Linden pneumatologia, eclesiologia e escatologia

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UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL Disciplina: Teologia Sistemática III Curso: Teologia Professor: Gerson Luis Linden 2001 / 1 PLANO DE ENSINO EMENTA Estudo de temas básicos da teologia cristã, enfocando: pneumatologia, eclesiologia e escatologia. Será analisada a doutrina bíblica sobre o Espírito Santo, enfatizando Sua obra e os dons espirituais, a partir da Bíblia, contrapondo com o enfoque do Pentecostalismo. Os conceitos da Igreja cristã e do Ofício do Ministério Eclesiástico serão examinados à luz da Escritura e documentos confessionais da Igreja. A doutrina da Escatologia tratará do ensino a respeito da segunda vinda de Cristo e os fatos dela derivados, com base na Escritura Sagrada. OBJETIVOS DA DISCIPLINA: GERAL: Dar a oportunidade ao aluno de conhecer o ensino bíblico sobre a pneumatologia, eclesiologia e escatologia, confrontando-o com ideologias contemporâneas e aplicando-o a situações de ensino e proclamação. ESPECÍFICOS: 1. Em relação a conhecimentos , espera-se que o aluno 1.1 - Compreenda os ensinamentos que a Escritura Sagrada expressa a respeito da doutrina do Espírito Santo, da Igreja e do Ministério Eclesiástico e da Escatologia. 1.2 - Conheça a literatura básica sobre os assuntos abordados na disciplina. 2. Em relação a habilidades , espera-se que o aluno 2.1 - Desenvolva a capacidade de pesquisar e organizar sistematicamente os resultados auferidos. 2.2 - Exercite sua aptidão de apresentar o resultado de suas pesquisas diante da turma em sala de aula. 2.3 - Avalie criticamente a literatura a respeito dos assuntos abordados, confrontando-a com o ensino da Escritura Sagrada. 2.4 - Relacione as doutrinas bíblicas em estudo à doutrina central da Escritura, a justificação do pecador perante Deus, por graça de Deus, por causa de Cristo, mediante a fé. 2.5 - Aplique os conteúdos estudados à situação contemporânea. 3. Em relação a atitudes , espera-se que o aluno 3.1 - Aprecie os conteúdos da doutrina bíblica como revelação da vontade divina para o ser humano. 3.2 - Aplique as doutrinas bíblicas apresentadas nas situações de ensino de forma positiva, à luz do Evangelho de Cristo. PROGRAMA DA DISCIPLINA 1. Pneumatologia 1.1 - A Pessoa do Espírito Santo 1.2 - A Obra do Espírito Santo 1.3 - Dons do Espírito Santo 2. Eclesiologia 2.1 - A Doutrina da Igreja Cristã 2.2 - A Doutrina do Ministério Público 3. Escatologia 3.1 - A Doutrina das Últimas Coisas 3.2 - O Debate Contemporâneo sobre a Escatologia CRONOGRAMA CONTEÚDO DA DISCIPLINA 1

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UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASILDisciplina: Teologia Sistemática III Curso: TeologiaProfessor: Gerson Luis Linden 2001 / 1

PLANO DE ENSINO

EMENTAEstudo de temas básicos da teologia cristã, enfocando: pneumatologia, eclesiologia e escatologia.

Será analisada a doutrina bíblica sobre o Espírito Santo, enfatizando Sua obra e os dons espirituais, a partir da Bíblia, contrapondo com o enfoque do Pentecostalismo. Os conceitos da Igreja cristã e do Ofício do Ministério Eclesiástico serão examinados à luz da Escritura e documentos confessionais da Igreja. A doutrina da Escatologia tratará do ensino a respeito da segunda vinda de Cristo e os fatos dela derivados, com base na Escritura Sagrada.

OBJETIVOSDA DISCIPLINA:GERAL: Dar a oportunidade ao aluno de conhecer o ensino bíblico sobre a pneumatologia,

eclesiologia e escatologia, confrontando-o com ideologias contemporâneas e aplicando-o a situações de ensino e proclamação.

ESPECÍFICOS: 1. Em relação a conhecimentos, espera-se que o aluno

1.1 - Compreenda os ensinamentos que a Escritura Sagrada expressa a respeito da doutrina do Espírito Santo, da Igreja e do Ministério Eclesiástico e da Escatologia.

1.2 - Conheça a literatura básica sobre os assuntos abordados na disciplina.

2. Em relação a habilidades, espera-se que o aluno2.1 - Desenvolva a capacidade de pesquisar e organizar sistematicamente os resultados auferidos.2.2 - Exercite sua aptidão de apresentar o resultado de suas pesquisas diante da turma em sala de aula.2.3 - Avalie criticamente a literatura a respeito dos assuntos abordados, confrontando-a com o ensino da

Escritura Sagrada.2.4 - Relacione as doutrinas bíblicas em estudo à doutrina central da Escritura, a justificação do pecador

perante Deus, por graça de Deus, por causa de Cristo, mediante a fé.2.5 - Aplique os conteúdos estudados à situação contemporânea.

3. Em relação a atitudes, espera-se que o aluno3.1 - Aprecie os conteúdos da doutrina bíblica como revelação da vontade divina para o ser humano.3.2 - Aplique as doutrinas bíblicas apresentadas nas situações de ensino de forma positiva, à luz do

Evangelho de Cristo.

PROGRAMA DA DISCIPLINA1. Pneumatologia

1.1 - A Pessoa do Espírito Santo1.2 - A Obra do Espírito Santo1.3 - Dons do Espírito Santo

2. Eclesiologia2.1 - A Doutrina da Igreja Cristã2.2 - A Doutrina do Ministério Público

3. Escatologia3.1 - A Doutrina das Últimas Coisas3.2 - O Debate Contemporâneo sobre a Escatologia

CRONOGRAMA CONTEÚDO DA DISCIPLINA

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05.03 Apresentação, Bibliografia. A Pessoa do Espírito Santo.12.03 A Obra do Espírito Santo.19.03 Dons do Espírito Santo. 26.03 Análise do Documento: Spiritual Gifts.02.04 A Doutrina da Igreja Cristã - Bíblia e Confissões Luteranas.09.04 A Doutrina da Igreja Cristã - Sacerdócio Universal dos Cristãos.16.04 A Doutrina do Ministério Público. 23.04 O Relacionamento entre Igreja e Ministério. Debate.07.05 Prova do 1o Grau14.05 Escatologia Inaugurada - o conceito de Reino de Deus21.05 Escatologia - Princípios Hermenêuticos.28.05 Doutrina Bíblica sobre a Morte. Debate: “O Estado Intermediário”.04.06 Os Sinais dos Tempos do Fim.11.06 A Segunda Vinda de Cristo. A Ressurreição dos mortos.18.06 Juízo Final. O Fim do Mundo. Novos Céus e Nova Terra. Eternidade.25.06 Prova do 2o Grau02.07 Substituição de Grau09.07 Exame Final

AVALIAÇÃO: INSTRUMENTOS E CRITÉRIOS

1. Aulas Expositivas - Textos serão indicados para leitura anterior à aula.2. Os alunos preparar-se-ão para dois debates, um em cada bimestre, onde assumirão um posicionamento

teológico determinado com antecedência. A turma será dividida em três grupos, dois para o debate e um para o julgamento do mesmo. (20% da nota do bimestre).

3. Trabalho extra-classe com leitura de textos determinados (1o bimestre: CTCR: Spiritual Gifts; e Scaer: Caráter Cristológico ...; 2o bimestre: Flor, “Milenismo ...” e Voelz, “Reino de Deus ...”) e com preparação de tópicos a serem discutidos em aula. (30 % da nota do bimestre).

4. 2 Provas. (40 % da nota do bimestre). Obs.: A leitura de J.T. Mueller, nos capítulos correspondentes ao conteúdo de aula, é tida como pressuposto.

5. Participação em aula. (10% da nota do bimestre)

BIBLIOGRAFIAa) Básica:

Brakemeier, Gottfried. Reino de Deus e Esperança Apocalíptica. São Leopoldo: Sinodal, 1984.Bruner, Frederick Dale. Teologia do Espírito Santo. São Paulo: Vida Nova, 1983.Buss, Paulo W. Organizador. Lutero e o Ministério Pastoral. São Paulo, Escola Superior de Teologia, 1998.Commission on Theology and Church Relations of the Lutheran Church - Missouri Synod. The End Times - A

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PNEUMATOLOGIAA Doutrina do Espírito Santo e Seus Dons

O DEUS POUCO CONHECIDO1

1. UM DEUS POUCO CONHECIDO E POUCO USADO

“A asserção de que a teologia do Espírito Santo sofre de negligência é feita para enfatizar um fato trágico que tem estado em evidência, com algumas exceções, desde o segundo século da era cristã. Há relativamente poucas referências ao Espírito pelos Pais Apostólicos. Além disso, quando tais referências são encontradas, não é raro encontrá-las identificando o Espírito Santo com o Cristo pré-existente. ... Além disso, uma das formas antigas do Credo Apostólico que chegou até nós contém muitas das caracterizações confessionais familiares sobre o Pai e o Filho, mas conclui com a simples frase ‘e no Espírito Santo’.

“Similarmente, a forma mais antiga do Credo Niceno, adotado no Concílio de Nicéia, em 325 A.D., acrescenta afirmações mais detalhadas sobre as duas primeiras Pessoas da Trindade, mas se satisfaz com uma virtual repetição, a frase ‘e no Espírito Santo’. ...

“Este é um fenômeno religioso extremamente estranho, pois a era apostólica está literalmente cheia de testemunhos sobre o Espírito Santo. Assim, as afirmações do Filho de Deus nos Evangelhos descrevem um ministério rico e variado do Espírito de Deus. O livro de Atos constitui-se em um registro divino extremamente vívido dos resultados benditos do ministério do Espírito na vida de cristãos individuais e nas congregações cristãs. As Epístolas de Paulo oferecem tantas alusões à Pessoa e obra do Espírito Santo quantas são encontradas nos Evangelhos e no livro de Atos juntos.” (16,17)

Uma das causas para a pouca ênfase dada no período pós-apostólico é que os pronunciamentos da Igreja se davam em grande parte frente a controvérsias teológicas. Daí que a Cristologia do período pós-apostólico é tão rica, pois teve de fazer frente a controvérsias doutrinárias que se concentravam na pessoa de Cristo. (18)

“... nenhuma seção sobre o Espírito Santo foi incluída na Confissão de Westminster (1643) ... somente no início deste século esta omissão foi corrigida em um dos grandes grupos protestantes da América, e apenas após prolongada controvérsia (A Igreja Presbiteriana nos EUA acrescentaram um capítulo ‘Do Espírito Santo’ em 1902).” (19,20)

“Robert E. Cushman atribui esta negligência a três fatores: (1) a ascensão do mundo científico, com seus desafio à soberania de Deus; (2) a influência viciante do Pelagianismo com sua ênfase na realização moral do homem; (3) a tendência de Schleiermacher e seus seguidores de substituírem o ministério do Espírito pela experiência religiosa do homem.” É interessante notar que cada uma destas três explicações envolve um

1 Resumo do livro: Lorenz Wunderlich, The Half-Known God , St. Louis: Concordia Publishing House, 1963. Os números entre parênteses referem- se às páginas do livro.

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demérito a Deus e uma elevação do homem, uma substituição da graça de Deus pelas realizações do homem, uma deificação em menor escala do super-homem espiritual, um tipo de religião faça-você-mesmo. (21)

A negligência à importância da doutrina do Espírito Santo pode ser explicada por uma série de motivos na vida dos cristãos:

“... falta de conhecimento do vigor da teologia do Espírito Santo, assim como ela é revelada nas Escrituras.

“... o pressuposto enganoso de que este ministério é tanto em teoria como na prática mais remoto que muitas outras verdades divinas.

“Para muitos, as verdades concernentes ao Espírito Santo permanecem mais remotas simplesmente porque elas não se tornaram tão presentes e vibrantes em nossa vida diária como Deus quer que sejam.” (22)

2. O SENHOR DA VIDA“O Senhor e Doador da vida - esta frase do Credo Niceno proclama tanto a identidade daquele que

é assim caracterizado, como Sua relação à existência e à continuidade da vida física.” (27)“... com uma exceção, exatamente a mesma base que a Escritura oferece para considerar que Jesus

Cristo é uma pessoa, é oferecida a nós para falar da personalidade, da pessoa do Espírito Santo - e esta exceção é a encarnação do Filho de Deus. Uma pessoa é normalmente associada com as características de intelecto, sensibilidade e vontade.” (28)

“O Espírito Santo é apresentado com as características de uma pessoa. O profeta Isaías se refere às qualidades e habilidades pessoais do Espírito Santo: sabedoria, entendimento, conhecimento, conselho, força e o temor do Senhor (11.1,2). O extensivo catálogo de dons e habilidades espirituais listados por Paulo, tais como sabedoria, conhecimento, fé, curas, profecia e interpretação são concedidos aos cristãos pela vontade do Espírito (1 Co 12.11). Compreensão dos pensamentos de Deus é a habilidade específica do Espírito de Deus (2.11).

“O Espírito Santo também atua como uma pessoa. Ele luta contra e restringe o mal, e sustenta aquilo que é bom. Nos dias de Noé foi o Espírito de Deus que estava perdendo a paciência diante da crescente perversidade humana (Gn 6.3), enquanto que no tempo de Isaías, é o mesmo Espírito que serve como protetor de Seu povo contra os ataques de seus inimigos (59.19). O Senhor da aliança foi glorificado por Neemias e Isaías porque Seu Espírito foi o instrutor e guia de Seu povo durante sua jornada no deserto (Ne 9.20; Is 63.14). A presença e poder do Espírito são a garantia de Deus para Zorobabel de sucesso em sua gigantesca tarefa de reconstruir o templo de Jerusalém (Zc 4.6).

“Estes traços pessoais do Espírito são especialmente vívidos na promessa do Salvador aos Seus discípulos. Após o afastamento físico de seu Senhor, Seu Espírito irá confortá-los, testificando a eles a respeito de Jesus (Jo 15.26). Este testemunho está firmemente baseado no fato de que o Espírito conhece o Filho e o Pai (Jo 16.13). Comissionado pelo Pai e o Filho, o Espírito Santo deverá ser o divino mestre para os apóstolos para seu próprio entendimento e força, assim como também para o sucesso de seu ministério entre os homens (14.26). Como um auxílio poderoso para a eficácia de sua mensagem, o Espírito convencerá o mundo do pecado, da justiça e do juízo (Jo 16.8). (29,30)

“O Espírito Santo é, além disso, mostrado emitindo ordens e proibições em favor do Reino e colocando limitações no trabalho ligado a ele.” At 8.29 - ordenando a Filipe que vá para junto do eunuco etíope; 10.19,20 - que Pedro pregue para Cornélio; 13.2,4 - instrui para que Paulo e Barnabé sejam comissionados para um trabalho especial; 16.6,7 - intervém para que Paulo e Silas não sigam para a Ásia e Bitínia; Rm 8.26 - orando com os crentes. (30)

“O Espírito não apenas age como uma pessoa; Ele também reage como uma pessoa.” Pode-se apelar com sucesso para Ele - Ez 37.9,10; pode ser entristecido - Ef 4.30; Sua graça pode ser resistida - At 7.51; pode-se mentir para Ele - At 5.3-10; é provocada em Sua ira - Hb 10.29; pode ser blasfemado pelo homem, num pecado dito imperdoável pelo próprio Jesus - Lc 12.10. (30,31)

“Certamente que simplesmente um poder, manifestação, modo ou emanação não poderiam realizar todos estes atos, atos que são normalmente atribuídos a uma pessoa. Nem pode um mero poder, influência, manifestação ou emanação apresentar tais reações. Portanto, aqueles que rejeitam a personalidade do Espírito Santo também rejeitam a autoridade e veracidade da Palavra de Deus.” (31)

“Outra ênfase da pessoa do Espírito Santo é a associação e justaposição nas quais a Escritura O coloca junto com outras pessoas, divinas e humanas.” Mt 28.19; 2 Co 13.13; At 15.28. (31)

Apesar de a palavra para “Espírito” ser um vocábulo neutro no grego, por vezes aplica-se a Ele formas pronominais masculinas - Jo 16.13,14. “De fato, o recurso literário de personificação, a aplicação de atributos pessoais a um objeto inanimado ou a uma idéia abstrata, é comum. Quando é empregado, no entanto, tal personificação é geralmente bem evidente e pretende clarificar, e não esconder o significado. Por isso inferimos que as formas masculinas do pronome nas passagens mencionadas acima pretendem afirmar a personalidade do Espírito Santo.” (32)

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O Espírito Santo é verdadeiramente Deus. A Ele são atribuídos os mesmos nomes que são atribuídos a Deus - Is 61.1; Mt 10.20; 2 Co 3.3; 1 Pe 1.10-12: Gl 4.6; Rm 8.9. (32,33)

O Espírito Santo é identificado com Deus - 2 Sm 23.2,3; At 28.25-27 (comp. Is 6); Mt 12.31,32; At 5.1-4. (33,34) O mesmo em relação às características de Deus, que são atribuídas ao Espírito Santo. (34)

“De acordo com as Escrituras, o Espírito Santo tem e usa o poder de Deus. Isto é demonstrado incontestavelmente naqueles tremendos feitos de Deus aos quais normalmente nos referimos como criação, regeneração e santificação. Apenas Deus pode criar, apenas Deus pode conceder vida espiritual naqueles que estão espiritualmente mortos, apenas Deus pode tornar santos aqueles que são pecadores. Como será visto com maiores detalhes mais adiante, o Espírito de Deus está intimamente associado a cada um destes atos de Deus. De fato, a repetida e variada ênfase da Palavra de Deus nos impele à convicção de que nossa vida física, nossa vida cristã no tempo e nossa vida santificada na eternidade seria não apenas incompleta, mas também impossível, sem a atividade do Espírito, que está associada à obra do Pai e do Filho.”(34)

3. O SENHOR DA VIDA E A PALAVRA DA VIDA

“Deus não quis ser uma idéia abstrata, um mero construto filosófico ou teológico. Ele quis se tornar reconhecível ao homem. Assim sendo, a primeira preocupação do Espírito Santo é trazer Deus ao homem e o homem para Deus. Este vivificante Espírito de Deus , este Senhor da vida é, portanto, também o autor da Palavra da vida, as Escrituras Sagradas, a inerrante revelação de Deus à humanidade.” (41)

“É importante enfatizar alguns aspectos que distinguem revelação de inspiração. Revelação é um ato de Deus através do qual Ele torna conhecidas ao homem verdades previamente desconhecidas ao homem. A inspiração, entre outras coisas, também envolve a direção de Deus que guia Seus representantes proféticos e apostólicos para preservar esta revelação divina, estas verdades divinas, para a instrução da humanidade. Para ilustrar, toda a Escritura é resultado da inspiração divina, mas nem todo fato na Escritura é produto da revelação divina.” (44)

A Escritura, em muitas situações, atribui ao Espírito Santo o papel de revelador: Nm 11.25,29; 2 Sm 23.2; Mt 22.43; Sl 110.1; Ez 2.2; Mq 3.8-12; Sl 41.9 (cf. At 1.16); Is 6.9 (cf. At 28.25); Hb 10.15. (47,48)

“”É evidente que um pré-requisito essencial para os porta-vozes de Deus nas Escrituras era esta revelação da parte de Deus. É também significativo que este trabalho especial é tão freqüentemente atribuído ao ministério do Espírito Santo. É significativo porque a inspiração atribuída ao mesmo Espírito pressupõe a revelação anterior, que a tornou possível.” (48)

“A doutrina da inspiração das Escrituras tem sido a posição da maior parte das Igrejas Protestantes. ... A importância desta doutrina dificilmente pode ser por demais enfatizada. Ela pode ser reduzida à alternativa simples, mas consistente: Ou as Escrituras constituem a infalível Palavra de Deus, produzida de forma sobrenatural, ou elas são simplesmente documentos de seres humanos piedosos e dedicados, que são sujeitos às inevitáveis falácias humanas.”

