Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua

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    Bela e fascinante evocao de um tempo e um lugar alm do nosso

    alcance. A terceira e ltima parte de A saga Otori nos transporta mais uma vez ao

    Japo medieval tal como Hearn o imaginou, uma terra de cdigos e rituais, de

    beleza rude e aparncias enganosas.

    Otori Takeo e Shirakawa Kaede esto casados e mais decididos do que

    nunca a fortalecer seus domnios. No entanto, seu casamento apressado

    enfureceu Arai Daiichi, o comandante que controla a maior parte dos Trs Pases,

    e insultou o nobre Senhor Fujiwara, que se considerava noivo de Kaede. O brilho

    da lua, terceiro volume de A saga Otori, acompanha o empenho de Kaede e

    Takeo em consolidar seu poder e cumprir a profecia da mulher sagrada: Suas

    terras se estendero de um mar a outro. A paz, no entanto, vir ao preo desangue derramado. Cinco batalhas lhe custar a paz, quatro para vencer e uma

    para perder...

    O brilho da lua, continuao fascinante de A relva por travesseiro e O

    piso-rouxinol, nos faz conhecer mais profundamente as complexas relaes de

    lealdade que vinculam os personagens do romance desde o nascimento. Cheio de

    aventuras e de tramas surpreendentes, tambm nos proporciona uma rara viso

    das influncias externas que se introduzem naquele reino isolado.

    "Eu no contara a ningum sobre as palavras da profetisa, mas agora

    tinha vontade de cont-las a Kaede. Sussurrei-lhe algumas delas: disse-lhe que

    em mim misturavam-se trs sangues; que eu nascera entre os Ocultos mas minha

    vida j no me pertencia; que eu estava destinado a governar em paz de um mar

    a outro, quando a Terra realizasse o que o Cu desejava. Dissera essas palavras

    para mim mesmo repetidamente, e, como j disse, s vezes acreditava nelas e s

    vezes no. Disse a Kaede que cinco batalhas nos trariam paz, quatro para vencer

    e uma para perder, mas no lhe falei das previses da mulher sobre meu filho, ou

    seja, que eu morreria pelas mos dele."

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    Lian Hearn

    A SAGA OTORITerceira parte O BRILHO DA LUA

    Martins Fontes

    So Paulo 2004

    Esta obra foi publicada originalmente em ingls com o ttulo

    OTORI TRILOGY: ACROSS THE NIGHTINGALE-FLOOR

    Por Hodder Headline Australia Pty Limited, Austrlia.

    Lian Hearn, 2002.

    Citao retirada do Manyoshu. vol. 9, n 1790, de "The Country of lhe

    Eight Islands" de Hiroaki Sato e Burton Watson 1986 Columbia University

    Press.

    Reimpresso com a permisso do editor.

    1edio Outubro de 2002

    Traduo WALDA BARCELLOS

    Reviso da traduo e texto final Monica StahelReviso grfica Luzia Aparecida dos Santos e Renato da Rocha Carlos

    Produo grfica Geraldo Alves

    Paginao/Fotolitos Studio 3 Desenvovimento Editorial

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    Para B.

    Tambm outros, em povoados remotos,

    Sem dvida vem esta lua Que nunca indaga que sentinela pede a noite...

    No vento invisvel da montanha,

    Um grito alto estremece no corao,

    E em algum lugar um galho deixa cair uma folha

    The Fulling Block [A pedra de pisoar] (Kinuta), de Zeami

    Japanese No Drama: Penguin Books

    Trad. para o ingls: Royall Tyler

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    Prefcio

    Estes acontecimentos ocorreram nos meses seguintes ao casamento deOtori Takeo com Shirakawa Kaede, no templo de Terayama. Esse casamento

    reforou a deciso de Kaede de herdar o domnio de Maruyama e propiciou a

    Takeo os recursos necessrios para vingar seu pai adotivo, Shigeru, e tomar seu

    lugar como chefe do cl Otori. No entanto, essa unio tambm enfureceu o senhor

    Arai Daiichi, que ento controlava a maior parte dos Trs Pases, e insultou o

    nobre senhor Fujiwara, que considerava Kaede sua noiva.

    No inverno anterior, Takeo, sobre quem pesava a sentena de morte da

    Tribo, fugira para Terayama. L teve acesso s informaes detalhadas que

    Shigeru registrara sobre a Tribo e recebeu Jato, a espada de Otori. No caminho,

    sua vida foi salva pelo pria Jo-An, membro da seita proibida, os Ocultos, que o

    levou a um santurio na montanha para ouvir as palavras profticas de uma

    mulher sagrada.

    Trs sangues se misturam em voc. Nasceu entre os Ocultos, porm sua

    vida foi trazida a cu aberto e j no lhe pertence. A Terra realizar o que o Cu

    deseja.Suas terras se estendero de um mar a outro ela disse, finalmente.

    A paz, no entanto, vir ao preo de sangue derramado. Cinco batalhas lhe custar

    a paz, quatro para vencer e uma para perder...

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    1.

    A pena estava na palma da minha mo. Segurei-a com cuidado, ciente desua idade e de sua fragilidade. Sua brancura ainda era translcida, a cor vermelha

    de suas pontas ainda brilhava.

    de um pssaro sagrado, o houou disse-me Matsuda Shingen,

    abade do templo de Terayama. Ele apareceu para seu pai adotivo, Shigeru,

    quando ele tinha apenas quinze anos, portanto menos do que voc tem agora. Ele

    nunca lhe falou sobre isso, Takeo?

    Balancei a cabea. Matsuda e eu estvamos em seu quarto, numa das

    extremidades do claustro que rodeava o ptio principal do templo. De fora,

    abafando os sons habituais do templo, o dos cantos e o dos sinos, chegava o

    rudo agitado dos preparativos, de muita gente indo e vindo. Eu ouvia Kaede,

    minha esposa, do outro lado do porto, falando com Amano Tenzo sobre os

    problemas da alimentao de nosso exrcito durante a jornada. Estvamos nos

    preparando para a viagem a Maruyama, o grande domnio a oeste, de que Kaede

    era herdeira por direito. amos reivindic-lo em nome dela e lutar por ele, se

    necessrio. Desde o final do inverno, guerreiros chegavam a Terayama para se

    juntar a mim. Agora eu j tinha quase mil homens, alojados no templo e nos

    povoados dos arredores, sem contar os lavradores do distrito, que tambm me

    apoiavam intensamente.

    Amano era de Shirakawa, lar ancestral de minha esposa, e o mais

    confivel de seus serviais, grande cavaleiro e bom com todos os animais. Nos

    dias que se seguiram a nosso casamento, Kaede e sua acompanhante, Manami,

    tinham se mostrado muito hbeis em lidar com a preparao e distribuio deequipamentos. Discutiam tudo com Amano, que comunicava suas decises aos

    homens. Aquela manh ele estava enumerando os carros de boi e cavalos de

    carga que tnhamos nossa disposio. Tentei no ouvir, concentrar-me no que

    Matsuda me dizia, mas estava inquieto e ansioso para partir.

    Tenha pacincia disse Matsuda, com brandura. -S mais um minuto.

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    O que voc sabe sobre o houou?

    Relutante, voltei a prestar ateno na pena que tinha na mo e tentei me

    lembrar do que Ichiro, meu antigo professor, me ensinara quando eu morava na

    casa do Senhor Shigeru, em Hagi.

    o pssaro sagrado lendrio que aparece em tempos de justia e paz.

    E se escreve da mesma maneira que o nome de meu cl, Otori.

    Certo disse Matsuda, sorrindo. No aparece com freqncia, pois

    justia e paz so coisas raras hoje em dia. Mas Shigeru o viu, e acredito que essa

    viso o tenha inspirado a buscar essas virtudes. Eu lhe disse ento que as penas

    do pssaro eram tingidas de sangue, e, de fato, ns dois, voc e eu, ainda somos

    guiados pelo sangue, pela morte de Shigeru.

    Examinei a pena mais detidamente. Ela estava pousada na palma daminha mo direita, sobre a cicatriz de uma queimadura que eu sofrera havia muito

    tempo, em Mino, minha terra natal, no dia em que Shigeru salvara minha vida. Eu

    tambm trazia na mo a marca dos Kikuta, famlia da Tribo a que eu pertencia, da

    qual eu fugira no inverno anterior. Minha herana, meu passado e meu futuro

    pareciam estar ali, na palma da minha mo.

    Por que est me mostrando a pena agora?

    Logo voc vai partir. Esteve conosco o inverno todo, estudando,

    treinando e se preparando para cumprir as ltimas instrues que Shigeru lhe deu.

    Queria que voc compartilhasse a viso que ele teve e se lembrasse de que o

    objetivo de Shigeru era a justia, tal como deve ser o seu.

    Nunca me esquecerei disso prometi. Inclinei-me reverente para a

    pena, segurando-a de leve com as duas mos, e a devolvi ao abade. Ele a pegou,

    tambm se inclinou e voltou a coloc-la na caixinha laqueada da qual a tirara.

    Fiquei em silncio, relembrando tudo o que Shigeru fizera por mim e o quanto

    ainda me restava fazer por ele.

    Ichiro me falou sobre o houou quando estava me ensinando a escrever

    meu nome eu disse, finalmente. Quando o vi em Hagi, o ano passado, ele

    me aconselhou a esper-lo aqui, mas no posso esperar mais.

    Preocupava-me com meu velho professor desde que a neve comeara a

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    derreter, mas sabia que os senhores Otori, tios de Shigeru, tentavam tomar posse

    de minha casa e de minhas terras em Hagi e que Ichiro continuava resistindo a

    eles obstinadamente.

    O que eu no sabia era que Ichiro j estava morto. Recebi a notcia no dia

    seguinte. Estava conversando com Amano no ptio quando ouvi sons ao longe,

    vindos de baixo: gritos furiosos, ps correndo, pisadas de cascos. O rudo de

    cavalos subindo a encosta a galope era inesperado e assustador. Quase ningum

    subia a cavalo at o templo de Terayama. As pessoas em geral subiam a

    montanha a p, e os idosos e invlidos vinham carregados.

    Alguns segundos depois Amano tambm ouviu. Eu j estava correndo at

    os portes do templo, chamando pelos guardas.

    Rapidamente eles fecharam e trancaram os portes. Matsuda veiocorrendo pelo ptio. No estava de armadura, mas trazia a espada na cinta. Antes

    que pudssemos falar um com o outro, ouviu-se um desafio na casa da guarda:

    Quem ousa chegar a cavalo aos portes do templo? Desa e aproxime-

    se com respeito deste lugar de paz.

    Era a voz de Kubo Makoto. Jovem monge guerreiro de Terayama, nos

    ltimos meses ele se tornara meu melhor amigo. Corri at a paliada e subi pela

    escada at a guarita. Makoto gesticulava pela vigia. Pelas frestas entre as tbuas

    eu via quatro cavaleiros. Tinham subido a montanha a galope e, agora, puxavam

    as rdeas para deter os cavalos. Estavam de armadura e o emblema dos Otori era

    nitidamente visvel em seus elmos. Por um momento, pensei que fossem

    mensageiros de Ichiro. Ento meus olhos deram com o cesto amarrado a uma das

    selas. Meu corao virou pedra. Foi fcil adivinhar o que havia naquele cesto.

