Libreto - CCB - Fundação Centro Cultural de Belém · PDF fileAs duas...

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Libreto A cena passa-se nos arredores da aldeia da Malhada, na Serra da Estrela. Época 1820. Primeiro Quadro

1. Introdução e Cena Casa dos ciganos. É noite. No chão, ao centro, está uma pequena braseira acesa. As duas jovens ciganas, sentadas no chão, deitam cartas. Cada uma tem à frente uma candeia. Fora, na noite, ouve-se ao longo o rumor do mar. Uma cigana velha aproxima-se da porta e diz: - Cigana velha Como o mar ressoa esta noite! - Candelas Nada de bom terá para dizer. - Cigana velha O mar nada diz, nem bom nem mau. Soa porque o move o vento e fala com os condenados, sem licença de Deus. A velha passa e desaparece no interior da casa. - Candelas (Deitando as cartas) Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete… Sai mulher loura! Mulher loura!... - Ciganita (Com alegria, olhando as cartas.) Sai que me ama! (Batendo as palmas) Virá! Virá! - Candelas Ladra um cão na rua!... Mau agoiro! (Apaga-se a luz porque entra uma aragem. Com terror.) Até a luz se apaga! Maldita sorte a minha! (Aproxima o cigarro das cartas para continuar a ver) Uma…duas…três…quatro…cinco…seis...sete… Sai que não me ama! (Com desalento) Uma…duas…três…quatro…cinco…seis...sete… Neste momento, fala de mim com ela… e diz-lhe que não me ama nem nunca me amou! (Atirando as cartas com raiva) Mais vale deixá-lo! Levanta-se, aproxima-se da candeia e canta. 2. Canção do amor ferido - Candelas Ai! (Com mágoa) Não sei o que sinto, nem sei i que se passa comigo

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quando este maldito cigano me falta! (Aproximando-se da candeia, com tremor.) Candeia que ardes, (Com ira) mais tarde o inferno que todo o meu sangue abrasa de ciúmes! Ai! (Com angústia) Quando o rio soa o que deverá dizer? Ai! (Com amargura) Por amar a outra de mim se esquece! Ai! (Com desvario) Quando o fogo abrasa… Quando o rio ressoa… Se a água não mata o fogo. a mim o pesar me condena! A mim o querer me envenenava! (Com força) A mim me maram os penares! Ai! 3. Sortilégio - Candelas (Com sentimento de fatalidade) As doze! As duas ciganitas aproximam-se uma da porta e a outra da janela e fazem o seu esconjuro. - Candelas (Esconjurando a noite) Estão a bater as doze! Nos braços da Virgem Maria está o seu Filho a orar… Por ele te peço para ouvir a porta a fechar, o menino a chorar que o sino a replicar… O que o meu coração deseja que os meus olhos vejam! - Ciganita (Com alegria) Virá! Virá! - Candelas (Afastando-se da janela com desalento) Não há de vir! Já sei que não vem!... Para quê terei vivido mais um dia, se não o vou ver! (Com resignação) As doze! De todas as maneiras, com dor ou alegria há que cumprir o que está destinado! (Com unção) Para que um bom Deus que está no céu nos faça entrar pela sua mão no novo dia! Para que nos leve pelo bom caminho… faremos a dança do fim do dia.

4. Dança do fim (Dança ritual do fogo) Aproxima-se de novo da candeia e deita nela um punhado de incenso. Religiosamente.

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- Candelas Incenso santo! Incenso novo! Saia o mau e entra o bom! À medida que o fumo do incenso sobe, Candelas baila a dança do fim do dia.

5. Cena (O amor vulgar) Terminada a dança, ouve-se na rua um assobio: é o noivo da ciganita que avisa da sua chegada. - Ciganita (Com alegria) Já aí está! Já aí está! Saí a correr Copia de amor na música, sem palavras. Candelas vê sair a outra ciganita, aproxima-se a janela. - Candelas Olha a noite com desolação. Nada, nada, e sempre nada!