“Esta doutrina da inspiração, que a Igreja tem sustentado em todas as suas gerações, permanece, não porque seus defensores conseguem clamar em voz mais alta do que seus oponentes, nem em virtude de qualquer defesa humana, mas devido ao fato de que ela está contida nos próprios oráculos divinos. Visto estar assim contida nos oráculos de Deus, nenhum santo ou apóstolo poderia agir de outra forma senão crer na palavra que Deus falou.” (Lewis S. Chafer, Systematic Theology, 64) (49)

“Como é o Espírito Santo especificamente mencionado em conexão com a inspiração das Escrituras? Seguiremos quatro linhas principais de evidência: (1) a declaração dos escritores do Antigo Testamento de que eram porta-vozes do Espírito Santo; (2) o apoio que o Salvador e Seus apóstolos ofereceram para estas afirmações; (3) o guiar divino através do Espírito Santo que o Senhor Jesus promete aso Seus apóstolos para eles próprios e para sua mensagem; e (4) o insistente clamor dos apóstolos de que eles receberam e transmitiram as verdades de Deus através do Espírito de Deus.” (50,51)

(1) - 2 Sm 23.2; Is 59.21; Ez 11.5; Mq 3.8.(2) - Mt 22.42-46 e Mc 12.35-37 (cf. Sl 110.1); At 1.16 (Sl 41.9); At 28.25 (Is 6.9).

“A real importância destas declarações é que os porta-vozes de Deus no Antigo Testamento tinham verdades vitais que eles precisavam comunicar a sua própria geração e às posteriores, e que Aquele que revelou estas verdades para eles, isto é, o Espírito Santo, é também Aquele que salvaguardou sua precisão e correção ao ponto de que elas seriam reconhecíveis e aplicáveis aos santos de Deus muitos séculos mais tarde. Por isso Pedro nos informa que era o Espírito de Deus nos profetas que os levaram a predizer ‘os sofrimentos de Cristo e a glória subseqüente.’ Então acrescenta estes detalhes significativos: ‘foi revelado a eles que eles estavam servindo não a eles próprios, mas a vós

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nas coisas que vos foram anunciadas por aqueles que vos pregaram as boas novas.’ (1 Pe 1.11) (52)

(3) - Jo 14.26; 16.12-15“a) Cristo declara especificamente que mesmo para Seus apóstolos Ele deixaria muitas coisas não reveladas durante Sua vida terrena (v. 12); b) mas Ele também assegura que tal revelação será dada pelo Espírito (v. 13); c) os recipientes da revelação do Espírito hão de ser os apóstolos a quem Cristo está se dirigindo; e d) com tal verdade e direção do Espírito Santo, os apóstolos hão de ser porta-vozes de Deus, cuja mensagem dada pelo Espírito deve ter a mesma autoridade que a de Cristo. (13.20; 17.20)” (53)

(4) - 1 Co 2.10; Ef 3.5; 1 Tm 4.1; Ef 6.17; 1 Co 2.12,13; 1 Pe 1.12. (51-54)Lutero: “A Escritura Sagrada é o livro dado por Deus Espírito Santo a sua igreja, no qual ela deve

aprender o que ela (a igreja) é, o que ela deve fazer, o que deve sofrer, onde ela deve permanecer. Onde o livro para, a igreja para; pois Ele diz que Sua igreja não ouvirá a voz do estranho (Jo 10.5).” (“Exempel, einen rechten christlichen Bischof zu weihen” [1542] Dr. Martin Luthers Sämmtliche Werke, XXVI [Erlangen: Verlag von Carl Heyder, 1830], 100.) (54)

“É pela mesma razão que a Fórmula de Concórdia pode asseverar que o Espírito Santo é o Expositor das Escrituras (FCDS II 26). E por esta razão seus escritores crêem, ensinam e confessam - e nós com eles - ‘que os escritos proféticos e apostólicos do Antigo e Novo Testamentos são a única regra e norma de acordo com a qual todas as doutrinas e mestres devem ser louvados e julgados.’ (FC Ep I 1)” (55)

4. O SENHOR DA VIDA E A PALAVRA VIVA“Aquele que é o Espírito do Pai é também o Espírito de Jesus Cristo, e as Escrituras revelam um

relacionamento íntimo entre o ministério de Deus, o Espírito e de Deus, o Filho. Na verdade, o detalhe e a variedade deste ministério é muito mais explícito na Escritura do que aquele que é descrito existindo entre o Espírito e o Pai.

“Bem entendido, a obra do Espírito de Deus é messiânica. Não se pretende com isto declarar que o Espírito Santo é nosso redentor. Isto afirma, porém, que Ele está intimamente relacionado às diversas fases da obra do Redentor e com os vários aspectos de nossa redenção.” (59)

“Repetidamente na profecia do Antigo Testamento, o Espírito de Deus está intimamente relacionado ao tempo messiânico, ao propósito messiânico e ao reino messiânico (Is 32.15-18; 44.3-5; Ez 36.26-31; Zc 12.10). O deserto dos corações dos homens hão de ser transformados em um campo espiritual frutífero; a aridez das vidas humanas há de ser saturada com a umidade espiritual e vestida na verdura espiritual; a rebelião da ação humana há de ser convertida em obediência e conformidade à vontade divina - tudo como um resultado da dádiva do Espírito aos homens.” (62)

“No Novo Testamento Deus segue revelando a atividade multiforme do Espírito de Deus em e através do Filho de Deus. Isto é claramente demonstrado na concepção milagrosa de nosso Senhor através do Espírito Santo, em Seu Batismo, Sua tentação, Seu ministério de ensino e cura, Seu Sacrifício vicário, ressurreição e glorificação.” (62)

“Foi o Espírito Santo que, de uma forma misteriosa, plantou a semente da vida no ventre da virgem Maria. Enquanto Ele pode ser corretamente chamado de Causa ou Agente desta concepção milagrosa, a Escritura nunca atribui a Ele paternidade divina do Filho encarnado.

“Isto obviamente não exclui o interesse e atividade do Pai e do Filho na encarnação de Jesus Cristo. Neste momento também, como em toda parte no relato bíblico sobre os grandes feitos de Deus, todos os três, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, estão ativos.

“Não obstante, apesar da concepção ter sido um ato do Deus Triúno, ela foi, em um sentido especial, a obra do Espírito Santo. Ele foi, de uma forma especial, a causa eficiente da encarnação do Filho de Deus.” (64)

“O Espírito está em ainda maior evidência em Sua relação com Jesus em Seu batismo, por João Batista. ...

“...todos os Evangelhos atestam que o Espírito desceu sobre Jesus na forma de uma pomba. O que isto significa, somos incapazes de estabelecer completamente. Mas nós sabemos com certeza o que isto não pode significar. Não apenas a verdade sobre a divindade de nosso Senhor, mas também aquela da Trindade impedem qualquer inferência de que o Espírito de Deus concedeu aqui poderes e habilidades ao Filho de Deus que Ele não possuía antes. (65)

“Um propósito tríplice está imediatamente aparente : “Para João Batista, a descida do Espírito serviu como a identificação dada por Deus daquele de

quem ele seria o mensageiro e a quem ele iria dirigir outros como o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. ... (Jo 1.32,33)

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“Para Jesus, a descida do Espírito foi um anúncio público da parte do Pai de que as obrigações e funções de Seu ministério messiânico estavam iniciando. A conexão íntima e inseparável entre o Espírito Santo e o Messias nos é apresentado repetidamente como um ungir. ... Is 61.1; Hb 1.8,9 ... Pela voz do Pai vinda do céu e pela unção do Espírito Santo, o Deus-homem recebeu a aprovação celestial para a inauguração de Seu ministério público entre os homens. Um escritor resume isto muito apropriadamente desta forma: ‘Em uma forma misteriosa, de uma forma além de nossa compreensão, de acordo com o plano do Deus Trino para a nossa salvação, o Espírito Santo estava encarregado da obra redentora do Filho encarnado; Ele estabeleceu o tempo messiânico, por assim dizer. Portanto agora, em cumprimento à profecia e como um ato de instalação solene ... o Espírito Santo desceu sobre Ele e permaneceu sobre Ele.

“E o que isto significa para os cristãos? Tudo o que Cristo faz e tudo o que é feito para Cristo é da maior importância. Quando, pois, o Espírito desceu sobre Jesus, isto significou que as relevantes profecias do Antigo Testamento foram cumpridas; significou que Deus foi fiel às Suas promessas; significou que o ministério redentor do Salvador foi oficial, formal e publicamente iniciado.” (66,67)

“Os eventos subseqüentes ao batismo de Jesus demonstram plenamente que a doação do Espírito assinalou o início dos serviços messiânicos. Estes eventos também enfatizam a força do Espírito Santo na obra do Messias. Os evangelistas Mateus, Marcos e Lucas enfatizam esta verdade quando revelam que foi pelo guiar do Espírito que Jesus foi levado ao deserto para a tentação pelo diabo. Lucas oferece o relato mais detalhado: ‘E Jesus, estando cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e foi conduzido pelo Espírito para o deserto.’ (4.1) Deve-se notar que o uso do Imperfeito do verbo nesta passagem mostra que isto não foi meramente um ato momentâneo da parte do Espírito, mas que continuou durante toda a tentação no deserto. A clara implicação, pois, é que o Espírito Santo estava com Jesus através de toda a tentação de Satanás, guiando e assistindo-O no vencer as tentações. Isto é também firmado por outra declaração do mesmo evangelista na bem sucedida conclusão desta experiência por Cristo: ‘E Jesus voltou no poder do Espírito para a Galiléia.’ (v. 14)

“E qual seria o propósito glorioso de tudo isto? Assim como em tantos outras situações, também aqui Jesus é tanto substituto como exemplo. ... (Hb 2.17,18) (68)

“Mesmo nos vários milagres de Cristo, a influência e agência do Espírito Santo são evidentes. ... os milagres de Jesus foram realizados em parte para autenticar Seu testemunho a respeito de Si próprio como o Filho de Deus. Seus milagres também eram uma parte integrante de Seu ministério messiânico.

“Os evangelhos citam duas situações nas quais o poder milagroso de Jesus está relacionado ao ministério do Espírito Santo. Um é encontrado na citação de nosso Senhor da profecia de Isaías 61.1,2 (Lc 4.17-19)....

“O segundo e mais específico alinhamento do Espírito Santo com o Filho de Deus na execução dos milagres encontra-se em Mateus 12.28. ... Apesar de que isto não é especificamente declarado em conexão com outros exemplos nos quais possessão demoníaca foi curada por Jesus, uma implicação evidente desta passagem é que outros casos seguem o mesmo padrão.” (69,70)

“O Espírito Santo também sustentou Jesus em Seu sofrimento. ... as Escrituras revelam que Cristo ofereceu-se a Si mesmo a Deus na morte, pelo Espírito Santo. (Hb 9.14) (71)

Duas passagens têm recebido interpretação que favorece a afirmação de que o Espírito Santo, junto com o Pai e o próprio Filho, foi a causa eficiente da ressurreição de Jesus - Rm 1.4; 1 Pe 3.18 (?). (72)

5. O SENHOR DA VIDA E A VIDA DA IGREJA

O Espírito e a Igreja do Antigo Testamento. “Ezequiel freqüentemente menciona a ação do Espírito em transportá-lo, seja corporalmente, seja

em uma visão, aos locais de sua missão. No livro dos Juízes, a coragem e força concedidas pelo Espírito para a realização de tarefas específicas são aludidas em cada uma das sete referências feitas ao Espírito neste livro. É o Espírito da sabedoria que é especialmente mencionado em Êxodo. A ênfase nos livros de Samuel e Crônicas está sobre o Espírito como o Doador da inspiração profética. A ênfase dupla nos Salmos e em Isaías está sobre as características e reações do Espírito, tais como o de ficar entristecido ou irado pela ingratidão e rebelião, e especialmente em Seu vínculo com o ministério público do Messias.

“De maneira geral, o ministério do Espírito Santo no Antigo Testamento está em evidência em duas áreas: (1) aquele que Ele dirige para a criação e a humanidade em geral; (2) aquele que Ele realiza especificamente para Sua Igreja. O primeiro tem sido chamado de ‘relações cósmicas ou mundiais do Espírito de Deus’.2 A respeito deste ministério, o teólogo holandês Abraham Kuyper afirmou: ‘A obra do espírito Santo não está confinada aos eleitos e não inicia com a regeneração destes; mas ele toca a toda a criatura, animada e inanimada ... consiste em gerar e sustentar a vida, no que se refere ao existir e aos talentos...’.3 A segunda área de atividade do Espírito, na Igreja, tem sido chamada de ‘relações teocráticas ou redentoras do Espírito de

2 W.H. Griffith Thomas, The Holy Spirit of God; Lectures at Princeton Theological Seminary , p. 113 The Work of the Holy Spirit , p. 46.

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Deus’.4 Aplica-se a Israel como uma congregação cristã da escolha graciosa de Deus, assim como também aos cristãos individuais, dirigidos pela graça e vontade de Deus.” (78-80)

O Espírito Santo tem uma atuação fundamental na história do povo de Deus, enquanto estado teocrático, particularmente agindo nos homens-chave desta história. José era um homem cheio do Espírito de Deus (Gn 41.38). “Mais tarde, depois da libertação de Seu povo da escravidão egípcia, Deus providenciou uma liderança movida pelo espírito, com Moisés e Arão. O Senhor usou estes homens para realizar Seus propósitos divinos, assim que o profeta Isaías identificou o Espírito Santo como o verdadeiro Líder de Israel durante a vida deste povo no deserto (63.14). A analogia é tanto mais dinâmica porque as necessidades do povo de Deus são comparadas à dependência que os animais domésticos têm das pessoas. No catálogo das bênçãos que Deus trouxe ao Seu povo na peregrinação pelo deserto ... encontramos também a declaração ‘E lhes concedeste o teu bom Espírito, para os ensinar’ (Ne 9.20).” (81)

“Há também uma insistente repetição de que a liderança política em Israel foi abençoada em suas funções oficiais, pelo Espírito do Senhor. ... os setenta anciãos foram equipados com o dom da profecia pelo Espírito Santo (Nm 11.25). ... Josué foi escolhido como o sucessor de Moisés no final da vida deste, e a caracterização fundamental para um ofício tão elevado se encontra nas palavras do Senhor, ‘homem em quem há o Espírito’ (Nm 27.18).” (81)

“No período dos Juízes, homens como Otniel, Gideão, Jefté e Sansão foram escolhidos por Deus como libertadores de seu povo da opressão; em cada caso, a competência para esta tarefa divina é afirmada nesta verdade: ‘E o Espírito do Senhor veio sobre ele’ (Jz 3.10; 6.34; 11.29; 14.6). Após ser ungido por Samuel, como o primeiro rei de Israel e durante os primeiros anos de seu reinado, Saul teve a assistência e direção do Espírito do Senhor (1 Sm 10.10).” O mesmo vale para Davi (1 Sm 16.13; Sl 51.11; 2 Sm 23.2). “Após o exílio babilônico, nos dias da reconstrução de Jerusalém e seu templo, Zorobabel foi assegurado de que seu sucesso não dependia de força ou poder, mas do Espírito do Senhor (Zc 4.6)” (82)

“Os dons do Espírito são também evidentes na vida religiosa de Israel. A construção de sua casa de adoração, sustentação do bem e oposição ao mal, a proclamação dos profetas - tudo estava sob a supervisão do Espírito Santo. A vestes dos sacerdotes foram feitas por pessoas a respeito de quem é dito que tinham o ‘Espírito de sabedoria’ (Ex 28.3). A respeito de hábeis artífices, como Bezalel e Aoliabe, que foram comissionados para edificar o tabernáculo, é dito que estavam cheios ‘do Espírito de Deus, de habilidade, de inteligência e de conhecimento, em todo artifício’ (Ex 31.3; 35.30-35).” (82)

