LIMA, Isabel Pires de - Traços Pós-modernos Na Ficção Portuguesa Actual

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Traços Pós-modernos na Ficção Portuguesa Actual Texto original: http://www.letras.puc-rio.br/Catedra/revista/4Sem_02.html (acessado em 23 de agosto de 2009) Isabel Pires de Lima Universidade do Porto — Portugal “Entre o bem e o mal uma mortalha de papel de seda.(…) «Sendo assim, tanto faz — tudo é idêntico a tudo»”. (p.140) Lídia Jorge, A Costa dos Murmúrios “Viver não é apenas viver, é sobretudo contar repetidamente o que vivemos, forma de multiplicar a vida. Dizer amo-te é uma coisa. Contar que amo alguém é outra.” (p.207) Augusto Abelaira, Deste Modo ou Daquele “Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.” (p.310) José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira Como é sabido, falar de pós-modernidade, isto é, “dizer que estamos num momento posterior à modernidade e conferir a este facto um significado de algum modo decisivo” — lembra Gianni Vattimo — “pressupõe a aceitação daquilo que mais especificamente caracteriza o ponto de vista da modernidade, a ideia de história, com os seus corolários, a noção de progresso e de superação”[1]. Se é um lugar comum notar a imprecisão do conceito de pós-modernismo, pelo menos em torno destas ideias parece haver consenso: [1]. O pós-modernismo radica na rejeição das estratégias modernas que privilegiam o conceito de história como realização progressiva da humanidade, como entidade unitária em torno de um centro ordenador e totalizante que lhe dá um sentido. [2]. O abandono do conceito moderno de história acarreta a crise da ideia moderna de progresso que fora geradora de um forte potencial utópico evidenciado e sedimentado pelas grandes narrativas legitimadoras da cultura ocidental: o Cristianismo, o Iluminismo, o Marxismo… [3]. Do questionamento da ideia de progresso decorre a perda da ideia de história como superação, como encadeamento de acontecimentos no sentido da evolução e do desenvolvimento, dirigidos para um fim. O ocaso da modernidade traz consigo, portanto, uma relativização da história, o seu descentramento de um sujeito unitário e racional, o sujeito epistemológico ocidental, situado num eixo tido como

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LIMA, Isabel Pires de - Traços Pós-modernos Na Ficção Portuguesa Actual

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  • Traos Ps-modernos na Fico Portuguesa Actual Texto original: http://www.letras.puc-rio.br/Catedra/revista/4Sem_02.html (acessado em 23 de agosto de 2009)

    Isabel Pires de LimaUniversidade do Porto Portugal

    Entre o bem e o mal uma mortalha de papel de seda.() Sendo assim, tanto faz tudo idntico a tudo. (p.140)

    Ldia Jorge, A Costa dos Murmrios

    Viver no apenas viver, sobretudo contar repetidamente o que vivemos, forma de multiplicar a vida. Dizer amo-te uma coisa. Contar que amo algum outra. (p.207)

    Augusto Abelaira, Deste Modo ou Daquele

    Penso que no cegmos, penso que estamos cegos, Cegos que vem, Cegos que, vendo, no vem. (p.310)

    Jos Saramago, Ensaio sobre a Cegueira

    Como sabido, falar de ps-modernidade, isto , dizer que estamos num momento posterior modernidade e conferir a este facto um significado de algum modo decisivo lembra Gianni Vattimo pressupe a aceitao daquilo que mais especificamente caracteriza o ponto de vista da modernidade, a ideia de histria, com os seus corolrios, a noo de progresso e de superao[1]. Se um lugar comum notar a impreciso do conceito de ps-modernismo, pelo menos em torno destas ideias parece haver consenso: [1]. O ps-modernismo radica na rejeio das estratgias modernas que privilegiam o conceito de histria como realizao progressiva da humanidade, como entidade unitria em torno de um centro ordenador e totalizante que lhe d um sentido. [2]. O abandono do conceito moderno de histria acarreta a crise da ideia moderna de progresso que fora geradora de um forte potencial utpico evidenciado e sedimentado pelas grandes narrativas legitimadoras da cultura ocidental: o Cristianismo, o Iluminismo, o Marxismo [3]. Do questionamento da ideia de progresso decorre a perda da ideia de histria como superao, como encadeamento de acontecimentos no sentido da evoluo e do desenvolvimento, dirigidos para um fim.

    O ocaso da modernidade traz consigo, portanto, uma relativizao da histria, o seu descentramento de um sujeito unitrio e racional, o sujeito epistemolgico ocidental, situado num eixo tido como

  • nico lugar possvel para interpretar ou dar sentido histria de forma objectiva. A emergncia de uma sociedade da comunicao generalizada, a par de alteraes como a crise do colonialismo e imperialismo europeu, evidenciaram o carcter ilusrio de qualquer ponto de vista supremo, se que depois de Auschwitz essa iluso ainda era possvel. O sujeito racional e unitrio perde a sua segurana epistemolgica, a sua autoconscincia axiolgica e questiona-se do ponto de vista ontolgico, torna-se frgil, dbil, na expresso de Vattimo, e a par dessa transformao, assiste-se eroso do princpio da realidade: a realidade deixa de ser uma s, ou deixa mesmo de ser como para Derrida , torna-se plural, catica, oscila, abre-se a um mundo de possveis.

    Daqui relativizao tica vai um curto passo. Na falta de relatos legitimadores universais, os valores esvaem-se, as referncias escasseiam. Os media e as redes informticas confrontam-nos com a fragmentao, a velocidade e um volume de factos que nos afastam da rbita referencial das coisas. Mergulhados no puro jogo da diferena, estamos para alm do bem e do mal, do verdadeiro e do falso, da realidade e da iluso, numa instabilidade que atinge at categorias antropolgicas que pareciam estveis (macho/fmea, razo/mito) ou polaridades elementares (afirmao/negao, sujeito/objecto): vogamos fora da histria e do reino limitador da refencialidade, na incerteza radical, em pleno simulacro nos termos de Baudrillard.

