LIBERDADE DE IMPRENSA EM PORTUGAL: OS PRIMEIROS …...A vitória do ideal liberal transparece na...
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LIBERDADE DE IMPRENSA EM PORTUGAL: OS PRIMEIROS QUINZE
ANOS.
Marissol Barbosa de Souza Pinheiro.
Doutoranda em Ciências Histórico-Jurídicas
pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Introdução:
Após o Tratado de Tilsit de julho de 1807, Napoleão começava a pensar na
conquista da Península Ibérica. Com o Tratado de Fontainebleau em outubro de 1807,
estava tratada a repartição do território português entre a França e a Espanha. Este era o
cenário quando em 1807 Portugal era ameaçado pela invasão napoleônica. Pela primeira
e única vez na História um reino europeu transferiu sua capital para as Américas, mais
especificamente para o Rio de Janeiro, capital do Brasil. A mando de Napoleão, O
General Junot comanda a primeira invasão a Portugal, mas já não encontra qualquer
integrante da família real ou da nobreza. Todos partiram em 27/11/1807.
A Inglaterra tinha assegurado a escolta da família real portuguesa para o Brasil e
o domínio incontestável do Atlântico Sul. Portugal e Inglaterra mantinham relações
diplomáticas amistosas desde antes do Tratado de Windsor.
A primeira invasão francesa e única a abranger todo o território, visava afastar
Portugal da “influência maligna” inglesa. Na verdade, o objetivo era retirar Portugal da
área política e comercial da Inglaterra (TENGARRINHA, 2010, p. 9), verdadeiro e único
motivo para as outras duas invasões francesas que se seguiriam, ocupações militares
menores, em março de 1809 comandada pelo General Soult e outra em junho de 1810
pelo Marechal Massena.
Em 1808 houve alguma resistência, os invasores tinham saqueado o país. O
quadro apresentava alguns traços dominantes: o trono estava sempre vazio, os símbolos
do reino e da casa real tinham desaparecido, a demissão do governo nomeado pelo
príncipe, a extinção do exército português, a incapacidade dos invasores para promover a
legitimação do seu governo, a falta de unidade do comando militar ocupante, a
desorganização a fragmentação da nação e a inviabilidade de uma alternativa política
portuguesa (TENGARRINHA, 2010, p. 14). O exército português tinha sido reconstituído
ainda neste ano, integrado no exército inglês. No ano seguinte a presença inglesa tratava
Portugal como um campo de batalha e já os portugueses os comparavam aos invasores
franceses.
Nesse período entre 1808 e 1814 é registrado um aumento muito significativo da
imprensa, com registro de cerca de 2000 panfletos e 25 periódicos. Também é o primeiro
momento de alguma liberdade para a imprensa no país, um despertar de interesse pelos
assuntos públicos. Um sentimento de patriotismo emergiu durante a guerra e começaram
a ser vistos agrupamentos para discussões do que era publicado (RAMOS, 2012, p. 450).
O primeiro jornal diário português, o Diário Lisbonense é publicado em 01/05/1808, era
vendido por 20 réis, de conteúdo informativo e literário, como as notícias dos confrontos
na Europa e até notícias do Brasil (TENGARRINHA, 1965, p. 165).
Não era ainda uma liberdade de imprensa efetiva, e sim a criação de um
mecanismo controlado pelo governo e voltado para a formação da opinião pública em
consonância com os interesses sugeridos. Nesse sentido, apareciam os jornais satíricos
antifranceses, como O Lagarde Português e a Gazeta para depois do jantar
(TENGARRINHA, 1965, p. 162). Do lado dos invasores, a intensa propaganda visava o
apoio dos intelectuais e da população. Utilizaram para estes fins a Gazeta de Lisboa na
primeira invasão e o Diário do Porto na segunda. Todavia, há de se ter em conta que pelo
preço dos jornais a sua influência era limitada, logo, os invasores promoviam a publicação
de inúmeros panfletos espalhados por todo o lado (TENGARRINHA, 1965, p. 176).
