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O MAR E O MATO Histórias da escravidão Martin Lienhard Prefácio de Emmanuel Dongala Kilombelombe Luanda 2005

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O MAR E O MATO

Histórias da escravidão

Martin Lienhard

Prefácio de Emmanuel Dongala

Kilombelombe

Luanda 2005

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[Os kongo] estão muito convencidos da existência de um estado

futuro, mas quanto a saberem em que consiste e onde se localiza, as

opiniões divergem muito. Eles não consideram a morte como a

cessação da existência. Quando alguém morre, eles pensam que

algum outro, vivo ou morto, se conectou com o invisível mundo

dos espíritos e, por um motivo qualquer, fez desaparecer o morto

mediante um acto de bruxaria. Eles só têm vagas noções quanto a

esse mundo dos espíritos. Alguns pensam em um país debaixo domar, onde os desaparecidos trabalham para os homens brancos,

fabricando a roupa e as coisas deles; prevalece porém uma ideia

mais antiga e talvez mais geral: a de que os espíritos dos

desaparecidos moram num país de floresta remoto e obscuro. Esse

 país dos espiritos é chamado nxi a fwa, o país dos mortos, ou

mfinda, a floresta.

W. Holman Bentley, Dictionary and Grammar of the Kongo Language (1887)

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SUMÁRIO

 Prefácio de Emmanuel Dongala

 Palavras preliminares

 Advertência

 IntroduçãoHistórias

O mar e o mato

Arqueologia da memória escrava

 Mambo. Cantigas rituais e lembrança da escravidão em Cuba

Religião e tradição oral dos «congos» cubanos Nkanga mundele: amarrar os brancos

As potências «divinas» 

 Nfinda: a floresta dos ancestrais

 Kalunga: o mar e a morte

O engenho açucareiro

Apêndice: A língua dosmambos

 

 Milonga. O «diálogo» entre portugueses e africanos nas guerras do Congo e de

 Angola (séculos XVI-XVII) 

Uma guerra de discursos

Escravidão e comércio escravista

O mato-refúgio

A linguagem da violência

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Linguagens diplomáticas

Retóricas africanas: nongonongo

Retóricas africanas: milonga

Linguagens gestuais

Rumores

O discurso da fuga

Conclusão

Quilombo. Fugas e levantes de escravos e o discurso da resistência (Brasil eCaribe : século XIX)

Imaginários dos escravos fugitivos

A insurreição de Manoel Congo (província do Rio de Janeiro, 1838)

Projecto de levante dos escravos do rio Atibaia (província de São Paulo,

1832)

O sonho haitiano de um grupo de escravos porto-riquenhos (1826)

Glossário

 Bibliografia

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PREFÁCIO

Há cinco anos, aquando da sua passagem pelo Congo no âmbito de suas

investigações, Martin Lienhard ofereceu-me um dos seus livros,  La voz y su

huella, na edição peruana de 1992 (Lienhard 2003). Este livro fascinou-me.

Descobri nele uma dimensão da colonização que eu ignorava totalmente, a do

 papel nela desempenhado pela escrita. Lienhard demonstra, de forma magistral,

como a irrupção da escrita - transformada em objecto quase mágico - na cena

americana (e eu acrescentaria, africana), teve por consequência a erradicaçãodos sistemas de comunicação autóctones e transformou o discurso da história

destas populações num discurso unilateral controlado do princípio ao fim pelo

colonizador europeu.

A importância de trabalhos como os de Martin Lienhard reside na intenção de

restituir, a partir de restos de palavras que puderam escapar à ditadura da escrita,

a visão de dentro do percurso dos povos colonizados. Não foi pelas armas queos colonos apagaram, destruíram e deformaram a história de África. No

momento em que a colonização de África foi empreendida, o prestígio da escrita

era tal que tudo o que não fosse escrito, consignado ao papel, não tinha qualquer

credibilidade. Assim foram desqualificados os principais meios de comunicação

das populações autóctones conquistadas, a linguagem falada (a oralidade) e as

linguagens gestuais. A memória colectiva destes povos, conservada etransmitida de uma geração para outra por meio do discurso oral e gestual,

acabou sendo anulada pela autoridade – e a ditadura – da escrita. Dessa maneira,

o único discurso que existe sobre a historia deles é aquele que foi consignado no

 papel pelos conquistadores europeus e pelos auxiliares do seu poder, os

missionários, os administradores e os homens da ciência. Mesmo quando estes

últimos querem fazer falar os autóctones na sua própria língua, como aconteceu,

no México, no caso do célebre Codex florentin, em que o redactor – o

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franciscano Bernardino de Sahagún - teve o cuidado de redigir um texto em

duas colunas, à direita o discurso dos informadores locais escrito na língua

indígena e à esquerda a sua tradução espanhola, os autóctones – mexicanos

neste caso – não têm qualquer influência sobre o seu próprio discurso que se

mantém subordinado ao do editor e da sua cultura. O autóctone fala, é certo,

mas não tem qualquer autoridade sobre a forma como a sua mensagem é

transmitida nem qualquer direito de resposta. Além disso, considerando – com

Marshall McLuhan – que o meio utilizado é ao mesmo tempo a mensagem («the

medium is the message»), como fazer passar a visão do mundo dessesautóctones nas línguas europeias, veículos de valores culturais que nada tinham

em comum com os seus, como nota Martin Lienhard num seu outro texto?

 Na presente obra, O Mar e o Mato. Histórias da escravidão, que tenho a honra e

o prazer de prefaciar, Martin Lienhard continua o seu trabalho pioneiro,

apontando pistas. Da mesma forma que mostrou, nos seus trabalhos anteriores,

como o discurso europeu – graças à escrita – expulsou da história a voz dos povos autóctones da África, do Caribe e da América Latina, ou ainda como os

escritores lusófonos da América Latina e da África, a partir de uma actitude

descolonizadora, tentam reintroduzir a oralidade na literatura moderna escrita,

aqui ele intenta dar voz àqueles cujas vozes foram sufocadas, descodificando

aquilo que se esconde atrás dos restos de palavras que sobreviveram ao

genocídio cultural.É certo que ele não foi o primeiro a utilizar um método que privilegia a

 perspectiva do escravo, mas, tanto quanto sei, foi o primeiro a utilizá-lo

sistematicamente para desvendar a forma como os grupos de ascendência bantu

na América Latina e no Caribe, os congos, perceberam a história das suas

tribulações. A tarefa não foi fácil. Para isso eram necessários os talentos de um

homem multidisciplinar capaz de utilizar de forma efectiva não só a etno-

história, mas também a linguística, a pragmática e a análise discursiva (para

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além de um domínio perfeito do português e do espanhol). Ele teve de fazer

falar os silêncios, encurralar o significado de uma palavra – tal como nganga ou

nfinda  – através de escorregadelas sucessivas, enunciar os não-ditos da

linguagem diplomática (admirei a subtileza da análise das mensagens

diplomáticas da rainha Nzinga às autoridades portuguesas), interpretar um

gesto, agarrar o sentido de um acto como aquele da « fuga » perante o inimigo

 português.

Assim os três ensaios que compõem o livro – o estudo dos mambos  (cantos

rituais dos congos  cubanos) no primeiro, da milonga  (essa arte de falar para persuadir) no segundo, e por fim dos quilombos  no terceiro – cruzam-se e

entrecruzam-se para formar uma trama de onde se desprende a visão do interior

do mundo kongo e congo, mundo esse cujas fundações espirituais são

essencialmente as mesmas dos dois lados do Atlântico, a nfinda  (a floresta),

kalunga (o mar, a morte?), os nganga (e os seus nkisi) e isto apesar dos séculos

de separação e de todos os avatares históricos.Perdoem-me que acrescente uma nota pessoal. Enquanto kongo de África,

depois de ter lido em certos mambos  dos  paleros  cubanos palavras como

nkanga mundele, tata nganga, munanzo  etc., palavras ainda correntes no

kikongo actual com sentidos idênticos, tive a sensação de remontar a corrente da

história, de uma história perdida, e de renovar o contacto espiritual com os meus

mbuta  (antepassados). Partindo desses fragmentos de discurso que

sobreviveram ao naufrágio, Martin Lienhard, como um autêntico nganga kongo,

conseguiu fazer dançar o «esqueleto das palavras soterradas ». Nós estamos-lhe

reconhecidos.

Emmanuel DONGALA

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Palavras preliminares

A pesquisa da qual este livro é o resultado começou em 1993 em Havana no

âmbito de algumas comunidades de  palo monte, religião afro-cubana de

ascendência bantu. A possibilidade de assistir a alguns rituais da «linhagem»

Kalunga Munanzambe e as longas conversas com Roselio, Papo e outros

membros desse grupo incentivaram-me a acometer o que se foi transformando,

aos poucos, em uma investigação mais ampla – ainda em curso - sobre

ritualidade e cosmovisão bantu na história da América (Caribe e Brasil) e daÁfrica central. Roselio, em Havana, não só teve a extrema gentileza de autorizar

a gravação, em sua casa, de uma série de cantigas litúrgicas, como também me

ajudou na sua transcrição. A ele e a muitos outros praticantes ou pesquisadores

das religiões afro-cubanas que tive o privilégio de conhecer (entre eles Gerardo

Fulleda, Inés Maria Martiatu Terry, Lázara Menéndez e Rogelio Martínez Furé)

vai a minha gratidão mais profunda. A partir de 1995, várias estadias emSalvador da Bahia me permitiram ampliar, em um cenário diferente, brasileiro,

minha pesquisa afro-americana. Recebi apoio de muitas pessoas, entre elas

Jeferson Bacelar, então director do Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAO),

Valdina Pinto, makota  do terreiro Angola Tanuri Junçara, o pai-de-santo (e

 professor universitário) Júlio Braga, a mãe-de-santo do terreiro do «Cobre»,

Valnízia Pereira de Oliveira, a comunidade do Ilê Ayé e os pesquisadores YêdaPessoa de Castro, Antônio Risério, João José Reis e Ordep Serra. O interesse de

todos eles e de vários outros amigos contribuiu em grande medida para fazer

avançar meus trabalhos. Em 1996, em Brazzaville, as lições de kikongo do

 professor Auguste Miabeto e as simpáticas conversas com o director teatral

Massengo Ma Mbongolo me foram de grande ajuda para compreender alguns

aspectos da cultura kongo. Já depois da primeira edição deste livro (Salvador da

Bahia, UFBA-CEAO, 1998), uma estadia em Luanda (2002) me permitiu iniciar

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um contacto mais directo com certas realidades históricas, culturais e

linguísticas de Angola. Nazaré A. B. de Almeida dedicou muitas horas a me

iniciar no kimbundu. No Arquivo Histórico Nacional de Angola – além dos

conselhos de meus companheiros pesquisadores, os brasileiros Lucilene

Reginaldo e Roque Ferreira - recebi um apoio irrestricto da directora, Dra. Rosa

da Cruz e Silva, e do Sr. Domingos Mateus Neto.

Grande é, obviamente, a minha dívida para com os autores dos trabalhos

aproveitados ao longo deste livro, em particular para com a historiadora alemãBeatrix Heintze e a antropóloga cubana Lydia Cabrera, falecida em 1991.

Foi o Dr. Virgílio Coelho, actual vice-ministro da cultura, quem me sugeriu

reeditar O mar e o mato  para o público angolano. Agradeço-lhe não só seu

interesse, como também todo o apoio com que ele me brindou para concretizar

este projecto com a editora luandense Kilombelombe.

Marília Mendes, minha assistente na cátedra de literaturas hispânicas e lusitanas

na Universidade de Zurique, teve a imensa gentileza de adaptar o texto à

ortografia oficial portuguesa e de rever, com grande cuidado e perspicácia, todo

o manuscrito.

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Advertência

A primeira versão deste livro foi publicada no Centro de Estudos Afro-Asiáticos

(CEAO) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador da Bahia, 1998.

Esta nova edição, que segue a edição francesa publicada em 2001 na editora

L’Harmattan de Paris sob o título de  Le discours des esclaves – De l’Afrique à

l’Amérique latine, foi o objecto de uma revisão completa e aporta, além de uma

série de acréscimos menores, o estudo de mais um caso de insubordinação

escrava no capítulo III: o projecto de levante dos escravos bantu de váriasfazendas no rio Atibaia (província de São Paulo, 1832).

Para facilitar a leitura do texto, as citações procedentes de obras – fontes,

estudos, dicionários - escritas em francês, espanhol, alemão e inglês foram

traduzidas, pelo autor deste trabalho, para o português. Só na reprodução dos

fragmentos de depoimentos de escravos hispano-americanos que figuram naepígrafe do capítulo III se optou por conservar a língua espanhola. Os mambos 

cubanos se apresentam em versão original, mas acompanhados de uma tradução

 portuguesa «literal». Modernizou-se a ortografia e a pontuação das fontes

citadas, embora sem tocar nos nomes próprios, topónimos, africanismos e nas

grafias que parecem remeter para particularidades fonéticas da época ou do

lugar.

Para não sobrecarregar o texto com dados lexicológicos, esses foram reunidos e

sistematizados num glossário final. Quando aparecem pela primera vez no texto

ou num capítulo, as palavras que se discutem no glossário levam um asterisco

(*).

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Introdução

 Histórias 

 Nos três estudos - ou ensaios - que compõem este livro não se pretende,

obviamente, (re)fazer a História (com maiúscula) da escravidão na África e na

América colonizadas pelos europeus, mas tão-somente evocar algumas das

inumeráveis «histórias» que foram vividas pelos africanos ou seus descendentesao longo de um processo que durou vários séculos e envolveu diferentes áreas

aquém e além do Atlântico. Começada no século XV, a penetração europeia na

costa ocidental da África provocou, como se sabe, a maior sangria demográfica

que regista a história da humanidade. Ao longo de mais de três séculos, milhões

de africanos foram capturados pelos europeus ou por outros africanos e

transferidos depois pelos agentes internacionais do tráfico negreiro para aEuropa e, mais ainda, para as possessões americanas das potências

metropolitanas. A maioria deles foi destinada ao trabalho forçado nas plantações

americanas produtoras de mercadorias exportáveis, principalmente açúcar, café

e algodão. Até ao século XVIII, a área africana mais atingida - e devastada -

 pelo tráfico de escravos foi sem dúvida a que corresponde, aproximadamente, às

actuais repúblicas do Congo-Brazzaville, do Congo-Kinshasa e de Angola. Dooutro lado do Atlântico, foi no Brasil e no Caribe espanhol que se formaram as

maiores concentrações de cativos procedentes dos «reinos» ou senhorios de

Loango, do Kongo, de Angola ou de Benguela. Estabeleceu-se assim uma

conexão importante e relativamente constante entre essa área da África central e

os principais mercados escravistas da América. É verdade que muitas outras

áreas africanas foram envolvidas, simultaneamente ou mais tarde, no comércio

atlântico. O país iorubá (Nigéria), em particular, forneceu uma alta percentagem

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do enorme número de mulheres e homens embarcados, nas últimas décadas do

tráfico, para o Brasil e para Cuba - os mercados escravistas mais vorazes do

século XIX. É também verdade que outros pontos de chegada, especialmente as

ilhas do Caribe francês ou inglês e o actual sul dos EUA, desempenharam um

 papel muito relevante no comércio atlântico. Por sua excepcional importância

histórica, o duplo eixo em forma de compasso que se abre, partindo da África

central, em direcção ao Brasil e ao Caribe espanhol aparece, porém, como uma

espécie de paradigma geral de todo o processo escravista.

Revelando-se aos poucos como as fotografias à luz filtrada do laboratório, as

histórias que irão tomando forma ao longo das páginas deste livro falam,

 principalmente, da contraditória resistência dos africanos contra a penetração

dos portugueses na África central (séculos XVI-XVII) e de diferentes formas de

insubordinação – resistência cultural, fuga, insurreição – dos escravos nas

 plantações brasileiras e caribenhas (século XIX). «Africanas», «brasileiras» ou«caribenhas», essas histórias remetem, todas, para o contexto criado, na África e

nas Américas, pelo «escravismo colonial» (Gorender 1985). Membros de

comunidades bantu da área Congo-Angola ou da diáspora bantu na América, a

maioria dos seus protagonistas compartilham, ademais, uma série de padrões

culturais. Não surpreendem, portanto, as importantes analogias ou

coincidências que se manifestam, apesar das diferenças de cenário e de época,entre uma história e outra(s). Assim, certos aspectos da luta dos africanos

contra a penetração escravista dos portugueses no século XVII, em particular a

formação de «exércitos» – quilombos - de escravos fugitivos em Angola,

aparecem como o «passado» - ou um antecedente - da luta dos quilombolas

 brasileiros do século XIX. Por sua vez, a luta dos quilombolas afro-brasileiros

 pode ser considerada como uma espécie de continuação - um dos «futuros»

 possíveis - de uma luta já inaugurada na África quer pelos senhores que se

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insubordinavam contra a dominação portuguesa quer pelos escravos rebeldes

que se refugiavam na floresta ou em outros lugares inacessíveis. Curiosamente,

a cosmologia que se revela nas cantigas dos «congos» cubanos actuais,

especialmente a importância que nela se atribui aos espaços cosmológicos da

nfinda (mato) e de kalunga (mar), permite imaginar melhor, retrospectivamente,

a dos seus ancestrais africanos em guerra contra os portugueses (século XVII)

ou a dos escravos afro-americanos do século XIX que buscavam sua salvação

no mar ou no interior das florestas. A leitura «simultânea» de todas essas

histórias africanas e afro-americanas que aqui se propõe não é, sem dúvida,arbitrária. Sendo cada um dos casos evocados como que o «passado» ou o

«futuro» de um ou de vários outros, a sua sobreposição permite iluminar as

zonas oscuras - o «não dito» - que existe nos outros1.

O mar e o mato 

 Na cosmologia e na prática social ou militar dos africanos ou afro-americanos

que protagonizam essas histórias, o mar e o mato parecem desempenhar um

 papel particularmente relevante. Em 1887, W. H. Bentley, missionário-linguista

inglês que trabalhava em São Salvador, capital do reino (colonial) do Kongo,

 procurou definir a posição que esses espaços ocupam nas mitologias kongo:

Eles [os kongos] só têm vagas noções quanto a esse mundo dos espíritos.

Alguns pensam em um país debaixo do mar, onde os desaparecidos

trabalham para os homens brancos, fabricando a roupa e as coisas deles;

 prevalece porém uma ideia mais antiga e talvez mais geral: a de que os

espíritos dos desaparecidos moram num país de florestas remoto e

1 Em 1997, Robert W. Slenes, na sua comunicação oral do V° Congresso Afro-Brasileiro («Tumulto e silênciona província do Rio de Janeiro, 1848: cultura centro-africana, revolta escrava e a abolição do tráfico deescravos»), já sugeriu semelhanças entre movimentos de revolta africanos e americanos (brasileiros).

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obscuro. Esse país dos espiritos é chamado nxi a fwa, o país dos mortos,

ou mfinda, a floresta (Bentley 1887: 503).

Uma leitura atenta deste trecho sugere que, no Kongo, as tradições mais antigas

e mais comuns localizavam a morada dos mortos nas florestas do interior,

enquanto que outras, aparentemente mais recentes, a situavam no fundo do mar.

É provável que a imagem dos africanos mortos obrigados a trabalhar no fundo

do mar para os brancos traduza, de alguma maneira, o trauma que o comércio

atlântico provocou nas populações africanas: segundo a percepção kongo, os brancos, não contentes com a exploração dos africanos vivos, faziam trabalhar

até os mortos. Aqui, aparentemente, o mar é assimilado à morte porque trouxe

os agentes dessa morte lenta que é a escravidão e porque nele desapareceram

 para sempre os escravos embarcados para o Brasil, o Caribe ou qualquer outro

destino americano. Embora muito esqueléticos, os dois mitos recolhidos por

Bentley parecem demonstrar que já na África, o discurso kongo, longe deconstituir uma tradição inalterável, era susceptível e capaz de reagir às rupturas

históricas.

Colocados em um contexto radicalmente diferente de seu contexto de origem,

os bantu deportados para as Américas - e, mais ainda, seus descendentes -

continuaram, sem dúvida, a adaptar seu discurso à mudança de sua condição e,em particular, às condições da vida cativa. Embora seja difícil demonstrá-lo, é

evidente que na América, o discurso kongo ou bantu deve ter passado por todo

um processo histórico de continuidades e de rupturas. Nas histórias que

 procurarei «desenterrar» neste trabalho, a continuidade - pelo menos quanto às

representações cosmológicas - parece prevalecer sobre as rupturas. Talvez essa

continuidade seja, por vezes, mais aparente do que real. A permanência de uma

 palavra não exclui a mudança pelo menos parcial de sua semântica, a aquisição

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de novas conotações. Assim, aos olhos dos africanos deportados para o Brasil

ou o Caribe, o mar, além de lembrar-lhes a sua «morte», aparecia também como

um caminho – real ou utópico - para retornar ao país dos seus ancestrais. Não só

nos depoimentos de um grupo de escravos porto-riquenhos que procuraram, no

começo do século XIX, fugir para essa nova «África» que era o Haiti

revolucionário, como também nas cantigas actuais da comunidade afro-

 brasileira dos Arturos (Minas Gerais) ou, ainda, nos mambos dos «congos»

cubanos, o mar (kalunga), além de lembrar a história da deportação, é o

caminho que leva para a terra da promissão. Lembre-se neste contexto que nafase final da escravatura no Brasil e em Cuba, muitos ex-escravos decidiram

retornar à África2.

Para os escravos bantu exilados na América, o outro caminho possível para

chegar à «África» (as aspas são aqui indispensáveis) era a picada, o caminho

que se abria nas florestas para chegar a uma comunidade de escravos fugitivos:quilombo ou mocambo (Brasil),  palenque (Cuba, Colômbia), cumbe 

(Venezuela). Em Angola, no século XVII, quilombo  remetia para uma espécie

de «estado-exército» que facilitava, em tempos de guerra, a protecção e o

deslocamento de uma corte senhorial. Transformada em quilombo, a corte

reintegrava a floresta, espaço que não só prometia vantagens militares, como

também a protecção dos espíritos dos ancestrais e dos génios da natureza quenele residiam. Também nas Américas, os quilombos, mocambos,  palenques ou

cumbes  constituíam entidades político-militares mais ou menos móveis que

aproveitavam a protecção - militar e espiritual - que ofereciam os matos

tropicais. Ao se estabelecerem no interior das florestas americanas, na mfìnda,

2 Num depoimento publicado há poucos anos (Rubiera Castillo 1997: 22), Reyita, velha cubana descendente de

escravos africanos, lembra a decisão que tomou, nos anos 1920, de retornar ao país dos seus ancestrais. Essadecisão - anulada mais logo – tinha sido influenciada, segundo Reyita, «pelo amor de sua terra natal que meinculcou minha avó».

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espaço dos espíritos dos seus ancestrais, eles se reconectavam, também, com a

«África». Ainda hoje, os «congos» cubanos recriam nas suas encenações rituais

e nas suas cantigas uma mfìnda que conota, claramente, a «África».

As conotações utópicas que o mar e o mato adquiriram ao longo da história

afro-americana permanece, aparentemente, vigente até hoje. Essa vontade de

conservar, recriar ou lembrar o discurso ou certas práticas escravas remete, sem

dúvida, para a necessidade de responder, pela afirmação de uma cultura de luta,

à discriminação e à marginalização sociocultural que ainda sofrem, nasAméricas, as comunidades populares compostas principalmente por

descendentes de escravos africanos.

 Arqueologia e memória escrava

Deliberadamente pluridisciplinar, este trabalho se inscreve, basicamente, naetno-história, disciplina que procura trabalhar simultanemente na sincronia

(etnologia) e na diacronia (história). Convém esclarecer que as comunidades

«étnicas», pelo menos desde o começo do expansionismo europeu, se movem

em um contexto caracterizado pela existência de um poder colonial que se

sobrepõe aos poderes locais e que «integra» esses grupos - geralmente enquanto

comparsas - em um novo conjunto de relações. Considerados por certosestudiosos como portadores de essências culturais indestrutíveis, as

comunidades «étnicas» levam forçosamente, na sua prática cultural, as marcas

de sua experiência histórica e social. Na América e na África colonial ou pós-

colonial, as «etnias» vêm a ser, na prática, umas comunidades tradicionais que

se encontram num processo constante de redefinição, recomposição ou

recriação. Por isso, a chamada «etnicidade», baseada em uma tradição ainda

viva ou reinventada, é antes de tudo a resposta que certos sectores socioculturais

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marginalizados opõem à sua discriminação no seio de uma sociedade global

colonial, moderna ou «pós-moderna». Neste panorama, a etno-história pode

conceituar-se como a história das colectividades tradicionais que foram

reestruturadas no contexto de um processo colonial ou escravista e que se foram

transformando, no seio das sociedades «modernas», em sectores discriminados

e marginalizados. Nesse sentido, a etno-história é antes de tudo um esforço para

escrever a história de grupos humanos que não costumam ter acesso à história

oficial ou que só entram nela pela porta de serviço.

Convém enfatizar que nas últimas décadas, as pesquisas sobre a história dos

escravos latino-americanos e dos seus ancestrais na África conheceram um

desenvolvimento bastante espectacular. Deixando de privilegiar a perspectiva

institucional que dominava, até há pouco tempo, as pesquisas sobre a

escravidão, muitos estudiosos brasileiros e – mais recentemente – caribenhos

começaram, seguindo o exemplo de alguns historiadores norte-americanos(Rawick 1972, Genovese 1976), a privilegiar o protagonismo e a visão dos

 próprios escravos. Assim, no seu livro  Negociação e conflito. A resistência

negra no Brasil escravista (1989), os brasileiros João José Reis e Eduardo

Silva, para mencionar um exemplo significativo, propõem uma «abordagem que

vê a escravidão sobretudo da perspectiva do escravo» (ibid .: 7). Aqui,

analogamente, a perspectiva que se privilegia é a dos africanos em luta contra oescravismo colonial e a dos escravos afro-americanos em busca da sua

liberdade. Considerando que a «perspectiva», a «mentalidade» ou o

«imaginário» de um grupo social se manifesta principalmente nas suas práticas

discursivas, a exploração dessas práticas3  é o objectivo principal da nossa

 pesquisa. Na medida em que o «imaginário» de um grupo contribui para

3 Na nossa terminologia, «prática discursiva» remete para qualquer prática, verbal ou não, que permite, noâmbito de um acto de comunicação, transmitir uma mensagem. Neste sentido, não só a fala, como também umadança, um ritmo de tambor ou um comportamento ritualizado são elementos constitutivos de um «discurso».

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orientar a sua prática social, política e militar, um trabalho deste tipo, em nosso

entender, não é menos relevante, em termos de conhecimento histórico, do que a

investigação da história factual.

Para a história da resistência africana contra a penetração portuguesa na África

central (séculos XVI-XVII), a nossa fonte básica é constituída pelas cartas e

 pelos relatórios de governadores ou missionários portugueses directamente

envolvidos nessa empresa de conquista escravista. Para conhecer o discurso dos

escravos fugitivos, quilombolas ou insurrectos no Brasil e no Caribe, oferecem-se como fonte principal as devassas instruídas contra alguns grupos de escravos

rebeldes. As cantigas litúrgicas dos  paleros  cubanos actuais, descendentes

culturais ou espirituais4  de escravos originários da área Congo-Angola,

aparecem nesse contexto como uma possível fonte alternativa. Ora, nenhuma

dessas «fontes» nos descobre directamente o «discurso» das vítimas do

escravismo colonial. Nos relatórios e nas cartas dos governadores portugueses, aatitude discursiva dos africanos perante a rapacidade escravista dos portugueses

é sistematicamente ocultada, filtrada ou tergiversada. Preocupados

 principalmente com os seus negócios e a justificação de sua actividade

escravista, os membros do grupo conquistador não tinham, evidentemente,

nenhum interesse em desvendar o pensamento verdadeiro de seus

«interlocutores» africanos. Análogo é o caso das devassas brasileiras oucaribenhas instruídas contra os escravos insurrectos ou quilombolas: recolhidos

 por juízes ao serviço dos donos de escravos, os depoimentos dos cativos presos

só revelam, regra geral, o que desejavam ouvir seus adversários: o

reconhecimento, por parte dos réus, dos seus «crimes». Ao contrário dessas

4 No processo de captura, embarque e comercialização dos escravos, os grupos constituídos – membros de umamesma família, de uma mesma aldeia, de uma mesma etnia – sofriam geralmente uma dispersão mais ou menos

radical. É provável, portanto, que muitos dos membros actuais de uma comunidade que pretende recriar acultura de um grupo étnico africano não sejam descendentes directos – biológicos - de pessoas pertencentes aesse grupo. Por isso mesmo, preferimos qualificá-los de descendentes culturais ou espirituais.

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fontes oficiais, as cantigas que surgem no âmbito dos actuais ritos afro-

americanos parecem conservar rastos autênticos do discurso dos escravos que as

entoaram pela primeira vez.

Em nenhuma dessas «fontes», porém, o discurso da resistência africana ou afro-

americana aparece formulado plenamente. Só alguns restos ou fragmentos dele

se ocultam, às vezes, na profundidade ou nos interstícios dos textos

mencionados. A tarefa – «arqueológica» - do pesquisador consiste, pois, em

 juntar esses restos para lhes devolver a sua coerência e o seu sentido. Essa«arqueologia do discurso» explora também os silêncios – o «não dito» - dos

textos. Para isso, tem de se adquirir a faculdade de «ouvir» o que não foi dito ou

o que foi ocultado deliberadamente. Um dos poucos filmes africanos que

evocam a história da deportação dos africanos para a América,  Asientos  do

cineasta senegalês François Woukouache (Bélgica 1995), sugere a seu modo

não só as dificudades como também os possíveis contribuições de umaabordagem deste tipo. Esse filme procura narrar a história – praticamente

inenarrável pela ausência de fontes directas - do cativeiro dos africanos

destinados a serem embarcados para a América. Woukouache optou por mostrar

o pouco que ele tinha, como artista visual, à sua disposição: uma antiga feitoria

 portuguesa de escravos, localizada à beira-mar, que contém, além de uma série

de gravuras antigas, os instrumentos de repressão ou tortura que se usavamcontra os cativos. Sentado à beira e fitando o mar, um velho, absolutamente

mudo, «conta» a história a um jovem. As imagens e os elementos sonoros vão

se combinando de um modo que, aos poucos, o espectador, que ocupa o lugar

do moço, chega a «ouvir» o seu monólogo interior. É neste modo de contar que

se inspiram os ensaios deste livro. Em vez de imagens mudas mais ou menos

desconexas, a «matéria» que se trata aqui de transformar em linguagem

inteligível são os restos ou fragmentos de um discurso da resistência que se

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encontra como que «enterrado» nas fontes.

A leitura proposta oferece uma certa analogia com uma prática que consiste em

fazer ouvir as vozes dos ancestrais mortos através de ritos realizados diante dos

receptáculos que contêm «relíquias» por vezes microscópicas de um morto,

terra de cemitério, etc. Segundo os praticantes cubanos de ritos deste tipo, a

vibração que as cantigas rituais provocam nessas «relíquias» propiciam a

comunicação com os espíritos dos mortos. Aqui, para propiciar o surgimento da

voz de alguns africanos e afro-americanos mortos há muito tempo, se procuraráfazer vibrar, através da pesquisa, o esqueleto de sua palavra enterrada.

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Capítulo I

 MAMBO

CANTO RITUAL E MEMÓRIA ESCRAVA EM CUBA

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Religião e tradição oral dos «congos» cubanos

Cabeza kongo* cruzó la má

Cruzó mi nganga*

Cruzó la má

(Cabeça kongo* cruzou o mar

cruzou minha nganga*

cruzou o mar 5)

Os  paleros*, adeptos da religião afro-cubana chamada de  palo monte* (pau de

mato), consideram-se descendentes espirituais dos «congos» que chegaram a

Cuba enquanto escravos6. É num de seus mambos* - cantigas rituais - que

aparecem as palavras citadas. Elas aludem a um facto histórico: a travessia do

Atlântico pelos kongo escravizados. Nos poucos trabalhos até agora dedicados -

 parcial ou integralmente - a essa forma de expressão afro-americana que é omambo  tendeu-se a buscar, em primeiro lugar, sua articulação com os ritos

religiosos onde ele se manifesta. Os mambos  são, com efeito, um dos

instrumentos disponíveis para «chamar a atenção» das forças que protegem a

comunidade  palera. Invocadas pelo canto, essas forças executarão, segundo a

 percepção dos praticantes, as acções «boas» ou «más» que os tata nganga*

(‘sacerdotes’) lhes pedirem. As pesquisas etnográficas ou antropológicasaludidas7  são não só legítimas como também necessárias, mas elas tendem a

5 As cantigas transcritas neste capítulo pertencem ao repertório da «linhagem» religiosa Kalunga Munanzambe e foram gravadas em Julho de 1993 na casa de Roselio R. S em Havana. Na tradução para o português procurou-se imitar a sintaxe da lengua conga. As palavras seguidas de asterisco (*) se discutem no glossário final.6 O  palo monte compartilha numerosas referências com as culturas religiosas brasileiras de ascendência bantu:candomblé de Angola, candomblé de caboclo, umbanda, candombe, etc. 7 Ortiz 1965 e 1985 (pass.), Cabrera 1986 e 1992 (pass.), Castellanos 1992, 3: 127-202, 311-365, Thompson1993: 47-107. Não pude consultar a tese de doutoramento de Guillermo Calleja Leal (1989), inteiramente

dedicada ao  palo monte, mas Castellanos 1992 oferece abundantes referências a esse trabalho. Além destasobras «científicas» existem, em Cuba, vários tratados anónimos e sem título sobre o  palo monte, escritos semdúvida por alguns de seus adeptos.

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deixar de lado um aspecto fundamental dos mambos: a letra que acompanha o

canto. A meu ver, os mambos cumprem, além de sua função ritual, o papel de

memória histórica e cultural dos grupos que se reconhecem na cultura dos

«congos» cubanos. Independentemente da consciência histórica dos praticantes

actuais do palo monte, suas cantigas não deixam de levar rastos de um discurso

sobre a história de seus antepassados. Neste sentido, elas não só exprimem, por

meio da poesia, a relação dos praticantes com o seu cosmos religioso, mas

também oferecem o «testemunho» histórico deixado pelas sucessivas gerações

de descendentes reais ou espirituais dos «congos» escravos. É verdade que osmambos, «criptogramas» de ordem religiosa, não costumam referir-se

explicitamente à experiência da escravidão. Ora, numa sociedade como a

cubana que bem pouco se preocupou em resgatar a memória histórica dos

escravos africanos e de seus descendentes, toda a fonte, seja qual for a

dificuldade de sua leitura, é susceptível de fornecer um conhecimento inédito. A

índole ritual dos mambos faz com que a «informação» histórica depositada nassuas letras apareça indissociavelmente ligada à praxe religiosa. A sua

decriptação permite «ouvir» um discurso que manifesta, mais do que o relato de

uma sucessão de factos, uma reflexão global - ao mesmo tempo política e

religiosa - sobre a história da escravidão.

Em Cuba distinguem-se hoje em dia quatro ou cinco religiões de ascendênciaafricana. A mais conhecida delas, também a menos clandestina, é a  santería ou

regla de ocha, inspirada, como o candomblé nagô do Brasil, no culto dos orixás

dos iorubás da Nigéria. Segundo a grande etnógrafa cubana Lydia Cabrera, a

 santería, embora não reconhecida como tal, chegou em Cuba a ocupar

 praticamente a posição de uma «religião nacional». Ao contrário da  santería, o

 palo monte  se manteve sempre numa certa clandestinidade. No século XIX,

 porém, parece que foi a prática religiosa mais difundida nos engenhos

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açucareiros. Após o êxodo rural que provocou a abolição da escravatura (1886),

esta «regra» se difundiu também nos bairros populares das cidades. Tanto na

literatura científica como na conversa comum, os  paleros  são amiúde

qualificados - com uma intenção pejorativa evidente - de «bruxos» ou

«feiticeiros», enquanto a  santería  se apresenta como a mais «civilizada» das

religiões de origem africana. Contrariamente à religião dos orixás, a regla de

congo  – outro nome para nomear o conjunto das religiões cubanas de

ascendência bantu – penetrou bem pouco nos sectores acomodados da sociedade

cubana. O palo monte é, portanto, uma religião claramente «popular».

Longe de constituir uma comunidade centralizada, o  palo monte  se divide em

várias «tendências»: mayombe*, kimbisa*, b(r)iyumba*. Cada uma delas, por

sua vez, se ramifica em uma série de «casas» (munanzo*) ou «linhagens»

religiosas. A maioria das informações processadas neste trabalho provêm de

dois munanzo* de Havana, pertencentes à linhagem de Kalunga Munanzambe.Segundo as declarações recolhidas, essa linhagem, originária da província

açucareira de Matanzas, foi fundada em meados do século XIX. Na nómina dos

tata nganga  que se apresenta no começo das sessões rituais evocam-se ainda

nomes de escravos africanos da época da escravatura.

A ritualidade palera

  atinge seus momentos mais intensos na performance

  dosmambos.  Màmbu  é a forma plural de diàmbu, vocábulo kikongo que remete

 para «palavra» (palavra, verbo, conceito), «discurso» (mensagem, relato,

opinião, facto, queixa) e «diálogo» (conversa, negociação, juízo)8. Na África,

uma das manifestações características de màmbu  é a conversa ritual dos

makota* - os velhos da comunidade - debaixo de um embondeiro ou uma outra

8 Neste sentido não foi por acaso que o escritor congolês Guy Menga (1988) escolheu o nome de Moni-Mambou para o protagonista de seu romance  Les aventures de Moni-Mambou. Espécie de herói mítico picaresco, esta personagem aparece como portador da palavra e da memória histórica de sua gente.

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árvore grande. Num relatório administrativo de 1880, um emissário do governo

de Luanda em missão no concelho de Cambambe, Salles Ferreira, evoca uma

dessas sessões, «espécie de conferencia entre o Dembo e os macotas* [mais-

velhos, conselheiros]». Sublinhando o «estilo quase oriental» dos debates, ele

cita, em português, um trecho da fala dos makota: 

Vai, nosso pai. - vences assim os teus inimigos. De que temes? - O teu

caminho está varrido: - nenhumas sombras o apavoram! Tens medo da

imputação que te fazem da morte de Dom Thomé? - Mas elenaturalmente está em Loanda. - Calculando que tu receiando os efeitos da

acusação que te fazem não vás a Loanda, irá ele próprio lá - talvez lá

mesmo o encontres - senão em pessoa, os seus escritos, as suas queixas!

E que maior justificação queres tu? Os roubos que se dizem feitos nas

estradas? Mas o Rei não mandará prender-nos a nós que estamos quietos

debaixo dos embondeiros, ouvindo as ordens do mesmo Rei [...] (Oliveira1968: I, 201-202).

