Libertar o trabalho
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Libertar o trabalho e libertar-se do trabalho
Antoine Artous | tradução de Helena Romão
«A emancipação do trabalho»: a fórmula é tão velha quanto o movimento operário e
parece evidente. E, no entanto, carrega em si um equívoco desde o início. Como se a
emancipação do trabalho face à tutela do capital trouxesse, por si só, a emancipação
dos produtores. A emancipação é um conceito poderoso no movimento operário do
século XIX, dominado ainda pelas formas artesanais de produção. O capital aparece
então como uma personagem que se contenta em tomar o controlo das ferramentas de
trabalho e da experiência do proletário. Centrar a sociedade no trabalho emancipado
permite a emancipação do produtor e, consequentemente, da humanidade, uma vez que
o produtor é o seu representante. Esta temática vem a encontrar-se no século seguinte,
quando o movimento operário se enraíza na grande indústria.
De resto, ao sublinhar este equívoco não se pretende virar a página sobre quase dois
séculos de história das lutas operárias. É certo que a dominação do capital sobre a
produção é marcada por um movimento incessantemente repetido de desapossamento da
inteligência operária necessária à implementação do processo de produção. E a
emancipação do trabalho continua na ordem do dia. Simplesmente, já não é hoje
possível reformular um projeto de emancipação sem retomar criticamente a
problemática que leva a crer que a emancipação do trabalho carrega em si mesma a
emancipação dos indivíduos. Se quiséssemos resumir este projeto numa frase, diríamos
que se trata de libertar o trabalho, libertando-se do trabalho.
A propósito da centralidade do trabalho
A crise das formas ditas «fordistas» de acumulação do capital reativou estes debates,
que têm a ver com uma análise da evolução dos sistemas de produção e das formas
salariais. Ou seja, os debates relacionados com o trabalho, entendido sobretudo não
como uma atividade, mas como uma relação social; neste caso, a relação social
capitalista. A definição do próprio trabalho deu aliás lugar a numerosas discussões, o
que demonstra a profundidade da crise das antigas figuras sociais do trabalho.
Não voltarei ao tema do dito «fim do trabalho» nem ao da «centralidade do trabalho»,
que são frequentemente apresentados como opostos. O discurso sobre a perda de
centralidade do trabalho é, na sociedade atual, perigoso, ainda que as suas formas de
representação tenham mudado (e, consequentemente, o trabalho nas suas formas
concretas) e que exista (há alguns anos), sem margem para dúvidas, uma crise das
antigas formas de identidade «operárias».
Mas, enquanto relação social, o trabalho é sempre central, não apenas do ponto de vista
económico, mas igualmente do ponto de vista da socialização dos indivíduos. É, aliás,
por essa razão que a batalha pelo direito ao emprego continua a ser uma questão
decisiva, assim como as batalhas pela crítica da organização capitalista do trabalho, que
opõem a esta última formas de trabalho que os indivíduos devem poder controlar e nas
quais se possam realizar.
No entanto, autores como André Gorz (1988, 1997) e Dominique Méda acrescentaram
outro aspeto. Sublinharam que o movimento operário, no passado, valorizou
sistematicamente o trabalho enquanto quadro de emancipação, mas também que esta
problemática tem raízes no próprio Marx, já que para ele o trabalho representava a
«essência do homem»: a emancipação do trabalho era portanto sinónimo da
emancipação dos indivíduos. Creio que este é um problema real que não podemos
afastar dizendo simplesmente que se trata de uma versão estalinista do marxismo. Esta
ideia marcou também as correntes marxistas radicais, ainda que seja entre elas que
encontramos em geral autores críticos desta abordagem; entre eles, desde os anos
cinquenta, Pierre Naville (1970) e mais tarde Jean-Marie Vincent, sobretudo na sua
Crítica do Trabalho1
.