“Endosso e sustentação para o que é bom estão implícitos em títulos como Espírito Santo e Bom Espírito. E estão explícitos nas declarações em que o Espírito é apresentado revelando a vontade de Deus para o bem-estar físico e espiritual de Seu povo. Por outro lado, o Espírito de Deus contende com o mal nos dias de Noé, afasta-se do apóstata Saul e é mostrado como estando em peleja contra aqueles que se rebelaram contra Ele (Is 63.10).” (82,83)

“Finalmente, na ameaça de desastre espiritual e de aniquilação da nação, o Deus misericordioso repetidamente empregou dois artifícios, ambos centrados no Espírito, para sustentar e fortalecer Seu povo. Um foi a voz de Seus profetas, porta-vozes do Espírito (Ez 2.2; 8.3; Mq 3.8). O outro foi a constante promessa de um Redentor, enviado pelo Espírito, pregando no Espírito e realizando aotos de graça e glória pelo Espírito (Is 48.16,17; 61.1-4).” (83)

O Espírito e a Igreja do Novo Testamento.Jesus é aquele que funda a Igreja (Mt 16.18; Ef 5.25,26). “No entanto, as Escrituras também

creditam ao Espírito Santo o estabelecimento e existência continuada da Igreja.” (Jo 3.5; 1 Co 12.3, 13). “Assim como na encarnação, o Espírito de Deus formou o corpo físico de Cristo, assim ao converter o homem, Ele forma o corpo espiritual de Cristo.” (83,84)

“O Espírito Santo é especialmente mostrado como o Mestre e Guia da Igreja cristã do Novo Testamento.” (Jo 20.22; 14.26; 15.26) “E assim no Pentecostes e após, estes mestres da igreja, cheios do Espírito, foram transformados maravilhosamente. Foram dotados com sabedoria, entendimento, coragem e habilidades milagrosas. Tornaram-se profundamente envolvidos no propósito e poder de Deus.” (84)

“Estabelecida pelo Senhor da vida e instruída por Ele, a igreja do Novo Testamento foi também equipada por Ele para seu elevado e santo propósito. Isto é evidente da unidade com Cristo que o Espírito deseja e realiza na igreja. Tal unidade, o Espírito realiza, habitando nos membros da igreja, tanto individual, como corporativamente.” (1 Co 6.19; Rm 8.9) (85)

“Esta união entre a igreja cristã e Cristo deve ser refletida na unidade que há de existir e ser demonstrada entre os membros.” (Ef 2.21,22; 1 Co 12.13; Jo 17.11; Ef 4.3) (86)

“Para realizar Seus propósitos em e através da igreja, o Espírito Santo também concedeu e ainda concede dons à igreja, dons que eram extraordinários e temporários, mas também dons que eram e são mais ordinários e permanentes. Na longa lista dos dons concedidos pelo Espírito encontramos: sabedoria,

4 Thomas, p. 12.

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conhecimento, fé, cura, operação de milagres, profecia, habilidade para discernir espíritos e o uso de línguas e sua interpretação. Entretanto, a longa lista é introduzida pela instrução, ‘A manifestação do Espírito é concedida a cada um, visando um fim proveitoso’ (1 Co 12.7) e conclui com a lembrança que ‘um só e o mesmo Espírito realiza todas estas coisas, distribuindo-as, como lhe apraz, a cada um, individualmente, (v. 11).” (86)

“O Senhor Deus também governa e controla Sua Igreja através do Espírito. Isto Ele faz de uma forma geral, através do registro de sua vontade ... (1 Co 2.13). Ele o faz pelo estabelecimento de ofícios e funções de liderança: apóstolos, profetas, evangelistas, pastores, mestres. Ele o faz ao dotar Seus cristãos com múltiplos e diversos dons do Espírito.

“Mas temos também informações específicas sobre o governo de Deus em Sua igreja através do Espírito Santo. Os missionários para o mundo gentio, Paulo e Barnabé, foram comissionados para sua missão pela igreja de Antioquia, sob a ordem do Espírito [At 13.2]. Foi o mesmo espírito que dirigiu as resoluções do Concílio de Jerusalém [At 15.28]. O Espírito de Deus também proibiu Paulo de pregar a palavra em certas províncias da Ásia Menor [At 16.6,7]. Foi Ele que, através do apóstolo João, emitiu condenações e elogios às sete igrejas da Ásia [Ap 2-4]. Assim, Paulo pode encorajar os anciãos de Éfeso tão enfaticamente: ‘Atendei por vós e por todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos, para pastoreardes a igreja de Deus, a qual Ele comprou com o Seu próprio sangue’ (At 20.28).” (87)

A Doutrina do Espírito Santo na História da Igreja.“Uma declaração detalhada sobre o ministério do Espírito Santo não foi considerada vitalmente

importante muito antes do Concílio de Constantinopla, em 381 A.D. ... No entanto, há ampla evidência de uma forte consciência cristã da deidade do Espírito Santo. Ela é encontrada: (1) no extensivo uso da fórmula batismal de Mateus 28; (2) no conhecimento amplamente difundido dos elementos básicos do Credo Apostólico; (3) nas doxologias trinitárias de antigos hinos e liturgias; (4) na pronta reação da igreja antiga contra heresias envolvendo a Trindade.” (88)

“Entre os mais antigos testemunhos da igreja pós-apostólica sobre a deidade do Espírito Santo, os seguintes são representativos: Clemente de Roma (c. 100) escreveu: ‘Não temos nós um Deus e um Cristo e um Espírito da graça que foi derramado sobre nós?’ [Epístola aos Coríntios 46.6] Clemente de Alexandria (150-215) refere-se ao Pai, Filho e Espírito Santo como a “Santa Tríade”. Tertuliano (160-220) é o primeiro a sugerir a palavra Trindade para descrever Deus. Uma das mais antigas formas da fórmula batismal é encontrada no Didaquê (c. 150), um manual usado para a instrução de catecúmenos antes do Batismo.” (88)

“Várias formas do Credo Apostólico começaram a ser usadas quase que simultaneamente em diferentes centros da cristandade; todos eles, mesmo com formas breves, incluem o Espírito juntamente com o Pai e o Filho. Assim, um antigo Credo Romano diz: ‘Creio em Deus Pai Todo-Poderoso e em Cristo Jesus, Seu Filho, nosso Senhor, e no Espírito Santo, a Santa Igreja e a ressurreição da carne.’” (88)

“Durante os sessenta e cinco anos entre os Concílios de Nicéia e de Constantinopla alguns dos grandes defensores da deidade do Espírito Santo foram Atanásio, Basílio de Antioquia e os dois Gregórios. Sua argumentação centrou-se principalmente naquelas passagens bíblicas que atribuem onisciência, onipotência e glória divina ao Espírito. Eles também fizeram uso da fórmula batismal, que afirma igualdade do Espírito com o Pai e o Filho.” (89)

“Em 381, o Concílio de Constantinopla acrescentou ao Credo de Nicéia uma declaração definitiva concernente ao Espírito Santo: ‘o Senhor e Doador da vida, o qual procede do Pai, que junto com o Pai e o Filho é adorado e glorificado, que falou pelos profetas.’ O Concílio de Calcedônia, o quarto concílio ecumênico, com representantes de Roma, Constantinopla, Antioquia e Jerusalém, em geral substanciou as decisões dos concílios anteriores com respeito à deidade do espírito Santo. Foi neste tempo que veio com grande insistência a questão de o Espírito Santo proceder do Filho, assim como do Pai - uma questão que já estava em discussão por diversas décadas antes de Calcedônia.” (90)

“Em 589 o Concílio de Toledo, uma assembléia composta inteiramente de delegados das igrejas ocidentais, acrescentou a frase “e do Filho” à formulação de Constantinopla. A igreja ocidental em pouco tempo incorporou esta mudança à liturgia, enquanto que a igreja oriental insistiu que tal acréscimo era inválido, pois resultou da ação de um concílio regional, um em que o Oriente não teve voz. A partir daquele tempo, a separação entre o Oriente e o Ocidente passou a crescer, até finalmente consumar-se no ano de 1054.” (90)

Lutero. “As mais claras e mais vigorosas - e ao mesmo tempo mais confortadoras - exposições de Lutero sobre o Espírito Santo são encontradas em suas aulas sobre os Salmos, em seu tratado De Servo Arbitrio, e especialmente em sua explanação do Terceiro Artigo do Credo Apostólico, tanto no Catecismo Menor, como no Maior. Nestes, pelo ministério do Espírito, Deus deixa de ser um tirano rigoroso e temido, a Escritura Sagrada não é mais considerada um livro de lei eclesiástica e o homem não é mais jogado sobre seu eu impotente como mestre de seu destino e guia da própria alma.” (91,92)

“É instrutivo e confortador notar que o Livro de Concórdia contém uma teologia completa do Espírito Santo. Não há nenhum dos livros confessionais que não descreva em grande detalhe a Pessoa e obra do

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Espírito Santo. Esta firme convicção dos reformadores está incorporada cinco vezes no Prefácio do Livro de Concórdia:

1. reconhecem o auxílio do Espírito para seu próprio estabelecimento e confirmação na verdade: ‘... estamos certos de nossa confissão e fé cristã, com base na Escritura divina, profética e apostólica, disso havendo sido suficientemente certificados em nossos corações e consciências cristãs pela graça do Espírito Santo ...’ [p.11]

2. baseiam-se no Espírito em sua formulação da verdade: ‘... juntaram, em boa ordem, por especial graça do Espírito Santo, tudo o que é pertinente e necessário a isso, e o puseram em livro.’ [p. 5]

3. suplicam ao Espírito para fortalecê-los na posse da verdade para eles próprios e futuras gerações: ‘... a fim de que também entre a nossa posteridade seja preservada e propagada, pelo auxílio e a assistência do Espírito Santo, a pura doutrina e confissão da fé, até a gloriosa vinda de nosso único Redentor e Salvador Jesus Cristo.’ [p. 11]

4. estão certos de que concordância e harmonia doutrinárias podem ser preservadas apenas pelo Espírito de Deus: ‘Tencionamos perseverar e permanecer, unanimemente, pela graça do Espírito Santo, nessa verdade divina, e segundo ela regular todas as controvérsias religiosas e suas explanações.’ [p. 12]

5. estão convencidos de que mesmo seus oponentes só podem chegar a concordar com a verdade infalível da palavra de Deus através do Espírito de Deus: ‘E temos, quanto a essas pessoas, a esperança de que, quando corretamente instruídas na doutrina, virão e se tornarão, conosco e com nossas igrejas e escolas, pela orientação do Espírito Santo, à infalível verdade da palavra divina.’[p. 10]” (92)

“Ameaças posteriores à Reforma à doutrina do Espírito Santo são encontradas principalmente nos vários ismos, tais como o Arminianismo, Misticismo, Racionalismo, Pietismo, Perfeccionismo e Subjetivismo. O Arminianismo sustentava que a vontade humana, não o Espírito Santo, determinava a questão da salvação pessoal. O Misticismo, com excessos em experiências espirituais e emocionais, freqüentemente se reportava ao Espírito Santo para revelações à parte da Palavra de Deus. O Racionalismo, com sua rejeição das Escrituras como norma e guia e, com isto, também da obra do Espírito Santo, levou ao ceticismo e ateísmo. O Pietismo estava relacionado ao Misticismo e freqüentemente separava o Espírito da graça dos meios da graça. O Perfeccionismo aplicava alguns princípios do Arminianismo e, por elevar o homem, tirava a importância de Deus e Seu Espírito. O Subjetivismo insistia na certeza da experiência pessoal e convicção interna, mais do que na garantia objetiva do Espírito Santo na Palavra.” (93)

“Uma coisa é certa, de que o poder espiritual da igreja está sempre diretamente ligado à importância dada à Pessoa e obra do Espírito Santo, e quando isto estava ausente, seguia-se inevitável perda. Idéias puramente abstratas nunca existiram por muito tempo e nunca exerceram grande influência. O segredo da bênção espiritual é encontrada na ênfase constante sobre os aspectos redentivos da obra do Espírito Santo em relação a Cristo, o Salvador do mundo.”5 (93)

6. O SENHOR DA VIDA E A VIDA DO CRISTÃO“O divino Instrutor da igreja cristã através das eras, atinge Seu mais elevado propósito para os

cristãos ao estabelecer e manter neles vida espiritual através de Sua palavra. ... A atividade do Espírito de Deus nas vidas individuais é da maior importância prática. Esta envolve-O com cada santo. Sem ela ninguém poderia tornar-se ou manter-se cristão. Sem ela, o amor do Pai perdoador e a graça do Filho Redentor seriam totalmente sem sentido para as vidas humanas.” (97)

“O Espírito de Deus se associa a cada ato santificado dos filhos de Deus. Através dele, eles são chamados a serem ‘concidadãos dos santos e da família de Deus’ [Ef 2.19]. Através dele, os santos de Deus aprendem os diversos aspectos da vida cristã e do serviço aceitável a Deus. Através dele, sua esperança para a salvação é fundamentada na graça de Deus, e não em vida meritória ou experiência emocional. Através dele, seres humanos tornam-se ‘carta de Cristo ... escrita não com tinta, mas pelo Espírito do Deus vivente’ (2 Co 3.3). Ele transforma a teoria cristã em vida cristã.” (99)

“A palavra grega (novo nascimento, regeneração, renovação) ocorre duas vezes no Novo Testamento. ... Mt 19.28. Paulo associa-o com a renovação moral que é efetuada pelo Espírito Santo através do Batismo ... Tt 3.5. ... A regeneração é descrita de variadas maneiras na palavra de Deus. Em um sentido estrito, conversão, novo nascimento, vivificação e iluminação são sinônimos de regeneração. ... Regeneração é também descrita como uma mudança na condição do pecador, de um estado de morte espiritual para um de vida espiritual. ... (Ef 2.4,5; 2.12,13; 1 Pe 2.9).” (100)

“Esta regeneração é um ato da graça de Deus e não uma realização do esforço humano. ... É o amor e a misericórdia de Deus que realizam nossa ressurreição espiritual (Ef 2.5; Jo 1.13; Tg 1.18; 1 Jo

5 Thomas, p. 117.

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5.11,12).” ... Tal regeneração através do amor do Pai e através do sacrifício vicário do Filho é atribuído à ação do Espírito Santo. ... (Jo 3.5,6; 6.63; 2 Co 3.3-6)”. (101,102)

“As virtudes cristãs, como o amor, mansidão e bondade encontram sua motivação na verdade que Deus nos salvou, não pelos nossos atos de justiça, mas ‘conforme Sua misericórdia ... pelo lavar regenerador e renovador do Espírito Santo, que Ele derramou sobre nós ricamente mediante Jesus Cristo , nosso Salvador’ (Tt 3.5,6). A palavra grega (renovação) parece ser original de Paulo. Ela implica não apenas nova força e vigor, mas também uma completa mudança para melhor, uma vida que é oposta à condição e práticas corruptas anteriores. Esta é tanto a missão como a realização de Deus Espírito Santo.” (102)

“O Espírito de Deus, que efetuou a regeneração do pecador, não o deixa aos próprios cuidados, não o lança fora sobre os recursos impotentes do eu pecaminoso. Isto seria eternamente fatal ao homem. Pelo contrário, o Espírito Santo toma posse do cristão. Faz dele Sua morada, Seu tabernáculo, Seu templo. Ele habita nele.” (102, 103)

“Um tal habitar de Deus no regenerado é atribuído ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.” O Pai - 1 Jo 3.24; 1 Co 3.16; 2 Co 6.16; Ef 2.22. O Filho - Cl 1.27; Ef 3.16,17; Gl 2.20; Jo 14.23. “É, entretanto, particularmente o habitar do Espírito Santo que recebe repetida e enfática proeminência nas Escrituras. A ansiedade dos apóstolos diante da iminente retirada da presença visível de seu Senhor há de ser tranqüilizada por uma tríplice promessa: o Parácleto virá para eles; estará com eles para sempre; habitará neles. A promessa do Salvador para o futuro torna-se vívida para os discípulos porque está associada a um fato conhecido e experimentado no presente. O Espírito que atualmente habita com eles permanecerá com eles para sempre. ... Jo 14.16,17. ... Esta verdade é implicada por certos símbolos do Espírito Santo, inerentes na relação existente entre Ele e o cristão, e também elaborados em numerosas passagens bíblicas.” (103,104)

“A água é um símbolo do Espírito que habita no cristão. Em Sua instrução à mulher samaritana, Jesus designa a água da vida que Ele concede como um poço de água que jorra para a vida eterna. Durante Sua pregação no templo, esta água espiritual é identificada com a fé do crente. Mas aquele que participa desta água, que crê em Cristo Jesus como seu Salvador, é usado por Deus para conceder bênçãos similares sobre outros, pois, nas palavras de Jesus, ‘de seu interior fluirão rios de água viva’ (Jo 7.38). Isto se torna possível pelo Espírito, ‘que haviam de receber os que nele cressem’ (v. 39). Sua força espiritual seria tão grande que poderiam repartir com outros.” (104)