Em termos muito gerais, màmbu  é a «palavra» considerada como instrumento

da interacção social. No  palo monte, o mambo  cumpre todas as funções

aludidas: é palavra sagrada, é discurso sobre a religião, a história e a sociedade;

é diálogo ou «negociação» entre os participantes dum rito ou, ainda, entre eles eas «divindades» do mato e do mar. Ora, como é que mambo chegou a aplicar-se

exclusivamente, entre os paleros, à palavra cantada? Numa cantiga que abria no

Rio Inkisi (Congo belga) a investidura dos futuros chefes mpangu, se ouvia

[Wing 1921: 143]:

 K'uleki ko, e mambu wa, ma wa

 K'unimbi ko, e mambu wa, ma wa 

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 Não durmas não, ouve os assuntos, ouve-os

 Não fiques sonolento não, ouve os assuntos, ouve-os

 Nestes versos, mambu  remete para assuntos de grande transcendência para a

comunidade: o anúncio dos nomes dos novos chefes eleitos. Quando, hoje, os

 paleros  cubanos cantam cucha mambo  (‘escuta mambo’ ), podemos ainda

 perceber - embora os praticantes não tenham consciência da etimologia da

 palavra - um eco da fórmula mambu wa, ma wa: «ouve os assuntos que vamos

comunicar-te».

Os mambos  surgem sempre num contexto ritual. A sua sequência, objecto às

vezes de discussões animadas entre os participantes, obedece aparentemente a

uma espécie de hierarquia das «divindades» invocadas. A enunciação dos

mambos segue um padrão dialogal. O solista (S) introduz um tema que vai ser

repetido logo pelo coro (C) dos demais participantes. Esse tema é depoisvariado e enriquecido pelo solista, enquanto o coro o repete sempre na sua

forma primitiva. É o sistema da antífona, que o  palo monte partilha com muitas

outras culturas musicais de nosso planeta. Segundo as informações recolhidas

em Havana, a arte de variar o tema ou de «improvisar» se chama de

embo(b)ar *. Em espanhol, embobar   significa «maravilhar» ou «seduzir», mas

ememboar 

  talvez também ressoe a expressão kikongobwáta

* (-màmbù

),«conversar sem fim». O mambo, de toda maneira, é uma conversa sem fim com

as forças invocadas e, também, entre os diferentes participantes do rito. Bastante

repetitiva, a variação do tema se apoia num repertório mais ou menos estável de

fórmulas e frases feitas. Quando um novo tema aparece numa série de cantigas

que invocam a mesma «divindade», se diz que o mambo  «vira». Amiúde, a

intervenção de um solista novo serve para zombar da «mediocridade» do

anterior.

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A prática do intercâmbio de réplicas humorísticas, irónicas ou sarcásticas tem

antecedentes notáveis na cultura bantu tradicional9. Em Cuba, esse tipo de

intercâmbio verbal se chama de puya (cf. Lydia Cabrera 1992 [1954]: 350-351).

 No palo monte existe todo um repertório de cantos de puya já «prontos para seu

uso»:

S  En el monte* [...] kuyeyeré

 Hay un palo* que se esconde kuyeyeréYo pregunto pá lo ngangulero kuyeyeré

 Ese palo tiene un nombre qué palo é

(No mato [...] kuyeyerê

há um pau que se esconde kuyeyerê

eu pergunto pra os nganguleros kuyeyerê

esse pau tem um nome: que pau é?)C [repete o tema] 

S Yo pregunta tú responde kuyeyeré

 Ese palo tiene un nombre qué palo é

(Eu pergunta você responde kuyeyerê

esse pau tem um nome: que pau é?)

C[repete o tema]

 S [repete sua réplica anterior] 

C [repete o tema] 

S [repete novamente a mesma réplica]

A comicidade deste diálogo se baseia no facto de a pergunta ¿qué palo é? (‘que

9 Vejam-se, no próximo capítulo, os meus comentários sobre o nongo*.

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 pau é?’) não admitir resposta nenhuma10. É a actualização de uma fórmula bem

corrente na cultura caribenha, conhecida em Cuba como cuento de la buena

 pipa (‘conto do bom cachimbo’) e em Colômbia pelo nome de cuento del gallo

capón  (‘conto do galo capão’). Numa roda, um dos presentes pergunta: «Quer

que conte o conto do galo capão?». Seja qual for a resposta do interlocutor, o

autor da pergunta dirá (rindo): «Eu não disse para você me dizer sim (ou não),

mas perguntei se você quer que eu conte o conto do galo capão». E assim

sucessivamente.

Qual é a língua dos mambos cubanos? Esta questão se discute no apêndice deste

capítulo; para os leitores apressados bastam as observações seguintes. Os

 praticantes do «pau de mato» pretendem cantar em lengua, quer dizer numa

língua (litúrgica) especial. Bastante heterogénea em termos léxicos,

morfológicos e sintácticos, essa língua litúrgica, que não é igual de um mambo 

 para outro, retoma sem dúvida os rasgos principais da língua bozal  (‘boçal’), umespanhol deficiente que os escravos africanos ainda pouco familiarizados com o

espanhol «normal» falavam nas plantações e nas senzalas cubanas. O léxico

 propriamente religioso provém principalmente do kikongo, língua oficial do

reino (colonial) do Kongo. Atribuída pelos praticantes aos seus ancestrais

escravos, a lengua é uma língua sagrada e intangível como o foi o latim para os

católicos conservadores. Na sua vontade de sacralizar a língua de seusancestrais (reais ou espirituais), os praticantes do «pau de mato» exprimem sem

dúvida sua «solidariedade» para com os escravos que conseguiram recriar, num

contexto hostil, uma religião de ascendência bantu.

 Nkanga mundele: amarrar os brancos

10 No Brasil (Minas Gerais) existe um folguedo infantil que se baseia na mesma pergunta («Que pau é esse?»),só que neste caso, os interlocutores (as crianças) respondem indicando o nome da árvore: «jacarandá»,«peroba», «aroeira», etc. (Gomes / Pereira 2000: 439).

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Qual é a relação que os  paleros – comunidade mais ou menos marginalizada -

constroem, no seu ritual, entre o seu espaço e o espaço hegemónico? A reza

seguinte, que se enuncia ao começo das sessões rituais, oferece uma resposta a

essa pergunta:

S Yo nkanga* yo nkanga mundele*

(Eu amarro eu amarro branco)

S Va nkangando lo mundele 

(Eu vai amarrando os brancos)

C Yanguilé* (yandilé)

S Con licencia Sambianpungo

(Com a licença de Zambiampungu*)

C Yanguilé (yandilé)S Va nkangando tó lo que estorba 

(Eu vai amarrando tudo o que estorva)

S Va quitando vista mala 

(Eu vai tirando olho ruim)

S  Embele* sucio no me corta 

(Faca suja não me corta)S  Espina larga no me hinca 

(Espinho comprido não me pica)

S Cabo ronda no me ronda 

(Comandante da ronda não me ronda)

S Va si me ronda no me wiri* 

(Se me rondar não me sente)

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Yo nkanga yo nkanga mundele: «eu amarra eu amarra branco». Esta expressão

 parece ter uma longa história na cultura oral kongo. Já nos anos 1660, o rei do

Congo, em guerra com os portugueses, falava da necessidade de «amarrar os

 brancos» (Cadornega 1972 [1680]: II, 209). Enunciada pelo tata nganga depois

de cumprimentar as nganga* («divindades»), os ancestrais e os presentes, essa

reza acompanha a operação mágica chamada de «amarrar as quatro esquinas»

(nzila*) do bairro onde se realiza a cerimónia11. Mediante essa operação se

 pretende propiciar um espaço protegido para a realização de rito. Protegido

contra quem? Sobretudo contra o perigo potencial representado pelosmundele12, os «brancos» e os seus agentes. Graças à operação de nkangue, todas

as forças negativas ficam neutralizadas, incapazes de intervir: o comandante da

ronda não vai rondar, a faca não vai cortar, etc. O rito adquire assim um espaço

 próprio, protegido contra qualquer agressão.

O rito palero se inscreve numa paisagem na qual o «eu» colectivo que fala nosmambos  se opõe ao mundele. Chamando seus antagonistas de mundele

(‘branco’), os  paleros  actuais, negros, mestiços ou brancos, adoptam a

 perspectiva de seus «ancestrais» escravos, para os quais o inimigo principal não

 podia ser outro, naturalmente, que seu dono, tradicionalmente um branco.

Chega-se a pensar que a linguagem que eles herdaram de seus antepassados

reais ou espirituais se presta não só para manifestar a solidariedade dos«congos» actuais para com os escravos dos séculos passados, como também

 para se pronunciar sobre a realidade contemporânea vivida por eles. A meu ver,

11 Em kikongo, nzíla  é o «caminho»; na linguagem  palera, a intersecção de dois caminhos que se cruzam. Numa cidade, tais intersecções viram naturalmente «esquinas». Dono das intersecções é a divindade conhecida,na tradição iorubá, por Elegguá (Cuba) ou Exú (Brasil). No candomblé de Angola  da Bahia, essa função

 pertence ao inquice Bombojira*.12 Em kikongo, o plural de múndèlé é mindèlé. Das duas formas (singular / plural) que têm a maioria dos nomes

nas línguas bantu, a lengua conga conserva uma só, geralmente a que corresponde ao singular. Aqui, mundele éo branco como categoria social. Para pluralizar os nomes, a lengua  lhe antepõe o artigo plural do espanholcaribenho: lo(s), la(s).

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hoje, mundele não representa em lengua uma categoria racial: é, antes, o nome

que se atribui ao adversário social, seja qual for a cor de sua pele. Já se disse

que os  paleros  actuais representam sectores socioculturais mais ou menos

marginalizados. Aludindo aos antagonismos do passado, a oposição

«eu»/mundele  parece remeter também, pois, para as desigualdades sociais

actuais.

As potências «divinas»

Surgindo em um espaço protegido contra qualquer agressão, a voz do oficiante

 palero invoca, no começo da sessão ritual, as potências amigas:

S  Buena noche buena noche 

(Boa noite boa noite)

S  La buena noche si son de noche awé (Boa noite se é de noite awê)

S  Primero Sambia* que toda la cosa awé 

(Zambi antes de tudo awê)

S  Buena noche va con licencia lo nfumbe* nganga wé 

(Boa noite vai com a licença dos nfumbe nganga wê)

SVa con licencia [...] wé

 (Vai com a licença de [nome de um ancestral] wê)

S Va con licencia [...] wé 

(Vai com a licença de [nome de um ancestral mais antigo] wê

S [...] 

S Va saludando pa tó mi nganga wé 

(Eu vai cumprimentando todas minhas nganga wê

S Va saludando [...] wé 

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Lienhard: O mar e o mato 33

(Eu vai cumprimentando [nome de uma nganga] wê)

S Va saludando [...] wé 

(Eu vai cumprimentando [nome de uma outra nganga] wê)

S [...] 

 Nesta reza se cumprimentam Sambianpungo* ( Nzámbi-a-mpúngu) ou Sambia*,

divindade suprema dos «congos», alguns ancestrais da comunidade e as nganga 

(‘divindades’) presentes nos seus receptáculos. Abrangendo quatro ou cinco

gerações, a lista dos ancestrais mencionados inclui ainda nomes de algunsescravos de origem africana. Mediante essas invocações, os paleros reivindicam

a continuidade que existe, na opinião deles, entre os seus «ancestrais» africanos,

os escravos afro-americanos que recriaram a religião ancestral em Cuba e eles

 próprios. No reino do Congo, ngàngà designava os sacerdotes, os adivinhos e os

médicos tradicionais (Balandier 1965: 220-224). Ora, em virtude de uma

transferência semântica (do nome do sujeito para o objecto da acção ritual),nganga designa na reza citada as entidades que correspondem, no  palo monte,

aos antigos nkísi* do Congo13. Na obra de Olfert Dapper, cronista holandês do

século XVII, encontra-se uma definição bastante útil da «religião dos nkísi  /  

mukísi» nos reinos de Loango, Kakongo e Ngoyo, situados ao norte da foz do

rio Zaire14: «Com a palavra mokisie  ou – segundo outros – mokisses15, os

nativos se referem a uma falsa crença ou superstição natural, uma ideia fixa queeles conceberam acerca de uma coisa à qual eles atribuem uma força

13 Em Cuba, o termo nkisi  ainda coexiste com nganga  para designar os caldeiros nos quais moram as«divindades» do  palo monte. No candomblé de Angola  da Bahia (Brasil), nganga  e inquice  conservam

 praticamente a mesma significação que tinham na religião kongo tradicional. Segundo as explicações orais queme foram oferecidas por Valdina Pinto, makota* do terreiro Tanuri Junçara na cidade de Salvador, nganga sugere «superioridade», enquanto inquice é o nome genérico das «divindades» cultuadas. Nganga inquice é umaforma de se referir ao sacerdote dos inquices.14 O reino de Loango se localiza no território da actual república do Congo-Brazzaville, enquanto os deKakongo e Ngoio se situam em Cabinda.

15  Nkísi (plural idêntico) é a forma que designa essas forças em kikongo moderno (por exemplo na variedadelari de Brazzaville). Em vários dialectos do kikongo sobevive, porém, a forma mais antiga mukísi (plural mikísi),quase idêntica à forma kimbundu mukixi (plural mikixi).

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Lienhard: O mar e o mato 34

incompreensível para fazer algum bem em seu proveito ou alguma maldade ao

seu dono, ou ainda para facilitar-lhes o conhecimento de factos passados ou

futuros» (Dapper (1964 [1688]: 275-276). A essa definição, Dapper acrescenta a

observação seguinte: «O rei se chama de Mani-Lovango, quer dizer senhor de

Lovango, mas o seu povo o chama também de  Mokisie, porque ele tem, como

eles dizem, o poder incomum de matar alguém com uma palavra só, de destruir

o país inteiro, de elevar ou de humilhar uma pessoa, de enriquecê-la ou de

empobrecê-la, tudo à medida do seu capricho» (ibid .: 276).  Mukísi nomeia,

 portanto, um poder sem limites, sobre-humano. Nas páginas dedicadas aosreinos de Loango, Kakongo e Ngoio, Dappert oferece uma descrição bastante

detalhada das «forças» cultuadas pelos habitantes dessa área:

Os habitantes dos reinos de Lovango, Kakongo e Goi não foram tocados

 pela luz nem pela palavra de Deus. Só conhecem o nome dele e sabem

que é um deus, que eles chamam, na sua língua, de Sambian Ponge. Elessó invocam os diabos do campo e da casa, fabricando-lhes numerosas

imagens de formas muito diferentes e atribuindo a cada um um nome

 próprio. A um deles, eles confiam a chuva, a outros o raio, o vento e os

seus campos. A outros ainda, eles outorgam autoridade sobre os peixes do

lago, o gado e assim por diante. Vários tem a tarefa de proteger a saúde

deles ou de defendê-los contra a ruindade e a má vontade, outros a de proteger a linhagem ou de revelar todos os segredos ocultos e todas as

coisas já acontecidas. Todos eles, dizem, moram debaixo da terra. As

imagens que eles lhes dedicam têm as formas mais diversas. Algumas

tem a forma de seres humanos, outros a de um pauzinho coroado de um

ferrinho, outros ainda a de um pauzinho coroado de uma imagem.

Geralmente, quando partem para algum lugar, eles levam consigo esses

ídolos. Amiúde, eles colocam na cabeça dos grandes ídolos penas de

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Lienhard: O mar e o mato 35

galos ou de galinhas do campo e vestem-nos de trapos e outras coisas

engraçadas. Por vezes, eles os representam em forma de uma caixinha

comprida que amarram ao pescoço por meio de um fio. Outros [ídolos ou

talismãs] não são senão umas cordas com algumas penas pequenas e duas

ou três conchinhas de caracol, que eles colocam em redor da cintura, do

 pescoço ou do braço. Outros ainda são potes quase cheios de terra branca

ou chifres de búfalo recheados e provistos na sua ponta de anéis, aos

quais se atam alguns trapos (ibid .: 274-275).

É facil reconhecer, nesta descrição, figuras de nkísi / mukísi  e outros

instrumentos que aparecem na ritualidade das populações tradicionais da área

Congo-Angola. As nganga  ou nkisi  do  palo monte representam forças muito

semelhantes às que Dapper evoca na sua descrição dos «diabos do campo e da

casa» que se cultuavam nos reinos da foz do rio Zaire. Quer em Cuba quer noBrasil, muitos pesquisadores assimilaram-nos, porém, aos orixás, as divindades

antropomorfas da religião iorubá. Trata-se, sem dúvida, de um equívoco

 provocado pelo «iorubo-centrismo» que caracteriza, nesses dois países, a

 pesquisa sobre as culturas afro-americanas e, também, pelos empréstimos

iorubá que se descobrem nos cultos cubanos ou brasileiros de ascendência

 bantu. Na verdade, a concepção iorubá de um panteão composto por divindadesquase humanas é alheia às religiões tradicionais da África central. Como se

desprende, por exemplo, de um trabalho de Virgílio Coelho (2000: 91-109)

sobre os túmúndòngò do antigo «reino do Ndòngò», as «divindades»

características dessa área cultural são os «génios da natureza». Também no palo

monte cubano, as forças invocadas são, basicamente, elementos do cosmos

natural.

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Lienhard: O mar e o mato 36

 Nfinda: a floresta dos ancestrais

Memória e expressão privilegiada de um grupo humano, os mambos  esboçam

uma cosmologia: a imagem de um «mundo» completo. À primeira vista, esta

cosmologia parece atemporal, imóvel, desvinculada da história. O leitor que me

seguiu até aqui já compreendeu, porém, que os mambos  levam a marca da

história vivida pelos «congos» cubanos. É essa marca que procuraremos

identificar e comentar nas páginas seguintes. Para desvendar a cosmologia que

sustenta os mambos, vou me servir de um método que consiste em isolar asisotopias  temáticas presentes na letra dos textos. Em termos de análise do

discurso, a isotopia, segundo Carlos Reis (1994: 212), «consiste

fundamentalmente na reiteração sintagmática de elementos semânticos

idênticos, contíguos ou equivalentes». Nos mambos, as isotopias aparecem

como redes de imagens ou de conceitos sinónimos ou aparentados que

configuram como que as coordenadas do seu universo. Os fragmentostranscritos a seguir correspondem geralmente ao começo de um mambo. É no

começo, com efeito, que o solista (S) enuncia, em um ou vários «versos», o

tema que ele logo irá variar. Suprimi as intervenções do coro, que tão-somente

repetem a forma inicial do tema. Nos textos transcritos a seguir, as isotopias

dominantes remetem para os espíritos dos mortos e para o mato.

S  Nfinda* abre nfinda pá mayombe*

(Mato abre mato pra mayombe*)

S [...] 

S Gangulero* ya te llama 

(Tata nganga já te está chamando)

S  Nfinda fumbe* nganga ya te llama 

(Mato fumbe* nganga já te chama)

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S  Nfinda Sambianpungo* soberano nfinda 

(Mato Zambiampungu soberano mato)

S Vamo a la loma que yo va María

Ve buscá hueso que yo deja allá 

(Vamos pra colina que eu vai Maria

vá buscá osso que eu deixo lá)

S  Ah mira yo hala kindembo*(Ah olha, eu puxa caldeirão)

S  Allá pa lo monte me arrastra 

(Lá pra os matos me arrasta)

S  Ah nfumbe nganga me tá llamando 

(Ah nfumbe nganga me tá chamando)

S  Ah mira yo hala mi nganga (Ah olha eu puxa minha nganga)

S  Abre camino llegó las hora

 Llegó las hora llegó las hora 

(Abre caminho chegou as horas

chegou as horas chegou as horas)S Como juega mi nganga llegó las hora 

(Como joga minha nganga chegou as horas)

S Como va jugando mi palo llegó las hora 

(Como vai jogando meu pau chegou as horas)

S [...] 

S Va jugando briyumba* llegó las hora 

(Vai jogando briyumba chegou as horas)

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Lienhard: O mar e o mato 38

S [...] 

S  Fumbe nganga me n'bisa llegó las hora 

( Fumbe nganga me chama, chegou as horas)

S [...] 

S  Ah va con licencia mi nganga 

(Ah vai com a licença de minha nganga)

S  Mal rayo parta la fama kongo [nganga] 

(O diabo leve a fama kongo [nganga])S Va cuando kuenda m' fuiri quién me llora 

(Quando morrer, quem me chora?)

S Centella* vira ndoki

 palo vira ndoki 

(Centelha vira ndoki  pau vira ndoki)

S  Ah mi nganga vira ndoki 

(Ah meu nganga vira ndoki)

S [...] 

S  Fumbe nganga vira ndoki 

(Fumbe nganga vira ndoki)S Gangulero vira ndoki 

(Tata nganga vira ndoki)

Como já antecipei, uma das redes isotópicas que domina na letra destes mambos 

remete para os mortos e seus espíritos. Segundo Van Wing, grande etnógrafo

dos bakongo do Congo belga, os mortos, na cosmovisão kongo,

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Lienhard: O mar e o mato 39

são os vivos por excelência; estão dotados de uma vida que dura -

 bazilanga - e de uma potência sobre-humana, que lhes permite sair de

suas aldeias subterrâneas para influenciar, para o bem ou para o mal, toda

a natureza, homens, plantas e animais [Wing 1921: 283].

Já no fim do século XVIII, falando sobre populações bantu do interior da África

austral, um viajante português tinha se referido ao «excesso da superstição

desses cafres com os seus finados, pois claramente se vê que os consideram

como divindades» (Almeida 1798: 131). À rede isotópica que tematiza nosmambos a morte, os mortos ou os seus espíritos pertencem, em primeiro lugar,

(n)fumbe*, fuiri*, ndoki* e fwa*16. Em kikongo, mvúmbi* é um cadáver no qual

a alma - môyo - ainda está presente [Wing 1921: 278].  Fwìdì ou fwìri, passado

do verbo  fwà  (‘morrer’), significa «morto» ou «morreu».  Ndóki* é o feiticeiro

que conversa com os espíritos dos mortos.  Mfwà*, finalmente, se refere tanto à

«morte» quanto a «um morto» ou a «um moribundo». Embora fique bemevidente a relação de todos estes termos com a «morte», cada um a realiza, pois,

de maneira diferente. Em lengua conga, esses vocábulos também nomeiam a

morte, os mortos ou os seus espíritos. Segundo as explicações dos meus

informantes, (n)fumbe e  fuiri, praticamente sinónimos, representam o morto ou

o seu espírito em termos gerais; fwa refere-se - como em kikongo – à acção de

morrer. Assimilada geralmente àorixá

  Oyá-Yansã,Centella

  (‘Centelha’) é adona dos cemitérios. À maneira de uma adivinha bantu, o mambo seguinte alude

a essa sua função:

S Centella tiene un barco

que cabe todo 

(Centelha tem um barco

16 Fwa não aparece nos trechos citados, mas em vários mambos que não tive a ocasião de gravar.

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no qual tudo cabe)

O barco enigmático é, obviamente, o cemitério. Quanto a ndoki, trata-se de um

«morto ruim» ou o «morto com o qual se trabalha»; parece, porém, que o

significado tradicional de ndóki (‘feiticeiro’) ainda ressoa nesses textos. Quando

os  paleros  cantam que Centella,  palo, nganga, nfumbi-nganga  e ngangulero 

«viram» ndoki, eles parecem querer dizer, com efeito, que essas entidades se

transformam em espíritos capazes, como os ndóki feiticeiros, de realizar

trabalhos mágicos.

À rede isotópica que tematiza a morte e os mortos pertencem, também, palavras

como hueso (‘osso’), kisénguere* (fragmento de tíbia que serve ao tata nganga 

de «ceptro») ou, ainda, kindembo: o caldeirão que contém «relíquias» dum

morto. Ora bem, o vocábulo mais repetido nos mambos é nganga. Se ngàngà,

em kikongo, nomeia o mago, o adivinho ou o médico tradicional, nos mamboscubanos, nganga, enquanto nome feminino, remete para as forças cósmicas com

as quais trabalha o sacerdote17. Nos fragmentos transcritos, nganga  aparece

freqüentemente na combinação nfumbe nganga. Qual é a significação exacta

desta justaposição? Na sintaxe da lengua, a sucessão de dois nomes cumpre,

segundo o caso, uma das três funções seguintes: concatenação (A e B),

dependência (A de B) ou aglutinação (A-B). A frequência da combinaçãonfumbe nganga sugere que se trata de um nome composto.  Nganga seria então

um atributo de nfumbe, «morto que é – ou que virou – força cósmica». De

qualquer maneira, nfumbe nganga sugere uma relação estreita entre as nganga e

os espíritos dos mortos. Apoiando-se nas declarações de seus informantes,

Lydia Cabrera (1986: 126) chegou a afirmar que «Nganga significa, ademais,

17 Os paleros antigos ainda empregavam nganga (m.) para designar os seus sacerdotes, mas na actualidade,nganga só se utiliza, como nome feminino, para nomear as forças cósmicas que se invocam nos ritos. Não se pode excluir, porém, que os mambos conservem ainda, por vezes, o significado antigo dessa palavra.

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Morto». Tem de se levar em conta que nganga não é só uma «força cósmica»,

mas também o nome dos receptáculos onde ela fica como que presa. Neste

sentido, a nganga do «pau de mato» não deixa de lembrar o «cofre» - mosete -

que possuía Njinga (Nzinga), rainha de Matamba e adversária dos portugueses

que tinham invadido, na primeira metade do século XVII, uma parte do actual

território angolano. Segundo António de Oliveira de Cadornega, cronista

 português contemporâneo da rainha, ela

encerrava dentro [do mosete] os ossos de seus antepassados com muitasoutras imundícias, o que tinha esta Rainha em grande veneração, fazendo-

lhe muitos sacrifícios de gente que mandava matar em seu obséquio,

derramando-lhe muito vinho e fazendo-lhe outras ofrendas [sic] de

animais de toda a casta, degolando-lhos e vertendo-lhe o sangue ao pé

onde o tinha colocado, e todas as vezes que saia fora o levava consigo, e

tinha esta Rainha para si que levando-o consigo, levava nele amor,fortaleza e bom sucesso de suas empresas, e se lhe sucedia mal em

algumas occasiões de guerra o attribuia a estarem seus defuntos e

antepassados dela enfadados por lhe não haver feito as oferendas mais

copiosas e a miúdo (Cadornega 1972 [1680]: II, 167.

Obviando os elementos atribuíveis à linguagem e aos preconceitos do autor(«imundícias», «sacrifícios de gente»), essa descrição do mosete e de sua função

no culto dos antepassados sugere uma importante analogia entre esse objecto

venerado pela rainha de Matamba e os receptáculos mágicos - nganga  - dos

«congos» cubanos. Retomando a expressão de um amigo  palero, a nganga  é

«um pequeno mundo onde mora o morto». Não há dúvida, portanto, que nganga 

também faz parte da rede isotópica que estamos discutindo.

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Mas onde é que moram os (n)fumbi, ndoki, (n)ganga, fuiri ou  fwa? Os mambos 

os localizam na (n)finda  (‘mato’, ‘floresta’), no monte  (‘mato) e na loma 

(‘colina’). O espaço a que esses termos aludem – o «mato» - constitui a segunda

isotopia  presente nos mambos  transcritos. Já num documento português do

século XVII se dizia que os kongo «enterravam os mortos numas montanhas em

uns lugares frescos e agradáveis que chamam infindas» (Cuvelier / Jadin 1954,

doc. 18: 123, citado por Balandier 1965: 255). A relação entre o mato e os

mortos é, portanto, bem mais antiga do que a cultura que se exprime nos

mambos. Nessas cantigas, o mato é um espaço ao mesmo tempo real e mítico. Éno mato (real) que os tata nganga  encontram as ervas, as pedras e os paus

necessários às suas práticas. Na mitologia kongo, como lembra Bentley, mfínda 

é o «país dos mortos» por excelência. Em Cuba, nfinda, palavra de origem

africana, «evoca» – no sentido mágico desse termo – a grande floresta,

longínqua e inacessível, da África central. Neste sentido, os  paleros, aludindo à

nfinda, lembram as «origens», a história dos africanos antes de sua deportação para a América. Essa história é a pré-história dos «congos» cubanos.

 Neste contexto, convém enfatizar a aparição bastante frequente, na letra dos

mambos, da palavra mayombe. Um olhar para o mapa monstra-nos o maciço de

montanhas que leva esse nome, localizado a norte do rio Zaire entre a actual

República do Congo-Brazzaville, a República Democrática do Congo-Kinshasae o território de Cabinda. Com suas árvores gigantes e sua vegetação densa, o

Mayombe representa a mfìnda  por excelência. Os yombe, habitantes da área,

eram grandes praticantes da religião dos nkisi (MacGaffey 1991). Na verdade, é

a essa prática e não ao topónimo que alude mayombe  nos mambos  cubanos.

 Mayombe, com efeito, é um dos nomes que designam a prática mágica dos

 paleros, chamada também de juego* (‘jogo’) ou, simplesmente, de palo (‘pau’):

 Nfinda abre nfinda pá mayombe (‘mato abre mato pra o mayombe’). Através do

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diálogo com os mortos, essa prática propicia a reintegração dos praticantes no

espaço da nfinda. Aparentemente, mayombe é o núcleo mais arcaico da religião

 palo monte, livre ainda da influência da religão dos orixás. « Mayombe  é

feitiçaria pura», sublinhou um de meus informantes. Seja como for, o ritual

 palero se desenvolve no meio da atracção irresistível que a nfinda exerce sobre

os seus adeptos:

 Nfinda nfumbe nganga ya te llama 

(Mato nfumbe-nganga já te chama)

O mato e as forças que ele abriga chama, atrai ou arrasta os praticantes do «pau

de mato». O espaço protegido do rito - lembre-se a operação de «amarrar o

mundele» - vira nfinda  ou «África». O cenário no qual se desenvolvem as

actividades rituais reproduz um ambiente «florestal» ou contém, pelo menos,

uma série de elementos característicos da floresta tropical18

. Amiúde o voo doabutre mayimbe* (kk.  yìmbi,  pl. mayìmbe), assimilado à aura tiñosa cubana,

indica que estão reunidas as condições para iniciar o «jogo», para entrar na

nfinda: 

S Como vuela mi mayimbe sunsuña* mi n'gavilán 

(Como voa meu abutre galinha meu falcão)S Ya son las hora mi panguiame* awé 

(Já são as horas meu amigo awê)

S  Lo munanzo Siete Rayo* awé19 

(A casa de Sete Raios awê)

18 Uma encenação «florestal» caracteriza também o rito cabouclo na Bahia, notoriamente influenciado pela

cultura bantu importada.19 A casa (munanzo*) onde se gravou este mambo pertence a Siete Rayos (Sete Raios), «equivalente» do orixáXangô.

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S Sunsuñando* sulu* nganga awé 

(Galinhando no céu nganga awê)

 No âmbito de uma prática que se baseia na comunicação com os mortos, não

surpreende o encontro com o espírito de mayimbe, ave necrófaga. Seu voo é um

convite ao «jogo», a se reintegrar no espaço inculto ou «selvagem».  Mayimbe

n'palo me lleva pa la loma:  « Mayimbe  e o ‘pau’ me leva pra as colinas».

 Mayimbe  – segundo Laman (1936) o nome de um grande nkisi  – é uma das

forças associadas ao espaço da nfinda. Nos mambos, o voo dessa ave – chamadatambém de saura - descreve a atracção que as forças do mato exercem sobre os

 praticantes: Como saura me lleva n'palo nganga: «A árvore-nganga me arrasta

como a aura tiñosa). O «jogo» implica o «deslocamento» para esse espaço das

origens onde moram os espíritos mortos, para uma «África» utópica. Nos seus

ritos, com efeito, os paleros repetem vezes sem fim, mas em sentido contrário, a

viagem que os seus ancestrais fizeram quando foram deportados pelosescravistas.

A cosmologia que caracteriza o universo dos mambos estabelece, portanto, uma

relação constante entre dois espaços separados. O primeiro é o lugar real onde

se encontram os praticantes, um quarteirão da cidade de Havana com suas nzila 

ou «esquinas». Mediante a operação de «amarrar o branco», este lugar real setransforma em espaço sagrado propício ao desenvolvimento da acção ritual. O

segundo é a nfinda, espaço para o qual os praticantes são como que «aspirados»

 pelos espíritos dos seus ancestrais e pelas forças chamadas de nganga.

Aparentemente abstracto, intemporal e puramente «religioso», o espaço da

nfinda evoca, porém, o mundo real, histórico, que os antepassados dos  paleros 

se viram forçados a abandonar ao sofrerem a deportação para a América. Ao

enfatizar constantemente a existência paralela desses dois espaços e dos seus

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vínculos recíprocos, os mambos  lembram, a seu modo, a deportação que

sofreram os seus prováveis criadores.

 Kalunga: o mar e a morte

O conteúdo dos mambos é basicamente religioso. Isso não impede, porém, que

neles se tematize, de alguma forma, a deportação dos africanos para a América e

a experiência da escravidão nas plantações americanas. O tema da travessia do

Atlântico aparece sobretudo nas cantigas que invocam a madre de agua  (‘mãed'água’), chamada também de mamita lango* (‘mãezinha d'água’: nlángu*, em

kikongo ocidental, significa ‘água’).

S Cabeza kongo cruzó la má

Cruzó mi nganga

Cruzó la má (Cabeça kongo cruzou o mar

cruzou meu / minha nganga 

cruzou o mar)

S  Ah mi nganga ndoki

Cruzó la má 

(Ah meu / minhanganga ndoki

 cruzou o mar)

S  Mi madre de n'agua

cruzó la má 

(Minha mãe d'água

cruzou o mar)

Para os escravistas, os escravos não eram senão  peças  ou corpos sem cultura

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nem inteligência. Ao evocar a deportação marítima dos africanos, este mambo 

adopta uma perspectiva diametralmente oposta: quem atravessou o mar foi uma

«cabeça», sede de um pensamento e de uma cultura. Essa «cabeça» não viajou

sozinha; outros passageiros da nave foram, com efeito, nganga, nganga ndoki e

a madre de agua. Nessa nave, em uma palavra, viajou toda a cultura religiosa

kongo. Os historiadores modernos do comércio escravista costumam insistir,

não sem razão, na perda de identidade que provocou a deportação-dispersão nos

africanos escravizados. Cativos ou descendentes de cativos, os criadores dos

mambos, ao contrário, preferem interpretar a deportação dos africanos para aAmérica como um grande momento de expansão da cultura e da religião kongo.

A «mãe d’água» é uma nganga muito importante nos ritos da «linhagem» à qual

 pertencem os mambos transcritos ao longo deste capítulo. Um dos nomes dela é

kalunga: 

S  Kalunga kongo brinca la má

Saca tu mano

tira tu penca*

 pá curá yo 

(Kalunga kongo salta o mar

Tira tua mão joga fora tua penca*

 pra eu curar)

 Kalùnga*, em kikongo, se refere ao «mar»20. Segundo Van Wing [1921: 83],

kalunga é uma palavra «muito obscura» que se explicava, entre os bampanga do

20 Parece que em kikongo, o uso desse termo se limita ao discurso cosmológico. Para se referir ao mar enquantorealidade geográfica, se usa mbú*.

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rio Inkisi (no Congo belga naquele tempo), por meio de uma espécie de

adivinha: Kalunga nkoko unene, lungila meso, k'ulungila ntambi ko (‘Kalunga é

um grande rio que se pode percorrer com os olhos, mas não com as pernas’).

 Num relato de 1784 sobre as suas negociações com o «rei de Cabinda» ou

Mamangoy, o coronel português Pedro Alvares de Andrade escreve que «era

vedado aos reis de Cabinda o verem mais o mar logo que eram elevados ao

trono». Era essa, acrescenta o coronel, uma lei que o rei de Ngoyo, território

localizado ao norte do rio Zaire, «guardava como seu principal feitiço»

(Oliveira 1968: 5). Surpreendente à primeira vista, esse tabu religioso impostoao chefe de um estado em parte marítimo sugere que na cosmovisão dos ngoyo,

o mar representava uma força temível21. Na verdade, kalunga –  palavra de

origem kimbundu - é uma noção bem complexa em termos semânticos. Na sua

 História das guerras angolanas, Cadornega afirma que «O nome de Calunga

tem duas significações na língua Ambunda de Angola, porque Calungo [sic]

chamam à morte; e chamam Calunga ao mar, que para eles é o mesmo que amorte» (Cadornega 1972 [1680]): I, 414). Trata-se de um comentário à narração

de um episódio no qual um português preso na corte da Rainha Njinga (Nzinga),

disfarçado por ela de mulher, responde a uma pergunta da soberana dizendo

queleca calunga queto, fórmula que o cronista traduz por «é verdade minha

morte» (Cadornega 1972 [1680]): I, 414).  Kalunga  é também, portanto, um

título que se atribui a uma pessoa poderosa e temível

22

. O missionário suíçoHéli Chatelain, pioneiro da linguística kimbundu, apresenta numa nota de sua

obra Contos populares de Angola  as diferentes significações de kalunga  que

encontrou nas suas pesquisas em Angola: « Kalunga é ainda uma palavra

misteriosa que aparece nas linguagens bantas. Em quimbundo tem muitas

21 Para uma explicação antropológica desse tabu, veja-se o sugestivo trabalho de Carlos M. Serrano (1983), Os senhores da terra e os homens do mar: antropologia política de um reino africano.

22 Em várias línguas bantu actuais, kalunga, segundo o etnógrafo Estermann (1983: vol. 2, 211-215), traduz aideia de «Deus». É provável que os missionários, para nomear a divindade suprema da religião cristã,escolhessem esse nome porque aludia, na percepção dos autóctones, a um poder temível.

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significações: (1) Morte; (2)  Ku’alunga, Residência dos mortos; (3),

 Mu’alunga, o Oceano23; (4) Senhor; com esta significação somente é usada

 pelos I’mbangala e alguns dos seus vizinhos; em Luanda nunca; (5) algumas

vezes uma exclamação de espanto, admiração (Chatelain (1964 [1894]: 538)».

Segundo o estudioso zairense Fu-Kiau (veja-se Thompson 1993: 47-55), o mar,

na cosmologia kongo tradicional, era um espaço de transição que separa o reino

dos vivos do reino dos mortos. Nos cosmogramas kongo, kalùnga é uma barra

horizontal que separa o hemiciclo da vida do hemiciclo da morte. Tanto o sol

quanto os homens atravessam ciclicamente essa linha para «morrer» e para«renascer».  Kalunga  ou o «mar» representa, pois, um espaço ambivalente,

«positivo» e «negativo» ao mesmo tempo.

Entre os «congos» cubanos, kalunga  conserva essa fundamental ambivalência.