    Os cavalos se empinavam e corcoveavam, no s excitados pelo galope,

    mas tambm alarmados. Dois deles j estavam com a garupa sangrando. Uma

    multido de homens enfurecidos surgiu do caminho estreito, todos armados de

    estacas e foices. Reconheci alguns deles: eram lavradores do povoado vizinho. O

    ltimo guerreiro da fila os espantou, dando golpes de espada no ar. Os homens

    recuaram um pouco mas no se dispersaram, mantendo sua postura ameaadora,

    formando um semicrculo cerrado.

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    O chefe dos cavaleiros lanou-lhes um olhar de desprezo e depois gritou

    alto, na direo do porto:

    Sou Fuwa Dosan, do cl Otori, de Hagi. Trago uma mensagem dos

    Senhores Shoichi e Masahiro para o impostor que chama a si mesmo de Otori

    Takeo.

    Makoto respondeu:

    Se forem mensageiros de paz, desam de seus cavalos e larguem as

    espadas. Os portes sero abertos.

    Eu j sabia qual seria a mensagem deles. Sentia a cegueira da fria

    invadir meus olhos.

    No h necessidade disso Fuwa replicou, desdenhoso. Nosso

    recado curto. Digam ao assim chamado Takeo que os Otori no reconhecemsuas reivindicaes e desse modo lidaro com ele e com quem quer que o siga.

    O homem a seu lado largou as rdeas sobre o pescoo de seu cavalo e

    abriu o cesto, tirando dele o que eu temia ver. Segurando a cabea de Ichiro pelos

    cabelos, ele balanou o brao e a jogou por cima da cerca, para dentro dos limites

    do templo.

    A cabea caiu com um baque surdo sobre o gramado do jardim. Tirei Jato,

    minha espada, da cintura.

    Abram os portes! gritei. Vou sair atrs deles. Desci a escada

    voando, Makoto desceu atrs de mim. Quando os portes se abriram, os

    guerreiros Otori, brandindo as espadas, viraram seus cavalos e os fizeram

    avanar contra a muralha de homens que os rodeava. Decerto imaginaram que os

    lavradores no fossem ousar atac-los. At eu me surpreendi com o que

    aconteceu em seguida. Em vez de se afastarem para deix-los passar, os homens

    que estavam a p se arremessaram sobre os cavalos. Dois lavradores morreram

    imediatamente, cortados ao meio pelas espadas dos guerreiros, mas ento o

    primeiro cavalo foi derrubado e seu cavaleiro caiu entre os homens sua volta. Os

    outros tiveram a mesma sorte.

    No tiveram oportunidade de usar sua habilidade de espadachins, pois

    foram arrancados de suas montarias e espancados at morrer, como ces.

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    Makoto e eu tentamos coagir os lavradores e, finalmente, conseguimos

    tir-los de cima dos corpos. S conseguimos acalm-los depois que decapitamos

    os guerreiros e expusemos suas cabeas nos portes do templo. O exrcito

    espontneo ainda lanou insultos contra elas por algum tempo e depois se retirou.

    Os homens desciam a montanha prometendo aos gritos que, se qualquer estranho

    ousasse se aproximar do templo para insultar o Senhor Otori Takeo, o Anjo de

    Yamagata, receberia o mesmo tratamento.

    Makoto tremia de dio, e outras emoes sobre as quais queria falar

    comigo, mas naquele instante eu no tinha tempo. Voltei para dentro dos muros.

    Kaede trouxera panos brancos e gua numa tina de madeira. Ajoelhada

    no cho, embaixo das cerejeiras, ela lavava tranqilamente a cabea de Ichiro,

    que estava com a pele azul-acinzentada e os olhos semicerrados. O pescoo notinha sido cortado de uma s vez e trazia marcas de muitos golpes. Kaede lidava

    com ela carinhosamente, como se fosse um objeto precioso e bonito.

    Ajoelhei-me a seu lado, estendi a mo e toquei o cabelo do morto. Era

    listrado de cinza, mas o rosto, na morte, parecia mais jovem do que a ltima vez

    que eu vira Ichiro, na casa de Hagi, melanclico e assediado por fantasmas,

    embora ainda desejando me mostrar afeio e me orientar.

    Quem ? Kaede perguntou, em voz baixa.

    Ichiro. Foi meu professor em Hagi. E de Shigeru tambm.

    Estava com o corao muito apertado para falar mais. Enxuguei as

    lgrimas. A lembrana de nosso ltimo encontro me veio mente. Desejaria ter

    conversado mais com ele, ter falado de minha gratido e de meu respeito.

    Perguntava-me como ele teria morrido, se fora humilhado e se agonizara.

    Desejava que seus olhos se abrissem, que seus lbios exangues falassem. Como

    so irrecuperveis os mortos, como se separam completamente de ns! At

    quando seus espritos retornam, no falam de sua prpria morte.

    Nasci e fui criado entre os Ocultos, que acreditam que s aqueles que

    seguem os mandamentos do Deus Secreto voltaro a se encontrar alm da vida.

    Todos os outros sero consumidos no fogo do inferno. Eu no sabia se Shigeru,

    meu pai adotivo, fora crente, mas ele conhecia todos os ensinamentos dos

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    Ocultos e disse suas preces na hora da morte, junto com o nome do Iluminado.

    Ichiro, seu conselheiro e mordomo, nunca dera sinal disso. Na verdade, pelo

    contrrio, desde o incio ele suspeitara que Shigeru me salvara da perseguio de

    Iida Sadamu aos Ocultos e me vigiava como um cormoro para evitar que eu

    fosse levado embora.

    Mas eu j no seguia os ensinamentos de minha infncia e no acreditava

    que um homem com a integridade e a lealdade de Ichiro estivesse no inferno.

    Muito mais fortes eram minha indignao contra a injustia daquele assassnio e a

    conscincia de que agora havia mais uma morte a ser vingada.

    Eles pagaram com suas vidas disse Kaede. Por que matar um

    velho e se dar ao trabalho de trazer a cabea dele at voc?

    Ela lavou os ltimos vestgios de sangue e envolveu a cabea em umpano branco limpo.

    Imagino que os Senhores Otori queiram me eliminar repliquei.

    Preferem no atacar Terayama. Se o fizerem, daro com os soldados de Arai.

    Esperam me atrair para fora da fronteira e me encontrar l.

    Eu ansiava por esse encontro para puni-los de uma vez por todas. As

    mortes dos guerreiros tinham atenuado minha fria temporariamente, mas eu a

    sentia ferver em meu corao. No entanto, era preciso ter pacincia. Minha

    estratgia era antes me retirar para Maruyama e l constituir minhas foras. No

    desistiria disso.

    Encostei a testa na grama, despedindo-me de meu professor. Manami

    veio do quarto de hspedes e se ajoelhou um pouco atrs de ns.

    Trouxe uma caixa, senhora ela sussurrou.

    Era uma espcie de pequeno estojo tecido de ramos de salgueiro e tiras

    de couro tingido de vermelho. Kaede o abriu e de dentro dele desprendeu-se um

    cheiro de alo. Ela colocou a pequena trouxa branca dentro da caixa e em torno

    dela ajeitou as alos. Ento pousou a caixa no cho, sua frente, e ns trs mais

    uma vez nos inclinamos diante dela.

    Num arbusto, um passarinho entoou seu canto de primavera e um cuco, o

    primeiro que eu ouvia aquele ano, respondeu do meio da floresta.

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    No dia seguinte procedemos aos rituais fnebres e enterramos a cabea

    perto do tmulo de Shigeru. Ordenei que uma outra lpide fosse erigida para

    Ichiro. Eu ansiava por saber o que acontecera com a velha Chiyo e com os outros

    criados da casa de Hagi. Atormentava-me a idia de que a casa talvez j no

    existisse, de que tivesse sido incendiada: a casa de ch, a sala do andar superior

    onde tantas vezes nos sentvamos olhando para o jardim, o piso-rouxinol, tudo

    destrudo, suas canes silenciadas para sempre. Minha vontade era ir correndo

    at Hagi para reivindicar minha herana, antes que me fosse tomada. No entanto,

    eu sabia que era exatamente isso que os Otori esperavam que fizesse.

    Cinco lavradores tinham morrido na hora, outros dois morreram um pouco

    depois, em conseqncia de seus ferimentos. Dois cavalos foram gravemente

    feridos e Amano os sacrificou, mas os outros dois estavam ilesos.De um deles eu gostava especialmente: era um belo garanho preto que

    me lembrava o cavalo de Shigeru, Kyu, e talvez at fosse seu meio-irmo. Por

    insistncia de Makoto, enterramos os guerreiros Otori com todos os rituais, orando

    para que seus espritos, ofendidos por suas mortes ignbeis, no passassem a

    nos assombrar.

    Ao entardecer, o abade foi at o quarto de hspedes, e ficamos

    conversando at tarde da noite. Makoto e Miyoshi Kahei, meu aliado e amigo de

    Hagi, tambm estavam conosco. Gemba, irmo mais novo de Kahei, fora enviado

    a Maruyama para avisar o chefe dos criados, Sugita Haruki, de nossa partida

    iminente. No inverno anterior, Sugita garantira a Kaede que apoiaria sua

    reivindicao. Kaede no ficou conosco. Por vrias razes, ela e Makoto no se

    sentiam vontade um na presena do outro e ela o evitava ao mximo. No

    entanto, eu lhe sugerira antes que se sentasse atrs da porta para ouvir o que

    dizamos. Eu desejava ouvir sua opinio depois. Desde que nos tnhamos casado,

    eu conversava com ela como nunca antes conversara com ningum. Por tanto

    tempo eu me calara que agora eu no me cansava de compartilhar meus

    pensamentos com ela. Confiava em seu julgamento e em sua sabedoria.

    Quer dizer que agora vocs esto em guerra disse o abade , e

    seu exrcito j enfrentou um primeiro conflito.

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    No bem um exrcito disse Makoto. Um bando de lavradores!

    Como ir puni-los?

    O que est querendo dizer? repliquei.

    Lavradores no deveriam matar guerreiros ele disse. Qualquer

    um no seu lugar os puniria duramente. Seriam crucificados, mergulhados em leo

    fervente, esfolados vivos.

    Sero punidos se os Otori os pegarem resmungou Kahei.

    Estavam lutando para me defender eu disse. No fundo, eu achava

    que os guerreiros tinham merecido seu fim vergonhoso, embora lamentasse no

    os ter matado pessoalmente. No irei puni-los. Minha maior preocupao

    como proteg-los.

    Voc soltou um bicho-papo. Espero que consiga control-lo.O abade sorriu por trs de seu copo de vinho. Alm de seus comentrios

    anteriores sobre justia, durante todo o inverno ele me dera aulas de estratgia e,

    por ter ouvido minhas teorias sobre a tomada de Yamagata e outras campanhas,

    sabia de meus sentimentos para com meus lavradores.

    Os Otori querem me eliminar eu disse, conforme dissera antes a

    Kaede.

    Sim, mas voc deve resistir tentao ele replicou. Naturalmente,

    seu primeiro impulso de vingana, mas, mesmo que vocs derrotassem seu

    exrcito num confronto, eles simplesmente se retirariam para Hagi. Um cerco

    longo seria um desastre. A cidade praticamente invulnervel e, cedo ou tarde,

    vocs teriam as foras de Arai na sua retaguarda.