    Os matizes dentro desse grande guarda-chuva chamado ps-modernismo so inmeros. No cabe, nem importa aqui evidenci-los. Seria alm disso difcil se no impossvel faz-lo. Importar apenas alertar para a definio de algumas linhas de fuga dentro de um certo ps-modernismo que se escusa ao niilismo paralisante, disseminao infinita sem qualquer possibildade de consenso, a um crculo de espelhos sem princpio nem fim, referncia sem um referente. Num desses pontos de fuga situa-se por exemplo o apelo de Vattimo intensificao do dilogo e da interpretao na sociedade transparente(?), porque complexa, dos meios de comunicao; a sua fora emancipadora residiria na experincia de liberdade num mundo de mltiplos dialectos, que ao propiciar a experincia da oscilao abriria a chance de um novo modo de sermos (talvez finalmente) humanos[2]. Noutro ponto de fuga poder-se-a colocar Lyotard, o qual, reclamando a pluralidade das pequenas narrativas que traam a trama do tecido quotidiano no sentido de desconstruir a histria e assinalar a multiplicidade e a diferena, admite um conceito tico de justia por contraste, por dissensus, em oposio ao consenso sempre totalitrio, e reclama uma cultura ps-moderna da diversidade[3]. Fiquemos por aqui, no sem notar que as estratgias de fuga a que aludimos valorizam o exerccio da palavra particular (do dialecto) ao servio da construo de narrativas particulares (do quotidiano).

    No de estranhar, pois, que por um lado, a fico contempornea tenha sido atravessada por inmeros veios inerentes condio e ao pensamento ps-modernos e que por outro, se tenha tornado objecto de anlises que determinam a existncia de uma fico classificada de ps-moderna por contraposio fico moderna. O importante trabalho de Brian McHale, Postmodernist Fiction (1987), estabelece a existncia de uma dominante ficcional ps-moderna, na linha de outros como David Lodge (1977), Douwe Fokkema (1984) ou, depois, Diane Elam (1992)[4]. Esta ltima adopta mesmo o neologismo romance ps-moderno e atenta nas implicaes da interseco dos dois

  • conceitos, defendendo que 1) romance should be considered as a postmodern genre; 2) postmodernism is romance.[5]

    Como vemos, pensa-se a condio ps-moderna agora no campo da fico por oposio a uma dominante modernista de tipo epistemolgico, que integra critrios axiolgicos definidos na perseguio de uma verdade e do estabelecimento de um sentido, a qual pe questes do tipo: O que h para conhecer? Ser que posso e at que ponto posso conhecer? Como e at onde o conhecimento transmissvel? etc. A dominante ps-modernista, defende McHale, , pelo contrrio, de tipo ontolgico. Aqui as questes postas so doutro gnero: Que mundo este? O que um mundo? Que espcie de mundos existem? Como se constituem? Em que diferem? Como se projecta e estrutura um mundo? Etc. Esta nova dominante assenta, portanto, no descomprometimento axiolgico do sentido, gerador de mundos possveis e de instabilidades, quer de valores, quer de estratgias narrativas[6].

    O cdigo modernista, na formulao de Fokkema, tinha preferncia por construes hipotticas, assentes em convenes como o carcter no definitivo e incompleto do texto, a dvida epistemolgica, o cepticismo metalingustico, o respeito pela individualidade do leitor, algumas das quais no deixaro de ser apropriadas, se bem que substancialmente matizadas ou extremadas, pelo cdigo ps-modernista[7]. Este, por seu turno, vai basear-se numa preferncia pela no-seleco ou por uma quase-no-seleco, numa rejeio de hierarquias discriminadoras e numa recusa da distino entre verdade e fico, entre passado e presente, entre relevante e irrelevante[8]. Em consequncia, este novo cdigo d origem a uma relao entre o autor e o seu texto menos tensa; o autor mostra-se indiferente ao estatuto do seu texto, privilegiando o arbitrrio e o desconexo; afirma-se a pardia da explicao do mundo, numa lgica cheia de contradies internas; atribui-se mais realce ao leitor e d-se mais nfase ao cdigo, isto , valoriza-se a componente auto-reflexiva da fico.

    Em sentido idntico caminha Diane Elam, ao fazer decorrer a sua proposta de interseco entre ps-modernismo e romance, do facto de ambos conviverem com o excesso, isto , de ambos serem incapazes de respeitarem fronteiras estticas ou histricas, o que tem como consequncia a irrupo do anacronismo. Anacronismos temporais, estticos e outros que conduzem falncia da narrativa sequencial ou de qualquer outra hipoteticamente capaz de narrar o fracasso desta ltima. Portanto, para a autora,

    Postmodernism is not a new () narrative but rather the coexistence of multiple and mutually exclusive narrative possibilities without a point of abstraction from which we might survey them. Postmodern romance offers no perspectival view; it is an ironic coexistence of temporalities.[9]

    Ll

    Pensar a narrativa portuguesa actual luz de uma dominante ps-moderna implica ponderar na especificidade do contexto poltico, social e cultural portugus o de um pas que, coertado por

  • uma ditadura longa e anacrnica, no experienciou nem em liberdade, nem em plenitude, o projecto moderno de emancipao. Tal facto teve por consequncia uma atitude de forte responsabilizao da parte de intelectuais e escritores de luta pela consumao, antes e depois do 25 de Abril, do referido projecto. Porm, o no cumprimento da racionalidade moderna durante a ditadura no significa que ela se mantenha hoje inocentemente exequvel, sem ir a par da denncia e da crtica da irracionalidade global a que o prprio projecto moderno conduziu.[10]

    Que tipo de efeito esta situao particular cria ao nvel da produo ficcional portuguesa dos ltimos 20 anos? A meu ver da decorre uma certa duplicidade que domina boa parte da nossa fico: por um lado, a perseguio de uma racionalidade totalizante moderna que explique o passado e que nalguns casos mantm uma vertente projectiva e por outro, a abertura a solues narrativas e a prticas estticas ps-modernas. Um romance que vive da tenso entre histria e fico, estabelecendo a ponte entre realidade e literatura, atravs de formas de mediao muito diferentes das do realismo oitocentista.[11]

    Reterei a minha ateno em trs romances: A Costa dos Murmrios (1988), de Ldia Jorge[12], Deste Modo ou Daquele (1990), de Augusto Abelaira[13] e Ensaio sobre a Cegueira (1995), de Jos Saramago[14].

