantamento e a potência que essas deusas e esses deuses negros mobilizaram nas criações
afro-brincantes, artísticas e poéticas das crianças.
4.5 AS CRIANÇAS E SUAS RELAÇÕES COM A NEGRITUDE
FIGURA 30 – GINGANDO E DANÇANDO CAPOEIRA
Fonte: Arquivo da pesquisa.
Edição: Júlia Braga e Lia Braga.
Será desenvolvida neste último tópico a unidade circular Criança Negritude, que se
refere às experienciações das crianças sobre as manifestações simbólicas e culturais, entre
outras, que perpassam a negritude, bem como expressões positivas (como valorização,
reconhecimento etc.) ou negativas (como preconceito, racismo, etc.) sobre elas.
Na 1ª oficina, comecei a comentar em forma de narrativa as fotografias do livro
Crianças – Olhar a África e ver o Brasil, do fotógrafo Pierre Verger, que contém 14 fotografias
e textos de acompanhamento. Explorei 11 fotografias, com os títulos curiosidade, brincar,
alegria, o pequeno camelo, tambores, kalimba, flauta, afoxé, esculturas, embarque e homem
sábio, e tentei dialogar com as crianças, associando as características culturais dos povos
africanos e sua aculturação ao contexto brasileiro.
Quando apresentei a fotografia intitulada alegria, a menina Coelhinha expressou:
“Tenho medo de africanos!”. Eu lhe perguntei: “Você tem medo dessa menina?”. Ela olhou,
pensou por alguns segundos e disse “Não”. Eu falei: “Pois ela é africana!”. Já na 4ª oficina, em
conversa informal, a mesma menina demonstrou uma opinião diferente da anterior e indagou
175
se haveria histórias dos índios. Eu disse que dos índios, não, mas sim dos africanos. Então ela
disse: “Eu adoro as histórias dos africanos, eu adoro aprender com vocês!”
Na 4ª oficina, para a história Ajê Xalugá e o seu brilho intenso (OLIVEIRA, 2009),
decidi contar com o acompanhamento do livro. Perguntei como era o nome do livro, e o menino
Oceano Tubarão Tigre disse: “Omo oba”, ao que eu complementei: “Omo-Oba: histórias de
princesas”. Falei o nome da autora, Kiusam de Oliveira, e a menina Raposa perguntou: “Ela
é... uma africana?”. E eu respondi: “Ela tem origem africana, mas nasceu no Brasil!”. Ao
mostrar a primeira imagem do livro, que apresenta a personagem Ajê Xalugá, houve algumas
manifestações:
Professora Sol: “Uauuuu, que lindooo!”
Eu: “Essa menina aqui, que vocês estão vendo…”
Menina Raposa: “Ela parece uma deusa da água!”
Menino Oceano Tubarão Tigre [animado e apontando para o livro]: “Olha, acho que
ela é da água!”
Eu [com energia de empolgação]: “Muito bem, da água! E aí, Ajê Xalugá tem que cor,
qual é a cor dela?”
Várias crianças: “Preeeto!”
Eu: “Preto, negra, né?”
Menino Leão Fogo: “Neeeegra, igual a você!”
Eu: “Eu… tu me acha negra? Eu acho lindo ser negra, que legal! Muito obrigada!”
Menino Onça Preta: “Eu não gosto de ser negro!”
Eu: “Ai, pois eu adoro ser negra, eu adoro pessoas que são negras!”
Menina Leoa Oxóssi: “Eu não gosto!”
[Vários burburinhos]
Menino Oceano Tubarão Tigre: “A minha avó é negra!”
Eu: “A sua avó é negra, que legal!”
Menina Raposa: “Eu sou um pouquinho negra!”
Eu: “É um pouquinho negra, né? Muito bem! Vocês sabiam que os orixás são negros
e negras? Os que eu tô contando as histórias? Eles são negros e negras! E essa menina
é uma orixá feminina, e essas histórias são da época que elas eram crianças, igual a
vocês!”
176
Enquanto eu narrava, a menina Gatinha Folha pegou o braço da menina Borboleta e
passou-o por cima de seu pescoço, pousando o braço da menina em seu ombro; ficaram por um
bom tempo escutando a história abraçadas. Em alguns momentos, as suas cabeças se uniam, e
a menina Gatinha Folha fazia carinho na amiga. Isso me chamou atenção, porque as meninas
têm características extremamente diferentes uma da outra – uma com características brancas, e
a outra com características negras.
Outras expressões parecidas das crianças foram manifestadas quando, na 7ª oficina,
comecei a narrar a história Oxum e seu mistério (OLIVEIRA, 2009), com o acompanhamento
do livro. Com a primeira imagem em aberto, com uma linda figura da menina Oxum, a menina
Lua tocou com seu dedo na figura e sorriu. Depois se apoiou em mim e pegou o instrumento
que estava no meu colo. O menino Oceano Tubarão Tigre disse: “É Oxum, é Oxum!”
Eu disse que achava a menina muito bonita, e o menino Onça Preta disse: “Eu não
acho!”. E eu respondi: “Eu acho ela linda, mas você tem o direito de não achar!”. O menino
Oceano Tubarão Tigre expressou: “É porque você gosta das pessoas negras!”, e eu respondi
sorrindo e concordando com o menino. Então, o menino Leão Fogo apontou o dedo para mim
e disse: “Então você é negra!”, e eu respondi: “Eu não sou neeegra, mas eu gosto muito das
pessoas negras, certo?”. O menino Oceano Tubarão Tigre falou, assim como da vez passada,
que uma de suas avós é negra, e a Professora Sol sorriu; então o menino Leão Fogo disse: “A
minha também!”. Perguntei qual era a cor da menina da ilustração do livro, e o menino Oceano
Tubarão Tigre disse: “Verde!”, e eu perguntei: “Ela é verde?”. O menino Onça Preta falou:
“Neeeegra!”, e eu completei: “Neeegra, muito bem!”
Pode-se perceber, mesmo com algumas manifestações negativas, que certas crianças
expressaram uma postura de afirmação em relação à negritude – a partir de laços familiares,
por exemplo, como os meninos Oceano Tubarão Tigre e Leão Fogo, que disseram que suas
avós são negras, e na fala da menina Raposa, na contação anterior, que disse: “Eu sou um
pouquinho negra!”
Ocorreu um fato curioso entre a penúltima e a última oficina. Cruzei casualmente com
o menino Oceano Tubarão Tigre, em um passeio em um parque da cidade de Natal. O menino
estava com seus pais e, ao me ver, agarrou-se em mim; nos abraçamos, e seus pais expressaram
simpatia. A mãe disse: “É a tia Lia, da pesquisa?”, e eu respondi que sim. Ela comentou: “A
gente vinha conversando sobre Salvador, né? Aí disse [ela referiu-se à fala do menino], ‘Eu
acho que a Lia ia amar Salvador, porque ela ama negros!”. E, abraçando o menino, finalizou:
“Então ela ama você?”, e eu falei: “Com certeza!”, e nos despedimos.
177
Na 4ª oficina, a partir das personagens da história Ajê Xalugá e o seu brilho intenso
(OLIVEIRA, 2009), referi-me às personagens Olocum e Iemanjá e consegui desenvolver um
diálogo sobre a valorização positiva de características negras, como o tom de pele e os cabelos
cacheados, enfatizando a diversidade de belezas com as quais as crianças conviviam em suas
realidades:
Eu: “E vocês perceberam como é a cor deles? Que é a cor... Negra, né?”
Menino Onça Preta: “Que é a cor... que eu não dou muito valor!”
Eu: “Mas eu acho a cor negra linda, meu amor, sabia?”
Menino Onça Preta: “Eu não acho!”
Eu: “Ó, a cor branca é linda, a cor negra é linda! Eu tenho os cabelos… e como é, ele
é liso ou cacheado?”
Alguma menina: “Cacheado!”
Eu: “Eu adoro o meu cabelo cacheado!”
Menina Borboleta [levanta-se um pouco e diz, tocando em seu cabelo]: “Eu também!”
Eu: “Que lindo, meu amor!”
Menina Leoa Oxóssi: “Eu também!”
Eu: “O cabelinho da [referi-me a uma das meninas] é liso.”
Menina Raposa: “E ela tem olhos verdes [várias crianças falando ao mesmo tempo]…
e é a única que tem olhos verdes!”
Eu: “E ela é tão linda como a [fui falando o nome de algumas meninas, com diversas
características], como todo mundo aqui. Todo mundo é lindo e linda do jeito que é!”
[Enquanto eu falava, as meninas ficaram bem próximas umas das outras, quase se
abraçando, olhando-se entre elas.]
Convém ressaltar algumas das considerações da Professora Sol, na entrevista final,
quando ela destaca os aspectos relevantes vivenciados na pesquisa e a contribuição desta para
a formação das crianças:
Como, por exemplo, os conteúdos ministrados, né, eles conseguiram entender, é... que
existe outra formação além do que é dado socialmente pra eles... eles conseguiram
diferenciar... não tive condições de conversar com eles sobre religião, mas acredito
que eles já conseguem diferenciar e desmistificaram [...] muita coisa do que eles já
sabiam, se identificaram com livros, né... de matriz afro, tanto que agora eles
identificam quais são os livros e sugerem as leituras [...] e assim discursos bem mais
empoderados e mais fortes sobre cabelo, cor, como se portar diante das outras
pessoas... um discurso bem mais forte que eu percebo nas crianças agora [...], elas
178
conhecem melhor a temática e já conseguem indicar, falar sobre esse tema com outras
pessoas, entre si também, já é muito comum.
Nessa confluência de olhares, retomo a autora Kiusam de Oliveira, em entrevista
cedida a Camilla Hoshino, para o portal Lunetas, a respeito de como a literatura infantil e a arte
podem servir como ferramentas para se falar sobre representatividade:
A literatura infantil e a arte devem caminhar juntas e podem ser vistas como ferramentas
importantes para pensar e construir esse “corpo-resistência”. Escrevo focada no
empoderamento das crianças e jovens negros, mas indiretamente meus textos
proporcionam oportunidades para que não negros se vejam no processo relacional com a
diversidade entre as pessoas a partir das diferenças. Proponho textos capazes de revelar a
beleza do povo negro, fortalecendo as características da criança negra que possui cabelos
crespos, nariz largo, lábios grossos, etc. Isso também revela a possibilidade de brancos
refletirem sobre seus privilégios em sociedades racistas como a nossa, entendendo que
há outros padrões de beleza e que podem ser solidários numa luta que é de todos. Tenho
chamado o tipo de literatura que produzo de “Literatura Negra do Encantamento”. Ela
está focada na ancestralidade e no fortalecimento das identidades negras. Ela é capaz de
atingir as estruturas psíquicas mais profundas de jovens e crianças negras, provocando as
costuras psíquicas necessárias para que suas identidades, fragmentadas pelas vivências
racistas, sejam reconstruídas de forma saudável. Tal literatura depende da arte presente
nas ilustrações que devem encantar crianças e jovens negros para que se sintam
orgulhosos do que veem e se reconheçam naquelas imagens. Esse tipo de literatura
considera as situações de conflitos existentes nos corpos negros bem como no corpo
social, as tensões presentes nas relações interpessoais, sem perder de vista a necessidade
de reencantamento pelo próprio corpo (OLIVEIRA, 2017, on-line).