Um dos informantes de Lydia Cabrera (1992: 177) explica que «morto é

Kalunga. Coisa estranha é Kalunga. O cemitério é Kalunga e o inferno e ooutro mundo. E rei é Kalunga. E mar é Kalunga»24. Um outro, chamando o

cemitério de  Nfinda Kalunga, confirma indirectamente o parentesco assinalado

 por Bentley em 1887 entre o «mar» e a mfìnda  (‘floresta’) enquanto espaços

onde moram, segundo os kongo, os espíritos dos mortos.

Para os paleros

, o «mar», como a(n)finda

, é também um espaço que propicia oreencontro com a «África». Quer na África quer na América, o mar é sempre o

mesmo mar: o mar mesmo. Num mambo  que pertence à mesma série que os

 precedentes, o tata nganga introduz as fórmulas seguintes:

23 Mu e ku são duas preposições de lugar que se costumam traduzir, ambas, por «em». Mu’alunga remete parao que está dentro do mar, enquanto ku’alunga alude a algo que, embora separado, está próximo do mar.

24 Essas definições de kalunga  lembram as que Assis Jr. (1947) oferece no seu dicionário do kimbundu:«grande», «incomensurável», «oceano», «imensidade», «desgraça», «morte», «pessoa de alta hierarquia»,«Deus», «morte», «O Além» e «A Eternidade».

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S Yo traigo arena

del fondo de la má 

(Eu trago areia

do fundo do mar)

S Yo traigo arena

 pá mi cazuela 

(Eu trago areia

 pra minha gamela)

S Yo traigo arenami madre nganga

Yo traigo arena 

de tierra ajena

(Eu trago areia

minha mãe nganga 

Eu trago areiade terra alheia)

 Nos ritos do  palo monte, a areia do mar - «cemitério» ou «país dos mortos» -

 propicia, como a terra de cemitério, a comunicação com os espíritos dos mortos.

Quando precisam de terra africana para as suas gamelas mágicas, os tata

nganga  a extraem «do fundo do mar». Se o mar é sempre o mesmo mar,

também o mar «cubano» pode oferecer «terra alheia»: terra africana.

 No palo monte, a conotação histórica de kalunga é sem dúvida mais forte que a

de nfinda, o outro «país dos mortos». Se nfinda  é um «país dos mortos»

atemporal, kalunga – o mar – não pode deixar de aludir ao momento (histórico)

da separação, à travessia, ao tráfico atlântico. No mar moram os espíritos dos

mortos que nele se afogaram durante a travessia. Diga-se aqui, entre parêntese,

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que a conotação histórica de kalunga  também aparece nalguns testemunhos do

lado africano do Atlântico. Num conto de Agostinho Neto (1980: 21-30),

«Náusea», o velho João vai meditando na praia: «E o mar é sempre Kalunga. A

morte. O mar tinha levado o avô para outros continentes. O trabalho escravo é

Kalunga. O inimigo é o mar.» Se neste relato se enfatizam os aspectos negativos

de kalunga, na ritualidade dos «congos» cubanos, no outro lado do mar,

kalunga, além de lembrar a deportação que sofreram os ancestrais, garante

também a permanência da relação com a «África», terra de «origem» da

comunidade palera.

Antes de passar ao ponto seguinte, não quero deixar de lembrar que na

ritualidade de algumas colectividades populares brasileiras de remota

ascendência kongo ou bantu, se descobrem vestígios de um discurso sobre o

«mar» que oferece evidentes pontos de convergência com o dos mambos 

 paleros. Isso acontece, em particular, com os Arturos, comunidade negra deMinas Gerais que foi estudada por Núbia Pereira de Magalhães Gomes e

Edimilson de Almeida Pereira (Gomes / Pereira 2000). No chamado Congado 

dos Arturos, festa «bantu-católica» que inclui, entre outros ritos, uma encenação

da coroação dos reis do Congo, o canto da «guarda de Moçambique» enfatiza a

origem «marítima» de alguns elementos da cultura dos seus praticantes:

 Ah, ei, ingoma*

 Ah, ei, ingoma

 Essa gunga* vei lá do mar

Correu mundo, correu mar

Correu mundo, correu mar

(ibid .: 372)

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«Latinhas com esferas de chumbo em seu interior e que são amarrados aos

tornozelos dos dançantes» (Gomes / Pereira 2000: 627),  gunga25 aludem não só

a um elemento da cultura bantu que atravessou o mar, como também à

experiência da escravidão: no Brasil, com efeito,  gunga  era um «sinete usado

durante o cativeiro, preso ao tornozelo dos escravos, para denunciar-lhes as

fugas» (ibid .).  Ingoma, segundo os autores do estudo sobre os Arturos, é um

termo que nomeia os dançantes do Congado e, também, «o conjunto da herança

recebida dos antepassados» (ibid .). Originalmente, ngòmà* (em kikongo) e

ngóma  (em kimbundu) designa um tambor ou atabaque muito comum. Nestacantiga, como nos mambos  dos  paleros  cubanos, sublinha-se pois que os

escravos atravessaram o mar com toda sua bagagem cultural.

Outro grupo, a «guarda do Congo», invoca uma «mãe d’água» que oferece uma

similitude evidente com a dos  paleros. Segundo a tradição local, ela apareceu

aos «marinheiros» (escravos negros) jogados na água pelos donos de um navioem perigo:

O marinheiro

 Lá no mar balanciô,

O marinheiro

 Lá no mar balanciô,

Ô sereia, ô cai n'agua

Ô sereia, ô langô

Ô pai Xangô*

(ibid .: 374)

Um dos nomes dessa «mãe d’água» invocada é «sereia». Na cultura ocidental, a

25 Tanto ngùngà, em kikongo, quanto ngúnga, em kimbundu, significa «sino» ou «sinete» (v. glossário).

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«sereia» tem uma longa trajectória. Como se desprende dos trabalhos de Félix

Báez-Jorge (1992) para as Américas e de Virgílio Coelho (1997) para Angola, a

entidade chamada de «sereia» é amiúde, porém, de tradição basicamente local.

Sirena (‘sereia’) é também um dos nomes que designa a mãe d’água nos

mambos paleros:

S Sirena sirena

 sirena de la má

Quien fuera marinero pá ve(r)te navegá 

Sereia, sereia

Sereia do mar

Que bom seria ser marinheiro

Para ver-te navegar

Um dos nomes usados pela «guarda do Congo» na sua invocação da mãe d’água

é lango ou langô. Originário do Congo, esse termo – nlángu - significa «água».

Os  paleros cubanos, como já vimos, se apoiam, ao invocarem mamita lango 

(‘mãezinha d’água’), no mesmo vocábulo. Ora bem, nlángu só existe em alguns

dialectos do ocidente da área linguística kongo. Parece, portanto, que os paleros 

cubanos e os Arturos brasileiros compartilham referências africanas bemespecíficas. Os Arturos, porém, não têm consciência plena do substrato africano

que existe nas cantigas deles. Segundo uma testemunha, «a gente nem sabe o

que elas diz, é como se outro, antigo, cantasse na gente, através da gente»

(Gomes / Pereira 2000: 151). Alguns velhos lembram ainda que a sereia do mar

é a antiga «Calunga»: o mar. É assim, sem dúvida, que se pode interpretar uma

outra cantiga que diz: «Ei Calunga me leva / Pra minha terra» (Gomes / Pereira

2000: 289). «Minha terra», nesta caso, remete para a África, e Calunga - o mar –

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é o meio de transporte ou caminho que permite chegar lá. Os pesquisadores

lembram, porém, que, entre os Arturos, a reminiscência de Calunga «é tênue,

em vias de desaparecimento» (ibid .: 485).

O engenho açucareiro

Em Cuba, a partir do boom  do açúcar que começou nas últimas décadas do

século XVIII, açúcar e escravidão se tornam, como em outros lugares análogos,

 praticamente sinónimos. Desde essa data, a existência de plantações de cana-de-açúcar foi o motivo principal para a importação de escravos. Nesta última fase

do comércio atlântico, muitos – talvez a maioria - dos africanos deportados para

Cuba eram iorubás. Em muitas senzalas, porém, os cativos procedentes da área

Congo-Angola central continuavam a impor sua lei. Vários mambos  paleros 

evocam explicitamente a vida dos escravos «congos» nos engenhos açucareiros,

seu principal lugar de trabalho.

S Glin glin glin macotero* [...]

Suena la campana del ingenio 

(Glin glin glin macoteiros

soa o sino do engenho)

SSuena la campana arriba nganga macotero

Suena la campana briyumbero* 

(Soa o sino viva ngangas macoteiros

soa o sino b(r)iyumberos 

S [...] 

S Suena la campana pa que sacan

Tó lo negro macotero [...] 

(Soa o sino pra tirar

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todos os negros macoteiros)

Há motivos para supor que este e outros mambos semelhantes foram compostos

entre 1840 e 1886 (data da abolição definitiva da escravatura). Por volta de

1840, em Cuba, a percentagem de escravos recém-chegados alcançou valores

espectaculares26. Nos barracones e nos bohíos onde moravam os escravos

rurais, isso implicava, sem dúvida, a preeminência das línguas africanas sobre o

espanhol (ou a língua boçal ). Ora, a linguagem dos mambos – basicamente uma

espécie de espanhol simplificado - pressupõe o retrocesso das línguas africanas,que deve ter começado na década de 185027.

A perspectiva a partir da qual esses mambos  evocam a vida dos escravos nas

 plantações não tem nada em comum com a que se encontra na narrativa

abolicionista cubana, escrita geralmente por membros «liberais» das famílias

 sacarócratas  (Moreno Fraginals 1995: 190-205) ou, ainda, nas narrativas dedezenas de viajantes estrangeiros28. Nas crónicas e nos romances dos cubanos

Cirilo Villaverde ou Anselmo Suárez y Romero, como também nas narrativas

desses viajantes, a imagem do engenho costuma oscilar entre um quase-paraíso

 patriarcal e um inferno opressivo. Os escravos são descritos quase sempre como

uma massa dócil e passiva. Nos mambos  que evocam a vida no engenho, a

 perspectiva é radicalmente diferente: donos do espaço da plantação são, aqui, oslíderes religiosos dos «congos». O sino do engenho que ritmava, como nos

26 Em 1841, a importância relativa da população escrava em Cuba atinge o nível mais elevado: 436 495escravos opõem-se a 152 838 pessoas de cor livres e a 418 291 brancos (Ortiz 1987 [1916]: 38).27 Não se pode excluir que algumas destas cantigas tenham sido compostas ou modificadas em data posterior.Comparando os mambos transcritos por Fernando Ortiz e Lydia Cabrera a partir da década de 1950 com os quegravei quatro décadas depois, se observa uma «desafricanização» progressiva, embora lenta, de sua linguagem.28 Estou me referindo, em particular, ao romance  Francisco (1970 [c. 1835]) e a uma crónica jornalística deAnselmo Suárez y Romero como « La casa del trapiche » (Bueno 1970 [1853]), como também a Cecilia Valdés,romance famoso de Cirilo Villaverde (1981 [1882]). No seu trabalho  Los esclavos negros, o etnólogo cubano

Fernando Ortiz (1987 [1916]) apresenta uma «antologia» de descrições literárias da vida dos escravos nosengenhos açucareiros do século XIX. Para os viajantes estrangeiros, consulte-se Slaves, sugar & colonial society. Travel accounts of Cuba, 1801-1899 de Louis A. Pérez Jr. (1992).

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aldeamentos indígenas coloniais, a vida dos seus moradores involuntários, é

aqui o sinal para os macoteros  ou os briyumberos  iniciarem seus «trabalhos»

(mágicos).  B(r)iyumba* é hoje o nome de uma das tendências do  palo monte.

Quanto aos macoteros, é provável que sejam portadores de makuto29, sacos

«mágicos» que contém uma nganga. De toda maneira, o que evoca este mambo 

é uma mobilização geral dos «feiticeiros». Graças ao poder destas personagens,

o trabalho nos canaviais se transforma, no duplo sentido que essa palavra tem na

linguagem dos paleros, num «jogo».

S Si congo va al ingenio

 yo va con él [bis] 

(Se congo vai pra o engenho

eu vai com ele)

S  E si congo viene bueno

 yo va con élSi congo viene malo

 yo va tras él  

(E se congo vier bom

eu vai com ele

Se congo vier ruim

eu vai com ele)S Si congo corta caña

 yo va con él

Corta caña sin machete

 yo va con él  

(Se congo corta cana

eu vai com ele

29  Nkútu* em kikongo.

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Corta cana sem machado

eu vai com ele)

S Sube caña a la carreta

 yo va con él

Va solito a hacer su zafra

 yo va con él  

(Sobe cana para a carreta

eu vai com ele

Vai sozinho fazer sua colheitaeu vai com ele)

 Neste mambo se alude a um dos momentos mais duros na vida dos escravos nos

engenhos: a safra ou colheita da cana-de-açúcar. Não há, porém, queixa

nenhuma quanto ao excesso ou à dureza do trabalho. Quem faz tudo, na

verdade, é congo, enquanto o «eu» do texto – aparentemente um escravocomum - se limita a «ir com ele». Quem é esse «congo»? Na Cuba escravista,

«congo» se referia geralmente aos cativos procedentes não só do Congo como

também de outros lugares da área Congo-Angola. Os ex-súbditos do rei do

Congo eram chamados de «congos reales». Nos mambos, porém, «congo»

designa especialmente os líderes espirituais da comunidade, os tata nganga, os

«feiticeiros». Nummambo

  recolhido por Lydia Cabrera, muito semelhante aoque aqui se cita, é ndoki quem ocupa o lugar de kongo. Ora, ndoki – ndòki em

kikongo – remete para a feitiçaria. No nosso mambo, «congo» alterna trabalhos

«bons» e «ruins»: Si kongo viene bueno / Si kongo viene malo. Ele nem precisa

de machado para cortar a cana, e sozinho, ele coloca as canas cortadas na

carreta.

Além de evocar o trabalho dos escravos nos engenhos, os mambos  encaram

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também um outro aspecto característico do cativeiro: os castigos que os feitores

aplicavam aos escravos insubmissos:

S Si negro coge cuero

 yo mata mayorá

 A yo mata con mi maña

 yo mata mayorá 

(Se negro receber açoite

eu mata feitorah eu mata com minha manha

eu mata feitor)

S Yo mismitico Siete Rayo

 yo mata a mayorá 

(Eu mesmo Sete Raios

eu mata feitor)S Yo lo mata con mi mbele

 yo mata a mayorá 

(Eu o mata com minha faca

eu mata feitor)

S Sambianpungo me kutara*

 yo mata a mayorá 

(Zambiampungu me proteja

eu mata feitor)

S Sarabanda* é mi confianza

 yo mata a mayorá 

(Sarabanda é minha confiança

eu mata feitor)

S Yo le saca ya la menga*

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 yo mata a mayorá 

C (Eu lhe tiro já o sangue

eu mata feitor)

Aqui, o «eu», auto-identificando-se como Siete Rayos (nganga ligada ao fogo e

ao trovão), adverte que matará quem ousar castigar o «negro» (escravo). Talvez

esse canto tenha tido, durante a escravatura, a função de «amarrar» o feitor, de

impedir que ele possa exercer a sua violência contra o «negro». De toda

maneira, a firmeza do «eu» se apoia nos seus poderes e na sua manha (faculdade mágica), quer dizer nas «forças» que ele sabe movimentar. Na sua

«advertência», ele invoca também Sarabanda  (o guerreiro «congo» por

excelência, semelhante ao orixá Ogum) e Sambianpungo, a divindade suprema

dos «congos». Caso o feitor ousasse castigar o «negro», Siete Rayos  acabaria

com ele. A ideia que traduz este mambo é que a comunidade, graças ao poder

dos seus líderes espirituais e à protecção das ngangas, nunca ficará exposta,indefesa, à arbitrariedade dos donos e dos feitores do engenho.

Protegida pelos «feiticeiros», a comunidade dos escravos exerce, no discurso

triunfalista destes mambos, um controle absoluto sobre o engenho. Em vez de

um espaço submetido ao sistema escravista, a plantação aparece como o

«terreiro» de feiticeiros. Talvez o triunfalismo destemambo

  traduza uma certa«verdade» histórica. Se aceitarmos a hipótese de que estas cantigas foram

compostas entre 1840 e 1886, o discurso que nelas se exprime deve ser avaliado

em função do contexto desses anos. Em Cuba, quase todo o século XIX foi uma

época de grandes insurreições escravas e de formação de  palenques 

(‘quilombos’). Saindo de uma certa letargia, muitos escravos tomaram

consciência de sua força colectiva. Contribuiu para isso o facto de que, na

década de 1860, muitos donos de engenhos prometeram a liberdade aos

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escravos dispostos a segui-los como combatentes na guerra pela independência

de Cuba. Essas forças temidas por seus adversários espanhóis eram chamadas

de mambises, plural de mambi, um dos nomes que os paleros usam para invocar

sua divindade suprema. Não é difícil imaginar que nesse contexto, os tata

nganga, sentindo-se politicamente fortes, tenham elaborado o discurso

triunfalista que observamos nestes mambos.

 Na verdade, o discurso triunfalista não aparece só nos mambos de conteúdo

«histórico». Ouça-se por exemplo a frase seguinte:  Lengua de congo no sonmanteca  / va quien la prueba va quien se repugna («Língua de congo não são

manteiga / quem a provar poderia ficar arrependido»). À maneira de um

 provérbio, ela enfatiza que a palavra dos «congos», extremamente poderosa, não

é para os homens comuns: ao tentar usá-la, muitos, fracos demais, poderiam

ficar destruídos. De facto, a jactância é constante nos mambos. Formas

semelhantes de jactância aparecem nas tradições retóricas da área Congo-Angola. Cadornega narra que uma noite, na guerra entre os portugueses e as

tropas do Dembo Ambuila,

«ouviram as nossas sentinelas tocar um gomge [ngônge] que é como

chocalho com que se botam os bandos, pelo qual [o Dembo] mandava

dizer que fossem bemvindos, que havia muito que esperava a sua vinda,que as panelas estavam postas ao fogo para cozer a carne que eles lhe

traziam, que havia dias que a desejava comer. Ao que lhe responderam

que estava bem, que pela manhã lha levariam. Tudo fazia por nos

atemorizar, que era cousa que podia ser, irnos a suas panelas, se Deus nos

não ajudasse (Cadornega 1972 [1680]: 402-403).

A jactância - o sarcasmo «antropofágico» - do Dembo falando aos portugueses

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«lembra» o tom da crua advertência que o feiticeiro, no último mambo 

discutido, dirige ao feitor repressivo. Nos dois casos, a jactância talvez seja

sobretudo uma maneira de compensar ou de ocultar por meio de um discurso

«forte», a fraqueza da própria posição.

Seja como for, os mambos, cantigas religiosas dos  paleros  cubanos, parecem

constituir um «recipiente» no qual se refugiaram fragmentos da memória

histórica dos escravos cubanos de origem kongo ou bantu. Nas suas letras

 podemos descobrir lembranças das longínquas florestas da África central, dadeportação para a América, da vida nos engenhos açucareiros. O que chama a

atenção nessas lembranças é o fato de os escravos jamais aparecerem enquanto

vítimas de um sistema injusto e inhumano. Nos mambos não se pronuncia nunca

a palavra «escravo». Aos olhos dos  paleros  (actuais), os seus ancestrais

espirituais sempre souberam impor-se, graças aos seus poderes mágicos, aos

seus adversários. Não é, portanto, uma «visão dos vencidos» que se constrói nosmambos, mas, antes, um discurso de rebeldia permanente. Apoiando-se numa

espécie de «utopia retrospectiva», os  paleros  tentam, hoje, fazer frente a um

 presente bem diferente do passado dos seus ancestrais, mas nem sempre muito

mais fácil.

Apêndice: A língua dosmambos

 

Para compreender um texto é necessário, em primeiro lugar, identificar a sua

língua. Aparentemente banal, esta afirmação tem, aqui, toda uma série de

implicações nem sempre previsíveis. Qual é, na verdade, a língua dos mambos? 

Antes de responder a esta pergunta, cumpre introduzir algumas considerações

 preliminares. Tanto no Brasil como em Cuba, as cantigas das religiões de

ascendência iorubá se cantam numa língua que todo o mundo reconhece,

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embora nem sempre consiga traduzir ou interpretar a letra toda, como «iorubá».

Em Salvador da Bahia (Brasil), a liturgia do candomblé de Angola se canta

numa língua que convém chamar de «bantu brasileiro», quer dizer numa língua

que não corresponde a nenhuma das línguas bantu actualmente faladas na

África, mas cujos rasgos principais derivam das línguas da Área Congo-

Angola30. A língua de base dos mambos  actuais se apoia, ao contrário, no

espanhol, sem que por isso, os praticantes deixem de afirmar que cantam en

lengua, quer dizer numa língua diferente do espanhol. Agora, em que aspectos a

lengua conga se diferencia do espanhol? Seria difícil oferecer um quadro geralda língua dos mambos, porque ela varia muito de um texto para outro. Na

verdade, ela aparece como uma espécie de continuum  em cujos extremos se

acham, por um lado, um espanhol que só se distingue da língua padrão por sua

fonética, e pelo outro, uma linguagem de aparência africana, ininteligível a

 partir do espanhol. A presença, num mesmo acto ritual, de textos tão diferentes

quanto à sua realização linguística e poética remete sem dúvida alguma para os processos de interacção cultural que se desenvolveram entre os contingentes de

escravos «congos» - ou os descendentes deles - e os sectores hegemónicos,

«hispânicos», da formação social cubana. A heterogeneidade linguística e

 poética do universo dos mambos  documenta, a seu modo, a índole caótica

desses processos.

Do ponto de vista linguístico, a maioria dos mambos  se localizam numa zona

intermédia entre os dois extremos mencionados. A língua deles se caracteriza

 por uma sintaxe e uma morfologia rudimentares, um léxico misto («espanhol» /

«bantu») e uma fonética tipicamente caribenha. É essa variedade média, nem

30 Valdina Pinto teve a gentileza de me oferecer a transcrição de algumas cantigas que se cantam nos ritos

 públicos de Tanuri Junçara, terreiro «angoleiro» de Salvador da Bahia. Nestas cantigas, o linguista congolêsAuguste Miabeto identificou rasgos do kikongo que falavam os missionários da zona costeira do actual Congo-Brazzaville.

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ibérica nem africana, que procurarei, sem nenhuma ambição teórica, descrever

 brevemente.

A  fonética  da língua dos mambos  coincide com a de todas as variedades

 populares do espanhol falado no Caribe. Como essas, a língua dos paleros ficou

 profundamente marcada pelas tendências fónicas dos africanos. Tomando como

 base de comparação a pronúncia culta do espanhol hispano-americano padrão, a

lengua se caracteriza pela não realização de uma série de fonemas, em particular

as consoantes -s, -r  e -l  em posição final de sílaba: mi(s)mo (mesmo), mue(r)to (morto), mayorá(l)  (feitor)31. Desaparecendo assim as desinências em -s  do

 plural, a maioria dos nomes não mudam de forma ao se pluralizarem: casa,

casa(s). Quando aparece, o artigo masculino passa de e(l), no singular, para

lo(s)  no plural, enquanto o artigo feminino permanece igual: la, la(s). A

desaparição do -r  em posição final de sílaba provoca, por sua vez, a queda da

desinência do infinitivo verbal: corré(r). Ao incidir assim na morfologia dasformas nominais e verbais, a fonética deixa de aparecer como um fenómeno

 puramente «superficial».

 No léxico da língua dos mambos, os termos de origem africana remetem

 principalmente para o kikongo. Língua do tronco bantu, o kikongo, idioma dos

reis do Congo, foi muito usado também, na época do tráfico escravista, pelosmissionários activos na área. Ao kikongo ou aos seus dialectos pertencem os

conceitos principais da terminologia de relevância religiosa. Em vários casos,

 porém, sua semântica sofreu modificações mais ou menos profundas. Por

exemplo, o termo kikongo ngàngà  (‘sacerdote’) conserva, enquanto nome

31 Na transcrição das letras dos mambos  optei por conservar, embora não se pronunciassem, as consoantesindispensáveis para uma boa identificação visual dos vocábulos, especialmente aquelas que se encontram no

meio de uma palavra. Assim, lá onde se ouve «muetto» ou «mimmo», escrevi, para não dificultar a leitura,«muerto» ou «mismo». A partir das indicações fornecidas, o leitor, se quiser, poderá reconstruir pela imaginaçãoa pronúncia real dos textos.

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masculino, o mesmo significado, mas veio a nomear, enquanto nome feminino,

as «forças» - os antigos nkísi / mikísi* - nas quais se apoiam os tata nganga. Os

conceitos religiosos em espanhol são geralmente simples equivalentes dos

termos bantu. Assim, monte (‘mato’) é sinónimo de (n)finda (‘mato’, ‘floresta’),

enquanto  prenda* nomeia a (n)ganga. Bastante numerosos são também os

termos «mestiços»: raiz africana com desinência espanhola. O termo de origem

kikongo do sacerdote, (tata) nganga, por exemplo, alterna com seu equivalente

«mestiço» (n)gangulero*. Em comparação com a abundância relativa de nomes

de origem africana, poucos são os verbos africanos que sobreviveram:(n)kanga*  (‘amarrar’), kwenda* (‘ir’), wiri* (‘sentir’). Algumas formas verbais

se transformaram, na lengua, em nomes: fuiri*, um dos nomes empregados para

designar os mortos, corresponde a fwìdì / fwìrì, passado do verbo fwà.

Quanto à morfologia da língua dos mambos, o que chama a atenção - além das

 particularidades já assinaladas no parágrafo dedicado às suas particularidadesfonéticas – é a não concordância quase sistemática entre sujeito e forma

conjugada do verbo. Na fórmula Yo mata  (‘Eu mata’), o sujeito corresponde à

 primeira pessoa e a forma do verbo à terceira. Na frase Lengua de Congo no son

manteca (‘Língua de Congo não são manteiga’), o nome no singular é seguido

 por um verbo no plural.

A estrutura sintáctica dos enunciados, embora precária pela escassez de artigos

e preposições, é geralmente inteligível para os hispanófonos. Assim, no

sintagma Yo mata a mayorá (‘Eu mata feitor’), se observa a sequência habitual

das partes do discurso: sujeito ( yo), verbo (mata), objecto directo (a mayorá). É

verdade que a forma do verbo (terceira pessoa do singular) não concorda com o

sujeito em primeira pessoa ( yo), mas qualquer ouvinte compreende

imediatamente que o agente da acção de matar não pode ser senão eu. A mesma

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observação se aplica à oração Yo nkanga mundele (‘Eu amarra brancos’):  yo 

(sujeito) nkanga (verbo) mundele (objecto). Neste caso, porém, a compreensão

da estrutura sintática não permite ainda penetrar o sentido da frase: com a

excepção de yo, com efeito, o léxico não pertence à língua espanhola. Como se

 percebe nestes exemplos, é frequente na lengua  a supressão dos artigos,

fenómeno que se observa também em muitas línguas crioulas ou pidgin.

A relação de dependência entre dois nomes, que se exprime em espanhol –

como em português - com a preposição de, adopta em lengua amiúde a forma deuma simples justaposição:  palo monte  (‘pau de mato’). Muito frequente na

lengua, a sucessão de dois, três ou até quatro nomes coloca às vezes sérios

 problemas de compreensão. Segundo os casos, a justaposição nominal traduz a

concatenação (A e B), a dependência de A com respeito a B (A de B) ou, ainda,

a aglutinação (A-B). Levando em conta as dificuldades que pode colocar a

semântica dos nomes, essas sucessões não permitem sempre uma análisecompletamente satisfatória.

Renitente à subordinação, a sintaxe da lengua  tende a privilegiar a  parataxe 

(sucessão de orações principais):  Ah mira yo hala kindembo/ Allá pa lo monte

me arrastra / Ah nfumbe nganga me tá llamando / Ah mira yo hala mi nganga

(‘Ah olha eu puxa caldeirão / Lá pra os montes me arrasta / Ahnfumbe nganga

 me tá chamando / Ah olha eu puxa minha nganga’). Nos mambos  mais

hispanizados se descobrem também, porém, exemplos de subordinação

condicional à maneira das línguas românicas: Si negro coge cuero / yo mata a

mayorá (‘Se negro receber açoite / eu mata feitor’).

Muito heterogénea, a língua dos mambos  é difícil de situar no contexto das

categorias estabelecidas pelos linguistas que estudam as linguagens que surgem

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nas situações de contacto intercultural. Diferentemente das línguas crioulas e

 pidgin, a lengua não se usa na comunicação quotidiana. No seu dia-a-dia, com

efeito, os praticantes do «pau de mato» se exprimem na variedade do espanhol

que corresponde à sua situação sociocultural. Ao reservar a lengua para um uso

exclusivamente religioso ou litúrgico, os  paleros  nunca mostraram interesse

nenhum em transformá-la em língua comum. Para eles, a linguagem dos

mambos, herdada de seus ancestrais escravos, é uma língua sagrada e intangível

como o foi o latim para os católicos. Embora seja escassa a informação

disponível sobre a língua que falavam os escravos nos engenhos, chamada debozal 32, se pode inferir que os mambos, pelo menos em parte, se apoiam nessa

espécie de espanhol precário. Seja como for, na sua vontade claramente

afirmada de respeitar as formas da língua de seus ancestrais reais ou espirituais,

os praticantes do  palo monte exprimem sem dúvida uma certa «solidariedade»

com os escravos que conseguiram, em circunstâncias adversas, recriar a religião

dos seus antepassados bantu.

32 No seu monumental trabalho em quatro volumes sobre Cultura afrocubana, Jorge e Isabel Castellanos (1992,3: 321-356) dedicam um capítulo a essa língua.

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Capítulo II

MILONGA. O «DIÁLOGO» ENTRE PORTUGUESES E AFRICANOS

NAS GUERRAS DO CONGO E DE ANGOLA (SÉCULOS XVI-XVII)

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Uma guerra de discursos

Entre eles não há moeda de ouro nem de outro metal, nem coisa

que responda a ele, mas usam em lugar disso de certas coisas, que

têm seus preços certos e ordinários, nas quais entram escravos, a

que os nossos chamam peças... («Informação acerca dos escravos

de Angola» 1989 [1576]: 118).

Destes [escravos] o número dos que são cativos em guerra é nadaem comparação dos que se compram em feiras, às quais feiras os

reis e senhores de toda a Etiópia mandam vender seus escravos, e

este trato entre eles é antiquíssimo e sempre usado, servindo-se de

 peças em lugar de dinheiro para comprarem vestidos, e o mais que

hão mister («História da residência... » 1989 [1594]: 188)

A moeda que corre nesta cidade de Loanda é de diferentes

calidades e preços, porque a melhor é peças de Índias, que são

escravos que se embarcam pera Índias pelo valor de vinte e dous

mil reis; há outra que chamam de peças que é moleques, molecas,

negros com barba e negros somenos que servem pera o Estado do

Brasil (Sousa 1985 [1624-30]: 310).

E as mais ricas minas que têm estes Reinos de Angola são a

quantidade de peças que deste porto saem todos os anos, de sete a

outo mil cabeças de escravos um ano por outro (Cadornega 1972

[1680]: II, 243).

O principal comércio dos portugueses e demais brancos com os

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moradores [do Congo] é o dos cativos, os quais são embarcados

 para as ilhas de Porto Rico, Rio Plata, São Domingos, Havana,

Cartagena, e para a terra firme, particularmente o Brasil e outros

lugares, onde são obrigados a trabalhar nos engenhos de açúcar e

nas minas [...]. E é por isso que os portugueses e os espanhóis

devem ao trabalho destes cativos quase toda a riqueza que tem nas

Índias Ocidentais (Dapper 1964 [1688]: 294-295).

À procura de uma rota marítima para a Índia, o navegante português Diogo Cãochegou em 1482 à foz do rio Zaire. Naquele mesmo ano deve ter começado,

ainda modestamente, a «extracção» portuguesa de escravos dessa área. Nas duas

décadas seguintes ocorreram, por acaso ou não, os dois acontecimentos que

transformariam completamente o sentido do incipiente tráfico internacional de

escravos africanos: a chegada dos espanhóis ao Caribe (1492) e ao continente

americano (1498), e a dos portugueses ao Brasil (1500). Desde a primeirametade do século XVI, com efeito, as necessidades da produção açucareira no

Caribe e no Brasil e mineria na América continental espanhola impuseram a

transferência de contingentes sempre crescentes de escravos africanos para a

América. Durante mais de dois séculos, a África central foi sem dúvida a área

mais devastada pelo escravismo europeu que contava - convém não esquecê-lo -

com a colaboração dos senhores e outros agentes locais. Destinada a satisfazer avoracidade de um mercado escravista em expansão constante, Angola, nesse

tempo, entrou na história mundial como sub-colónia do Brasil (Rodrigues 1982:

cap. II).

Qual foi a reacção dos africanos a essa modificação radical de seus padrões de

vida? É provável que eles, desde o início do tráfico escravista, tenham

começado a elaborar, nas suas cantigas ou suas narrações orais, o trauma que

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não pode deixar de ter significado para eles a irrupção do escravismo europeu.

Talvez os mambos dos  paleros  cubanos, descendentes espirituais dos kongo33,

sejam como que um eco longínquo de uma prática poética desse tipo. Nenhuma

fonte escrita, porém, conservou exemplos explícitos de uma produção

«literária» africana que permitisse fazer uma ideia da reacção discursiva dos

habitantes da Área Congo-Angola ao fenómeno do comércio atlântico.

A guerra que se travou entre portugueses e africanos nos matos e nas savanas da

Área Congo-Angola pode ser lida, também, como uma «guerra de discursos» ouum «diálogo» - profundamente assimétrico - entre os conquistadores europeus e

os seus adversários locais. Que fontes se prestam para estudar esse «diálogo»?

Basicamente, as crónicas, os relatórios e as cartas redigidos por agentes da

empresa escravista e colonizadora. As poucas fontes «africanas» consistem nas

cartas que os senhores – chamados de mani ou muene34* no Congo e de soba35 

em Angola - costumavam dirigir às autoridades portuguesas. Eminentementediplomáticas, essas cartas - escritas em português - não revelam, porém, o

 pensamento verdadeiro dos chefes africanos. Felizmente para nós, nem todos os

textos redigidos pelos actores da conquista escravista impõem uma visão

absolutamente oficial ou unilateral dos sucessos. Como bem mostra a história

do processo de conquista, os interesses dos autores dessa literatura - navegantes,

emissários políticos, governadores, eclesiásticos – podiam ser relativamentedivergentes. De um indivíduo para outro, as diferenças de atitude ética ou

 política são às vezes notáveis. Menos marcados pela ideologia oficial do que

seus colegas espanhóis na conquista da América (cf. Lienhard 2003), vários

33 Note-se que em Cuba, o adjectivo «congo» se refere não só aos escravos de origem kongo, mas também,amiúde, aos representantes de outros grupos bantu de uma área mais ampla que abrange, em termos actuais, oCongo-Brazzaville, a República Democrática do Congo (ex-Zaire) e Angola.

34 « E na língua maxiconga Mani quer dizer Senhor, e a el-rei de Congo lhe chamam Mani Congo ou MueniCongo (Cad. I: 353). V. glossário.35 Kmb. sôba, autoridade. «São como duques e grandes senhores» (Simões 1989 [1575]). V. glossário.

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deles pouco se esforçaram por disfarçar as motivações dos conquistadores nem

 por ocultar a resistência de seus adversários. Em todos estes documentos,

 porém, se percebem muito mais nitidamente as atitudes e a argumentação dos

senhores africanos, interlocutores directos dos portugueses, do que as de seus

súbditos – sempre ameaçados de serem deportados para o Brasil ou a América

espanhola. Quanto aos africanos que já sofriam a escravidão europeia na sua

 própria terra, as suas vozes - mas não as suas atitudes práticas - ficaram quase

ausentes da documentação escrita.

A situação do pesquisador que procura rastejar o discurso dos africanos nos

documentos redigidos pelos seus adversários lembra a de uma pessoa que

assiste a uma conversa telefónica alheia. Nestas situações, o ouvinte indiscreto

geralmente não ouve o que diz o interlocutor distante, mas pode imaginá-lo a

 partir do que diz a pessoa que está ao seu lado. O que permite adivinhar o

conteúdo ou mesmo as formas do discurso do «interlocutor distante» é anatureza «dialógica» da linguagem (Bakhtine 1977). Enquanto elemento de uma

cadeia, qualquer enunciado «responde» a um enunciado anterior e antecipa, de

alguma maneira, os enunciados posteriores. Ao dizer «sim» ou «não», por

exemplo, eu confirmo ou desminto o que disse meu interlocutor, obrigando-o ao

mesmo tempo a reagir, por sua vez, ao que eu digo. Uma frase não ouvida ou

«perdida» pode ser reconstruída, pois, a partir da que a precedeu e da que asegue. No caso dos relatórios portugueses, é o africano que faz o papel de

«interlocutor distante».

A nossa documentação de base se compõe de cartas, crónicas e relatórios,

escritos principalmente entre 1580 e 1680 por diferentes actores da colonização

militar, económica e «espiritual» de Angola. Dois destes textos são «clássicos»:

a  Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola  do padre

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capuchinho Cavazzi de Montecúccolo (1965 [1687]) e a  História geral das

 guerras angolanas  de António de Oliveira de Cadornega (1972 [1680]).

Particularmente rico quanto a «ecos» de vozes africanas revelou-se, porém, um

texto muito menos conhecido, o «Extenso relatório» (publicado em 1985 por

Beatrix Heintze) que Fernão de Sousa, governador português de Angola entre

1624 e 1630, dirigiu a seus filhos «pera vos aproveitardes dos sucessos que tive,

como di balizas de erros do governo volos deixo escritos para escolherdes»

(Sousa 1985: 217). Ao contrário da grande maioria dos relatórios produzidos na

conquista da Área Congo-Angola, sem excluir os escritos mais oficiais do próprio Sousa, esse texto manifesta uma espontaneidade ou falta de

 premeditação pouco comum. Sua escrita mostra que se trata de uma espécie de

diário onde o governador apontava, sucessivamente, o que ia acontecendeo,

interessando-se particularmente pelas manobras e jogadas de seus adversários

como também pelas medidas tomadas por ele mesmo para reforçar a presença

 portuguesa na área. Trata-se, portanto, de um texto não definitivo, «aberto»,frágil em termos ideológicos. Num escrito de índole mais oficial, Fernão de

Sousa teria se esforçado, sem dúvida, por reinterpretar todos os acontecimentos

em função da imagem «política» que ele desejava oferecer de si mesmo ao seu

destinatário principal: a coroa luso-espanhola. No seu «Extenso relatório», o

governador, ademais, transcreve ou resume a correspondência recebida de seus

interlocutores: oficiais portugueses e senhores africanos, aliados ou inimigos.Incorporadas no texto, essas outras «vozes» contribuem para reforçar sua

«dialogicidade».