6. Romance de pescador Regressa ao centro da cena e recita com expressiva monotonia. Por um caminho ia eu buscando a minha sorte: o que os meus olhos olharam o meu coração não os esquece. Pela vereda ia eu. A quantos o conhecem – Havei-lo visto? – perguntava, e ninguém me respondia. Pelo caminho ia eu e o meu amor não aparecia. O pranto do coração pelo rosto me caía. A vereda espreitava e o dia ia-se acabando. À beirinha do rio estava um homem a pescar. Enquanto as águas corriam ia o pescador cantando: Não quero apressar os peixinhos do rio; quero achar um coração que perdi! - Pescador que estás pescando, se perdeste um coração, a mim mo estão roubando à traição. A água levantou-se ao ouvir falar de penares de amantes e disse com rouca voz: Pescador e caminhante, se sofreis os dois, há no monte uma gruta, na gruta há uma bruxa que sabe de feitiços de amor! Ide busca-la que ela remédio vos dará! Isto disse o rio, isto haverá que fazer… À gruta da bruxa tenho de acudir! Se ela não me dá o remédio quero morrer!

7. Intermédio (Pantomima) Segundo Quadro

8. Introdução (O fogo-fátuo) A gruta da bruxa. É noite: a gruta está deserta e escura, mas ao fundo vê-se um caminho de montanha com figueiras-da-índia e espinhais, iluminando pelo luar. Ao subir do pano, salta do solo um fogo-fátuo, que percorre a gruta numa dança fantástica, passeando pelo ar, pelo chão, pelas paredes, etc. Na orquestra desenha-se o motivo do fogo-fátuo, que depois se transformará na dança.

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9. Cena (O terror) Candelas, a cigana apaixonada, aparece no caminho; chega ao umbral da gruta, chama três vezes, ninguém responde; entra temerosa. Ao aproximar-se a cigana da entrada da gruta, o fogo-fátuo esconde-se num recanto, no qual estão reunidos os amuletos e instrumentos mágicos da bruxa, Entra temerosa e olhando um redor. - Candelas Há alguém na gruta? Pausa: com algum temor, como se assustada com a sua própria voz. Ninguém me responde! Será que a bruxa sai pela noite, em busca de um gato bravo do diabo, na sua vassoura pela chaminé?... Ai, Jesus me valha! Que medo me toma! Pausa: olha em volta e avança lentamente pela gruta, aproximando-se do recanto dos feitiços. Não há ninguém…estou só!...Esta é a candeia!...Este é o feixe das ervas más!... Ao nomear os objetos, estende a mão para lhes tocar, mas retrocede sempre sem se atrever. Medo um pouco cómico. Este é o lagarto!... Esta é a redoma encantada, onde a água que sabe o segredo de todas as vidas está aprisionada! Pausa: vai de um lado a outro voltando sempre, como que invencivelmente atraída, ao recanto dos feitiços. Não há ninguém…estou só!...Se eu me atrevesse…faria o esconjuro que ao diabo calado desata a língua…! Não há ninguém…estou só!... Se eu me atrevesse!... Aproxima-se com alguma resolução do recanto dos feitiços e, fechando os olhos, põe a mão sobre a redoma encantada. Um rumor surdo, como de trovão, mostra a irritação do espirito da gruta, e o fogo-fátuo, que é o seu representante, salta do recanto em que está escondido e quer lançar-se sobre a cigana profanadora. Candelas, espantada com o rumor, abre os olhos, e ao ver o fogo-fátuo, mais espantada ainda, retrocede. - Candelas Ah!... É o fogo-fátuo, espirito e rei da gruta, que quer vingar-se de mim… Não te aproximes! (Fugindo) Fogo do Inferno que as almas queimas!