    Vrias aproximaes ps-modernas a estes textos e destes textos entre si so possveis. Desde logo os ttulos instauram um clima de oscilao ou de indiferenciao ps-modernas: Saramago prope-nos um romance que se quer ensaio; Abelaira constri o seu ttulo sobre uma disjuntiva, que abre para um mundo de possveis; Ldia Jorge na palavra murmrios no deixa de remeter para uma certa indeterminao.

    Os trs romances pem em questo o lugar estvel do narrador, quer atravs da sua multiplicao, quer atravs da sua problematizao e complexificao, criadoras de instabilidades ontolgicas.

    Em A Costa dos Mmrios, estamos aparentemente diante de uma narrador de 3 pessoa, que conta uma histria, referente a um episdio da guerra colonial portuguesa em Moambique, designada Os Gafanhotos, a qual constitui a 1 parte do romance, mas este narrador heterodiegtico revela-se afinal um autor intradiegtico, um efeito do texto: o autor de Os Gafanhotos afinal um jornalista que na 2 parte do romance confronta a sua verso dos factos com a verso da protagonista Eva Lopo, num dilogo em que s nos dado ouvir a voz dela ou quando muito o eco das perguntas dele (Se teve consequncias? Teve p.88). Assistimos, portanto, a uma tematizao do autor e da leitora de Os Gafanhotos, num processo de con-fuso ontolgica entre narradores e personagens, autores e leitores de tipo metaficcional que abalam a distino entre realidade e fico tudo texto, nada est sedimentado numa realidade pr-existente, a realidade e a fico so construes verbais.

    No romance de Abelaira, temos vrias vozes doadoras da narrativa, mas Jorge Fonseca, por sinal autodenominado o Narrador, que funciona como centro autoconsciente da fico. Ele escitor e

  • personagem, o que desde logo contribui para a constituio de ambiguidade no universo ficcional: ele narra numa posio de autoridade discursiva que lhe permite manipular a histria contada, mas tambm narrado e co-autor dos sentidos gerados pelo texto. Prope-se narrar a vida real de Antnio Bastos, autor de um Dirio que vai sendo transcrito (outro narrador) ou condensado e comentado ao longo do romance. Diogo Anselmo, um historiador amigo de Jorge Fonseca, ser a terceira voz narrativa, pondo em causa a fiabilidade da verso narrativa do amigo, sem que se possa concluir qual a verdadeira verso (a do Dirio, a de Jorge Fonseca, a de Diogo Anselmo?), o que impedir o sossego do leitor e instala uma estratgia de desconstruo metaficcional.

    Saramago, por seu turno, concebe um narrador desenganado relativamente sua omniscincia, que todavia no prescinde dela, e cuja omnipresena e poder manipulador pretende conciliar com uma multiplicidade dialgica de pontos de vista das personagens, donde resulta uma voz narrativa no confiante, insegura no conhecimento e domnio das informaes, a qual debilita a autoridade e a objectividade dos conceitos. Atente-se no seguinte interferncia do narrador: A partir deste ponto, salvo alguns soltos comentrios que no puderam ser evitados, o relato do velho da venda preta deixar de ser seguido letra, sendo substitudo por uma reorganizao do discurso oral, orientada no sentido da valorizao da informao pelo uso de um correcto e adequado vocabulrio. motivo desta alterao, no prevista antes, a expresso sob controlo, nada verncula, empregada pelo narrador, a qual por pouco o ia desqualificando como relator complementar, importante, sem dvida, pois sem ele no teramos maneira de saber o que se passou no mundo exterior, como relator complementar, dizamos, destes extraordinrios acontecimentos, quando se sabe que a descrio de quaisquer factos s tem a ganhar com o rigor e a propriedade dos termos usados.(p.122-3) Daqui nasce um discurso da suspenso, relativizado e incerto, que se projecta na prpria construo da narrativa e que provoca incerteza axiolgica e ontolgica: a propsito de um certo episdio o narrador comenta:

    No havendo testemunhas, (), compreensvel que algum pergunte como foi possvel saber que estas coisas sucederam assim e no doutra maneira, a resposta a dar a de que todos os relatos so como os da criao do universo, ningum l esteve, ningum assistiu, mas toda a gente sabe o que aconteceu. (Ensaio... p.253)

    Por aqui se insinua tambm a aguda conscincia ps-moderna de que a linguagem construtora da realidade.

    Relativamente a cada um destes romances procurarei evidenciar um ou vrios traos que se conjugam com uma sensibilidade e com estratgias narrativas ps-modernas, mas poderamos ler quase todos esses traos em todos eles

    Como disse, a construo em duplo dA Costa dos Murmrios faz com que a obra se institua como romance de uma aventura de fundo histrico, apresentada na referida primeira parte, e como narrativa dessa aventura, na segunda. Os Gafanhotos apresenta-se como iluso da realidade, como texto, graficamente delimitado pelo ttulo e pela palavra FIM. A segunda parte contrape-se a esta

  • como realidade. Na articulao das duas partes insinua-se uma indeterminao ontolgica o autor de Os Gafanhotos, confundvel com o autor emprico, na primeira parte, torna-se simplesmente ser de papel, fico, na segunda; Evita d um passo inverso, torna-se Eva Lopo que, invocando permanentemente a categoria da realidade como cauo da sua narrativa, no se cansa de repetir: Evita era eu. E uma tal indeterminao ontolgica, se por um lado institui uma reflexo metanarrativa do problemtico estatuto do romance enquanto universo de fico na sua relao com a realidade, por outro, confrontando-nos com a tematizao da leitura problematiza a tradicional oposio fico/realidade Eva Lopo lendo-se enquanto Evita to real como ns, ou ns to fictcios quanto ela.