    Arai Daiichi era o comandante de Kumamoto que tirara vantagem da

    derrota dos Tohan para assumir o controle dos Trs Pases. Eu o enfurecera ao

    desaparecer com a Tribo no ano anterior. Agora, depois de meu casamento com

    Kaede, certamente estava mais furioso ainda. Ele tinha um exrcito imenso, e eu

    no queria enfrent-lo antes de fortalecer o meu.

    Ento devemos primeiro ir at Maruyama, conforme o planejado. Mas,

    se eu deixar o templo desprotegido, vocs e os habitantes do distrito sero

    atacados pelos Otori.

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    Podemos trazer muita gente para dentro de nossos muros disse o

    abade. Acho que temos armas e suprimentos suficientes para resistir aos Otori

    se eles de fato atacarem. Pessoalmente, no acredito que o faam. Arai e seus

    aliados no desistiro de Yamagata sem uma longa luta, e muitos dos Otori

    relutariam em destruir este lugar, considerado sagrado pelo cl. Seja como for,

    estaro mais preocupados em perseguir voc ele fez uma pausa e continuou:

    Voc no pode entrar numa guerra sem estar preparado para o sacrifcio.

    Muitos homens morrero nas batalhas e, se voc perder, muitos deles, inclusive

    voc, podero ter uma morte sofrida. Os Otori no reconhecem sua adoo, no

    sabem quem so seus ancestrais. Para eles, voc um impostor, no de sua

    classe. Voc no pode deixar de agir porque pessoas iro morrer. At seus

    lavradores sabem disso. Sete deles morreram hoje, mas os que sobreviveram noesto tristes. Esto comemorando a vitria sobre aqueles que o insultaram.

    Eu sei disse eu, olhando para Makoto. Ele apertava os lbios, e,

    apesar de seu rosto inexpressivo, eu sentia sua desaprovao. Eu tinha

    conscincia de minha fraqueza como comandante. Temia que Makoto e Kahei,

    criados dentro da tradio guerreira, passassem a me desdenhar.

    Ns nos juntamos a voc porque escolhemos, Takeo prosseguiu o

    abade , por causa de nossa lealdade a Shigeru e porque acreditamos que sua

    causa justa.

    Inclinei a cabea, aceitando a repreenso e fazendo votos de que nunca

    mais ele tivesse que me falar naquele tom.

    Partiremos para Maruyama depois de amanh.

    Makoto ir com voc disse o abade. Como voc sabe, ele adotou

    sua causa.

    Os lbios de Makoto se encurvaram levemente quando ele meneou a

    cabea, concordando.

    Mais tarde, aquela noite, por volta da segunda metade da Hora do Rato,

    quando estava prestes a me deitar ao lado de Kaede, ouvi vozes do lado de fora.

    Um pouco depois Manami nos chamou baixinho para dizer que um monge viera

    com um recado da casa da guarda.

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  • 7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua

    17/300

    Pegamos um prisioneiro ele me disse, quando fui lhe falar. Foi

    pego escondido entre os arbustos perto do porto. Os guardas o perseguiram e

    quase o mataram ali mesmo, mas ele gritou seu nome e disse que era um de seus

    homens.

    Vou falar com ele eu disse, pegando Jato. Suspeitei que o tal

    prisioneiro fosse o pria Jo-An, que me vira em Yamagata quando eu libertara

    pela morte seu irmo e outros membros dos Ocultos. Ele me dera ento o apelido

    de Anjo de Yamagata e, depois, salvara-me a vida em minha caminhada

    desesperada at Terayama, no inverno. Eu lhe havia dito que mandaria cham-lo

    na primavera e que deveria esperar at receber meu recado. No entanto, Jo-An s

    vezes tinha atitudes imprevisveis, geralmente em resposta ao que dizia ser a voz

    do Deus Secreto.Era uma noite suave e quente, no ar sentia-se a umidade do vero. Uma

    coruja piava no meio dos pinheiros. Jo-An estava deitado no cho, perto do

    porto. Fora amarrado rudemente, com as pernas dobradas sob o corpo e as

    mos atadas nas costas. Tinha o rosto sujo de poeira e sangue e os cabelos

    emaranhados. Movia os lbios levemente, fazendo uma prece silenciosa. Dois

    monges o vigiavam a uma distncia prudente, com expresso de desdm.

    Chamei-o pelo nome e seus olhos se abriram. Vi neles um brilho de alvio.

    Ao tentar se ajoelhar, caiu para a frente, incapaz de se segurar com as mos, e

    bateu o rosto no cho.

    Podem desamarr-lo eu disse.

    Um dos monges disse:

    Ele um pria. No devemos tocar nele.

    Quem o amarrou?

    Na hora no percebemos disse o outro.

    Depois vocs se lavam. Esse homem salvou-me a vida. Desamarrem-

    no.

    Ainda relutantes, ergueram Jo-An e soltaram as cordas que o amarravam.

    Ele se aproximou de mim rastejando e se prostrou a meus ps.

    Sente-se, Jo-An eu disse. O que houve? Eu disse que s viesse

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  • 7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua

    18/300

    quando eu mandasse cham-lo. Teve sorte de no ser morto, chegando aqui sem

    avisar e sem autorizao.

    A ltima vez que o vira eu estava quase to esfarrapado e desgrenhado

    quanto ele. Eu era ento um fugitivo, exausto e faminto. Agora eu vestia uma

    tnica, tinha os cabelos presos ao estilo dos guerreiros e trazia a espada na

    cintura. Sabia que os monges deviam estar profundamente chocados por me ver

    conversando com um pria. Uma parte de mim estava tentada a expuls-lo, a

    negar que houvesse qualquer relao entre ns e a afast-lo para sempre da

    minha vida. Se eu desse essa ordem aos guardas, eles o matariam

    imediatamente. No entanto, eu no podia faz-lo. Ele salvara minha vida. Alm do

    mais, em nome do vnculo que havia entre ns, os dois nascidos em meio aos

    Ocultos, eu tinha que trat-lo no como pria, mas como ser humano. Ningum me matar enquanto o Deus Secreto no me chamar ele

    murmurou, levantando os olhos para mim. At esse dia, minha vida pertence ao

    senhor.

    No lugar em que estvamos havia apenas a luz do lampio que o monge

    trouxera da casa da guarda e colocara no cho, perto de ns. Mesmo assim, eu

    via os olhos de Jo-An inflamados. Tal como j fizera muitas vezes, perguntei-me

    se ele estava mesmo vivo ou se era um visitante de outro mundo.

    O que voc quer? perguntei.

    Tenho uma coisa muito importante para lhe dizer. Vai me agradecer por

    eu ter vindo.

    Os monges tinham recuado para no se poluir, mas estavam a uma

    distncia suficiente para nos ouvir.

    Preciso falar com este homem eu disse. Onde podemos ficar?

    Entreolharam-se constrangidos, e o mais velho sugeriu:

    Talvez no pavilho do jardim.

    No precisam vir comigo.

    Devemos proteger o Senhor Otori disse o mais moo.

    Com este homem no corro perigo. Deixem-nos sozinhos. Digam a

    Manami que traga gua, comida e ch.

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    Eles fizeram uma reverncia e se afastaram. Atravessaram o ptio

    olhando para ns e cochichando um com o outro. Ouvi tudo o que disseram e

    suspirei.

    Venha comigo eu disse a Jo-An.

    Ele foi mancando atrs de mim at o pavilho, que ficava no jardim, no

    muito longe do lago. A gua cintilava sob a luz das estrelas e de vez em quando

    um peixe pulava acima da superfcie e voltava a cair ruidosamente. Do outro lado

    do lago as lpides brancas acinzentadas dos tmulos destacavam-se da

    escurido. A coruja voltou a piar, desta vez mais perto de ns.

    Foi Deus que me mandou vir ele disse, depois que nos instalamos

    no piso de madeira do pavilho.

    No deve falar to abertamente em Deus repreendi. Est numtemplo. Os monges no tm pelos Ocultos mais apreo do que os guerreiros.

    O senhor est aqui ele murmurou. nossa esperana e nossa

    proteo.

    Sou apenas um. No posso proteger todos vocs dos sentimentos de

    todo um pas.

    Ele se calou por um momento, depois disse:

    O Deus Secreto pensa no senhor o tempo todo, mesmo que o senhor o

    tenha esquecido.

    Eu no queria ouvir esse tipo de mensagem.

    O que tem a me dizer? perguntei, impaciente.

    Os homens que encontrou o ano passado, os carvoeiros, estavam

    levando o deus deles de volta para a montanha. Encontrei-os no caminho.

    Disseram-me que os homens dos Otori esto vigiando todas as estradas em torno

    de Terayama e Yamagata. Fui verificar pessoalmente. H soldados escondidos

    por toda parte. Eles o pegaro em emboscada assim que o senhor partir. Se

    quiser sair, ter que lutar para passar por eles.

    Seus olhos estavam fixos em mim, observando minha reao. Eu me

    maldizia por ter me demorado tanto no templo. O tempo todo eu sabia que rapidez

    e surpresa eram minhas armas principais. Deveria ter ido embora antes. Eu adiara

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    minha partida esperando por Ichiro. Antes de me casar, eu saa todas as noites

    para vigiar as estradas em torno do templo. Mas desde que Kaede viera juntar-se

    a mim eu no conseguia me afastar dela. Agora eu cara na armadilha da minha

    prpria vacilao e falta de vigilncia.

    Quantos homens voc calcula que sejam?

    Cinco ou seis mil ele respondeu. Eu no tinha nem mil.

    Ento vai ter que atravessar pela montanha, como fez no inverno. H

    uma trilha que vai para oeste. Ningum a est vigiando porque ainda h neve no

    desfiladeiro.

    Meu pensamento corria veloz. Eu conhecia a trilha de que ele falava.

    Passava pelo santurio em que Makoto planejara passar o inverno antes de eu

    irromper do meio da neve na minha fuga para Terayama, no inverno. Eu aexplorara algumas semanas antes e acabara voltando quando a neve se tornara

    profunda demais, impedindo a passagem. Pensei em minha fora, nos homens,

    cavalos e bois. Os bois no conseguiriam passar, mas os homens e os cavalos

    sim. Eu os mandaria noite, se possvel, para que os Otori pensassem que ainda

    estvamos no templo... Tinha que agir rpido, consultar o abade imediatamente.

    Meus pensamentos foram interrompidos por Manami e um criado. O

    homem carregava uma vasilha de gua. Manami trazia uma bandeja com uma

    tigela de arroz com legumes e duas xcaras de ch de ervas. Ela colocou a

    bandeja no cho, olhando para Jo-An com repugnncia, como se ele fosse uma

    cobra. A reao do homem tambm foi de horror. Perguntei-me se me prejudicaria

    ser visto na companhia de um pria. Pedi-lhes que se retirassem e eles o fizeram

    rapidamente. Ainda ouvi os murmrios de reprovao de Manami no caminho de

    volta casa de hspedes.

    Jo-An lavou as mos e o rosto, depois juntou as mos para dizer a

    primeira prece dos Ocultos. Embora eu respondesse quelas palavras que me

    eram familiares, uma onda de irritao tomou conta de mim. Mais uma vez Jo-An

    arriscara a vida para me trazer aquelas notcias vitais, mas eu desejava que fosse

    mais discreto, e meu esprito sucumbiu diante do pensamento do risco que ele

    poderia representar.