A ordem de abertura dos portos do Brasil em 1808 entre outros fatores prejudica
o comércio externo português e a partir do Tratado de 1810 com a Inglaterra, Portugal
fica cada vez mais dependente. Os negócios feitos entre o Rio de Janeiro e Lisboa
passavam necessariamente por Londres, como centro mundial de negócios no qual havia
a maior confluência de informações. Neste cenário exsurge Londres como o grande centro
da imprensa em língua portuguesa. Os três principais periódicos deste jornalismo em
questões de qualidade e influência foram O Correio Brasiliense, o Português e o Campeão
Português (TENGARRINHA, 1965, p. 188). Ganham notoriedade em razão das
perseguições que sofrem tanto em Portugal quanto no Brasil, dado o seu conteúdo crítico
ao governo português e a difusão de ideias liberais.
Em 1810 são fundados apenas dois periódicos portugueses. Pelos fins de março
de 1811 quando da retirada completa das tropas francesas eram raros os jornais noticiosos
e as ideias liberais apareciam como solução para a crise instaurada. Entre 1811 e setembro
1820 foram fundados 32 periódicos, com grandes oscilações de números ano a ano em
razão das instabilidades constantes do período. O debate acerca da função social dos
jornais ganha vulto, como importante veículo destinado a propagação da cultura para fins
de progresso social (TENGARRINHA, 1965, p. 224).
Enquanto isso, a família real no Brasil era pressionada pela Inglaterra para
regressar a Lisboa e adota a estratégia de transformar o Brasil numa potência, no
equivalente aos Estados Unidos. Em 16/12/1815 o Rei funda o Reino Unido de Portugal,
do Brasil e Algarves, com igualdade entre os três Reinos. A pretensão, contudo, deixa o
Brasil com a economia extremamente vinculada a Grã-Bretanha (LABOURDETTE,
2008, p. 490).
Em Lisboa, um inconformismo com a situação, a bem da verdade, nenhum
português aceitava que Portugal corporificado numa monarquia dualista funcionasse à
sombra do Brasil. Beresford foi ao Brasil para tentar convencer o Rei a voltar, sem
sucesso, sob o argumento do Monarca que sua permanência decorria da necessidade de
preservar o Reino Unido instituído. A crise econômica e política era grave em 1816. O
ano seguinte seria ainda pior, de colheitas ruins, a miséria fora agravada
(LABOURDETTE, 2008, p. 491). Era imprescindível o retorno da família real.
Em 1817, dois Magistrados, Manuel Fernandes Tomás e José da Silva Carvalho,
os futuros protagonistas da tentativa de constitucionalizar a Monarquia Portuguesa,
conversavam sobre a Revolução acontecida em Espanha e o rumo similar que Portugal
tomava. Entenderam que deviam formar um partido que orientasse a revolução para a
regeneração da pátria. No ano seguinte formaram uma sociedade secreta chamada
Sinédrio, com o apoio de chefes militares influentes.
Em 24 de agosto de 1820 os regimentos do Porto e inúmeros populares em uma
missa seguida da fala dos chefes militares no sentido de convocação das Cortes para a
elaboração de uma Constituição (RAMOS, 2012, p. 455).
A Revolução Liberal é basicamente motivada por duas situações: um forte
nacionalismo que se insurge contra a ocupação britânica em Portugal e a ausência da
Corte portuguesa que se encontrava no Brasil (BOTELHO, 2013, p. 4). Estas motivações
eram ideias gerais, corroboradas por todos.
Formou-se uma junta provisória do Governo Supremo do Reino no Porto. Quando
a notícia chega a Lisboa a regência vigente tenta coibir a revolta, sem sucesso. Tanto a
população quanto os militares apoiavam a revolução. Em 15 de setembro de 1820 é criada
junta provisória de governo também em Lisboa. Por fim o diálogo entre as juntas e a
regência prevaleceu, e foi decidida a criação de dois órgãos: a Junta Provisória do
Governo Supremo do Reino que ficaria responsável pela Administração de Portugal de
forma interina e a Junta Provisória preparatória das Cortes, responsável pela formação de
uma Assembleia Constituinte (LABOURDETTE, 2008, p. 494).
O surgimento da liberdade de imprensa em Portugal
Primeira referência portuguesa a liberdade de imprensa é encontrada em leis do
Século XVII, mas só com o constitucionalismo que há o reconhecimento da liberdade de
imprensa, cuja efetividade só pode ser averiguada após a Lei de 1975.