Escravidão e comércio escravista

O famoso «reino do Congo» - Kóngo dia ntôtíla* (‘Kongo do rei’) - era anterior

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à chegada (1482) dos expansionistas portugueses na área36. A parte central

desse reino de limites difíceis de estabelecer 37  abrangia as «províncias» ou

«senhorios» kongo de Sonyo, Nsundi, Mpangu, Mbamba, Mpemba e Mbata.

Sua capital, Mbanza Kongo, logo batizada pelos portugueses de São Salvador,

se encontrava no actual norte da República de Angola. Na época de D. Afonso I

ou Mbemba a Nzinga (1509-1540), o reino do Congo aparecia como um estado

vassalo do império português, reservatório de mão-de-obra escrava. Nos últimos

anos do século XVI, pelas dificuldades encontradas na obtenção de  peças  em

número suficiente (Glasgow 1982: 24), os portugueses transferiram seu centrode actividades mais para o sul, para Luanda. Eles não deixaram, porém, de

considerar o rei do Congo como vassalo seu. Ao exigir, na década de 1620, sua

colaboração na expulsão dos holandeses, o governador de Angola, Fernão de

Sousa, lhe lembra, com efeito, os «benefícios» que o reino do Congo recebeu

dos portugueses, nomeadamente o «cristianismo» e, em 1571, a ajuda militar

contra os guerreiros jaga* (Sousa 1985: 222).

O motivação principal para os portugueses iniciarem seus contactos com as

 populações da África central foi, oficialmente, a conversão dos reis autóctones

ao cristianismo. De facto, a evangelização das populações autóctones fazia parte

das condições impostas pelo Papa às potências ibéricas quando repartiu o

«mundo» entre eles (Tratado de Tordesilhas: 1494). Ora, uma leitura mesmosuperficial dos relatórios portugueses da conquista da Área Congo-Angola

36 Até hoje, a melhor introdução à história e ao dia-a-dia desse reino é  La vie quotidienne au royaume du Kongo, du XVI e au XVIII e siècle de Georges Balandier (1965).37 D. Afonso I (Mbemba a Nzinga), o rei do Kongo que aceitou a vassalagem dos portugueses e a cristianizaçãode seu reino (1509-1540), empregava nas suas cartas ao rei português a fórmula de «Rei de Manicongo e senhordos ambundos». Os mbundu ocupavam o Ndongo, território que os portugueses chamaram, logo, de «Angola»(ngola* era o título do «rei» desse território). Numa carta que o rei D. Afonso dirigiu ao papa Paulo III no dia 21de Fevereiro de 1531, ele chega a se autoqualificar de «Rei do Congo Ibungo e Cacongo Engoyo daquém edalém Zaire, Senhor dos Ambundos e de Angola e da Quissama e Musuaro de Matamba e Mulylu e de Musuco

e dos Anzicos e da conquista de Panzo Alumbo, etc.» (Ferronha 1992: 63-64). Note-se que apesar de se atribuir,em 1531, o controle de um território muito vasto, ele não deixa de estabelecer uma diferença entre sua função de«rei» (ntôtíla*) de um «Grande Kongo» e a de «senhor» (de vassalos) de uma área muito maior.

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demonstra que as preocupações que ocupavam realmente a atenção dos

conquistadores eram bem diferentes. Nos matos e nas savanas de Angola

desenvolveu-se uma guerra permanente entre os portugueses, ávidos de

conseguir o maior número possível de  peças para a exportação, e os «reis» ou

senhores autóctones, que procuravam, embora de maneira amiúde contraditória,

defender a sua soberania e também, às vezes, a sua própria posição no comércio

escravista. Nos últimos anos do século XVI, os jesuítas instalados em Angola

assinalaram que «a quantidade de escravos que cada ano se tira de Angola é

muito grande, como se vê dos muitos que levam a Portugal, e muitos mais parao Estado do Brasil, a minas das Índias de Castela, como também dos muitos

contos de renda que do saque deles tem a fazenda de Sua Majestade» («História

da residência…» 1989 [1594]: 188). O tráfico de escravos - e não a conversão

dos africanos - foi, portanto, o contexto no qual se realizaram os primeiros

intercâmbios na área considerada.

Acrescente-se que nem para os eclesiásticos a evangelização dos africanos

constituía uma prioridade. No seu «Extenso relatório», Fernão de Sousa

exprimiu brutalmente o que era, para ele, uma evidência: «No modo de batizar o

gentio houve até agora grande falta polos não instruirem como convém para

receber o Santo Batismo, porque os eclesiásticos que passam a estas partes

tratam mais de comprar e embarcar os negros que de os catequizar» (Sousa1985: 262). Cumpre lembrar que esta censura provém de um governador que

nunca se opôs à prática do comércio escravista, mas que desejava integrá-la

num projecto mais amplo de colonização da área. O que constituía a motivação

 principal da expansão portuguesa na África nunca foi, nos séculos XVI-XVIII,

senão o afã de se enriquecer graças ao tráfico de escravos. Não se encontra,

aliás, nenhum agente da empresa conquistadora que tenha manifestado, por

escrito, escândalo perante a transformação dos homens africanos em peças. «As

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feiras de escravos», escreveu ainda Fernão de Sousa (ibid.: 223) com muita

simplicidade, são «a sustância deste reino». A indiferença moral dos

 portugueses quanto à escravidão dos africanos nada tem de surpreendente: todos

os povos da bacia mediterrânea, desde a antiguidade clássica, costumavam

empregar mão-de-obra escrava (Saco 1853, Capela 1978, Maestri 1988 a).

É verdade que muitos dos documentos portugueses da época afirmam, como

 para justificar o tráfico, que a compra e a venda de escravos constituía, na

África, uma prática já antiga: «este trato entre eles é antiquíssimo e sempreusado, servindo-se de peças em lugar de dinheiro para compararem vestidos, e o

mais que hão mister» («História da residência…» 1989 [1594]: 188). Os

historiadores modernos, europeus ou africanos, admitem também a existência

da escravidão na África antiga. Ora, o que era a escravidão africana tradicional?

Segundo as fontes portuguesas da época, essa se baseava, na África central, na

observação de um conjunto de regras tradicionais. Os escravos se recrutavamentre os prisioneiros de guerra (várias fontes), os traidores («História da

residência…» 1989 [1594]: 188) e os delinquentes («Informação...», 1989:

119), mas nem as pessoas nobres (Pigafetta / Lopes 1989: 85; Sousa 1985: 279-

280) nem as «mulheres e os filhos» (D. Afonso 1992 [1514]: 29; Sousa 1985:

269, 279-280) podiam ser vendidos como  peças. Ademais, a compra e a venda

se realizava, em momentos e lugares precisos, nas feiras previstas para taistransacções comerciais. Também se entregavam escravos como tributo a um

senhor mais poderoso, mas este tipo de operação só se realizava uma vez em

vários anos («História da residência» 1989 [1594]: 189). Além do mais, os

escravos passavam a fazer parte da família de seu dono e não podiam ser

vendidos, regra geral, a nenhum outro.

É indiscutível que a intrusão dos europeus nessa paisagem mudou

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 profundamente o sistema africano, transformando-o em «escravismo colonial»

(Gorender 1985). Todos os documentos consultados sublinham que os intrusos

não respeitavam as regras tradicionais de recrutamento nem de comercialização

dos escravos. Por exemplo, eles não hesitavam em comprar - novidade na área -

escravos que «eram de sangue real e de senhores principais» (Pigafetta / Lopes

1989: 85). Entre os homens embarcados para as Américas se encontravam

também, segundo Fernão de Sousa (1985: 222), muitos escravos forros. A

grande novidade do comércio atlântico, porém, é o carácter massivo de seu

volume e a deportação dos cativos para um continente longínquo. A voracidadedos mercados americanos - e a dos traficantes - aumentou, num grau nunca

visto, a pressão escravista. No século XVII, só o Brasil importava anualmente

não menos de 44 000  peças  (Glasgow 1982: 51). Para o «imaginário» dos

cativos, ser escravo na África ou na América não era a mesma coisa. Na sua

 Descrição histórica..., o capuchinho Cavazzi evocou os temores dos africanos

quanto à eventualidade de serem embarcados para a América:

Há [...] grande diferença entre os escravos dos Portugueses e os dos

 pretos. Os primeiros obedecem não só às palavras, mas até aos sinais,

receando sobretudo ser levados para o Brasil ou para a Nova Espanha,

 pois estão persuadidos de que, chegando àquelas terras, seriam mortos

 pelos compradores, os quais, conforme pensam, tirariam dos seus ossos a pólvora e dos miolos e das carnes o azeite que chega a Etiópia [...]. A

razão que eles alegam é que às vezes se encontram pêlos nos odres, e eles

 julgam serem pêlos de homem esfolados para este fim. Portanto, só pelo

terror de serem mandados para a América, agitam-se freneticamente e, se

 possível, fogem para as matas. Outros, no momento de embarcar,

desafiam as pauladas e matam-se por si mesmos, atirando-se à agua

(Cavazzi 1956 [1687]: I, 160).

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Se aqui ainda se trata de pequenos actos de resistência individual, também há

notícias de verdadeiros levantes de massa. Assim, em 1798, um navegante

 português, Joseph Antonio Pereira, pretende cobrar de uma companhia de

seguros de Cádiz «las pérdidas, y averías que experimentó dicho buque

[ Nuestra Señora de la Concepción y Jesús de los navegantes] en el expresado

 puerto de Cabinda ocasionados con motivo del levantamiento de doscientos

 setenta y ocho esclavos que tenía a su bordo» [grifo nosso]38. Ser transportado

 para fora da África, como escreveu no mesmo ano um explorador português, era«o maior de todos os castigos que se pode dar a um cafre» (Almeida 1798: 113).

Mas não se tratava só de uma questão de «imaginário». O chamado «comércio

atlântico» foi, realmente, algo absolutamente novo e traumático na realidade

social africana. Nas palavras de Jan Vansina (1990: 197),

[...] o comércio atlântico foi um estimulante equivalente à revoluçãoindustrial. Os seus efeitos devem ter sido igualmente impressionantes.

Porém, ao contrário da revolução industrial, que se desenvolvia no lugar

mesmo onde nasceu, o comércio atlântico significava a penetração de

atitudes, ideias e valores forâneos. Ela constituíu, por conseguinte, um

desafio ainda maior às práticas antigas do que a revolução industrial na

Europa.

O mato-refúgio

É nos matos da África que costuma desenvolver-se a resistência dos senhores

locais à penetração portuguesa. É neles, também, que começa a escrever-se a

história da resistência dos escravos «coloniais», que continuaria depois tanto na

38 Archivo histórico nacional (AHN), Madrid, Consejos, 20257, exp. 2, 1806, 1-5 r. e 5 v.

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África quanto na América. Num trabalho de síntese sobre a aparição dos

 primeiros estados na África central, Vansina (1985) destacou a importante

função da floresta na história antiga dessa área. Esses estados, afirma o

historiador, formaram-se em função do meio ambiente regional, caracterizado

 pela existência de uma floresta tropical salpicada de savanas. Também na

história da guerra entre os africanos e os seus adversários vindos da Europa, as

florestas – e o mato em geral - cumpriram um papel decisivo. Fora do mato, os

africanos tinham poucas possibilidades de se salvar perante a agressividade dos

 portugueses: nos povoados e na savana aberta, eles só podiam escolher entre aescravidão e a morte. No entanto, eles não tardaram muito em compreender que

a floresta era o seu aliado mais seguro. Já nos fins do século XVI, os jesuítas

residentes em Angola afirmaram que «em campo raso [os africanos] nunca

levam a melhor. Mas acolhem-se a suas fortalezas, que são matos espessos em

tempo que têm folha, de dentro dos quais atirando sem serem vistos, fazem

comummente mais dano aos nossos («História da residência…» 1989 [1594]:190).

Às vezes, o «mato» é uma floresta de pedras. A rainha Nzinga, «senhora

d'Angola» (Sousa 1985: 223) e adversária dos portugueses, se fortificava

amiúde nas zonas rochosas do interior. Lugares de acesso difícil, o mato ou as

florestas de pedras, foram, na verdade, os melhores aliados dos africanos quelutavam - pelos motivos mais diversos - contra os escravistas portugueses. Para

os portugueses, homens do Atlântico, a floresta tropical era um espaço

impenetrável e desconhecido: um inferno militar e teológico. A  História geral

das guerras angolanas  de Cadornega (1972 [1680]) mostra bem a verdadeira

obsessão que os matos e a floresta provocavam no imaginário dos portugueses.

Em virtude da abundância de suas florestas, Cadornega chama Angola de

«espesso país» (ibid .: I, 102). Os matos chegam a ser, na obra deste historiador,

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a expressão por excelência de um continente hostil. Eles representam tudo o que

obstaculiza o avanço da empresa escravista e colonial. Referindo-se aos

escravos fugitivos de um antigo governador português de Angola, Fernão de

Sousa (1985: 286) afirmou que eles «meteram-se no mato com ânimo de se

defenderem, receosos das maldades que tinham cometido e de comerem carne

humana» (ibid .). O que incomoda o governador, claro, é o facto de os escravos

terem conseguido escapar ao controlo dos portugueses. Em vez de reconhecer a

superioridade relativa que o conhecimento do território oferece aos africanos,

ele procura desqualificá-los acusando-os de graves crimes contra a humanidade. Na sua narrativa, a floresta - «O coração das trevas», como na famosa obra

homónima de Joseph Conrad - aparece como a própria sede da barbárie. O mato

se opõe aos espaços controlados - ou controláveis - pelos portugueses, à

«civilização» - um conceito ainda não formulado, mas já presente no discurso

dos europeus. Os africanos, ao perceberem o terror que o mato inspirava aos

 portugueses, não só faziam dele o seu refúgio habitual, como também seacostumaram a condicionar sua saída dele a uma série de exigências. A rainha

 Nzinga (Njinga) praticava esse jogo com grande requinte, provocando assim a

raiva dos portugueses. Referindo-se aos subterfúgios inventados pelos invasores

 para adiar a libertação da sua irmã, prisioneira dos portugueses em Luanda, ela

escreveu a 13 de Dezembro de 1655): «Por estes enganos e outros ando pelos

matos, fora de minhas [sic] terra» (Cadornega 1972: II, 501). Para a rainha, a permanência nos matos não era um simples imperativo militar, mas também um

meio de pressão - ou uma «linguagem» política.

Além de sua importância estratégica na luta militar e política que os portugueses

e os africanos mantinham na área, a floresta também constituía, aos olhos dos

últimos, um espaço «sagrado». Na  História  de Cadornega, como já se disse,

abundam as alusões aos «espessos matos» de Angola. Reiterando a observação

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feita pelos jesuítas quase um século antes, o historiador português insinua a

dimensão religiosa que o mato ou a floresta têm para os africanos: «vendo que

não nos podiam vencer em campanha se recolheram mal do seu grado ao

sagrado, que são seus dilatados e espessos matos» (Cadornega 1972 [1680]: I,

81). Já em 1586, o padre Diogo da Costa (1989: 163) tinha afirmado que os

autóctones «adoram paus e pedras». Na mesma época, Duarte Lopes aludiu à

«simbiose» que existia, no Congo, entre os homens e os elementos da natureza:

«homens e mulheres não tinham nomes próprios convenientes e racionais, mas

comuns às plantas, às pedras, aos pássaros e às bestas (Pigafetta / Lopes 1989:65). Atribuindo-se nomes de plantas, de pedras ou de animais, os nativos

manifestavam a intensidade de sua relação com o cosmos natural. O mato,

concretamente, vem a ser um espaço sagrado no qual os homens recebem a

 protecção e a força de suas «divindades» tradicionais. É verdade que nos textos

escritos pelos funcionários do império português, a qualidade da relação que os

africanos mantinham com o mato ou a floresta enquanto espaço sagrado nãoaparece de maneira muito precisa. O que talvez permita, pelo menos até certo

 ponto, imaginar o conteúdo dessa relação é o que dela se «revela» nas cantigas

dos  paleros  cubanos (veja-se o cap. I). Criação dos escravos cubanos, os

mambos não são propriamente «africanos»: seria ingénuo, portanto, considerá-

los como «fonte» para uma reconstrução geral da cosmovisão kongo. É

 provável, porém, que os seus núcleos mais «sólidos» se apoiem ainda nacosmologia kongo. É o caso, a meu ver, das referências – obsessivas - a

(n)finda. Nos mambos, como se comentou no capítulo anterior, nfinda 

(‘floresta’, ‘mato’) é a morada dos mortos e dos «génios da natureza»: o espaço

das origens e da tradição. Podemos supor, portanto, que ao meter-se pelos

matos, os africanos não só procuravam esquivar a perseguição dos escravistas,

como também actualizavam os contactos com o seu passado, suas tradições e

suas «forças». Na mfìnda, eles recuperavam as energias necessárias para seguir

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lutando contra os mindèlé (‘brancos’).

De toda maneira, para os africanos, a guerra nunca foi um assunto puramente

militar. Ao contrário, eles se entregavam a ela com toda a bagagem de suas

crenças tradicionais. Muitos textos portugueses sugerem que, para os africanos,

todas as circunstâncias que envolviam a actividade militar eram portadoras de

significados religiosos: «Se no arraial acerta algum triste sonhando de gritar itá,

itá, que quer dizer guerra, guerra, daqui tomam os outros mau agouro e lhe

cortam a cabeça» («História da residência…» 1989 [1594]: 190). Antes de passar à acção, os africanos consultavam suas «divindades». Assim, um grande

fidalgo, «antes de passar o rio deitou sortes aos seus feitiços, e saiu-lhe a sorte

que se passasse à outra banda que o haviam de matar» (Afonso 1989 [1581]:

138). Os fetiches invocados tinham, sem dúvida, razão. O fidalgo, porém, nem

teve tempo para aproveitar o conselho deles, pois «não querendo ele passar,

deram os nossos depois nele, e lhe tomaram quarenta mulheres, as principais desua casa, e lhe mataram alguns homens» (ibid .).

De facto, também os europeus invocavam as suas «divindades»: Santo António

(Cadornega 1972 [1680]: II, 209), a Mãe de Deus (ibid .) ou, ainda, o santo

guerreiro ibérico Santiago. Tanto assim é que a batalha que se desenvolveu em

Dezembro de 1622 entre os portugueses e o exército do Manibumbe, vassalo dorei do Congo, se transformou em guerra entre divindades rivais: «os nossos

 portugueses, no maior conflito da batalha apelidavam Sãotiago, e os

muxicongos* também, o que vendo aqueles inimigos disseram ‘se o vosso é

 branco, o nosso é preto’; mas o nosso branco pôde mais» (ibid .: I, 105).

A linguagem da violência

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O contexto fundamental para o início do «diálogo» luso-africano na Área

Congo-Angola foi, como já sabemos, o desenvolvimento do comércio atlântico.

Para entrarem em contacto com os senhores africanos, os portugueses

costumavam «propor» um pacto de vassalagem no qual eles se comprometiam a

fornecer ajuda militar, exigindo em troca plena liberdade comercial e o

 pagamento de tributos. Seus interlocutores nem sempre mostravam grande

 pressa em aceitar essas condições. Quando rejeitavam a aliança proposta, os

 portugueses, segundo umas regras «jurídicas» estabelecidas por eles próprios,

declaravam-lhes a guerra. Para eles, qualquer guerra, vitoriosa ou não, erasempre uma ocasião para obter escravos em grande número. Muito explícito

neste sentido é um comentário do P. Baltasar Afonso (1583: 142): «Não há

guerra em que não fiquem os nossos ricos, porque tomam muitas peças, bois,

carneiros, sal, azeite, porcos, esteiras».

Além dos seus aspectos militares e económicos, a guerra era também um meiode comunicação, uma «linguagem» que se apoiava nuns códigos mais ou menos

institucionalizados. Através de sua maneira de conduzir a guerra, os portugueses

 procuravam significar sua superioridade e suas ambições de controle total do

território. O  significante  empregado para transmitir essa «mensagem» era a

violência indiscriminada:

Aqui aconteceu que indo um pai com um filho fugindo dos nossos, vendo

que não podia salvar seu filho se virou para os nossos e despediu quantas

frechas tinha, até que o mataram sem se querer bulir de um lugar, para o

filho se esconder, e o pai acabou e se foi ao inferno. Outro estava dentro

em uma casa com duas mulheres e se defendeu de dentro tão fortemente

sem se querer render, até lhe porem fogo à casa, e ali arderem todos os

três. Pôs isto tanto espanto aos nossos inimigos que todo o Angola havia

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medo de nós (Afonso 1989 [1581]: 135).

A última frase dessa «estória» acerca do heroísmo de um pai angolano

evidencia os aspectos simbólicos – portanto não gratuitos - da violência

 portuguesa. Agindo com a máxima crueldade, os conquistadores demonstravam

de maneira contundente a inutilidade definitiva de toda resistência. Uma outra

 prática corriqueira dos portugueses, a degolação em massa dos inimigos, é o

 significante  de uma mensagem semelhante. Por volta de 1620, «conforme o

costume destes reinos», o tenente geral dos portugueses em Angola, JoãoMendes de Vasconcellos, convocou os  sobas  vassalos da Coroa para uma

maca* - uma espécie de juízo público baseado na intervenção de testemunhas

(bangui*). Tratava-se oficialmente de confirmar a «traição» desses senhores -

no caso aliados da rainha Njinga-Nzinga. Segundo Cadornega, o objectivo

verdadeiro dessa reunião foi, porém, o de

fazer neles ali logo uma grande degolação, em que não lhe ganhou a que

fez o Rei Xico em os Abencerragis em a Cidade de Granada, nem tão

 pouco a que fez o famoso Duque de Alba em Flandes, de pretos em fora,

que todos ficaram ali pagando com as cabeças fora sua traição, o que

ficou imemorável para os vindouros e todo o gentio destes reinos atónitos

e temerosos, que só com rigor e temor é que nós conservamos com esteindómito gentio (Cadornega 1972 [1680]: I, 92).

Para reforçar ainda o impacto de sua mensagem, os portugueses nem hesitavam

em cometer actos de violência contra os cadáveres de seus adversários mortos

em combate: «De outra guerra [os portugueses] trousseram seiscentos e

dezanove narizes de cabeças que cortaram, e em outra foram tantos os mortos,

que dizem não poderem andar senão por cima deles (Afonso 1989 [1583]: 142).

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Os africanos compreendiam, sem dúvida, o sentido deste tipo de mensagens.

Segundo as narrativas de seus adversários, eles costumavam responder-lhes com

a violência verbal, que incluía expressões de sarcasmo «antropofágico» que já

se comentaram no capítulo anterior. No âmbito de uma guerra no rio Kwanza,

 por exemplo, eles «ali nos deram grandes apupadas, dizendo que ao outro dia

nos haviam de comer a todos» (Afonso 1989 [1581]: 137). Cumpre lembrar que

nos relatórios europeus dessa época, as alusões ao «canibalismo» africano são

frequentes. Veja-se, por exemplo, esse comentário que escreveu JerónimoCastaño, emissário espanhol em Angola, em 1599: «Com esta já são quatro as

vezes que [o rei de Angola pede para fazer a paz], e a última vez que o

governador Paulo Dias mandou presentes para ele com alguns portugueses e

que ele aceitou a paz, ao chegarem eles [o rei de Angola] os comeu todos»

(Imperial y Gomes 1951: 60). Ainda no século passado, um emissário do

governo português de Luanda em missão no concelho de Cambambe, SallesFerreira (1968 [1880]: 193), afirmou numa nota administrativa que dois

soldados portugueses «foram levados [pelos nativos] para lhes comerem a

carne». Num pós-escrito, porém, ele se viu obrigado a admitir que o «soldado

número cento e trinta e um» apareceu – vivo! - depois de ele ter redigido essa

nota... Nas fontes coloniais europeias, a alusão ao canibalismo é sempre

suspeita, porque serve de pretexto para a chamada «guerra justa» contra os povos que rejeitam o colonialismo. Amiúde, as alusões ao canibalismo africano

se baseiam - mais do que na observação da prática da antropofagia - na

interpretação inexata e tendenciosa de um discurso de jactância. O governador

Fernão de Sousa (1985: 247) cita uma modalidade desse tipo de discurso: «Dom

Gregorio Affonço, que el-rey [do Congo] Dom Garcia sospendeu [da função] di

mani Bamba [‘senhor de Bamba’], veio no alcance de mani Bamba fogido e

escreveu a Bumbe, onde estava, que lho entregassem, e não o fazendo o veria

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 buscar, e que havia de senzar todos os portugueses». Nesta brevíssima narrativa,

o verbo  senzar  aparece como uma citação literal do discurso de Dom Gregorio

Affonço, ex-senhor de Bamba. Mas o que significa  senzar*? Inexistente em

 português metropolitano, esse verbo deriva sem dúvida do verbo kikongo sánza,

que significa ‘pilhar’, ‘saquear’, ‘destruir’, ‘devastar’39). Suspendido das suas

funções pelo rei do Congo, D. Gregorio lança aqui um violento discurso de

 jactância contra os portugueses, estimando-os sem dúvida responsáveis de sua

desgraça. Como sugerimos no capítulo anterior, todo o discurso de jactância

oculta, na verdade, a fraqueza da posição de quem o profere e não é destinado, portanto, a ser levado à prática. A esse tipo de discurso também pertence, sem

dúvida, a ameaça de «comer» os adversários.

Os exemplos citados sugerem a assimetria do diálogo da violência entre

europeus e africanos. A «linguagem» dos europeus é a violência indiscriminada,

enquanto os africanos, geralmente, parecem contentar-se com a violênciaverbal. Oficialmente, a violência portuguesa se justificava pelas necessidades de

sua defesa. Alguns africanos, porém, não demoraram em descobrir nela uma

motivação bem diferente. Em 1575, o jesuita Garcia Simões escreveu numa

carta ao seu superior: «Soubemos que uns manicongos [senhores kongo]

disseram a el-rei de Angola, em público terreiro, da parte de el-rei do Congo,

como ele por seu irmão o avisava que olhasse por si e soubesse que a vinda dogovernador [Dias de Novais] e mais portugueses a esta terra era para lhe fazer

guerra e finalmente para lhe tomarem o reino» (Simões 1989 [1575]: 104).

Segundo Simões, a lúcida advertência que o rei do Congo transmitiu ao seu

«irmão», o rei de Angola, assombrou os portugueses residentes em Luanda. O

que provocou a surpresa deles – uma surpresa desagradável - foi sem dúvida a

39 Outra etimologia possível é o verbo kimbundu kúsanza, limpar, tornar (as terras) aptas para a cultura (AssisJr. 1947). O ex-mani Bamba, nessa hipótese, dizia que ia «limpar» a terra dos portugueses.

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Lienhard: O mar e o mato 85

atitude insubmissa e a autonomia política que o rei do Congo – aliado deles -

demonstrou ao se imiscuir dessa maneira nos seus projectos. Descendente de

uns reis que acolheram os portugueses por volta de 1482, o rei do Congo

mencionado por Simões conhecia bem, quer por tradição familiar quer por

experiência própria, a prática e as intenções dos intrusos. Já o rei Dom Afonso I

(Mbemba a Nzinga), nas primeiras décadas do século XVI, tinha percebido que

os agentes políticos ou eclesiásticos de Portugal, apesar de se apresentarem

como protectores do reino, se moviam como se fossem os donos da terra e de

sua gente. Tinha comprendido também que, submetendo-se aos brancos, ossenhores africanos perdiam rapidamente o respeito de seus súditos. Em uma

carta de 1514, ele comunicou ao rei português o seguinte:

[...] nós vendo o seu devassamento [dos padres portugueses] lhes

rogámos por amor de Nosso Senhor Jesus Cristo que se comprassem

algumas peças que fossem escravos, e que não comprassem nenhumamulher para não darem mau exemplo nem nos fazerem ficar em mentira

com nossa gente do que lhe tínhamos pregado, e sem embargo disto

começaram a encher a casa de putas, em tal maneira que o padre Pedro

Fernandes emprenhou uma mulher em sua casa e pariu um mulato, pelo

qual os moços que ensinava e tinha em casa lhe fugiram e iam contar a

seus pais e mais parentes, e todos começaram a zombar e escarnecer denós, dizendo que tudo era mentira o que lhes tínhamos dito, e que os

homens brancos nos enganavam, ao qual nós então tomamos muito nojo e

não sabíamos que lhe responder (D. Afonso 1992 [1514]: 29)

Embora assinassem numerosas alianças com os portugueses, os senhores da

África central conheciam, pois, os graves riscos que corriam ao aceitarem a

«protecção» dos brancos. Em virtude de interesses amiúde contraditórios, a

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«resposta» deles, porém, não foi sempre nítida. A «linguagem» que eles

costumavam usar nas suas negociações com os portugueses combinava,

geralmente, uma retórica da submissão com diversas práticas de resistência

activa e passiva.

Linguagens diplomáticas

 No contexto angolano da primeira metade do século XVII, a troca de cartas

diplomáticas domina a hierarquia política dos meios de comunicação que sãoutilizados no «diálogo» entre o governador português e seus interlocutores

africanos - aliados ou adversários. Ora bem, a correspondência entre «vassalos»

africanos e europeus da coroa portuguesa não é senão uma espécie de anexo

 periférico de um circuito de comunicação cujo centro se encontrava na

metrópole. As mensagens que se introduziam nesse circuito levavam, sempre, a

marca da linguagem feudal em uso no império hispano-português. Baseada naescrita e numa retórica de tradição europeia, a comunicação epistolar era, em

Angola, radicalmente alheia à tradição cultural local. Redigindo ou ditando uma

carta, os senhores africanos se inscreviam num sistema de comunicação

totalmente estrangeiro, reconhecendo assim, implicitamente, sua submissão à

coroa europeia. Numa carta que respeitasse as regras vigentes neste circuito

feudal, não cabia, é evidente, a expressão de um pensamento africanoautónomo. Quando o governador, nas suas missivas, oferecia a protecção do rei

aos senhores aliados e ditava suas condições, estes, caso respondessem pelo

mesmo meio, só podiam manifestar a aceitação da vassalagem proposta. Única

«dissidência» admitida eram as queixas ou os protestos que não transgredissem

as regras do jogo feudal. Constatamos, pois, que o meio de comunicação – no

caso a correspondência diplomática – determinava em grande medida o

conteúdo da mensagem. A famosa teoria de McLuhan (1967) – «o meio é a

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messagem» - recebe neste caso uma confirmação evidente. Caso quisessem

significar a recusa do sistema da dominação portuguesa, os senhores africanos,

como veremos, lançariam mão de outros meios: oralidade, gestualidade, guerra.

Uma carta de Angola Aire, rei fantoche do Ndongo que tinha sido eleito por

uma junta de «eleitores» autóctones sob a pressão e na presença dos portugueses

(Outubro de 1626), oferece um bom exemplo do que um senhor africano devia

ou podia dizer numa carta diplomática dirigida a uma autoridade portuguesa.

 Nas palavras de Fernão de Sousa, seu destinatário, o «rei»

[...] me dava as graças de o fazer rei, desculpando-se de me não mandar o

que me devia por isso, o que faria a seu tempo por não estar ainda com

 posses para isso; mandou-me pedir os negros forros que andavam fugidos

 pera povoarem aquele reino, e descarregou-se de não abrir logo feira por

não estar ainda pera isso, e por se dizer que o jaga Caza com GingaAmbande estava entre Zungui Amoque e Andalla Quesua fazendo danos

e ameaçando com guerra que pedia difensão e segurança de vida; pediu-

me um chapéu de sol e um chapéu pera sua pessoa, como o traz el-rei de

Congo, uns pandeiros e umas campanhas, uma alcatifa e um cobertor de

seda e papel, e mandou-me uma negra de peito caído, um barbado e

quatro negros (Sousa 1985: 260).

Bom vassalo, o novo «rei» Angola Aire mostra-se agradecido e disposto a pagar

o preço que custa a «protecção» portuguesa. Lendo bem sua argumentação, se

 percebe, porém, que ele, fora de sua boa vontade, não oferece nada de muito

concreto aos portugueses. Alegando a difícil situação político-militar do reino,

Angola Aire rejeita, embora sem dizê-lo explicitamente, as feiras de escravos e

os tributos que os portugueses esperavam dele. Sua carta é um ardiloso

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exercício diplomático que consiste em fingir a submissão para não dever

 praticá-la. Como consta das últimas palavras do resumo do governador, o rei

fantoche tinha completado sua epístola com uma outra mensagem, «inscrita»

desta vez na mediocridade do presente que oferecia ao governador. Sem

infringir as regras da comunicação oficial, escrita, a linguagem simbólica que

constitui a entrega de um presente lhe permitia exprimir, por este meio, os

limites de sua boa vontade. O valor escasso do seu presente - uma «negra de

 peito caído», um «barbudo» e quatro outros escravos – «dizia» claramente, com

efeito, que o «rei» não ia ceder à pressão escravista do governador.

 No seu relatório, o governador Fernão de Sousa transcreve literalmente uma

carta que a rainha Njinga (Nzinga) mandou, a 3 de Março de 1625, ao capitão-

mor de Angola, Bento Banha Cardoso. Apesar do «ódio que tem aos

 portugueses» (Sousa 1985: 227), ela também sabia respeitar as regras da

correspondência diplomática:

 Na alma estimo o vir Vossa Mercê a essa fortaleza da Embaca pera que

como a pai dar-lhe conta [d]e como mandando eu umas peças à feira de

Bumba Aquiçanzo, saiu Aire com guerra, e me salteou umas trinta peças,

das quais mandando eu tomar satisfaçaõ como a meu vassalo, acertou a

minha guerra encontrar com uns nove homens que estavam com o Tigre[Estêvão de Seixas Tigre] na terra, e botando estes nove a vir encontrar-se

com a minha guerra fora da Pedra [de Pungo Andongo], quis Deus que

dos meus fossem vencidos, donde me trouxeram seis vivos, di que me

 pesou muito de que na Pedra de Aire estivessem portugueses com guerra

de socorro a Aire; aos quais faço muito bom agasalhado por serem

vassalos d'el-rei de Espanha, a que reconheço obediência como christã

que sou (Sousa 1985: 244-245).

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Esta carta é um dos melhores exemplos fornecidos pelo relatório de Fernão de

Sousa para compreendermos até que ponto o meio chega a determinar,

realmente, a forma e o conteúdo de uma mensagem. Através das suas ofensivas

contra os portugueses, a rainha – que aqueles, intrusos de verdade, ousavam

qualificar de «intrusa no reino» (Sousa 1985: 229) – já tinha «dito», na

linguagem nítida da guerra, que ela não toleraria a penetração europeia nas

terras dela e que dispunha, ademais, de uma capacidade militar suficiente para

defendê-las. Uma vez transformada em autora de uma carta diplomática dirigidaao chefe de seus adversários militares, «D. Ana de Sousa» apresenta os

acontecimentos segundo as normas da comunicação epistolar com um superior.

Se levarmos a sério o que ela escreve, ela jamais teve a intenção de atacar os

 portugueses. Ela só mandou uma expedição punitiva contra um seu  soba – o rei

fantoche dos portugueses - que lhe tinha «salteado» alguns escravos. Fingindo

ignorar as relações privilegiadas que existiam entre Aire (Aquiloange)40

  e os portugueses, ela alega que nem podia imaginar que as tropas dela iam encontrar-

se com as do governador e que, além disso, ela não fez nada para vencer os

 portugueses: a vitória da tropa dela ocorreu pela «vontade de Deus».

Embora a argumentação da rainha soe a ironia, formalmente, ela não deixa de

«demonstrar» a sua submissão à coroa hispano-lusitana. Ao longo de toda suacontenda com os portugueses, a rainha sempre mostrou que sabia alternar os

meios de comunicação e variar assim, também, a sua mensagem. Simplificando

muito, o meio da escrita (diplomática) lhe servia para declarar sua submissão,

enquanto a «linguagem» prática da guerra lhe permitia afirmar sua vontade de

40 Convém não confundir (Aquiloange) Aire e (Angola) Aire. Precisando, perante a resistência da rainha Njinga(Nzinga), de um novo rei para o Ndongo ou «Angola», os portugueses escolheram (Aquiloange) Aire, nas

 palavras de Fernão de Sousa «o mais chegado parente de rei de Angola» (Heintze 1985: I, 202). Ao morrerAquiloange Aire «no nosso arraial de bexigas» (ibidem), a eleição dos portugueses caiu finalmente em AngolaAire, «meo irmão dele» (ibidem).

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resistência.

Em Angola, o transporte da correspondência diplomática se confiava aos

macunzes*, «embaixadores» dos senhores autóctones41. Os macunzes  eram

também responsáveis pela transmissão dos recados orais. Na corte do

governador português, esses recados, recitados pelos «embaixadores» em língua

 bantu, exigiam a ajuda de um tradutor para sua interpretação. Em que medida ou

quando, os senhores africanos recorriam aos macunzes  para transmitir suas

mensagens às autoridades portuguesas? Os sobas menores se encontravam, semdúvida, na impossibilidade prática – inexistência de escreventes, de tradutores -

de se inscrever no sistema da comunicação epistolar. Os «reis» amigos dos

 portugueses, como o rei do Congo ou o rei fantoche do Ndongo, Angola Aire,

 preferiam, aparentemente, lançar mão do meio escrito, uma maneira de

manifestar sua vontade – real ou fingida – de assimilar-se, em termos culturais e

 políticos, aos portugueses. A rainha Njinga-Nzinga, como já se viu, alternavasistematicamente cartas e recados orais.

 No dia 17 de Dezembro de 1627, o capitão Aluaro Roiz de Sousa comunica a

Fernão de Sousa a chegada de dois macunzes da rainha Njinga-Nzinga com um

recado oral. Convém saber que no mês anterior, o governador tinha declarado à

rainha a guerra a fogo e a sangue (Sousa 1985: 294). Nas palavras do autor dorelatório,

[...] o recado continha mandalos pera em nome dela tomarem juramento

da terra, a que chamaõ quelumbo* [‘ordálio’], em prova que o sucesso

41 Um «embaixador da rainha Ginga» aparece, como personagem, nalgumas das danças dramáticas brasileiras

chamadas de « congadas » ou « congados » (Andrade 1982 [1935] : II, 17-48 et pass.). Note-se porém que essasdanças populares não dramatizam a guerra entre a rainha Njinga-Nzinga e os portugueses, mas um conflito entrea rainha de Angola e o rei do Congo.

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que houve nos Quezos das mortes e prisões de pombeiros* [‘caçadores de

escravos’] e tomadia de peças e fazendas se não fizeram por ordem sua, e

que caindo os ditos dous negros no juramento, ela era contente que lhe

cortassem a cabeça, e não caindo no juramento se entenderia que não teve

culpa no caso, porque não corria com os Quezos, nem os souas* da

Lucala com ela, nem lhes fizera guerra, e que não tratava de mais que de

ser peça e filha minha, e de lhe dar licença pera tungar 42 [‘instalar-se’] na

ilha das imbillas* [‘sepultura’] onde morreu seu irmão, e que fosse mui

embora rei Angola Aire, porque se queria quietar por estar cansada deandar pelos matos (Sousa 1985: 296/7).