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    Quando ele terminou de comer, eu disse:

    melhor voc ir embora. Tem um longo caminho de volta para casa.

    Jo-An no respondeu, mas se sentou, com a cabea levemente inclinada,

    na posio de escuta que para mim, agora, era to conhecida.

    No ele disse, finalmente. Tenho que ir com o senhor.

    Impossvel. No o quero comigo.

    o desejo de Deus ele disse.

    No havia como faz-lo desistir, a no ser matando-o ou mandando

    prend-lo, maneiras vergonhosas de agradecer sua ajuda.

    Tudo bem eu disse , mas voc no pode ficar no templo.

    No mesmo ele concordou, docilmente , tenho que buscar os

    outros. Que outros, Jo-An?

    Nossos outros homens, os que vieram comigo. O senhor viu alguns

    deles.

    Eu vira aqueles homens no curtume perto do rio, onde Jo-An trabalhava, e

    nunca me esqueceria do modo como me olhavam. Sabia que esperavam de mim

    justia e proteo. Lembrei-me da pena: justia era o que Shigeru desejava. Eu

    tambm deveria busc-la, em memria dele e por aqueles homens que, afinal,

    ainda estavam vivos.

    Jo-An voltou a juntar as mos e agradeceu a comida. Um peixe saltou em

    meio ao silncio.

    Quantos eles so? perguntei.

    Cerca de trinta. Esto escondidos na montanha. Nas ltimas semanas,

    foram atravessando a fronteira um a um ou de dois em dois.

    A fronteira no est guardada?

    Houve rixas entre os homens de Otori e os de Arai. No momento houve

    um recuo. As fronteiras esto todas abertas. Os Otori deixaram claro que no

    esto desafiando Arai nem querendo retomar Yamagata. S querem eliminar o

    senhor.

    Essa parecia ser a misso de todo o mundo.

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    O povo est dando apoio a eles? perguntei.

    Claro que no! ele disse, quase com impacincia. O senhor sabe

    quem o povo apia: o Anjo de Yamagata. Alis, como todos ns. Seno, por que

    estaramos aqui?

    Eu no tinha certeza de desejar o apoio deles, mas no podia deixar de

    me impressionar com sua coragem.

    Obrigado eu disse.

    Ele sorriu, mostrando as falhas de seus dentes. Lembrei-me ento das

    torturas que sofrera por minha causa.

    Vamos encontr-lo do outro lado da montanha. Pode estar certo de que

    vai precisar de ns.

    Pedi aos guardas que abrissem o porto e me despedi dele. Fiqueiolhando seu vulto frgil e tortuoso afastar-se na escurido. Na floresta uma raposa

    uivou, como um fantasma atormentado. Estremeci. Jo-An parecia guiado e

    amparado por algum poder sobrenatural. Embora eu j no acreditasse nisso,

    temia sua fora como uma criana supersticiosa.

    Voltei casa de hspedes, arrepiado. Tirei as roupas e, apesar de j ser

    muito tarde, pedi a Manami que as levasse, para lav-las e purific-las, e depois

    fosse casa de banhos. Ela me esfregou inteiro e fiquei mergulhado na gua

    quente por dez ou quinze minutos. Depois de vestir roupas limpas, pedi ao criado

    que fosse chamar Kahei e perguntar ao abade se poderamos falar com ele. Era a

    primeira metade da Hora do Boi.

    Encontrei Kahei na galeria, falei-lhe brevemente sobre o que soubera e fui

    com ele at o quarto do abade. Mandamos o criado chamar Makoto no templo,

    onde ele estava de viglia. Decidimos que assim que possvel mobilizaramos o

    exrcito inteiro, exceto um pequeno grupo de cavaleiros, que ficaria em Terayama

    durante um dia para lutar na retaguarda.

    Kahei e Makoto foram imediatamente ao povoado para alertar Amano e os

    outros homens e comear a embalar vveres e equipamentos. O abade mandou

    alguns criados levarem as informaes aos monges, temendo que tocar o sino do

    templo quela hora da noite pudesse ser um aviso aos espies. Fui ter com

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    Kaede.

    Ela estava esperando por mim, j de roupa de dormir, o cabelo solto nas

    costas, como uma segunda tnica, intensamente preto em contraste com o tecido

    marfim e sua pele branca. V-la, como sempre, me fez perder o flego. O que

    quer que nos acontea, nunca me esquecerei daqueles dias de primavera que

    passamos juntos. Minha vida parecia cheia de bnos imerecidas, mas aquela

    era a maior de todas.

    Manami disse que voc deixou um pria entrar e conversou com ele

    ela estava to chocada quanto a criada.

    , ele se chama Jo-An. Encontrei-o em Yamagata -eu disse. Tirei a

    roupa, vesti o roupo e sentei-me na frente dela, com os joelhos encostados nos

    seus.Seus olhos procuravam meu rosto:

    Voc parece exausto. Venha se deitar.

    Vou, sim. Precisamos tentar dormir algumas horas. Vamos partir assim

    que amanhecer. Os Otori esto cercando o templo. Vamos atravessar pela

    montanha.

    Foi o pria que lhe trouxe notcias?

    Arriscou a vida para isso.

    Por qu? Como voc o conheceu?

    Lembra-se do dia em que chegamos aqui com o Senhor Shigeru?

    Nunca poderei esquecer disse Kaede, sorrindo.

    Na noite anterior, fui at o castelo e acabei com o sofrimento dos

    prisioneiros pendurados em suas muralhas. Eram dos Ocultos. Ouviu falar neles?

    Kaede meneou a cabea:

    Shizuka me falou um pouco sobre eles. Foram torturados do mesmo

    modo pelos Noguchi.

    Um dos homens que matei era irmo de Jo-An. Quando sa do fosso,

    Jo-An me viu e pensou que eu fosse um anjo.

    O Anjo de Yamagata Kaede disse, lentamente. -Aquela noite,

    quando voltamos, a cidade toda estava falando nele.

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    Depois disso voltamos a nos encontrar. De certo modo, nossos

    destinos parecem estar entrelaados. O ano passado, ele me ajudou a chegar

    aqui. S no morri no meio da neve por causa dele. No caminho, levou-me para

    falar com uma mulher sagrada e ela disse coisas sobre minha vida.

    Eu no dissera nada, nem mesmo a Makoto e a Matsuda, sobre as

    palavras da profetisa, mas agora tinha vontade de cont-las a Kaede. Sussurrei-

    lhe algumas delas: disse-lhe que em mim misturavam-se trs sangues; que eu

    nascera entre os Ocultos mas minha vida j no me pertencia; que eu estava

    destinado a governar em paz de um mar a outro, quando a Terra realizasse o que

    o Cu desejava. Dissera essas palavras para mim mesmo repetidamente, e, como

    j disse, s vezes acreditava nelas e s vezes no. Disse a Kaede que cinco

    batalhas nos trariam paz, quatro para vencer e uma para perder, mas no lhe faleidas previses da mulher sobre meu filho, ou seja, que eu morreria pelas mos

    dele. Ponderei que seria um fardo pesado demais para Kaede. No entanto, a

    verdade era que eu no queria falar sobre um outro segredo que eu no lhe havia

    revelado: Kaede no sabia que uma moa da Tribo, Yuki, filha de Muto Kenji,

    carregava um filho meu.

    Voc nasceu entre os Ocultos? ela disse, reticente. Mas a Tribo o

    queria por causa do sangue de seu pai. Foi Shizuka quem me deu essa

    explicao.

    Muto Kenji revelou que meu pai era Kikuta, da Tribo, j na primeira vez

    que esteve na casa de Shigeru. Mas s Shigeru sabia que meu pai tambm era

    meio Otori.

    Eu j havia mostrado a Kaede os documentos que confirmavam isso. O

    pai de Shigeru, Otori Shigemori, era meu av.

    E sua me? ela perguntou, em voz baixa. Se voc no se importa

    de me contar...

    Minha me era dos Ocultos. Fui criado entre eles. Minha famlia foi

    massacrada em nossa aldeia, Mino, pelos homens de Iida. Eles teriam me matado

    se Shigeru no me tivesse socorrido fiz uma pausa e ento falei daquilo em que

    mal conseguia pensar. Eu tinha duas irms, ainda pequenas. Imagino que

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    tambm tenham sido mortas. Uma tinha nove anos e a outra sete.

    Que coisa terrvel disse Kaede. Sempre temo por minhas irms.

    Espero que possamos mandar busc-las quando chegarmos a Maruyama. Espero

    que agora estejam em segurana.

    Fiquei em silncio, pensando em Mino, onde todos nos sentamos to

    seguros.

    Que vida estranha a sua prosseguiu Kaede. A primeira vez que o

    encontrei, achava que voc escondia tudo. Via-o se afastar como se estivesse

    indo para um lugar escuro e secreto. Tinha vontade de segui-lo. Tinha vontade de

    saber tudo sobre voc.

    Vou lhe contar tudo. Mas agora vamos deitar e descansar.

    Kaede tirou a colcha e nos deitamos no colcho. Abracei-a, soltei nossasroupas para sentir sua pele na minha. Ela chamou Manami para apagar as

    lanternas. O cheiro de fumaa e leo ainda pairava no quarto depois que o rudo

    dos passos da criada desapareceu.

    Eu j conhecia todos os sons noturnos do templo: os perodos de

    completo silncio, interrompidos a intervalos regulares pelos passos macios dos

    monges que se levantavam no meio da noite para orar, os cantos baixos, o

    repentino toque de um sino. Mas aquela noite o ritmo harmonioso e regular estava

    perturbado, o tempo todo ouvia-se o barulho de pessoas indo e vindo. Eu estava

    inquieto, sentindo que deveria participar dos preparativos, embora relutasse em

    deixar Kaede.

    O que significa ser um dos Ocultos? ela sussurrou.

    Fui criado dentro de algumas crenas. J abandonei a maioria delas.

    Ao dizer isso, senti um arrepio na nuca, como se um ar frio tivesse

    passado por mim. Seria verdade que eu tinha abandonado as crenas da minha

    infncia, pelas quais minha famlia morrera?

    Diziam que Iida punira Shigeru por ele pertencer aos Ocultos, assim

    como minha parenta, a Senhora Maruyama murmurou Kaede.

    Shigeru nunca me falou disso. Ele conhecia as preces dos Ocultos e as

    disse antes de morrer, mas a ltima palavra que pronunciou foi o nome do

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    Iluminado.

    Eu ainda tinha dificuldade em pensar na morte de Shigeru. Ficava

    paralisado de horror por me lembrar do que houvera depois e por meu luto

    sufocante. Aquele dia, ao pensar em todos os acontecimentos, pela primeira vez

    eu associei as palavras da profetisa s de Shigeru. " tudo um s", ela dissera.