“Outro símbolo para o Espírito, que dirige e fortalece o cristão, é aquele do selo. Um selo indica autoridade, segurança, autenticação. Entre os judeus, o selo era usado para certificar acordos contratuais (Jr 32.9,10), assim como para declarar a autoridade e salvaguardar tal autoridade (Mt 27.66). O selo imperial na tumba de Jesus é um exemplo. Mas o selo não era empregado somente para denotar posse ou propriedade. Os servos de Deus são selados com o selo de Deus, conforme o Apocalipse de João (7.3-8). Na vida do cristão, que crê e confia em Cristo através da palavra da verdade, este selar é efetuado pelo ‘Espírito da promessa’, como Paulo afirma aos Efésios (1.13). Daí que o apelo é feito aos Efésios para que não entristeçam o Espírito de Deus, no qual eles foram selados para o dia de sua redenção (4.30); eles não devem quebrar aquele selo. O selar de Deus através de Seu Espírito é uma prova pessoal aos coríntios de que tanto Paulo como eles estão estabelecidos em Cristo (2 Co 1.22).” (104,105)

“Um terceiro símbolo relacionado a este conceito do habitar do Espírito é aquele do penhor. ... Em transações comerciais, o penhor é a entrada, sendo uma garantia de que o restante da conta será paga. No reino espiritual, o Espírito Santo é identificado para os Efésios e para nós como a Garantia de nossa eterna herança até que recebamos a posse plena (1.13,14). O Espírito como penhor é ainda designado como a garantia dada por Deus para nossa imortalidade (2 Co 5.5). Nosso Deus gracioso, que nos estabelece em Cristo, unge-nos e nos sela, e nos dá o penhor do Espírito em nossos corações (1.22).” (105)

“Não são apenas os dons do Espírito que são dados ao crente, mas também o próprio Espírito. Sem Ele é impossível agradar a Deus, pois a mente carnal é inimiga de Deus. Na verdade, sem o habitar do Espírito, o homem é removido de diante de Deus e não pode ser contado entre os que pertencem a Deus (Rm 8.8,9). Por Seu morar no corpo do cristão, o Espírito de Deus faz deste um templo de Deus. Este templo é separado para a honra, culto e glória de Deus, mas é também o local onde o Espírito ativa e fortalece para uma vida mais nobre e para um nobre serviço (1 Co 3.16,17).” (106)

“Uma posição tão elevada de nossos corpos como templos do Espírito é a maior motivação para uma constante luta contra o pecado na carne, que tão facilmente ataca o filho de Deus. ... Um notável crescendo de razões é colocado por Paulo para que evitemos o pecado e nos consagremos ao serviço de Deus. Pelo fato de sermos templos de Deus, porque somos o templo ocupado de Deus, porque o Ocupante do tempo de nosso corpo é o Espírito Santo, porque este Ocupante divino é nosso, da parte do Pai, porque não pertencemos a nós mesmos, somos para glorificar a Deus em nosso corpo e em nosso espírito, que pertence totalmente a Deus (1 Co 6.19,20).” (106)

‘É este habitar do Espírito que procura determinar atitudes em relação a Deus e ao homem. Os filhos de Deus são emancipados da escravidão da lei e da carne; eles se tornaram filhos da graça e foram

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adotados para dentro da família de Deus. Como tal, eles aprendem através do Espírito que neles habita, a demonstrarem sua confiança neste relacionamento filial, através de suas petições ao Pai. O ‘Aba, Pai’, do espírito realmente se torna nosso ‘Aba, Pai’. Não apenas o Espírito incita-os à oração e intercessão, mas Ele próprio une-se a estas petições (Rm 8.15; Gl 4.6). O Espírito que vive neles também os supre com a força divina necessária para reterem o bom depósito que lhes foi confiado (2 Tm 1.4). Ele os estabelece na certeza de que Deus está neles e eles em Deus (1 Jo 3.24; 4.13). Mesmo o sofrer em nome de Cristo há de produzir constância jubilosa através do permanecer e habitar do Espírito nos amados de Deus (1 Pe 4.14). O propósito eterno de Deus em suas vidas, o coroar da existência dos cristãos, a consumação final de sua esperança na ressurreição dos corpos para uma existência gloriosa com Deus para sempre - tudo isto é realizado por Ele através do Espírito que neles habita e se constitui no penhor de Deus para eles (Rm 8.11).” )107)

“Tendo-os convertido e habitando neles como Seu templo, o Espírito de Deus também os santifica, separa-os para Seus santos propósitos. ... Emancipados da escravidão ao pecado, os cristãos irão produzir frutos de santificação. ... Entretanto, esta nova natureza e o novo homem que existe pela regeneração, não elimina ou destrói a velha natureza, o velho homem. Santificação não equivale a impecaminosidade. ... (Rm 7; Gl 5.16, 24; Rm 8.13)” (109)

“Através do ministério do Espírito no filho de Deus, virtudes agradáveis a Deus na vida cristã são produzidas: amor, alegria, paz, paciência, bondade, benignidade, fidelidade, mansidão, domínio próprio (Gl 5.22,23). ... estas não são o produto de uma irrupção emocional e não oferecem compensação para qualquer complexo de inferioridade espiritual. Pelo contrário, são os mais elevados aspectos do caráter cristão; elas representam os frutos do Espírito em nossos corações e vidas; constituem-se tanto no propósito como no efeito de nossa santificação.” (109,110)

“O Espírito regenera, habita e santifica os crentes, mas também os une por um laço indissolúvel em um corpo (1 Co 12.13), a santa igreja cristã. As características distintivas desta unidade no Espírito são um Senhor - Pai, Filho e Espírito Santo - uma fé, um Batismo, um corpo, uma esperança (Ef 4.4-6). Para o bem desta unidade, o Espírito concede os dons necessários (1 Co 12.11), tanto os que são gerais e permanentes, como aqueles que são extraordinários e temporários. ... Para a continuação desta unidade, o Espírito estabeleceu e ainda guia o ministério da igreja (Jo 16.13; At 13.2; 20.28), instrui seus membros (Ap 2.7) e providencia expansão e crescimento (At 9.31).” (110)

“E há glória, glória sem limite, para cada um dos santos de Deus neste Espírito de Deus, que é doador da vida. Dúvidas agonizantes sobre a salvação eterna são removidas pela inviolável promessa divina, de que são ‘selados’ pelo Espírito Santo ‘para o dia da redenção’ (Ef 4.30). Enervante ansiedade sobre o ser membro da família de Deus é afastada pela segurança de que o próprio Espírito assinou os papéis de adoção nos quais Ele testifica ‘para o nosso espírito que somos filhos de Deus’ (Rm 8.16). Preocupação sem fim sobre sua associação com Deus é dissipada pela garantia que Ele habita neles, pois ‘nos deu do Seu Espírito’ (1 Jo 4.13). Desânimo em sua fraqueza de caráter é dissipado pela prontidão do Espírito mesmo de fortalecê-los com amor, alegria, paz, paciência, bondade, benignidade, fidelidade, mansidão e domínio próprio (Gl 5.22,23). Sua petições desajeitadas, sem forma e, por vezes, sem fé, são substituídas pelas orações aceitáveis a Deus porque elas são ensinadas pelo Espírito, que também se une a eles ‘com gemidos inexprimíveis’ (Rm 8.26). Dúvidas sobre sua ressurreição, nutridas pela lógica e pela razão, são vencidas pela eterna garantia divina: ‘Aquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos, vivificará também os vossos corpos mortais, por meio de Seu Espírito que em vós habita’ (v. 11). A obscuridade de um futuro vago e aparentemente sem fim é iluminada pelo brilho da realidade presente, pois o legado atual de Deus para Seus santos ‘nada menos que Seu Espírito Santo. Este que tem sido tão vigorosa e demonstravelmente presente em suas vidas, constitui-se já agora no pagamento de entrada da parte de Deus, como Sua garantia (penhor) de que o preço de sua redenção foi completamente pago (2 Co 5.5) e que a eterna glória de Deus já iniciou neles e para eles.” (110,111)

“Assim, a dinâmica única e sem comparação na suas vidas de ‘concidadãos dos santos e membros da família de Deus’ é nenhum outro senão o vivificante Espírito de Deus. Não nos admiramos, então, que Paulo ao mesmo tempo o designa como a Vida e o curso da vida. ‘Se vivemos no Espírito, andemos também no Espírito’ (Gl 5.25), tendo nosso rumo e passo estabelecidos pelo Deus que quer ser bem conhecido e bem usado.” (111)

(Traduzido e resumido por Gerson Luis Linden, Agosto de 1997)

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A Ação do Espírito Santo e a Missão6

Um dos temas que mais cativam os missiólogos da atualidade é a relação entre o cristianismo e outras religiões. Neste artigo, busca-se tratar do assunto a partir de uma perspectiva da doutrina da Trindade e, particularmente, do 3o artigo do Credo, a pessoa e obra do Espírito Santo. Há um propósito comum entre os teólogos de missão hoje, de colocar a missio hominum, expressa pelas atividades da igreja, dentro do escopo da missio Dei. A missão não pode mais ser vista como uma ação da igreja, à parte do plano da salvação do Deus Triúno. De fato, tal enfoque é necessário, pois aponta a relação fundamental entre Cristologia, Soteriologia, a doutrina da Trindade e Eclesiologia. No entanto, tal abordagem não é nova. As Confissões Luteranas, escritas a mais de 4 séculos, trazem uma contribuição importante. Por exemplo, no Catecismo Maior, de Lutero, na 2a

parte, do Credo, seções 63-65 (pg. 456), com uma excelente apresentação do plano da salvação no contexto da doutrina da Trindade:

Pois o mundo inteiro, ainda que com toda diligência buscou saber o que Deus é e o que tem em mente e faz, todavia jamais logrou alcançar qualquer dessas coisas. Mas aqui tens tudo da maneira mais rica. Porque aqui, em todos os três artigos, ele mesmo revelou e patenteou o mais profundo abismo de seu coração paterno e de seu amor totalmente inexprimível. Pois que nos criou exatamente para nos redimir e santificar, e, além de nos dar e conceder tudo quanto há no ceú e na terra, ainda nos deu o seu Filho e Espírito Santo, a fim de por eles levar-nos a si mesmo. Pois, conforme explicado acima, jamais poderíamos chegar a conhecer o favor e a graça do Pai a não por intermédio de Cristo SENHOR, que é espelho do coração paterno, sem o qual nada vemos senão um juiz encolerizado e terrível. Mas também de Cristo nada poderíamos saber, se não tivesse sido revelado pelo Espírito Santo. (ver também FC - DS II, 49,50 [pg. 569])

A missio Dei, na perspectiva das Confissões Luteranas, pode ser descrita como um modelo de missão da “história da salvação”, que segue a seqüência; Deus - igreja - mundo. (Outra opção seria o modelo da “história como salvação”, que inverte a ordem de igreja - mundo, fazendo da missão da igreja uma obra de humanização ética e tirando a centralidade da igreja como local onde Deus age por palavra e sacramentos.) A missão de Deus está emoldurada por dois pilares: por um lado, o evento da criação e queda do homem; do outro lado, o evento escatológico do julgamento de Cristo sobre a humanidade. Deus, em seu amor, estende a toda a humanidade sua salvação. Por isso Deus envia seu Filho, para redimir toda a humanidade com a obra da cruz. Deus agora continua a realizar seu plano, enviando o Espírito Santo, cujo ofício é aplicar a obra de Cristo a todos os crentes, reunindo-os na igreja. Esta se torna o local da obra santificadora do Espírito Santo, atuando pelos meios da graça. É neste sentido que se pode entender o dito extra ecclesiam nulla salus (“fora da igreja não há salvação”).

Assim, entendendo a missão de uma perspectiva trinitária, ela se coloca dentro do 3 o artigo do Credo. O Espírito Santo é o Senhor da missão e tem uma missão inteiramente soteriológica, trazendo o tesouro da salvação em Cristo, pela proclamação da palavra e a administração dos sacramentos. Sua obra pode, pois, apresenta três aspectos, nesta seqüência: (1) Ele media a dádiva da salvação através do perdão dos pecados (justificação); (2) edifica e reúne a igreja na terra; (3) equipa a igreja para a contínua proclamação da palavra. Assim, o espírito Santo é a força dinâmica no plano da salvação divina.

Assim, uma tentativa de definição da missio Dei pode ser sugerida: “A missio Dei é a atividade do Deus Triúno de redenção e reconciliação na história, motivado por seu amor pelo mundo inteiro, atividade esta fundamentada na obra expiatória de Jesus Cristo e executada pelo Espírito Santo de Cristo, através dos meios da graça, pela qual Deus justifica o homem, livra-o da rebelião, pecado e morte, sujeita-o sob seu reino e o conduz, com a comunidade redimida, ao objetivo final na história.” Deste ponto de vista teocêntrico e trinitário, a missão da igreja é o resultado lógico, não uma ampliação ilegítima. As tarefas de ensino, proclamação e administração dos sacramentos, tendo em vista as almas perdidas, pertence à própria essência da igreja e, ao mesmo tempo, determina sua vocação missionária, tendo o cuidado de lembrar que sua falha ou demora em buscar os perdidos não desqualifica os crentes como corpo de Cristo. À medida em que a igreja atua na sua tarefa, duas fronteiras são alcançadas: uma que existe entre a fé e a descrença e a outra, que separa fisicamente a communio sanctorum daqueles que estão fora da igreja. Estes são dois aspectos da existência da igreja, que podem ser definidos, de forma geral, como crescimento espiritual e físico ou, falando em termos da obra do Espírito Santo, Sua missio ad intra de edificar e fortalecer a communio sanctorum e Sua missio ad extra, de fazê-la crescer numericamente.

Este é o conceito clássico da missio Dei, que afirma a centralidade da igreja e a necessidade da salvação para os perdidos. Este conceito tem recebido modificações, a um ponto tal que este assunto acaba se tornando um ponto de confusão e divisão dentre os estudiosos de missão. Outro ponto a citar é o fato de que

6 Klaus Detlev Schulz, Tension in the Pneumatology of the Missio Dei Concept”, Concordia Journal 23/2 (Abril 1997): 99-107. Traduzido e resumido por Gerson Luis Linden (1997).

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muitos dos estudiosos que apropriadamente relacionam a missão ao 3o artigo do Credo, têm atacado o ofício e obra do Espírito Santo, no que ela está ligada a Cristo e a igreja. Por exemplo, nas palavras do missiólogo Johannes Verkuyl:

O Espírito Santo está ativo de forma latente de tantas maneiras entre aqueles povos que vivem no contexto de outras tradições religiosas. Será possível a qualquer um de nós crer que podem existir, em algum lugar, seres humanos que não foram tocados pela mão de Jesus Cristo, que vai até eles em reconciliação? Não deveríamos nós aceitar o fato de que a luz do Espírito Santo brilha nas trevas, mas as trevas não a podem apagar? (Contemporary Missiology, Eerdmans, 12987, p. 359,360)

Estas palavras de Verkuyl ecoam o que já fora dito na seção Gaudium et Spes do Vaticano II: “O Espírito de Deus, que, com admirável providência, dirige o curso dos tempos e renova a fé na terra, assiste este desenvolvimento.” A mesma idéia está no documento sobre Missão e Evangelismo do Concílio Mundial de Igrejas, que diz: “o Espírito de Deus está operando constantemente de formas que vão além do entendimento humano e em lugares onde menos esperamos.” Afirmações como estas pretendem, por meio de uma “pneumatologia universal”, estabelecer a vontade salvífica de Deus e a possibilidade de salvação fora da igreja (extra muros ecclesiae). No verdade, é o caráter cristocêntrico que o Espírito Santo recebe e Sua atuação na palavra e sacramentos que se constituem na pedra de tropeço. Há teólogos que buscam, mais e mais, derrubar estes princípios cristãos, antigamente considerados absolutos, de modo a ampliar a obra do Espírito Santo para dentro de outras religiões. Neste contexto, voltam os ataques ao filioque (“e do Filho”) no Credo Niceno. Alguns estudiosos contemporâneos afirmam que a introdução do filioque traz alusões subordinacionistas na doutrina da Trindade. Pois enquanto a obra do Espírito Santo permanece cristocêntrica, e não recebe um lugar independente do Pai e do Filho, não se pode atribuir evidência de Sua obra em outras religiões.

Por certo, uma tal pneumatologia universal alarga o conceito da missio Dei. Alguns estudiosos dão suporte a esta versão cunhando novos modelos, tais como o de “diálogo inter-religioso”. Este modelo não abole a atividade missionária da igreja, mas, partindo da idéia que há da parte de Deus uma base comum de aceitação de cristãos e não-cristãos, sua proclamação passa a ser de uma natureza dialógica, onde se procura descobrir e afirmar a atividade do Espírito dentro de outras religiões. Cristo é oferecido como o modelo normativo do plano da salvação de Deus e é apresentado como um corretivo para a atividade do Espírito em outros grupos religiosos. No entanto, a aceitação dele por parte daquele com quem se dialoga não é o objetivo deliberado da igreja, mas tão somente uma conseqüência agradável resultante do diálogo.