Considero que uma das formas de se trabalhar com a representatividade negra é usando
bonecas e bonecos, entre outros objetos. Utilizei, durante algumas oficinas em que contei
histórias dos Ibejis, dois bonecos para representar os gêmeos; e, na 6ª oficina, utilizei bonecas
na contação de histórias Iemanjá e o poder da criação do mundo (OLIVEIRA, 2009).
Durante a contação, as crianças ficaram muito curiosas quando peguei uma boneca
abayomi para representar Iemanjá criança, bem pequenina: aproximaram-se para ver, e o
menino Onça Pintada ficou intrigado, porque não conseguia ver o rosto dela, comentando isso
diversas vezes.
Narrei que Iemanjá, quando ainda era pequena, criança e princesa, morava no “Orun,
que é assim como o povo Iorubá chama o céu!” e se sentia muito sozinha, mas tinha o poder
da imaginação. Ela havia criado uma amiguinha para ela, para lhe fazer companhia. Tirei então
da bolsa de palha uma sereia negra, de longos cabelos em vários tons de azul e rosa, e,
interpretando Iemanjá criança, eu disse: “Janaína, oi, Janaína, você veio me fazer companhia,
vamos lá!”. A personagem Iemanjá começa então a cantar: “Janaína Janaína Janaína / É a
sereia menina Janaína Janaína / É a sereia do mar / Onde eu quero morar / E também brincar /
Ô, Janaína / Me leva para lá.”
179
Quando retirei a boneca da bolsa de palha, a Professora Iemanjá sorriu, e a menina
Gatinha Folha ficou balançando animada a cabeça. Na hora em que comecei a cantar, passei a
boneca bem próximo às crianças, fazendo movimentos ondulares com ela, a Janaína. A menina
Cachoeira expressou: “É uma sereia, uma sereia!”, enquanto a menina Borboleta se levantava,
ria e a admirava. A menina Gatinha Folha e o menino Onça Preta primeiro se agacharam e
tocaram nela, e depois se levantaram, para pegar melhor, principalmente a cauda, feita de
lantejoulas prateadas.
Enquanto personagem, a menina Iemanjá reclama de solidão e tira da cesta um espelho
azul, o seu abebé, movimentando-o com o lado que reflete a imagem, mostrando-o para as
crianças. A personagem Iemanjá questionou se um dia iria conhecer tantas crianças lindas como
as que estava vendo. Naquele momento, a maioria das crianças se aproximou para se olhar
através do espelho.
Há um determinado momento em que, da boca de Iemanjá – depois que
Olodumare/Olorum, o deus criador, colocara as mãos em sua barriga, que cresce muito –,
surgem as nuvens. A menina diz que gosta muito das nuvenzinhas, porque elas se abraçam; e
mesmo antes de pedir permissão, a menina Gatinha Folha abraça o menino Onça Preta. Depois,
a princesa Iemanjá pede para as crianças abraçarem quem estiver ao seu lado, e conta até três.
As crianças se abraçam carinhosamente, formando às vezes um montinho, com um grupo maior.
Mesmo dizendo “Pronto!”, elas continuaram por mais alguns segundos nos abraços. A
Professora Iemanjá, que sorriu no momento dos abraços, pede para elas pararem, para
continuarmos a história, expressando: “Que abraço gostoso!”
Nesse sentido, a história de Iemanjá, no momento dos abraços, permitiu que fossem
estimulados gestos de carinho e respeito para com todas as crianças, independentemente do tom
de pele e de outras características físicas. Apesar de algumas expressões de preconceito já
internalizadas e manifestadas por algumas crianças durante alguns momentos, a turma
embalou-se em abraços coletivos e “gostosos”, como a própria professora expressou.
Ao continuar narrando, perguntei se eles sabiam que Iemanjá havia tido muitos filhos
orixás, porque ela era a mãe dos orixás. E muitas crianças disseram que sim; o menino Leão
Fogo expressou: “Porque ela é uma rainha!”. Aproveitei a deixa do menino, para tirar da cesta
de palha um acessório que é feito com muitos búzios e que utilizo para coroar Iemanjá adulta
– é o seu adê, sua coroa, que, no caso do meu acessório, também acaba cobrindo parte do meu
rosto. O menino Onça Pintada disse: “Tá atrapalhando a sua vista, é?”, e eu disse que não.
Retiro uma boneca que representa Iemanjá como adulta/orixá, e o mesmo menino
disse: “Poxa, como ela tá muito grande!”. Peguei o abebé dela e, com o espelho em uma das
180
mãos, e a boneca em outra, me pus a girar: “E ela ia dançar, enquanto as pessoas saudavam
ela... Odô Iyá Odociabá, mamãe Iemanjá, salve a rainha do mar! Odô Iyá Iemanjá, salve a
rainha do mar, salve a mamãe Iemanjá!”
Após a contação, quando disse que iríamos brincar, as crianças vibraram; e enquanto
eu ia organizando os objetos, algumas crianças pegavam neles e até brincavam. O menino Onça
Preta pegou a boneca abayomi, que representa Iemanjá criança, ficou pulando, deu uma volta
e disse: “Quá quá, eu sou o boneco, quá quá quá, eu sou o bonequinho!”, repetindo isso várias
vezes; a menina Leoa Oxóssi ficou com a boneca Janaína sereia, jogando seus cabelos para
baixo e alisando seu corpo, e em um momento girou com ela de mãos dadas; a menina Borboleta
colocou a coroa de búzios em sua cabeça e saiu andando, enquanto a menina Gatinha Folha a
seguia, e depois colocou a coroa em sua cabeça, ao que o menino Gato Ninja do Fogo elogiou:
“Ficou bonita, ficou bonita!”. Contei com o apoio da Professora Iemanjá para envolver as
crianças na tarefa de guardar as coisas. A menina Leoa Oxóssi ficou de frente para a câmera do
computador e, com muita criatividade, ao brincar
com a boneca sereia Janaína, disse: “Olá, eu sou
a Iemanjá [...] Odô Iyá Odô Iyá [como no som da
música que cantei]”. Depois eu peguei da menina
a boneca e fui guardá-la.
Dessa oficina, a menina Lua não quis
participar. Quando terminou, fiquei interagindo
com ela e lhe mostrando alguns objetos
utilizados – como, por exemplo, o espelho de
Iemanjá –; ela ficou rindo e se mirou, e depois
tocou um pouco o instrumento kalimba, que eu
havia levado no dia. Depois ela pegou novamente
o espelho para se olhar, voltou a tocar o
instrumento e cantou uma música. Ela saiu de
perto de mim, ao que levei embora a boneca
sereia Janaína; ela observou e interagiu com a
boneca nesse momento. A menina Cachoeira, a
respeito da boneca que representa Iemanjá como
orixá, perguntou: “Compra essa boneca para mim?”, e eu lhe respondi: “Meu amor, eu não
posso comprar essa boneca para você!”
FIGURA 31 – LIA MIRANDO-SE NOS
ABEBÉS (ESPELHOS) COM AS BONECAS
IEMANJÁ ORIXÁ E JANAÍNA SEREIA
Fonte: Fotografia de Malvinier Macedo
181
Destacarei a seguir algumas apreciações da Professora Sol a respeito do uso de alguns
recursos metodológicos com foco nas relações étnico-raciais e, mais especificamente, na
negritude e nas africanidades, mencionando as estratégias metodológicas da pesquisa e a
contribuição desta à sua prática docente:
Passei a conhecer muita… muita... muita coisa... assim... eu tinha algumas leituras,
conhecia algum ou outra coisa da cultura, mas eu não tinha tido a experiência como a
sua, como você proporcionou... então minha leitura vinha da universidade ainda, dos
cursos de formação, mas eu nunca tinha vivenciado uma prática... então você clareou
muito, de como começar, de onde começar, de que materiais trazer, então eu sempre
me encantava muito com os instrumentos, tanto que eu acho que você puxava um
instrumento e você dizia “oh o kalimba... é um tambor, é isso... é aquilo”... eu sempre
tive muita vontade de trazer, mas eu não... realmente eu não sabia como [...] então
procuro ter muito cuidado com o discurso com as crianças, então eu não sabia como
trazer essa temática pras crianças, como adequar meu discurso ao discurso delas e isso
você trouxe muito bem, né. E nos envolveu muito, todos... crianças e adultos.
É oportuno fazer alguns entrelaçamentos entre o Corpo-Poroso, o Corpo Brincante e
o Corpo-Dança Afroancestral (PETIT, 2015) manifestados pelas crianças. Assim, é possível
integrar negritudes e africanidades. No início da contação de histórias da 5ª oficina, Os Ibejis
encontram água e salvam a cidade (PRANDI, 2001), frisei que o som do instrumento kalimba
é muito suave, e que eles precisariam fazer silêncio para escutar. O menino Onça Preta
colaborou e disse: “Muito silêncio, assim!”, e colocou o dedo na boca. Comecei a cantar e a
tocar uma música criada por mim: “Vamos lá, vamos lá, vamos todos escutar / Vamos lá, vamos
lá, vamos todos escutar / Esse som da kalimba, que agora vou tocar / Esse som da kalimba, que
agora vou tocar / E de onde é que ele vem? / Ele veio da África! / E de lá também vêm deuses
da natureza! / Orixás, Iorubá / Um povo tão bonito! / E de lá também vêm os gêmeos Ibejis.”
Logo após ter iniciado a música, o menino Onça Preta se levantou e começou a fazer
uma dança com braços e mãos, o que me remeteu a uma estátua egípcia em movimento. Em
sua dança, seus braços em oposição iam para frente e para trás, alternando-se quanto à direção.
Com um ritmo mais pausado, fez leves paradas; os joelhos ficaram um pouco flexionados e
fizeram com que a parte da frente de seus pés se fincassem no chão. Em certo momento, escutei
o som de uma pisada mais forte.
O menino Gato Ninja do Fogo achou engraçado esse momento e, rindo, começou a
dançar também, cruzando com o primeiro menino, que se sentou depois de um tempo. Gato
Ninja do Fogo propôs o mesmo desenho de movimento; porém, de maneira mais frenética e
ágil, com os braços também em oposição, mas sem trocá-los de direção e com o corpo mais
ereto. Em determinado momento, a menina Borboleta quis também propor a dança, mas ela
182
apenas se levantou em um impulso e ficou por alguns instantes em estátua com o desenho
coreográfico, o que me remeteu mais à proposição do menino Onça Preta.
Depois, o menino Onça Pintada levantou o dedo e disse: “O nome disso é kalimba!”.
Em outro momento, olhou para o menino Gato Ninja do Fogo dançando e riu discretamente,
apontando o dedo para o colega. Já no final do canto, quando finalizei com “os gêmeos
Ibejis…”, o menino Onça Preta completou: “Que morreu!”, e eu disse, “Um deles morreu,
né?”, pois estávamos nos referindo a uma história anterior.