Tal como foi resumido pelo governador, o conteúdo deste recado não oferece, à

 primeira vista, elementos susceptíveis de indicar que Njinga-Nzinga, ao lançar

mão da comunicação oral tradicional, pretendesse atingir outros objectivos do

que quando se servia, como no exemplo anterior, do meio da correspondênciadiplomática. Sua maneira de justificar-se, de recusar sua responsabilidade nos

«crimes» que lhe atribuem os portugueses parece perfeitamente análoga àquela

que emprega nas suas cartas. Chama a atenção, no entanto, a expressão de seu

desejo de tungar   na ilha onde morreu seu irmão. Ela manifesta assim sua

vontade de honrar a memória de seu irmão morto.

A importância que tem entre os bantu – e os seus longínquos descendentes nas

Américas - o culto aos mortos é bem conhecida. Um dito kongo recolhido por

Wing (1921: 285) no começo do século XX parece justificar bem o desejo

formulado pela rainha: Ga k'akala nkulu aku ko, k'ulendi tunga ko (‘Onde não

morar teu ancestral, tu não podes tungar ’). Já sabemos – veja-se no capítulo

anterior - que ela nunca se separava de um «cofre a que chamam na sua língua

42 Tanto em kimbundu quanto em kikongo, tunga (ou túnga) significa ‘edificar’, ‘construir’. V. glossário

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mosete43» (Cadornega 1972 [1680]: II, 167), receptáculo semelhante - quanto à

sua função - às nganga dos paleros cubanos, no qual a rainha «encerrava dentro

os ossos de seus antepassados» (ibid .). Como se desprende da  Descrição

histórica de Cavazzi, o culto que Njinga-Nzinga prestava à memória de Ngola

Mbandi, o seu irmão defunto, continuava, trinta anos depois da negociação com

Fernão de Sousa, sendo um problema sério nas relações entre a rainha –

oficialmente cristã – e os europeus presentes no seu território (cf. Lienhard

1999). Numa carta diplomática, a expressão de seu desejo de seguir honrando a

memória de seu irmão teria sido percebida não só como uma falta de respeito pela religião cristã que ela pretendia professar, mas também como o indício de

uma vontade persistente de resistência ou autonomia cultural e religiosa. No

recado oral da rainha, a mesma expressão, inserta no seu próprio contexto

linguístico e cultural, não parece ter escandalizado o governador português. A

tradução mais ou menos arbitrária desse recado oral pelo governador limita,

obviamente, as possibilidades de análise de sua linguagem. Percebe-se, porém,o eco de uma vivacidade de expressão que não se costuma encontrar numa carta

diplomática. Além da maneira bem categórica de rejeitar as acusações dos

 portugueses, uma frase como «que fosse mui embora rei Angola Aire», vestígio

escrito de uma exclamação oral, deixa ainda imaginar o tom no qual foi

 proferida a mensagem original. A comunicação oral permite, portanto, a

transgressão dos tabus que impõe a correspondência diplomática.

Talvez seja na encenação proposta por Nzinga para a recepção de sua

mensagem oral que encontramos os elementos mais interessantes para

apreendermos a especificidade da comunicação oral. Em virtude de sua natureza

diplomática, a correspondência epistolar não implica, certamente, a expressão

da verdade. No sistema de comunicação africano, ao contrário, uma espécie de

43 Kmb. músete (classe mu-mi), relicário, bolsa, cofre (Assis 1947).

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«ética da oralidade» garante, em princípio, a sinceridade da pessoa que fala e a

veracidade da mensagem transmitida. Como veremos, essa veracidade, ademais,

 podia ser controlada mediante uma prova ritual. Para o governador se certificar

da sinceridade dela, a rainha propõe a aplicação do quelumbo44  - ordálio ou

«juízo de Deus» - a seus macunzes. Caso eles morressem, «ela era contente que

lhe cortassem a cabeça». Segundo Cadornega (para quem quelumbo é sinónimo

de bulungo*), os  gangas* encarregados de administrar o ordálio «fazem cair

naquele diabólico juramento a quantos quer» (Cadornega 1972 [1680]: III, 322).

Baseada pois numa prática autóctone, pagã, a prova proposta por Nzinga paraacertar a veracidade de sua mensagem demonstra que a fé cristã que ela

 professava em suas cartas era só «diplomática». Ora bem, a fé cristã «autêntica»

dos portugueses impedia que eles aceitassem, para conhecerem a verdade, a

encenação pouco ortodoxa, «diabólica», que lhes sugeria a sua adversária.

«Cristã», a «prova» que eles escolheram se inscrevia nos padrões de sua própria

cultura: nas práticas da Inquisição. Como os réus dos tribunais do Santo Ofício,com efeito, os macunzes  de Njinga-Nzinga foram considerados, de antemão,

«culpados». O primeiro a pagar suas «culpas» foi o mani lumbo45 da rainha que

acompanhava os dois macunzes já mencionados. Em uma junta, os portugueses

decidiram que «não confessando o obrigassem com tormento pera declarar onde

[a rainha] estava, e que [isso] se fizesse por portugueses pera que os negros o

não digam» (Sousa 1985: 296). Numa tentativa desesperada de escapar à morte,o mani lumbo ofereceu uma «confissão» aparentemente completa. Nem por isso

ele conseguiu salvar-se. Os lusitanos, declarando-o culpado de espionagem,

44 Kmb. kilúmbu (classe ki-i), operação que consiste na aposição do ferro candente no corpo do paciente oususpeito de delito (Assis Júnior 1947.). Segundo Cadornega (III, 320), é sinónimo de bulungo (kmb. mbulungu),o qual «é feito e preparado de uma fruta a que chamam quijualango, que é a planta que a produz dentro da maçãcom umas sementes a que chamam hitro [...]; estas sementes moídas feitas em farinha, a misturam com a sua

 bebida, que chamam oallo, que fazem do milho grosso e miudo; este chamado hitro é um veneno pelos efeitos

que faz, e se tomar muito arrebentará com ele qualquer pessoa».45 Termo de origem kongo. «Muene lumbo [...] é o que tem conta da Casa Real e guarda as cousas de maisestima dela» (Cad. I: 353). Veja-se também no glossário final.

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sentenciaram-no à morte. A decisão da junta foi executada religiosamente.

Como os africanos, os portugueses dispunham, pois, de um seu quilumbo  ou

ordálio, quer dizer de um método - arbitrário - para avaliarem a veracidade das

declarações de seus adversários. A diferença entre o ordálio africano e o

europeu revela uma atitude radicalmente diferente face à oralidade. Positivo, o

método africano se baseia na sacralização da palavra oral. Encenada numa

situação real, ela é considerada como «verdadeira» por definição. Para os

europeus, ao contrário, o discurso oral é essencialmente enganoso. Na perspectiva dos portugueses, só a violência permitia, diante de uma adversária

tão «falsa» como a rainha Njinga-Nzinga, fazer surgir a «verdade».

Retóricas africanas: nongonongo

 Na medida em que podemos ter acesso a elas, as mensagens orais queintercambiavam Fernão de Sousa e seus interlocutores africanos parecem

apoiar-se em uma linguagem sóbria e isenta de artifícios. Não se deve esquecer,

 porém, que na sua transcrição pelo governador se perde a maioria de suas

características linguísticas e poéticas. Praticantes exclusivos  de uma língua

 bantu, os makunzes  se serviam, com certeza, de uma retórica bem diferente

daquela que lhes atribui o autor do «Extenso relatório». A não ser pelo uso deum léxico africanizado, Fernão de Sousa não mostra nenhuma sensibilidade

 particular pela cultura linguística que o rodeia. Não se encontra, na sua

narrativa, exemplo nenhum de um enunciado completo em língua africana. Só

nalguns trechos de seu relatório se alça um pouco o véu que cobre nele as

formas de expressão verbal de seus adversários. Como já sabemos pela carta

que Njinga-Nzinga rainha enviou ao governador em 3 de Março de 1625, ela

tinha capturado seis portugueses. Num recado transmitido pelo seu mani lumbo 

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ao capitão do presídio de Embaca, Sebastião Dias, a rainha condicionou a

devolução deles a várias exigências, nomeadamente a supressão da ajuda militar

que os portugueses forneciam, para combatê-la, a Aire Aquiloange, súbdito

dela. Ao não aceitar o capitão as condições dela, a rainha mandou seu moenho46 

- emissário privado - para reiterar suas exigências. O diálogo do confidente da

rainha com o capitão se desenvolveu, segundo o governador, da maneira

seguinte:

[...] o moenho disse o mesmo no recado que deu da Gingua [sic] polacomparação seguinte, ‘que houvera um chuveiro grande e que alcançara

umas galinhas e as desempenara, e se acolheram a uma casa e que

estavam nela pera se empenarem’, e que respondeu Sebastião Dias que

‘igual fora mandar ela os portugueses ao Governador, pois dezia que

sentia levarem-nos lá e não retê-los em arreféns de Dungo Amoiza e Aire

Aquiloange, porque podia armarse uma trovoada e cair um raio sobre acasa onde estavam as galinhas pera se empenar, e queimá-la’ (Sousa

1985: 243).

Uma missiva que os seis portugueses cativos mandaram ao capitão permite

entender melhor o objecto desse diálogo enigmático. Eles dizem que a liberdade

deles «não havia de custar mais que a entrega de Dungo Amoíza e embarcarema Aire» (ibid .). A rainha pretendia, com efeito, trocar seus prisioneiros europeus

contra um soba amigo cativo dos portugueses e obter deles, ao mesmo tempo, o

afastamento de Aire Aquiloange, protegido dos portugueses. Por meio de sua

«comparação» irónica, o moenho  enfatizava que a rainha dispunha de toda a

 paciência necessária para esperar que os portugueses aceitassem as condições

dela. O seu interlocutor, um soldado português familiarizado com este tipo de

46 Kmb. muénhu, alma, a existência, a força espiritual.

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intercâmbios verbais, lhe respondeu da mesma maneira, evocando os riscos que

corria a rainha caso não cedesse às pressões dos portugueses.

Adivinhação em cascata, o intercâmbio de ironias e sarcasmos entre o moenho 

da rainha e o capitão português se inscreve na tradição bantu do «diálogo

enigmático». Cadornega, na sua  História, se refere a esta tradição: «Este gentio

da província de Quissama (...) fala oculto e por apodos, metáforas, e assim,

quem sabe o seu modo e é previsto na sua língua, lhe fala e responde pelo

mesmo estilo, com que os fazem dar com um pé no outro, dando, como dizemos[sic], com quem lhe sabe entender suas invenções e maranhas» (Cadornega

1972 [1680]: II, 344). A retórica «metafórica» que Cadornega atribui ao «gentio

de Quissama» é muito comum na área bantu. Entre provérbios, adivinhanças,

apólogos e troças, ela propicia uma ampla gama de pequenos géneros

«literários». Segundo Chatelain, um dos nomes para designar a adivinha em

kimbundu, língua mais provável da troca de perfídias verbais entre o emissárioda rainha e o capitão português, é nongonongo* (Chatelain 1888-89: 143). Em

kikongo, o termo nóngo* remete para um «dito picante», uma maneira de

zombar – por apólogos – do interlocutor. Já sabemos – veja-se no capítulo

 precedente - que os paleros cubanos costumam praticar, nas suas sessões rituais,

o diálogo irónico ou sarcástico. No «provérbio» kimbundu seguinte, recolhido

 por Chatelain (1888-89: 140), se capta bem o sarcasmo que oculta, amiúde, aretórica enigmática: Uanienga xitu, nguma ia jimbua (‘Quem leva carne, (é)

inimigo dos cães’). Este dito serve para criticar uma pessoa cujo comportamento

ostentatório suscita a reprovação social. Ora bem, se esta frase é pronunciada

depois de essa pessoa já ter sofrido as consequências negativas de seu

comportamento, quer dizer a dentada do cão, ela adopta um sentido claramente

sarcástico. Nos relatórios seiscentistas dos portugueses, não é frequente

encontrar alusões às formas retóricas empregadas pelos africanos nos seus

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intercâmbios verbais com os europeus. Geralmente, eles reduzem o discurso

africano aos seus aspectos puramente denotativos. A troca de «amabilidades»

entre o moenho  de Njinga-Nzinga e o capitão português é, portanto, um

momento luminoso do relatório de Fernão de Sousa, um trecho que permite

imaginar melhor o que deve ter sido a realidade do diálogo verbal entre

conquistadores e conquistados. Ora bem, uma ironia semelhante àquela que

ouvimos no nongo do dignitário da rainha pode detectar-se, retrospectivamente,

em várias das mensagens africanas transcritas pelo governador no seu «diário».

Assim, se voltarmos a ler a carta na qual a rainha Njinga-Nzinga exprime sua«comiseração» com os seis portugueses que tiveram a desgraça de cair na cilada

que a tropa dela lhes preparou (3 de Março de 1625), não deixaremos de

 perceber, apesar de sua linguagem perfeitamente diplomática, a perfídia verbal

que oculta. A inocência proclamada e o pesar fingido pelo castigo «divino» que

sofreram os seis portugueses - essas «galinhas desempenadas» que mencionaria

o moenho no seu recado oral -, encobrem mal, na verdade, a expressão do mais profundo sarcasmo.

Retóricas africanas: milonga

O «jornal» de Fernão de Sousa contém numerosos exemplos de uma outra

 prática discursiva africana: amilonga47

. Chatelain (1888-89: 132) explica quemulonga  (pl. milonga), em kimbundu, é «palavra (boa ou má), disputa». No

texto do governador, milonga  aparece amiúde como um (quase) sinónimo de

«recado». Às vezes, porém, este conceito remete para um uso mais específico da

fala. É graças às suas milongas, segundo Fernão de Sousa, que Njinga-Nzinga

consegue que populações inteiras fujam para o território controlado por ela:

47 Plural de mulónga, termo kimbundu de semântica complexa: verbo, afirmação, vocábulo, razão, causa, facto, pleito, demanda, calúnia, palavra injuriosa (Assis Jr. 1947).

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[Njinga-Nzinga] foi contemporizando comigo com recados que me

mandava, e da volta persuadiam seus macunzes nista cidade e polos souas

 por onde passavam nossos escravos e gente de guerra preta, a que

chamam quimbares*, que se fossem para ela, e que lhe daria terras em

que lavrassem e vivessem, porque melhor lhes era serem senhores no seu

natural que cativos nossos; e de maneira os obrigou com estes recados, a

que eles chamam milongas, que começaram fugir senzalas* [povoados]

inteiras (Sousa 1985: 227).

 No relatório de Fernão de Sousa, milonga  parece designar um discurso de

 persuasão baseado em promessas ou ameaças. Do ponto de vista do governador,

trata-se quase sempre de um discurso enganoso. Os africanos não eram os

únicos que sabiam empregá-lo. Como se vê no trecho reproduzido a seguir, os

 portugueses, também, o praticavam com sucesso:

‘Vestir’ é um modo que se introduziu pera pedir peças aos souas pela

maneira seguinte: mandavam os governadores um macunze - que

responde a embaixador - com cantidade de panos de seda com suas

empondas* [panos] e com farregoulos*, que é o vestido dos negros, e a

cada soua dezia que era macunze do governador e que ia buscar a loanda*[tributo], e como eram sempre pessoas doutas nesta negociação despiam

o melhor que podiam a cada soua, obrigando-os com práticas que

chamam milongas a darem pera o governador e o macunze, língua e

companheiros, as peças que não podiam dar (Sousa 1985: 279).

A milonga  é, portanto, um discurso pelo meio do qual se procura persuadir o

interlocutor de fazer ou de dar o que, em princípio, ele não está disposto a fazer

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ou a dar. No «jornal» de Fernão de Sousa, a prática da milonga  se combina

amiúde com recursos gestuais ou teatrais. Tanto os africanos quanto os

 portugueses sabiam utilizar a gestualidade para fins de persuasão.

Linguagens gestuais

A gestualidade, aliás, parece desempenhar um papel capital no «diálogo» luso-

africano. Alguma vez, lembrando-lhe os seus deveres de vassalo do rei

 português, o capitão-mor tenta convencer o rei fantoche Angola Aire de apoiar aguerra contra a rainha Njinga-Nzinga (Sousa 1985: 328). Bem consciente de

«lhe não competir o reino» (ibid .), o «rei» se recusa a continuar essa mascarada.

Para responder ao capitão-mor, ele encena uma curiosa sequência mímica:

[...] respondera que ele e Ginga eram filhos do capitaõ e que bem podiam

metê-la no reino, que ele se iria pera as Pedras ou pera o Lembo e que aliestava, que lhe podiam cortar a cabeça, e <que> se assentara no chão e se

alevantara e tomara uma palha na mão e a entregara ao intérprete, dando a

entender nisso que com ela entregava o reino, e virando as costas

descortesmente se fora sem dar aviamento aos carregadores, que lhe

 pediam pera a bagagem da guerra que em seu favor se fazia, a qual

 pedira, e negava pedi-la (Sousa 1985: 328).

 Note-se que é no momento exacto de romper com seu papel de rei fantoche ao

serviço dos portugueses que Angola Aire adopta um estilo de comunicação

inspirado, sem dúvida, na tradição «autóctone». É como para expressar, assim,

sua retirada do mundo dos putos* (‘portugueses’). Esses, aliás, não demoraram

a apreender o sentido de sua mensagem gestual. De toda maneira, o governador

- veja-se sua carta do 25 de Agosto de 1629 (Heintze 1985: II, 230-231) - já

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tinha escolhido a pessoa que, na sua opinião, teria a capacidade de representar o

 papel de rei ou rainha de Angola: D. Maria Cambo, irmã de Njinga-Nzinga e de

 Ngola Mbandi, o antigo rei do Ndongo.

De facto, os portugueses aprenderam a servir-se dos códigos gestuais em sua

vantagem. Assim, realizando um simulacro do ritual próprio  do governador,

alguns deles conseguiam obter o que só o governador em pessoa tinha o direito

de exigir:

Outras vezes se ofereciam pessoas aos governadores a fazer estas missões

 por certa cantidade de peças por contrato, e alguns eram tão devotos que

se ofereciam fazê-lo à sua custa. O que fazia a viagem por qualquer

destes modos se apercebia de sedas e doutras cousas, ia polas províncias,

e em cada soua a que chegava se assentava em uma cadeira d'espaldas e

se representava governador, e intimidando o soua o obrigava, se era poderoso, a lhe dar polo menos dez peças, e sendo menor a cinco, afora

as que dava pera a companhia e mantimentos e agasalhado necessário, em

que às vezes entravam mulheres e filhos dos souas, com grande desacato

seu que eles muito sentiam. Isto mesmo faziam e fazem os capitães dos

 presídios mandando macunzes polos souas à imitação dos governadores

(Sousa 1985: 279-280).

 Nestes casos, a utilização fraudulenta dos códigos gestuais pelos aventureiros

 portugueses serve para produzir a ilusão da presença do governador. Fernão de

Sousa, evidentemente, denuncia esse tipo de simulacros. Independentemente

disso, as encenações realizadas pelo próprio governador não eram menos

espectaculares do que as dos seus subalternos. Grande «comunicador», Fernão

de Sousa sabia combinar, com grande destreza, a escrita diplomática, a

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gestualidade e a linguagem da violência. Na sua resposta a uma carta que lhe

mandou o capitão-mor em 16 de Fevereiro de 1629, Fernão de Sousa (1985:

327) lhe deu as ordens seguintes: «[...] se os souas presos não quisessem

avassalar-se [...] mandasse <e> que a cada um deles pusesse nos peitos duas

marcas minhas e os soltasse pelo pouco que valiam, e ser de mais importância

ficarem marcados por peças minhas pera o que ao diante sucedesse». Desta

maneira, a «presença» de Fernão de Sousa ficaria inscrita e «encenada» para

sempre nos corpos dos  sobas  humilhados, obrigados doravante a se tornarem

actores-propagandistas involuntárias de sua política. Ao marcar com o seu seloos corpos de seus adversários, o governador reitera um uso particularmente

 perverso da escrita, que também se deu em outras áreas colonizadas pelos

europeus. Um cronista da colonização do México escreveu, por volta de 1541,

que os espanhóis «davam-lhes [aos camponeses indígenas] por aqueles rostos

tantos letreiros além do carimbo principal do rei que toda a face traziam escrita,

 porque de quantos fora[m] comprado[s] e vendido[s] levava[m] letreiros»(Motolinía 1985: parágrafo 50). Imitação da marcação do gado, esta prática

exprime, melhor que as palavras, a mentalidade dos escravistas europeus na

África ou na América.

Rumores

Em Angola, a comunicação entre os africanos e os portugueses nem sempre

 passava pelos circuitos «oficiais» cujos mecanismos acabamos de comentar. O

relatório de Fernão de Sousa apresenta, com efeito, numerosos casos de

comunicação indirecta ou «oblíqua». Refiro-me, sobretudo, às mensagens que

os portugueses recebiam através dos seus prisioneiros e aos rumores que

chegavam constantemente a seus ouvidos. Essas «mensagens indirectas»

contêm pormenores – por exemplo sobre a vida que se desenvolve nos

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quilombos africanos - que nunca figuram nas mensagens oficiais dos  sobas ou

da própria rainha. Como é que se realiza a transmissão da mensagem nesses

casos de comunicação aparentemente «involuntária»? Quem deseja comunicar-

se com quem, e com que intenção? O «jornal» de Fernão de Sousa não fornece

uma resposta explícita a estas perguntas. Quais são, por exemplo, os

interlocutores verdadeiros na história que segue?

[...] e disse o dito negro [de Pero de Sousa Sotomayor] que [a rainha] não

tinha gente de sustância, e se metera logo em uma casa, muito triste eenfadada polo caso acontecido, e não falava com ninguém, e por isso

mandara os macunzes tomar o quelumbo, que é o juramento da terra, em

 prova que não fizera nem mandara fazer o sucedido (Sousa 1985: 299).

O governador resume aqui o depoimento «espontâneo» de um africano anónimo

capturado pelos portugueses. Curiosamente, o testemunho do «negro» lembra – para não dizer retoma - os argumentos que a própria Njinga-Nzinga utilizava

 para demonstrar, diante dos portugueses, a sua sinceridade. Trata-se, então, de

um depoimento «falso», directamente inspirado nas instruções da rainha?

Vejamos. O «Extenso relatório» do governador sugere constantemente o

carisma, o ascendente que Njinga-Nzinga exercia não só sobre os seus súbditos,

como também sobre amplos sectores da população africana teoricamentecontrolada pelos portugueses. Não devia custar-lhe muito, portanto, organizar e

controlar a circulação de determinados «rumores». O depoimento do escravo

anónimo que aparece no «jornal» do governador bem pode corresponder, então,

a um rumor espalhado deliberadamente pela rainha para reforçar sua

credibilidade entre os portugueses. O trecho seguinte do «diário» do governador

evoca uma outra história de «rumores»:

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Sabendo a Gingua [sic] da vinda de Aire [Aquiloange] ao presídio,

descubriu o humor com que estava e convocou todos os souas da Coanza

 pera lhe dar guerra. E fingiu que os souas lhe disseram a ela que ele

[Aire] havia ido ao presídio e que da volta se intitulara rei e que por isso

lhe queriam fazer guerra e lhe não queriam obedecer, e [que] lhe pediam

a ela que o houvesse por bem e que lhe[s] desse cabeça que os governasse

na guerra, e que a Gingua respondera que ela não [sic] mandava a guerra,

mas pois a queriam fazer, lhe daria a cabeça, que foi um macota* seu dos

de sua pessoa (Sousa 1985: 240).

Aos olhos do narrador, o governador, o debate entre a rainha e os  sobas  do

Kwanza sobre a eventualidade de uma guerra contra Aquiloange Aire é pura

«ficção»: é mais uma história inventada pela rainha para fazer crer que só pela

 pressão dos  sobas  ela aceitou preparar essa guerra. Ora bem, quem é que

transmitiu essa «ficção» ao governador ou ao seu representante na zona deguerra, o capitão-mor Bento Banha Cardoso? A não ser que o próprio

governador tenha inventado toda essa história, o que não é provável, trata-se

sem dúvida, mais uma vez, de um «rumor» espalhado por Njinga-Nzinga para

convencer os portugueses de sua vontade de chegar a um acordo com eles. Um

rumor que talvez não seja pura «ficção», porque a atitude que a rainha, segundo

o governador, atribui aos sobas

, não tem nada de inverosímil. Na verdade, o próprio governador apresenta um grande número de testemunhos formais que

atestam a atitude anti-portuguesa de certos senhores africanos. Assim, ele

aponta que em Junho de 1629, o  soba  Andala Quionza do  sobado  de Andala

Queçuba nem aceitou receber os «embaixadores» do capitão-mor português.

Voltando de sua missão, os macunzes declararam ao capitão-mor em presença

de várias testemunhas que

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Lienhard: O mar e o mato 104

indo às terras do dito Andala Queçuba chegaram à libata* (que é casaria)

de um macota* (que é conselheiro) que está na fronteira das terras, [este]

os não consentira passassem pera darem a milonga que levavam pera seu

senhor Andala Queçuba e lhes disse lha dessem pera lha levarem de

Angola, que do capitaõ [governador] que o não conheciam nem queriam

nada com ele (Sousa 1985: 337).

A atitude deste makota – que pelos vistos executa ordens recebidas de seu soba 

- pode ser qualificada de «resistência passiva». Ao lado de atitudes deste tipo,também se encontram, no relatório de Fernão de Sousa, formas de resistência

muito mais radicais. Um discurso particularmente virulento contra os intrusos é

o do soba Bujlla ou (A)mbuyla. Os portugueses, considerando que seu território

 pertencia ao «reino de Angola», exigiam a sua submissão. Mbuyla, porém,

afirmava ser vassalo do rei do Congo (Sousa 1985: 258-259, 269). Esse litígio

tomou rapidamente a aparência de um conflito «internacional», porque o rei doCongo, que apoiava Mbuyla, era naquela altura aliado dos holandeses,

concorrentes dos portugueses tanto em África quanto no Brasil. Perante a

gravidade da situação, Fernão de Sousa não hesitou em ameaçar o rei do Congo,

lembrando-lhe em bom português africanizado que «mocanos48 entre os reis se

determinavam polas armas» (Sousa 1985: 259). A transcrição que o governador

oferece do discurso de Mbuyla é a seguinte:

Bujlla criou mais soberba e disse que Bento Banha [capitão-mor

 português] havia de ser seu macota e que [ele, Mbuyla] havia de pôr

governador na Loanda, e começou a inquietar os souas vassalos

 persuadindo-os que se levantassem, que ele era mani Puto* [senhor ou rei

48 «Mocanos são pleitos e contendas que se averiguam de pé a pé sem processo de papéis» (Cad. II: 61). Veja-se também no glossário.

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de Portugal] e sua molher mani Congo [senhora ou rainha do Congo], e

mandou a Mothemo [senhorio independente dos portugueses] recado aos

 portuguezes mandassem ouvir a resposta d'el-rei de Congo, e era que

desse terras aos souas Cabonda e Cheque, porque eram seus vassalos, e

logo começou a recolher escravos nossos com um filho de Gabriel de

Moraez pardo, dizendo que ele havia de ser governador nesta cidade, e

ameaçando Caonga Grande e aos souas vezinhos com guerra (Sousa

1985: 340-341).

Onde é que o governador ouviu o discurso incendiário que atribui a Mbuyla?

 Não havendo nenhuma indicação de fonte, devemos supor que se baseia em

rumores que o  soba  difundia para criar confusão no território «controlado»

 pelos portugueses. A não ser que se trate de rumores falsos, Mbuyla,

aparentemente, estava procurando radicalizar a luta contra os portugueses. Ao

contrário da rainha Njinga-Nzinga, cuja guerra intermitente contra os portugueses era basicamente defensiva, Mbuyla parece ter chegado a formular

as bases ideológicas de um movimento anti-colonial de tipo messiânico (cf.

Queiroz 1977). A partir de certos dados do presente e do passado regional, ele

constrói a utopia – centrada na sua própria pessoa - de uma ordem política nova.

Substituindo-se ao monarca português, Mbuyla se declara mani Puto  («senhor

de Portugal») e atribui a sua mulher o título demani Congo

  («senhora doCongo»). Um mestiço, filho de Gabriel de Moraez, exercerá a função de

governador de Angola. O capitão-mor português receberá o privilégio de

aconselhar, como makota, o ex- soba  transformado em «imperador». Não se

trata, obviamente, de um verdadeiro projecto político. Inversão imaginária da

situação real, a utopia espalhada enquanto rumor por Mbuyla vem a ser um

 brilhante exemplo de uma prática da jactância verbal que atribui à linguagem a

capacidade de  performar  o que não se tem a capacidade prática de realizar. O

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Lienhard: O mar e o mato 106

discurso messiânico que o governador atribui a Mbuyla é sem dúvida a forma

mais extrema de uma «dissidência» que parece ter sido, nessa altura,

relativamente geral entre os  sobas  «vassalos» dos portugueses. Note-se ainda

que foi nos territórios do  sobado de (A)mbuyla que o rei do Congo, António,

tentara salvar, umas quatro décadas depois, a independência de seu estado (25

de Outubro de 1665). Com sua derrota e morte acabou definitivamente o  Kongo 

antigo (Balandier 1965: 64-65).

O discurso da fuga

 Neste ensaio dedicado ao «diálogo» ou à «guerra de discursos» entre africanos e

europeus que provocou, nos séculos XVI-XVII, a penetração do comércio

escravista na África central, privilegiei até agora a comunicação oficial ou

oficiosa entre representantes da coroa lusitana e senhores africanos.

Infelizmente, as crónicas e os relatórios portugueses oferecem poucos elementos para conhecermos com alguma precisão o «discurso» que adoptaram, neste

contexto, os africanos anónimos. A não ser, ocasionalmente, enquanto

testemunhas involuntárias de acontecimentos sobre os quais eles não têm

influência nenhuma, os africanos comuns - súbditos ou escravos de algum  soba,

escravos dos portugueses, negros forros - não têm direito à fala nas páginas do

«Extenso relatório» de Fernão de Sousa nem nos outros documentosconsultados. Quase sempre, o papel deles se reduz ao de  peças  num «jogo»

 praticado por outros, africanos ou europeus. Com algum esforço, porém,

fragmentos do «discurso» deles se revelam através dos comportamentos

 práticos que os textos lhes atribuem. No âmbito das guerras angolanas, há um

comportamento das massas africanas cujo carácter sistemático permite que seja

lido como uma «linguagem»: a fuga. Além de recurso prático para escapar ao

cativeiro, a fuga, nesse contexto, é a linguagem de quem não tem a

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 possibilidade de fazer ouvir a sua voz no espaço do poder. A mensagem que os

africanos comuns emitem através da prática da fuga é a recusa da colonização

 portuguesa e dos efeitos perversos que ela provoca na sua vida tradicional.

Fernão de Sousa, no caso, mostra-se perfeitamente capaz de entender o sentido

e as implicações dessa mensagem. Os africanos, comenta com muita razão,

fogem para escapar à guerra (Sousa 1985: 259), à escravidão (ibid .: 241), aos

 portugueses (ibid .: 227) ou, ainda, aos aliados africanos dos lusitanos (ibid .:

328). Amiúde, admite, eles procuram refugiar-se no território controlado pela

rainha Njinga-Nzinga (ibid .: 263), a adversária mais consequente aos olhosdeles, ou nos sobados ainda independentes (ibid .: 323). Enquanto «linguagem»,

esses movimentos de fuga traduzem claramente o desejo dos africanos

anónimos de manter-se, antes de tudo, fora do alcance dos portugueses. Sendo o

comércio dos escravos o objectivo principal de sua presença em Angola, os

 portugueses não demoraram a perceber a ameaça velada que continha o

«discurso da fuga». Assim, Sebastião Dias Tissão, «velho soldado» daconquista, fez saber ao governador «que a Gingua [sic] tinha gente levantada e

que pretendia cobrar a terra e que os nossos escravos fugiam pera ela de novo,

com que se fazia mais poderosa e nos enfraquecia» (Sousa 1985: 241). Como

convinha responder aos fugitivos? A esse respeito, as opiniões dos portugueses

divergiam muito. Inquietos perante a erosão constante do seu capital escravo,

alguns «moradores» (portugueses) propuseram a Fernão de Sousa que se«prendesse gente da Quiçama [território ainda independente] pera darem por ela

os escravos que têm nossos» (ibid .: 323). O governador rejeitou

categoricamente essa proposta

 polo que podia suceder na prisão da dita gente e dos assaltos que

forçadamente havia de dar por razão das queixas, de que podia resultar

um levantamento e impedirse o comércio dos mantimentos que vêm a

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Lienhard: O mar e o mato 108

esta cidade e a navegação das embarcações que vão pera cima com

fazendas, e por outros casos fortuitos que podiam acontecer aos

 portugueses que vão e vêm pola Coanza e tomarem-se fazendas, em cuja

defenção podia haver mortos estando o quilombo* [aqui o quartel-general

dos portugueses] taõ afastado [ibid .].

Chamando a atenção para as consequências catastróficas que uma razia na

Quissama poderia provocar, Fernão de Sousa coloca o fenómeno das fugas no

contexto mais amplo do «diálogo» entre portugueses e africanos. Ele pareceintuir que os movimentos de fuga devem ser lidos como signos da única

linguagem de que dispõem os africanos anónimos no âmbito do escravismo.

Enquanto elemento de um discurso prático, a fuga indica uma certa disposição -

 para não dizer um convite - ao diálogo. O que o governador procura explicar aos

donos de escravos é a necessidade de decriptar correctamente esses signos para

não correr o risco de provocar o estalido de uma violência incontrolável e perigosa para a economia, as vidas e a própria permanência dos portugueses na

área. Rompendo unilateralmente o «diálogo» com os africanos em fuga, os

 portugueses não lhes deixariam senão a «linguagem» da violência.

Um outro acontecimento referido por Fernão de Sousa ilustra bem as

dificuldades que provoca a ruptura do «diálogo». Em 1627, a resposta politicamente inadequada que se deu à fuga maciça dos escravos de Luiz

Mendes de Vasconcellos, antigo governador de Angola, provocou uma situação

extremamente perigosa na Illamba (Sousa 1985: 286). Perseguidos, os ex-

cativos se ajuntaram com um número importante de negros forros e também, ao

que parece, com alguns brancos «desencaminhados». Com seus dois mil arcos e

graças à dinâmica político-militar que provocaram suas actividades de guerrilha,

esse exército pouco regular acabou constituindo uma ameaça séria para o poder

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 português nessa zona. Quando o governador mandou uma tropa para evitar um

«motim geral»,

se ausentaram os tendalas49  [‘tenentes’] e não deram cópia de si nem

obedeceram aos recados de Manuel Antunes [o comandante português] e

meteram-se no mato com ânimo de se defenderem, receosos das

maldades que tinham cometido e de comerem carne humana (ibid .: 286).

A ruptura do «diálogo» faz surgir – um pesadelo - o fantasmo do retorno dosafricanos ao mato. Se lembrarmos as conotações do mato – espaço do «mal» -

no imaginário dos portugueses, a inquietação do governador não pode

surpreender-nos. Caso os africanos voltassem aos seus matos, todo o trabalho de

conquista e colonização deveria ser recomeçado a partir do zero. Ao contrário

dos africanos recém «descobertos», ademais, os escravos, os forros ou os

 brancos que se deixem tentar pela liberdade que propicia a floresta dispõem,doravante, não só de um temível repertório de experiências coloniais, como

também de armamento moderno.

Conclusão

Sugeriu-se no começo deste capítulo que a guerra que se desenrolou nos séculosXVI-XVII entre os portugueses e os africanos nos matos da Área Congo-

Angola podia ser lida como um «diálogo» ou uma «guerra de discursos» entre

os conquistadores europeus e os seus adversários locais. Espero ter

demonstrado, nas páginas que precedem, o interesse e a fecundidade da leitura

 proposta. O objectivo principal desta pesquisa era «descobrir», numa

49 «Desde o rei até o mais pequeno soba têm um governador a que chamam tendala, que ouve as partes, e lhesfaz justiça» («História da residência…» 1989 [1594]: 187). Veja-se também no glossário.

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documentação redigida sobretudo pelos agressores europeus, as «respostas» que

os africanos – senhores, homens comuns, escravos - opuseram à penetração

escravista. As histórias bastante enredadas que procurei evocar ao longo deste

capítulo mostram que os habitantes do Congo e de Angola não se contentaram

em sofrer de maneira passiva o cataclismo político, social e económico

desencadeada pela irrupção dos europeus. O seu «discurso», porém, nem

sempre remete para uma atitude de resistência radical à conquista europeia ou à

escravidão. Muitos – talvez a maioria – dos pequenos ou grandes potentados

locais mostraram-se dispostos a renunciar em boa medida à sua soberania para poder aproveitar as vantagens económicas que prometia a presença dos

europeus escravistas. Outros, como a rainha Njinga-Nzinga, aceitaram o

«diálogo» com os portugueses, mas sem renunciar a defender, quer militarmente

que por meio da astúcia política, a sua soberania. Alguns, poucos sem dúvida,

empreenderam o caminho de uma resistência mais radical. Quanto às «massas»

africanas, carne de canhão e moeda de intercâmbio nas lutas que travavam os poderosos, europeus ou africanos, elas procuravam sobretudo, deslocando-se

segundo a evolução da situação político-militar, sobreviver ao cataclismo e

esquivar-se à ameaça da sua deportação para a América. Alguns contingentes de

fugitivos, porém, conseguiram organizar-se militarmente e ameaçar seriamente

o poder português.

Muito mais complexas do que aparece neste resumo esquemático, as respostas

africanas à penetração escravista testemunham amiúde a notável lucidez política

e a astúcia táctica dos chefes locais. Elas também deixam ver, por outro lado, a

ausência de verdadeiros projectos alternativos. Os que ditam as regras do jogo

são, com efeito, os portugueses. Mas com que meios os portugueses

conseguiram impor a sua hegemonia política? A força comercial dos europeus

deslumbrou sem dúvida muitos potentados locais e empurrou-os, em termos

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 político-ideológicos, para os seus «braços». Pensamos, porém, que este motivo

é insuficiente para explicar a relativa falta de reacção à apropriação, pelos

 portugueses, dos pontos estratégicos do território. Acreditamos que um factor

decisivo para os portugueses demonstrarem a sua superioridade e alcançarem a

hegemonia política foi o uso «racional» da violência contra os autóctones. Ao

seguirem as regras tradicionais na conduta da guerra e dos negócios, os

africanos se colocaram, de entrada, numa posição de inferioridade estratégica

frente a uns intrusos propriamente «maquiavélicos». É provável que nas guerras

do Congo e de Angola, a vantagem principal dos europeus não fosse a sua –discutível - superioridade militar, mas o terror que souberam inspirar nos

autóctones através de actos de violência imprevisível, injustificada e

indiscriminada. O avanço inexorável dos europeus traduz, definitivamente, o

triunfo de uma «modernidade» que afasta, em nome da eficácia colonizadora e

escravista, qualquer consideração baseada na tradição ou na ética - «própria» ou

«alheia».