    Ao fazer a narrao oral da sua prpria vida, apresentando os factos de que, na realidade, foi testemunha, Eva Lopo f-lo com a auto-conscincia ficcional de um romancista. Para construir a sua leitura, a sua verso de realidade, ela seleccionar de entre os factos vividos, em funo de uma teoria que designa por simultaneidades (p.168) e no por contiguidade espacial ou temporal, porque tudo tem uma semelhana com tudo (p.201). Esta maior importncia dada s correspondncias do que s circunstncias permite a Eva Lopo, como a qualquer ficcionista, propor dois finais alternativos para a sua narrativa.

    O romance de Ldia Jorge questiona metaficcionalmente as possibilidades do romance representar a realidade e reconstituir o passado, mas no recusa a sua ligao ao mundo, atravs da constituio daquilo a que Ricoeur chama referencialidade de 2 grau, que liga o texto autnomo realidade extra-textual, atravs de complexas formas de mediao entre linguagem e mundo.

    A Costa dos Murmrios no deixa, portanto, de ser tambm um romance sobre a guerra colonial, procedendo a uma reviso da histria do passado colonial portugus. O romance subverte a verso oficial da histria da epopeia imperial, embora no exactamente atravs de uma contra-faco pardica, no sentido que lhe d Elisabeth Wesseling[15], muito tpica do romance ps-moderno, pese embora ela surja sobretudo para descrever a dimenso anti-herica do soldado portugus. O meio escolhido para aquele efeito o da inverso dos pontos de vista que tradicionalmente veiculam o registo do nosso passado. O romance d os pontos de vista ex-cntricos, o ponto de vista feminino de Evita, que no legitima a perspectiva oficial e colonial dos factos, evidenciada, por exemplo, no comentrio ao massacre da degola dos negros em que Lus Alex, o seu noivo, participara:

    () quem determina a hierarquia da lmina onde fenece a mesquinhez e se inicia a grandiosidade? De novo no havia nenhuma fronteira, ou ela era imperceptvel e irrelevante e ningum podia indicar se era grandiosidade ou mesquinhez o impulso das pessoas que degolavam as cabeas das outras e as espetavam em paus, e as agitavam em cima das habitaes dos prprios degolados. Sempre assim fora. O Condestvel t-lo-ia feito, o Fundador muito pior () (A Costa... p.138).

    A infidelidade do ponto de vista de Evita, simbolicamente insinuada no romance como sugere Maria Irene Santos[16], pelo seu percurso conjugal literalmente infiel, permite contrapor o direito

  • afirmao dos povos colonizados e das culturas locais africanas.

    Mas para chegar aqui, Evita teve que ultrapassar a primeira fase da desistncia da interpretao, da quase-no-seleco ps-moderna, do tudo igual a tudo (p.147) que a paralisara num relativismo tico e a levara a dizer: Que h momentos em que no me importa a verdade. Digo ento que tudo so folhas e tudo breve e volante como as folhas. (pp.143-4)

    Se h romance intensamente auto-reflexivo, narcsico, metaficcional, no sentido que estes termos tm para Linda Hutcheon ou Patricia Waugh[17], esse romance Deste Modo ou Daquele. um romance que chama para si o papel de Narciso e, de forma autoconsciente, contempla-se no espelho feito de palavras para se ver na construo em construo. (Des)Escreve-se (des)crevendo, realizando o paradoxo de ser produto e produo. Nesta viagem narcsica de autocentramento reflexivo, o romance desvela a caixa de segredos do processo de inveno e, ao autodescrever-se como artifcio de linguagem, apresenta-se como modelo adequado a uma nova apendizagem sobre a prpria realidade.

    Se no primeiro momento do processo de criao a linguagem parece reproduzir a realidade, rapidamente o Narrador se apercebe que a linguagem, para alm da funo de representao, produz simulacros, produz realidade. No texto ficcional, o reflexo do real rapidamente se converte no real desse reflexo, no momento em que a diferenciao de fronteiras ontolgicas entre o mundo actual e o mundo projectado, entre a fico e a realidade se diluem: Por vezes o Narrador tem a sensao de que fala verdade, viveu aquilo que descreve (pp.163-4). De tal modo que as situaes ficcionais que constri e em que se projecta, o levam, na vida real, a sentir por vezes um certo pudor: Coro envergonhado de o pensar que podem ter percebido (confundo assim, mais uma vez, fico com realidade) (p.164).

    Conduzindo o leitor por um percurso autoconsciente, a narrativa narcsica revela-lhe que, embora o mundo possa parecer ser o horizonte imediato da fico, o discurso ficcional produz os seus objectos, as suas entidades. Pode criar uma forma de conhecimento do mundo mas cria tambm a prpria realidade que parece descrever. O efeito de linguagem, que um constructo textual, transforma-se na causa da linguagem, no ser absoluto, conduzindo anarquizao das fronteiras ontolgicas: as entidades ficcionais saltam para o mundo real (casualmente, Jorge Fonseca cruza-se com a gata do Dirio, num caf) e o Narrador-leitor sente-se permanentemente um voyeur que espia a intimidade do par amoroso (Antnio Lus e gata), protagonistas da sua fico.