Desde o dia 30 de agosto de 1820 era comum a divulgação de pasquins e outros
documentos favoráveis a Revolução Liberal. Publicavam no país à época apenas a Gazeta
de Lisboa, o Jornal de Coimbra e o Jornal Enciclopédico de Lisboa (TENGARRINHA,
2013, p. 318). O primeiro jornal que surge após a Revolução é o Diário Nacional, a 26 de
agosto como órgão não oficial da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino no
Porto. Em Lisboa surge em 15/09, com as mesmas funções, o Diário do Governo
(TENGARRINHA, 2013, p. 335).
Assim que o regime liberal é implantado, eclode o movimento jornalístico, que
alcança maior público e passa a influenciar as camadas urbanas que eram mais
politizadas. A imprensa vintista podia ser retratada como a luta absolutismo versus
constitucionalismo (TENGARRINHA, 2013, p. 114).
Mesmo na incipiente ordem liberal, logo o governo entendeu que era necessário
precaver para que os abusos não virassem um instrumento contra a ordem constitucional.
Limitar era preciso. Em 11/11/1820 são publicadas as instruções dirigidas aos periódicos,
de forma que nenhum poderia ser veiculado sem que o censor tivesse visto e rubricado
cada folha, cuja comprovação seria no final a frase com licença da comissão de censura
(TENGARRINHA, 2013, p. 350). Assim, em 06/12/1820 foi exarada portaria que
responsabilizava os editores de periódicos e outros papéis pelos ataques e insultos a
pessoas particulares quando em seus periódicos inserirem cartas, notas ou comunicações
anônimas (TENGARRINHA, 2013, p. 348).
Num primeiro momento, de importância vultuosa, não podemos esquecer nos
afastar do contexto dos anos de 1820. A implantação do liberalismo em Portugal é um
processo lento e difícil, tendo em vista a resistência dos absolutistas e as próprias
variações dentro dos ideólogos liberais. A Revolução de 1820 lança as sementes do
liberalismo na sociedade portuguesa. E nesse sentido, não há como falar do liberalismo
em Portugal sem mencionar sua História constitucional do país. Resultado da Revolução
Liberal no Porto de 1820, emerge o movimento constitucional português, que representou
a ruptura com o absolutismo monárquico anterior.
A Constituição Vintista de 1822, a primeira de Portugal. As principais fontes
inspiradoras da Constituição vintista foram a Constituição espanhola de Cádis (1812) e
as Constituições francesas de 1791 e de 1795. O procedimento constituinte foi o
democrático indireto, mediante uma Assembleia Constituinte soberana, denominada
como as Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes. A Constituição elaborada pelas
Cortes foi entregue para aceitação e juramento do monarca (BOTELHO, 2013, p. 232).
A vitória do ideal liberal transparece na inclusão da tríade do liberalismo já no art.
1.º: o objetivo maior de assegurar a liberdade, segurança, e propriedade de todos os
Portugueses. O rompimento com o antigo regime pode ser percebido no art. 26.º daquela
Constituição que consagrou a soberania nacional, retirando-a do monarca. Outra alteração
profunda no sistema diz respeito a alteração do conceito de legislação que deixa de ser a
vontade do monarca soberano para ser a expressão da vontade geral, na forma do
preâmbulo que propõe como finalidade a garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos,
o estabelecimento, a organização e a limitação dos poderes políticos do Estado. Apesar
da Constituição trazer tais inovações, algumas relações do Antigo Regime subsistiram,
como a não separação entre a Igreja e o Estado na forma do art. 17.º.
Especificamente quanto a liberdade de imprensa, as discussões no primeiro
parlamento português foram acaloradas e foram defendidos os mais diversos
posicionamentos: a favor da liberdade de imprensa plena, a favor da censura prévia por
razões políticas e religiosas e ainda uma possível conciliação, que também pugnava pela
censura prévia somente em matéria religiosa (GRAES, 2017, p. 141).
Já no primeiro debate na Sessão de 13/02/1821 destaque para a opinião de Castelo
Branco: se o indivíduo deseja realizar qualquer ação ele não procura um Magistrado para
pedir autorização, ele apenas fica responsabilizado pelos possíveis danos decorrentes. Por
que com a liberdade de pensar ou escrever seria diferente? (DIAS, 1978, p. 72). Quanto
a liberdade de imprensa e sua relação com o dogma religioso, pergunta: “Quem importa
que a força me constranja a mostrar-me aparentemente religioso se eu não o sou na minha
consciência?” (DIAS, 1978, p. 73).