Duas afirmações incompatíveis acabam sendo colocadas: há uma vontade salvífica universal de Deus e a possibilidade de salvação fora da igreja versus a necessidade da igreja na missão divina, pela qual o Espírito Santo media a salvação. Tal paradoxo se torna agudo para os teólogos, em uma sociedade de crescente diversidade religiosa e apresentação de muitas verdades conflitantes. Veja-se, por exemplo, as palavras de Paul Knitter:

Podemos nós estar certos de que a vontade salvífica de Deus, expressa em Jesus Cristo, nunca fará uso de tais formas de mediação pré-cristãs? E se negamos isto, não estaremos negando ... a liberdade da onipotência de Deus? Para evitar um mal entendido, não estamos afirmando que as religiões devem ser e sempre são “caminhos de salvação”, mas apenas que não podemos excluir a possibilidade - ou a probabilidade - delas serem instrumentos da vontade salvífica de Deus. (Towards a Protestant Theology of Religions, N.G. Elwert Verlag, 1974, p. 222)

Para muitos teólogos, parece haver uma assimetria ou mesmo uma contradição se alguém afirma a voluntas salvifica como sendo universal, mas ao mesmo tempo afirmando que os efeitos desta vontade só podem ser garantidos em Jesus Cristo. Para um paradigma confessional luterano, no entanto, é exatamente assim que ocorre. A vontade salvífica de Deus é universal, todavia é revelada e efetuada unicamente através de Jesus Cristo. Qualquer outra abordagem, portanto, que tente explorar, pela razão humana, a obra da vontade de Deus fora de Cristo, deve ser desconsiderada. Como dizem as Confissões:

Disso não devemos julgar de acordo com nossa razão, nem segundo a lei ou por qualquer aparência exterior. Também não devemos atrever-nos a investigar o abismo secreto e oculto da predestinação divina, mas devemos atentar na vontade revelada de Deus. (FC - DS XI, 26)

Com esta vontade revelada de Deus é que devemos ocupar-nos, para que a sigamos e nela sejamos diligentes, porque o Espírito Santo confere graça, poder e capacidade por intermédio da palavra pela qual nos chama. Não devemos perscrutar o abismo da oculta presciência de Deus ... Ocupa-te primeiro com Cristo e Seu evangelho. (FC - DS XI, 33)

É preciso ter em mente que a vontade salvífica de Deus é revelada na Sua palavra. Ele coloca Sua intenção salvífica em prática ao ordenar que Sua palavra seja proclamada, em Lei e Evangelho, o que traz arrependimento e perdão, operados pelo Espírito Santo. É preciso igualmente afirmar que a proclamação, e não o diálogo, é a tarefa da igreja. Isto leva não a um ato meramente cognitivo de reconhecimento, como o modelo de

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“diálogo inter-religioso” parece sugerir, mas a uma recepção e aceitação da obra redentora de Deus em Cristo. A própria natureza do evangelho aponta para isto. Ele não somente transmite informação, mas é uma palavra com o poder e a autoridade divina, para criar a fé e conceder salvação.

O Espírito Santo - ênfases

1. Sua presença constante na Escritura, como Deus em ação, traz sobre a Igreja a necessidade de uma confissão clara a respeito de Sua pessoa e obra.

2. A atuação do Espírito Santo sempre está relacionada ao povo de Deus. Ele é o Espírito que guia, orienta, revela, sustenta, ordena, proíbe, limita, direciona, une, capacita, age.

3. Dada a atuação do Espírito Santo, a Igreja de Deus é certificada de que não está só no mundo. Ela é o povo de Deus, conduzida pelo Espírito Santo.

4. O Novo Testamento acrescenta explicitamente um elemento que serve como chave para o entendimento da obra do Espírito Santo - Ele atua para que a obra de Cristo seja conhecida e desfrutada pelas pessoas:

Jo 16.13,14 - “Ele me glorificará”1 Jo 2.27 - a unção de Deus [Espírito Santo] nos ensina a permanecer nele [Cristo]1 Co 12.3 - “Ninguém pode dizer; Senhor Jesus! senão pelo Espírito Santo.”Rm 5.5 - Ele derrama sobre nós o amor de Deus. Contexto: obra de Cristo.

5. O Espírito anto estabelece o advento de um novo tempo, formado sobre a obra de Jesus. Ele é o “penhor” [garantia] para o povo de Deus, de que este tem a herança de Deus como certa. Ele é o “selo” sobre o povo, marcando-o como propriedade de Deus.

2 Co 1.22; 5.5; Ef 1.13,14; 4.3

DONS ESPIRITUAIS7

DONS ESPIRITUAIS E INVENTÁRIOS8 DE DONS ESPIRITUAIS

Introdução

C. Peter Wagner, que já foi chamado “o mais articulado porta-voz do uso dos dons espirituais no evangelismo,” afirma:9

Uma coisa relativamente nova aconteceu à igreja de Jesus Cristo na América durante a década de setenta. A terceira Pessoa da Trindade veio para o que é Seu, por assim dizer. Sim, o Espírito Santo sempre esteve lá. Credos, hinos, liturgias têm atestado o lugar central do Espírito Santo na fé cristã ortodoxa. Teologias sistemáticas através dos séculos têm incluído seções de “pneumatologia”, afirmando assim o lugar do Espírito Santo no pensamento cristão.

Mas raramente, se é que alguma vez, na história da igreja tem se estendido sobre o povo de Deus um interesse tão disseminado, de passar dos credos e teologias para uma experiência pessoal do Espírito Santo na vida diária, em um grau como agora estamos testemunhando. A faceta mais proeminente desta nova experiência do Espírito Santo são os dons espirituais.10

Este interesse renovado na pessoa e obra do Espírito Santo, e uma crescente ênfase no ensino da Escritura com respeito aos “dons espirituais”, também tem sido evidente dentro do “The Lutheran Church - Missouri Synod” durante as últimas décadas. Diversos esforços e programas de evangelismo, mordomia e crescimento da

7 Relatório da Comissão de Teologia e Relações Eclesiais da Lutheran Church - Missouri Synod; Setembro de 1994; Traduzido por Gerson Luis Linden em Julho de 1999.8 Traduzimos “inventories” em todo o trabalho como “inventários”. A idéia é de testes aplicados aos membros da igreja, para que estes descubram seus dons. N. do T.9 Delos Miles, Church Growth, A Mighty River (Nashville: Broadman Press, 1981), 129.10 C. Peter Wagner, Your Spiritual Gifts Can Help Your Church Grow (Ventura, Calif.: Regal Books, 1979), 19.

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igreja, em uso por todo o Sínodo em anos recentes, têm dado atenção ao lugar dos “dons espirituais” na vida e crescimento da igreja e têm tentado auxiliar as pessoas a identificarem e utilizarem tais dons.

Em seu relatório de 1987, sobre Evangelismo e Crescimento da Igreja a Comissão de Teologia e Relações Eclesiais, afirmou:

É importante que a Igreja Luterana do Sínodo de Missúri mantenha uma clara e escriturística posição a respeito dos dons espirituais. Por um lado, pastores e congregações deveriam encorajar os seus membros a receber, com gratidão, os dons que Deus em sua graça oferece, e então usá-los para a sua glória e para a edificação da sua Igreja. Por outro, os cristãos devem reconhecer que Deus distribui dons espirituais assim como Ele deseja e de acordo com as necessidades da sua Igreja.11

Fazendo referência a este parecer, a Convenção Sinodal de 1989 observou que “preocupações têm sido expressas sobre o uso de inventários de dons espirituais e sobre o assunto geral dos dons espirituais”. A Convenção recomendou ao Sínodo o parecer da CTRE “para referência e orientação” e encorajou o Sínodo a “continuar a fazer uso do documento e dos princípios que ele fornece com respeito aos dons espirituais.” Ao mesmo tempo, o Sínodo solicitou formalmente à CTRE que “estudasse com mais detalhe o assunto dos dons espirituais e especificamente o uso de inventários de dons espirituais e trouxesse um parecer com os resultados dos estudos para a Igreja.”12

É em resposta a esta solicitação específica do Sínodo que a CTRE apresenta este parecer sobre “Dons Espirituais e Inventários de Dons Espirituais”. O parecer inicia com uma “Breve História dos inventários de Dons Espirituais.” Seguida por uma “Análise Bíblica dos Dons Espirituais” na parte 2. A parte 3 do parecer oferece “Uma Teologia dos Dons e Chamados na Igreja”, que procura colocar o tópico dos dons espirituais em sua perspectiva própria, no contexto dos três artigos do Credo Apostólico.

I. Uma Breve História dos Inventários de Dons Espirituais

A preocupação dos cristãos em descobrir e desenvolver seus dons espirituais parece ser um fenômeno relativamente recente. C. Peter Wagner refere-se a ela como uma “coisa nova”.13 Historicamente a ênfase nos dons espirituais coincide com a surgimento de dois importantes movimentos teológicos e eclesiásticos da segunda metade do século XX. Ambos movimentos advogaram enfaticamente a necessidade de uma renovação da igreja e identificaram os dons espirituais como uma das chaves para a renovação da igreja.

O primeiro movimento que ajudou a criar e contribuir para o interesse atual nos dons espirituais foi o movimento pentecostal, do qual brotou o movimento neopentecostal ou carismático. Este último tem se mostrado ser um movimento mais interdenominacional que o primeiro. Durante as décadas de sessenta e setenta, o movimento neopentecostal encontrou seu caminho dentro de algumas das principais denominações cristãs, como o catolicismo romano, luteranismo e presbiterianismo. Refletindo sobre as características destes movimentos, Wagner observou que “a faceta mais proeminente desta nova experiência do Espírito Santo são os dons espirituais.”14 De acordo com sua pesquisa, o maior volume de literatura sobre dons espirituais apareceu desde 1970. Na verdade, ele afirma, mais tem sido escrito sobre este assunto desde a Segunda Guerra Mundial do que nos 1945 anos anteriores juntos.15 Falando de forma genérica, os movimentos neopentecostal e carismático tem enfatizado grandemente os assim chamados dons miraculosos ou “sinais”, especialmente a glossolalia (falar em línguas), curas e poderes milagrosos. Estes já foram discutidos em dois pareceres anteriores da CTRE.16

O segundo movimento que contribuiu para um intenso interesse no assunto dos dons espirituais - embora por razões ligeiramente diferentes - é o assim chamado Movimento do Crescimento da Igreja, que muitos identificam como tendo sido originado em sua forma contemporânea no Seminário Fuller, na Califórnia.17 11 Cf. Evangelism and Church Growth with Special Reference to the Church Growth Movement. Em Português: Evangelização e Crescimento da Igreja - com Especial referência ao Movimento “Church Growth” . Parecer da Comissão de Teologia e Relações Eclesiais da Igreja Luterana - Sínodo de Missúri, 1987, traduzido por Eleonora I. R. Kautzmann, p. 37.12 Resolução 3-16, “Estudar o Assunto dos Dons Espirituais”, 1989 Convention Procedings , 119.13 Wagner, 26.14 Ibid., 19.15 Ibid., 27.16 The Charismatic Movemente and Lutheran Theology, Parecer da Comissão de Teologia e Relações Eclesiais da Igreja Luterana - Sínodo de Missúri, 1972 (um extrato do mesmo foi traduzido para o Português por Vilson Scholz, publicado no livrete Dons Carismáticos , Concórdia Editora, 1975) e The Lutheran Church and the Charismatic Movement: Guidelines for Congregations and Pastors , Parecer da Comissão de Teologia e Relações Eclesiais da Igreja Luterana - Sínodo de Missúri, 1977 (Traduzido por Arnaldo Schüler - Movimento Carismático , Concórdia Editora, 1977).17 Cf. Evangelism and Church Growth .

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Diferentes daqueles envolvidos no neopentecostalismo, os seguidores do Movimento Crescimento da Igreja tendem a não enfatizar os assim chamados dons de “sinais”. Em lugar disso, enfatizam os dons menos espetaculares listados na Bíblia. Também diferentemente dos neopentecostais, que enfatizam uma segunda experiência, separada, do Espírito Santo, manifestada por dons, os proponentes do Movimento do Crescimento da Igreja assumem que certos dons já foram dados a todos os cristãos em algum ponto do tempo. Eles mantêm que todo cristão possui ao menos um dom e que muitos têm diversos dons, em variados números, graus e variações. Esta é a base para a idéia de que se a igreja consegue mobilizar seu povo para descobrir, desenvolver e utilizar seus dons específicos, não há como evitar que ela cresça em número e vitalidade.

Foi o Movimento do Crescimento da Igreja que causou o desenvolvimento e uso dos inventários de dons espirituais. Estes são instrumentos designados para auxiliar a igreja em descobrir e implementar os dons espirituais de seus membros. O primeiro a ganhar ampla popularidade foi o “Questionário Houts Modificado”, desenvolvido pelo Instituto Fuller para Evangelismo no Seminário Fuller. Este inventário foi modificado para uma audiência luterana, por David Hoover e Roger Leenerts em um programa chamado18 Enlightened with His Gifts.19 As diversos inventários foram mais adiante adaptados para uso por uma congregação individual em St. Paul, Trenton, Michigan e para uso ao nível de distrito no Texas. Este último serviu de modelo para o “Estudo de Renovação Pessoal”, parte de um mais amplo processo de educação na mordomia, conhecido como “His Love - Our Response”20. Este programa proporcionou uma ampla exposição dos inventários de dons espirituais entre o laicato da Igreja Luterana - Sínodo de Missúri.21 Outro programa que foi usado por congregações do Sínodo é, Gifted for Growth 22 preparado pelo Instituto para o Crescimento da Igreja, de Corunna, Indiana.23

Além de trabalharem sobre o “Questionário Houts Modificado”, na formulação de questões e avaliações, cada um dos programas acima depositam-se fortemente sobre a apresentação de C. Peter Wagner dos imperativos bíblicos e da base teológica para os inventários de dons espirituais, em seu Your Spiritual Gifts Can Help Your Church Grow 24. Esta dependência fica evidenciada pelas expressões de dívida a Wagner nos prefácios, forte dependência em relação à sua definição e enumeração de dons espirituais, e o uso dos passos propostos por Wagner para descobrir dons espirituais. A observação de Wagner de que há muita repetição na literatura sobre este assunto, também é verdadeira no que se refere a estes programas.25 Dada a importância do livro de Wagner em providenciar para estes programas uma base bíblica e hermenêutica para dons espirituais, muito do que segue estará interagindo com sua obra.

A. Um Paradigma para Entender os Dons Espirituais

É de certa forma surpreendente que o ponto de partida de Wagner para a discussão dos dons espirituais não é a doutrina do Espírito Santo, mas a doutrina da igreja. Ao invés de focalizar os livro de Atos e o derramamento do Espírito (como no Pentecostalismo), Wagner insiste que a chave hermenêutica parta descobrir o ensino bíblico sobre os dons espirituais é Rm 12.4, onde Paulo descreve a igreja como um corpo composto de muitos membros. No corpo cada cristão tem um lugar (cf. 1 Co 12.18). Com base na metáfora paulina da igreja como um corpo físico feito de diferentes membros e funções, o membro da igreja é encorajado a perguntar: “Onde eu me encaixo?” “Como posso saber se sou um ouvido ou uma mão ou alguma outra parte do corpo?”26 Os inventários de dons espirituais são destinados a auxiliar na resposta a estas questões.

O uso da metáfora do “corpo” como base para o entendimento dos dons espirituais também é característico de um número de programas em uso dentro do Sínodo de Missúri. Enlightened with His Gifts explica que os dons espirituais auxiliam a responder as questões “Como eu me encaixo?” “Qual é minha parte na igreja?” “O que posso fazer?” “O que devo fazer?” “Qual é o meu papel na tarefa de ‘fazer discípulos de todas as nações’?”27 De forma semelhante, Gifted for Growth afirma: “O corpo de Cristo é o conceito usado em todas as três principais seções do tratamento neotestamentário sobre os dons espirituais.”28 Cada cristão tem 18 “ Iluminado com Seus Dons” - em programas próprios da Igreja nos EUA, optamos por conservar o título original. N. do T.19 David W. Hoover e Roger W. Leenerts, Enlightened with His Gifts: A Bible Study on Spiritual Gifts (St. Louis: Lutheran Growth, 1979.). 20 “ Seu Amor - Nossa Resposta”. 21 Cf. Robert W. Schaibley, “Measuring Spiritual Gifts,” Lutheran Quarterly 3 (Inverno 1989): 423- 41.22 “ Dotado para Crescimento.”23 Kent R. Hunter, Gifted for Growth: Na Implementat ion Guide for Mobilizing the Laity (Corunna, Ind: The Church Analysis and Learning Center, 1983).24 “ Seus Dons Espirituais Podem Ajudar Sua Igreja Crescer”.25 Wagner, 27.26 Ibid., 36.27 Hoover e Leenerts, 6.28 Hunter, 151.