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Capítulo III

QUILOMBO. FUGAS E LEVANTES DE ESCRAVOS E O DISCURSO

DA RESISTÊNCIA (BRASIL E CARIBE: SÉCULO XIX)

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Imaginário escravo e fuga

[...] se juntaron porque les instó a ello un negro Antonio Bomba del

capitán Peña, a quien todos los negros del palenque tenían por zahorín* o

 brujo, el cual les dijo se juntasen por si acaso iban los blancos, y que en

tal caso él tenía un paño de pólvora que en pegándole fuego habían de

huir los españoles.

Depoimento do escravo mulato Nicolás, Timiraguaco,

Colômbia, 1693 (AGI [Archivo General de Indias], Sevilla,Santa Fé 213).

[o que fez o feitor foi] cargarle excesivamente de prisiones, poniéndole en

un pie un madero de media vara de largo y bastante grueso,

manteniéndole de noche con un par de esposas que le ligaban ambas

manos y con un pie en el cepo, dándole tareas más grandes que a losdemás esclavos y manteniéndole con plátanos jojotos [espiga de milho] y

un poco de pira de ocumo [planta de raiz comestível][...] en un estado

incapaz de cumplir con las tareas [...] le obligó a la fuga [...]. Se ha

mantenido en un monte de Aragüita, ocupado en labrar conucos [cultivo]

[...]. En el monte se encontró con otros esclavos fugitivos [...]. Vivían en

aquel sitio trabajando, sin que ninguno hiciese cabeza, pero tenía cuidadoel declarante de llamarlos a rezar el rosario y al que resistía lo hacía

esperar allí, como también al que no se aplicaba al trabajo porque no

quería que para comer salieran a robar [...]. Que en la extensión de

aquellos montes veía algunas partidas de esclavos fugitivos viviendo en

trozos en distintos parajes [...]. Todos los negros llegaban al número de

50, más o menos, sin que se percibiese que ninguno de ellos hiciese

cabeza, ni tuviese cumbes o patucos [‘quilombos’].

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Depoimento de Miguel Gerónimo «Guacamaya», Caucagua,

Venezuela, 1794 (in Acosta Saignes 1984: 287).

[...] dijo que se llama Juan Antonio, esclavo de don Diego Gedler, de

edad de treinta años y que del servicio de su amo se huyó hace dos años

con el motivo que estando al servicio de su amo, su mayordomo Antonio

Borges, con el pretexto de que el declarante estaba amancebado con

María del Carmen, también esclava del dicho amo - lo que era

enteramente falso -, lo hizo casarse con ella. Que después de esto Borgessolicitaba a la María del Carmen, mujer del que declara, para trato ilícito

con ella, y como ésta se resistía, disimulando este oculto motivo la

castigaba fuertemente con pretexto de delitos [...] Que no pudiendo sufrir

esto, el declarante ocurrió a la casa de su amo, quien no haciendo caso de

su queja le mandó se volviera a la hacienda, como lo hizo, y advertido el

mayordomo por su amo de la queja continuó con más empeño en susantiguas pretensiones, y un día teniendo a la dicha María del Carmen en

medio de una sala la hizo levantar todos los justanes y camisa quedándose

ella enteramente descubierta en todas sus partes y esto con el pretexto de

castigarla, y habiéndose acercado el declarante a la puerta y díchole al

mayordomo que habían otras formas de castigar, le respondió que con él

haría lo mismo y viéndose el declarante en tan triste situación [...] y sinesperanzas de justicia [...] no le había quedado otro camino que huirse.

Depoimento de Juan Antonio, Taguaza, Caucagua,

Venezuela, 1795 (in García 1989: 101-102).

[...] chamavam a moça, uma muié, fosse fia de quem fosse! Tirava tudo a

roupa e faziam dançar pelado. E, ainda dançava pelado. E, então é que eu

conto. Tinha que fazer tudo que eles mandavam [...]. O feitor ali. E

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mandavam bater muito. E mandavam matar [...]. Os escravos fugiam

 porque não resistiam o sofrimento.

Depoimento de Mariano Pereira dos Santos (Maestri 1988 a:

26).

Qual foi, no Brasil ou no Caribe espanhol, o «discurso» dos escravos africanos

ou crioulos sobre a escravidão? Como é que eles percebiam e julgavam o tráfico

escravista, o trabalho forçado nos engenhos e as extremas limitações impostas à

sua liberdade e à sua autonomia económica, social, cultural e sexual? Poucassão, na verdade, as fontes directas que oferecem respostas a este tipo de

 perguntas. Nos EUA, desde meados do século XVIII, apareceram narrativas –

amiúde autobiográficas - escritas ou ditadas pelos próprios escravos ou seus

descendentes50. Nos anos 1930, ainda, o Federal Writers Project da Work

Projects Administration (WPA) promoveu a colheita de mais de dois mil

testemunhos de ex-escravos ainda sobreviventes51

. O que se privilegiou nessacampanha foi a narração de experiências pessoais, mas na documentação

reunida se encontram também transcrições de contos e cantigas que pertencem

às tradições orais comunitárias. Quer no Brasil quer no Caribe espanhol, tais

documentos são extremamente escassos52. A autobiografia que escreveu em

1839 o escravo cubano Juan Francisco Manzano é um caso excepcional.

Redigida a pedido de um abolicionista inglês e publicada parcialmente - eminglês - na cidade de Londres (1840), ela só foi editada integralmente em Cuba

um século depois (1937).

50 Selecções de textos deste tipo se encontram nas antologias publicadas por Lester (1968), Aptheker (1990),Mullane (1993) and Gates / McKay (1997). Em Davis / Gates (1985: 319-327) figura uma lista impressionantede narrativas de escravos ou ex-escravos dos anos 1760-1864.51 Rawick (1972), Escott  (1979), Hurmence (1984), Berlin 1998 e outros editaram testemunhos desta

 procedência. Veja-se na bibliografia final.52 Baseando-se nos depoimentos dos últimos ex-escravos sobreviventes, alguns cientistas sociais cubanos e

 brasileiros redigiram, nas últimas décadas, uma série de testemunhos «directos» sobre a escravidão. Podem-semencionar, neste contexto, a  Biografia de un cimarrón de Miguel Barnet (1966) e  Depoimentos de escravosbrasileiros de Mário Maestri (1988 a).

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O facto de não existir, nos países ibero-americanos, um equivalente da  slave’s

narrative53 norte-americana, justifica sem dúvida a reconsideração dos lugares-

comuns sobre a relativa «benignidade» da escravidão em terra latina. A meu

ver, uma diferença fundamental entre o escravismo latino-americano e norte-

americano encontra-se na maneira divergente de considerar e praticar a

«integração» social dos cativos – e dos negros em geral. Na «democracia racial»

 brasileira, essa passava, segundo Gilberto Freyre (1978 [1933]), pela

incorporação dos escravos na família patriarcal de seus donos. Essa«integração» era bem relativa: por um lado, ela se aplicava sobretudo aos

escravos domésticos, e por outro, ela não favorecia o acesso dos escravos – e

dos negros em geral - a uma educação letrada, à imprensa e aos tribunais. Nos

EUA, os escravos, talvez menos integrados em termos de «família» do que no

Brasil ou em Cuba, dispunham de recursos legais e mediáticos muito mais

importantes para fazer ouvir suas vozes. Fortemente reprimidos na prática desua cultura ancestral pelos donos de escravos e mais ou menos rapidamente

«desafricanizados», muitos escravos e ex-escravos norte-americanos

conseguiram, sobretudo graças aos esforços feitos por diferentes grupos

 protestantes para evangelizá-los (cf. Genovese 1976: 232-279), aceder à cultura

letrada. Mais do que nos países ibéricos, também os grupos abolicionistas,

compostos em boa parte por intelectuais e predicadores ex-escravos, semostraram interessados e prestes a contribuir para a organização de movimentos

de fuga e de resistência de escravos e para a formação de lideranças negras

autónomas.

As narrativas ou os manifestos redigidos pelos negros norte-americanos

53 Davis / Gates 1985 reúnem, sob o título de The Slave’s Narrative, uma série de esclarecedores trabalhossobre narrativas orais e escritas de escravos.

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surgiram no contexto das sucessivas campanhas políticas pela abolição da

escravatura ou em favor da integração sociocultural dos descendentes de

africanos. Por isso mesmo, esses textos costumam tabuizar todos aqueles

aspectos da cultura negra que podiam dificultar a propaganda abolicionista ou

contribuir para «justificar» a discriminação, em particular a permanência de

 práticas religiosas ancestrais. Ora bem, no caso do Brasil e do Caribe espanhol,

se quisermos descobrir o «discurso» dos escravos negros, nem dispomos dessas

fontes talvez «autocensuradas» que constituem a  slave's narrative  nos EUA.

Torna-se necessário, portanto, procurar fontes alternativas. Foi neste sentido quedefendi, no primeiro capítulo deste livro, a possibilidade de se aproveitar os

mambos  rituais dos  paleros  cubanos enquanto «fonte alternativa» para nos

aproximarmos de certos aspectos pouco conhecidos da história dos escravos

cubanos, particularmente dos processos ideológicos que se desenvolveram no

seio das comunidades escravas. No capítulo anterior, tentei mostrar que os

relatórios portugueses sobre a colonização escravista da Área Congo-Angolacontêm rastos mais ou menos reconhecíveis de «discurso africano» sobre a

 penetração do escravismo colonial. Sugeri também que a violência e os

movimentos de fuga dos autóctones podiam ser interpretados como a linguagem

daqueles que não têm acesso aos sistemas de comunicação oficiais. No presente

capítulo, as fontes utilizadas são, principalmente, os processos instruídos contra

as verdadeiras ou supostas lideranças de movimentos de fuga ou de insurreiçãono Brasil e no Caribe.

 Não só na África como também na América, os escravos costumavam lançar

mão do «discurso da fuga» para exprimirem a sua recusa dos comportamentos

arbitrários de seus donos ou do sistema escravista em geral. Quer no Brasil quer

no Caribe espanhol, a fuga individual e colectiva de escravos foi, durante todo o

regime escravista, um fenómeno endémico. Qualquer escravo - ou grupo de

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escravos - deve ter sonhado alguma vez em se libertar para sempre da

autoridade de seu dono. Enquanto fenómeno global, a fuga – e nisso concordam

a maioria dos pesquisadores actuais - era uma consequência «normal» do

sistema escravista54. O facto de um escravo ou de um grupo de escravos dar ou

não dar esse passo, dependia, sem dúvida, de um grande número de factores,

entre eles a existência ou não de lugares seguros de refúgio. As motivações e os

«discursos» que sustentavam um projecto de fuga – individual ou colectivo -

eram, obviamente, extremamente variáveis. As fugas colectivas tendiam a

desembocar na formação de redutos mais ou menos estáveis e militarizados deescravos fugidos, que amiúde ofereciam protecção a outras categorias de

fugitivos: índios, marginais rurais ou urbanos, pessoas ameaçadas pela justiça

(Acosta Saignes 1984: 263-308). Esses redutos tomaram, segundo os países,

nomes diferentes: quilombo  ou mocambo  no Brasil, cumbe  ou  patuco  na

Venezuela, palenque em Cuba ou na Colômbia55.

 No que diz respeito aos domínios lusitanos, as primeiras fugas colectivas de

escravos produziram-se ainda na Africa, antes da (possível) transferência dos

cativos da primeira hora para a América. O relatório de Fernão de Sousa,

governador de Angola nos anos 1624-1630, contém numerosas alusões à prática

africana da fuga. Os africanos fugiam para escapar à guerra, ao cativeiro e, em

 particular, à deportação para a América [cf. capítulo II]. Em Angola, regra geral,eles procuravam alcançar os senhorios dos  sobas  ainda independentes ou, nos

anos do governo de Fernão de Sousa, os domínios da rainha Njinga-Nzinga.

54 Vejam-se, entre outros, os trabalhos seguintes: Freitas 1973, Baralt 1981 (1989), Acosta Saignes 1984, Nistal-Moret 1984, Carreras 1985, Carneiro 1988, Guimarães 1988, Moura 1988, Ianni 1988, Maestri 1988 b,Reis / Silva 1989.55 Quilombo provém do kmb. kilómbo, arraial. Mocambo deriva-se do kmb. múkambu ou do kk. nkámbu, paude fileira, cumeeira, limiar. Cumbe parece ser derivação do kmb. pl. makúmbi, tendas, barracas de campanha.

 Palenque, cerca ou paliçada, é palavra espanhola que provém do catalão palenc, cerca de paus. Ignoro a origemde patuco. Para outros detalhes, veja-se no glossário.

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Alguns movimentos sugerem, porém, a emergência de uma consciência mais

«política» ou propriamente «escrava». Assim, os escravos de Luiz Mendes de

Vasconcellos, antigo governador de Angola, se organizaram enquanto exército

com uma estratégia aparentemente autónoma. Como disse o sucessor de

Vasconcellos (Sousa 1985: 286), eles «meteram-se no mato com ânimo de se

defenderem, receosos das maldades que tinham cometido e de comerem carne

humana». Um aspecto particularmente interessante deste movimento é a

composição do exército dos escravos fugidos. O governador aponta que se tinha

a «certeza que com os negros forros que andavam agregados a eles fariamnúmero de dous mil arcos» (ibid .). O exército escravo, logo, não se compunha

só de cativos fugidos como também de africanos «livres». Tratava-se, ao que

 parece, de algo mais do que uma simples fuga: de um movimento de dissidência

armada, não vinculado à «resistência» - sempre relativa e amiúde oportunista -

dos sobas locais.

Este movimento nos interessa aqui pela sua semelhança com aqueles que, na

América, desembocavam na constituição de quilombos,  palenques  ou cumbes. 

O nome que se deu no Brasil aos redutos de escravos fugidos - quilombo  - é

 bem significativo. Em Angola, kilombo  se referia, segundo o historiador

Vansina (1985: 621), a uma «associação de iniciação militar» que tinha surgido,

 por volta de 1500, no âmbito do estado kulembe. Na sua extensa carta de 13 deDezembro de 1655 ao governador Luis Martins de Sousa Chichorro (Cadornega

1972: II, apêndice, 500-503), a rainha Njinga-Nzinga aporta uma série de

 precisões interessantes quanto à semântica dessa palavra em Angola. Nesse

documento, a rainha exprime seu cansaço de «andar pelos matos» ou de «andar

feita jaga»; as duas fórmulas aparecem como praticamente sinónimas. Sem

entrar aqui no debate acerca da identidade étnica dos guerreiros  jaga*, convém

assinalar que eles se manifestavam, nos séculos XVI-XVII, sob a forma de

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vários exércitos de conquista que ameaçavam, entre outros, os reinos do Kongo

e do Ndongo. Na fala de Njinga-Nzinga, a expressão «andar feita jaga» remete,

 por um lado, para sua aliança com certos jaga como também para o facto de ela

 praticar o «estilo de quilombo» (ibid .), tipicamente  jaga. Sempre nas palavras

da rainha, esse estilo consistia em «andar em campo». Além de «outras

cerimónias», ele implicava «não deixar parir e criar as mulheres seus filhos»

(ibid .). A guerra não permite a reprodução normal da sociedade. Como os

quilombos  dos próprios jagas, o de Njinga-Nzinga «feita jaga» se reproduz

graças à incorporação de jovens guerreiros capturados nas guerras com seusadversários. Na linguagem da rainha, quilombo equivale, pois, à forma móvel e

militarizada que adoptava seu estado em tempo de guerra.

Esta imagem do quilombo  bantu sobreviveu, sem dúvida, na consciência

colectiva dos escravos latino-americanos procedentes da área Congo-Angola. É

legítimo supor que eles, para lutar contra seu cativeiro na América, seinspirassem nessa forma africana de organização político-militar,

 particularmente adequada a uma existência incerta e sem base geográfica

 permanente. Para os contemporâneos do famoso quilombo  dos Palmares, no

século XVII, a matriz bantu - ou mais exactamente «angola» - desse estado

negro instalado nas florestas de Pernambuco não oferecia dúvida nenhuma.

Discutindo a conveniência de enviar padres aos Palmares, o célebre jesuítaAntónio Vieira escreveu em 1691: «... se isto fosse possível havia de ser por

meio dos padres naturais de Angola que temos, aos quais crêem, e deles se fiam

e os entendem, como de sua propria patria e língua» (Brásio 1985: vol. XIV,

221). Para ele, portanto, os Palmares eram, em termos linguísticos e étnicos, um

espaço claramente angola. Na maneira de perceber a luta dos quilombolas e a

questão do «mato», a narrativa anónima que evoca as entradas que os militares

 portugueses fizeram nos Palmares entre 1675 e 1678 (Carneiro 1988: 201-222)

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lembra os relatórios sobre as ofensivas portuguesas contra os quilombos  de

Angola. «Encobertos nos matos e defendidos dos troncos», diz o autor, os

escravos «nos costumam fazer muitos danos, sem poder receber nenhum

estrago». Localizada perto da orla marítima, a república dos Palmares, como o

reino do Mamangoy (capítulo II), voltava as costas ao mar; no Brasil, como na

África central, o mar pertencia aos «brancos». Essas analogias atlânticas não

 podem ocultar o facto de os escravos palmarinos já não serem africanos.

Edificando igrejas por sua conta e praticando, a seu modo, o catolicismo, eles

demonstravam, sem dúvida, uma certa «ocidentalização». Os nomes ou títulosdos seus chefes denunciam, porém, a permanência de tradições bantu. Segundo

o relatório anónimo mencionado, um dos chefes palmarinos era chamado de

Zambi, nome que significa – segundo o autor - «deus da guerra». (Já sabemos

que nzámbi, na religião kongo e nas religiões afro-americanas de ascendência

 bantu, é o «deus supremo»)56. Na maioria dos documentos, o dirigente principal

de Palmares na época decisiva do afrontamento entre os escravos e os portugueses se chamava Zumbi, nome que remete, em kimbundu, para os

«espíritos dos mortos»57. O título de Ganga, aliás, aparece enquanto nome ou

título de vários chefes dos Palmares (Ganga Zumba, Ganga Muíça, etc.).

Referindo-se a Ganga Zumba, «rei» do estado negro pernambucano, o autor do

relatório anónimo afirma que esse nome quer dizer «Grande Senhor». Já

sabemos quengàngà

  é o título dos sacerdotes-feiticeiros especializados noscontactos com os nkísi / mikísi e os ancestrais. É possível, portanto, que Ganga-

Zumba cumprisse, além de sua função política, a de dialogar com os génios da

56 Para vários estudiosos actuais, Zambi seria uma transcrição errada de Zumbi, nome do general que dirigiu, naúltima fase da luta, a resistência dos palmarinos. Há, porém, outras hipóteses possíveis, como a mudança detítulo dessa personagem ou, ainda, a não identidade entre Zambi e Zumbi. Para a nossa perspectiva limitada, oque conta é só a existência de tais nomes - ou títulos - entre os palmarinos. O relatório anónimo, neste sentido,não deixa de ser a fonte mais exaustiva.57 «[…] bem sabem os entendidos que a imaginação é causa, pela maior parte, de sonharem com os mortos,

dizendo os coatou ozombi» (Cadornega I: 370). Numa nota marginal, Cadornega explica o sentido dessaexpressão gramaticalmente portuguesa, mas kimbundu quanto ao seu léxico: «Cuatou é ‘pegou’ na sua língua.Ozambi [sic, em vez de ‘O zombi’] chamam ao defunto». V. também no glossário.

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floresta e os espíritos dos mortos58. Outros chefes levam o título ngana 

(«fidalgo» ou «senhor» em kimbundu). Esses e outros índicios espalhados na

vasta documentação sobre Palmares59  sugerem que esse quilombo  continuava,

em grande medida, a tradição político-religiosa dos povos de língua kikongo e

kimbundu, embora sem excluir um certo número de inovações de origem cristã

ou ocidental (igrejas, armas de fogo, etc.).

É a partir da comoção provocada pela revolução dos escravos negros haitianos

(fins do século XIX) e a crise da dominação europeia nas Américas que semultiplicam, nas áreas escravistas, os movimentos de fuga ou de levante de

escravos. Considerados às vezes como movimentos de inspiração «jacobina» ou

«liberal», as fugas e os levantes de escravos latino-americanos dessa época

denunciam quase sempre, porém, a persistência de padrões ideológico-culturais

de tradição africana. Nas páginas que seguem, interessa-me discutir neste

sentido três movimentos – dois no Brasil e um em Porto-Rico - que se produziram entre a segunda e a terceira década do século XIX: a «insurreição de

Manoel Congo» (vale do Paraíba, Rio de Janeiro, 1838), o levante – frustrado -

dos escravos do rio Atibaia (São Paulo, 1832) e a tentativa de fuga para o Haiti

de um grupo de escravos porto-riquenhos (Bayamón, 1826). Consoante a

orientação geral deste livro, meu propósito não é reconstruir os «factos»

históricos, mas de desvendar os «discursos» que sustentaram essas trêstentativas libertárias. Base documental para esta pesquisa são as devassas que

foram instruídas contra os supostos líderes e outros participantes desses

movimentos.

58 Posposto a «filho» ou «mulher»,  zùmba, em kikongo, sugere a qualidade «ilegítima» dessas posiçõesgenealógicas. Assim, nkènto-zùmba  designa a ‘concubina’, enquanto mwána-zùmba  remete para o filhoilegítimo. Analogamente, Ganga-Zumba poderia se interpretar como «ngàngà  ilegítimo»: maneira talvez de

sugerir que ele não era um ngàngà  de ascendência ou tradição rigurosamente africana, mas um sacerdote-feiticeiro «mestiço» ou «brasileiro».59 Para maior informação, consultem-se em particular Freitas 1973 e Carneiro 1988.

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Por toda uma série de motivos, os depoimentos de escravos que aparecem,

transcritos, nessas devassas, não restituem directamente o «discurso» dos

escravos. Na encenação dos interrogatórios, o cativo se acha, diante dos

representantes do poder local ou nacional, numa situação de evidente

inferioridade. Neste contexto repressivo, ele não tem interesse em dizer tudo o

que sabe ou pensa. Ele não manifestará, portanto, a motivação profunda ou

verdadeira que o levou a participar num projecto de fuga ou de levante: a

enunciação da «verdade» só agravaria a sua situação. O diálogo entre o juiztende, ademais, a limitar-se a um intercâmbio de perguntas e respostas breves e

relativamente previsíveis. Os «depoimentos» de escravos que encontramos

nessas devassas estão, portanto, cheios de «silêncio(s)». Acrescenta-se a isto o

facto de a fala (oral) dos escravos sofrer, no processo de sua transcrição, uma

transformação radical quanto à sua fonética, sintaxe, ao seu léxico e à sua

 poética. Quase sempre, pois, os depoimentos transcritos não são senão oesqueleto do «discurso» dos escravos, o que dele é filtrado através da censura

do juiz, da autocensura do réu e da «adaptação» realizada pelo escrivão. Sem

 perder de vista que se trata de um empreendimento destinado a ficar sempre

inacabado, a tarefa do leitor consistirá, logo, em «vestir» esse esqueleto a partir

dos indícios que lhe fornece a própria devassa e, também, o contexto económico

e político-social desta.

A insurreição de Manoel Congo60 

60 A devassa deste movimento foi publicada, com um série de estudos pioneiros, por João Luiz Pinaud et al.(1987). Quero reconhecer aqui a minha dívida para com os autores deste livro, especialistas em questões dedireito. Embora a minha reflexão parta de um interesse particular, a emergência de um «discurso escravo», não

 posso deixar de compartilhar plenamente a metodologia de leitura proposta por Pinaud: «A pesquisa, então,deve dirigir-se para as dimensões silentes, o não falado, o que, dentro do limite inquisitório do processoarbitrário, o escravo não pôde articular ou não foi registrado» (ibid .: 95). Ainda sem conhecer o trabalho do

grupo de Pinaud, apliquei, em Testimonios, cartas y manifiestos indígenas (Lienhard 1992), uma leitura análogaa uma série de depoimentos indígenas hispano-americanos. Levando até às últimas consequências o impulso deresgatar toda a realidade silenciada pelas autoridades «cafeeiras» do médio Paraíba, João Luiz Pinaud (1988)

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Em Novembro de 1838, mais de cem escravos – homens e mulheres - de uma

fazenda cafeeira do vale do Paraíba (província do Rio de Janeiro), fugiram para

se incorporar a um quilombo aparentemente já existente nas redondezas: Santa

Catarina. As autoridades locais, representativas do grémio dos proprietários de

fazendas cafeeiras, organizaram rapidamente uma expedição punitiva que

culminou na morte de dois militares, no massacre, na fuga ou desaparição de

um número indeterminado de escravos e na prisão de 16 dos escravos

sobreviventes. Todos esses presos foram submetidos, colectivamente, a um juízo por insurreição. Manoel Congo, suposto líder do levante, foi também

 julgado, individualmente, por «homicídio». O tribunal, com efeito, julgou-o

culpado do assassínio de um dos militares mortos. Os dois processos foram

instruídos em duas etapas, primeiro em Paty do Alferes e depois em Vassouras,

capital regional. Elas seguem, até certo ponto, as regras jurídicas em uso

naquela época61

.

Cumpre lembrar que nos anos 1830, a produção cafeeira no médio Paraíba se

encontrava em um momento de expansão espectacular. A insuficiência de mão-

de-obra local, mas também a ideologia conservadora – escravista - dos

fazendeiros, não oferecia condições para que o trabalho produtivo fosse

organizado sem a contribuição de mão-de-obra escrava (Andrade / Neme, emPinaud 1987: 1-38). O sucesso do projecto dos escravos – a criação de um

importante foco «subversivo» perto da zona de produção cafeeira – teria

chegou a transformá-la em ficção romanesca:  Malvados mortos. Paty do Alferes, 1838. Tenho a impressão deque esta ficção, embora mais que respeitável, tende a fixar demasiado a verdade complexa e multidimensionalda história de Manoel Congo.Todas as citações e referências a esta devassa remetem para a transcrição editada, nos apêndices de seu livro,

 por Pinaud et al. (1987): Transcrição dos autos crimes (Homicídio), 22 páginas, e Transcrição / Insurreição, 64

 páginas. Elas aparecerão com o nome da testemunha, o título abreviado da devassa respectiva («Homicídio» ou«Insurreição») e a data correspondente.61 Pinaud (1987) sublinha, porém, que o respeito dessas regras foi muito relativo.

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ameaçado seriamente, pois, a ordem económica e social na região.

A «história» é bem simples: todo um contingente de escravos – homens e

mulheres - parece ter decidido subtrair-se definitivamente à autoridade de seus

donos. Ora bem, em que medida, os cativos exteriorizaram, perante o tribunal,

os motivos que os levaram a tomar uma decisão tão «extrema»? Qual foi sua

argumentação? Manifesta-se, nas suas declarações, um discurso autónomo,

«africano» ou especificamente «escravo»? É na devassa que procuraremos

encontrar pelo menos um começo de resposta a essas perguntas.

Em Paty do Alferes, no começo do processo, procede-se ao exame legal dos

cadáveres e a uma primeira série de interrogatórios. «Recitados» - é o termo

exacto que convém empregar aqui - por dois lavradores, o português Gabriel

Jozé Pereira Lima e o carioca Manoel Joaquim das Chagas, os primeiros

depoimentos, que logo servirão de acusação, não parecem nada espontâneos. Demodo coincidente, ambas as testemunhas afirmam que a insurreição foi dirigida

 por Manoel Congo e Mariana Crioula62, respectivamente – segundo eles - o

«rei» e a «rainha» dos quilombolas («Insurreição», 14/11/1838).

Particularmente categórico nas suas declarações, Pereira Lima não oferece

 provas de nenhuma espécie para apoiar sua acusação, enquanto Chagas admite

que só refere o que «ouviu dizer» («Insurreição», 14/11/1838). As respectivaslistas dos escravos presos que eles apresentam ao juiz são absolutamente

idênticas até quanto à ordem dos nomes citados: claro indício da índole pré-

fabricada de seus testemunhos.

62 Quando não se trata do nome de seu dono, o que geralmente não parece acontecer na primeira geração, o

«apelido» dos escravos remete para a – verdadeira ou suposta – procedência étnica dos escravos. ManoelCongo, portanto, era considerado kongo. Crioulo, no Brasil, designa os escravos já nascidos na América.Podemos supor, por isso, que Mariana Crioula era uma negra brasileira.

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Extremamente rígida, a «dinâmica» dos interrogatórios confirma a total

 premeditação deste processo. Em um só dia, 14 de Novembro de 1838, o juiz de

 paz, tenente-coronel Jozê Pinheiro de Souza Vernek, realiza nada menos que 28

interrogatórios! É evidente, pois, que não se tratava de procurar a verdade dos

factos nem de conhecer o ponto de vista dos escravos. Pouco interessados em

saber o que iam depor os escravos, os fazendeiros e seu juiz já tinham definido,

desde o começo, o desfecho do processo. Para não agravar a sua situação, os

escravos se limitam, quase sempre, a mencionar alguns nomes, lembrar alguns

 pormenores da fuga e aludir, vagamente, à vida no quilombo. Para o leitor poderfazer uma ideia quanto à condução dos interrogatórios, reproduziremos aqui

alguns fragmentos do segundo depoimento de Manoel Congo («Insurreição»,

14/11/1838):

O juiz perguntou-lhe qual o seu nome. Respondeu que Manuel Congo.

Perguntado donde era natural, respondeu que da nação conga. Perguntadomais onde morava, e há quanto tempo, respondeu que morava na

freguesia, e que não sabe o tempo porque veio criança. Perguntado quais

os seus meios de vida e profissão, respondeu que se ocupava no ofício de

ferreiro. Perguntado onde istava [sic] ao tempo em que aconteceu o crimi

[sic], respondeu que estava na fazenda quando os outros fugiram e que

quando [os militares ao serviço dos fazendeiros] deram no quilombo, eleestava dormindo no rancho, e que quando saiu do rancho foi chumbado.

Perguntado se conhecia as pessoas que juraram contra ele, e desde que

tempo, respondeu que só conhecia a testemunha Gabriêl Jozé Pereira

Lima, e este de pouco tempo. Perguntado se tinha algum motivo

 particular a que atribuia a queixa ou denúncia, respondeu que não tinha

raiva deles, pois que não os conhecia. Perguntado se tinha factos a alegar

que justifiqui [sic] ou mostre sua inocência, respondeu que Vicente

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Moçambique e João Angola foram a causa <causa> deste barulho

convidando aos outros para fugirem, dizendo que se ficassem, o Senhor

os havia botar na fornalha. E desta forma deu o juiz por findo o

interrogatório.

Meses depois, na capital, se repetiram os interrogatórios perante um tribunal de

 jurados - maneira talvez de demonstrar o respeito das regras da justiça e de

enfatizar publicamente, ao mesmo tempo, a não tolerância das atitudes de

insubordinação dos escravos. As sentenças pronunciadas confirmam a vontadedos fazendeiros de dar um exemplo. Suposta «cabeça» do levante e vítima

expiatória, Manoel Congo foi condenado não só uma, mas duas vezes - por

«homicídio» e por «insurreição» - a morrer na forca. Com uma excepção, os

outros homens presos foram condenados ao máximo de açoites.

Em que língua ou linguagem se exprimiram os escravos? A maioria dosinsurrectos presos - onze ou doze de um total de dezasseis ou dezassete63 - eram

africanos: Congo (2), Cabinda (1), Angola (2), Benguela (2), Moçambique (1 ou

2), Rebolo64  (1), Mufumbe (1). Todos eles eram, portanto, falantes nativos de

línguas bantu: kikongo, kimbundu, ovimbundu, etc. Em Cuba, na mesma época,

as devassas instruídas contra escravos insurrectos ou cimarrones  (‘fugitivos’)

costumam mencionar a presença de intérpretes encarregados de traduzir osdepoimentos em língua africana (cf. García Rodríguez 1996: 205-209, etc.).

Aqui, ao contrário, não se encontra alusão nenhuma à presença de tradutores.

Para fazer-se entender, os presos se exprimiriam, pois, nalgum tipo de crioulo 

ou  pidgin. No século XVII, Alonso de Sandoval (1987: 140), jesuíta instalado

63 Um dos supostos líderes do movimento, Epifanio Muçambique, escravo de um outro dono que os demaisréus, só depõe a 23 de Novembro de 1838 («Insurreição»). Suas declarações são bem posteriores, pois, às dos

seus parceiros, realizadas já a 14 de Novembro. Curiosamente, seu nome não figura na lista dos réusinterrogados e sentenciados em Vassouras. Morreu, conseguiu fugir? A devassa não esclarece esse mistério.64 Rebolo é sem dúvida uma variante de Libolo, antiga província angolana ao sul da Quissama.

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em Cartagena das Índias (Caribe colombiano), alude a um «género de

linguagem muito corrupto e arrevesado da [língua] portuguesa, que chamam

língua de São Tomé». Assinalando a semelhança deste crioulo com a «língua

espanhola corrupta, como comummente a falam todos os negros», o jesuíta

acrescenta que eles próprios - os jesuítas ou os espanhóis em geral - entendem e

falam essa língua nos seus contactos com os escravos65. É provável que a língua

empregada pelos réus do médio Paraíba tenha sido um crioulo ou  pidgin deste

tipo. Nenhum rasto dela permanece, porém, nas actas do juízo instruído em Paty

do Alferes e em Vassouras. Produto evidente do aparelho judiciário, alinguagem que o escrivão atribui aos negros é um português extremamente

 pobre e «incolor».

Para desvendar o «discurso» dos quilombolas, precisa-se de levar em conta,

além das circunstâncias da fuga, a cronologia dos interrogatórios e a identidade

das testemunhas. Houve, como já se disse, dois processos paralelos: um contraManoel Congo por homicídio, e um outro por insurreição contra todos os

 presos. Ambos se instruíram em Paty do Alferes e repetiram-se depois perante o

tribunal criminal de Vassouras. Os homens, Manoel Congo e seus parceiros,

optaram por uma estratégia defensiva que consistia em não confessar senão as

evidências e em ocultar, na medida do possível, o que poderia agravar a sua

situação. Confessaram, pois, que «fugiram para o mato», levando ferramentas earmas. Abriram uma picada? Os réus reconhecem o facto sem oferecer

 pormenores significativos. Quais os seus dirigentes? Nos interrogatórios que

 precedem a condenação à morte de Manoel Congo (28/1/1839), os presos se

limitam a dar nomes de pessoas ausentes (mortas ou desaparecidas). Como é

que eles chegaram a seguir as suas «cabeças»? Alguns escravos indicam que

65 Este tipo de linguagem aparece, sob uma forma poeticamente elaborada, nos tradicionais autos dramáticosque se apresentam no âmbito do catolicismo popular afro-brasileiro (Ramos 1954: cap. II).

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foram «levados», enquanto outros respondem, com maior precisão, que foram

«convidados» ou «seduzidos» por algum dos líderes. Essas expressões merecem

um breve comentário. Formas de discurso de persuasão, o «convite» e a

«sedução» lembram as milongas* que se discutiram no capítulo anterior.

Segundo o governador português de Angola, Fernão de Sousa, foi com

milongas  que a rainha Njinga-Nzinga convenceu os africanos ameaçados de

cativeiro a se refugiarem nas terras dela. Embora não se conheça o conteúdo

 preciso das promessas que os dirigentes escravos, africanos, fizeram aos seus

companheiros na sua maioria também africanos, há motivos para pensarmos queos quilombolas foram «convidados» por seus dirigentes a partir com eles em

 busca do «paraíso», quer dizer de uma África imaginária.

Também as mulheres presas adoptaram no processo uma estratégia defensiva,

mas não hesitaram em denunciar alguns dos escravos presentes. A sua

solidariedade se limita, aparentemente, ao grupo de mulheres. Mais ou menoscategoricamente, elas afirmam que os homens as levaram ao quilombo  contra

sua vontade. O «roubo» das mulheres significa sem dúvida que os escravos

tinham a intenção de fundar um reduto permanente, projecto que só podiam

concretizar com a ajuda de um número suficiente de futuras mães.

Aparentemente pouco solidária, a atitude das mulheres no processo sugere uma

divergência de interesses entre escravos e escravas. Além do sexo dos seusmembros, o grupo dos homens e o das mulheres se diferenciavam em vários

aspectos: origem étnica, profissões representadas, relação com a casa-grande.

Entre os 16 (ou 17) presos, homens e mulheres, encontramos 5 crioulos e 11 (ou

12) africanos, todos de procedência bantu. Quatro dos cinco crioulos, porém,

eram mulheres. O grupo dos homens era, logo, quase totalmente africano,

enquanto no das mulheres, quatro crioulas se opunham a só três africanas.

Quanto à sua situação profissional, sete dos dez homens presos tinham um

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ofício que implicava uma certa especialização. Entre eles havia dois ferreiros

(Miguel Crioulo e o próprio Manoel Congo), um carpinteiro (Belarmino

Cabinda), um caldeireiro (Antonio Magro, Rebolo), um carreiro (Pedro Dias,

Angola), um guardador de porcos (Justino Benguela). Os outros três (Adão

Benguela, Canuto Muçambique, Afonço Angola) trabalhavam na roça. Quanto

às mulheres, as crioulas – com a excepção de Brizida Crioula – e uma das

africanas estavam no serviço doméstico: Mariana Crioula era costureira, Rita

Crioula enfermeira, Lourença Crioula encarregada da torrefação da farinha de

mandioca e Emilia Congo lavadeira. As outras africanas (Joanna Mufumbe eJosefa Angola) trabalhavam na roça. Tanto por afinidade cultural quanto pelos

ofícios manuais representados, os homens se encontravam sem dúvida bem

 preparados para a aventura do quilombo. Quanto às mulheres, mais dependentes

dos donos da fazenda pelo facto de trabalharem no serviço doméstico, além de

sua provável preocupação pelos cuidados que exigia (ou ia exigir) sua prole,

custavam-lhes mais, sem dúvida, familiarizarem-se com a ideia de uma fugatalvez definitiva.

 No começo dos interrogatórios, as duas testemunhas da acusação, o lusitano

Pereira Lima e o carioca Chagas, introduzem o motivo da existência de um

«rei» e de uma «rainha» entre os quilombolas66  («Insurreição», 14/11/1838).

Esse motivo reaparece no depoimento de uma das mulheres presas, JosefaAngola (14/11/1838, «Insurreição»), mas só quanto ao «rei» Manoel Congo. Na

verdade, ao não sabermos em que língua se exprimiam os escravos, não

 podemos saber se Josefa Angola realmente pronunciou a palavra «rei».