Na mesma Sessão aduziu o Senhor Barreto Feio que apenas clamavam contra a
liberdade de imprensa aqueles que tinham interesse em manter o povo ignorante e
oprimido: Ministros de Estado, Magistrados e demais funcionários públicos (DIAS, 1978,
p. 87).
Outra questão que relevava era do estabelecimento do júri, ao passo que a
liberdade de imprensa podia ser convertida em plena censura na hipótese de ficar a cargo
de juízes (ALMEIDA, 2012, p. 1185).
Fora dos debates ilustrados, neste mesmo ano de 1821 os adeptos do absolutismo
vencido logo perceberam que na imprensa encontrariam os seus piores adversários. José
Agostinho de Macedo já chamava a imprensa crescente de “peste amarela dos negros
periodiqueiros” (TENGARRINHA, 2013, p. 318).
A 4 de julho de 1821 é promulgada a primeira lei de liberdade de imprensa, sem
qualquer censura prévia. A lei era ambiciosa e no seu primeiro artigo já assegurava a
qualquer pessoa imprimir, publicar, comprar e vender nos Estados Portugueses quaisquer
livros ou escritos sem censura prévia. Dez dias depois o Decreto de 14 de julho de 1821
cria o Tribunal Especial da Proteção da Liberdade de Imprensa, que seria previsto
replicado no art. 189º da Constituição de 1822. Um tribunal especial para coibir delitos
que dela podiam resultar com função de proteção da liberdade de imprensa (GRAES,
2017, p. 142).
No ano seguinte a Constituição de 23/09/1822 faz o mesmo, contudo ressalva os
abusos de liberdade no art. 8.º, suscetíveis de cometimento quando os textos envolvessem
religião, ou fossem contra o Estado, contra os bons costumes e contra os particulares.
Nestas hipóteses estariam configurados os abusos, sujeitos a pena de multa e prisão
(GRAES, 2017, p. 144). A previsão constitucional afirmava os dois alicerces liberais da
liberdade de imprensa: os jurados em primeira instância e o tribunal eleito pelas Cortes
em seguida (TENGARRINHA, 2013, p. 330).
A partir de então, Portugal fez previsão da liberdade de imprensa em todas as
constituições ou cartas constitucionais do século XIX. Espanha e Brasil assim também
fizeram. Obviamente que a garantia constitucional não significava liberdade efetiva na
prática (MESQUITA, 2006, p.131).
Durante todo o ano de 1822 o descrédito liberal era crescente e prova disto era a
popularidade de jornais como o Astro da Lusitânia, crítico ferrenho do governo
(TENGARRINHA, 2013, p. 342). Corroborando com isto, o relatório do secretário de
Estado da Justiça endereçado às Cortes em 02/12/1822 que identificava como um dos
principais motivos da instabilidade política o abuso da liberdade de imprensa,
principalmente por conta dos perigosos liberais exaltados, como o próprio Astro da
Lusitânia (TENGARRINHA, 2013, p. 354).
Registramos a sessão histórica para o Tribunal Superior de Proteção da Liberdade
de Imprensa de 28 de fevereiro de 1822 que, em cumprimento da ordem da Secretaria de
Estado dos Negócios da Justiça. Acerca do pedido de Almeida Garret para que processo
no qual era Réu em Beira por conta do poema Retrato de Vênus fosse transferido para
Lisboa. A 4 de outubro Garret foi julgado em Lisboa, atuando em defesa própria e com
absolvição. A sentença em causa teria mesmo referido que o impresso contendo o poema
não tinha cometido qualquer abuso da liberdade de imprensa. Todavia, após a Vila
Francada o poema voltaria a ser censurado sob pena de excomunhão ditada pelo cardeal
patriarca D. Carlos da Cunha. A vida do Tribunal foi efêmera, a sua última sessão seria a
14/03/1824, e seu contributo foi pouco relevante ou talvez inexistente para os anos
posteriores de discussão acerca do assunto (GRAES, 2017, p. 154).