10. Dança do Fogo-fátuo (Dança do terror) Dança freneticamente fugindo do fogo –fátuo que a persegue: afasta-se com terror, salta, reforce-se. Por fim, do próprio desespero arranca alento para se lançar em sua perseguição. Naturalmente, o fogo fátuo foge e, saindo pela abertura da gruta, desvanece-se no deslumbrante luar. Candelas apoia-se rendida no gonzo da entrada e suspira sossegada. Canta depois a canção do fogo-fátuo.

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11. Interlúdio (Alucinações)

12. Canção do fogo-fátuo - Candelas (Suspirando) Ah! (Com ânimo) Tal como o fogo-fátuo, tal e o qual é o querer, Foges dele e persegue-te chama-lo e deita a correr. Tal como o fogo-fátuo, tal e qual é o querer. Nasce nas noites de Agosto, quando aperta o calor. Vai correndo pelos campos em busca de um coração… Tal como o fogo-fátuo, tal e qual é o amor. Malditos os olhos negros que o conseguem ver! Maldito o coração triste que em sua chama quis arder! Tal como o fogo-fátuo! se desvanece o querer! Terminada a canção do fogo-fátuo, avança e diz: - Candelas O fogo-fátuo desapareceu! No luar se desvaneceu! A gruta é minha! Vamos a ver se venço a má sorte com a bruxaria! Aproxima-se resolutamente do recanto dos feitiços, e, apoderando-se da redoma encantada, derrama parte da água sobre o fogo e faz o esconjuro. A música indica a parte cantada e a parte recitada. Desde que ela pega na redoma, vai escurecendo, sugerindo que o luar se põe antes do amanhecer. Depois, ao mesmo tempo que o Cigano aparece, vai surgindo no céu a primeira claridade de alvorada, até que amanhece no fim do quadro.

13. Esconjuro para reconquistar o amor perdido - Candelas (Sussurrando) Por Satanás! Por Barrabás! Quero que o homem que me esqueceu me venha buscar! Cabeça de touro, olhos de leão!... O meu amor está longe…que escute a minha voz! (Com ansiedade) Que venha, que venha! Por Satanás, por Barrabás!

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Quero que o homem que me queria me venha buscar! Helena, Helena, filha de rei e de rainha…! Que não possa parar nem sossegar, nem em cama deitado nem em cadeira sentado… até que em meu poder venha parar! Que venha! Que venha! Por Satanás! Por Barrabás! Quero que o homem que me enganou me venha buscar! Assomei à porta ao nascer do Sol… Um homem vestido de cores fortes passou… Perguntei-lhe, e respondeu-me que levava as cordas dos sete enforcados… E eu disse-lhe: Que venha, que venha! Passarinho branco que no vento vem voando!... Que venha! Que venha! Entro e tomo parte no pacto! Quebra a redoma no solo. Para que venha! Para que venha! Por Satanás! Por Barrabás! (Quase murmurando) Quero que o homem que era a minha vida me venha buscar! Ouve-se como resposta dos poderes infernais o ruído de correntes arrastadas, e escurece po completo. Ah… ruído de correntes arrastadas! O diabo anda nisto!

14. Cena Ouve-se a música misteriosa e suave: o amor aproxima-se; vê-se brilhar na sombra um ponto vermelho; é o brilho do cigarro do amante que se vai aproximando pelo caminho escuro. À medida que o Cigano se aproxima, o cantor de amor (música) vai-se aproximando do popular. De repente desaparece o brilho: é que se apagou o cigarro do amante que chega. Candelas vê a luz, aproxima-se da entrada da gruta, e apesar da escuridão reconhece o galã. Então afasta-se com júbilo, e maliciosa alegria, pensando na grande partida que se prepara para fazer ao ingrato. Ele para à entrada da gruta. - Candelas (Vendo-o aproximar-se) É ele!... A sua sorte trá-lo. Agora vais ver o que é bom! - Cigano (À entrada da gruta) Na paz de Deus!