Aludindo à função hierárquica de Manoel Congo, uma outra mulher, Emilia

Congo (14/11/1838, «Insurreição») lhe atribui o título de  pai. Na mesma série

66 Cumpre lembrar aqui que em muitas narrativas latino-americanas sobre movimentos de insubordinaçãoétnica, se afirma que os dirigentes ousam autoqualificar-se de «reis» ou de «rainhas».

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de interrogatórios, um dos quilombolas presos, Belarmino Cabinda (14/11/1838,

«Insurreição»), qualifica de  pai  um companheiro ausente, Paolo. Nove dias

depois, ainda, Epifanio Muçambique (23/11/1838, «Insurreição»), o réu

fantasma, se refere ao « pai Ignacio Rebolo», também ausente. No discurso dos

escravos, o título de  pai não parece remeter para o «rei» - ou para a «rainha» -

mencionados pelos brancos. Na verdade, é provável que nos depoimentos dos

escravos,  pai67  seja o equivalente de tate, título político-religioso bem

conhecido na zona do meio Paraíba (Ribas 1995-1996). Esse nome de evidente

origem kongo – tata*, em kikongo, significa «pai» e «sacerdote» - sugere a permanência ou a recriação, na comunidade escrava local, de uma hierarquia

 político-religiosa de ascendência «africana». Em Cuba, até agora, o título dos

sacerdotes «congos» é tata nganga, «pai feiticeiro» ou «pai encarregado do

culto das ‘forças’ chamadas de nganga*». Nos  palenques cubanos de Vuelta

Abajo que visita, nos últimos anos da década de 1830, o rancheador   (‘capitão

do mato’) Francisco Estévez, descobrem-se indícios – os sacos mágicos(macutos*) – que denunciam, lá também, a persistência – ou a recriação de uma

hierarquia político-religiosa bantu (Villaverde 1982). Já em 1693, num juízo

realizado contra um grupo de quilombolas colombianos, os escravos - vários

deles de origem bantu - qualificam o chefe de seu reduto de  zahorí , termo

espanhol de origem árabe que significa «bruxo» ou «adivinho» (veja-se a

epígrafe que inaugura este capítulo). A hipótese que podemos aventurar a partirdessas observações é que as lideranças dos quilombolas do médio Paraíba não

eram «reis», mas umas autoridades político-religiosas de tradição africana.

Interrogados pelo juiz acerca da motivação de sua fuga, os escravos declararam

que temiam ser implicados por seu dono no assassínio nunca esclarecido de seu

67 No Brasil, «pai» pode ser confundido com seu quase homónimo tupi-guarani  pa'í , que remete não só para o«pajé» indígena como também - por extensão - para o sacerdote católico.

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 parceiro Camilo Sapateiro (Manoel Congo, «Homicídio», 25/1/1839; Antonio

Magro, Benguela, «Insurreição», 31/1/1839, etc.). Por outro lado, à pergunta do

 juiz se «pretendiam voltar a casa ou seguir adiante», vários réus respondem que

«não sabiam». Quase no fim do processo, em Vassouras («Homicídio», 28 de

Janeiro de 1839), o juiz pronuncia a primeira condenação à morte de Manoel

Congo. Três dias depois, o próprio condenado (31/1/1839, «Insurreição»)

revela, pela primeira vez, o objectivo último da fuga: «era verdade que o

Epifanio [o dirigente misterioso] chegara e contara a gente toda, e depois

mandou-a buscar comes em casa e ele os levava para um lugar aonde nuncamais haviam de ver seu senhor». Perante a perspectiva de sua morte próxima,

Manoel Congo parece ter-se decidido a expressar sua verdade: a recusa absoluta

da escravidão. No mesmo dia ainda, um outro acusado, Miguel Crioulo

(31/1/1839, «Insurreição»), confirma a existência desse tipo de discurso entre os

escravos: «Proguntado se tinha ouvido dizer ao Epifanio e a Manoel Congo se

 pretendiam voltar à casa ou irem onde seu senhor nunca soubesse, respondeuque eles nunca pretendiam irem a casa de seus senhores e que eles bem sabiam

 para onde os conduziam». Numa provável tentativa de salvar todos aqueles que

ainda podiam ser salvados, dos quais Manoel Congo e Epifanio Muçambique já

não faziam parte, Miguel Crioulo atribui toda a responsabilidade penal a esses

dois dirigentes. Suas palavras implicam, porém, que todos os fugitivos

conheciam - e certamente compartilhavam - o discurso de seus dirigentes.

 Nesta última fase do juízo, Manoel Congo precisa também a importância das

 picadas: «que ali não ficaram porque pretendiam passar adiante, pois que

levaram sempre uma porção de gente fazendo picadas». É nessas poucas frases

 breves, que interrompem a monotonia dos interrogatórios, que parece

concentrar-se o pensamento verdadeiro, profundo, dos quilombolas. Eles

tinham, pois, a intenção de penetrar no fundo do mato. É bem provável que para

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Lienhard: O mar e o mato 133

Manoel Congo, a picada que leva para o coração da floresta, para um espaço

autónomo e inacessível aos senhores de escravos, tenha sido como que um

caminho propício para reencontrar-se com a mfìnda* sagrada, morada dos

espíritos dos ancestrais e das «forças» representadas pelos nkísi/mikísi68. Para os

escravos africanos na América, o mato era, com efeito, um espaço que permitia

a reconexão com a «África». Numa devassa colombiana de 1634, um escravo

 bantu, Francisco Angola, refere como um seu companheiro, Juan Angola, lhe

explicou a maneira de chegar à «Guiné» (‘África’):

Juan Angola, compañero deste declarante, le dijo que los blancos los

traían engañados, y mostrándole el sol le dijo que aquel sol venía de

Guinea, ‘ahí está el camino, vamonos’, y el susodicho y este testigo se

fueron por el monte y estuvieron en él algún tiempo, que no sabe que

tanto sería, mas de que pasó un aluna, y luego caminando fueron a dar a

el palenque del Limon (depoimento citado por Kindlimann 1994: 43).

À «África» se chega, portanto, caminhando pelo monte (‘mato’) em direcção ao

sol (leste). Em resumo, o que se desprende de uma leitura atenta do conjunto

dessa devassa é que a «insurreição de Manoel Congo», dirigida por escravos de

origem africana, se baseava, em termos ideológicos, culturais e organizativos,

em uns padrões de ascendência nitidamente africana. Não há aqui indícios deuma hipotética penetração do pensamento «liberal» ou «jacobino» nas senzalas.

«Conservadora», a motivação que sustenta o movimento é a do «retorno à

África»; uma motivação, porém, que não é plenamente compartilhada pelas

escravas «acriouladas» da casa-grande.

68 Para todas as conotações de mfìnda, veja-se o capítulo I deste livro.

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Projecto de levante dos escravos do rio Atibaia (província de São Paulo,

Brasil, 1832)69

Embora (um pouco) anterior à fuga dos seus colegas do vale do Paraíba, o

 projecto de levante dos escravos de quinze fazendas açucareiras no rio Atibaia

ou Ativaia (São Paulo), no começo de 1832, revela uma certa presença de

correntes ideológicas e formas de organização mais «modernas». Tratava-se da

segunda tentativa de levante ou «revolução» dos escravos nessa área. O

 processo de um nutrido grupo de «conjurados» foi instruído na vila de SãoCarlos, comarca de Itu, província de São Paulo (Queiroz 1974). A verdadeira ou

suposta conjura dos escravos é denunciada a 3 de Fevereiro de 1832 pelo

sargento-mor António Francisco de Andrade, proprietário de um engenho na

 beira do rio Atibaia. Nesse mesmo dia ainda, o juiz de paz José da Cunha Paes

Leme, também proprietário de escravos (ibid .: 199), recebe os testemunhos de

acusação do próprio António Francisco de Andrade e de seus irmãos JoséFranco e Teodoro Francisco; nesta ocasião depõe, também, o carpinteiro

Manoel José do Amaral, homem pardo. A partir de 11 de Fevereiro e até 23 do

mesmo mês são interrogados – em alguns casos mais de uma vez –

aproximadamente 34 homens escravos e 16 homens livres. Impõe-se a evidência

de que a denúncia de António Francisco de Andrade, versão aparentemente

«definitiva» dos sucessos, constitui a base de toda a devassa. Nos depoimentos posteriores dos negros e dos brancos aparecem certamente muitos pormenores

inéditos, mas nenhuma novidade absoluta, a não ser o descobrimento bastante

espectacular, entre os dias 16 (ibid .: 226) e 23 (ibid .: 220), de uma pintura

alegórica, obra de um escravo, que representa um negro a ser coroado por dois

 brancos. A transcrição dos interrogatórios deixa bem claro – particularmente no

69 As páginas seguintes baseiam-se numa parte do meu trabalho «África na senzala latino-americana. Utopiasde escravos rebeldes: Brasil e Cuba, década de 1830», publicado em  Africana Studia, no. 5, 2002, Edição daFaculdade de Letras da Universidade do Porto, 131-135.

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caso do escravo Diogo rebolo  (ibid .: 208) - que o juiz, em alguns casos,

empregou a tortura para obter a informação que estava procurando. Chama a

atenção, também, que vários testemunhos de brancos, quase idênticos, só

serviram para confirmar a realidade de uma «conferência» entre o mestre

Joaquim  ferreiro e Francisco crioulo, os escravos aparentemente melhor

informados sobre a situação geral da escravatura no Brasil (testemunhos de

António Januário Pinto Ferraz, Salvador Nunes de Brito, Daniel da Silveira

Cintra, Vicente José de Arruda e António Sutério, ibid .: 228-230). Embora não

se possa, perante factos como estes, falar de um processo «limpo», a abundânciade pormenores mais ou menos surpreendentes em vários depoimentos permite,

como haveremos de ver, fazermos uma ideia relativamente precisa do projecto e

do imaginário «político» dos escravos.

 Na sua denúncia, Andrade assinala que, tendo ouvido falar de um «ajuntamento

nocturno» que os escravos celebraram, no sábado, dia 28 de Janeiro de 1832, noengenho de D. Anna Franca, vizinha dele, realizou - «por via de promessas a

uns e de castigos a outros» (ibid .: 197) - um inquérito informal entre os escravos

seus e os de seu irmão Teodoro Francisco. As conclusões mais notáveis dessa

devassa «irregular» são as seguintes (ibid .: 196-198). Os escravos insurgentes,

congos  e monjolos70  na sua maioria, tinham escolhido como «cabeça» João

Barbeiro, negro forrode nação

 (= membro de um grupo étnico africano ou afro- brasileiro) residente na cidade de São Paulo. Esse João Barbeiro71, acrescenta

Andrade, «foi preso e remetido para a cidade de São Paulo por ser cabeça do

70 Por várias razões, os «apelidos» atribuidos aos escravos não remetem sempre para o grupo étnico ao qual eles pertenciam na África; sabe-se que na escolha desses nomes se impunha, amiúde, o nome do porto africano – porexemplo Benguela - onde os cativos tinham sido embarcados. Seja como for, (o porto de) Cabinda e o (reino do)Congo pertencem à mesma macro-área cultural, localizada, em termos da geografia actual, a norte da Repúblicade Angola. Os monjolos são, segundo Cadornega (1972 [1680], vol. III, p. 193), uma «nação do gentio do Reinodo Congo». Quanto a rebolo, «apelido» de dois escravos implicados no levante, trata-se sem dúvida, como já se

apntou, de uma variante de Libolo, antiga província angolana ao sul da Quissama.71 Segundo o testemunho de José cabinda  (Queiroz 1974: 206), escravo do denunciante, João Barbeiro era parente de Francisco monjolo; é provável, portanto, que fosse também monjolo.

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levante que não se fez pela Páscoa72» (ibid .: 197); na altura do processo – mas

não se sabe desde quando – ele andava fugido (ibid .: 220). Sempre segundo

António Francisco de Andrade, os escravos tinham criado um «clube» (uma

espécie de associação político-militar), designado «capitães» em cada engenho e

nomeado um «caixa», Diogo [rebolo], para cobrar as cotizações – em dinheiro,

lenços, etc. - dos membros. Um escravo tropeiro, Marcelino [cabinda], devia

garantir a comunicação entre João Barbeiro e o «comandante dos escravos da

 beira de Atibaia» (ibid .), Miguel (monjolo). Os insurgentes, parece, dispunham

de algum armamento, nomeadamente de «zagalhas» (azagaias) e poucasespingardas, e costumavam celebrar reuniões nocturnas em alguma fazenda,

deslocando-se nos animais dos seus senhores ou dos carpinteiros dos engenhos.

A palavra empregada pelo sargento-mor – e também, logo, pela testemunha

 branca José Leonardo Pereira (ibid .: 223) - para nomear a estrutura associativa

dos escravos, «clube», bem conhecida da história da revolução francesa, sugereque Andrade localizou esse movimento na tradição jacobina. Em que medida a

inspiração deste projecto de levante rural era realmente «jacobina» ou, pelo

menos, «liberal»? Nenhum dos escravos interrogados alude à existência de um

«clube». Chama a atenção, porém, que alguns dos escravos interrogados

demonstram um conhecimento bastante exacto da conjuntura política brasileira,

o que sugere sua «politização» e seu «acrioulamento». Franciscocrioulo

 admiteter dito para um de seus parceiros, o tio Joaquim  ferreiro, que seria justo dar a

liberdade aos escravos, agora que «os negros [quer dizer os africanos] já não

vem para o Brasil» (ibid .: 215); alusão evidente à recente proibição - imposta

 pelos ingleses em 1830 – do tráfico atlântico. Outro escravo, o tropeiro

Marcelino, ouviu dizer (ibid .: 220) que no Rio de Janeiro, os escravos já tinham

72 Aparentemente, os escravos tinham planeado sublevar-se em uma das grandes festas de seus amos. A primeira tentativa, segundo a denúncia, deu-se na Páscoa [Natal] de 1831.

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sido libertados. Embora só se trate, neste caso, de um rumor falso, é verdade

que a abolição do sistema escravista já figurava na agenda do debate político

 brasileiro (Costa et al.: 1988). Uma testemunha branca, Manoel da Rocha

Ribeiro (Queiroz 1974: 227) declara que o escravo Joaquim  ferreiro  lhe disse

«que os brancos todos se acham libertos, e eles pretos, porque não haviam [de]

ficar [livres também]? isso era belo!». Esse escravo, sem dúvida, estava se

referindo à emancipação do Brasil (1822): um processo que libertou os crioulos

 brancos da tutela portuguesa, mas sem mudar nada essencial na situação dos

escravos. Interrogado directamente pelo juiz, Joaquim declarou que «foiconvidado por um moço branco de nome Jose Valentim de Mello, o qual lhe

dizia que esta intenção [o levante local] tão bem se achava tramada em São

Paulo de comum acordo com os escravos desta» (ibid .: 210). Segundo ele, pois,

um branco – filho de capitão – teria sido o verdadeiro ideólogo do movimento73.

Seja como for, parece que alguns dos escravos mais «acrioulados», politizados e

capazes de dialogar com seus donos e os brancos em geral, se achavam bastante bem informados acerca dos debates que agitavam, naqueles anos, a sociedade

crioula do Brasil.

O processo demonstra, porém, que as motivações dos escravos não se reduziam

a considerações políticas de tipo nacional ou internacional, e que os meios

empregados por eles para obter sua liberdade não foram, exclusivamente, deinspiração «liberal». A devassa revela, com efeito, a existência paralela, entre os

 próprios escravos insurgentes, de uma lógica ao mesmo tempo mais «africana»

73 Francisco crioulo, escravo de António Sutério, repete, no seu segundo interrogatório (Queiroz 1974: 217), amesma história. O juiz não parece ter levado a sério esta «pista branca», quer porque não a consideravaverosímil, quer porque Mello, filho de um capitão, teria sido um adversário difícil. Note-se que uma testemunha

 branca, Salvador Nunes de Brito, «disse que ouvira dizer que José Bento [da Silva: um branco] tinha grandecourelação e amizade com os negros em que tratavam do presente objecto da insurreição, dizendo que fizessem

o levante a bem de sua liberdade, visto que agora não devia haver escravidão, e que isto sabe por ouvir a José deCampos Soiza» (ibid.: 226). A «pista branca», portanto, não deixa de ser – paralelamente a outras - umahipótese plausível.

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e mais «escrava». Lembre-se neste contexto que pelo menos 75% dos escravos

interrogados eram africanos, predominando entre eles as origens congo, cabinda

e monjolo. Uma testemunha branca, Manoel Rodrigues da Silva, natural de

Santo Amaro, relata - não sem alguma graça - duas conversas entre escravos

que ele, aparentemente, teve a ocasião de ouvir (ibid .: 222-223). Na primeira,

«achando se ele testemunha dentro em sua casa com a porta cerrada», o mestre

Joaquim  ferreiro e Francisco [crioulo], «negro de Sutério», sentados «em dois

 paus» fora da casa dele, diziam que «tudo se achava pronto para domingo sem

falta», se referindo a dinheiro, armas e o descuido domingueiro de seus donos.Pronto para o quê, exactamente? É a segunda conversa ouvida por Manoel

Rodrigues que parece oferecer uma resposta a essa pergunta: «No dia quinta-

feira da semana passada, seriam sete horas da noite [ele] percebeu na rua perto

da sua casa o tropel de um cavalo ferrado e procurando saber quem seria,

conheceu que era um negro»; ouviu logo que o cavaleiro dizia que «havia de ir

no Quilombo ou Colomba e que não sabia ele testemunha se era isto algumaFazenda, ou Quilombo de negros no mato». A criação de quilombos era, como

 bem sabemos, uma prática corriqueira entre os escravos brasileiros. Ora bem, se

as declarações de Manoel Rodrigues poderiam ainda ser interpretadas como

fruto de um imaginário branco, isso não acontece com as de um dos cativos,

Marcelino tropeiro, aquele escravo que, aparentemente, ficava encarregado de

transmitir aos seus parceiros as ordens do «cabeça» João Barbeiro de São Paulo.Diante do juiz, Marcelino alude a um «capão de mato onde pretendia fazer sua

existência», e na qual reuniria «as escravaturas dos Engenhos […] para

guerrearem com os brancos» (Queiroz 1974: 220). Parece evidente, portanto,

que a criação de um quilombo fazia parte do projecto dos escravos.

Outras testemunhas escravas confirmam a orientação basicamente «africana» do

levante programado. Várias delas admitem que seu objectivo consistia em matar

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todos os brancos e, nas palavras de José de nação  (ibid .: 212), em «fazerem a

guerra contra os brancos como na sua terra [quer dizer na África] fazem uns

com os outros». Agora, como é que se fazia a guerra na África? Em todas as

sociedades pré-modernas, a guerra costumava ser acompanhada de diversas

 práticas religiosas e mágicas. Na época de sua grande expansão atlântica (e

mundial), os próprios portugueses - e os espanhóis - acudiam, ainda, a práticas

análogas: lembre-se, por exemplo, a constante invocação a Santiago, «deus»

ibérico da guerra. A importância da «feitiçaria» no movimento dos escravos do

rio Atibaia aparece nas declarações de muitos negros – e alguns brancos -interrogados pelo juiz. Vários escravos, em particular, vendiam o que na

devassa aparece com o nome de meizinhas  («remédios») – produzidas a partir

de certas raízes – para se proteger 74; essas substâncias serviam, nas palavras de

Joaquim congo, para «amansar aos brancos e livrar a eles pretos do chumbo, e

armas dos brancos – digo do chumbo, faca e rondas da vila e a seu salvo

matarem os brancos e ficarem libertos» (ibid .: 213-214). Hoje ainda, com asmesmas palavras, os descendentes espirituais dos escravos cubanos de origem

kongo  costumam realizar uma prática mágica que consiste em «amarrar os

 brancos» (nkanga mundele) para impedir que estes perturbem o

desenvolvimento de seus rituais75:

S  Va nkangando* lo mundele

 (Eu vai amarrando os brancos)

C Yanguilé* (yandilé)

S Con licencia Sambianpungo*

(Com a licença de Zambiampungu*)

74 Esse tema é introduzido na devassa por um dos irmãos de António Francisco de Andrade, José Franco, que

alude a «enchames, como bunec<r>as e raizes» (Queiroz 1974: 202).75 Reza da religião afro-cubana de  palo monte, gravada em 1993 pelo autor deste trabalho (veja-se o capítulo Ideste livro).

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C Yanguilé (yandilé)

S Va nkangando tó lo que estorba 

(Eu vai amarrando tudo o que estorva)

S Va quitando vista mala 

(Eu vai tirando olho ruim)

S  Embele* sucio no me corta 

(Faca suja não me corta)

S  Espina larga no me hinca 

(Espinho comprido não me pica)S Cabo ronda no me ronda 

(Comandante da ronda não me ronda)

S Va si me ronda no me wiri* 

(Se me rondar não me sente)

 Note-se que já na revolução escrava de 1791 em São Domingo (Haiti), se ouvia,segundo Moreau de Saint-Méry (v. Fick 2000: 969-970), uma cantilena análoga:

«Canga bafio té / Canga moune de lé / Canga doki la [Nkanga bafiote / Nkanga

mundele / Nkanga ndoki-la]» (‘Amarra os bafiotes [‘habitantes da costa,

traficantes’] / Amarra os brancos / Amarra os bruxos’).

Quanto aos «ajuntamentos secretos» que costumavam realizar os escravosinsurgentes, Marcelino  tropeiro, escravo de origem cabinda  (Queiroz 1974:

209) ou monjolo (ibid .: 199), assinala que os «cabeças» lhes davam «um titulo

de feitiços, ocultando o trama que premeditavam» (ibid .: 209). O que ele parece

querer dizer é que as reuniões «políticas» se disfarçavam de encontros de

«feitiçaria». Observação duplamente interessante, porque sugere, por um lado,

que a prática da «feitiçaria», embora perseguida pelas autoridades, continuava

vigorando nas senzalas, e por outro, que na altura dos sucessos que estamos

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comentando, era melhor, para um escravo, admitir sua participação nas práticas

religiosas proibidas do que confessar a vontade de se libertar. Agora, o que

sugerem realmente essas declarações de Marcelino, é que a prática «política»

não excluía - para não dizer que implicava - determinadas acções rituais de

inspiração africana. Neste contexto é também interessante saber que Marcelino,

mensageiro de João Barbeiro, não só transportava cartas do «cabeça do

levante», mas também «uma boceta de chifre» (testemunho de vários escravos

anónimos, ibid .: 208). Ainda hoje, os chifres desempenham funções importantes

nalgumas religiões afro-americanas; no  palo monte  cubano, o chamado vititimenso76 - espelho mágico instalado num chifre – é um instrumento empregado

nas práticas de adivinhação. Marcelino, no caso, alegou que «não sabia o que

vinha na boceta» (ibid .: 209). A «boceta de chifre» é mais um claro indício da

existência, no movimento aparentemente «jacobino» dos escravos do rio

Atibaia, de uma componente religiosa «africana» mais ou menos secreta.

As evidentes conotações religiosas da guerra anunciada pelos escravos de São

Carlos se acham confirmados pelos títulos com que eles investiram alguns de

seus dirigentes. O «caixa» Diogo, com efeito, é qualificado de  pai  por

Marcelino cabinda, o famoso escravo tropeiro (ibid .: 209), e de mestre  por

Bento cassuada (ibid .: 218). Joaquim ferreiro, líder de orientação supostamente

«jacobina», é chamado detio

 por Franciscocrioulo

  (ibid 

.: 215). Quanto àmaneira de captar a vontade dos escravos, se alude mais de uma vez à prática de

«sedução»; Diogo rebolo, em particular, parece ter sido um grande «sedutor» de

escravos (testemunho de Miguel monjolo, escravo, ibid .: 207). Mais uma vez,

esse termo lembra a milonga  - discurso de sedução - que praticavam, segundo

os cronistas portugueses de Angola do século XVII, os dirigentes político-

religiosos que lutavam contra os escravistas lusitanos.

76 Kk. (ki)wíti , arte mágica, e mêso (sg. dîso), olho.

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Falta ainda comentar, brevemente, a pintura alegórica que se descobriu nos

últimos dias do processo. Trata-se de uma «pintura em papel, que continha estar

um negro sentado em uma cadeira, e dous brancos, um de cada lado coroando o

negro» (testemunho de Manoel da Rocha, proprietário de escravos, ibid .: 226).

Essa pintura encontrava-se na posse de Joaquim congo (ibid .: 220-221), escravo

numa fazenda – a de Francisco Borges da Costa – aparentemente não implicada

no projecto de levante. Ele afirmou tê-la comprado a Manoel rebolo, escravo do

capitão Silvério Gurgel do Amaral Coitinho. Segundo Manoel da Rocha, «umnegro de Francisco Borges» (sem dúvida o próprio Joaquim congo), «dera [essa

imagem] a uma criança dele» (ibid .: 226). O capitão Silvério Gurgel, consultado

a esse respeito, disse que ele, com efeito, «tinha um escravo meio pintor», e que

ia verificar se era obra dele. O conjunto destas observações permite não só

afirmar a existência de uma «pintura escrava», como também, curiosamente, a

de um «mercado» para ela. Não há elementos para sabermos se a imagem donegro coroado por dois brancos tinha alguma relação com o projecto de levante

escravo: se era, por exemplo, um meio de propaganda iconográfica. O que esta

 pintura alegórica não deixa de confirmar, em compensação, é a existência, entre

os escravos da área, de uma «utopia negra». A pintura em questão pode ser

relacionada com o imaginário dos ritos «católicos» de coroação de reis africanos

(congados, congadas

, etc.) que se celebravam – e continuam a celebrar - emnumerosas comunidades afro-brasileiras (cf. Gomes / Pereira 2000) e afro-

americanas em geral. No caso da pintura em questão, porém, a representação da

coroação de um rei negro por dois brancos, longe de constituir uma simples

lembrança do passado africano, é a imagem de um utópico «mundo às avessas»,

de um mundo onde os negros dominam sobre os brancos.

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A estrutura associativa («clube») do grupo dirigente, a politização de alguns dos

conjurados e uso da escrita para a transmissão de mensagens revelam, neste

movimento, a evidente repercussão do modelo «liberal» ou «jacobino». Ao

mesmo tempo, a existência de uma hierarquia político-religiosa, o projecto de

formar um quilombo, as reuniões de «feitiçaria», a prática mágica de «amansar

os brancos» e o uso de instrumentos mágicos como a «boceta de chifre»

remetem, claramente, para as tradições africanas. O movimento dos escravos do

rio Atibaia se caracteriza, pois, por uma dupla ancoragem, simultaneamente

«ocidental-progressista» e «bantu». A combinação desses dois modelos não é,em 1832, nenhuma novidade; ela se encontra, já, na Revolução de São

Domingo. Segundo o testemunho de um crioulo (branco) que participou, em

1791, na luta contra os escravos haitianos insurrectos, acharam-se, na roupa de

um escravo morto, «panfletos impressos na França sobre os direitos humanos;

no bolso do seu casaco encontrou-se um grande pacote de isca e fosfato de cal.

 No peito levava um saquinho cheio de pêlos, ervas, pedaços de ossos, a quechamam fetiche»77.

O sonho haitiano de um grupo de escravos porto-riquenhos

O projecto de fuga desenvolvido, em 1826, por um grupo de escravos negros de

Bayamón (Porto Rico), oferece, em termos ideológico-culturais, vários pontosde convergência com a tentativa de levante dos escravos do rio Atibaia. Quais

os «factos»? Em 1826, Porto Rico era ainda uma colónia espanhola. Em Agosto

desse ano, alguns barões açucareiros da província de Bayamón chegaram a

suspeitar que um grupo de escravos, composto por duas dezenas de homens de

suas fazendas respectivas, estavam se preparando para fugir para São

77  My odyssey: experiences of a young refugee from two revolutions, by a Creole of Saint Domingue , BâtonRouge: Louisiana State University Press, 1959: 32-34 (citado por Fick 2000: 973).

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Domingos. Os revolucionários negros da parte francesa dessa ilha caribenha –

que corresponde à actual república de Haiti - tinham demonstrado, quase três

décadas antes, que, unindo suas forças, os escravos e seus aliados forros podiam

chegar a vencer militarmente os seus adversários «brancos». A revolução

haitiana foi a primeira insurreição escrava bem-sucedida na história da América

escravocrata. Ela levou, ademais, à fundação da primeira república

independente na América «Latina». Naturalmente, o exemplo haitiano

impressionou os escravos do Caribe insular e continental como também, talvez

mais ainda, seus donos, que temiam a repetição, nos respectivos países, dessaexperiência (para eles) traumática.

Em Bayamón, na primeira metade do século XIX, o facto de indivíduos ou

grupos de escravos procurarem uma vida melhor em alguma das ilhas vizinhas

não tinha nada de excepcional (Nistal-Moret 1984: 251-262). Aparentemente, os

escravos até costumavam discutir, entre eles, as vantagens das diferentes ilhas.É verdade que as autoridades tinham imaginado medidas para impedir as saídas

marítimas dos escravos, mas uma vigilância constante da costa não era

 possível78. De toda maneira, a suspeita de um movimento filo-haitiano entre os

escravos de seus domínios obrigou a autoridade local bayamesa a levar a sério

esses rumores pouco consistentes acerca das possíveis veleidades de fuga de um

grupo de escravos. O prefeito («Alcalde Real Ordinario») de Bayamón, PedroVasallo (ou Vasayo) não demorou muito em proceder a um inquérito judiciário.

Sua devassa79 parece ter-se realizado em condições de improvisação quase total.

A sequência dos interrogatórios evidencia que o prefeito não partiu de uma lista

 prévia de réus, mas que ia convocando as testemunhas - donos de engenhos,

escravos, um negro forro - à medida que os nomes deles iam aparecendo nos

78 Para impedir a fuga dos escravos nalguma das canoas que sempre se encontravam na praia, o governo da ilhaexigiu que os donos delas retirassem os remos, as velas e o timão ( Nistal-Moret 1984: 233-238).79 Os documentos correspondentes se encontram em Nistal-Moret 1984: 213-230.

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depoimentos sucessivos. Trata-se, portanto, de uma investigação não

 premeditada e «aberta»; cada nova informação recolhida é susceptível de mudar

o seu rumo. É assim que começa essa devassa: por acaso, o fazendeiro Tomás

Dávila y Quiñones ouve falar do projecto de fuga de alguns escravos e comenta

o assunto – sem manifestar pânico nem muito interesse - com seu colega Harry

(ou Enrique) Buist. Em uma carta dirigida ao prefeito, Buist evoca os rumores

que circulam sobre esse projecto de fuga. Querendo saber mais sobre esse

assunto, o prefeito convoca o autor da carta80. A partir dos nomes mencionados

 por Buist no seu depoimento oral, o «juiz» convoca logo um primeiro grupo detestemunhas, fazendeiros e escravos. Os depoimentos deles lhe servirão depois

 para chamar outras pessoas possivelmente implicadas ou susceptíveis de fazer

avançar o inquérito. Toda a devassa se desenvolve segundo essa mesma lógica.

 Neste sentido, ela se encontra exactamente nos antípodas daquela totalmente

«pré-fabricada» que se instruiu no vale do Paraíba, em 1832, contra Manoel

Congo e os seus parceiros.

As declarações transcritas sugerem a composição heterogénea, em termos

«étnicos», do grupo de escravos que sonhou com a fuga para o Haiti. A dois dos

interrogados, a devassa atribui uma vaga origem africana: «Guinea» (José

Joaquín Quiñones) e «África» (Julián). Outros dois escravos declaram vir das

Antilhas francófonas, respectivamente de São Domingos (Juan Bautista, ‘Jean-Baptiste’) e de Martinica (Llan Fransúa, ‘Jean-François’). Não se especifica a

 procedência de mais duas testemunhas escravas, Aniceto e Mateo Díaz, o que

sugere que eram crioulos porto-riquenhos.

Diferentemente do juiz do vale do Paraíba, o prefeito de Bayamón, que não

80 Ao que parece, Harry Buist era anglo-saxão. Seu depoimento foi traduzido pelo vecino (‘vizinho’: membrodo sector hegemónico) D. Timoteo Oneill.

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Lienhard: O mar e o mato 146

segue nenhum roteiro fixo, ouve com muita atenção os sucessivos depoimentos,

intervindo com suas perguntas cada vez que considera que há algo novo ou

alguma incoerência ou contradição nas declarações das testemunhas. No curso

dos interrogatórios, a forma do projecto de fuga e o papel que nele

desempenharam os diferentes escravos muda constantemente. As certezas

relativas do começo vão-se transformando em dúvidas. No fim, o prefeito,

visivelmente cansado pelas «mentiras» que lhe contam não só os escravos como

também os fazendeiros, opta por enviar a devassa, com uma série de

comentários desiludidos, ao seu superior, o governador espanhol da ilha. Esse,sem se pronunciar claramente sobre o assunto, ordena que os escravos sejam

encadeados e vigiados antes de sua venda «para fora da ilha». Se levarmos em

conta que pouco antes, no processo contra os dirigentes de um movimento

insurrecional, 23 escravos foram condenados à morte e mais 7 à cadeia perpétua

(Baralt 1989: 66-67), a sentença do governador parece bem «branda». Talvez,

traumatizado ainda pela violência que desencadeou esse movimento de tipo«haitiano», o governador preferisse fechar ambos os olhos perante os pacíficos

sonhos de liberdade de um grupo felizmente reduzido de escravos. Quanto à

atitude do prefeito, a devassa mostra que ele preferia interpretar essa fuga

frustrada como um episódio menor do antagonismo habitual entre escravos e

fazendeiros.

De facto, o contexto político-ideológico e económico oferece mais alguns

argumentos para explicar a estranha moderação que a autoridade máxima da

ilha demonstrou nessa circunstância. Convém lembrar que nessa altura, a

escravatura começava a ser percebida como um sistema de exploração não só

sempre mais difícil de justificar em termos políticos, mas também – e sobretudo

 – cada vez menos rentável no plano económico. Sob a pressão do governo

haitiano, que apoiava a sua luta, Simón Bolívar, líder máximo da revolução

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independentista hispano-americana, decretou em 1816 a abolição da

escravatura81. A meados do século XIX, o economista cubano Saco, autor de

uma história geral da escravidão no mundo (Saco 1853) e partidário moderado

da abolição, destacava a ilha de Porto Rico como um dos lugares onde uma

 parte apreciável da produção açucareira se realizava em engenhos não

submetidos ao sistema escravista (Saco 1853: 79-80). A própria multiplicação,

nesses anos, de alegados a favor do regime escravista (Baralt 1989: 79-80)

demonstra a existência de gravíssimas dúvidas quanto à sua funcionalidade.

 Neste panorama, não surpreende muito a evidente indecisão do governo dePorto Rico quanto às medidas a tomar perante os movimentos de insubmissão

dos cativos.

As hesitações e a improvisação que caracterizaram o desenvolvimento da

devassa de Bayamón têm sem dúvida a mesma origem. De facto, o «cansaço»

do prefeito propicia uma liberdade de expressão que não se costuma concederaos escravos em outros processos análogos. É interessante observar, ademais,

que os escrivães Francisco Franco e Mateo Arilla transcrevem a linguagem

coloquial dos cativos presos com uma certa graça. Ao serem interrogados por

um interlocutor visivelmente atento e pouco fanático, os réus nem procuram

negar a realidade de seu projecto de fuga. Um deles, o africano Julián, alega que

foi «pela força que lhe fazia a fome, porque seu dono só o alimentava comquatro bananas pequenas e um pedaço de carne por dia». Mais de uma vez,

algum acusado chega a narrar como eles - os escravos – se arranjavam para

tornar mais suportável o cativeiro. Assim, José Joaquín, o «guineense», se

refere ao banquete de uma vaca roubada, enquanto um outro, o haitiano Juan

81 Esse decreto, que se explica em boa medida pela necessidade de poder recrutar novos contingentes desoldados para os exércitos independentistas, não surtiu efeitos duráveis. Uma vez conquistada a sua

independência, a maioria das novas repúblicas hispano-americanas demoraram ainda uma ou várias décadas para liquidar o regime escravista. Em Porto Rico, colónia espanhola, as autoridades metropolitanas só abolirama escravatura em 1873.

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Lienhard: O mar e o mato 148

Bautista, deixa entender que está desenvolvendo, com a ajuda de um seu irmão

forro, um comércio de cavalos roubados nas fazendas do local.

O que revelam os depoimentos destes cativos quanto à sua visão do mundo, da

história e da escravidão? As declarações mais interessantes neste sentido são,

sem dúvida, as do velho haitiano Juan Bautista e as do «guineense» José

Joaquín. Ambos evocam com abundantes detalhes uma tarde memorável que

eles compartilharam na fazenda  Plantage  de Harry Buist, onde morava e

trabalhava o haitiano. Como no célebre filme japonês Rashomon, cada um delesapresenta uma versão bem pessoal dos encontros e acontecimentos que se

sucederam ao longo dessa tarde. Como no caso do filme de Kurosawa, é ao

leitor que corresponde, finalmente, a responsabilidade de (re)construir a

totalidade da história a partir das incoerências que se encontram nas duas

versões disponíveis.

José Joaquín declara que foi ao  Plantage para vender uma bomba, um tipo de

tambor bem conhecido na ilha naquela época. Ele afirma que lá, um negro

velho, o tio Juan Bautista, o chamou para lhe propor a fuga para São Domingos,

ilha na qual os negros, segundo o ancião, levavam charreteras  - uma insígnia

militar reservada, antes da Revolução dos negros, aos franceses82. A ideia era

fugir pelo mar numa canoa sequestrada a um fazendeiro. Juan Bautista, declaraJosé Joaquín, nomeou-lhe os escravos dispostos a participar nessa empresa,

entre eles «um velho negro cangá com a orelha fendida». Sempre segundo as

declarações de José Joaquín, o haitiano lhe repetiu textualmente as palavras com

as quais Julián (o «africano»), se tinha dirigido a ele – Juan Bautista - para

82 Jarretières . José Martí, o herói da independência cubana que visitou Haiti em 1895 - poucas semanas antes

de morrer em combate, em Cuba -, escreveu no seu «Diário de Montecristi a Cabo Haitiano»: «los edecanescorretean por frente a las filas, en sus cabellos blancos o amarillos, con la levita de charreteras y el tricornio,que en el jefe lleva pluma» (Martí s/d: 360).