A propósito da menção esclarecemos que em 23/02/1823 ocorre a revolta do
Conde Amarante em simultâneo com a Vila Francada do Infante D. Miguel, revoltas
motivadas pela insatisfação com o modelo vintista, causadoras de grande instabilidade
política. A sensação era de falhanço dos liberais, tendo em vista o descontentamento com
a independência do Brasil em 1822. Um dos objetivos da revolução liberal era restituir o
Brasil à dependência de Lisboa e já lá iam dois anos (FRANCO, 1993, p. 21). A Vila
Francada era dirigida principalmente contra a Constituição de 1822 que limitava os
poderes da Coroa, atentado aos fundamentos tradicionais da sociedade.
Como resultado, D. João VI revoga em 03/06/1823, a Constituição vintista, bem
como a Lei de Imprensa de 1821, com restituição imediata do sistema de censura prévia.
Na sequência, várias foram as medidas para cercear a liberdade de imprensa. Foi o marco
final do primeiro grande crescimento da imprensa periódica portuguesa: entre o
pronunciamento da Revolução Liberal em 24/08/1820 e este fatídico dia 03/06/1823
foram criados 112 jornais (TENGARRINHA, 2013, p. 320).
O Decreto de 12/06/1823 formalizou a restauração do sistema de censura prévia a
todos os escritos, dados os grandes males que a liberdade tinha permitido. Constituiu-se
por lei de 14/06/1823 a Comissão de Censura, formada por 5 membros em Lisboa e a
previsão de outras comissões de três membros em todas as terras nas quais tivessem
tipografias. O Ministro da Justiça ordena intimação neste mesmo dia a todos os
impressores de Lisboa (TENGARRINHA, 2013, p. 392).
A 13 de novembro do mesmo ano, novo decreto proibiu a assinatura e circulação
dos periódicos estrangeiros que eram considerados subversivos. Em 6/03/1824 a
liberdade de imprensa é revogada por um decreto que atribuiu novamente funções
censórias ao Desembargo do Paço e ao Ordinário, com o retorno da exigência de licença
prévia para a impressão de escritos a partir de três folhas, enquanto não fosse criado um
conselho de censores, na forma do §6º do Alvará de 30 de Julho de 1795 (GRAES, 2017,
p. 138).
Com o falecimento de D. João VI a 10/03/1826, D. Pedro IV ou D. Pedro I do
Brasil, outorgou a Portugal a 29/04/1826 uma Carta Constitucional e na sequência
abdicou da coroa de Portugal em favor de sua filha de 6 anos, D. Maria da Glória. A Carta
Constitucional não pode ser entendida exatamente como uma constituição, ao passo que
é concebida de forma autoritária pelo próprio Monarca em autolimitação do poder real,
numa concessão aos súditos da limitação dos seus poderes. Diferença óbvia com as
efetivas Constituições que são elaboradas pelo povo ou seus representares para limitar o
poder do Estado (BOTELHO, 2013, p. 236).
Assim, a Carta Constitucional de 1826 foi decretada, dada pelo Rei e ordenado
seu juramento pelas três ordens do Estado. Este ritual foi feito para afirmar o poder
constituinte originário deslocado para o Rei. A Carta reconhecia 4 poderes: legislativo,
executivo, judicial e moderador (privativo do Rei – Chefe supremo da Nação), com alusão
a Ideia de Harmonia entre os poderes solidária ao poder moderador, tal e qual a lição de
Benjamin Constant (MESQUITA, 2006, p. 123). Outras influências na Carta
Constitucional de 1826 foram a Carta brasileira de 1824 e a Carta francesa de 1814
(BOTELHO, 2013, p. 235).
Francamente destinada a reforçar a autoridade real, dispôs a Monarquia como
elemento essencial para o sistema constitucional. Deu-lhe liberdade para a escolha dos
ministros e poder de intervenção no legislativo, visto que era responsável pela nomeação
dos Pares do Reino, vitalícios, hereditários e sem número total fixo. Esta Câmara dos
Pares é criada para balancear elementos de democracia e aristocracia, para servir de
intermediária entre o Rei e os representantes eleitos da Câmara dos Deputados (art. 34.º),
tendo em vista o bicamaralismo. Garantiu também a Monarquia o poder de dissolução
das Cortes e veto absoluto dos diplomas destas mesmas Cortes (MESQUITA, 2006, p.