    O efeito de real desnudado ao ser denunciado como tentativa de criao da iluso referencial. Por exemplo, a ateno exaustiva ao pormenor, nomeadamente a descrio minuciosa dos movimentos e pensamentos de Hiplito, o gato, feita em paralelo com as conversas entre o bilogo e o historiador, e a utilizao das notas de rodap como processo de autenticao, uma estratgia do Narrador autoconsciente, utilizada no sentido de desvelar a condio lingustica do texto, o carcter de criao construda da fico, mostrando-a como produo e simulao, jogo, arte. Um dos traos mais inequivocamente ps-modernos do romance de Abelaira, de resto anunciado

  • pelo ttulo, a subverso do mundo construdo a partir de uma lgica disjuntiva deste modo ou daquele e a contraposio de um universo ficcional constitudo por mundos mutuamente inclusivos, de lgica aditiva deste modo e daquele e daquele e daquele Todos os possveis coexistindo. escreve Antnio Lus, num certo momento do Dirio, pensando em Leibniz Se fosse romancista, escreveria mil, dez mil romances (tantos quantos os imaginveis), todos eles glosando a mesma intriga, cada um desenvolvendo uma das inmeras virtualidades dessa intriga. O conjunto de todas elas definiria o universo total da intriga (esgotava-a). Poderia at servir-me dum romance famoso, extraindo dele as potencialidades que o autor desprezou ou desconheceu. Quantas combinaes, quantos romances esconde a Chartreuse? Stendhal diminuiu a histria, reduzindo-a a uma nica dimenso. (p.60)

    Ao explorar a pluralidade de mundos joga-se com a existncia paralela de modos de ser, caracterizados por estatutos ontolgicos instveis e ambguos. Alm disso, o constante jogo de glosas, o mtodo de permanente refutao, as informaes parentticas, o uso da ironia por parte do Narrador, instituem o imprio da dvida e da interrogao, no permitindo ao leitor distinguir a factualidade da no factualidade. a esta prtica que se est a referir Jorge Fonseca quando sente outra vez a tentao do abismo, a tentao esttica de explorar as mltiplas possibilidades da histria, a beleza da mentira. (p.179) Estamos no mundo dos possveis, no havendo melhor escolha, melhor intriga, melhor mundo, o que nos leva a pr em causa o sentido consensual da realidade, contribuindo para a questionao do real e do real histrico.

    Alis, o romance incorpora a par do argumento autoreflexivo, o argumento historiogrfico e o Narrador, orientado pelos princpios tericos formulados no romance, concebe uma teoria da histria como possibilidade, uma possibilidade textualizada porque a Histria sempre uma narrativa, uma textualizao do passado , uma possibilidade que pensamos ter acontecido, quando o mais importante o que, podendo ter acontecido, no aconteceu. A pginas tantas do Dirio, Antnio Lus escreve: O estudo minucioso de todas, absolutamente todas as possibilidades, s ele poder constituir a verdadeira, a completa histria de Portugal a histria que no deveremos apenas reduzir aos factos acontecidos. (p.61). Na tentativa de explorarem todas as possibilidades histricas, Jorge Fonseca e Diogo Anselmo vo ficcionalizando um Portugal deste modo ou daquele: com ou sem Descobrimentos, com ou sem Salazar, com ou sem 25 de Abril e questionam a vida poltica portuguesa do presente. Desmistificam o discurso historiogrfico oficial, evocando e subvertendo matrizes narrativas da Histria de Portugal, questionam a natureza e o estatuto da nossa informao sobre o passado, avaliando ironicamente o discurso da Histria cannica. Por isso o Dirio afirma: as possibilidades histricas so to lgicas como as geometrias no-euclidianas e, num mnimo, devem existir, como os seres matemticos, no platnico mundo das ideias ainda que se possa hesitar acerca da natureza dessa existncia. (p.61)

    Apesar do autocentramento narcsico da narrativa, verifica-se que ela no pe de lado o real, isto , os discursos sobre o real. E corporiza-se assim um paradoxo a que Linda Hutcheon chamou metafico historiogrfica[18], ou seja, uma narrativa de fico que, conscientemente, reflecte sobre o seu estatuto ficcional, pondo em evidncia a figura do narrador e o acto da escrita, que interrompe

  • violentamente as convenes do gnero, que expe a prpria ficcionalidade da histria que constri, mas sem cair na mera absoro tcnica e negando simultneamente a possibilidade duma distino clara entre Histria e fico, na medida em que aquela s passvel de ser conhecida atravs da narrativa.

    Em Ensaio sobre a Cegueira, dado ao leitor conhecer um mundo possvel[19], alternativo ao mundo actual, que o leva a abandonar as leis deste ltimo e a sua enciclopdia e a adoptar temporariamente outra perspectiva ontolgica, ou melhor, a mergulhar numa indeterminao ontolgica de tipo ps-moderno.

    Este o primeiro romance de Saramago que no fornece ao leitor qualquer informao sobre o espao e o tempo em que decorre a aco. Estamos em plena atopia, em total acronia, dados que contribuem para a constituio da alegoria que edifica o romance, como para a sua constituio contribui o facto das personagens no terem nome prprio: elas so apenas o mdico, a mulher do mdico, a rapariga dos culos escuros, o primeiro cego, o rapazinho estrbico, o velho da venda preta

    Um homem subitamente cega ao volante do seu automvel, no meio do trnsito. A sua cegueira em breve se revela contagiosa, o que conduz criao por parte das diligentes autoridades de uma quarentena para os atingidos pelo mal branco (p.194). Este espao concentracionrio um mundo possvel de segundo grau, que aos poucos se revela um microcosmos em muito semelhante ao mundo que os cegos conheciam e que o leitor conhece. O mundo est todo aqui dentro(p.102), proclama, no por acaso, a mulher do mdico, isto , a nica reclusa no cega (ela apenas simulara a cegueira para poder acompanhar o marido). como se um mundo possvel de segundo grau, encaixasse num outro de primeiro grau, como num jogo de caixas chinesas. B. McHale afirma de resto que a narrativa ps-moderna tend to encourage trompe-loeil, deliberately misleading the reader into regarding an embedded, secondary world as the primary, diegetic world.[20]

    A indeterminao ontolgica acentua-se neste mundo encaixado, a qual verbalmente formulada pela mulher do mdico ao constatar chocada: to longe estamos do mundo que no tarda que comecemos a no saber quem somos, nem nos lembrmos sequer de dizer-nos como nos chamamos, e para qu, para que iriam servir-nos os nomes (p.64)[21]. Este desnorte ontolgico causa e consequncia de um outro trao prprio da condio ps-moderna, a perda de referncias, a desagregao de valores hierarquizados, como por exemplo vida/morte.