Ao iniciarmos a 8ª e última oficina, a menina Raposa espontaneamente me falou de
uma brincadeira africana: “Ô, Lia, eu tenho uma brincadeira africana!”. Depois fez uns
movimentos de pular, e eu disse que naquele dia iríamos fazer outras brincadeiras, mas que
tinha adorado conhecer essa que ela estava apresentando.
Depois, perguntei onde ela havia aprendido essa brincadeira. Pedi para ela me explicar
detalhadamente, e a menina disse: “Eu aprendi… com uma música africana, que… fala muito
sobre a África… fala de onde a África fica… e aí nela tem essa brincadeira que pula vassoura!”.
A menina pegou dois bonecos e tentou demonstrar: “Aí uma criança vai tá aqui e vai fazer
assim [mexeu as pernas do boneco], e aí a outra vai tá aqui… aí vão ter que pular, um pé
dentro… aí se fechar você tira o pé, aí depois você bota o outro pé dentro… aí a brincadeira
termina quando as crianças quiserem!”. Eu falei: “Muito bem! Amei a sua explicação! Vamos
para roda, agora?”, e a menina, em um pulo e vibrando, disse: “Vamos!”
Nessa última oficina, centrei-me na manifestação cultural afro-brasileira da capoeira.
Primeiramente nos sentamos em roda, para uma conversa inicial; depois de um tempo entre
organização e dispersão, indaguei: “Gente, nas histórias que eu contei para vocês, vocês acham
que havia guerreiros e guerreiras?”. O menino Onça Pintada disse: “Siiim!”, e eu: “Sim? Eu
também acho! E olha aí, hoje a brincadeira que eu trouxe tem a ver com guerreiros e guerreiras!
Há muuuito tempo atrás, inventaram uma dança, que é uma luta que tem a ver com o Brasil e
com a África”. O menino Gato Ninja do Fogo me interrompeu e disse: “Eu já sei...
capoeeeeeira!”, e eu disse: “Capoeeeiraaaa, muito bem! O que é que vocês conhecem da
capoeira?”
Depois de um tempo de dispersão, continuei: “E, meus amores, vocês sabem a história
da capoeira?”. A menina Raposa levantou-se e disse: “Eu seeei! É que os negros vindos da
África...”, e a menina se remeteu à história do livro Chico Rei, de Renato Lima, perguntando se
podia pegar o livro. Eu disse que sim. Ela expressou: “É o livro que eu trouxe para a ciranda
[livros que ficam na sala à disposição das crianças]”. O menino Onça Preta disse: “E é dos
negros, da África!”. Eu falei: “Dos negros... estou aprendendo com vocês sobre a capoeira!”,
183
ao que o menino expressou: “Comigo!”. Eu disse, sorrindo: “Com todos vocês!”. A menina
mostrou o livro e disse: “Esse livro aqui é da África!”, e eu: “Que lindo!”. Ela disse: “Você
pode ler para gente?”, e eu confirmei: “Eu vou ler um pouquinho, certo? E depois a gente vai
continuar a brincadeira!”
A menina tentou contar um pouco da história: “Era uma vez um homem chamado
Chico, mas… colocou o apelido dele de Chico Rei...”. Então ela disse que eu iria continuar a
história; eu e a Professora Sol nos olhamos, rimos, e eu disse: “Tá certo... é o seguinte, essa
história do Chico Rei, no final, se der tempo, eu conto, tá bom?”, e a Professora Sol frisou:
“Chico Rei, que veio lá da África… na terra dele, ele era filho de reis e rainhas...”.
A menina continuou falando um pouco da história, mostrando algumas imagens do
livro para todos nós, que estávamos na roda, e uma hora disse: “E os negros também, eles
andavam de barco!”. Eu disse: “Prooonto, você chegou no momento da história que eu queria!
Como é que os africanos vieram parar aqui no Brasil, alguém sabe?”, e o menino Gato Ninja
do Fogo disse: “Andavam de barco! Eu acho que... eles agradeciam a Iemanjá?”. E eu: “Olha,
os negros africanos que vinham para cá, eles agradeciam a Iemanjá, e Iemanjá era quem?”. O
menino Leão Fogo e a menina Borboleta responderam juntos: “A mãe do mar!”, e a menina
Gatinha Folha disse: “A princesa!”. E eu falei: “A mãe do mar, né?”. O menino expressou
como em um cântico: “Iemanjá é a mãe do mar!”. Eu continuei: “Como é o nome dos deuses
que eu falei, os africanos?”, e o menino Oceano Tubarão Tigre falou: “Oxum!”. Eu disse:
“Orixás, Oxum é um orixá. E há muito tempo atrás, vocês sabiam que os africanos foram presos
lá na África, foram trazidos para cá e obrigados a trabalharam muito? Mas eles eram muito
fortes, alegres, e eles tinham várias formas de resistir e de mostrar a sua fé, a sua dança, as suas
cores, e uma delas era a capoeira! Vocês sabem como é que se faz a capoeira?”
Imediatamente, o menino Gato Ninja do Fogo disse: “Eu sei!”. Ele se levantou e,
juntamente com a menina Raposa e o menino Leão Fogo, começou a demonstrar alguns passos
de capoeira: o menino Gato Ninja do Fogo apoiou o corpo todo no chão, sustentando-o com a
força dos braços e das pernas; a menina o chamou corporalmente para um outro espaço, e os
dois ficaram na posição proposta pelo menino; depois ele subiu e lançou um golpe de perna
para ela, e o menino Leão Fogo, que os havia acompanhado, lançou alguns golpes também,
assim como o menino Gato Ninja do Fogo, que lançou um último golpe, enquanto a menina
esperava agachada no chão. Então eu disse: “Estátua! Os três vão voltar para a roda, para a
gente continuar descobrindo sobre a capoeira!”
Foi muito interessante a abordagem inicial sobre a capoeira, pois reafirmei como é
importante estimular o protagonismo infantil. Nesse sentido, as crianças foram manifestando
184
suas narrativas orais e corporais, e elas mesmas auxiliaram a construção dessa dinâmica. Assim,
possibilitamos que conhecimentos já acumulados das experiências vividas por algumas dessas
crianças fossem partilhados com a turma, e isso gerou um enriquecimento do repertório delas.
Revelou-se como um recurso pedagógico motivador para a participação e o exercício da
criatividade das crianças, sobretudo considerando-se o contexto da Educação Infantil –
cabendo, portanto, dialogar com os esclarecimentos e as indicações presentes em Brasil (2014):
A dúvida sobre a origem da capoeira persiste. O mais importante não é superar essa
controvérsia, mas compreender que o princípio da capoeira é africano, ou seja, trata-
se de uma construção dos africanos e seus descendentes no contexto brasileiro, uma
reelaboração da ancestralidade em outro tempo e lugar. Esse entendimento possibilita
perceber que a capoeira sofreu adaptações, entretanto, guarda no seu desenvolvimento
marcas da experiência e da expressividade negras [...]. É possível encontrar entre as
crianças, mesmo entre as pequenas, praticantes de capoeira oriundos de diferentes
vertentes e que tenham sobre ela compreensões distintas. Por isso, é necessário que
todo e qualquer projeto a ser desenvolvido na educação infantil se baseie no que as
crianças já sabem sobre determinado tema ou assunto (BRASIL, 2014, p. 87).
Em seguida, ao utilizar o livro Diário de Pilar na África, de Flávia Lins e Silva,
expliquei que, pelo fato de ele ser volumoso, eu havia selecionado algumas partes mais
importantes para aquela oficina. Mostrei primeiramente algumas imagens de instrumentos
utilizados na capoeira; mostrei o agogô e perguntei quem se lembrava dele, uma vez que já
tínhamos o utilizado na semana anterior. Algumas crianças levantaram a mão. Em seguida,
mostrei o pandero, caxixi, fazendo alguns sons, e mostrei a imagem do atabaque e do berimbau.
Enquanto isso, algumas crianças tocavam nas imagens. Depois cantei, à minha maneira, uma
letra de música contida no livro. As crianças tentaram me acompanhar no refrão: “Paranauê,
paranauê, paraná”… E puxei um cântico com elas, a partir desse refrão, com acompanhamento
de palmas.
Passei para a próxima imagem, com personagens executando passos de capoeira, e
disse: “Olha aqui, vamos aprender os passos da capoeira… Quem quiser, eu vou dizendo o
passo, aí a criança vem, olha aqui como é e faz para tooodo mundo aprender!”. Os passos
apresentados no livro são Bênção (cumprimento inicial), Meia-Lua de Frente e Esquiva,
Bananeira, Macaco e Ponteira, Meia-Lua de Compasso e Cocorinha, Martelo e Início de Volta
por Trás. Nós fizemos a demonstração de alguns, com crianças em dupla experienciando os
passos, e, em determinado momento, a Professora Sol comentou: “Ei, sabia que quando eu era
criança, ao invés de ballet, eu fazia capoeira?”. Eu disse, surpresa: “Sério?”, e ela sorriu.
Ao formarmos uma roda para o desenvolvimento da vivência corporal Brincando de
Capoeira, houve certa dispersão. Eu os estimulei a começar: “Para brincarmos de capoeira, nós
precisamos fazer uma roda bem bonita!”, mas as crianças ainda falavam muito, e a Professora
185
Sol interveio, mesmo depois de algumas tentativas minhas. Agradeci a ela e continuei: “Agora
eu vou explicar como é a brincadeira… eu vou cantar uma música e vou botar umas músicas
no computador de capoeira, sempre vai ter duas crianças no meio [da roda] brincando de
capoeira...”. As crianças estavam bem agitadas e, mesmo antes de começar, algumas já foram
propondo passos experienciados a partir das imagens do livro e de seus conhecimentos.
Depois de uma grande dispersão, a Professora Iemanjá trocou de lugar com a
Professora Sol e, em determinado momento, a menina Raposa pediu para falar uma coisa sobre
a capoeira: “É tipo uma luta, só que também é uma dança!”, e eu disse: “Exatamente! Muito
bem!”. Baixei um pouco meu tom de voz e consegui finalizar a explicação.
Cantei a música Guerreiros e guerreiras de Iorubá, com o acompanhamento do caxixi,
para que as crianças dançassem livremente. Aprendi essa música no grupo de pesquisa
NACE/FACED/UFC. Meu colega, o artista e educador Gerson Moreno, ministrou uma prática
em que utilizava a palavra Nagô, e eu a adaptei para a minha pesquisa, com o uso da palavra
Iorubá. Essa música é também uma adaptação da famosa Escravos de Jó, com a intenção de
enaltecer uma imagem diferente da que sempre fora associada aos negros. No caso da prática
da temática da capoeira proposta, introduzi algumas especificidades; portanto, esta não é a letra
original: “Guerreiros e guerreiras de Iorubá / Jogavam capoeira / Ginga, dança, a capoeira /
Guerreiros com guerreiras dançam dançam a capoeira / Guerreiros com guerreiros gingam
gingam a capoeira”.