Desta forma, as discussões entrecruzam-se. O livro Tempo, trabalho e domínio social,
de Moishe Postone (EUA, 2003), foi recentemente traduzido para francês. Apresenta-se
como «uma reinterpretação da teoria crítica de Marx» e é de grande interesse para o
debate. No entanto, segundo ele, deve rejeitar-se toda a problemática de emancipação
do trabalho (logo, dos trabalhadores). Deve ser simplesmente abolida — sem indicar
como —, uma vez que mais não é que a outra face do capital (Artous 2009)2. Neste
ponto, gostaria de voltar às relações que Marx estabelece entre emancipação e trabalho.
Ou melhor, sobre uma dessas perspectivas, na qual Marx, justamente, não faz recair a
emancipação dos indivíduos sobre a emancipação do trabalho, pelo contrário, insiste
firmemente no desenvolvimento do «tempo livre». Tomarei como ponto de partida
algumas citações de Marx para as comentar. Não se trata de restabelecer o que seria
uma ortodoxia marxista, como acontecia por vezes no passado. Trata-se somente de
sublinhar a atualidade existente em alguns textos de Marx. Não é tarefa inútil nos
tempos que correm…
Trabalho e «reino da liberdade»
É na conclusão do livro III de O Capital que Marx melhor define esta perspectiva: «Na
verdade, o reino da liberdade começa apenas no momento em que cessa o trabalho
ditado pela necessidade e os fins exteriores: situa-se, portanto, pela sua própria natureza,
além da esfera da produção material propriamente dita. Tal como o homem primitivo, o
homem civilizado vê-se forçado a medir forças com a natureza para satisfazer as suas
necessidades, conservar e reproduzir a sua vida: esta restrição é verdadeira para o
homem, em todas as formas de sociedade e sob todos os tipos de produção. Com o
desenvolvimento, este império da necessidade natural alarga-se, porque as necessidades
se multiplicam; mas ao mesmo tempo o processo produtivo desenvolve-se para as
satisfazer. Nesta medida, a liberdade não pode consistir senão no seguinte: os
produtores associados - o homem socializado - regulam os seus intercâmbios orgânicos
com a natureza de forma racional e submetem-nos ao seu controlo comum, em vez de se
deixar dominar pela sua força cega; gastam o mínimo de energia possível na sua
implementação, com as condições mais dignas e conformes à natureza humana. Mas o
império da necessidade subsiste. É para além dele que começa a realização da força
humana, que é o seu próprio objetivo, o verdadeiro reino da liberdade que, no entanto,
apenas pode florescer com raízes assentes no reino da necessidade. A redução do tempo
de trabalho é a condição fundamental desta libertação» (PL 2: 1487).Noutros textos
Marx introduz uma ideia bem diferente. Assim, nos Manuscritos de 1844 afirma que o
trabalho é a «essência» do homem. O trabalho é a atividade através da qual os
indivíduos se realizam enquanto seres humanos, no sentido estrito do termo. É
necessário compreender o sentido destas formulações. Marx não explica apenas que o
trabalho é uma atividade entre outras, na qual os indivíduos devem poder realizar-se. Se
fosse o caso, naturalmente que a afirmação não seria problemática. O que o jovem
Marx explica é que o trabalho é a atividade humana por excelência, aquela que permite
expressar a individualidade daquele que a exerce. Mas, sob a dominação do capital e da
propriedade privada, o trabalho transforma-se no oposto, torna-se uma atividade
alienada. O trabalho e o seu produto deveriam permitir a realização do homem enquanto
ser humano, mas, ao invés, tornam-se formas estranhas aos indivíduos. Pelo contrário,
com a supressão do domínio do capital, o trabalho não alienado será «uma manifestação
livre da vida, um prazer da vida», explanam os Manuscritos de 1844 (PL 2: 33). Em A
Ideologia Alemã, escrito em 1845-46, Marx põe em causa a palavra alienação, que julga
demasiado filosófica, mas mantém a perspetiva de «transformação do trabalho em
atividade livre» (ES: 82). Por esta razão, neste texto, Marx considera que a perspetiva
da revolução comunista não apenas é sinónimo de abolição do regime de assalariado,
mas também de supressão do trabalho.