    A descrio da quarentena prolonga-se; os cegos vo descendo um a um os degraus da degradao e da abjeco e ao mesmo tempo vai-se progressivamente desvendado o carcter alegrico da cegueira e desta caixa chinesa. Os prprios cegos descortinam a dimenso parablica da sua cegueira ao relatarem uns aos outros como cada um perdeu a viso, numa estratgia narrativa metaficcional, tambm ela ps-moderna. O velho da venda preta, j ento cego de um olho, sentira a rbita vazia inflamada, tirou a venda para se certificar e cegou do olho so Parece uma parbola, disse uma voz desconhecida, o olho que se recusa a reconhecer a sua prpria ausncia

  • (p.129). Outra personagem conta a sua histria: tendo ouvido falar da epidemia, fechou os olhos para experimentar-se; quando os abriu estava cego. Parece outra parbola, falou a voz desconhecida, se queres ser cego, s-lo-s. (p.129)

    Assim aparece metaficcionalmente revelado o carcter alegrico do romance. Tem-se assistido a um ressurgimento da alegoria no romance ps-moderno, o que compreensvel se atentarmos no carcter dual da alegoria, visvel na sua prpria etimologia, do grego allhgoria, formado de alloz, outro e de agoreuw, eu falo; isto , na alegoria quando falo duma coisa, falo doutra ou, dito de outro modo, a alegoria um sistema de relao entre dois mundos. , portanto, fcil aproxim-la e p-la ao servio da dominante ontolgica da potica ps-moderna. The fictional world of an allegorical narrative is a tropological world, a world within a trope. nota McHale Its ontological structure is dual, two-level, one level (or frame) that of the trope no caso, a quarentena dos cegos the other that of the literal[22] no caso, o mundo do exterior em que uma cegueira virtica fez deles cegos. A alegoria adequa-se ao jogo de caixas chinesas ao gosto da narrativa ps-moderna.

    A voz desconhecida que fez das palavras dos cegos duas parbolas: o olho que se recusa a reconhecer a sua prpria ausncia e se queres ser cego, s-lo-s, no ser a mesma que, no final dessa cena, sempre sem se identificar trata-se apenas de um cego declara: j ramos cegos no momento em que cegmos, o medo nos cegou, o medo nos far continuar cegos (p.131)?[23] Outra polaridade se desfaz cego/no cego neste clima de oscilao ontolgica que a alegoria alimenta e torna saliente. Esta cegueira no ser a alegoria da nossa condio ps-moderna num mundo que, no se reconhecendo cego, se quer cego e cego, num mundo de cegos onde a esperana morreu? A mulher do mdico dir da caixa chinesa onde est encarcerada: a cegueira tambm isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperana. (p.204) Este um mundo vazio de sentido, um mundo auto-rasurado, branco. A cegueira vrias vezes designada por mal branco, por mar branca, porque as suas vtimas vem tudo branco e no encontram um sentido: no h estrelas no cu branco (p.106) lembra o narrador a propsito de um dos cegos perdido na sua desorientao.

    Quando na sequncia de um fogo, os cegos so libertados da quarentena, o mundo com que se confrontam de fim dos tempos: toda a populao da cidade igualada na cegueira, isto , a humanidade, por extenso metonmica, e sentem-se regressados horda primitiva (p.245), incapazes de encontrar uma qualquer forma de organizao social. um mundo que em tudo prolonga e confirma o mundo sem sentido da quarentena.

    O mundo que os cegos vo vendo atravs dos olhos da mulher do mdico e sofrendo na experincia da fome, da sede, do frio, do odor nauseabundo, da perda da dignidade, da abjeco o de um quadro apocalptico assustador, que leva a mulher do mdico a sentir-se a que nasceu para ver o horror(p.262). Consciente da debilidade oscilante do novo/velho universo em que se move, ela sintetiza do seguinte modo a sua condio, ao fim e ao cabo alegoria da nossa condio ps-moderna:

  • no me perguntem o que o bem e o que o mal, sabamo-lo de cada vez que tivemos de agir no tempo em que a cegueira era uma excepo, o certo e o errado so apenas modos diferentes de entender a nossa relao com os outros. (Ensaio... p.262).

    Trata-se de sujeitos descentrados, entregues a uma relativizao tica, mergulhados numa realidade catica, que os situa fora de um qualquer sentido da histria, na incerteza radical.

    Porm, h algum que nunca deixou de ver. Neste mundo de trevas brancas, a mulher do mdico transporta a luz, por isso ela ser a voz da lucidez, manifestada desde logo no fingimento da sua cegueira. Ela a lucidez (atente-se na raz etimolgica da palavra), aquela que proclamar: meu Deus, a luz existe e eu tenho olhos para a ver, louvada seja a luz (p.223) e tambm aquela que reconhece o caos em que os cegos esto mergulhados e o recusa[24]. Atravs da lucidez do seus olhos, os cegos vo conscencializando a oposio a esta condio histrica rasurada de um sentido, de um futuro.

    Perante a cidade cega, ela abertamente reclama a urgncia de um sentido para a vida, o qual s poder ser obviamente o da luz, que permitir aos cegos reaverem a sua dimenso humana. O caminho, entende ela, encontrar um princpio organizativo para agir: a vida organizao, a morte desorganizao, como acontece no corpo (p.281) organizar-se j , cito de uma certa maneira, comear a ter olhos (p.282).