Destaco aqui algumas proposições ocorridas na hora da música: as crianças
inicialmente se preparavam para uma luta; depois, os meninos Onça Pintada e Leão Fogo, bem
como as meninas Raposa, Gatinha Folha e Leoa Oxóssi, levantaram uma das pernas para cima
algumas vezes; depois, as meninas Raposa e Gatinha Folha se agacharam, e a segunda menina
pulou, enquanto a primeira, em um impulso, apoiou os braços e as mãos no chão, de cabeça
para baixo, lançando as pernas para o ar. O menino Onça Pintada deu três chutes e um leve
giro, posicionando-se de costas para a roda, realizando o mesmo movimento de sua amiga
Raposa; o menino Leão Fogo fez um som de grito, deu um giro com uma perna levantada para
cima e os braços soltos para trás, ficando de barriga para cima, com apoio de um dos braços e
as mãos no chão, e as pernas e pés também; inclinou-se para um lado, depois saltou para o outro
lado, com os braços e as mãos apoiadas no chão. A menina Leoa Oxóssi quase plantou
Bananeira, ficando com uma de suas pernas eretas no ar.
O menino Gato Ninja do Fogo e a menina Borboleta, que estavam até então olhando,
do lado de fora, se aproximaram da roda. O menino fez o mesmo movimento com pulo e pernas
para cima que os outros amigos já haviam feito; algumas crianças, além dele, ficaram alternando
186
esse movimento, no nível médio33, com ir ao chão, no nível baixo, como uma espécie de pegar
impulso para as “perninhas” no ar, como o menino Leão Fogo e as meninas Raposa e Gatinha
Folha fizeram; a menina Borboleta dava pulinhos enquanto a menina Leoa Oxóssi deu um
chute, se acocorou, girou, pulou e repetiu a movimentação de acocorar, girar e dar um chute ao
levantar; o menino Oceano Tubarão Tigre ficou o tempo todo em pé, e em alguns momentos
batia as mãos na boca, soltando som.
Enquanto isso, a Professora Iemanjá se aproximou um pouco da roda e convidou a
menina Lua para dançar; ela me mostrou com o olhar a flexibilidade da menina, quando Lua,
de cabeça para baixo, com mãos e braços sustentados no chão, pendeu uma das pernas para o
alto e para trás. Eu sorri, a professora então acompanhou a menina em sua proposição, ficando
uma de costas para a outra, e a menina deu um sorriso sapeca para a professora, que expressou
divertimento. Após terminar a música, elogiei: “Que lindo!”
É possível visualizar essas cenas através da Figura 30, que abre este tópico. É possível
também relacionar, com base nas expressões das crianças, alguns detalhamentos sobre a
manifestação a capoeira:
Na capoeira, o corpo desempenha a movimentação coordenada de aproximação e
distanciamento, avanço e defesa, que são os elementos constituintes da ginga. O corpo
realiza o preenchimento de todo o espaço da roda de capoeira [...]. É pelo corpo e no
corpo que as regras, condutas éticas e conceitos da capoeira se exercem. Posicionar-
se, ocupar o espaço e se movimentar são estruturas fundamentais aprendidas na
capoeira. [...]. Além disso, por se tratar de um jogo, a capoeira pressupõe a interação
entre os participantes. Desse modo, relacionar-se com seu corpo implica também
relacionar-se com o corpo do outro, de forma respeitosa e sem preconceito (BRASIL,
2014, p. 93).
A partir dessas e de outras interações das crianças com a ludicidade, a corporeidade e
a música, que abordavam elementos da cultura africana Iorubá e de outras manifestações afro-
brasileiras explicitadas anteriormente, cabe destacar a entrevista cedida pela autora Kiusam de
Oliveira à Semana Mundial do Brincar34, promovida pela instituição SESC Campinas. A autora
tece reflexões que envolvem o brincar na infância, a valorização da ludicidade, a convivência
com as diferenças e outras questões:
Dentro [...] de uma reflexão, numa linha, africana ou afro-brasileira, o brincar ele se
dá sempre na coletividade e... as ações se dão em círculo, frente a frente com o outro,
porque, nada impede, é, que a visão do todo, daquele outro, daquela outra, se forme
33 O conceito de nível se refere à utilização de experimentação no espaço e à altura: nível alto (movimentação do
corpo mantendo a maior distância do chão), nível médio (movimentação do corpo mantendo parte relativa do corpo
em distância ao chão, porém com algumas partes já podendo tocá-lo) e nível baixo (movimentação do corpo
totalmente em contato com o chão) (FERNANDES, 2009). 34 Entrevista disponível em: <https://www.facebook.com/watch/?v=2210238792639714&external_log_id=afd8
ad407f95e406a2a7aca0a41b9911&q=Sesc%20S%C3%A3o%20Paulo%20brincar20kiusam%20de%20oiveira>
187
diante do nosso olhar... os olhos né, eles são caminhos, e o brincar possibilita isso [...]
é na roda, em círculo, que nós estamos vendo [...] as primeiras características que nos
diferem... uns dos outros, umas das outras [...] é olhar e se perceber, e aí a gente
começa a ver essa diversidade do nosso corpo e a partir daí, porque não, é, em relação
as brincadeiras, em relação as culturas... a letra de uma música brincante, é, uma
cantiga, ela têm haver com um povo, ela têm haver com um local, ela têm haver com
um determinado período, com conhecimentos e saberes, com tradição... brincar é
coisa séria, trazer pro cotidiano brincadeiras saudáveis e que de fato proporcionem
um encontro salutar entre as pessoas envolvidas naquele brincar... a criança, ela
carrega, essa inocência que ela é poderosíssima, poderosíssima e eu penso que, com
esse exemplo, adultos e adultas, têm muito a aprender, que, o adulto celebre a
brincadeira, é, esse lúdico, entendendo, o valor que o sentimento de uma criança têm,
porque essa criança, ela não carrega, esse preconceito essa discriminação dentro de si,
para ela, o brincar é um convite a brincar com todos e com todas de uma forma geral...
a partir do momento que alguém, que algum adulto começa a colocar na cabeça dela,
limites, para esse brincar, é que a coisa aparece... é entender que, essa diversidade de
corpos, de cabelo, cor de pele, não pode impedir, não pode ser uma limitação para o
brincar de uma criança, porque a criança ela têm o mundo inteiro para sonhar, ela
pode ser, quem e o que ela quiser.
Na continuidade da vivência, coloquei músicas do CD Abadá-Capoeira (Capoeira
Infantil, Jogos e Brincadeiras e Brincando no Ritmo da Capoeira)35. Durante toda a
experimentação das duplas no centro, inclusive quando eu também ia brincar, ao formar dupla,
por exemplo, com as meninas Leoa Oxóssi e Lua, procurei incentivar as crianças em relação às
suas proposições e criações de movimento, dizendo: “Isso, lindo, muito bem!”. As outras
crianças que não estavam no centro, e sim formando a roda enquanto as duplas experimentavam
a brincadeira dançada, em vários momentos se movimentavam com pulos, giros, levantar de
pernas, impulsionar e cair no chão, meia cambalhota, cócoras, saltos etc.
Pedi para ficarem em estátua e expliquei que as duplas poderiam se locomover pelo
espaço, brincando e dançando capoeira. A menina Raposa perguntou se poderia fazer outra
dupla, e eu disse que sim. As duplas repetiram várias movimentações que já haviam sido
testadas na roda, como os chutes com as pernas, os corpos inclinados para baixo, com braços e
mãos apoiadas no chão, com chute de pernas para o alto, entre outros – a partir de então, de
maneira mais dinâmica e rápida.
Em um determinado momento, eu disse: “Estátua! Vocês são guerreiros e guerreiras
africanos, capoeiristas… bem bonito agora, vai lá!”, e eles se deslocaram pelo espaço, lutando
entre si, agilmente e sem parar, gingando com seus corpos, que alternavam constantemente
entre os níveis, alto, médio e baixo; inclusive, o menino Onça Pintada revisitou a Bananeira
com as pernas não para cima, e sim para trás, o que fez com que seu corpo pendesse e caísse no
chão. Os movimentos das crianças repetiam a estrutura e a dinâmica que fora experienciada
desde o início, ganhando novos contornos e nuances, passeando entre brincadeiras e danças dos
35 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=qZT4lD_G-1o&t=30s>. Acesso em: 29/09/2019.
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repertórios coreográficos criados por essas(es) pequenas(os) guerreiras(os) capoeiristas. A
menina Lua não quis participar desse momento, e tanto eu quanto a Professora Iemanjá
tentamos estimulá-la, sem sucesso.
Sugeri concluirmos a vivência: retornarmos para a ideia da roda, inicialmente com
muita dispersão. Tentei explicar novamente como iríamos desenvolver a dinâmica, e o menino
Onça Pintada disse para a professora: “Plimeilo a gente dança!”, e depois correu e chegou perto
de mim: “Plimeilo a gente dança! Plimeilo a gente faz as… as… coisas na roda, é? A gente
plimeilo dança, né?”. E eu respondi: “Dança na hora da dupla, tá bom?”, e ele retornou para a
roda.
Basicamente as duplas de jogadores repetiram as mesmas movimentações, com a
diferença de que, em alguns momentos, nós, que estávamos formando a roda, batíamos palmas
coletivamente para as duplas de dentro experienciarem.
Dando continuidade, convém mencionar a narrativa da Professora Iemanjá, na
entrevista final, ao explicitar algumas considerações sobre aspectos relevantes vivenciados no
processo da pesquisa:
Eu acho que ampliar conhecimento, ampliar vivência e experiência, ampliar interação,
porque, se a gente sabe, enquanto professora, que eles aprendem por interações e
brincadeiras, então [...] a maior diversidade de brincadeiras e de interações que eu,
favorecer, principalmente na escola, se isso, se traduz em aprendizagem, né? E, como
a gente, como pesquisadora, que sabe que existe um preconceito relacionado à
temática, eu acho que, a gente também amplia a questão... emocional, sensorial da
criança e tudo o que envolve movimento [...] e esse corpo, que quer brincar, que quer
sair, que quer correr, então, eu destaco, é, a alegria de receber, a pesquisa... [nós
começamos a ficar os olhos marejados, ela com a voz embargada; nós rimos e
dissemos uma para a outra que estávamos emocionadas] [...]. Porque lendo e, e
fazendo uma vez um trabalho que eu já fiz com essa temática, eu fiquei muito
emocionada... por saber que as pessoas e as crianças que... participam dessa pesquisa,
professores ou profissionais que pesquisam sobre essa temática, passam, por essa
situação. E, aí, como professora, eu queria, eu quero que os meus alunos além de
aprender leitura, escrita e matemática, eles sejam pessoas diferentes, né? Que aceitem
a diversidade, respeito e se apropriem de outros conhecimentos. Eu acho que a escola
também pode oferecer isso.