    Ento Shigeru tambm tinha essa crena. Pude ouvir seu riso maravilhado e tive a

    impresso de que sorria para mim. Senti que alguma coisa profunda revelava-se

    de repente a mim, algo que nunca eu conseguiria expressar em palavras. Meu

    corao parecia ter parado de bater de tanta admirao. Em minha mente

    silenciosa muitas imagens passaram ao mesmo tempo: a compostura de Shigeru

    quando estava prestes a morrer, a compaixo da profetisa, minha sensao de

    reverncia e expectativa ao chegar a Terayama, as pontas vermelhas da pena dehouou na palma de minha mo. Enxerguei a verdade que estava por trs dos

    ensinamentos e das crenas, enxerguei como a luta humana turvava a clareza da

    vida, enxerguei penalizado como estamos todos sujeitos ao desejo e morte,

    tanto o guerreiro como o pria, o sacerdote, o lavrador e at o imperador. Que

    nome eu poderia dar quela clareza? Cu? Deus? Destino? Ou uma multido de

    nomes como os incontveis velhos espritos que os homens acreditavam habitar

    neste mundo? Eram todas faces do que no tem face, expresses do que no

    pode ser expresso, partes de uma verdade mas nunca toda a verdade.

    E a Senhora Maruyama? perguntou Kaede, admirada com meu

    longo silncio.

    Acho que ela tinha crenas slidas, mas nunca conversamos sobre

    isso. A primeira vez que a encontrei, ela desenhou o sinal em minha mo.

    Mostre-me pediu Kaede. Tomei-lhe a mo e tracei o sinal em sua

    palma.

    Os Ocultos so perigosos? Por que todos os odeiam?

    Eles no so perigosos. So proibidos de matar e por isso no se

    defendem. Acreditam que todos so iguais diante de seu Deus e que ele julgar a

    todos depois da morte. Grandes senhores, como Iida, odeiam esse ensinamento.

    A maioria da classe dos guerreiros tambm. Se todos so iguais e se Deus v

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    tudo, certamente errado tratar o povo to mal. Nosso mundo viraria de cabea

    para baixo se todos pensassem como os Ocultos.

    E voc acredita nisso?

    No acredito que exista um Deus assim, mas acredito que todos

    deveriam ser tratados de maneira igual. Prias, lavradores, os Ocultos, todos

    deveriam ser protegidos contra a crueldade e a cobia da classe guerreira. Quanto

    a mim, quero utilizar todos os que estejam preparados para me ajudar. No me

    importa que sejam lavradores ou prias. Todos sero aceitos em meu exrcito.

    Kaede no contestou, mas imaginei que aquelas idias lhe parecessem

    estranhas e repulsivas. Eu podia deixar de acreditar no Deus dos Ocultos, mas

    no podia lutar contra minha formao de acordo com seus ensinamentos. Pensei

    na ao dos lavradores contra os guerreiros Otori nos portes do templo. Eu osaprovara, pois os via como iguais, ao passo que Makoto se chocara e ficara

    indignado. Ser que tinha razo? Ser que eu estava soltando um bicho-papo

    que nunca conseguiria controlar?

    Os Ocultos acreditam que as mulheres so iguais aos homens?

    Kaede perguntou baixinho.

    Aos olhos de Deus elas so. Geralmente os sacerdotes so homens,

    mas, quando no h um homem na idade adequada, as mulheres mais velhas se

    tornam sacerdotisas.

    Voc me deixaria lutar em seu exrcito?

    Com a habilidade que voc tem, se voc fosse outra mulher eu ficaria

    feliz em t-la lutando a meu lado, como fizemos em Inuyama. No entanto, voc a

    herdeira de Maruyama. Se morrer numa batalha, nossa causa estar

    completamente perdida. Alm do mais, eu no suportaria.

    Puxei Kaede para perto de mim, mergulhando o rosto em seus cabelos.

    Havia mais uma coisa sobre a qual precisava falar com ela. Referia-se a outro

    ensinamento dos Ocultos, incompreensvel para a classe guerreira: a proibio de

    tirar a prpria vida.

    Aqui estamos seguros sussurrei. Quando formos embora, tudo

    ser diferente. Gostaria que pudssemos ficar juntos, mas haver momentos em

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    que seremos obrigados a nos separar. Muita gente quer que eu morra, mas isso

    s acontecer depois que a profecia se cumprir e nosso pas estiver em paz,

    estendendo-se de um mar a outro. Quero que prometa que, acontea o que

    acontecer, seja o que for que lhe digam, voc no ir acreditar que eu morri

    enquanto no vir com seus prprios olhos. Prometa que no vai se matar

    enquanto no me vir morto.

    Prometo ela disse, tranqilamente. E quero que voc faa o

    mesmo.

    Fiz a mesma promessa a Kaede. Ela adormeceu, e eu continuei deitado

    no escuro, pensando no que me fora revelado. Tudo o que me fora concedido no

    o fora por mim mas por aquilo que eu deveria realizar: um pas de paz e justia

    onde o houou, alm de ser visto, pudesse construir seu ninho e criar seus filhotes.

    2.

    Dormimos pouco. Quando acordei, ainda estava escuro. Ouvi l fora

    passos de gente e de cavalos subindo a montanha. Chamei Manami e acordeiKaede, pedindo-lhe que se vestisse. Eu voltaria para encontr-la quando fosse

    hora de partirmos. Tambm lhe confiei a caixa com os registros de Shigeru sobre

    a Tribo. Sentia que deveria mant-los protegidos o tempo todo, pois seriam uma

    salvaguarda contra a sentena de morte que a Tribo decretara contra mim e uma

    possvel garantia de aliana com Arai Daiichi, agora o senhor mais poderoso dos

    Trs Pases.

    O templo j fervilhava de atividade. Os monges se preparavam, no para

    as preces matinais mas para um contra-ataque s foras dos Otori e para a

    resistncia a um eventual cerco prolongado. Tochas formavam sombras trmulas

    nos rostos soturnos dos homens que se aprontavam para a guerra. Vesti uma

    armadura de couro, atada com cordes vermelhos e dourados. Era a primeira vez

    que eu a envergava com um propsito real. Ela me fazia sentir-me mais velho e eu

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    esperava que me desse segurana. Fui at o porto assistir partida de meus

    homens ao raiar do dia. Makoto e Kahei j tinham partido na frente, com as tropas

    de vanguarda. Maaricos e faises chamavam no vale. O orvalho se grudava s

    folhas de bambu e s teias de aranha tecidas entre elas, teias que logo foram

    pisoteadas.

    Quando voltei, Kaede e Manami estavam vestidas com roupas de

    montaria masculinas. Kaede vestira uma armadura que eu lhe arranjara,

    originalmente feita para um pajem. Eu mandara forjar-lhe uma espada, que ela

    trazia na cintura, junto com um punhal. Comemos um pouco de comida fria e

    fomos at onde Amano esperava com os cavalos.

    O abade estava com ele, com elmo, couraa de couro e espada na

    cintura. Ajoelhei-me diante dele para agradecer tudo o que fizera por mim. Ele meabraou como um pai.

    Mande mensageiros de Maruyama ele disse, jovial. Voc chegar

    l antes da lua nova.

    Sua confiana em mim me emocionou e me deu fora.

    Kaede montou em Raku, o cavalo cinzento com crina e cauda pretas que

    eu lhe dera, e eu montei no garanho preto que tnhamos tomado dos guerreiros

    Otori, ao qual Amano dera o nome de Aoi. Manami e algumas das outras mulheres

    que partiriam com o exrcito foram instaladas em cavalos de carga. Manami ainda

    verificou se a caixa de documentos estava bem amarrada atrs dela. Juntamo-nos

    multido que serpenteava pela floresta e subia a trilha ngreme da montanha,

    pela qual Makoto e eu tnhamos descido no ano anterior, ao cair das primeiras

    neves. O sol em chama comeava a bater sobre os picos nevados, tornando-os

    rseos e dourados. O ar estava frio, a ponto de entorpecer-nos as bochechas e os

    dedos.

    Olhei para trs e vi o templo com seus amplos telhados inclinados

    emergindo como navios imensos do mar de folhas novas. Parecia eternamente em

    paz, sob o sol da manh, com pombas brancas esvoaando em torno dos beirais.

    Rezei para que fosse preservado exatamente como estava naquele momento, que

    no fosse destrudo nem incendiado nas batalhas futuras.

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    O cu vermelho da manh trazia uma ameaa. Logo chegaram do oeste

    nuvens pesadas e cinzentas, trazendo primeiro um chuvisco e depois chuva

    grossa. medida que subamos para o desfiladeiro, chuva juntou-se a neve. Os

    homens a cavalo saam-se melhor do que os carregadores, que levavam cestos

    enormes nas costas, mas, medida que a neve se acumulava, tambm para os

    cavalos a subida se tornava difcil. Eu sempre imaginara que ir para a batalha

    seria um ato herico, com as trombetas soando e as bandeiras esvoaando. No

    me ocorrera que seria aquela investida soturna contra um inimigo que no era

    humano, contra as intempries e a montanha, e a dolorosa caminhada para cima,

    sempre para cima.

    Finalmente os cavalos comearam a refugar, e Amano e eu desmontamos

    para gui-los. Quando atravessamos o desfiladeiro, estvamos encharcados atos ossos. Na trilha estreita, no havia espao para recuar ou avanar para passar

    o exrcito em revista. Quando comeamos a descer, pude v-lo, sinuoso como

    uma serpente, contrastando com a brancura dos ltimos vestgios de neve, como

    uma imensa criatura de milhares de pernas. Alm das pedras e pedregulhos,

    aparecendo cada vez mais medida que a chuva derretia a neve, estendiam-se

    densas florestas. Se nelas houvesse algum nossa espera, estaramos sua

    merc.

    Mas as florestas estavam vazias. Os Otori nos esperavam do outro lado

    da montanha. Com a cobertura das rvores, alcanamos Kahei no lugar em que

    ele havia parado para dar um descanso vanguarda. Fizemos o mesmo,

    permitindo que os homens se aliviassem em pequenos grupos e depois

    comessem. O ar mido foi tomado pelo cheiro acre de sua urina. Tnhamos

    caminhado por cinco ou seis horas, e eu estava satisfeito por ver que tanto

    guerreiros como lavradores tinham agentado bem.

    Durante nossa parada a chuva aumentou. Estava preocupado com Kaede,

    pois passara meses mal de sade. No entanto, apesar de aparentemente estar

    com frio, ela no se queixava. Comeu um pouquinho, mas no tnhamos nenhum

    alimento quente e no podamos perder tempo acendendo fogueiras. Manami

    estava excepcionalmente silenciosa, vigiando Kaede de perto e sobressaltando-

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    se, nervosa, a qualquer rudo. Continuamos nossa caminhada o mais cedo

    possvel. Eu tinha a impresso de que j passava do meio-dia, algo entre a Hora

    da Cabra e a do Macaco. A descida j era menos ngreme e logo o caminho se

    alargou um pouco, o suficiente para que eu pudesse avanar pela lateral.

    Deixando Kaede com Amano, tocou meu cavalo e desci a ladeira at a frente do

    exrcito, onde encontrei Makoto e Kahei.

    Makoto, que conhecia a rea melhor do que qualquer um de ns, disse-

    me que um pouco adiante, na outra margem do rio, havia uma cidadezinha, Kibi,

    onde poderamos passar a noite.

    protegida?

    H no mximo uma pequena praa forte. No h castelo e a cidade em

    si no fortificada. De quem so as terras?

    Arai instalou nela um de seus guardies disse Kahei. O dono

    anterior e seus filhos eram partidrios dos Tohan em Kushimoto. Todos morreram

    l. Alguns dos homens juntaram-se a Arai, os outros ficaram sem patro e se

    retiraram para as montanhas, como bandidos.