    Ela uma voz proftica no sentido em que anuncia uma nova/velha ordem em que a vida, a lucidez, a viso so valores humanos estveis. Face experincia do apocalipse, ela imagina-se num tribunal, numa espcie de juzo final, mas recusa-se a ser julgada e a aceitar aquilo que entende ser uma ameaa escatolgica do fim dos tempos, embora reconhea que urge agir porque parece que O tempo est a acabar, a podrido alastra, as doenas encontram as portas abertas, a gua esgota-se, a comida tornou-se um veneno (p.283). A cegueira, alegoria, como vimos da condio ps-moderna ela entende-a como mais uma escatologia a rejeitar[25]. assim que, perante o imaginado tribunal ela apela ao poder da aco humana, gritando: Abramos os olhos, () uma grande verdade a que diz que o pior cego foi aquele que no quis ver (p.283).

    O anjo da histria de Saramago uma mulher cega, que v, ao contrrio do anjo da histria de Benjamin[26], cujos olhos esto escancarados para o passado, que v com lucidez, mas que cego para o futuro que recusa, pois as runas do passado fascinam-no mais que qualquer luz do futuro. Ela um anjo lcido que ilumina as runas e os mortos do passado e do presente, que v o futuro. uma mulher, que ao enterrar um cadver nas runas do presente, lana um grito messinico assustador: Ressurgir. No aquele corpo, explica ela, mas a ordem: Que ordem, perguntou a si mesma, e a si mesma deu a resposta, A ordem que quer os mortos no seu lugar de mortos e os vivos no seu lugar de vivos (p.288). A essa nova/velha ordem ela conduz, pela sua lucidez resistente, os cegos, os quais, no final do romance, recuperam um a um a viso, recuperam a vida e a humanidade. uma inverso do anjo de Benjanmin.

  • Poder ela ento ser entendida como o anjo do progresso? Um anjo moderno portador de luz? seguramente um anjo que acredita no futuro e na sua capacidade para desvendar a histria e dar-lhe um sentido; um anjo que diz, nas ltimas linhas do romance: Penso que no cegmos, penso que estamos cegos, Cegos que vem, Cegos que vendo, no vem, o que, se por um lado enfatiza a indeterminao ontolgica da nossa condio ps-moderna habitantes ns tambm de uma das caixas chinesas , simultaneamente reafirma o hmus originrio, o grau zero da construo de um sentido (para o) futuro: Se eu voltar a ter olhos, olharei verdadeiramente os olhos dos outros, como se estivesse a ver-lhes a alma (p.262).

    Ensaio sobre a Cegueira confirma-se ento como romance metaps-moderno, isto , um romance que pensa a condio ps-moderna recorrendo a estratgias ps-modernas, mas que l e rejeita o discurso ps-moderno como a alegoria da nossa cegueira.

    O que aqui trouxe so traos, apenas traos ps-modernos, leituras ps-modernas do romance portugus actual. Eu no falei em romance ps-moderno portugus

    Notas

    1 VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade Niilismo e Hermenutica na cultura ps-moderna, Lisboa: Editorial Presena, 1987, p.9. 2 VATTIMO, Gianni. A Sociedade Transparente, Lisboa: Edies 70, 1991, p.19.3 LYOTARD, Jean-Franois. A Condio Ps-moderna, Lisboa: Gradiva, s.d.4 Cf. LODGE, David. The Modes of Modern Writing: Metaphor, Metonym, and the Typology of Modern Literature, Ithaca, New York: Cornell University Press, 1977.FOKKEMA, Douwe. Literary History, Modernism and Postmodernism, Amsterdam and Philadelphia: John Benjamins, 1984 (traduo portuguesa: Histria Literria Modernismo e Ps-modernismo, Lisboa: Vega, s.d.).ELAM, Diane. Romancing the Postmodern, London: Routledge, 1992.5 Idem, p.12.6 Procurando rebater as objeces ao eventual carcter contraditrio da aproximao entre ontologia e ps-modernismo, que decorreria do facto de ser essncia do prprio discurso ps-moderno a negao da possibilidade de qualquer fundamentao ontolgica, Brian McHale contrape: an ontology is a descritpion of a universe, not of the universe; that is, it may describe any universe, potentially a plurality of universes. In other words, to do ontology in this perspective is not necessarily to seek some grounding for our universe; it might just as appropriately involve describing other universes, including possible or even impossible universes not least of all the other universe, or heterocosm, of fiction. (McHALE, Brian Postmodernist Fiction, London and New York: Routledge, 1987, p.27).7 Fokkema coloca a questo nos seguintes termos, ao falar na preferncia modernista por construes hipotticas, especificando as principais convenes sintcticas e composicionais, a saber: a) a apresentao do texto como no definitivo e incompleto; b) a dvida epistemolgica a respeito da possibilidade de representar e explicar a realidade; c) o cepticismo metalingustico quanto possibilidade de exprimir adequadamente qualquer conhecimento que se julgue ter alcanado sobre o mundo e, por fim, d) o respeito pela individualidade do leitor, ou a ideia de que a leitura um assunto privado em que nem mesmo o escritor se deve intrometer. (Histria Literria Modernismo e Ps-modernismo, idem, p.35).8 Idem, p.66.