A Professora Sol, na entrevista final, expressou o significado do que foi, para ela,
participar da pesquisa; teceu reflexões sobre a temática, destacou o seu envolvimento na
pesquisa e desejou que ela fosse multiplicada em outros contextos:
Ah... eu adorei [risadas]. Eu tinha muita vontade de participar todos os dias e participar
como as crianças participavam... fazendo os movimentos, de ouvir a história, tanto
que, às vezes, eu embarcava muito no mundo das ações das crianças e acabei que fiz
também o que era destinado para as crianças, mas eu sempre tive vontade de estudar
e que isso fosse muito explícito... e assim como eu me envolvi bastante eu queria que
fosse algo... [risadas]... que fosse pra todo mundo, que fosse apresentado pra todo
mundo, que fosse dito assim, como algo comum, é tão nosso, tão nosso, tá tão dentro
189
da gente [...] para fora dos nossos olhos e a gente nem sabe as vezes ou não quer saber
e eu queria que fosse pra todo mundo. No resumo eu me envolvi demais [...] meu
desejo que essa sua pesquisa cresça, cresça para muita gente sabe Lia… acho que nós
estamos precisando... [...] principalmente nesse momento que estamos vivendo,
precisamos que a escola também abrace isso, que não veja como algo de outro mundo
como algo assim que quer atravessar que quer passar por cima... não! É algo nosso...
é cultura nossa... e tomara que cresça!
Ainda cabe destacar algumas manifestações das crianças a respeito da pesquisa, nos
Afrodiálogos finais, na 8ª oficina: o menino Onça Pintada e a menina Borboleta disseram que
haviam gostado de tudo, e a menina disse que tinha gostado mais das brincadeiras. O menino
Oceano Tubarão Tigre expressou (o que fez com que eu e a Professora Iemanjá ríssemos): “Eu
amei, mei, mei, mei, mei, mei etc.”. O menino Leão Fogo também disse que amou; o menino
Oceano Tubarão Tigre manifestou que as brincadeiras que ele havia gostado mais foram a do
Espelho, assim como a menina Raposa. O menino também disse que havia gostado da
brincadeira Boneco de Modelar; o menino Leão Fogo disse que havia gostado de dançar, e a
menina Lua, das histórias e de brincar. Muitas crianças destacaram a capoeira como sendo a
dinâmica que mais gostaram de vivenciar.
A menina Gatinha Folha disse: “Eu lembro do boneco e também lembro daquele
que… Lia, era… uma mulher que andava devagar e a gente corria bem rápido… e se ela pegasse
na gente… a gente tinha que ficar estátua, até uma pessoa tocar na gente e a gente se salvar!”.
Eu expliquei: “É porque a Icu estava pegando os Ibejis, né? E eu fazia Icu naquela… naquele
dia, e vocês eram os Ibejis! Muito bem!”; a menina Leoa Oxóssi frisou: “Eu gostei da… dos
Ibejis e da menina véa que não podia correr rápido!”. Nós estávamos nos referindo ao
jogo/brincadeira corporal Icus velhinhas e os rápidos Ibeijizinhos, momento vivenciado na 3ª
oficina.
Ao perguntar por que a menina Gatinha Folha havia gostado de participar de tudo, a
mesma expressou: “Porque teve brincadeiras, porque teve histórias dos africanos”. A menina
Raposa disse como foi para ela participar da pesquisa: “Eu achei muito interessante, eu aprendi
muito… e isso vai ser muito importante para minha vida… e eu também gostei muito!”. Eu
disse: “Ô, que lindo!”
Com as expressões das crianças e das professoras participantes, sinto-me feliz e
estimulada a continuar nessa empreitada, corroborando o ensejo de discutir e propor práticas
afro-referenciadas. Nesse sentido, cabe dialogar com as considerações de Ligiéro (2011):
Essa aproximação é feita por meio da vivência do manancial lúdico-filosófico que
sempre esteve perto de nós, mas que nos foi negado por preconceitos históricos [...].
As diversas modalidades artísticas (além da rica mitologia e dos simbolismos
religiosos) [...] valorizam a autoestima de quem a pratica, trabalhando com sua
190
identidade cultural, sem deixar de discutir, em termos efetivos e práticos, questões de
identidade do indivíduo e de seu grupo de teatro e/ou comunitário. Dessa forma, o
trabalho ganha um contorno político mais evidente; sai da esfera do autoconhecimento
[...] para se inserir num plano de desenvolvimento de práticas individuais carregadas
de matrizes culturais, muitas vezes adormecidas dentro de cada indivíduo por terem
sido consideradas primárias ou inferiores por pertencerem às chamadas culturas
populares. A discussão do conhecimento teórico dessas tradições ajuda no processo
de descoberta e na sua valorização [...]. Possibilita ainda a assunção de novos
processos criativos e de treinamentos não ortodoxos, induzido, por si só, à interação
com o grupo ou a comunidade e permitindo não apenas que o indivíduo se liberte da
opressão em que vive, mas que o que vive dentro dele, oprimido por séculos de
repressão judaico-cristã, possa tornar-se matéria-prima do trabalho. Afinal, as
tradições afro-ameríndias disponibilizam centenas de práticas celebratórias corporais
e improvisacionais que o emergente campo dos estudos da performance engendra nas
artes cênicas contemporâneas (LIGIÉRO, 2011, p. 256).
Por fim, a partir da ambiência lúdica e artística proporcionada pela pesquisa, na
unidade circular Criança Negritude afloraram questões íntimas e coletivas, dialogadas e
ressignificadas nas experienciações corporais e afro-referenciadas. Nesse contexto, as crianças
manifestaram expressões negativas e positivas, além de curiosidade, interesse, afetuosidade e
empoderamento, que perpassam questões envolvendo as relações étnico-raciais. Estas e outras
manifestações me impulsionam a continuar construindo novas formas de sociabilidade sobre a
cultura africana. Ao abraçar e brincar de mãos dadas com as diversas crianças e infâncias,
estarei contribuindo para a construção de uma sociedade mais respeitosa, que valoriza a
pluralidade étnico-racial e cultural e, consequentemente, nossas raízes afro-brasileiras.
191
TRILHAS PERCORRIDAS… NOVOS HORIZONTES – OXÓSSI, O CAÇADOR:
DESBRAVANDO SUAS MATAS
FIGURA 32 – OXÓSSI
Fonte: Google Imagens (internet).
As matas negras curativas de Oxóssi
Salve Oxóssi caçador promissor
Que com o seu arco e flecha conquista e percorre
Verdes e intensos caminhos abertos
Das curas que desejamos
Ele nos legou o poder da natureza
Majestosa bela e impiedosa
Quando o homem a tenta destruir ela dá a sua reviravolta
Pois é preciso remexer as estruturas para que possamos desestruturar
Os padrões racistas e excludentes
E quem sabe um dia as amarras persistentes sejam destruídas
Para que não apenas sonhemos
E também, vivenciemos, resgatemos e valorizemos
Nossa afro descendência
Okê Arô Oxóssi Ê
Salve Oxóssi!
(Lia Braga, Fortaleza/CE, outubro de 2019)
192
O orixá Oxóssi é o caçador das matas, que, com o seu ofá (arco e flecha), percorre a
natureza à espreita, para se defender ou atacar, e assim conquistar os territórios e as caças, a
fim de prover fartura ao seu povo. Narra o mito Oxóssi mata o pássaro das feiticeiras
(PRANDI, 2001) que o pássaro assombroso das Iá Mi Oxorongá (mães feiticeiras) aterrorizava
as pessoas que as temiam. Oxóssi, sendo estrategista e inteligente, foi o único caçador a acertar
o pássaro, com sua flecha certeira, após as feiticeiras terem aceito o ebó (oferenda) feito pela
mãe do caçador. As feiticeiras se apaziguaram, e assim ele se popularizou; todos festejaram o
seu grande feito.
Na história, compreendo que Oxóssi não esteve sozinho: ele fora auxiliado por sua
ancestral mais próxima, sua mãe. E eu também não estive sozinha no processo desta pesquisa:
fui auxiliada por minhas/meus ancestrais para acertar flechas afro-referenciadas. Flechas que
tiveram o intuito de estimular o pulsar dos corações das crianças e das professoras responsáveis
pela turma participante. Dessa maneira, foi muito importante contar com a abertura, a
curiosidade e o interesse dessas(es) participantes, no tocante às temáticas que foram propostas
e experienciadas.
Vale ressaltar que, na instituição NEI/Cap/UFRN, as crianças, além de vivenciarem a
ludicidade e as atividades que envolviam a expressividade corporal em suas rotinas, também
tinham aulas de artes (teatro e música). Além disso, questões envolvendo as relações étnico-
raciais eram constantemente promovidas, ou através de diálogos (em estudos sobre o Egito, por
exemplo), ou com recursos lúdicos (como com intervenção com boneca abayomi).
A abordagem interdisciplinar constante no projeto pedagógico do NEI e a postura das
professoras responsáveis pela turma facilitaram o processo de desenvolvimento desta pesquisa.
O fato de terem participado crianças com características diversas, e também duas com
deficiência, potencializou o processo criativo e artístico, a dinâmica de ensino-aprendizagem e
a sociabilidade com as mesmas.
Percebi que o grupo imergiu no universo das deusas e deuses orixás através da
metodologia afro-brincante, com contações de histórias e jogos/brincadeiras corporais;
metodologia lúdica esta ancorada nas linguagens artísticas da dança e do teatro, e com uso de
elementos de musicalidade. Esse mergulho desenvolveu-se de maneira intensa e articulada a
conhecimentos anteriores das(os) participantes sobre as africanidades.
Como exemplo, posso destacar os saberes das crianças sobre a capoeira, manifestação
afro-brasileira que eu não havia planejado abordar previamente. Porém, a partir das expressões
das crianças – e também por querer promover um fechamento com uma intensa dinâmica
corporal unindo dança, jogo e relacionar o povo Iorubá, como guerreiras e guerreiros africanas
193
(os), visto que as(os) orixás também têm essa característica –, a capoeira foi um ótimo tema
experienciado com entusiasmo pelas crianças na 8ª e última oficina.
Outras vivências intensas que posso destacar ocorreram na 7ª oficina, quando algumas
crianças representaram alguns orixás através da contação de histórias do livro Omo-Oba:
histórias de princesas (OLIVEIRA, 2009). Destaco a relação da menina Cachoeira com Oxum,
ao vivenciar a personagem, sem termos ensaiado nada anteriormente, o que abriu espaço para
improvisação a partir de elementos simbólicos relatados na história. Assim, Cachoeira trouxe
elementos da dança dessa deusa, quando desenvolveu suas características específicas: a menina
performou à sua maneira e narrou corporalmente a história, criando a sua própria dança, que
remeteu às livres e graciosas águas doces de Oxum.
Em outra contação de histórias, na 4ª oficina, cantei um cântico em Iorubá desta deusa,
e a mesma menina me acompanhou cantando a música comigo, o que me chamou atenção, por
ser uma pronúncia diferente da que ela estava habituada em seu dia a dia. Em momento algum
ela expressou, por exemplo, vivenciar as religiões de Umbanda ou Candomblé, o que poderia
justificar a manifestação do cântico da menina.
Outras relações estabelecidas pelas crianças com as divindades africanas,
evidenciando intensa conexão, foram vividas ainda na 7ª oficina, quando, dançando com as
deusas e os deuses, as crianças, além de dançar, brincaram, teatralizaram e performaram
elementos simbólicos e mitológicos específicos das danças de algumas(uns) orixás.