    Mande alguns homens na frente, para dizer que pedimos abrigo por

    esta noite. Faa-os explicar que no queremos briga, s estamos de passagem.

    Vamos ver qual ser a resposta.

    Kahei chamou trs homens e os mandou sair a galope, enquanto

    continuvamos mais devagar. Menos de uma hora depois eles estavam de volta.

    Seus cavalos vinham com os flancos inchados, cobertos de lama at os joelhos,

    as narinas vermelhas e inflamadas.

    O rio est cheio e a ponte foi derrubada relatou o chefe deles.

    Tentamos atravess-lo a nado mas a correnteza muito forte. Mesmo que o

    fizssemos, os soldados a p e os animais de carga no conseguiriam.

    E as estradas ao longo do rio? Onde a prxima ponte?

    A estrada de leste atravessa o vale para Yamagata, direto de volta aos

    Otori disse Makoto. A estrada do sul se afasta do rio e atravessa a

    cordilheira, na direo de Inuyama. Mas, nessa poca do ano, a passagem deve

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    estar bloqueada.

    A no ser que consegussemos atravessar o rio, estvamos encurralados.

    Venha na frente comigo eu disse a Makoto. Vamos verificar

    pessoalmente.

    Pedi a Kahei que avanasse com o resto do exrcito lentamente. Apenas

    uma retaguarda de uns cem homens deveria caminhar para leste, para o caso de

    j estarmos sendo seguidos por aquele lado.

    Makoto e eu avanamos, e mal havamos caminhado meia milha ouvi o

    gemido constante e soturno de um rio em cheia. Avolumado pela neve derretida,

    inevitvel naquela estao, o rio de primavera derramava sua gua verde-

    amarelada pela paisagem. Ao sairmos da floresta pelas moitas de bambu e

    darmos com os canteiros de juncos, pensei que tivssemos chegado ao mar. Agua estendia-se nossa frente at onde a vista alcanava, salpicada pela chuva,

    da mesma cor que o cu. Eu devia estar ofegante, pois Makoto disse:

    No to ruim quanto parece. A maior parte so campos irrigados.

    Reparei ento no padro quadriculado de diques e trilhas. As plantaes

    de arroz estavam alagadas mas eram rasas. No entanto, pelo meio delas corria o

    rio. Ele tinha cerca de cem ps de largura e transbordara os diques de proteo,

    que deviam estar agora a uns doze ps de profundidade. Eu via os restos da

    ponte de madeira: dois pilares cujos topos escuros apareciam vagamente acima

    da gua agitada. Pareciam indescritivelmente desamparados sob a chuva

    torrencial, como todos os sonhos e ambies humanos acabam devastados pela

    natureza e pelo tempo.

    Eu olhava para o rio, pensando se conseguiramos atravess-lo a nado,

    reconstruir a ponte ou o que fosse, quando ouvi, sobrepondo-se ao rudo

    constante da gua, sons de atividade humana. Concentrei-me e tive a impresso

    de reconhecer vozes humanas, a batida de um machado e, sem dvida, o sbito

    estrondo de madeira caindo.

    minha direita, a montante, o rio fazia uma curva e a floresta se

    aproximava da margem. Vi o que restava do que deveria ser um cais,

    provavelmente para embarcar madeira da floresta para ser levada cidade. Fiz

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    meu cavalo virar e atravessei os campos, rumo curva do rio.

    O que foi? Makoto gritou, seguindo-me.

    H algum ali agarrei-me crina de Aoi, que escorregou e quase foi

    ao cho.

    Volte gritou Makoto , perigoso, no pode ir sozinho.

    Ouvi-o empunhar seu arco e ajustar uma flecha corda. Os cavalos

    mergulharam e chapinharam na gua rasa. Uma lembrana veio-me mente, de

    outro rio, intransponvel por razes diferentes. Eu sabia o que, ou quem,

    encontraria.

    L estava Jo-An, seminu, encharcado, com outros trinta prias, ou mais.

    Tinham tirado madeira do cais, onde ela ficara encalhada, e tinham derrubado

    mais rvores e cortado junco para fazer uma ponte flutuante.Pararam de trabalhar quando me viram e ajoelharam-se na lama. Tive a

    impresso de reconhecer alguns deles, do curtume. Continuavam magros e

    miserveis como sempre e em seus olhos brilhava a mesma chama da fome.

    Tentei imaginar o que lhes custara sair com Jo-An de seu territrio, transgredir

    todas as leis contra a derrubada de rvores, baseados na vaga promessa de que

    eu lhes traria justia e paz. No quis nem pensar no quanto sofreriam se eu

    falhasse.

    Jo-An! chamei, e ele se aproximou do meu cavalo, que resfolegou e

    tentou recuar. Mas Jo-An segurou-o pelo freio e o acalmou.

    Diga-lhes que continuem trabalhando eu disse. -Assim, minha dvida

    com voc ser maior ainda.

    O senhor no me deve nada ele replicou. Deve tudo a Deus.

    Makoto se ps a meu lado, e tive a esperana de que ele no tivesse

    ouvido as palavras de Jo-An. Os focinhos de nossos cavalos se tocaram e o

    garanho preto relinchou, tentando morder o outro. Jo-An afagou-lhe o pescoo.

    Makoto olhou para ele.

    Prias? ele exclamou, incrdulo. O que esto fazendo aqui?

    Salvando nossas vidas. Esto construindo uma ponte flutuante.

    Ele fez seu cavalo recuar alguns passos. Sob seu elmo, pude ver seus

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    lbios se apertarem.

    Nossos homens no iro us-la... comeou, mas eu o interrompi.

    Iro us-la, sim, pois estou mandando. a nica maneira de

    escaparmos.

    Poderamos batalhar para passar pela ponte de Yamagata.

    E perder toda a distncia que j avanamos? De todo modo, seramos

    um para cada cinco. E no teramos uma rota de retirada. No farei isso. Vamos

    atravessar o rio por esta ponte. V buscar alguns homens para ajudar os prias.

    Os outros que fiquem preparando a travessia.

    Ningum atravessar essa ponte se for construda por prias disse

    Makoto, num tom de voz que me irritou. Era como se ele estivesse falando com

    uma criana. Senti o mesmo que alguns meses atrs, quando os guardas deShigeru tinham deixado Kenji entrar no jardim em Hagi, deixando-se enganar por

    seus truques, sem saber que ele era um assassino da Tribo. Eu s poderia

    proteger meus homens se obedecessem a minhas ordens. Esqueci-me de que

    Makoto era mais velho, mais sensato e mais experiente do que eu. Deixei a fria

    tomar conta de mim.

    Faa o que estou mandando, j. Precisa convenc-los ou ter que se

    ver comigo. Os guerreiros tero que cumprir a funo de guardas enquanto os

    cavalos de carga e os soldados a p estiverem atravessando. Traga arqueiros

    para dar cobertura ponte. Vamos atravessar antes do anoitecer.

    Senhor Otori ele inclinou a cabea. Seu cavalo entrou na gua e foi

    chapinhando de volta pelos campos de arroz, para depois subir a encosta do outro

    lado. Vi-o sumir entre os bambus, depois voltei a ateno para o trabalho dos

    prias.

    Estavam amarrando as madeiras que tinham conseguido e os troncos

    derrubados, formando balsas, cada uma colocada sobre hastes de junco atadas

    em feixes, amarrados com cordas feitas de cascas de rvores e cnhamo

    tranados. Cada balsa que terminavam de fazer era colocada na gua e amarrada

    s outras j prontas. Mas a fora da correnteza mantinha as balsas coladas

    margem.

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    Uma extremidade da ponte precisa ser ancorada do outro lado eu

    disse a Jo-An.

    Algum atravessar a nado ele replicou.

    Um dos homens mais jovens pegou um rolo de corda, amarrou a ponta ao

    pulso e mergulhou no rio. Mas a correnteza era forte demais para ele. Vimos seus

    braos se agitarem acima da superfcie, depois ele desapareceu sob a gua

    barrenta. Puxaram-no para fora j quase afogado.

    Dem-me essa corda eu disse.

    Jo-An olhou angustiado para baixo da ribanceira.

    No, senhor, espere suplicou. Quando seus homens chegarem

    um deles poder atravessar.

    Quando meus homens chegarem a ponte dever estar pronta repliquei. D-me a corda.

    Jo-An a desamarrou do pulso do rapaz, que agora estava sentado,

    cuspindo gua, e a entregou para mim. Amarrei-a com fora ao pulso e toquei

    meu cavalo. A corda deslizou por suas ancas, fazendo-o pular na gua, antes que

    o esperado.

    Gritei, encorajando-o, e ele ps as orelhas para trs, para me ouvir. Deu

    os primeiros passos com os cascos encostando no fundo, depois a gua chegou-

    lhe aos ombros e ele comeou a nadar. Tentei manter sua cabea voltada para o

    ponto ao qual deveramos chegar. No entanto, embora o cavalo tivesse vigor e

    coragem, a correnteza era mais forte e nos carregou rio abaixo, at as runas da

    antiga ponte.

    Olhei em sua direo e no gostei do que vi. A correnteza arremessava

    galhos e outros entulhos contra os pilares e, se meu cavalo ficasse preso ali,

    certamente entraria em pnico e ns dois afundaramos. O cavalo e eu sentimos e

    tememos o poder do rio. Suas orelhas estavam baixadas para trs e seus olhos

    revirados. Felizmente, o pavor lhe redobrou as foras. Ele lutava e se debatia com

    as quatro patas. Passamos a alguns palmos dos pilares e, de repente, a

    correnteza se abrandou. Tnhamos passado da metade do rio. Alguns momentos

    depois, passou novamente a dar p para o cavalo e ele subia e descia, dando

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    passadas enormes para vencer a gua. Caminhou com dificuldade para terra

    firme, com a cabea baixa, ofegante, sua exuberncia de antes completamente

    extinta. Saltei de seu lombo e afaguei-lhe o pescoo, dizendo-lhe que seu pai

    decerto era um esprito das guas para ele nadar to bem. Estvamos ambos

    encharcados, mais parecendo peixes ou sapos do que animais terrestres.

    Senti o puxo da corda em meu pulso e tive medo de ser arrastado de

    novo para a gua. Caminhei, meio rastejando, at um pequeno arvoredo beira

    do rio. As rvores cercavam um pequeno santurio dedicado ao deus-raposa, a

    julgar pelas esttuas brancas, e a gua chegava at seus galhos mais baixos. Os

    ps das esttuas tambm estavam submersos, de modo que as raposas pareciam

    flutuar. Passei a corda em volta do tronco da rvore mais prxima, um pequeno

    bordo que comeava a dar folhas, e comecei a pux-la. Ela estava atada a umacorda muito mais forte; eu sentia seu peso imenso, como se ela relutasse em sair

    do rio. Assim que consegui puxar um comprimento suficiente, amarrei-a a uma

    rvore maior. Ocorreu-me que talvez estivesse conspurcando o santurio, mas

    quela altura no me importava ofender um deus, esprito ou demnio, contanto

    que conseguisse fazer meus homens chegarem sos e salvos ao outro lado do rio.

    O tempo todo eu estava escuta. Apesar da chuva, no acreditava que

    aquele lugar estivesse to deserto quanto parecia. Ali havia uma ponte, numa

    estrada que, pelo visto, era bem movimentada. Em meio ao chiado da chuva e ao

    estrondo do rio, eu ouvia o guincho de milhafres, o coaxar de milhares de sapos,

    felizes com tanta gua, e gritos estridentes de corvos, vindos da floresta. Mas

    onde estavam as pessoas?