120).
A carta teve uma vigência longa, de quase sete décadas, consideradas algumas
interrupções, provavelmente por ter certo tom de conciliação entre a ideia de soberania
nacional, defendida pela esquerda liberal, e a intenção de fortalecer os poderes reais,
posição assumida pela direita absolutista e pela direita liberal conservadora (BOTELHO,
2013, p. 235).
A trinca “liberdade, segurança e propriedade” foi disposta no extenso e último
artigo 145.º numa tentativa de desmerecê-la, antagonismo a Constituição de 1822.
Também neste último artigo, o §3.º e a previsão da liberdade de imprensa, com
afastamento da censura e responsabilização no caso de abusos com regulamentação
posterior. Instituído novamente júri e processo específico para a apreciação dos abusos
resultantes (GRAES, 2017, p. 145).
Neste período o confronto político na imprensa girava em torno dos
constitucionalistas e realistas, cuja questão central era a legitimidade dos direitos dados a
coroa e o testamento aberto de D. João VI que mencionava apenas o legítimo herdeiro.
Realistas estavam a favor de D. Miguel. Ainda em 1826 verificamos o surgimento do
primeiro jornal popular de sucesso, o Periódico dos Pobres de Lisboa, vendido a dez réis,
publicado até 1846 e que chegou a ter cinco mil assinantes. O jornal podia ser considerado
efetivamente um jornal político-noticioso popular em razão do preço muito mais baixo
do que os praticados pelos jornais mais elitistas que custavam 60 réis no mínimo. A
postura era de defesa da Carta Constitucional (SOUSA, 2008, p. 23).
Vigorava até então a legislação restabelecida pela Vila Francada, o Decreto de
06/03/1824 que repristinava a Carta de Lei de 17/12 de 1794 e um alvará de 1795. E em
18/08/1826 novo decreto criou a já referida comissão de censura com 12 membros, com
cada censor responsável por um ou mais periódicos, enquanto o Desembargo do Paço se
ocupava da censura literária. A nomeação de determinados censores para determinados
jornais, a fim de extingui-los e a falta de censores suficientes fazia com que os jornais
ficassem longo tempo sem publicação (TENGARRINHA, 2013, p. 406).
Apesar do sistema de censura criado e em funcionamento, houve certo incremento
no número da publicação de periódicos, cerca de 20 apenas no mês de setembro deste ano
de 1826 (CARDOSO; CARDOSO; FIGUEIREDO, 2005, p. 20). No mês seguinte, a
30/10/1826, o lançamento do Portuguez por Almeida Garret, Paulo Midosi e João A. dos
Santos, cuja missão era explícita de defender o sistema constitucional, imparcial e sem
partido, com objetivos francamente liberais, principalmente na consolidação reta e legal
das públicas liberdades, entre elas a liberdade de imprensa e de expressão (MESQUITA,
2006, p.125).
A falta de pessoal e até mesmo o medo dos censores com o presente incerto fez o
funcionamento desse sistema oscilar e a instabilidade obviamente influenciou. O governo
emitiu instruções para a censura priorizar a ordem constitucional entre agosto de 1826 e
janeiro de 1827 (TENGARRINHA, 2013, p. 412).
A crise no sistema persistia e a infanta Regente Isabel Maria demitiu censores que
não atentaram para o escrito “Apologias da anarquia”. Em agosto do mesmo ano, o
Portuguez é suspenso sob a alegação de que publicara doutrinas contra a conservação do
sossego público. O jornal ressurge em 14 de setembro, mas alguns dias depois os
redatores e entre eles Almeida Garret são presos na cadeia do Limoeiro, por terem
incitado tumultos na cidade de Lisboa com seus escritos de 24, 25 e 26 de julho. A prisão
de Garret se estende por três meses1.
Após estes primeiros meses de 1827 o número de jornais criados diminuiu. A
influência dos adeptos do absolutismo ressurge e são criados 7 periódicos absolutistas,
com opiniões mais explícitas (TENGARRINHA, 2013, p. 416).
Neste mesmo ano, D. Miguel celebra esponsais com a sua sobrinha e filha de D.