O menino Oceano Tubarão Tigre abriu os seus próprios caminhos com o facão
imaginário do seu guerreiro Ogum, e até mesmo cavalgou com o seu cavalinho, interpretado
pelo menino Leão Fogo. Já Leão Fogo, imageticamente lançou o fogo de Xangô pela boca, e
as pedras e raios pelas mãos, às vezes até mesmo afirmando que ele era o próprio fogo; além
disso, majestosamente guerreou como o rápido e intempestivo rei de Oyó. A menina Raposa
parecia uma ventarola, com seus rápidos manejos de mãos, “chicoteando” o ar, fazendo intensos
giros e pulinhos na sua dança de Oiá-Iansã (a “menina do vento”, nas palavras de Raposa). Isso
sem contar com os movimentos suaves e ao mesmo tempo intensos das crianças quando, na
dança de Oxum, a menina Cachoeira parecia nadar, e os meninos Oceano Tubarão Tigre e Leão
Fogo embelezavam-se nos seus giros com espelhos imaginários.
Foi evidenciado também, durante as várias oficinas, uma intrínseca relação entre o
brincar e o performar com seus corpos, quando as próprias crianças propuseram serem
personagens, ou quando eu oportunizava momentos em que elas pudessem vivenciá-los – o que
também inicialmente eu não havia pensado. Abri-me a esta possibilidade a partir das
manifestações das crianças, trazendo mais enriquecimento ao processo.
194
Essa relação pode ser observada nas proposições que focavam a relação com
características da natureza, como quando eles representaram os Ibejis e após o desafio de A
ciranda das águas (conquistando o direito de levar água para salvar o seu povoado da seca),
além de corporificarem e vivenciarem elementos como as estrelas, que giravam em uma história
de Iemanjá. Nesse sentido, elas também brincaram de ser elementos como o sol e o fogo, em
um dos jogos/brincadeiras corporais; e fizeram a associação com vários animais, incorporando-
os em seus nomes fictícios.
A relação das(os) orixás com a natureza – como protetoras(es) da mesma e que moram
em vários habitats – possibilitou às crianças expressarem níveis de consciência ecológica em
relação ao respeito, à valorização e ao cuidado com a natureza. Assim, foram gerados diálogos
a partir das histórias e das vivências experienciadas.
A partir desses destaques e dessas relações, considero que o primeiro objetivo
específico ao qual me propus, que era vivenciar processos de criação em arte com um grupo de
crianças entre 5 e 6 anos, no NEI/Cap/UFRN, foi alcançado.
Foi muito importante, na construção do último capítulo, ter estabelecido alguns eixos
norteadores e o enlace entre o que fora vivenciado e os aportes teóricos, de acordo com as
características da pesquisa e os temas transversais nela presentes. Em síntese: performances,
corpos brincantes, cultura africana, artes cênicas e Educação Infantil.
Nesse sentido, as unidades circulares Criança Artista, Criança Natureza, Criança
Orixás e Criança Negritude, e os conceitos-chave Corpo-Poroso, Corpo Brincante, Corpo-
Dança Afroancestral (PETIT, 2015) e Criança Performer (MACHADO, 2010b)
proporcionaram que eu me aprofundasse nas temáticas de maneira a perceber seus
engendramentos, quando um ou mais conceitos-chave se coadunaram entre si a partir de suas
manifestações nas unidades circulares.
Decerto, essas características me proporcionaram não incorrer em um caminho
marcado pela linearidade e por narrativas que dicotomizam o todo. Assim, a compreensão dos
vários materiais obtidos durante as oficinas me proporcionou apreender um princípio cíclico da
pesquisa, remetendo-me a uma grande gira, ou círculo afro-referenciado, integrando
conhecimentos e metodologias artísticas e acadêmicas em intervenção escolar, com foco na
Educação Infantil.
Essa hibridização teórico-prática possibilitou que eu reunisse um material riquíssimo
e, através de escrita, de fotografias, de vídeos e de desenhos obtidos nas minhas experienciações
com as crianças, pude concretizar o segundo objetivo específico desta pesquisa, que foi registrar
as performances dos seus corpos brincantes.
195
Em momentos planejados para estimular essas performances – através de
jogos/brincadeiras corporais –, as crianças se manifestaram, bem como em momentos
inusitados: por exemplo, na 6ª oficina, quando na contação de história de Iemanjá eu toquei
uma música ao som do instrumento africano kalimba. A menina Gatinha Folha dançou
majestosa, performando em seu corpo brincante, através do estímulo sensorial e lúdico, as
ondas do mar, assim como o menino Leão Fogo e a menina Leoa Oxóssi, que também
improvisaram com movimentos que me remeteram às águas da rainha do mar, Iemanjá. Assim,
as crianças vivenciaram e corporificaram esse elemento da natureza a partir de suas
improvisações e criações.
No último capítulo, especialmente, pude enlaçar três especificidades fundamentais
para o desenvolvimento desta pesquisa com base na fenomenologia proposta por Merleau-
Ponty (1999, 2006): a descrição fenomenológica (expondo de fato a experiência vivida tal como
ela ocorreu, com o maior número de detalhes possíveis); a redução fenomenológica (focando
nas experiências que mais se aproximaram do meu objeto e dos objetivos de pesquisa); e a
compreensão fenomenológica (na qual logrei ou consegui estabelecer diálogo com as(os)
participantes da pesquisa, entrelaçando a minha experiência com a delas(es) e propondo, através
da arte, que cada criança expressasse seus sentimentos, emoções e narrativas).
Essas especificidades – a partir das contribuições de Merleau-Ponty, em articulação
com as proposições de Machado (2010a, 2010b), ao “pensar com os cincos sentidos, com a
memória e a imaginação” (MACHADO, 2010a, p. 39) – inspiraram-me a ficar atenta, aberta,
maleável e porosa. Foi possível, nas vivências com as crianças, aflorar nossos sentidos, pelos
quais vimos, cheiramos, saboreamos, ouvimos e tateamos as histórias. Brincamos com
personagens fantásticas, nos jogos, nas brincadeiras, com as músicas, os ritmos, as gingas e as
danças afrodescendentes, partilhando deste universo encantado junto aos orixás. Assim sendo,
foi evidenciado o terceiro e último objetivo específico desta pesquisa, que era o de desvelar o
fenômeno das performances dos corpos brincantes das crianças, as quais foram vivenciadas e
manifestadas.
Compreendo que o sentido de desvelar tem um conteúdo simbólico e processual, ou
seja, construir um cenário no qual a transparência possa se sobressair, sendo possível ver e
enxergar algo que ainda estava encoberto ou adormecido. Nessa perspectiva, o desvelamento
fenomenológico proporcionou conexões com as dimensões mais profundas das crianças. No
caso, a inteireza do brincar, do jogar, do performar/ser um corpo brincante e um corpo vivido,
movente e pulsante na sua própria experienciação. Nos corpos brincantes e performáticos das
crianças, o universo das(os) orixás girou e brindou todo o potencial afrolúdico, poético e
196
artístico dos povos africanos e suas negritudes que em solo brasileiro aportaram a dor, a beleza
e a riqueza de serem o que são, sem jamais esquecer e negar suas origens, memórias e
identidades.
A partir desses objetivos específicos e através das metodologias artísticas e lúdicas que
foram propostas, pude aproximar-me do objetivo geral, que era o de compreender como as
crianças estimuladas pelo universo das(os) orixás experienciam e constituem
as performances de seus corpos brincantes.
Algo relevante a ser destacado, por um lado, foram algumas expressões de preconceito
e racismo externalizadas e reproduzidas por algumas crianças tão pequenas. A partir das
relações com as outras crianças, com perfis diferentes, bem como através das temáticas
vivenciadas na pesquisa, por meio de deusas e deuses com características negras, estas tensões
raciais afloraram e foram discutidas em grupo.
Mesmo assim, por outro lado, durante a experienciação nas oficinas, as crianças
expressaram curiosidade sobre as(os) orixás a partir das intervenções pensadas de maneira a
articular ensinamentos afro-referenciados e metodologias artísticas e lúdicas; foram sendo
construídas e manifestadas pelas crianças expressões de reconhecimento, respeito, valorização,
encantamento, afetuosidade, identificação e empoderamento diante deste rico universo.
Portanto, o objeto de estudo desta pesquisa, que se refere às performances dos corpos
brincantes de crianças na Educação Infantil em diálogo com elementos da cultura africana, a
partir do universo das(os) orixás da nação Iorubá, foi manifestado e vivenciado de forma a
integralizar esta pesquisa em arte, dentro do campo das Artes Cênicas.
Ainda cabe ressaltar que, durante o desenvolvimento da pesquisa, uma perspectiva
ocorreu de maneira natural e surpreendente nas dinâmicas afro-brincantes: o encantamento
surgido através do universo das deusas e deuses orixás, divindades estas que circularam,
envolveram, embalaram e mobilizaram as experiências vivenciadas e compartilhadas com as
crianças.
Estas divindades, que também nos conectam diretamente com nossa ancestralidade
africana, perpetuam a partir de suas histórias, mitos enegrecidos e curativos (FORD, 1999).
Bálsamos medicinais que empoderam as crianças e a nós adultas(os), quando contamos
histórias e dançamos, teatralizamos e performamos nossos corpos brincantes na gira encantada
das(os) orixás.
Esta gira/roda brincante me faz refletir sobre a palavra encantar, que me remete ao ato
de cantar: proferir sons e palavras, entoar cânticos emergidos em águas profundas. Cânticos
estes energizados e potencializados com o canto da sereia, que nos seduz.
197
Também podemos pensar no reflexo das águas doces que guardam o precioso espelho
(abebé) de Oxum, revelando potências e belezas negras. Assim, esse espelho mágico é o salto
da consciência das potencialidades e riquezas que habitam em nosso interior, apresentando-se
como a possibilidade para mirarmos dentro de nós. Quando nos enxergamos verdadeiramente,
podemos olhar a nós mesmos e ao outro de forma plena, o que também reflete coletividades
afro-ancestrais.
Este enfrentamento e encantamento que o espelho promove me faz refletir
filosoficamente que nos constituímos como seres viventes e integrais neste mundo
(MERLEAU-PONTY, 1999), a partir de nossas experienciações, sem anular as experiências de
nossas(os) antepassadas(os). Assim, somos o que somos porque em nós estão encarnadas
memórias individuais e coletivas, que nos apontam aonde iremos e como podemos vivenciar e
desfrutar das nossas vivências no mundo.
Neste sentido, canto, conto e reconto histórias de orixás para me encantar e encantar-
me com o outro, tecendo experiências e entrelaçando mundos orientados pelo chão ancestral
negro. Chão este que nos situa diante de um futuro que pisa muito mais no agora e no outrora,
do que no que ainda está por vir. Sentir este chão é permitir-se a mirada do espelho e a guinada
do encantamento, que pulsa de maneira circular memórias e vivências afro-brincantes.