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uma função e cada dom é necessário. Com base nesta afirmação, coloca-se uma ênfase sobre a necessidade de organizar os cristãos conforme seus dons. Como Hunter conclui, “os dons podem revolucionar radicalmente a maneira como a igreja atua.”29

B. O Propósito dos Dons Espirituais

Qual é o propósito de ajudar cada pessoa a encontrar um lugar na igreja? Visto dentro do contexto da igreja como um corpo com muitos diferentes membros - sendo que cada um deles precisa ser saudável e em funcionamento para o corpo poder ser saudável e crescer - os dons espirituais são vistos como uma chave para a mobilização dos membros. Esta mobilização, por seu lado, estimula o crescimento do corpo. Este ponto está expresso no próprio título do livro de Wagner: Your Spiritual Gifts Can Help Your Church Grow.30 “Ignorância a respeito dos dons espirituais”, ele adverte, “pode ser uma causa principal do pequeno crescimento da igreja hoje.”31 Opostamente, “o conhecimento dos dons espirituais ... é a chave para o conhecimento da organização da igreja.”32

Enfatizando a conexão entre os dons e o crescimento, Kent Hunter entitula seu livro Gifted for Growth.33 Na Introdução deste livro, Hunter afirma que “Os dons espirituais são um meio para se chegar a um fim: a missão e o ministério34 do corpo de Cristo.”35 Os dons espirituais precisam ser vistos dentro de um “contexto bíblico de crescimento.” Na Conclusão do livro, ele oferece uma palavra de cautela e uma de encorajamento. “O uso dos dons espirituais,” diz, “não é garantia que sua igreja vá crescer. Outros fatores podem ser mais fortes para impedir o crescimento.” No entanto, “em noventa e nove porcento das igrejas cristãs, a mobilização do povo de Deus de acordo com o plano de Deus sobre os dons trará uma extraordinária mudança no crescimento interno e externo da igreja.”36 Os autores de Enlightened with His Gifts também afirmam, ainda que não tão enfaticamente, “os dons espirituais têm um papel importante no crescimento da igreja.”37

Além de contribuírem para o crescimento da igreja, a descoberta dos dons espirituais (assim se diz) enriquecerá a vida do cristão. “Antes de mais nada,” diz Wagner, “você será um cristão melhor e mais capaz de permitir que Deus faça sua vida ter valor para Ele.”38 Outros livros e guias que estão mais dirigidos para uma audiência luterana suavizam esta afirmação de Wagner, sem rejeitar sua tese fundamental. O autor de Gifted for Growth testifica: “Para mim, tem sido um dos empreendimentos de crescimento mais compensadores de minha vida cristã.”39 Da mesma forma, Enlightened with His Gifts sugere que os dons espirituais “são uma das chaves para a maturidade espiritual.” Os autores têm a cautela de dizer que apesar de que os dons espirituais podem ser “uma chave”, não são “a chave” para um desenvolvimento espiritual do cristão.40 Mais adiante, os autores enumeram diversos outros benefícios que seguem da descoberta dos dons espirituais, tais como trazer “direção” para a vida da pessoa no reino de Deus e capacitar as pessoas e congregações e “virem para a vida.”41

Wagner vai adiante, afirmando que a descoberta e uso dos dons espirituais beneficiarão não apenas os cristãos individuais, mas a igreja como um todo.42 Enlightened with His Gifts concorda: “Todos os membros da igreja serão capazes de trabalhar juntos em amor, harmonia e eficiência ... a descoberta, desenvolvimento e uso dos dons espirituais farão muito para eliminar o orgulho, a falsa humildade e a inveja.” Além disso, “a igreja amadurecerá” e com tal maturidade, “a igreja irá crescer.”43 Finalmente, Wagner observa que a “coisa mais importante que o conhecimento dos dons espirituais faz é que glorifica a Deus.”44 Enlightened with His Gifts ecoa o sentimento de que “Deus será glorificado.”45

29 Ibid., 152.30 “ Seus Dons Espirituais Podem Fazer Sua Igreja Crescer.”31 Wagner, 32.32 Ibid., 38,39.33 “ Dotado para Crescimento.”34 Não traduzimos a expressão “the long haul” antes de “a missão e o ministério”. N. do T.35 Hunter, 3.36 Íbid., 152.37 Hoover e Leenerts, 5.38 Wagner, 49.39 Hunter, 4.40 Hoover e Leenerts, 7.41 Ibid., 65.42 Wagner, 50.43 Hoover e Leenerts, 65; cf,. Wagner, 50.44 Wagner, 51.45 Hoover e Leenerts, 66.

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C. Definição dos Dons Espirituais

O que é um dom espiritual? Visto que a definição dada por diversos autores seguem quase que literalmente aquela dada por Wagner, a seguinte servirá como um ponto de partida: “Um dom espiritual é um atributo especial dado pelo Espírito Santo para cada membro do corpo de Cristo, conforme a graça de Deus, para uso dentro do contexto do corpo.46 Diversos aspectos desta definição são dignos de nota. Primeiro, é enfatizada a importância do corpo como o contexto para a discussão sobre os dons espirituais. Segundo, um dom espiritual é definido como um “atributo especial”. Outros se referem a ele como uma “habilidade especial.” Como veremos, o termo “dom espiritual” quase sempre se refere a uma capacidade ou habilidade particular que alguém recebeu. Terceiro, cada cristão recebeu ao menos um dom. Quarto, estes dons são dados pelo Espírito Santo em algum ponto específico no tempo, simultaneamente com ou subseqüente à conversão da pessoa.

Pode ser de ajuda para dar maior precisão a esta definição, examinando aquelas coisas que geralmente não são consideradas como dons espirituais. Primeiro, dons espirituais não são equivalentes a talentos naturais. Isto é assim porque, Wagner insiste, “ter talentos naturais não tem diretamente nada a ver como ser cristão ou membro do corpo de Cristo.”47 Assim, por exemplo, habilidades tais como aquelas necessárias para consertar automóveis, cozinhar e trabalhar não são dons espirituais. Mesmo se tais dons naturais forem dedicados aos serviço do Evangelho, eles não deveriam ser considerados dons espirituais. Wagner diz que os dons espirituais não devem ser considerados como “talentos naturais dedicados.” Ele concede, porém, que em alguns casos (“não em todos, de maneira nenhuma”) Deus pode transformar um talento natural em um dom espiritual. Como um exemplo, ele cita o vendedor que, uma vez convertido, tornou-se um dos mais bem-sucedidos evangelistas no Sul da Califórnia.48

Segundo, dons espirituais não são o mesmo que o fruto do Espírito (Gl 5.22,23). Esta última categoria tem mais a ver com qualidades éticas que todos os cristãos possuem em comum e devem apresentar. Embora não sejam idênticos aos dons espirituais, Wagner crê que eles sejam pré-requisito para o uso apropriado dos dons espirituais. Possuir dons espirituais sem o fruto do Espírito é comparado a ter pneus de automóvel sem qualquer ar para inflá-los. O carro não irá muito longe tão cedo. Ao passo que todos os cristãos devem apresentar o fruto do Espírito, diferentes dons espirituais são dados a pessoas diferentes.49

Terceiro, dons espirituais não devem ser entendidos como uma função ou ministério específicos. Por exemplo, oração, fé, oferta e serviço são funções que todos os cristãos devem executar. A diferença entre um dom e uma função pode ser ilustrada pela referência à função que uma pessoa deve cumprir dentro e fora do casamento. Apesar de que todos os cristãos têm a função de permanecer castos até que casem, outros têm o dom do celibato, e assim não têm o desejo de casar. Da mesma forma, todos os cristãos têm a fé, mas nem todos têm o dom da fé heróica. Todos têm a função de ofertar, de seus recursos para a missão da igreja, mas nem todos têm o dom de ofertar acima e além do que é esperado de qualquer pessoa.

D. Todos Têm um Dom

Como observado acima, uma das premissas básicas dos inventários de dons espirituais é a convicção de que cada cristão recebe ao menos um dom. Isto é consistente com, e brota do paradigma da igreja como um corpo humano. Cada cristão é um membro do corpo de Cristo e tem um papel a exercer dentro do corpo. Assim, cada cristão recebeu um dom que define o lugar daquela pessoa dentro do corpo e é especialmente apropriado para desempenhar as funções daquele papel, seja como um dedo, um pé, uma mão ou um braço. Um dos textos bíblicos usados para fundamentar a afirmação de cada um tem ao menos um dom é 1 Pe 4.10: “Servir, uns aos outros, cada um conforme o dom que recebeu, como bons despenseiros da multiforme graça de Deus.” Outro texto freqüentemente citado é 1 Co 12.7, onde Paulo diz: “A manifestação do Espírito é concedida a cada um, visando a um fim proveitoso.” Embora todo cristão tem ao menos um dom, muitos podem bem possuir diversos dons ao mesmo tempo e em diversas “combinações de dons.”50

E. Descobrindo, Desenvolvendo e Usando os Dons EspirituaisA descoberta e uso dos dons é vista pelos defensores dos inventários de dons espirituais como a chave

para a saúde da igreja. Wagner diz: Penso que não estou errado em afirmar que um dos principais exercícios espirituais para qualquer cristão é descobrir, desenvolver e usar seu dom espiritual. Outros exercícios espirituais podem ser igualmente importantes: culto, oração, leitura da palavra de Deus, alimentar o faminto, ou o que você

46 Hoover e Leenerts, 66.47 Ibid., 86.48 Ibid., 87.49 Ibid., 88,89.50 Este termo é utilizado de forma usual por Wagner e por aqueles se baseiam em suas obras.

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tem a fazer. Mas não sei de nada mais importante do que descobrir, desenvolver e usar os dons espirituais.51

Ele argumenta que a igreja tem atuado por 1900 anos sob o “Plano B” da missão de Deus para a igreja, por não auxiliar seus membros a descobrir e usar seus dons espirituais. O “Plano A” envolve uma ênfase e trabalho conscientes com o fim de descobrir, desenvolver e utilizar os dons espirituais.52 Dois princípios básicos se aplicam: Deus quer que cada cristão tenha e use um dom espiritual e quer que as “ovelhas perdidas” sejam encontradas. Gifted for Growth também argumenta: “Três das mais importantes metas na sua vida cristã são descobrir, desenvolver e usar os dons espirituais que Deus lhe deu.”53

Os que defendem os inventários de dons espirituais citam diversas passagens bíblicas como exortações explícitas para descobrir os dons espirituais de cada um. Por exemplo, Wagner sugere utilizar como “ponto de partida” a exortação de Paulo em Rm 12.3, para que se “pense com moderação” sobre si mesmo.54 Os autores de Enlightened with His Gifts referem-se à declaração de Paulo em 1 Co 12.1: “A respeito dos dons espirituais não quero, irmãos, que sejais ignorantes.”55

Como um cristão age para descobrir seu(s) dom(dons) espiritual(ais) ou “combinação de dons”? Wagner lista cinco passos, que são duplicados quase que literalmente em Gifted for Growth e em Enlightened with His Gifts. Conforme o arranjo acróstico em Gifted for Growth, os passos envolvem o seguinte:

1. Explore as possibilidades.2. Experimente tantos dons quantos puder.3. Examine seus sentimentos.4. Estime (avalie) sua eficácia.5. Espere confirmação do corpo de Cristo.56

F. Catalogando os Dons

Opiniões sobre precisamente quantos dons espirituais são enumerados no Novo Testamento variam de autor para autor. A maior parte dos autores restringe-se às listas de dons encontrados em Rm 12, 1 Co 12-14, Ef 4 e 1 Pe 4. Alguns poucos incluem Hb 5.12 e 1 Co 7. Wagner defende uma abordagem aberta para a questão do número total de dons, sugerindo que podem haver dons que não estejam listados naqueles textos. Por exemplo, alguém poderia acrescentar o dom da música ou da arte.57 Como já notamos, porém, ele duvida que a capacidade de arrumar automóveis possa ser classificada como um dom espiritual.58 Além disso, alguns cristãos podem possuir os mesmos dons, mas em diferentes variações e graus.

Com base nos textos bíblicos, Wagner identifica 27 dons.59 Gifted for Growth segue Wagner, listando os mesmos 27 dons.60 Estes incluem: profecia, serviço, ensino, exortação, oferta, liderança, misericórdia, sabedoria, conhecimento, fé, curas, milagres, discernimento de espíritos, línguas, interpretação de línguas, apóstolo, auxílio, administração, evangelista, pastor, celibato, pobreza voluntária, martírio, hospitalidade, missionário, intercessão e exorcismo. Enlightened with His Gifts, por outro lado, lista apenas 20. Estes incluem: apóstolo, profeta/profecia, evangelista, pastor-mestre, exortação, palavra de sabedoria, conhecimento, servir, auxílios, liderança, administração, oferta, mostrar misericórdia, discernir espíritos, fé, hospitalidade, línguas, interpretação de línguas, curas, milagres.61

G. Classificação dos Dons

Tanto Wagner como Hunter evitam qualquer classificação ou categorização dos dons espirituais. Enlightened with His Gifts organiza os dons em três grupos: dons de fala, dons de serviço e dons de sinais. Semelhante agrupamento pode ser encontrado em um livro mais antigo, de Leslie Flynn, no qual organiza os dons em torno do tema “Falar, Servir e Demonstrar62.”63 A última categoria é menos enfatizada que as duas primeiras, talvez para evitar os problemas associados com os dons claramente identificados com o movimento

51 Wagner, 44.52 Ibid., 47.53 Hunter, 9.54 Wagner, 35.55 Hoover e Leenerts, 23.56 Hunter, 9-14; Wagner, 116- 33; Hoover e Leenerts, 66-67.57 Não traduzimos a expressão “or names”. N. do T.58 Wagner, 86.59 Ibid., 39-73.60 Hunter, 17-63.61 Hoover e Leenerts, 40-63.62 “ Signifying.” Talvez: “sinalizar”, no sentido de mostrar “sinais”. N. do T.

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carismático. Na literatura como um todo, não é dito muito a respeito da necessidade de classificar os dons de acordo com categorias distintas como estas. Em sua maioria, tais classificações parecem servir como auxílios no ensino/aprendizagem.

II. Análise Bíblica dos Dons Espirituais

A definição, numeração e uso dos dons espirituais são derivados principalmente de quatro textos do Novo Testamento: Rm 12 (que realmente contém duas listas separadas de dons), 1 Co 12 (que também contém duas listas), Ef 4 e 1 Pe 4. Diversas características comuns estão nestes textos. Primeiro, cada um dos textos paulinos emprega a metáfora do corpo, que (como já vimos) é normalmente considerada a chave para o entendimento e uso apropriados dos dons espirituais. Segundo, cada um dos quatro textos têm o que parece ser uma “lista” de dons espirituais. Estas listas servem como base para desenvolver os inventários de dons espirituais. Devido às limitações de espaço, focalizaremos nossa “análise bíblica” no argumento e discussão de Paulo em 1 Co 12-14, chamando a atenção para pontos pertinentes dos outros textos.

A. A Metáfora do Corpo como uma Chave Interpretativa para o Dons Espirituais

Como já foi discutido acima, a maior parte dos proponentes dos inventários de dons espirituais sustentam que a metáfora do corpo serve como um paradigma , contendo um imperativo programático para que se procure o crescimento da igreja através de um processo de descobrir, desenvolver e empregar os dons do Espírito. Assim, examinaremos primeiro o uso desta metáfora por Paulo, no contexto de sua discussão sobre os dons espirituais. Como veremos, o uso de Paulo, do corpo como metáfora para a igreja, de fato molda sua abordagem sobre os dons, de maneira sugestiva - mas não da maneira como muitos proponentes dos inventários de dons espirituais sugerem. Paulo emprega esta metáfora para argumentar em favor da unidade e maturidade do corpo, não pelo crescimento externo da igreja.

1. O “Corpo” no Argumento de PauloEm sua primeira carta aos Coríntios, Paulo trata de algumas questões específicas que estavam

perturbando a igreja em Corinto e que haviam levado a divisões abertas dentro da congregação. Um problema sério era o excessivo individualismo, que havia dividido a congregação. Já no primeiro capítulo, Paulo confronta o partidarismo exibido por alguns dos Coríntios que ligavam-se a Paulo, ou a Apolo, ou a alguém outro. Este problema aparece novamente nos capítulos 12 a 14, agora ligado aos dons espirituais. A preferência de alguns dons sobre outros é um dos fatores que contribuíam para as divisões entre os Coríntios.

Os versículos iniciais de 1 Co 12 estabelecem a base para a discussão de Paulo sobre os dons espirituais. Aqui Paulo oferece um padrão para avaliar os dons - ou seja, a confissão de Cristo. Em resposta à questão, “Quem tem o Espírito Santo?”, Paulo afirma: “Todo aquele que confessa que Jesus é Senhor.” Por outro lado, todo o que “jura fidelidade” aos príncipes deste mundo, amaldiçoa Jesus. Todo aquele que confessa Cristo compartilha do mesmo Espírito. A confissão de Cristo providencia, assim, o ponto de partida e contexto para subseqüente discussão das manifestações do Espírito.

Depois de estabelecer o fundamento básico nos versículos 2 e 3, Paulo desdobra seu argumento nos capítulos 12 a 14, em torno dos dois polos da unidade e diversidade. Ele entrelaça estes temas como fios de cabelo em uma trança. A repetição de Paulo das palavras variedades (Almeida RA: “diversidade”64) e mesmo nos versículos 4 a 6 realça o tema da diversidade e unidade desenvolvido nos versículos subseqüentes.

Os dons são diversos, mas o Espírito é o mesmo.Há diversidade nos serviços, mas o Senhor [=Cristo] é o mesmo.Há diversidade nas realizações, mas o mesmo Deus [=Pai] é quem opera tudo em todos.65

O versículo 7 traz uma transição do argumento geral de Paulo nos versículos 1 a 6 para as questões específicas nos versículos 8 a 31.O versículo 7 também fornece a tese que Paulo desenvolve na discussão que segue: “A manifestação do Espírito é concedida a cada um, visando a um fim proveitoso66.” Dois pontos são

63 Leslie B. Flynn, 19 Gifts of the Spirit: Which Do You Have? Are You Using Them? (Wheaton, Ill.: Victor Books, 1977), 32.64 No original, a mesma palavra ( ) é empregada três vezes. N. do T.65 “ Distribuição” pode ser uma tradução melhor aqui do que “diversidade” (Almeida RA, Bíblia de Jerusalém) ou “diferentes” (Linguagem de Hoje). Além de enfatizar a variedade dos dons, este termo chama a atenção para a fonte dos vários dons, ou seja, Deus, o Senhor, o Espírito.66 “ For the common good” - para o bem comum. A mesma idéia aparece em BLH (“bem de todos”) e BJ (“utilidade de todos”). A expressão empregada é (do verbo ), que significa

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dignos de nota. Primeiro, o que antes foi referido como “realizações”, “serviços” e “dons” são agora chamados de “manifestações do Espírito.” Paulo havia previamente atribuído estes itens às pessoas individuais do Deus Triúno, mas agora ele os atribui especificamente ao Espírito Santo. Segundo, Paulo enfatiza no versículo 7 que qualquer que seja o dom, ele é dado para o bem comum.

Nos versículos 8 a 10, o apóstolo aplica o tema da diversidade na unidade especificamente aos Coríntios.A um é dada, mediante o Espírito, a palavra da sabedoria; e a outro, segundo o mesmo Espírito, a palavra do conhecimento; a outro, no mesmo Espírito, a fé; e a outro, no mesmo Espírito, dons de curar; a outro, operações de milagres; a outro, profecia; a outro, discernimento de espíritos; a um, variedade de línguas; e a outro, capacidade para interpretá-las.

As expressões “a um” e “a outro” realçam a diversidade das manifestações do Espírito. A ênfase de Paulo no “mesmo” Espírito chama a atenção para a fonte singular, unitiva destas manifestações. Paulo conclui esta seção observando que o mesmo Espírito distribui estes vários dons, como Ele quer.