Pedro, D. Maria da Glória e jura a carta ainda no seu exílio em Viena. A fevereiro de
1828, D. Miguel chega a Lisboa e assume suas funções de regente. Logo em seguida
dissolve as cortes liberais e convoca as cortes gerais segundo a tradição. A trama
absolutista estava costurada e sua imprensa exaltada, sobremaneira a Gazeta de Lisboa
proclamava que esta era a única solução.
Em 11 de julho os Três Estados o “reconhecem” como Rei. Como de costume,
sua ascensão ao poder significa extinção da liberdade de imprensa. A censura é reforçada
pela promulgação de Decreto de 16 de agosto, com a devolução da função censória total
ao Desembargo do Paço, sob tutela do poder régio. Os escassos jornais exaltavam o
Miguelismo e atacavam ferozmente inimigos (CARDOSO; CARDOSO; FIGUEIREDO,
2005, p. 20). A situação voltava a ser como era antes de 1820, de censura densa e acirrada,
nada podia colocar em causa a nova ordem que ovacionava os valores tradicionais. Penas
severíssimas eram aplicadas, os jornais vigiados, jornalistas que tinham se declarado
liberais eram perseguidos, presos, condenados. A imprensa se cala, o debate praticamente
inexiste. Metade das escolas são fechadas (TENGARRINHA, 2013, p. 441). A população
não devia pensar muito...
Na constância do Miguelismo, apesar de todo o derramamento de sangue, 42
periódicos foram criados em Portugal. Registramos também assinatura em 19/12/1832
de portaria extremamente a favor das liberdades públicas por Joaquim Antonio de
Magalhães, cuja ordem para a Comissão encarregada da criação do Código de Delitos e
Penas e de outro para o Comércio, elaborasse também projeto de decreto para regular o
exercício da liberdade de imprensa2.
1VARGUES, Isabel – Tesoura, rolha e lápis, p. 42. 2CARQUEJA, Bento - A liberdade de imprensa, p. 34.
D. Pedro tinha abdicado do trono do Brasil em 1831 em favor do seu filho e volta
a Europa, onde reúne forças liberais e as lidera na invasão que derrota em definitivo D.
Miguel que vai para Santarém e depois sai do país para jamais voltar. Quando D. Pedro
toma Lisboa, em 24/07/1833, é criado periódico como órgão oficial do governo, Crônica
Constitucional de Lisboa que se ocupa de fazer publicações até 30/06/1834.
Já em 07/01/1834 é publicado outro decreto que força a atuação da comissão de
exame e revisão dos escritos a serem publicados pela imprensa com a função de evitar a
publicação de quaisquer escritos que contivessem palavras injuriosas ou ofensivas3.
D. Miguel é derrotado por D. Pedro4 ao fim de quase dois anos de guerra civil e é
assinada a Convenção de Évora – Monte em 26 de maio de 18345. D. Maria II assume o
reinado ainda em 1834 após a morte de D. Pedro em setembro e nomeia Palmela para
Primeiro-Ministro. Restaurada a Monarquia Constitucional que vigorará em Portugal até
a Revolução Republicana de 1910. É inaugurada uma fase de efetiva implementação do
liberalismo6. A luta pelo poder passa a ser travada entre liberais, entre
constitucionalistas...
Observações conclusivas:
Iniciamos nosso estudo com a introdução acerca do período de circunstâncias
extraordinárias imediatamente anterior ao estudado com referências ao ocorrido na
imprensa periódica. A Europa havia passado por acontecimentos nunca dantes vistos e
impactantes, como a Revolução Francesa de 1789 e a queda definitiva de Napoleão em
1814. Nesse sentido ousamos um momento introdutório que também abarcasse o
contextual da realidade portuguesa pré-vintismo e dos motivos que levaram a Revolução
Liberal de 1820.
Desde o início das nossas leituras compreendemos que o conceito de liberdade
atual é construído no liberalismo. Passo seguinte, definimos a liberdade de expressão,
compreendida até hoje como um direito mãe que engloba outras liberdades, inclusive a
de imprensa. A liberdade de expressão engloba a liberdade de pensamento, pela
3CARQUEJA, Bento - A liberdade de imprensa, p. 34. 4 Sobre a rivalidade entre os irmãos, caricatura de Daumier, vide anexo II. 5ALBUQUERQUE, Martin; ALBUQUERQUE, Rui – História do Direito português, vol. II, p. 202. 6ALBUQUERQUE, Martin; ALBUQUERQUE, Rui – História do Direito português, vol. II, p. 203.
obviedade de ser impossível existir a liberdade de emissão do pensamento sem a liberdade
de pensar. A liberdade de imprensa foi constitucionalizada e se trata de forma mais
específica da liberdade de expressão. O surgimento desta liberdade de imprensa no mundo
e em Portugal é num contexto de luta contra o Absolutismo Monárquico.