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- Candelas (Do fundo da gruta, mudando a voz) Ele esteja contigo, caminhante! - Cigano Há alguma boa alma que me queira dar candeia para acender o cigarro? - Candelas (À parte) Pedes candeia para acender o cigarro? Para te abrasar a alma ta daria eu! (Com a voz mudada) Entra e toma-a! O Cigano entra sem a ver, aproxima-se da chama e acende o cigarro. - Cigano Deus lho pague. Fique com Deus. - Candelas Estás com pressa, Cigano! - Cigano Vou de caminho. - Candelas Todos vamos de caminho neste mundo: a graça está em que no fim da vereda nos aguarde alguém. - Cigano Pois há uns olhitos negros que me parece se vão alegrar ao ver- -me chegar. - Candelas Pois a mim me parece que esta noite vão demorar um bocado a alegrar-se. - Cigano Porque diz isso? - Candelas Agora o verás!

15. Dança e canção da bruxa fingida Candelas lança um véu sobre a cabeça e começa a dançar em volta dele para o seduzir. Alterna a dança com canções que lhe canta acentuando a expressão misteriosa. O Cigano, aturdido, sofre o seu fascínio, sem a reconher, e depois da primeira, estrofe, vai atrás dela, tentando alcança-la; mas ela foge dele, e quando o vê cansado, volta a aproximar-se insidiosamente; ele desespera.

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- Candelas Tu és aquele mau cigano que uma cigana amava! tu não merecias o amor que ela te dava! - Cigano (Como assombro) Eh! Que dizes tu? Sem lhe responder, dança voluptuosamente à sua volta: em seguida canta. - Candelas Quem havia de dizer que com outra a traías! Anda, mau homem! (Com raiva) O que merecias tu? Que o próprio Pedro Botero [o diabo] te abrasasse essa língua com que de amor lhe mentias! - Cigano Aproximando-se dela. O que sabes tu? Quem te contou isso? Vem cá! Quer aproximar-se dela, que continua a dançar. Quando a vai agarrar, ela para bruscamente e canta fingindo grande solenidade. - Candelas Não te aproximes, não me olhes, porque sou bruxa consumada,; e quem se atreva a tocar-me a mão terá abrasada! Dança fugindo dela, com movimentos insidiosos e coleantes; ele segue-a com que alucinando. - Cigano Quem és? Quem és?

- Candelas Sou a voz do teu destino! Sou o fogo em que te abrasas! Sou o vento em que suspiras! Sou o mar em que naufragas! Ele aperta a perseguição: ela continua a dançar e a fugir. E quando ele julga apanhá-la fixa com o véu nas mãos e ela escapa-se rindo. - Candelas (Escapando) Ah ah ah ah ah!

16. Final (Os sinos do amanhecer)

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- Cigano Reconhecendo-a pela voz. Tu… tu… Candelas! - Candelas (Com malicia) Eu…Eu! Candeiazita, que ardia nada mais que para ti, e que te deixa às escuras por in secula seculorum! Aproxima-se da entrada da gruta. Desde que acabou a dança que se acentua no exterior a luz do amanhecer. - Cigano (Com o véu na mão, um pouco desconcertado, querendo detê-la.) Não… não pode ser…espera…perdoa-me! - Candelas (Com altivez desde a porta da gruta) Já desponta o dia! Vem buscar-me esta noite! Veremos se me esquece o que me fizeste penar com tanta maldade! - Cigano (Implorando) Perdoa-me! Espera! - Candelas (Com alegria, sem se voltar) Já está despontando o dia! Cantai, sinos, cantai! Pois volta a minha glória! Ouve-se ao longe o replicar dos sinos. - Cigano (Correndo atrás dela) Candelas! Candelas! - Candelas (Cantando ao longe com exaltação) Já está despontando o dia! Repique furioso de sinos, enquanto o pano cai.

TRADUÇÃO DA AUTORIA DE CATARINA LATINO, GENTILMENTE CEDIDA POR JOANA LATINO, ADRIANA LATINO E TNSC