    Depois que a corda ficou firme, cerca de dez prias atravessaram o rio

    agarrados a ela. Muito mais hbeis do que eu, eles refizeram todos os meus ns e

    construram um sistema de polias, usando os galhos flexveis do bordo.

    Lentamente, com muito trabalho e engenho, arrastaram as balsas, com os peitos

    arfando e os msculos saltados como cordas. O rio puxava as balsas com

    violncia, rejeitando sua intromisso em seu domnio, mas os homens persistiam.

    As balsas, boiando e estabilizadas por seus colches de junco, obedeciam

    docilmente e aos poucos aproximavam-se de ns.

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    A correnteza fez um dos lados da ponte flutuante se comprimir contra os

    pilares j existentes. Se no fosse isso, acho que o rio nos venceria. Eu via que a

    ponte estava quase pronta, mas no havia sinal de Makoto voltando com os

    homens. Eu perdera o senso do tempo, e as nuvens estavam muito baixas e

    escuras para que se pudesse distinguir a posio do sol. No entanto, eu achava

    que pelo menos uma hora j se passara. Ser que Makoto no conseguira

    convenc-los? Ser que tinham voltado a Yamagata, conforme ele havia

    sugerido? Amigo ou no, eu o mataria com minhas prprias mos se isso tivesse

    acontecido. Agucei os ouvidos, mas no ouvi nada alm do rio, da chuva e dos

    sapos.

    Alm do santurio, onde eu estava, a estrada emergia da gua. Atrs dela

    viam-se as montanhas, com a neblina branca pendurada como flmulas em suasencostas. Meu cavalo tiritava. Achei que deveria faz-lo andar um pouco para

    mant-lo aquecido, pois no havia como enxug-lo. Montei e o fiz caminhar um

    pouco pela estrada, tambm para tentar enxergar melhor o outro lado do rio, de

    um ponto mais alto.

    No muito longe, dei com uma choupana de madeira e reboco,

    toscamente coberta de junco. Ao lado dela, uma barreira de madeira atravessava

    a estrada. Perguntei-me o que seria: no parecia um posto de fronteira oficial de

    algum feudo e no havia guardas vista.

    Ao me aproximar, vi vrias cabeas humanas amarradas barreira,

    algumas mortas recentemente, outras apenas caveiras. Mal tive tempo para sentir

    nusea. Meus ouvidos conseguiram captar, vindo de trs de mim, o som que eu

    esperava: pisadas de cavalos e homens do outro lado do rio. Olhei para trs e vi,

    atravs da chuva, a vanguarda de meu exrcito saindo da floresta e chapinhan-do

    na direo da ponte. Reconheci Kahei pelo elmo. Ele vinha cavalgando na frente,

    Makoto a seu lado.

    Senti um alvio no peito. Fiz Aoi dar meia-volta. Ao ver os vultos distantes

    de seus companheiros, ele deu um relincho alto, que foi ecoado imediatamente

    por um grito terrvel vindo de dentro da choupana. O cho chacoalhou quando a

    porta se abriu e por ela saiu o maior homem que eu jamais vira, maior ainda do

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    que o gigante dos carvoeiros.

    Meu primeiro pensamento foi o de que se tratava de um ogro ou de um

    demnio. Ele tinha mais de dois metros de altura e era largo como um touro. Alm

    disso, sua cabea era desproporcionalmente grande, como se o crnio nunca

    tivesse parado de crescer. Tinha o cabelo comprido e emaranhado, barba e

    bigode cerrados e rijos. Seus olhos eram redondos como olhos de animal. S

    tinha uma orelha, enorme e pendurada. No lugar da outra orelha havia uma

    cicatriz cinza-azulada, que brilhava atravs de seus cabelos. Mas, quando ele

    gritava, sua voz era humana.

    Ei! ele berrou. O que pensa que est fazendo na minha estrada?

    Sou Otori Takeo repliquei. Estou conduzindo meu exrcito. Abra a

    barreira!Ele deu uma gargalhada que parecia o rudo de pedras desmoronando

    pela encosta de uma montanha.

    Ningum vai passar por aqui sem autorizao de Jin-emon. Volte e diga

    isso a seu exrcito!

    A chuva caa mais pesada, a luz do dia desaparecia rapidamente. Eu

    estava exausto, molhado, com fome e frio.

    Desbloqueie a estrada! gritei, impaciente. Vamos passar.

    Ele avanou para mim sem responder. Segurava uma arma atrs das

    costas, por isso no pude ver bem o que era. Ouvi o som antes de ver seu brao

    se mexer: era como um tilintar metlico. Com uma mo virei a cabea do cavalo,

    com a outra empunhei Jato. Aoi tambm ouviu o som e viu surgir o brao do

    gigante. Desviou-se para o lado, e o basto e a corrente do gigante passaram por

    minha orelha, uivando como um lobo.

    Uma das extremidades da corrente era presa a um basto com uma

    pequena foice na ponta. Eu nunca tinha visto uma arma como aquela e no tinha

    idia de como lutar contra ele. A corrente balanou de novo, acertando a pata

    traseira direita do cavalo. Aoi gritou de dor e medo e disparou. Tirei os ps dos

    estribos, deslizei da montaria e me pus de frente para o ogro. Com certeza eu

    estava diante de um louco, que me mataria se eu no o matasse antes.

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    Ele sorriu para mim. Decerto eu era, para ele, como o Pequeno Polegar ou

    algum outro personagem minsculo de um conto de fadas. Captei o incio do

    movimento de seu msculo e dividi minha imagem, jogando-me para a esquerda.

    A corrente acertou meu segundo eu, sem danific-lo. Jato saltou no ar entre ns e

    enfiou sua lmina em um de seus braos, um pouco acima do pulso.

    Normalmente, sua mo teria sido amputada, mas aquele adversrio tinha ossos

    de pedra. Senti as reverberaes no alto de meu ombro e por um momento temi

    que minha espada ficasse presa em seu brao como um machado numa rvore.

    Jin-emon soltou uma espcie de gemido estalado, parecido com o som de

    uma montanha ao congelar, e transferiu a arma para a outra mo. Sua mo direita

    vertia um sangue vermelho escuro, quase preto, que no jorrava, como seria de

    esperar. Quando a corrente uivou de novo, tornei-me invisvel por um momento,pensando brevemente em voltar para o rio e me perguntando onde estariam meus

    homens quando eu mais precisava deles. Ento vi uma rea de carne

    desprotegida e enfiei Jato nela. O ferimento deixado por minha espada era

    enorme, no entanto mais uma vez ele mal sangrou. Uma nova onda de pavor me

    invadiu. Seria possvel venc-lo?

    No golpe seguinte a corrente se enrolou na minha espada. Com um grito

    de triunfo, Jin-emon arrancou-a de minhas mos. Jato saiu voando e aterrissou a

    vrios metros de mim. O ogro se aproximou, girando os braos como uma

    ventoinha, prevenido contra meus truques.

    Fiquei parado. Trazia o punhal na cintura, mas no queria tir-lo, pois ele

    balanaria sua corrente e acabaria com minha vida ali mesmo. Queria que o

    monstro olhasse para mim. Ele avanou, pegou-me pelos ombros e me ergueu do

    cho. No sei qual era seu plano. Talvez quisesse rasgar-me a garganta com os

    dentes enormes e beber meu sangue. Pensei: "Ele no meu filho, no pode me

    matar." Ento olhei dentro de seus olhos. Tinham uma expresso de animal, mas,

    ao encontrarem os meus, vi-os arregalados de espanto. Senti por trs deles sua

    malvadeza estpida, sua natureza brutal e impiedosa. Senti o poder que havia em

    mim e deixei-o agir. Seus olhos comearam a se anuviar. O gigante deu um

    gemido baixo, seus dedos se afrouxaram e ele foi ao cho como uma rvore

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    imensa derrubada pelo machado de um lenhador. Joguei-me de lado, para no ser

    esmagado debaixo dele, e rolei at onde estava Jato. Aoi, que circulava nervoso

    em volta de ns, empinou e recuou. De espada na mo, corri at onde Jin-emon

    cara. Ele roncava em seu profundo sono Kikuta. Tentei erguer-lhe a cabea

    enorme para cort-la mas era pesada demais e eu no queria correr o risco de

    estragar a lmina da espada. Ento enfiei-lhe Jato no pescoo e rasguei-lhe a

    artria e a traquia. Mais uma vez, o sangue correu lentamente. Ele bateu os

    calcanhares, arqueou as costas mas no acordou. Finalmente parou de respirar.

    Pensei que Jin-emon estivesse sozinho, mas de dentro da choupana veio

    um rudo. Virei-me e vi um homem muito menor saindo apressado pela porta.

    Gritou alguma coisa incoerente, pulou sobre a barreira atrs da choupana e

    desapareceu dentro da floresta.Removi a barreira, olhando para os crnios e perguntando-me de quem

    seriam. Dois dos mais antigos caram com o movimento e larvas de insetos saram

    rastejando pelas rbitas. Coloquei-os no capim e voltei at meu cavalo, arrepiado

    e nauseado. A pata de Aoi estava machucada e sangrava no lugar em que a

    corrente a acertara, embora pelo visto no estivesse fraturada. Ele conseguia

    andar, mas mancava muito. Levei-o de volta ao rio.

    Aquele confronto parecia ter sido um pesadelo, no entanto quanto mais

    pensava nele mais me sentia bem. Jin-emon podia ter me matado, minha cabea

    estaria agora na barreira, junto das outras. Os poderes que eu herdar da Tribo

    haviam me salvado. A profecia parecia totalmente confirmada. Se aquele monstro

    no tinha conseguido me matar, quem conseguiria? Desde que voltara ao rio, uma

    nova energia flua em mim. No entanto, o que vi ento a transformou em fria.

    A ponte estava instalada mas s os prias tinham atravessado. O resto de

    meu exrcito ainda estava do outro lado. Os prias estavam aglomerados daquele

    seu modo acabrunhado, que eu estava comeando a entender. Era sua reao

    irracionalidade da repulsa que o mundo tinha por eles.

    Jo-An estava sentado sobre as prprias coxas, olhando com tristeza para

    a gua que corria. Ao me ver, ele se levantou.

    No querem atravessar, senhor. Ser preciso que o senhor ordene.

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    isso que vou fazer eu disse, com a raiva me subindo cabea.

    Pegue o cavalo, lave o ferimento e faa-o andar para no se resfriar.

    Jo-An pegou as rdeas.

    O que aconteceu?

    Dei de frente com um demnio respondi, e subi na ponte.

    Os homens que esperavam do outro lado deram um grito ao me ver, mas

    nenhum deles fez meno de atravessar a ponte. No era fcil caminhar por ela. A

    ponte balanava, s vezes o rio a submergia parcialmente, a puxava e inclinava.

    Eu caminhava depressa, lembrando-me da maneira como havia atravessado o

    piso-rouxinol, com passos leves e rpidos, em Hagi. Rezei para que o esprito de

    Shigeru me acompanhasse.

    Do outro lado, Makoto desceu do cavalo e agarrou-me pelo brao. Onde estava? Ficamos com medo de que tivesse morrido.