De resto, sem entrar em detalhe, esta é uma questão recorrente em Marx, mesmo depois
de O Capital. Num dos seus últimos textos «testamentais», A Crítica ao Programa de
Gotha (1875), em que critica vivamente a recente social-democracia alemã na
valorização que faz do trabalho, Marx fala da transformação do trabalho em
«necessidade básica da vida», considerando a presente sociedade de abundância. De
facto, se o trabalho é o modelo de atividade livre através da qual os indivíduos se
realizam enquanto seres humanos, então deixa de ser uma atividade individual e torna-
se a atividade humana por excelência. A produção deixa de ser uma atividade
específica, distinta das restantes atividades sociais, tal como aparece claramente na
citação do livro III de O Capital. Torna-se, ao invés, o lugar em torno do qual se
organiza o conjunto da vida social.
Compreendemos que a temática do trabalho alienado permite uma crítica radical à
organização capitalista do trabalho, não apenas ao nível da exploração dita
«económica», mas também na forma como o trabalho capitalista mutila os indivíduos.
Mas ela é igualmente portadora de uma utopia no mau sentido do termo: a utopia da
transformação do trabalho em modelo de atividade livre, através da qual os indivíduos
se realizam enquanto seres humanos (Artous 2003: 35). Isto pode ter consequências na
perspetiva de emancipação apresentada. Se o horizonte é o da «transformação do
trabalho em atividade livre», e se pensarmos que, ao nos desembaraçarmos do domínio
do capital as atividades de produção irão tornar-se no lugar por excelência onde os
indivíduos vão poder realizar-se enquanto seres humanos, então a sociedade
emancipada deve organizar-se inteiramente em torno do trabalho e a figura do indivíduo
emancipado deve cristalizar-se na do trabalhador. De forma mais imediata, a afirmação
segundo a qual o trabalho é a essência do homem permite justificar, pelo menos no
domínio filosófico, a valorização do trabalho que se desenvolveu no movimento
operário, ainda que Marx seja crítico neste aspeto. No fim do século XIX, a voz de Paul
Lafargue, genro de Marx, e que proclama O Direito à Preguiça, está bastante isolada.
Conservar e reproduzir a sua vida
De qualquer forma, na passagem de O Capital que acabo de citar, a ideia de Marx é bem
diferente. No mesmo período, no manuscrito de 1857-58, também conhecido como
Grundrisse, Marx explica que, ao contrário do que diz Fourier (um «socialista utópico»
da época), o trabalho nunca será uma diversão, ou seja, uma atividade livre no sentido
estrito do termo. E, no entanto, a afirmação de que o trabalho, as atividades de produção
pertencerão sempre ao «reino da necessidade» não significa que a liberdade seja
totalmente excluída deste domínio. É certo que o trabalho nunca será uma diversão, mas
é possível e necessário que a atividade económica, os intercâmbios entre os homens e a
natureza sejam submetidos ao seu controlo comum. E isto é naturalmente decisivo em
relação a um autor como André Gorz, para quem o trabalho será sempre uma atividade
«heterónoma», no sentido em que os coletivos de trabalhadores nunca terão condições
para implementar um verdadeiro controlo dos processos de produção3. Para isso, é
preciso pôr em causa a organização capitalista da produção e o domínio do mercado em
benefício da perspetiva da apropriação coletiva dos meios de produção pelos
«produtores associados». É certamente necessário retomar de forma crítica as
experiências de «socialismo realmente existente» e reformular uma apropriação social
da produção. Os debates a este propósito prolongam-se aliás há vários anos. Neste ponto
quero apenas sublinhar a forma como Marx fala nesta passagem da perspectiva de uma
produção socializada, que supõe um confronto com a natureza para satisfazer as
necessidades humanas. Com efeito, face ao balanço do «socialismo realmente
existente», acusámos frequentemente o marxismo de ser portador de um produtivismo
exagerado, de pôr uma industrialização massiva no centro do desenvolvimento social,