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insinuar-lhe a ideia da fuga: «Companheiro, venha cá: estou decidido a fugir

 porque já não suporto mais o trato de meu dono; barriga vazia, corpo nu e

muitos açoites; eu vou-me embora para outro lugar.» Concluindo o seu

depoimento, José Joaquín afirma que Juan Bautista, nessa tarde, lhe fez ainda

um pedido: «contamos com a lancha de Santa Anna, mas caso chegue a faltar,

seria bom você dizer ao seu companheiro Aniceto que prepare os remos e o

timão da canoa grande do seu dono Tomas». Sem dizê-lo, José Joaquín deixa

entender que ficou seduzido pela milonga do haitiano, exactamente como esse,

anteriormente, se tinha deixado persuadir pelo «africano» Julián. Ouvindoatentamente suas declarações, o prefeito quer saber com que palavras,

literalmente, ele depois pedira a Aniceto que preparasse a canoa de seu dono. O

«guineense» declara que disse: «Aniceto, o tio Bautista do Plantage e o Julian

de D. Cayetano já têm reunidos uma porção de companheiros de várias fazendas

 para irem embora desta terra para São Domingos: têm carne e alforje prontos, e

<que> a única coisa que precisavam para a viagem era a canoa de seu amoTomas pronta com timão, remos e vela». Mais adiante, ele confessa ainda que

teve mais alguns encontros com outros escravos que lhe propunham fugir para

uma outra ilha do Caribe. Um deles, Bernardino Morales, «os convidava para

que fossem a Curazao, terra onde ele tinha estado, que era a melhor do mundo»,

 proposta que José Joaquín confessa ter aceite com entusiasmo, respondendo:

«Se é uma terra tão boa, vamos para lá». Ele precisa, porém, que essa conversateve lugar «uma noite que eles voltavam da cidade na canoa grande de D.

Tomas Davila», e que todos eles, nessa ocasião, «estavam algo bêbados».

Como podemos constatar nesse depoimento e em vários outros, o projecto de

fuga dos escravos de Bayamón se desenvolveu numa atmosfera bastante festiva

e, às vezes, ritual. José Joaquín e Juan Bautista concordam em que a fuga devia

concretizar-se no dia de Santiago  (29 de Julho). Qual pode ter sido o motivo

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 para escolher, precisamente, esse dia? Para certos sectores da população afro-

caribenha, Santiago, o famoso santo guerreiro dos espanhóis, correspondia ao

orixá - guerreiro também - Ogum83. Para iniciar um acto de rebeldia, a energia

que este orixá  dispensa seria particularmente propícia. Ao elegerem o dia de

Santiago-Ogum, de intensa actividade ritual em várias comunidades afro-

americanas, os conspiradores desejavam sem dúvida colocar-se sob a sua

 protecção.

Mas qual era o papel da bomba nessa «festa»? O «guineense», dono do tambor,não se pronuncia sobre esse particular, mas o seu parceiro Juan Bautista

converte esse instrumento em personagem central do seu depoimento. Chamado

de tio  por várias testemunhas, o haitiano era aparentemente uma pessoa de

respeito para os escravos da zona. De facto, o título que lhe é atribuído lembra

imediatamente o de  pai  que encontramos várias vezes na devassa contra a

«insurreição de Manoel Congo». Talvez Juan Bautista fosse – como já osugerimos no caso dos pais do vale do Paraíba – sacerdote de uma religião afro-

americana. Infelizmente, as duas devassas guardam um silêncio completo

quanto a esta questão. No seu depoimento, Juan Bautista narra, embora sem

citar o nome dele, a visita ao  Plantage do dono da bomba. Ele declara que viu

«um negro escravo de D. Miguel Davila 1°, cujo nome ignora, tocando uma

 bomba em companhia de Jose Reyes […] e da mulher deste, pessoas livres, edos negros Wbé e Pescadito, escravos da dita fazenda, os quais ele

cumprimentou para logo continuar seu caminho em direcção à fazenda».

Acrescenta que logo, o músico chegou à porta do bojio* [‘cabanha’] dele, onde

83 A «correspondência» entre Santiago e Ogum fica confirmada ao menos para a  santería cubana (Ortiz 1985[1951]: 304) e para o vodú haitiano (Métraux 1958: 143). Lembre-se que Juan Bautista, com certeza o ideólogodo projecto, era oriundo do Haiti. No seu trabalho «Quilombos e revoltas escravas no Brasil», João José Reis(1995 / 1996: 31-32) oferece uma lista de fugas ou levantes que se realizaram em dias de festa. Isso acontecia

amiúde – como no primeiro levante (falido) do rio Atibaia – para aproveitar a falta de atenção dos donos. É provável, porém, como sugere o caso que aqui discutimos, que houvesse às vezes também motivos internos àcomunidade escrava.

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novamente bateu o tambor: «Ao som da bomba acudiram os trabalhadores da

fazenda e começaram a dançar, muito alegres. O baile durou quase duas horas,

mas ele não pôde participar porque se achava doente e com febre e se deitou na

cama. Acabada a dança na frente da casa dele, eles foram com a bomba até à

 porta de Fernandez, onde dançaram três ou quatro horas». Sempre segundo o

haitiano, o «desconhecido» entrou logo na sua casa, onde ele se achava sentado,

com febre, numa rede. Sentado ao lado dele numa cadeira, o dono da bomba 

convidou-o logo para participar na fuga que se estava secretamente preparando.

O haitiano afirma que recusou categoricamente essa proposta, pegando um paue expulsando o músico de sua casa. Atento como sempre, o prefeito, ouvindo

essa «estória», observa que segundo o depoimento do majordomo D. Elías, ele

 próprio tinha convidado o dono da bomba  a almoçar com ele, e que lhe tinha

revelado que vinha do «Guarico ou São Domingos». Apanhado em flagrante

delito de mentira, Juan Bautista reconhece a sua «distracção», alegando que no

momento de narrar a sua história, ele não se tinha lembrado desse detalhe. Nasua carta ao governador da ilha, o prefeito, que aparentemente desconfia de Juan

Bautista, dirá que a versão do músico Joaquín tinha sua preferência: «é precisa

demais para ser pura invenção». Talvez cheio de mentiras, o depoimento do tio 

Juan Bautista oferece, porém, uma série de dados preciosos para conhecer

melhor o mundo ritual no qual se movem esses escravos libertários.

A partir de tudo o que dizem, ocultam ou confundem os dois réus, percebe-se

que essa tarde memorável do dia de Santiago-Ogum na fazenda  Plantage  foi

 perfeitamente encenada por ambos. Nos sucessos narrados, cada um deles

cumpria, ao que parece, uma função precisa. O velho haitiano, que tinha

assistido ou participado numa experiência revolucionária e que se orgulhava de

ter levado, na sua pátria, a insígnia da jarretière, foi sem dúvida o ideólogo do

 projecto de fuga para o Haiti. Diante dos outros escravos, ele deve ter elogiado

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os alcances e as conquistas da Revolução haitiana. Quanto ao «guineense», ele

deve ter sido a pessoa mais indicada para criar, graças aos seus talentos de

músico, um clima ritual propício para a realização da fuga colectiva. Mais

«loquaz» do que os dois escravos, é a bomba que revela o que eles procuram

ocultar. Na insurreição porto-riquenha de 1826, conhecida sob o nome bem

expressivo de «insurreição da bomba», esse instrumento de percussão tinha

servido para convocar os insurgentes (Baralt 1989: 65-66). É legítimo pensar,

 portanto, que na fazenda do Plantage, a bomba, passeando de um lugar para um

outro e criando, de cada vez, uma grande efervescência, também ia convocandoos trabalhadores da plantação. Na verdade, o tambor não é só um instrumento de

comunicação entre homens. Nas comunidades africanas e afro-americanas,

como se viu no primeiro capítulo deste livro, ele assegura também a

comunicação com as «divindades» e os espíritos dos ancestrais. Ele tem a

faculdade de fazer surgir um espaço onde os africanos ou seus descendentes,

«muito alegres», se reúnem e dialogam com os seus ancestrais e as «forças» danatureza. Um espaço algo semelhante ao do carnaval, no qual as regras que

vigoram na dia-a-dia se encontram como que abolidas. Um espaço de sonho, de

transe e de utopia, onde se desvanece a realidade da escravidão. Um espaço que

lembra, durante um lapso de tempo mais ou menos prolongado, uma «África»

sonhada. Segundo o testemunho de um membro da comunidade mineira dos

Arturos, os antigos percussionistas docandombe84

  local «usavam os tamborescomo veículo mágico no qual eram conduzidos, sob a acção da entidade do mar.

Assentados nos tambores, os candombeiros faziam o percurso do lugar onde

estavam ao espaço desejado, invocando a ajuda de Calunga: Ô Calunga! Me

leva pra casa» (Gomes / Pereira 2000: 485). O «espaço desejado» - a «casa» - é,

obviamente, a África. No estado de transe que provoca o tambor de Kalunga, o

«país da morte transitória», os negros escravos – e/ou seus descendentes -

84 Embora talvez tenha uma origem comum, candombe não deve ser confundido com o candomblé.

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morrem para renascer, livres, numa «África» imaginária. O tambor, portanto,

não é só um instrumento musical como também um meio de transporte que

 permite chegar ao «espaço desejado»: um lugar utópico onde já não há donos

nem escravos. O depoimento de Juan Bautista sugere que a bomba  tem a

faculdade de suscitar esse espaço, abolindo assim, nem que seja só por algumas

horas, a ordem escravista. Note-se que a bomba  reúne em um mesmo espaço

indivíduos ou grupos que pertencem, na realidade quotidiana, a compartimentos

sociais diferentes: escravos e «pessoas livres».

 Na história dos sonhadores de Bayamón abundam as referências ao mar. O mar

aparece enquanto espaço cheio de promessas de liberdade, quer a que anuncia a

fuga para o Haiti quer a mais efêmera que se vive em um momento festivo

como a alegre viagem nocturna de canoa. Para os escravos de Bayamón, o mar

cumpre uma função semelhante à do mato ou da floresta nas histórias dos seus

companheiros colombianos (no século XVII) e brasileiros (em 1838). Jásabemos que nas culturas de marca bantu, kalunga, como a mfìnda  (‘mato’), é

um espaço cosmológico ligado à «morte»: um estado sempre considerado como

transitório. Na kalunga  ou na mfìnda  se morre para renascer para uma vida

diferente. Nas histórias que se evocaram neste capítulo, esses espaços

cosmológicos parecem vincular-se também aos espaços reais do mar e da

floresta. A viagem ao interior do mato dos escravos colombianos ou brasileirose a viagem marítima dos seus colegas porto-riquenhos propicia não só o

reencontro com uma «África» imaginária, como também a chegada a um lugar

real – um quilombo ou o Estado negro de Haiti - onde eles, como dizia Manoel

Congo, «nunca mais haviam de ver seu senhor».

Apesar da persistência – variável - de maneiras de pensar «africanas» que se

descobre neles, os discursos que sustentam os três movimentos estudados se

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diferenciam, porém, quanto à sua inserção na «modernidade» latino-americana.

A fuga de Manoel Congo e dos seus parceiros não parece inspirar-se numa

análise política do contexto geral. A ideia de criar um quilombo no coração da

floresta tende a reafirmar uma antiga tradição bantu ou africana. Tivesse dado

certo, o projecto atribuído a Manoel Congo teria propiciado a liberdade de um

contingente relativamente grande de escravos, mas não teria constituído uma

verdadeira alternativa ao sistema escravista. A maioria dos quilombos latino-

americanos não eram, com efeito, células de luta contra a escravatura. Na sua

 jurisdição, como se desprende de muitos documentos, a escravidão, emboratalvez sob formas mais «africanas», ia se reproduzindo ou recriando. No

movimento dos escravos do rio Atibaia, as relações da escravaria rural com

 pessoas livres – negros e talvez brancos – da cidade, o papel da comunicação

escrita, o conhecimento pelo menos relativo do debate sobre a abolição e as

referências a uma organização de tipo «clube» (jacobino) constituem aspectos

claramente «modernos», embora equilibrados, de alguma maneira, por umaritualidade tipicamente «africana». No projecto de fuga para Haiti dos escravos

de Bayamón, o próprio destino de sua viagem sugere uma mentalidade aberta a

uma certa «modernidade». Ao se inscreverem, de alguma maneira, no projecto

da revolução haitiana, os escravos de Bayamón não optaram pelo retorno a uma

África imaginária, mas pelo seu ingresso numa «África» moderna, localizada

numa ilha do hemisfério ocidental.

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GLOSSÁRIO

Guia lexical para os leitores deste livro, este glossário oferece também alguns

materiais úteis para ulteriores pesquisas. As palavras aparecem sob a forma

concreta, por vezes arbitrária ou «incorrecta», que têm nas fontes utilizadas. Por

esta razão, algumas delas aparecem, com grafia diferente, mais de uma vez. Nas

entradas que referem termos luso-africanos e afro-americanos de origem bantu,

maioritários nesta lista, procurou-se indicar a forma original que eles têm na

 provável língua de origem (geralmente o kikongo e/ou o kimbundu). Nos parênteses que se seguem às palavras em kimbundu ou kikongo figuram os

 prefixos do singular e do plural que caracterizam, sem sempre se realizar na

 prática, as chamadas classes nominais, algo diferentes de uma língua para a

outra. Assim, para dar um exemplo bem conhecido, em kikongo, mùntù 

(‘homem’), que forma o plural bàntù, pertence à classe «mu-ba», enquanto em

kimbundu, mútu  (‘homem’), que forma o plural àtu, pertence à classe «mu-a».Reproduz-se sempre a ortografia usada pelos autores dos dicionários citados.

 Abreviaturas 

kmb. kimbundu

kk. kikongo pal. linguagem dos paleros cubanos

Ass. Assis Júnior, António de (1947), Dicionário de Kimbundu-Português

Aur. Holanda, Aurélio Burque de (1986),  Novo dicionário da língua

 portuguesa, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira 

Cad. Cadornega, Antonio de (1972), História geral das guerras angolanas 

Lam. Laman, Karl (1936), Dictionnaire kikongo-français 

Maia Maia, António da Silva (1964),  Dicionário complementar português-

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kimbundo-kikongo 

Sw. Swartenbroeckx, Pierre (1973), Dictionnaire kikongo et kituba-français 

 Angola. Área de colonização portuguesa na África central. Seu nome provém dokmb. ngôla (plural em ji-), rei do Dongo (Ass.).

bangui. Testemunha (Cad. I: 91). Kmb. mbángui  (plural em ji-), testemunha.Kk. mbàngi (classe i-zi), testemunha (Sw.).

bisa. Chamar, chama (pal.). Kk. wîsa, pedir atenção, obediência (Sw.).biyumba. Também brillumba  ou vrillumba. Tendência do  palo monte  cubano,

 prática mágica (pal.). Kk. kiyumba, pl. biyumba, casa de três paredes semfachada, para ritos (Sw.). Na língua pal., kiyumba significa cabeça, caveira.

biyumbero. Praticante da biyumba (pal.). V. este termo.bojio. Hoje bojío ou bohío  (espanhol do Caribe). Cabanha, casa rural. Palavra

indígena antilhana.bomba. Tambor (Porto Rico). Bombojira. Inquice (nkísi) «trapaceiro» do candomblé de Angola (Brasil), dono

dos caminhos que se cruzam, semelhante ao orixá Elegguá (Cuba) ou Exu(Brasil). Deriva provavelmente do kmb. mbombo, trapaceiro, e njíla (pl. em

 ji-), caminho, estrada (Ass.).bozal . Equivalente espanhol de boçal . Escravo negro ainda não ladino, recém-

chegado da África e desconhecedor da língua do país (Aur.).briyumbero. V. biyumbero.bulungo. Nome geral dos ordálios do «gentio destes reinos de Angola» (Cad.

III: 320). Prova que serve para acertar a veracidade das afirmações de umindivíduo. «Outros lhe chamam quilumbo» (ibid .). Kmb. mbulungu (pluralem ji-), bebida feita de vegetais eméticos e venenosos que os selvagens

 bebem como prova de supersticiosa inocência sobre a acusação defeiticeiros que lhes é feita (Ass.). Kk. bulùngu  (classe bu- sem plural),tormento (Sw.).

calunga. V. kalunga.candombe. Ritual com dança e canto em homenagem aos antepassados; cultocom desafios através de cânticos e gestos (Gomes / Pereira 2000: 627).Kmb. kandómbe, tirante a preto, moreno (Ass.). Em kikongo, ndómbé (pl.bandómbé) remete para um negro (Sw.).

Centella. Centelha (pal.). Nome de uma nganga  ou «força» do  palo monte cubano, semelhante à orixá Oiá-Iansã dos iorubás.

Congada, congado. Dança dramática de origem colonial que representa, noâmbito do catolicismo popular brasileiro, a coroação de um «rei doCongo».

congo. Feiticeiro, tata nganga (pal.).

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congos. Termo que designa em Cuba os escravos oriundos do Congo ou daÁfrica central. Costuma aplicar-se, também, aos seus descendentesculturais.

cumbe. Refúgio de escravos (Venezuela). Provavelmente do kmb. makúmbi (classe di-ma), tendas, barracas de campanha (Ass.). Em kikongo, kúmbi (classe di-ma) é amontoamento ou rito de iniciação (Sw.).

cuatar.  Na expressão os cuatou o zombi » (Cadornega I : 370). : o zombi osagarrou. «Cuatou é ‘pegou’ na sua língua » (ibid.). Kmb. kukuata, agarrar(Ass.).

kutara*. Termo  palero  de semântica e origem difícil de estabelecer. Talvezderivado do kk. kûta, resguardar.

dembos. Potentados cujas terras, situadas entre os domínios tradicionais do

Congo e do Ndongo, se estendiam, segundo Cadornega (III: 200) «entre osrios Zemza, Damde e Lumanha». Kmb. ndémbu (plural em ji-), potentado(Ass.)

embele. V. mbele.embo(b)ar . Na prática de cantar mambos, improvisar ou variar (pal.). Falar

(Cabrera 2001: 227). Esp. embobar , seduzir, cativar, encantar.emponda. [Pano] «com que se cobria da cinta para baixo» (Simões 1989

[1575]). Corresponde ao francês pagne. Kmb, pónda (plural em ji-), cinta.Kk. mpónda (classe i-zi), cinta (Sw.).

 farregoulo. Ferragoulo, gibão ou gabão de mangas curtas, com cabeção e capuz(Aur.). fuiri. Também nfuiri. Morto (pal.). Kk.  fwìdì / fwìrì  (passado do verbo  fwà,

morrer), morreu, morto (Sw.). fumbe. V. nfumbi. fwa. Morrer (pal.). Kk. fwá ( fwìdì), morrer. Kk. mfwà (classe i-zi), a morte, um

morto, um moribundo (Sw.). gangulero. V. ngangulero. gunga. Na linguagem dos Arturos, comunidade negra de Minas Gerais,

«latinhas com esferas de chumbo em seu interior e que são amarrados aostornozelos dos dançantes» (Gomes / Pereira 2000: 627). Kmb. ngúnga (plural em ji-), qualquer instrumento sonoro, sino, som produzido pela

 pancada no sino (Ass.). Kk. ngùngà  (classe i-zi), campaínha, sinete, seusom ou chamado, e por extensão, tempo de trabalho, de classe, de estudo(Sw.).

 Imbilla. Nome de uma ilha do Kwanza (Angola). «Imbilla chamam às suassepulturas» (Cad. III: 263). Kmb. mbila  (plural em ji-), sepultura, túmulo,sepulcro (Ass.)

ingoma. Tambor (Arturos, Minas Gerais, Brasil). V. ngoma.inquice. V. nkisi

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 jaga. Nome português de bandos guerreiros muito activos e poderosos, noséculo XVII, na área Congo-Angola. Cf. kk.  yáka, povo do Kwangomeridional (Sw.).

 juego. Jogo (esp.), acção ritual ou mágica no  palo monte  cubano, estar emcomunicação com as nganga e os espíritos dos mortos (pal.).

kalunga. Mar, oceano, país dos mortos (pal.). «O nome de calunga tem duassignificações na língua ambunda de Angola, porque calungo [sic] chamamà morte: e chamam calunga ao mar, que para eles é o mesmo que a morte»(Cad. I: 414). « Kalunga é ainda uma palavra misteriosa que aparece naslinguagens bantas. Em quimbundo tem muitas significações: (1) Morte; (2) Ku’alunga, Residência dos mortos; (3), Mu’alunga, o Oceano; (4) Senhor;com esta significação somente é usada pelos I’mbangala e alguns dos seus

vizinhos; em Luanda nunca; (5) algumas vezes uma exclamação deespanto, admiração (Chatelain (1964 [1894]: 538)». Kmb. kalúnga (pl. em

 ji-), grande, incomensurável, oceano, imensidade, desgraça, morte, pessoade alta hierarquia, Deus, morte, O Além e A Eternidade. Kk. kalùnga (classe di-ma), oceano, mar (Sw.).

kilumbu. V. quilumbo.kimbisa. Tendência do  palo monte  cubano, caracterizada pela integração de

elementos da religião dos orixás  («divindades» iorubá) e do cristianismo.Kk. kìmbísa, assustar, fazer o fantasma (Sw.).

kimbisero. Praticante da kimbisa (v. esse termo).kindembo. Caldeirão mágico (pal.). Em kikongo, ki-ndémbo  é a qualidade -língua, cultura, essência - de ndémbo  (classe i-zi), nome que designa, emkikongo, uma escola de feiticeiros (Sw.), uma sociedade secreta cujosmembros iniciados recebem o título de nganga  (Bentley 1887: 506);atabaque (Sw.).

kiyumba. Cabeça, caveira (pal.). Cf. biyumba.kongo. Este termo se refere aos bakóngo da África. Os verdadeiros ou supostos

bakóngo da América e os descendentes deles recebem o nome de

«congos». Kongo di(a) ntòtíla  (kk.). O Kongo do rei, o reino histórico do Congo. Kk.ntòtíla  (pl. ban-), aquele que reúne as pessoas em torno de si, rico, rei(Sw.).

kwenda. Ir (pal.). Kk. kwènda, ir, partir (Sw.).lango. Água (pal. e linguagem da comunidade dos Arturos em Minas Gerais,

Brasil). Kk. nlángu  ou m'lángu  (classe mu-mi), água, líquido, aquoso(Sw.).

libata. «É casaria de um macota» (Sousa 1985: 337). Kmb. ribata ou dibata (classe di-ma), domicílio, casa, lugar de habitação dos indivíduos de umafamília (Ass.). Kk. váta (classe di-ma), aldeia (Sw.)

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loanda. Kmb. luánda  (classe lu-malu), embaixada, mensagem a um soberano,comissão (fig.) (Ass.). O tributo pago por tradição ao rei do Ndongo peloseu povo (Heintze 1985: 119).

maca. «Maca é ajuntamento em terreiro público para cada um dar a sua razão»(Cad. I: 91). Kmb. máka (pl.), conversação, questões, pendências (Ass.).

macota. Mais velho, conselheiro (Angola). Iniciado antigo (candomblé deAngola, Brasil). Kmb. makota  (classe di-ma), próceres, magnates,conselheiros, os maiores, os mais velhos (na idade, no saber, na riqueza,etc.) (Ass.). Kk. kóta (classe di-ma), maior, mais velho, chefe, guia (Sw.).

macotero. Bruxo (pal.). Derivado sem dúvida de makuto (saco mágico, pal.), kk.nkútu, saco.

macunze. «Mukunzes na língua ambunda são os enviados ou embaixadores»

(Cad. I: 349). Kmb. múkunji  (classe mu-a), enviado, profeta, missionário(Ass.), embaixador (Maia). Kk. nkùnzi  (classe mu-ba), portador,embaixador, enviado (Sw.).

macuto. V. makuto.madre de água. V. mamita lango.makota. V. macota.makuto. Bolsa mágica, talismã (pal.). Kk. nkútu (classe i-zi), bolsa (Sw.).mambo. Cantiga ritual (pal.). Kk. màmbù  (pl. de diàmbù), negócio, palavra,

 processo, relato, conversa ritualizada (Sw.).

mamita lango. Mãe d'água, sereia (pal.). V. lango.mani. Senhor, título político (Congo). «Na língua maxiconga Mani quer dizerSenhor» (Cad. I: 353). «Na renda e dignidade responde a um duque»(Afonso 1989 [1577]). Kk. mwéné, senhor. Veja-se também muene.

manicongo. «Na língua maxiconga Mani quer dizer Senhor, e a el-rei de Congolhe chamam Mani Congo ou Mueni Congo (Cad. I: 353).

mani lumbo. Também muene lumbo. «Muene lumbo [...] é o que tem conta daCasa Real e guarda as cousas de mais estima dela» (Cad. I: 353). Kk.mwéné, senhor, e lûmbu (plural em tûm-), recinto, harém, morada de chefe

(Sw.).mayimbe. Espírito da aura tiñosa, espécie de abutre (Cuba). Kk. pl. mayìmbi,sg.  yìmbi, ave de rapina (Sw., Lam.). Nome próprio de um grande nkisi (Lam.). Jogo (Lam.). Ave necrófaga, o mayimbe  chama a atenção dos paleros em virtude da velocidade de seu voo e de sua faculdade de ver àdistância.

mayombe. A tendência mais arcaica – «bruxaria pura» - do  palo monte cubano,sem contaminação com a religião dos orixás  (pal.). Área montanhosacoberta de espessa floresta pluvial, o Mayombe, habitat tradicional dosyombe, localizada a norte da foz do rio Zaire. Em kikongo, mayòmbé remete para uma dança rítmica ao som do tambor (Sw.) e a certo tipo de

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disputas (Wing 1921: 300).mbú (kk.). Mar.menga. Sangue (pal.). Kk. pl. mènga (classe di-ma), sangue.

mfinda. V. nfinda.mfwà. V. fwa.milonga. «Recado» (Sousa 1985: pass.). Kmb. mulonga  (pl. milonga), palavra

(boa ou má), disputa (Chatelain 1989-9:132). Kmb. mulónga (pl. milónga),verbo, afirmação, vocábulo, razão, causa, facto, pleito, demanda, calúnia,

 palavra injuriosa (Ass.).mocambo. Couto de escravos fugidos (Brasil). Kmb. múkambu (classe mu-mi),

 pau de fileira, cumeeira. Kk. nkámbu  (antiga classe mu-mi), cumeeira,limiar (Sw.).

mocano. «Mocanos são pleitos e contendas que se averiguam de pé a pé sem processo de papéis» (Cad. II: 61). KK. mòkána, mòkéné, entreter-se, falarum com um outro (Sw.). Kmb. múkanu (classe mu-mi), condenação.

moenho. «É a vida» (Cad. III: 265). Kmb. muénhu  (classe mu-mi), alma, aexistência, a força espiritual (Ass.).

monte (esp.). Mato, mata, floresta, espaço virgem coberto de vegetação espessa.mosete. Também mossete. «Caixa ou cofre onde se guardam ossos de defuntos»

(Cad. III: 257). Kmb. músete (classe mu-mi), relicário, bolsa, cofre (Ass.).mpungu. Espírito que trabalha no caldeirão (pal.). Kk. mpúngu  (classe i-zi),

supremo, todo-poderoso (Sw.); é um nkixi que dá saúde, protege na guerrae favorece o seu dono nos negócios (Bentley 1887 : 507).muene. Senhor, título político. «Muene puto quer dizer na língua ambunda de

Angola o Senhor de Portugal. E na língua maxiconga Mani quer dizerSenhor, e a el-rei de Congo lhe chamam Mani Congo ou Mueni Congo(Cad. I: 353). Kk. mwéné, pl.  mamwéné, bamwéné, bamamwéné, bêné,nobre, livre, senhor (Sw.).

mukísi, pl. mikísi (kk.). Génio da natureza, «fetiche». Veja-se também nkisi.munanzo. Casa, terreiro (pal.). Kk. múna, em, e nzò  (classe i-zi), casa: «em

casa».mundele. Branco, brancos (pal.). Kk. múndélé (classe mu-mi), europeu, branco,civilizado (Sw.). Kmb. mundele  (classe mu-mi) homem branco; ilustrado,civilizado, urbano (Ass.)

muxicongo. Habitante do reino do Congo. Kk. músí   (pl. bísí ), habitante, ekóngo, povo do baixo Congo (Sw.).

mvúmbi (kk., classe i-zi). Cadáver. V. também nfumbi. ndoki. Morto com o qual trabalha o  palero  (pal.). Kk. ndóki  (classe i-zi),

suposto autor de um sortilégio nefasto, bruxo, feiticeiro (Sw.). Na culturakongo, ndóki é o «feiticeiro» por excelência.

nfinda. Também  finda. Mato, floresta, morada dos espíritos dos mortos (pal.).

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«Aqueles cerrados bosques que este gentio chama enfindas» (Cad. II: 56).Kk. mfìnda (classe i-zi), floresta, bosque, área boscosa (Sw.). «O país dosmortos é amiúde chamado de mfinda» (Bentley 1887: 347).

nfumbi. Também  fumbi  ou  fumbe. Morto (pal.). Kk. mvúmbi  (classe i-zi),cadáver (Sw.).

nganga (n. f.). Também ganga, prenda, fundamento, nkisi (veja-se este termo). Nome genérico das «forças» da cosmologia do  palo monte  cubano;receptáculos onde elas moram. Kk. ngàngà, experto, mago, adivinho,médico. Enquanto nome feminino, nganga passou, na linguagem palera, adesignar as «forças» com as quais trabalha o sacerdote antigamentechamado de nganga.

nganga (n. m.). Também ganga. Termo hoje pouco usado para nomear os tata

nganga  (v. este termo), sacerdotes da religião afro-cubana  palo monte (pal.). Kk. ngàngà (classe i-zi), experto, mago, adivinho, médico (Sw.). Naárea Congo-Angola, experto do culto dos nkísi  (v. este termo). «Sóconsentem que haja gangas, que curem […] suas enfermidades com paus ehervas, ou com engano ou sem ele» (Cad. III: 262). Segundo Cadornega, arainha Nzinga chamava um sacerdote católico preso de Ganga Angola,«sacerdote real». Pessoa iniciada na sociedade secreta chamada dosndembo (Bentley 1887: 491).

ngangulero. Na linguagem dos  paleros cubanos, o mesmo que tata nganga (v.

este termo).ngola. Rei do Ndongo (Maia 1994). Cf. kk. ngòla (classe i-zi), adivinho (Sw.).ngoma. «Instrumento de música da terra [...], como uma alcântara» (Simões

1989 [1575]). Kmb. ngóma  (plural em ji-), instrumento feito de pau ococomprido, tendo na extremidade de maior largura uma pele tensa, sobre aqual se toca com a mão; tambor, bombo, som produzido pelo tanger dotambor (Ass.). Kk. ngòmà (classe i-zi), tambor de dança cilíndrico (Sw.).

nkanga. Amarrar, tornar inofensivo (pal.). Kk. nkànga, amarrar, ligar (Sw.).nkisi. «Fetiche», nganga  (pal.). Kk. nkísi  (classe mu-mi), fetiche, talismã,

feitiço, medicamento (Sw.). Ídolo de pau entre os cabindas (Ass.). Outrasformas: m'kisi, mukísi (pl. mikísi).nkútu (kk., classe i-zi). Saco (Sw.) nlángu. V. lango.nongo (plural em ji-), kmb. Sugestão, inspiração, conselho, lembrança (Ass.).

kk. nóngo (classe i-zi), dito picante, canto de zombaria por apólogos, coplairónica (Sw.).

nongonongo, kmb. Adivinha (Chatelain 1888-89: 143).ntòtíla  (pl. ban-), kk. Aquele que reúne as pessoas em torno de si, rico, rei

(Sw.).nzila. Esquina, intersecção de dois caminhos (pal.). Kk. nzíla  (classe i-zi),

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caminho, vereda, estrada, passagem (Sw.). Note-se que na linguagem palera, o que chama a atenção é menos o caminho do que a intersecção dedois ou mais caminhos.

 palenque. Reduto de escravos fugidos, «quilombo» (Cuba, Colômbia). paleros. Praticantes ou sacerdotes da religião afro-cubana palo monte (pal.). palo monte. «Pau de mato». Religião dos «congos» cubanos, baseada - como a

religião dos nkísi  (ou mukísi-mikísi) na área kongo - em uma relação privilegiada com os espíritos dos mortos, moradores do «mato» e dos«paus».

 palo. Pau, árvore, planta (pal.). Nome abreviado da religião cubana  palo monte (v. este termo).

 panguiame. Amigo, hermano (pal.). Kk. mpángi (irmão, irmã, primo, etc.) +

âmè (sufixo possessivo 1a. pessoa sg.) : meu irmão, minha irmã. patuco. Refúgio de escravos fugutivos, quilombo (Venezuela). penca. Folha de certas plantas carnosas (esp.). pombeiros. Traficantes africanos de escravos ao serviço dos portugueses (área

Congo-Angola). Pumbo ou pombo «são lugares e povoações onde se fazemfeiras e se vendem nossas fazendas a troco de panos e peças de escravos»(Sousa 1985: 324). O  pombo  por antonomásia era Mpómbo, zonalocalizada na margem direita do baixo Zaire (Malebo ou Stanley-Pool),

 perto da actual cidade de Brazzaville.

 prenda. A nganga (v. este termo) dos paleros cubanos. puto. Português, europeu. Derivado de «Portu(gal)». Kk. Mpútu, Portugal (Sw.).Kmb. putu (plural em ji-), português.

 puya. Dito ou verso ofensivo (pal.). Esp.  puya, ponta, e  pulla  (mesma pronúncia), expressão aguda, picante, ofensiva.

quelumbo. V. quilumbo.quilombo. «Exército, que eles chamam quilombo» (Sousa 1985: 56). Kmb.

kilómbo, conjunto de forças militares, arraial, lugar de reunião ou sanzalade trabalhadores (Ass.). Kk. kilòmbo: caravana, grupo, exército. Kk. lòmbo 

(classe ki-bi), caravana, multidão, exército, albergue, hospedagem,hospitalidade (Sw.).quilumbo, quelumbo. Kmb. kilúmbu  (classe ki-i), operação que consiste na

aposição do ferro candente no corpo do paciente ou suspeito de delito(Ass.). Segundo Cadornega (III: 320), é sinónimo de bulungo  (v. essetermo).

quimbares. «Gente de guerra preta, a que chamam quimbares» (Sousa 1985:227). Kmb. kimbari (classe ki-i), feitor, caseiro, empregado rural (Ass.).Kk. kimbadi, emissário (Lam.).

Sambia. V. Sambianpungo.Sambianpungo. Também Sambia. Deus supremo dos  paleros  cubanos. Kk.

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nzámbi-a-mpúngu, Deus todo-poderoso.Sarabanda.  Nganga guerreira dos  paleros cubanos, semelhante ao orixá Ogum 

dos iorubás (pal.). A sarabanda, como se sabe, era uma dança europeia de

remota origem africana. Kk.  sala  (classe ki-yi), dança caracterizada poruma vibração rápida dos quadris (Bentley 1887: 501). Kk. mbánda (classei-zi), dança ao som do tambor mbandu (Lam.).

 saura. Abutre (aura tiñosa) em Cuba. Nos mambos  de  palo monte,  sauraalterna com mayimbe (v. este termo).

 senzala, sanzala. «Sanzala são casas em que cada um tem a sua gente separada»(Cad. I: 335). No Brasil,  senzala  designa os alojamentos colectivos dosescravos rurais. Kmb.  sanzala  (plural em ji-), povoado, moradia de genteseparada da casa principal.

 senzar . Kk.  sánza, pilhar, saquear, destruir, devastar. Kmb. kúsanza, limpar,tornar (as terras) aptas para a cultura (Ass.). Cadornega parece confundir sanza  com kanza, desfolhar, tirar da haste (Ass.): «Sanzar é apanhar oufurtar» (Cad. III: 269). «Canzar [sic] é apanhar na língua de Angola. Dokukanza, que hoje significa apanhar frutos pendentes» (Cad. I: 136).«Canzar [sic] é saquear» (Cad. I: 183).

Siete Rayos. Sete Raios, «divindade»  palera  semelhante ao orixá  Xangô dosiorubás e dos seus descendentes nas Américas.

 soba. Kmb.  sôba (plural em ji-), nome genérico de representante da autoridade

gentílica em determinada região (Ass.). «São como duques e grandessenhores» (Simões 1989 [1575]). «O número de sobas que se sabe, além demuitos outros de que não há notícia, é de setecentos e trinta e seis. Sãocomo régulos, senhores absolutos de suas terras» («História daresidência…» 1989 [1594]: 179). «Entre os sobas [...] há alguns que têmoutros sobas menores debaixo de seu mando» (ibid .: 186).

 soua. V. soba. sunsuñando. Voando como o abutre sunsuña (pal.). V. essa palavra.  sunsuña. Também nsusu. Ave, galinha (pal.). Kk. nsúsu  (classe i-zi), galinha,

ave de capoeira (Sw.). sulu. Céu (pal.). Kk. zúlu (classe di-ma), céu (Sw.). tata nganga. Sacerdote de  palo monte (pal.). Kk. tâta (v. este termo) e ngàngà 

(classe i-zi), feiticeiro, médico.tata. Pai, sacerdote (pal.). Kk. tâta  (pl. batâta), pai, parente paterno, mestre,

título de respeito.tendala. «Desde o rei até o mais pequeno soba têm um governador a que

chamam tendala, que ouve as partes, e lhes faz justiça» («História daresidência…» 1989 [1594]: 187). «Tandala é o que serve de intérprete, eera cousa de muita autoridade ver a um homem destes a quem o gentiotinha por ídolo ajoelhado aos pés do Governador em a sala do Docel,

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quando vinha algum Sova estar com ele desta sorte servindo de intérprete»(Cad. I: 185). Kmb. tandála  (plural em ji-), 1° conselheiro do Estado,correspondente ao Presidente do Conselho do rei ou Nação (Ass.).

tungar . «Tungar é fazer quartel e casas» (Cad. I: 345). Kmb. kutunga, edificar,construir (Ass.). Kk. túnga, construir, fundar, morar em alguma parte.

Vititi menso. Espelho mágico instalado num chifre (pal.). Kk. (ki)wíti, artemágica, e mêso (sg. dîso), olho.

wiri. Ouvir, sentir, perceber (pal.). Kk. wìdì, 3ª pessoa sg. do passado do verbowà, entender, compreender, perceber sons ou cheiros (Sw.).

 Xangô. Orixá iorubá, guerreiro, ligado ao fogo, aos trovões etc. yandilé  (ou  yanguilé). Exclamação que aparece nos mambos  paleros  (pal.).

Talvez kk. yàngíle ( yàngíla, regozijar-se, e -ê exclamativo): «regozija-te».

Yemayá. Nome da Iemanjá iorubá em Cuba. zahorí(n). Adivinho (palavra esp. de origem árabe). Zambi. Deus. Kk. Nzámbi (classe mu-ba ou i-zi), Deus, Ser supremo (Sw.). Zambiampungo. Forma portuguesa de kk. nzámbi-a-mpúngu, Deus todo-

 poderoso. zombi. V. zumbi  zumbi. Kmb. nzumbi, espírito (Maia). Espíritu de um morto (Cadornega I : 370).

Kk. zúmbi (classe ki-bi), sorte, talismã (Sw.). Fetiche (Bentley 1887 : 505).

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