No versículo 11 Paulo começa a segunda parte da sua tese, qual seja, de que os dons são dados para o bem comum. Aqui ele introduz a metáfora do corpo humano para dentro da discussão sobre os dons. Esta metáfora aparece em todos os três textos paulinos e é essencial para o argumento de Paulo em cada capítulo. Ele o utiliza para aplicar o tema da diversidade na unidade tanto para a fonte como para o propósito dos dons. Os dons estão fundamentados na unidade de Deus e são dados para a unidade da igreja. Assim a metáfora do corpo pode ser vista como uma chave interpretativa para o entendimento correto dos dons espirituais. É fundamental”, porém, que esta chave seja vista à luz da discussão de Paulo sobre o relacionamento entre unidade e diversidade dentro do corpo.

Tendo em vista as facções dentro da congregação, Paulo emprega a metáfora do corpo para argumentar em favor da unidade e para exortar os Coríntios para que usem seus dons pelo bem comum de todo o corpo. Seu objetivo é puxar os Coríntios para que fiquem juntos, puxando-os para Cristo. Além disso, contra uma esmagadora preferência pelo dom de línguas, Paulo procura ampliar os horizontes dos Coríntios abrindo todo o espectro das manifestações do Espírito. Longe de identificar um dom como o melhor, ou como a manifestação exclusiva do Espírito, Paulo deixa claro que o Espírito se manifesta através de uma variedade ampla de dons, nenhum dos quais devendo ser excluído. Isto implica que o corpo precisa de uma tal diversidade. Sem ela, o corpo seria uma entidade incompleta e de funcionamento prejudicado.

Ao utilizar a ilustração do corpo, Paulo aborda dois grupos diferentes da congregação. Nos versículos 14 a 19 ele encoraja aqueles que sentem que seus dons são inferiores ou desnecessários, reafirmando a eles que o corpo precisa da contribuição de cada membro. Nos versículos 20 a 26 Paulo fala aos “elitistas” na congregação, que tinham a atitude de “não preciso de vocês” em relação aos outros.67 Ele menciona aquelas manifestações que estavam sendo “reivindicadas” ou “exaltadas” em detrimento de outras (celibato, línguas, sabedoria). Aqueles que têm dons mais espetaculares, diz Paulo, não têm o direito de dizer a outros cristãos que seus dons são menos valiosos ou importantes. Sim, alguns dons podem até ser mais espetaculares, mas há um único Senhor. Nenhuma manifestação do Espírito pode ser considerada pouco importante ou de menos valor do que outra.

Com base nesta discussão no capítulo 12, Paulo segue em frente, mostrando como os Coríntios devem utilizar seus dons em amor, para o bem comum (1 Co 13). Ele os admoesta “da forma mais enfática de que o amor deve permear e motivar seu uso dos dons espirituais ou eles tornar-se-ão sem sentido e inúteis.”68

2. O Imperativo da Unidade na Metáfora do Corpo

A análise acima indica que Paulo não utiliza a metáfora do corpo em 1 Co 12 para encorajar os Coríntios para que descubram e usem seus multiformes dons para o propósito explícito da missão e evangelismo.69 O

“benefício”, “vantagem”. A idéia, pelo que se vê no contexto, é realmente do benefício de toda a igreja. N. do T.67 Ver D. A. Carson, Showing the Spirit: A Theological exposition of 1 Corinthians 12-14 (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1987), 48.68 Charismatic Movement , 20.69 Isto, obviamente, não sugere que o Espírito não conceda dons para a evangelização do mundo (cf. Charismatic Movement , 16,21). Cf. também Evangelism and Church Growth , 20 (Evangelização e Crescimento da Igreja : “Como filhos, os cristãos têm a promessa de que Deus, por Seu Espírito Santo, quer operar neles tanto o querer como a habilidade de serem seus

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problema em corinto não era que os Coríntios estivessem deixando de usar seus dons - se havia problema aí, era de que estavam utilizando-os ao ponto de abusarem deles! Eles estavam preocupados em determinar que dons seriam os mais desejáveis e valiosos. Eles estavam aparentemente utilizando-os de tal forma que a graduação e preferência por certos dons haviam causado divisão e inveja dentro da congregação.

Paulo emprega a metáfora do corpo para chamar os Coríntios a viverem juntos, e a servirem uns aos outros dentro do corpo. Ele fundamenta a verdade que os cristãos constituem um só corpo em Cristo no fato que todos eles foram batizados em um Espírito para dentro de um corpo. “A unidade do corpo, a igreja, predicada no fato de que todos os seus membros foram batizados em um Espírito para dentro deste corpo, é agora aplicada aos problemas em Corinto.”70 Paulo enfatiza que todos os cristãos foram batizados para dentro do corpo de Cristo, e todos receberam de beber do único Espírito (v. 13).71 Conseqüentemente, a discussão de Paulo sobre os dons espirituais não se concentra no crescimento externo do corpo, mas na unidade do corpo.

O uso que o apóstolo faz desta metáfora segue de sua tese colocada no versículo 7. Quando ele diz: “A manifestação do Espírito é concedida a cada um, visando a um fim proveitoso”, não é imediatamente evidente, como alguns inventários de dons espirituais iriam sugerir, que ele esteja se referindo ao bem comum da raça humana. O contexto indica que Paulo tem em mente o “bem comum” da igreja.72 Em outras palavras, Paulo aborda o uso destes dons “intracorpo” ou “intracongregação”, e não “extracongregação” (fora do corpo). Não se consegue enfatizar este ponto o suficiente. Os dons não são dados simplesmente para auxiliar o corpo a crescer ou para capacitar os membros para “fazerem sua parte”. A preocupação de Paulo é que cada membro do corpo funcione “individualmente e propositalmente para a saúde e bem-estar de todo o corpo.73 Apenas depois de sublinhar a unidade que existe no corpo de Cristo, apesar da diversidade de dons, raças e nacionalidades (judeus e gregos), Paulo segue (com base nisto) para discutir o uso próprio dos dons.

Em 1 Co 12 e 14, portanto, Paulo deixa claro que no corpo de Cristo o olho não pode dizer para a mão: “não preciso de você.” Da mesma forma, os membros do corpo devem ter igual interesse uns pelos outros (12.25). O interesse de Paulo pelo “bem comum” leva-o a “comparar a igreja cheia do Espírito a um corpo humano no qual ‘todos os membros têm o mesmo cuidado uns pelos outros’, assim que ‘se um membro sofre, todos sofrem com ele; e, se um deles é honrado, com ele todos se regozijam’.”74 O dom da profecia edifica a igreja. Aquele que profetiza fala para a igreja (14.4; cf. 14.26). O interesse “intracongregacional” por detrás do uso paulino da metáfora do corpo também emerge mais adiante, no capítulo 14, quando ele discute o culto público e encoraja os Coríntios a fazerem tudo de forma ordeira (14.40).

3. Os Diferentes Dons dentro do Único CorpoDe uma certa forma, a analogia do corpo capacita Paulo a “nivelar o campo de jogo” quando trata da

“classificação” dos dons. Pelo fato de que todos pertencemos ao mesmo corpo, não é, em última análise, importante que dom ou tarefa uma pessoa tem e exerce. Qualquer dom que tenhamos, nós o recebemos de Deus. Assim Paulo pode regozijar-se na maravilhosa diversidade de dons exibida na igreja de Corinto precisamente porque são dons. Ele não ressalta alguns em detrimento de outros - dádivas especiais em detrimento a talentos naturais, milagrosos em detrimento a habilidades ou ofícios não milagrosos. Todo dom, não importa sua natureza ou definição, continua sendo um dom do Deus único, para o propósito de edificar o corpo. “que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te vanglorias, como se o não tiveras recebido?” (1 Co 4.7)75 Não importa as diferenças e variedades das manifestações do Espírito, todas vêm de Deus. Este é o ponto crucial.

Além de minimizar a distinção entre os vários dons, dirigindo a atenção dos Coríntios para o Doador de todas as boas dádivas e para a unidade do corpo, que Ele cria, Paulo usa a imagem de um corpo e de seus membros para virar de cabeça a classificação dos dons. Os “melhores dons” vão para o fim da lista. Os “dons menos espetaculares” vão para o começo. Assim, os “mais importantes dons”, membros ou funções em um corpo não são necessariamente aqueles que são “mais espetaculares”. Pelo contrário, as partes não decorosas do corpo são de igual importância. A inversão que Paulo faz com a classificação dos Coríntios reflete sua “teologia

instrumentos para levar a mensagem da salvação ao mundo que jaz na morte (Fp 2.13). Para esta finalidade, ele dá aos cristãos os dons da graça, as habilidades e aptidões que os habilitam a cumprir este importante serviço.” [16])70 Carson, 47.71 A última frase pode ser lida como uma referência à Ceia do Senhor , que também tem profundas implicações para a unidade da igreja como o corpo de Cristo (1 Co 10.16,17; 11.23,24).72 Charismatic Movement , 20.73 Martin Franzmann, Alive with the Spirit (St. Louis: concordia Publishing House, 1973), 39.74 Ibid., 38.75 A versão inglesa realça o argumento: “como se não fosse um dom”. N. do T.

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da cruz”76 articulada anteriormente em sua epístola. Nos capítulos 1 a 3 Paulo exaltou a loucura da cruz e a contrastou com a sabedoria do mundo. No capítulo 12 Paulo exalta aqueles dons que parecem ser menos espetaculares, úteis e distintivos, e diz que eles também têm um papel fundamental a exercer dentro do corpo de Cristo.

Perante Deus nenhum dom pode ser classificado por importância. O valor de qualquer dom não está em sua natureza intrínseca. Paulo aborda os dons com base em seu valor para a edificação do corpo. Sob certas circunstâncias, alguns dons podem ser mais proveitosos para o corpo. Um dom deve ser avaliado não com base no que ele faz por mim, mas em termos de seu valor para meu irmão ou irmã em Cristo. Desta forma, Paulo rebaixa os dons que os Coríntios haviam exaltado entre eles e promove os dons que beneficiam outros. Os Coríntios não precisam cobiçar um dom ou um lugar no corpo que eles não tenham recebido. Paulo quer que eles, em lugar disto, busquem o bem-estar de seus próximos. Ele, assim, subordina as línguas, colocando-as no fim da lista, porque este dom beneficia apenas o indivíduo. Ao mesmo tempo, ele eleva o dom da profecia para o começo da lista porque edifica o corpo.

Enquanto Paulo obscurece e aparentemente ignora as distinções entre os dons, poder-se-ia perguntar se os inventários de dons espirituais acentuam ou não as diferenças e elevam a importância dos dons espirituais como dádivas especiais (opostas a talentos naturais dados por Deus). Um perigo semelhante brota da forma como muitos no movimento carismático tendem a enfatizar dons carismáticos e espetaculares, em detrimento aos dons não carismáticos e não espetaculares. Quando certos dons são enfatizados em detrimento a outros, a distinção entre os dons é radicalizada e isto, como em Corinto, freqüentemente produz divisão.

B. Os Dons Espirituais dentro do CorpoOs inventários de dons espirituais levantaram uma série de questões sobre o listar e catalogar dos dons,

sobre sua natureza e definição, e sobre o propósito ou função de cada dom. Quantos dons há? Pode-se acrescentar alguns novos, que não estejam listados na Bíblia? A lista está fechada ou aberta? São os dons espirituais habilidades naturais latentes (talentos que a pessoa possui e que não são utilizados antes da pessoa se tornar cristã) ou devem ser claramente distinguidos dos talentos naturais? De que forma os dons espirituais se diferenciam dos papéis e atividades para os quais Deus chama Seu povo? Finalmente, podem os dons espirituais ser distinguidos claramente do fruto do Espírito? Os inventários de dons espirituais precisam responder a estas questões e fornecer definições precisas de cada dom espiritual, para formar as perguntas que permitem às pessoas determinarem que dons têm recebido.

Surpreendentemente, em suas discussões sobre os dons, Paulo mostra muito pouco interesse em definir os dons individuais ou em fazer distinções entre eles. Seu tratamento a respeito dos dons, na verdade, parece ser acidental. Distinções não aparecem com clareza, de modo que diversos dons parecem sobrepor-se a outros. Conseqüentemente, há falta de consenso entre os estudiosos, quanto à definição e natureza dos itens nas listas de Paulo. Paulo parece estar dizendo: “De qualquer forma que o Espírito se manifeste dentro da igreja para o bem da igreja, receba-o como um dom. É uma obra do Espírito.” O foco de Paulo sobre a unidade do corpo e o subseqüente “achatamento” das distinções entre os dons, é evidente em sua lista e arranjo dos dons, em sua definição dos dons e também pelo seu uso do termo charismata.

1. O Caráter Ad Hoc das Listas de Paulo com os DonsCada um dos textos paulinos dá a forte impressão de que o apóstolo esteja abordando uma situação ad

hoc. Esta é uma das razões pelas quais as listas de Paulo com os dons não podem ser facilmente catalogadas. As listas parecem ser exemplos ilustrativos aplicados a uma situação particular que ele está abordando. Os dons como tais não parecem ser a preocupação principal de Paulo. Daí que não é sua intenção apresentar uma “teologia dos dons espirituais” abrangente ou determinar um programa para que se descubra e exercite os dons. Ele não está preocupado com o número e tipos de “dons espirituais”, mas em investigar e expor os problemas subjacentes em Corinto. O interesse de Paulo não é, por exemplo, que os Coríntios careçam de “princípios para crescimento da igreja” e precisem usar os dons como uma das soluções para um crescimento estagnado. Nem é o problema em Corinto que as pessoas estejam falhando em descobrir e desenvolver seus dons espirituais, assim que Paulo deva mostrar-lhes como fazê-lo. O problema é um de divisão, que resulta de uma avaliação e priorização errada de certos dons. Para tomar um exemplo, Paulo aborda o assunto das línguas não porque as línguas eram per se o problema, mas pelas divisões que estavam causando dentro da congregação. Em 1 Co 12 a 14 Paulo se detém naqueles dons que estavam sendo avaliados de forma muito elevada e que estavam, por isso, causando problemas, e também naqueles dons que precisavam receber maior proeminência, mas estavam

76 A expressão “teologia da cruz” se refere ao ensino da Escritura de que Deus freqüentemente revela sua graça e glória “escondendo- a” sob sofrimento, fraqueza e privação. O maior exemplo disto, obviamente, é a revelação da graça de Deus na cruz e sofrimento de Cristo. Ver Heino O. Kadai, “Luther’s Theology of the Cross,” in Accents in Luther’s Theology , ed. Heino O. Kadai (St. Louis: Concordia Publishing House, 1967).

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sendo considerados de pouca importância. Isto ajuda a explicar a atenção dada ao dons de línguas em 1 Coríntios, e sua ausência nas outras listas. Em resposta à preferência dos Coríntios por este dom, Paulo insiste que Deus é a fonte de todos os dons e que Ele fornece muitos dons diferentes para o bem da igreja.

Se as listas de Paulo foram primariamente ilustrativas, isto ajudaria a explicar o arranjo e listagem quase acidentais dos dons.77 As listas não parecem estar organizadas com qualquer tipo de padrão, nem são completas. Nove dons estão enumerados na primeira lista de 1 Co 12 e nove dons na segunda, colocada mais adiante no mesmo capítulo. Todavia, as duas listas têm apenas cinco dons em comum, e entre elas são nomeados apenas treze diferentes dons. Em Rm 12, Paulo lista sete dons, cinco dos quais não são encontrados em nenhuma lista de 1 Co 12. Ef 4 menciona cinco dons, dois dos quais não são encontrados em nenhum outro lugar. (Da mesma forma, dois dons aparecem em 1 Pe 4, que não são mencionados em qualquer outro lugar no Novo Testamento.) Nenhum dom ocorre em todas as cinco listas, e treze dons (dos vinte ou mais diferentes dons) ocorrem em apenas uma das cinco listas.78 Assim sendo, estas listas “não podem ser combinadas para formar a lista; elas são mais ilustrativas do que exaustivas.”79 Os dons selecionados para menção são “meramente representativos da diversidade das manifestações do Espírito.”80

O tratamento ad hoc de Paulo para os dons espirituais também sugere que adotemos uma abordagem relativamente aberta à questão do número total de dons , assim como para seu aparecimento na igreja hoje. Isto pode ser visto a partir de duas perspectivas. Primeiro, é certamente possível que certo número de dons que Paulo menciona deixariam de existir após um período de tempo, particularmente se e quando a necessidade por aqueles dons específicos deixasse de existir ou quando o Espírito tivesse tomado outras providências. Isto pode ser o caso com dons como apóstolos, profetas e falar em línguas. Segundo, esta abordagem aberta permite a possibilidade de que o Espírito acrescente novos dons em uma época posterior, à medida em que necessidades surgem dentro da igreja, que não existiam previamente. Seria, então, próprio reconhecer e agradecer a Deus pelos dons que capacitam pessoas a serem escritores de hinos, poetas, compositores, arquitetos, escritores, radiodifusores e assim por diante. Os dons do Espírito podem diminuir ou aumentar conforme a vontade do Espírito e as necessidades da igreja. (isto quer dizer ad hoc, o espírito dá os dons conforme a necessidade e a ocasião)

2. São os Dons Espirituais Habilidades Especiais ou Capacidades Latentes?Os inventários de dons espirituais geralmente definem um dom espiritual como uma habilidade especial

concedida pelo Espírito a um indivíduo em sua conversão ou em algum tempo posterior à conversão. Como resultado disto, eles distinguem nitidamente os dons do Espírito dos dons da criação (talentos naturais). Os primeiros são dados apenas a cristãos; os últimos, a todas as pessoas. Os inventários também tendem a concluir que estes dons do Espírito não são simplesmente papéis ou ofícios, mas são qualidades ou talentos dados pelo Espírito, que as pessoas possuem, presumivelmente até o ponto em que permaneçam cristãos. Finalmente, uma distinção acentuada é feita entre os dons do Espírito e o fruto do Espírito (transformação moral). Os dons variarão de pessoa a pessoa, mas o fruto do Espírito se manifesta (apesar de que em graus variados) em todos os cristãos.