sem ter em conta as questões ambientais e com base numa visão puramente instrumental
das relações entre o homem e a natureza. Não se trata de negar este balanço do
«socialismo real», nem de evitar um retorno crítico a Marx sobre esta questão, nem
sequer, de forma mais geral, de um tratamento das relações entre «marxismo» e
«ecologia». De qualquer forma, a passagem do livro III de O Capital que citei não
depende da problemática produtivista.Não é certamente por acaso que Marx desenvolve
esta abordagem em passagens em que, justamente, a sua perspectiva de emancipação
não se centra sobre o aparecimento do homo faber, de uma sociedade que permita
finalmente o pleno desabrochar de todo o poder produtivo dos homens através de uma
industrialização sem limites e um completo domínio sobre a natureza. De forma mais
modesta, trata-se de os homens regularem os intercâmbios orgânicos com a natureza de
forma racional, gastando «o mínimo de energia possível na sua implementação, com as
condições mais dignas e conformes à natureza humana». Hoje poderíamos retomar estas
formulações tal e qual. O confronto com a natureza para satisfazer as necessidades
humanas ainda é indispensável. Em alternativa, teríamos que contentar-nos com o ritmo
das estações e alimentar-nos da recolha. Mas este intercâmbio deve ser organizado «de
maneira racional». Em suma, a liberdade consiste aqui na organização da produção de
forma racional e controlada pelos «produtores associados».
Dialética do tempo de trabalho e do tempo livre
Trata-se, portanto, do desenvolvimento do tempo livre. Falta saber o que se entende por
tempo livre. Já explicamos que, em certas passagens dos Grundrisse em que aborda esta
visão, Marx antevia a «civilização do lazer» que viria a desenvolver-se a partir da
segunda metade do século XX. Poderíamos salientar que esta «civilização do lazer»
apenas diz respeito a uma parte ínfima da humanidade. Mas deixemos de lado esta
questão. Estes discursos sobre a «civilização do lazer» são testemunho das novas
necessidades trazidas pelo desenvolvimento do próprio capitalismo.
Esta «civilização do lazer» é inegavelmente estruturada inteiramente pelo capital. Não
só por se ter tornado numa esfera de atividade social organizada pelo capital — o capital
produz lazer da mesma forma que outros objetos de consumo —, mas também porque o
tempo livre do lazer capitalista é completamente dissociado do tempo de trabalho. Mais
precisamente, apenas existe como oposto do tempo de trabalho. O tempo livre não é
mais que um tempo de repouso para que a força de trabalho «recupere», antes de se
sujeitar novamente ao trabalho capitalista.
Nos Grundrisse, Marx faz uma abordagem completamente diferente, premonitória, uma
vez que contém precisamente uma crítica à «civilização do lazer»: «Ao reduzir o tempo
de trabalho ao mínimo, o capital contribui a contragosto para criar tempo social
disponível ao serviço de todos, para que cada um aproveite. […] A economia do tempo
de trabalho significa um aumento do lazer para a plena realização do indivíduo que,
como força produtiva suprema, tem especial influência sobre a força produtiva do
trabalho. […] É evidente que o tempo de trabalho seguinte não poderá ser sempre
considerado o oposto do tempo de lazer, de forma abstrata, como acontece no sistema
burguês. […] O tempo livre — que é simultaneamente lazer e atividade superior —
transformará naturalmente o seu possuidor num sujeito diferente, e é na qualidade de
novo sujeito que entrará no processo da produção seguinte» (PL 2: 307, 310, 331).
Se reparamos, Marx não contrapõe de forma automática o tempo «extra-trabalho», o
único que permite o princípio do «reino da liberdade», ao tempo de trabalho, durante o
qual nenhuma liberdade seria possível. Pelo contrário, como lemos na citação do livro
III de O Capital, é possível introduzir liberdade na esfera da produção. Neste ponto seria
interessante um debate mais geral sobre as noções de liberdade e necessidade. A
oposição não é tão radical quanto a formulada por Marx nas primeiras frases da citação.