  • 9 ELAM, Diane. Idem, p.13.10 Por isso, um socilogo como Boaventura Sousa Santos entende que os modelos de desenvolvimento a considerar numa sociedade semi-perifrica, como para ele a portuguesa actual, devem subordinar-se a uma dupla exigncia: (1) na formulao dos objectivos de desenvolvimento deve proceder como se o projecto da modernidade no estivesse ainda cumprido ou no tivesse sequer sido posto em causa; (2) na concretizao desses objectivos deve partir do princpio () de que o projecto da modernidade est historicamente cumprido e que no h a esperar dele o que s um novo paradigma pode tornar possvel. (SANTOS, Boaventura Sousa. Pela Mo de Alice O social e o poltico na ps-modernidade, Porto: Edies Afrontamento, 1994, p.84).11 Isso explicaria a hesitao que Douwe Fokkema revela, em 1991, em classificar Memorial do Convento de Jos Saramago como um romance ps-moderno. How to decide whether Memorial do Convento by Jos Saramago is or is not a postmodernist novel?- este o ttulo de um artigo seu sobre o assunto (Cf. Dedalus, n1, Dezembro de 1991, pp.293-302). O autor acaba por propor uma reformulao do ttulo inicial: no se trataria tanto de decidir se aquele romance ou no ps-moderno, mas de defender a possibilidade e a vantagem de fazer dele uma leitura ps-modernista, acabando finalmente por preferir apresentar a questo em termos ainda mais mitigados, ao dizer: How can we defend our preference for a postmodernist reading of Memorial do Convento? (Idem, p.296). De resto, num artigo do mesmo ano, Maria Alzira Seixo acentua por seu turno o carcter ambguamente ps-moderno dos romances de Saramago, na medida em que neles existe sempre un sens bien dtermin o situations et personnages convergent vers un centre dexplication fictionnelle: la raison du peuple ou celle des artistes, la sanction du futur (Modernits Insaisissables Remarques sue la fiction portugaise contemporaine, Dedalus, n1, Dezembro de 1991, pp.303-313). Ora este centro de explicao ficcional parece-me apontar para uma totalidade coerente que penso no poder escapar a uma legitimao ideolgica moderna.12 JORGE, Ldia. A Costa dos Murmrios, Lisboa: Publicaes Dom Quixote, 1988.13 ABELAIRA, Augusto. Deste Modo ou Daquele, Lisboa: O Jornal, 1990.14 SARAMAGO, Jos. Ensaio sobre a Cegueira, Lisboa: Editorial Caminho, 1995.15 WESSELING, Elisabeth. Writing History as a Prophet Postmodernist Innovations of the Historical Novel, Amsterdam and Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 1991, em especial o captulo VII, intitulado Alternative Histories.16 SANTOS, Maria Irene. Bondoso Caos: A Costa dos Murmrios de Ldia Jorge, Colquio-Letras, Dezembro-Janeiro-Fevereiro. 1989, p.64. 17 Cf. HUTCHEON, Linda. Narcissistic Narrative The Metafictional Paradox, London and New York: Routledge, 1984.Waugh, Patricia. Metafiction: The Theory and Practice of Self-Conscious Fiction, London and New York: Routledge, 1993.18 HUTCHEON, Linda. A Poetics of Postmodernism: History, Theory, Fiction, New York and London: Routledge, 1991.19 A respeito da recuperao do quadro conceptual dos mundos possveis aplicado teoria literria da ficcionalidade, designadamente explicao do estatuto lgico-semntico da fico, consultar o exaustivo trabalho de RONEN, Ruth. Possible Worlds in Literary Theory (Cambridge University Press, 1994).20 McHALE, Brian, Idem, p.11521 A propsito daquilo a que chama chinese-box worlds B. McHale diz: Each change of narrative level in a recursive structure also involves a change of world. These embedded or nested worlds may be more or less continuous with the world of the primary diegesis. (Idem, p.113)22 McHALE, Brian. Idem, p.141.23 O medo cega, disse a rapariga dos culos escuros, So palavras certas, j ramos cegos no momento em que cegmos, o medo nos cegou, o medo nos far continuar cegos, Quem est a falar, perguntou o mdico, Um cego, respondeu a voz, s um cego, o que temos aqui. (p.131)24 Ela diz: Chegou a altura de decidirmos o que devemos fazer, estou convencida de que a gente est cega, pelo menos comportavam-se como tal as pessoas que vi at agora, no h gua, no h electricidade, no h abastecimentos de nenhuma espcie, encontramo-nos no caos, o caos autntico deve ser isto (p.244).25 Pese embora a leitura que Antoine Compagnon faz da ps-modernidade como sendo moins la fin de lhistoire que

  • la fin des eschatologies. (COMPAGNON, Antoine. Dune fin de sicle lautre, Dedalus Revista Portuguesa de Literatura Comparada, n1, Dezembro de 1991, p.369.26 Como sabido, uma das poucas ideias consensuais dentro do pensamento ps-moderno reside na oposio s ideias modernas de progresso e de histria. Tal facto explica o fascnio exercido sobre este pensamento pela metfora encontrada por Walter Benjamin, na IX das suas clebres Teses sobre a Filosofia da Histria (1940), para o progresso histrico como uma sequncia de presentes destrudos. Ouamo-lo:Existe um quadro de Klee que se intitula Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar do local em que se mantm imvel. Os seus olhos esto escancarados, a boca est aberta, as asas desfraldadas. Tal o aspecto que necessariamente deve ter o anjo da histria. O seu rosto est voltado para o passado. Ali onde para ns parece haver uma cadeia de acontecimentos, ele v apenas uma nica e s catstrofe, que no pra de amontoar runas sobre runas e as lana a seus ps. Ele quereria ficar, despertar os mortos e reunir os vencidos. Mas do Paraso sopra uma tempestade que se apodera das suas asas, e to forte que o anjo no capaz de voltar a fech-las. Esta tempestade impele-o incessantemente para o futuro ao qual volta as costas, enquanto diante dele e at ao cu se acumulam runas. Esta tempestade aquilo a que ns chamamos progresso. (BENJAMIN, Walter. Teses sobre a Filosofia da Histria, Sobre Arte, Tcnica, Linguagem e Poltica, Lisboa: Relgio dgua Editores, 1992, p.162).O progresso histrico no para Benjamin uma edificao constante, mas antes pelo contrrio uma incessante destruio, decorrente da subordinao do presente a um projecto de plenitude futura. Paradoxalmente, diz ele, o pensamento racionalista moderno o anjo da destruio ao definir como imperativo categrico da sua ideologia do progresso a necessidade de concluir o projecto. Os milhes de mortos da histria recente, alerta ele, so s um sinal de um desvio.