    Quase morri, mesmo eu disse, furioso. Onde estavam vocs?

    Antes que ele respondesse, Kahei veio at ns.

    O que esto esperando? perguntei. Faa os homens

    atravessarem.

    Kahei hesitou:

    Eles temem ser contaminados pelos prias.

    Desa eu disse. E, quando ele desceu do cavalo, mostrei aos dois a

    fora da minha fria. Por causa da estupidez de vocs, quase morri. Quando

    dou uma ordem, devem cumpri-la imediatamente, independentemente do que

    pensem dela. Se no lhes convier, podem voltar j, para Hagi, para o templo, para

    qualquer lugar, mas fora da minha vista eu falava em voz baixa, pois no queria

    ser ouvido pelo exrcito inteiro, mas percebi que minhas palavras os

    envergonhavam. Agora mandem entrar na gua primeiro os que esto a cavalo

    e querem atravessar a nado. Conduzam os cavalos de carga atravs da ponte

    enquanto a retaguarda fica a postos, depois os soldados a p, apenas trinta de

    cada vez.

    Senhor Otori disse Kahei. Subiu de novo na sela e saiu a galope.

    Desculpe-me, Takeo Makoto disse, baixinho.

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    A prxima vez vou mat-lo eu disse. D-me seu cavalo.

    Cavalguei ao longo da fila de soldados, repetindo as ordens.

    No tenham medo de contaminao eu dizia. -J atravessei a ponte.

    Se havia alguma contaminao, ela caiu sobre mim.

    Eu estava num estado quase de exaltao. Achava que nada do cu ou

    da terra poderia me prejudicar.

    Com um grito forte, o primeiro guerreiro entrou na gua, e os outros foram

    atrs dele. Os primeiros cavalos atravessaram a ponte, e, para meu alvio, ela os

    agentou bem. Uma vez a travessia em marcha, cavalguei de volta ao longo da

    fileira, dando ordens e estimulando os soldados a p, at chegar aonde Kaede

    esperava com Manami e as outras mulheres que nos acompanhavam. Manami

    trouxera guarda-chuvas e todas se aglomeravam embaixo deles. Amano seguravaseus cavalos. O rosto de Kaede se iluminou quando ela me viu. Seu cabelo

    cintilava e pingos de chuva pendiam de seus clios.

    Desmontei e entreguei as rdeas a Amano.

    O que aconteceu com Aoi? ele perguntou, reconhecendo o cavalo

    de Makoto.

    Ele se machucou, no sei se grave. Est do outro lado do rio.

    Atravessamos a nado quis dizer a Amano o quanto o cavalo fora corajoso, mas

    no tnhamos tempo. Vamos atravessar o rio eu disse s mulheres. Os

    prias construram uma ponte.

    Kaede me olhava sem dizer nada, mas Manami imediatamente abriu a

    boca para protestar. Levantei a mo para que ela se calasse.

    No h alternativa. Vocs devem fazer o que mandei repeti o que

    dissera aos homens: que qualquer contaminao recairia sobre mim.

    Senhor Otori ela murmurou, meneando a cabea quase

    imperceptivelmente e olhando de soslaio.

    Resisti vontade de espanc-la, embora achasse que ela merecia.

    Devo ir a cavalo? perguntou Kaede.

    No, muito instvel. melhor ir a p. Vou levar seu cavalo a nado.

    Amano no quis ouvir falar nisso.

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    H muitos cavalarios para fazer isso ele disse, olhando para minha

    armadura enlameada.

    Ento um deles que venha comigo eu disse. Ele pode levar Raku

    e trazer outro cavalo para mim. Preciso voltar outra margem. No esqueo o

    homem que vi fugir para a floresta. Se ele foi avisar outros da nossa chegada,

    quero estar l para enfrent-los.

    Traga Shun para o Senhor Otori Amano gritou para um cavalario. O

    homem veio at ns num pequeno cavalo baio e pegou as rdeas de Raku.

    Despedi-me rapidamente de Kaede, pedindo-lhe que cuidasse para que o cavalo

    de carga que levava os documentos atravessasse em segurana, e voltei a montar

    no cavalo de Makoto. Percorremos de volta a fila de soldados, que agora

    caminhava com bastante rapidez. Cerca de duzentos j tinham atravessado, eKahei os organizava em pequenos grupos, cada um com um chefe.

    Makoto me esperava beira da gua. Devolvi-lhe o cavalo e segurei

    Raku, enquanto ele e o cavalario entravam no rio. Fiquei observando o cavalo

    baio, Shun. Ele entrou sem medo na gua, nadando bem e calmamente, como se

    fizesse aquilo todo dia. O cavalario voltou pela ponte e pegou Raku. Enquanto

    eles atravessavam a nado, acompanhei os outros homens pela ponte flutuante.

    Eles passavam rpidos e esquivos, como os ratos no porto de Hagi,

    tentando ficar sobre a ponte o menos tempo possvel. Imaginei que poucos

    deveriam saber nadar. Alguns me cumprimentavam, um ou dois tocaram-me o

    ombro como se eu pudesse exorcizar o mal e trazer boa sorte. Encorajei-os o

    mais possvel, fazendo brincadeiras sobre o banho quente e as comidas

    excelentes de que desfrutaramos em Maruyama. Pareciam bem-humorados,

    embora soubssemos todos que Maruyama ainda estava muito longe.

    Na outra margem, pedi ao cavalario que esperasse por Kaede, com

    Raku, e eu montei Shun. Era um cavalo meio baixo e no era bonito, mas havia

    alguma coisa nele que me agradava. Ordenando que os guerreiros seguissem, fui

    na frente com Makoto. Eu queria especialmente arqueiros ao nosso lado, e dois

    grupos de trinta j estavam a postos. Pedi-lhes que se escondessem atrs do

    muro e esperassem por meu sinal.

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    O corpo de Jin-emon ainda jazia perto da barreira, e o lugar estava em

    silncio, aparentemente deserto.

    Isso tem a ver com voc? perguntou Makoto, olhando com

    repugnncia o corpo imenso e a exposio de cabeas.

    Mais tarde eu lhe conto. Ele tinha um companheiro que fugiu. Desconfio

    que vai voltar com mais homens. Kahei disse que esta rea est cheia de

    bandidos. O morto certamente fazia as pessoas pagarem para usar a ponte e

    cortava a cabea das que se recusavam.

    Makoto desmontou para ver mais de perto.

    Alguns deles so guerreiros ele disse , e jovens tambm.

    Devemos levar a cabea dele como recompensa e ele puxou a espada.

    No faa isso avisei. Ele tem ossos de granito. Vai estragar sualmina.

    Makoto lanou-me um olhar incrdulo e no disse nada, mas com um

    movimento rpido golpeou-lhe o pescoo. Sua espada estalou com um som quase

    humano. Os homens nossa volta soltaram exclamaes de espanto e medo.

    Makoto olhou aflito para a lmina quebrada, e depois me lanou um olhar

    envergonhado.

    Desculpe-me ele disse de novo. Eu deveria ter ouvido sua

    advertncia.

    Minha raiva voltou a se inflamar. Tirei minha espada, minha vista se

    avermelhou, como j acontecera outras vezes. Como poderia proteger meus

    homens se eles no me obedeciam? Makoto ignorara meu aviso diante daqueles

    soldados. Merecia morrer por isso. Quase perdi o controle e o cortei ao meio ali

    mesmo, mas na mesma hora ouvi rudos de cascos de cavalo a distncia,

    fazendo-me lembrar que eu tinha outros inimigos, e reais.

    Ele era um demnio, no era humano eu disse a Makoto. Voc

    no tinha como saber. Agora vai ter que lutar usando seu arco.

    Fiz um sinal para que os homens nossa volta se calassem. Ficaram

    como se tivessem virado pedra. Nem os cavalos se mexiam. A chuva tornara-se

    uma garoa fina. Sob aquela luz enevoada, parecamos um exrcito de fantasmas.

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    Ouvi os bandidos se aproximarem, chapinhando no cho molhado, e

    ento eles surgiram da nvoa. Eram mais de trinta a cavalo e o mesmo nmero a

    p. Formavam um bando diversificado, uma colcha de retalhos. Alguns eram

    visivelmente guerreiros mercenrios, com bons cavalos e armaduras que j tinham

    sido excelentes. Outros eram a ral: fugitivos de patres tirnicos de terras ou de

    minas de prata, ladres, lunticos, assassinos. Reconheci o homem que fugira da

    choupana. Ele vinha no estribo do cavalo da frente. Quando o bando parou,

    espirrando barro e lama para todos os lados, ele apontou para mim e gritou

    novamente alguma coisa ininteligvel. O cavaleiro berrou:

    Quem matou nosso amigo e companheiro Jin-emon?

    Sou Otori Takeo respondi. Estou conduzindo meus homens a

    Maruyama. Jin-emon me atacou sem motivo e pagou por isso. Deixem-nos passarou pagaro o mesmo preo.

    Volte para o lugar de onde veio ele rosnou. Aqui odiamos os

    Otori.

    Os homens que o rodeavam zombaram. Ele cuspiu no cho e brandiu a

    espada acima da cabea. Levantei a mo, fazendo sinal aos arqueiros.

    Imediatamente o rudo de flechas encheu o ar. um rudo assustador, o

    estalo e o chiado das hastes, o baque seco quando atingem a carne viva, os gritos

    do ferido. Mas eu no tinha tempo para refletir sobre isso, pois o chefe deles

    tocava seu cavalo e galopava na minha direo, com o brao esticado

    empunhando a espada.

    Seu cavalo era maior do que Shun e seu alcance maior do que o meu. As

    orelhas de Shun estavam voltadas para a frente, seus olhos tranqilos. Quando o

    bandido estava prestes a golpear, meu cavalo saltou para o lado e virou quase no

    ar, de modo que consegui atingir meu adversrio por trs, abrindo-lhe o pescoo e

    o ombro, enquanto ele batia em vo no lugar onde eu estava antes.

    Ele no era demnio nem ogro, era um ser humano como os outros. Dele

    jorrava sangue vermelho. Seu cavalo continuava galopando, ele balanou na sela

    at que, de repente, caiu de lado e foi ao cho.

    Enquanto isso, Shun, ainda muito calmo, deu meia-volta para ir ao

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    encontro do atacante seguinte. O homem estava sem elmo, e Jato dividiu-lhe a

    cabea ao meio, espalhando sangue, crebro e ossos. O cheiro de sangue nos

    envolvia, misturado a chuva e lama. medida que mais guerreiros entravam na

    briga, os bandidos iam sendo completamente esmagados. Os que ainda estavam

    vivos tentavam fugir, mas corramos atrs deles e os retalhvamos. A raiva

    levantara-se em mim durante todo o dia e chegara ao auge com a desobedincia

    de Makoto; agora encontrava alvio naquele conflito breve e sangrento. Eu ficara

    furioso com o atraso que aqueles sem-lei malucos tinham nos causado e agora

    estava profundamente satisfeito por eles terem sido castigados. No fora bem

    uma batalha, mas ns tnhamos vencido e sentamos gosto de sangue e vitria.

    Trs dos nossos homens tinham morrido e dois estavam feridos. Mais

    tarde, quatro mortes por afogamento me foram relatadas. Um companheiro deKahei, Shibata, do cl Otori, sabia um pouco sobre ervas e curas, e foi ele quem

    limpou e c