Para além de minha identificação, amor e engajamento com relação às temáticas aqui
propostas, desenvolver esta pesquisa foi de suma importância para o meu crescimento pessoal
e profissional. Neste processo, pude aprender muito com as crianças, revisitando várias vezes
meu planejamento inicial, além de atentar-me ainda mais para suas narrativas, expressões,
criações e culturas, respeitando-as e valorizando-as como sujeitos pensantes, criativos, atuantes
e que ajudam a construir um mundo melhor. Mundo este experienciado, o que proporcionou a
nossos corpos vividos a possibilidade de se relacionarem diante de tantos encantamentos
sensíveis, ricos e férteis.
Nessa contextualização, frente a entraves e posturas políticas, sociais e culturais que
ainda persistem em corroborar a invisibilização, a desvalorização, os preconceitos e a
intolerância com relação às africanidades, a negritude e suas manifestações, as práticas artísticas
e pedagógicas têm um papel fundamental – e, assim, a luta antirracista incorporará os sujeitos
desde a mais tenra idade.
É possível reconhecer algumas imperfeições e lacunas que existem no presente estudo.
Essa consciência me moverá a realizar um olhar cada vez mais atento, afirmando uma postura
comprometida com estas temáticas, com o intuito de contribuir com um futuro que dialogue e
valorize as crianças e as diversas infâncias do nosso Brasil, que também é afrodescendente.
198
De mãos dadas com as crianças, reafirmo que é, sim, possível construir um mundo
mais respeitoso diante das diversidades, aprendendo com elas e com os saberes artísticos e afro-
referenciados, valorizando, brincando, dançando, gingando e performando ritmos e cores
dessas divindades.
A ancestralidade negra, presente neste trabalho, nos fez ressignificar a história de
sofrimento de africanas e africanos, como escravas e escravos, ampliando nossos horizontes.
Isto acalenta nossos sonhos, alegrias, vivências, realizações e lutas no mundo, ao nos blindar
com escudos de guerreiras e guerreiros, embelezando-nos com espelhos de princesas e
príncipes, brindando a nossa majestade com as coroas de rainhas e reis e fortalecendo a
construção de histórias curativas, pessoais e coletivas, de heroínas e heróis de seus próprios
destinos.
199
REFERÊNCIAS
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indivíduos melhores. [Entrevista concedida a] Garcia, C. (2018). Portal Aprendiz. Disponível
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SISTO, Celso. Mãe África: Mitos, lendas, fábulas e contos. São Paulo: Paulus, 2007.
VERGER, Pierre. Crianças: Olhar a África e ver o Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 2005.
MATERIAL AUDIOVISUAL COMPLEMENTAR
Título: “Lendas dos orixás: Oxum e sua dança para Ogum”.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=5ZNdQNYlXAQ&t=44s>.
Título: “Lendas dos orixás: Iansã e seu segredo”.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PRGo1W3E6JI>.
Título: “Lendas dos orixás: Yemanjá e suas ondas”.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=pL9AkXuD9fg>.
Título: “Lendas dos orixás: Ossain e o poder das plantas”.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=0wi-Vcw8vwI>.
Título: “Lenda dos orixás: Exu e o Chapéu”.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=AEavmA3Mc-Y>.
Título: “Orixá Oxum Animação: ‘Òpárá de Òsùn: quando tudo nasce’”.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=G9oueZFnNB8>.
Título: “História Completa dos Orixás”.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=N9bDnMS1vpg>.
Título: “Orixás da Bahia”.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=rRDXA0uInUc>.
206
APÊNDICE
PLANEJAMENTO DAS OFICINAS
1ª Oficina – 02/05/2019 – 50 minutos
1ª Oficina Atividade Descrição Objetivo(s) Recurso(s)
Utilizado(s)
1
Contação de Histórias a
partir do livro Crianças
– Olhar a África e ver o
Brasil, de Pierre Verger,
e diálogo sobre as fotos
e fatos narrados.
Organizar as crianças
em semicírculo para
narrar alguns
elementos sobre a
África.
Introduzir o continente
africano, algumas de
suas características e
elementos, a partir das
fotos e escritas do
livro; Estabelecer
relações com o Brasil,
pincelando a época da
escravidão. Dialogar
com as crianças sobre o
que fora narrado e as
fotografias.
Narração oral, livro
de fotografias e
outros recursos
lúdicos.
2
Alongamento. Em roda, despertar e
alongar o corpo das
crianças.
Estimular movimento
corporal a partir da
música, sensibilizar e
preparar o corpo das
crianças para a próxima
atividade.
Voz de comando da
proponente e música
cantada.
3
Jogo/Brincadeira
Corporal “África -
Brasil”.
São formados dois
grupos, o grupo
“África” e o grupo
“Brasil”, que ficam
um de frente para o
outro; África e Brasil
são muito vaidosos e
adoram mostrar suas
qualidades um para o
outro – no caso, a
facilitadora sugere
alguns comandos, e
entre um e outro,
utiliza o comando
“Estátua”, em que
todos param o que
estão fazendo. Assim:
África, em
cima/Brasil, em cima
(Estátua)
África,
embaixo/Brasil,
embaixo (Estátua)
Aquecer o corpo,
trabalhando o controle
e a expressão corporal.
Voz de comando da
proponente.
207
África, embaixo
encolhidinho/Brasil,
em cima se esticando
(Estátua)
África, em cima se
esticando/Brasil,
embaixo
encolhidinho
(Estátua)
África, em cima
pulando/Brasil,
alisando o chão
devagarinho (Estátua)
África, embaixo
alisando o chão
devagarinho/Brasil,
em cima pulando
(Estátua)
África encima
girando/Brasil
embaixo girando
(Estátua)
África, em cima
andando com a ponta
do pé/Brasil, embaixo
arrastando o pé no
chão
(Estátua)
África, embaixo
arrastando o pé no
chão/Brasil, em cima
andando com a ponta
do pé
(Estátua)
África e Brasil se dão
as mãos
(Estátua)
África e Brasil se
abraçam
(Estátua)
4
Jogo/Brincadeira
Corporal “Espelho”.
Em duplas ou trios,
as crianças brincam
de ser o espelho umas
das outras (podendo
continuar da
brincadeira anterior,
em que uma África se
junta com um Brasil e
vice-versa, ou duas
Áfricas, dois Brasis
etc.)
Trabalhar a expressão
corporal das crianças,
despertando possíveis
danças criadas em
conjunto.
Voz de comando da
proponente e música
de fundo.
208
Uma criança se
movimenta e a outra
repete, depois trocam
de lugar. Por fim,
atuam em simultâneo.
2ª Oficina – 09/05/2019 – 35 minutos
2ª Oficina Atividade Descrição Objetivo(s) Recurso(s) Utilizado(s)
1
Contação de
Histórias
Conhecendo as(os)
orixás e diálogo
sobre a história.
Organizar as crianças
em semicírculo para
contar uma história
sobre algumas (alguns)
orixás africanos.
Introduzir as(os)
orixás e seu
universo,
caracterizando-
os como deusas
e deuses, com
elementos
simbólicos e
integrantes da
cultura africana,
a partir de suas
mitologias e da
sua relação com
a natureza.
Dialogar com as
crianças sobre a
história e as
personagens.
Narração oral, livro de
pano e outros recursos
lúdicos.
2
Jogo/Brincadeira
Corporal “Animais
e emoções na
floresta”.
As crianças são
convidadas a se
imaginar em uma
grande floresta e a
caminhar pelo espaço,
respondendo
corporalmente aos
vários estímulos – no
caso, a facilitadora
pode sugerir alguns
comandos e, entre um e
outro, utilizar o
comando “Estátua”, em
que todos param o que
estão fazendo. Assim:
Pássaro
(Estátua)
Pássaro Tranquilo
(Estátua)
Onça Curiosa
(Estátua)
Cavalo Muito Rápido
(Estátua)
Aquecer o
corpo,
trabalhando o
controle e a
expressão
corporal.
Voz de comando da
proponente.
209
Peixe Carinhoso
(Estátua)
Leão Valente
(Estátua)
Borboleta Livre
(Estátua)
Formiguinha Bem
Pequenininha
(Estátua)
Gato
(Estátua)
3ª Oficina – 16/05/2019 – 1 hora e 10 minutos
3ª Oficina Atividade Descrição Objetivo(s) Recurso(s)
Utilizado(s)
1
Contação de
Histórias Os
Gêmeos Ibejis
numa Aventura
Dançante e
diálogo sobre a
história.
Em semicírculo,
contar uma história
sobre o orixá Ibeji e
iniciar a abordagem
deste orixá, que
estabelece conexão
com outras deusas e
deuses africanos.
Caracterizar as(os)
orixás e abordar
elementos simbólicos e
culturais africanos, a
partir de suas mitologias,
bem como a valorização
das crianças, suas
inteligências e formas de
expressão.
Dialogar com as crianças
sobre a história e as
personagens.
Narração oral,
bonecos,
instrumentos
musicais, músicas,
dentre outros
recursos lúdicos.
2
Despertar o corpo
ao som de tambor.
Em roda, despertar e
alongar o corpo das
crianças, solicitando
uma parte por vez,
desde o pé até a
cabeça e outras
partes, como olhos,
nariz, queixo, dentre
outras.
Sensibilizar e preparar o
corpo das crianças para a
próxima atividade.
Voz de comando da
proponente e
música cantada e
executada na hora.
3
Jogo/Brincadeira
Corporal
“Icus velhinhas e
os rápidos
Ibeijizinhos”.
Formação de dois
grupos: um que
representa Icus
velhinhas, e o outro
grupo que representa
os rápidos
Ibeijizinhos.
O grupo das Icus está
em ritmo lento e deve
pegar o grupo dos
Ibeijizinhos, que está
no ritmo que quiser.
Trabalhar noções de
ritmo corporal em grupo,
a partir de personagens
da história contada
inicialmente.
Voz de comando da
proponente.
210
Caso alguma Icu
pegue algum
Ibeijizinho, algum
outro Ibeijizinho pode
salvá-lo;
depois, os grupos
podem trocar de
lugar.
4
Desenho. As crianças escolhem
um local no chão para
desenhar livremente,
a partir do que foi
vivenciado na oficina
do dia.
Propiciar
desaceleramento
corporal, outra forma de
expressão artística e
relaxamento final.
Voz de comando da
proponente.
4ª Oficina – 23/05/2019 – 1 hora e 20 minutos
4ª Oficina Atividade Descrição Objetivo(s) Recurso(s)
Utilizado(s)
1
Contação de Histórias
Os Ibejis são
transformados numa
estatueta (PRANDI, 2001)
e Ajê Xalugá e o seu brilho
intenso (OLIVEIRA,
2009) e diálogos sobre a
história.
Organizar as crianças
em semicírculo e contar
as histórias sobre orixás
dos livros.
Caracterizar as(os)
orixás e abordar
elementos simbólicos
e culturais africanos,
a partir de suas
mitologias, bem
como a importância
da união.
Dialogar com as
crianças sobre a
história e as
personagens.
Narração oral e
outros recursos
lúdicos.
2
Despertar o corpo com a
brincadeira “E o orixá
pediu para eu mexer (...)”.
Em roda, despertar e
alongar o corpo das
crianças, solicitando
uma parte por vez,
desde o pé até a cabeça
e outras partes, como
olhos, nariz, queixo,
dentre outras.
Sensibilizar e
preparar o corpo das
crianças para a
próxima atividade.