Há formas de «necessidade» nas atividades fora do tempo de trabalho, nem que seja
porque dizem respeito a indivíduos inscritos em relações sociais e não a indivíduos
isolados. E sabemos, desde Freud, que o inconsciente também estrutura o indivíduo. Na
verdade, as categorias de liberdade e de necessidade são relativas. Não têm existência
senão na relação entre ambas.
Este é o raciocínio de Marx. Desta forma, como lemos, ele não contrapõe «tempo de
trabalho seguinte» e «tempo livre». O segundo permite ao indivíduo entrar no processo
seguinte de produção «na qualidade de novo sujeito»; e também é um meio de
introduzir liberdade na esfera da produção. Em suma, a problemática de emancipação
traçada por Marx é a de uma «dialética do tempo de trabalho e do tempo livre», segundo
a formulação de Ernest Mandel (1967).
«Tempo social disponível ao serviço de todos»
Quando, na citação dos Grundrisse acima transcrita, Marx explica que o capital reduz ao
mínimo o tempo de trabalho, não se refere obviamente ao tempo de trabalho do
assalariado, mas sim ao tempo de trabalho necessário para produzir objetos e serviços.
Esta tendência é que permite «criar tempo social disponível ao serviço de todos, para
que cada um aproveite». No entanto, trata-se apenas de uma possibilidade em aberto
para cuja criação, como escreve Marx, «o capital contribui a contragosto». Pelo
contrário, numa sociedade socialista o desenvolvimento desta tendência deve ser
central.
Como vimos, Marx definiu aquilo que deve entender-se por tempo livre. É o tempo
extra trabalho que a sociedade dos «produtores associados» decide encontrar para os
indivíduos que a compõem. Isto pressupõe naturalmente uma avaliação democrática das
necessidades a satisfazer pela produção socializada e da importância do tempo livre.
Este tempo extra trabalho não é apenas de lazer, no sentido clássico do termo, nem de
um período durante o qual o indivíduo se dedica a atividades particulares. Trata-se
igualmente do «tempo social ao serviço de todos»; ou seja, um tempo que permite aos
indivíduos participar na vida da cidade, para voltar à formulação consagrada. Tempo
livre «individual», «para que cada um aproveite», e «tempo social disponível ao serviço
de todos» não se opõem, porque a perspectiva de Marx é a de uma sociedade «onde o
livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos»,
como escreve no Manifesto do Partido Comunista.
O tempo livre, neste entendimento, ocupa um lugar essencial na definição dos grandes
contornos de uma sociedade socialista, porque permite aos indivíduos participar em
pleno na vida democrática que a rege, mas não só. Veja-se, a título de exemplo, as
relações homem/mulher e as diferenças de dominação que ali se cristalizam;
nomeadamente na organização do trabalho doméstico e na educação das crianças. Não
podemos contentar-nos — mesmo que isso seja determinante — em pensar na
implementação de serviços públicos que se encarreguem de algumas necessidades. É
preciso pôr em causa as divisões de tarefas tradicionais homem/mulher nestas
atividades. O desenvolvimento do tempo livre extra trabalho é um elemento chave para
o conseguir.
Por outro lado, esta problemática da emancipação, quando vista através de uma dialética
do tempo de trabalho e do tempo livre, leva a uma série de questões mais gerais acerca
da organização de uma sociedade socialista. Na citação do livro III de O Capital, Marx
fala dessa sociedade como sendo aquela dos «produtores associados». Podemos retomar
esta formulação se especificarmos que por produtor se entende o conjunto dos
trabalhadores que produzam bens materiais ou serviços. A observação não resolve, no
entanto, todos os problemas, nomeadamente no que respeita à organização do poder
político da sociedade dos «produtores associados».
O movimento operário, sobretudo as suas correntes radicais, tiveram desde o início a
tendência para defender uma perspectiva de gestão democrática da produção, mas
também para orientar a organização do poder político para a produção socializada. «O
governo será a oficina», proclamava o sindicalismo revolucionário. Por conseguinte, a
tradição comunista revolucionária com origem na Revolução Russa de outubro de 1917
reclamou ser uma democracia dos conselhos operários, cujas estruturas de base
deveriam estar enraizadas na produção. Em suma, a questão acima assinalada é a de
uma ótica que tende a pensar a emancipação através de uma reorganização do conjunto
da vida social, em torno da produção finalmente liberta da dominação do capital.