Este período marca a queda do Antigo Regime e a implementação do liberalismo.
Pareceu-nos arrazoado estudar tal momento crucial numa atualidade tão eloquente quanto
ao neoliberalismo e que todos misturam liberalismo político e econômico com
libertinagem na conduta moral. O surgimento da imprensa periódica oferece os alicerces
para o entendimento da política e de como a legalidade não significava efetividade ou
segurança dessa liberdade.
O estudo aborda a História Constitucional Outro motivo mais que
pertinente para o nosso estudo é a negação do holocausto o neonazismo e outras filosofias
que exsurgem vez por outra com argumentos de liberdade de expressão ou de imprensa
absolutas. Voltar ao nascimento dessa liberdade significa a quão cíclica é a História e
como vez por outra temos de revisitar o passado e as construções de um direito para
compreender sua existência fática.
Demonstramos a intensa produção constitucional de 1820 a 1834, inclusive:
deparamo-nos com dois textos constitucionais, 1822 e 1826. Ressaltamos a peculiaridade
da Carta de 1826, outorgada pelo Rei, não podendo ser considerada efetiva Constituição.
Realizamos estudo das motivações e inspirações contextualizadas. Ambos previam a
liberdade de imprensa em seus textos.
Sobre a Constituição Vintista, salientamos os intensos debates sobre a liberdade
de imprensa que sempre observaram a responsabilização nos abusos do exercício. Ainda
neste primeiro texto constitucional, percebemos a consagração dos dois alicerces liberais
da liberdade de imprensa, quais sejam, o júri competente pelo julgamento em primeira
instância e a competência recursal de um tribunal eleito pelas Cortes. A Carta de 1826
manteve o júri e determinou rito específico os crimes de abuso da liberdade de imprensa.
A velocidade e intensidade do século XIX junto com o desenvolvimento da
imprensa como setor produz intensa legislação sobre o tema. Inobstante as previsões
constitucionais de liberdade, sobre as leis, desconsideradas sucessivas prorrogações de
suspensões, encontramos ao menos sete leis ou decretos que abordam a liberdade de
imprensa no período. Limitaremos aqui a menção das datas como comprovação do
número aduzido: 04/07/1821, 12/06/1823, 13/11/1823, 06/03/1824. 18/08/1826,
16/08/1828 e 07/01/1834.
Frisamos algumas situações. Depois da tentativa vintista da liberdade, a
restauração da censura prévia em 1823 com estabelecimento de comissão de censura
demonstra claro retrocesso. No ano seguinte a devolução de funções censórias ao
Desembargo do Paço e repristinação de legislação do século anterior denota mais uns
passinhos no sentido contrário da liberdade.
O estudo da imprensa periódica no Século XIX faz entender que este foi veículo
privilegiado na luta político ideológica daquele momento de quebra de paradigma, de
forma que a história do regime liberal e de Portugal passa necessariamente pela história
da liberdade de imprensa. O estudo daquela ordem jurídica na qual se inseria a liberdade
de imprensa oitocentista auxilia no entendimento do embate entre o projeto liberal
burguês e o antigo regime, bem como nas contradições até mesmo entre os liberais.
Para a atualidade brasileira, esse estudo auxilia no entendimento do embate fake
news x perseguição à imprensa oposicionista. Com a revolução tecnológica, a imprensa
mudou, mas a ordem democrática não sobrevive com a extinção da sua liberdade. Notícias
falsas precisam ser coibidas e seus autores punidos. Injúria, calúnia e difamação ainda
são condutas penais tipificadas e ensejam responsabilização. Nenhum direito é absoluto.
Mas isso não significa que a imprensa não deva ser livre. Responsabilização sempre.
Cerceamento da liberdade de imprensa? Nunca.
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