Voz de comando da
proponente.
3
Jogo/Brincadeira Corporal
“Cego e Condutor”.
Em duplas ou trios, uma
criança ficará de olhos
fechados, e a outra de
olhos abertos. A de olho
aberto guiará a sua
dupla pelo espaço, com
as mãos ou com a voz.
Depois é efetuada a
troca de lugar.
Possibilitar que as
crianças trabalhem a
perspectiva de
companheirismo e
ajuda ao próximo;
despertar o corpo
para outros sentidos e
percepções dentro do
espaço.
Voz de comando da
proponente, das
crianças e música de
fundo.
4
Jogo/Brincadeira Corporal
“Boneco de Modelar”.
Em duplas ou trios, uma
criança será modelada
pela outra, ganhando
vida. A criança que
modela toca na outra, e
assim esta vai se
mexendo. Depois é
Dar continuidade à
exploração de outros
sentidos corporais, a
partir do comando e
da ajuda do outro. As
crianças poderão
criar inúmeras
Voz de comando da
proponente, das
crianças e música de
fundo.
211
efetuada a troca de
lugar.
figuras corporais em
movimento.
5
Roda para a escolha dos
nomes na pesquisa.
Em roda, as crianças,
uma a uma, escolhem os
seus nomes fictícios
para a pesquisa.
O tambor djembe passa
de uma por uma. Ao
tocá-lo, elas dizem o
nome escolhido em voz
alta.
Possibilitar
desaceleramento
corporal, criação e
afirmação das
crianças a partir de
seus nomes
escolhidos.
Voz de comando da
proponente e uso de
tambor djembe.
5ª Oficina – 04/06/2019 – 1 hora e 20 minutos
5ª Oficina Atividade Descrição Objetivo(s) Recurso(s)
Utilizado(s)
1
Contação de Histórias
Os Ibejis encontram água e
salvam a cidade (PRANDI,
2001) e diálogo sobre a
história.
+
Jogo/Brincadeira Corporal
“A ciranda das águas” .
Organizar as crianças
em semicírculo e contar
as histórias sobre as(os)
orixás.
+
Em roda, despertar e
alongar o corpo das
crianças a partir de uma
ciranda com foco no
elemento água.
Caracterizar as(os)
orixás e abordar
elementos simbólicos
e culturais africanos,
a partir de suas
mitologias, bem
como a importância e
valorização da água.
Dialogar com as
crianças sobre a
história e as
personagens.
+
Desenvolver a
dinâmica dentro do
contexto da história.
As crianças precisam
passar por um
desafio – no caso, a
ciranda – para
conseguir água.
Sensibilizar e
preparar o corpo das
crianças para a
próxima atividade.
Narração oral e
outros recursos
lúdicos.
+
Voz e música
cantada e
executada na hora,
bem como
movimentações
corporais indicadas
pela música e pela
proponente.
2
Jogo/Brincadeira Corporal
“Água 1-2-3”.
Obs.: Na dinâmica original,
utiliza-se a palavra
“Batatinha 1-2-3”, mas ela
pode ser substituída por
outra.
Um jogador fica em um
extremo da sala, virado
de costas e segurando
um pano azul que
representa a água (na
dinâmica original é uma
camiseta de laycra, que
pode ser esticada e
vestida).
Aquecer o corpo,
trabalhando o
controle e a
expressão corporal.
Voz de comando
da proponente e
das crianças. Um
pano azul.
212
No outro lado da sala,
ficará um grupo de
jogadores.
O objetivo de cada
jogador é chegar ao
jogador virado de costas
e pegar o pano.
Este mesmo jogador terá
uma voz de comando,
“Água 1-2-3”, e ao se
virar, ninguém poderá
se mexer. Caso alguém
se mexa, deverá voltar
para o local de partida,
retornando ao jogo na
contagem seguinte.
Vence quem chegar e
pegar o pano do jogador
que está com a voz de
comando, trocando de
lugar com o mesmo.
3
Jogo/Brincadeira Corporal
“Caminhando com diversas
sensações”.
As crianças caminham
no espaço e respondem
corporalmente aos
vários estímulos – no
caso, a facilitadora pode
sugerir alguns
comandos, e entre um e
outro, utilizar o
comando “Estátua”, em
que todos param o que
estão fazendo. Assim:
Mar/Calmo/Agitado
(Estátua)
Chuva/Fraca/Forte
(Estátua)
Terra/Lama/Areia
(Estátua)
Sol/Muito Quente/Fogo
(Estátua)
Vento/Forte/Suave
(Estátua)
Mãe Natureza:
Alegre
Triste
Carinhosa
Tranquila
Com sono
Possibilitar que as
crianças trabalhem, a
partir de suas
expressões corporais,
a conexão com
elementos da
natureza.
Voz de comando
da proponente e
das crianças.
4
Desenho. As crianças escolhem
um momento das
oficinas para retratar em
desenho.
Possibilitar
desaceleramento
corporal, outra forma
de expressão artística
e relaxamento final.
Voz de comando
da proponente e
música de fundo.
213
6ª Oficina – 06/062019 – 1 hora e 15 minutos
6ª Oficina Atividade Descrição Objetivo(s) Recurso(s)
Utilizado(s)
1
Contação de Histórias
Iemanjá e o poder da
criação do mundo
(OLIVEIRA, 2009).
Em semicírculo, contar
uma história sobre a
orixá Iemanjá,
abordando o
enfrentamento da
solidão, a valorização
do ser menina/mulher e,
neste caso específico, do
seu habitat mar.
Caracterizar esta
orixá, narrando uma
de suas histórias;
abordar elementos
simbólicos e culturais
africanos, a partir de
sua mitologia.
Dialogar com as
crianças sobre a
história e as
personagens.
Narração oral e
outros recursos
lúdicos.
2
Alongamento/Despertar o
corpo.
Em roda, despertar e
alongar o corpo das
crianças.
Sensibilizar e
preparar o corpo das
crianças para a
próxima atividade.
Voz de comando da
proponente e música
de fundo.
3
Jogo/Brincadeira Corporal
“Espelho”.
Em duplas ou trios, as
crianças brincam de ser
o espelho umas das
outras; uma se
movimenta e a outra
repete; depois, trocam
de lugar e atuam em
simultâneo.
Trabalhar a
expressão corporal
das crianças,
despertando
possíveis danças
criadas em conjunto.
Voz de comando da
proponente e música
de fundo.
4
Jogo/Brincadeira Corporal
“Corpo colado, tente se
movimentar”
Nas mesmas duplas ou
trios da dinâmica
anterior, as crianças
devem colar o corpo
(parte ou partes) uma
nas outras, como
queiram, e começar a se
movimentar pelo
espaço, não podendo se
desgrudar.
Aquecer o corpo,
trabalhando a
concentração e
expressão corporal.
Voz de comando da
proponente e música
de fundo.
5
Jogo/Brincadeira Corporal
“Não deixe o balão cair”
Cada criança recebe um
balão, dança,
movimenta-se com ele
pelo espaço, tocando-o
em partes de seu corpo,
sem deixar que ele caia
no chão.
Caso caia, a criança fica
parada em estátua por
um breve tempo e
depois retorna à
dinâmica.
Se houver oportunidade,
formar duplas.
Possibilitar
aquecimento corporal
e estimular que as
crianças se
movimentem e criem
livremente possíveis
danças a partir do
contato com o balão.
Voz de comando da
proponente e música
de fundo.
214
7ª Oficina – 13/06/2019 – 1 hora
7ª Oficina Atividade Descrição Objetivo(s) Recurso(s)
Utilizado(s)
1
Contação de Histórias
Oxum e seu mistério
(OLIVEIRA, 2009) e
Oiá e o búfalo interior
(OLIVEIRA, 2009), e
diálogo sobre as histórias.
Em círculo, contar
histórias de orixás
femininas, enaltecendo
suas características e o
empoderamento
feminino, com a
participação das
crianças, que
representam
personagens.
Caracterizar as orixás
e abordar elementos
simbólicos e culturais
africanos, a partir de
suas mitologias.
Dialogar com as
crianças sobre a
história e as
personagens.
Narração oral e
outros recursos
lúdicos.
2
Jogo/Brincadeira corporal
“Dançando com as(os)
Orixás”.
O proponente, em um
primeiro momento,
mostra as possibilidades
de danças de
algumas(alguns) orixás
(Iemanjá, Ogum, Oxum,
Oxóssi, Oiá-Iansã,
Xangô), apresentando
alguns repertórios de
movimentos específicos
destas danças.
Posteriormente, as
crianças são estimuladas
a criar suas próprias
danças, imaginando-se
como as(os) orixás.
Proporcionar às
crianças contato com
as danças das(os)
orixás, permitindo-
lhes criar livremente
suas próprias danças,
a partir da
simbologia e de
códigos corporais
próprios.
Voz de comando da
proponente e música
de fundo.
3
Desenho
“Desenhando as(os)
Orixás”.
As crianças desenham
a(o) orixá ou orixás que
quiserem.
Possibilitar
desaceleramento
corporal, outra forma
de expressão artística
e relaxamento final.
Voz de comando da
proponente e música
de fundo.
8ª Oficina – 19/06/2019 – 1 hora e 10 minutos
8ª Oficina Atividade Descrição Objetivo(s) Recurso(s) Utilizado(s)
1
Roda de
conversa inicial
sobre a
Capoeira.
Em roda, dialogar com as
crianças sobre a
manifestação cultural
afro-brasileira capoeira e
mostrar alguns códigos
corporais/passos através
do livro Diário de Pilar
na África (SILVA,
2015).
Enlaçar alguns
conhecimentos
histórico-culturais a
respeito desta
manifestação, a partir
das opiniões e
expressões das
crianças.
Voz de comando da
proponente, música
cantada na hora e outros
recursos lúdicos.
2
Vivência
Corporal
“Brincando de
Capoeira”.
São desenvolvidos 4
momentos para esta
vivência:
1) Despertar o corpo a
partir de música cantada
Estimular a
experimentação
corporal das crianças,
a partir de repertórios
anteriormente
apresentados e de
Voz de comando e
música de fundo.
215
com acompanhamento de
instrumento caxixi, em
que as crianças dançam
livremente;
2) Formar roda, em que
uma dupla de crianças
fica no centro, e depois
são trocadas por outras.
As crianças dançam a
partir dos códigos
apresentados
anteriormente, podendo
criar seus próprios
repertórios, com
acompanhamento de
música;
3) As crianças dançam
em duplas, podendo
locomover-se pelo
espaço com a ideia de
serem guerreiros(as)
capoeiristas, com
acompanhamento de
música;
4) Retorno à roda, para
revisitação corporal das
duplas capoeiristas, com
acompanhamento de
música.
outros, criados pelas
mesmas, aliando o
brincar com o dançar.
4
Afrodiálogos
finais.
Formar roda para
desenvolver diálogos
com as crianças sobre a
pesquisa.
A partir de algumas
perguntas-chave,
dialogar com as
crianças para que elas
expressem suas
narrativas a partir dos
eixos e temáticas
vivenciados.
Voz de comando da
proponente e das
crianças.