O progresso da democracia na produção é uma questão central. Todavia, a perspectiva
de uma democracia socialista autogestionada não deve reduzir-se a uma forma de poder
cujas estruturas de base estão radicadas na produção e a uma forma de democracia que
dissolve a cidadania, na qualidade de categoria universal, na figura «sociológica» do
produtor. É indispensável a referência a uma democracia política radical baseada na
cidadania igualitária (Artous 2010).
«Um trabalhador móvel polivalente»
A emancipação pensada através da dialética do tempo de trabalho e do tempo livre não
visa, portanto, fixar os trabalhadores num estatuto social determinado, neste caso, o de
produtor. Pelo contrário, a sua perspectiva é a da circulação dos indivíduos pelos
diferentes níveis das práticas sociais: tempo de trabalho, tempo livre, etc. É igualmente
esta mobilidade que encontramos quando Marx, no livro I de O Capital(ES: 547-548),
fala da figura do trabalhador na produção propriamente dita.
A indústria moderna revoluciona constantemente «a divisão do trabalho no seio da
sociedade e precipita sem cessar massas de capital e operários de um ramo da produção
para outro. Por isso, a natureza da grande indústria implica mudanças no trabalho do
operário, torna fluida a sua função, tornando-o de fato num trabalhador móvel
polivalente. Por outro lado, reproduz incessantemente a antiga divisão do trabalho e as
suas particularidades anquilosadas». A perspectiva considerada é a da «substituição do
indivíduo parcial, suporte de uma função social de pormenor, por um indivíduo
totalmente desenvolvido, para quem as diversas funções sociais são também modos de
atividade que se revezam mutuamente».
O domínio do capital sobre a produção passa pelo desapossamento da inteligência dos
trabalhadores. No passado — e não apenas no século XIX —, o movimento operário
opôs-se, valorizando por vezes as formas de trabalho (artesanais ou semiartesanais)
existentes antes deste domínio. O que é notável nesta passagem de Marx, é a forma
como ele antecipa as possibilidades abertas pela evolução da produção moderna.
Voltamos a encontrar esta abordagem nos Grundrisse, nas páginas dedicadas ao
desenvolvimento dos sistemas automatizados, na perspectiva de controlo de uma
produção na qual «o produto deixou de ser a obra do trabalho isolado e direto: é a
combinação da atividade social que aparece como produtor». E «é o homem que, face a
este processo, se comporta como vigilante e regulador» (PL. 2: 308, 305).
Não se trata de insinuar que todos os trabalhadores se tornaram vigilantes de cadeias
automatizadas; e conhecemos os desenvolvimentos contraditórios destes movimentos.
Não podemos, todavia, reagir-lhes na ilusão de um retorno a uma simbiose pré-
capitalista do indivíduo e da produção, mas antes com base na dissociação, cada vez
maior, entre o tempo dos homens e o das máquinas.
Naturalmente que a figura do «trabalhador móvel polivalente» de que aqui se fala não
tem qualquer relação com aquela figura das políticas neoliberais da «mobilidade» e
«flexibilidade» no trabalho. Pelo contrário, opõe-se em todas as frentes. É esta a
atualidade de Marx.
Bibliografia:
As obras de Marx citadas estão indicadas pelo título. PL 1, PL 2 referem-se a Œuvres
complètes de Marx [As obras completas de Marx] nas edições Pléiade, ES refere-se às
Éditions Sociales. A passagem do livro I de O Capital sobre o «trabalhador móvel
polivalente» tem origem na edição francesa, traduzida por Jean-Pierre Lefebvre da 4.ª
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Moishe Postone. Temps, travail et domination sociale» [«A atualidade da teoria de valor
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www.contretemps.eu/lectures/lactualite-theorie-valeur-marx-propos-moishe-postone-
temps-travail-domination-sociale.
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