A discussão de Paulo sobre os dons espirituais, no entanto, leva a conclusões bastante diferentes destas. Qualquer tentativa de identificar a natureza precisa dos dons espirituais é frustrada pelo tratamento ad hoc de Paulo sobre os dons. Em nenhum lugar ele define um dom espiritual tão especificamente ao ponto de limitá-lo a uma habilidade especial. Seu uso do termo charismata e sua listagem dos dons incluem um amplo espectro de fenômenos. Novamente, é como se Paulo estivesse dizendo: “Onde e quando quer que o Espírito esteja se manifestando e edificando a igreja, você pode considerar isto como um dom do Espírito.” Na discussão que segue, tentaremos examinar os termos charismata e pneumatika e então tentaremos determinar quais dons, se porventura algum, podem ser propriamente descritos como “habilidades especiais.”

a. São os Charismata e Pneumatika “Habilidades Especiais”?

Os dois termos acima são os mais prováveis candidatos para o título ou tradução de “dons espirituais.” Curiosamente, ambos são característicos de Paulo. Dos dois, charismata é usado de forma bem mais freqüente do que pneumatika nos escritos de Paulo. O primeiro poderia ser traduzido por “dons da graça” ou “expressões da graça”. O segundo poderia ser traduzido como “expressões do Espírito”.

77 John R. W. Stott, Baptism and Fullness: The Work of the Holy Spirit Today (Downers Grove, Ill.: InterVarsity Press, 1977), 88.78 Ibid., 88.79 Forteenth Hayama Missionary Seminar: The Contemporary Work of the Holy Spirit , ed. Carl C. Beck (Tokyo: 1973), 9; cf. Stott, 88.80 Gordon D. Fee, The First Epistle to the Corinthians (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1987), 585.

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CharismataO termo charisma (forma singular do charismata) é encontrado dezesseis vezes nos escritos de Paulo e

uma vez em 1 Pedro (4.10). Sua abrangência de significado sobrepõe-se consideravelmente com charis (graça). Não é de se surpreender que um apóstolo que se regozija em enaltecer a graça de Deus devote atenção aos dons que são dados gratuitamente por Deus. A palavra empregada por Paulo abrange uma ampla variedade de dons e tipos de dons, que não podem ser restringidos a “habilidades especiais” de um cristão.

Em Rm 1.11 Paulo emprega o termo em conexão com encorajamento mútuo, mas não parece ter qualquer dom específico em mente. Diversas vezes em Romanos, charisma se refere ao dom da vida eterna. Por exemplo, em Rm 5.15,16 o charisma é aquilo que traz vida eterna, em contraste com a morte, trazida sobre a humanidade por Adão. No capítulo seguinte, Paulo contrasta o charisma da vida eterna com o salário do pecado, que é a morte (Rm 6.23). Mais adiante em Romanos charisma se refere à eleição de Israel (Rm 11.29). É somente no capítulo 12 que Paulo utilizará o termo charisma em conexão a uma lista específica de dons.

Paulo inicia sua carta aos Coríntios, lembrando-os de que eles não têm falta de nenhum dos charismata na expectativa ante o retorno do Senhor (1 Co 1.7). Isto pode ser uma referência aos itens listados mais adiante, no capítulo 12. Em 1 Co 7.7 Paulo diz que todas as pessoas receberam um charisma de Deus, um “de um modo”, outro, “de outro”. No contexto, “de um modo” e “de outro” se referem ao dom do casamento e ao dom do celibato. Enquanto “celibato” pode ser entendido como uma habilidade especial, é difícil ver como o casamento entra nesta categoria. Os usos adicionais de charismata são encontrados no capítulo 12, onde Paulo se refere a “diversidade” de dons (12.4,31) e aos dons (plural) de curar (12.9,28,30).

De interesse especial é o uso de charismata nos versículos iniciais de 1 Co 12, junto com outros dois termos. Nos versículos 4 a 6 Paulo indica que há diferentes tipos de dons, serviço e realizações. Primeiro, há charismata (expressões da graça); segundo, há diakoniai (formas de serviço); finalmente, há energemata (realizações, energias, atividades ou poderes).81 O termo serviço (diakonia), no versículo 5, é utilizado no Novo Testamento para todos os tipos de trabalho, tais como servir às mesas (At 6) e reunir dinheiro para os pobres (2 Co 8.4,5). Atos de serviço do dia-a-dia também parecem estar incluídos neste termo. A palavra realizações (energemata) parece designar diversas formas nas quais o poder de Deus é aplicado. “Ele praticamente ocupa o mesmo espaço que charismata, mas dá mais ênfase à idéia de força, do que de doação.”82

Paulo usa os três termos para descrever o amplo espectro dos assim chamados dons espirituais. Com base em 1 Co 12.4-6, James Dunn mantém que estas três expressões são maneiras alternativas de discutir o mesmo fenômeno. “Todos os charismata são atos de serviço; todos são ações operadas por Deus; todos são manifestações do Espírito para o bem comum.” No versículo 7 os três termos são incluídos sob a expressão “manifestação do Espírito.” Com base nisto, Dunn sustenta que charismata refere-se a “ações concretas, eventos reais”, não a possibilidades latentes ou habilidades escondidas. Um “charisma é um evento, uma ação possibilitada pelo poder divino; charisma é energia divina efetuando um resultado específico (em palavra e ação) através do indivíduo.”83 Quando uma cura acontece, ela manifesta a obra do Espírito e é, assim, um dom do Espírito. Desta perspectiva, os “dons” aparentemente incluiriam tais coisas como habilidades, ofícios, papéis e tarefas.

Em 2 Co 1.11 Paulo se refere ao “benefício” dado a ele em resposta às orações de muitos - sua libertação divina, uma ação de Deus em seu favor. Em 1 Tm 4.14, ele adverte Timóteo para que não negligencie o charisma dado a ele através da imposição de mãos. Mais adiante, Paulo exorta Timóteo a reavivar o dom de Deus recebido através da imposição de mãos de Paulo (2 Tm 1.6). O dom, apesar de não ser especificado, pode muito bem se referir ao ministério para o qual Timóteo havia sido chamado. Daí Paulo adverte Timóteo a que não diminua aquele ministério através de preguiça, timidez ou falta de autodisciplina.

Esta breve pesquisa sugere que o termo charisma não pode ser considerado como termo técnico seja para dons sobrenaturais seja para habilidades especiais. Ele pode se referir ao dom de encorajamento, ao dom da oferta generosa, o dom do casamento ou celibato, ou mesmo (como repetidamente) ao dom da salvação. Nem mesmo em 1 Co 12 a 14 charismata “adquire uma força semitécnica.”84 O que todos estes itens têm em comum e o que os liga é que são expressões da graça, eles são dons. Eles são dados gratuitamente por Deus, pela pura generosidade de Sua graça divina.

Pneumatika

81 Cf. Stott, 87.82 Archibald Robertson and Alfred Plummer, A Critical and Exegetical Commentary on the First epistle of St. Paul to the Corinthians (Edinburgh: T. & T. Clark, 1978), 264.83 James Dunn, Jesus and the Spirit: A Study of the Religious and Charismatic Experience of Jesus and the First Christians as Reflected in the New Testament (Philadelphia: The Westminster Press, 1975), 209.84 Carson, 21.

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Pneumatika é o outro termo que é freqüentemente traduzido como “dons espirituais.” Assim como o termo charismata, ele é característico de Paulo, que o emprega de pelo menos três formas.

O adjetivo pneumatikos difere de charisma em seu alcance de significado. Ele modifica outra palavra, indicando que ela é, de alguma forma, “espiritual.” Em Rm 1.11 ele qualifica o próprio charisma. Mais adiante em Romanos Paulo indica que a lei é espiritual, dada ou revelada pelo Espírito (7.14). Em 1 Co 15.44-46, o apóstolo descreve o corpo ressurreto como sendo um corpo espiritual. Em Ef 1.3 Paulo se refere às bênçãos espirituais dadas pelo Espírito. Cl 1.9 realça o conhecimento espiritual e Paulo fala de “cânticos espirituais” em Ef 5.19 e Cl 3.16. Como substantivo, pnematikos pode se referir a uma pessoa espiritual ou a um povo espiritual. Este é um povo que parece estar possuído pelo Espírito ou que manifesta o Espírito (ver, por exemplo, 1 Co 2.13,15; 14.37; Gl 6.1). Tanto Paulo como seus oponentes em Corinto afirmavam ser “espirituais.” Como neutro plural, a palavra se refere a “coisas espirituais.” Isto é visto mais claramente em 1 Co 9.11, onde Paulo contrasta as atividades e atitudes do Espírito, com aquelas da carne (cf. Rm 15.27).85

Quando Paulo inicia sua discussão em 1 Co 12, com as palavras, “A respeito dos pneumatikon,” ele parece estar considerando uma questão específica que surgiu em Corinto e que ele agora pretende responder, durante os próximos três capítulos. A questão centraliza-se na palavra pneumatikon.86 Considerada masculina, pode se referir a pessoas espirituais (2.15; 3.1; 14.37). Considerada neutra, pode se referir a coisas espirituais (9.11; 14.1; 15.46). A primeira leitura pode ser a preferível, visto que o termo serviria para emoldurar a discussão de Paulo, abrindo e fechando o capítulo com uma referência à real raiz do problema em Corinto, isto é, as assim chamadas “pessoas espirituais.” A leitura “coisas espirituais” (forma neutra) é apoiada pelo assunto do capítulo, visto que a discussão que segue é dedicada especialmente ao tópico dos “dons espirituais.” Neste caso, pneumatikon poderia ser melhor visto como sinônimo de charismata. O uso deste termo em 1 Co 2.13 e 14.1 parece confirmar esta posição. Se tomamos em consideração a ambigüidade deste termo, a questão que Paulo procura responder em sua discussão poderia ser colocada como: “É realmente verdade que as manifestações espirituais (pneumatika) constituem-se em evidência inequívoca de pessoas espirituais (pneumatikon)?”87

b. “Dons” referem-se a Habilidades, Ofícios, Pessoas, Papéis ou Atividades?

Se os termos charismata e pneumatika advertem contra traçar uma linha muito definida em torno da natureza dos dons espirituais, definindo-os como “habilidades especiais”, os itens individuais que Paulo lista levam à mesma conclusão. Estes itens referem-se a pessoas, ofícios, papéis, responsabilidades, habilidades ou a eventos reais? Cada uma destas opiniões têm seus defensores. É possível que a resposta seja “Sim!” Paulo não parece distinguir nitidamente entre dons espetaculares e não espetaculares, entre talentos naturais e dádivas especiais, entre habilidades e papéis, ofícios e pessoas. Existe suficiente ambigüidade com respeito à natureza de cada dom, de modo que qualquer intérprete deveria deter-se antes de caracterizar com confiança a natureza dos dons. O ponto permanece: qualquer que seja a manifestação, qualquer que seja sua natureza, qualquer que seja sua definição, vem como um dom gracioso de Deus. O mesmo Deus realiza todas as coisas. Paulo parece lançar a rede tão amplamente quanto possível. Esta abordagem está fundamentada pelas seguintes considerações.

Em primeiro lugar, vários dos itens que Paulo lista parecem se referir a ofícios para os quais alguns são designados ou às pessoas que servem nestes ofícios. Isto é particularmente verdade nas listas em Ef 4.11 e 1 Co 12.28-30. Em Efésios Paulo diz que Cristo deu à igreja apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres. Em 1 Coríntios Paulo coloca em ordem apóstolos, profetas e mestres. A ênfase está no que estas pessoas ou grupos de pessoas fazem - nas suas funções, mais do que nas suas pessoas.

Segundo, certo número de itens parece se referir a eventos ou atividades, mais do que a habilidades latentes. Rm 12.4 fala dos muitos membros com diferentes funções. Se os dons (charismata) do versículo 6 se referem ao que foi dito antes, no versículo 4, a ênfase está nas funções. No versículo 7 Paulo segue em frente para mostrar como estas atividades devem ser realizadas: Quem quer que fizer (isto), que o faça (desta forma). No versículo 8 Paulo muda para Particípios substantivados, que também apontam para a atividade ou tarefa de uma determinada pessoa. Paulo diz que aqueles que exortam, ofertam, lideram, mostram misericórdia, devem fazê-lo alegremente e de boa vontade, etc. Neste contexto, um dom espiritual não parece se referir à posse de uma habilidade latente (utilizada ou não), mas ao uso da habilidade.

Terceiro, alguns dons realmente parecem apontar na direção de algumas habilidades ou capacidades dentro de um indivíduo. Mas mesmo nestes casos não fica completamente claro se a Escritura tem em mente uma habilidade sobrenatural ou uma habilidade natural utilizada no serviço do Espírito. Carson observa que as quatro listas “contém, como um todo, uma mescla do que alguns poderiam chamar de dádivas ‘naturais’ e

85 Cf. Dunn, 208.86 É importante para entender o argumento considerar que o termo grego ( ) é o genitivo plural, sendo a mesma forma para o neutro e para o masculino. (N. do T.)87 Carson, 22.

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‘sobrenaturais’, ou dons ‘espetaculares’ e ‘mais ordinários’.”88 Alguns dons são claramente sobrenaturais, tais como línguas, milagres e curas. Outros parecem comparativamente terrenos, tais como o mostrar misericórdia. Esta última categoria dificilmente pode ser restringida a dádivas específicas distribuídas pelo Espírito no Batismo, como se não tivessem fundamento em talentos ou dons naturais. “Isto sugere, por sua vez, que Paulo não se sentiria desconfortável com dons espirituais formados de alguma combinação de assim chamados talentos naturais - o que ele ainda consideraria serem dons de Deus - e de dádivas especificamente operadas pelo Espírito.”89

Parece, então, que Paulo inclui uma ampla variedade de fenômenos e manifestações do Espírito soba rubrica de “dons espirituais.” Apesar das distinções observadas acima, com respeito à natureza dos dons espirituais, provavelmente existam consideráveis sobreposições entre dons, habilidades, tarefas, ofícios e eventos. Os dons de línguas, curas e milagres podem ser a dádiva de um dom que previamente não se tinha. Além disso, se os dons são definidos como tarefas, há certamente atividades desempenhadas por um cristão, que ele (ou ela) não desempenhava antes de tornar-se cristão. O fato que Paulo não categoriza, define, divide nem subdivide os vários dons, fornece mais evidência da natureza ad hoc de sua apresentação. É possível, por exemplo, que cada pessoa tenha ou o dom do casamento ou do celibato? Novamente, não está claro se Paulo está falando de habilidades, ou de papéis, ou de pessoas. Alguém poderia ainda perguntar se o fruto do Espírito, de Gálatas 5, poderia ser excluído completamente da categoria de dons espirituais, especialmente quando o próprio dom da salvação é chamado de charisma.90

3. Identificando e Definindo os Dons

Vimos na discussão acima que é difícil determinar se os dons espirituais nos escritos de Paulo se referem a habilidades, ou a papéis, ou a pessoas ou a eventos. É igualmente difícil definir com algum grau de precisão os itens individuais das listas de Paulo. Um breve sumário dos dons dá suporte a isto. Qual é a distinção, por exemplo, entre “palavra do conhecimento” e “palavra da sabedoria”? Ambas expressões ocorrem em íntima conexão com profecia e ensino (1 Co 13.2; 14.6; cf. Cl 1.28). O dom de exortação ou encorajamento em 1 Co 14.3,31 é descrito como sendo parte da atividade profética. Pastores e mestres, da mesma forma, são estreitamente relacionados um ao outro. O dom de “operação de milagres” (dynameis, 1 Co 12.10,28; cf. “fé,” 1 Co 12.9; 13.2) poderia corresponder aos dons de cura (1 Co 12.9,28), glossolalia (1 Co 12.10,28), e à interpretação de línguas (1 Co 12.10,30). Serviço (diakonia) em Rm 12.7 poderia ser provavelmente entendido de uma forma semelhante à atividade desempenhada em “socorros” (antilempseis) de 1 Co 12.28.

Se Paulo está usando as listas dos vários dons como exemplos que servem ao argumento principal, isto iria mitigar contra tentativas de traçar linhas muito definidas de distinção entre os vários dons. Tomada como um todo, a evidência sugere “não apenas que não temos aqui uma discussão sistemática de ‘dons espirituais,’ mas também que há certa dúvida sobre se o próprio apóstolo tinha precisos e identificáveis ‘dons’ diferentes em mente quando escreveu estas palavras.”91

Conseqüentemente, continua o debate sobre a definição de quase todos os dons das várias listas. Na discussão que segue, portanto, não pretendemos fornecer definições precisas, mas apenas realçar as dificuldades de determinar o conteúdo de cada termo com algum grau de certeza.

a. Os Dons de 1 Co 12.8-11

Na primeira lista de 1 Coríntios 12 (vv. 8-11) Paulo cita os seguintes dons: “palavra de sabedoria,” “palavra do conhecimento,” “fé,” “dons de curar,” “operações de milagres,” “profecia,” “discernimento de espíritos,” “variedade de línguas,” e “capacidade para interpretá-las.” Nesta lista ele não faz uma distinção nítida entre o milagroso e o não milagroso, entre ofício e qualidade, ou entre talento natural e dádiva especial. De fato, alguns destes dons parecem sobrepor-se uns aos outros.

Palavra de sabedoria e palavra do conhecimentoEstes dois dons parecem tão estreitamente relacionados que não fica completamente claro de que forma

eles diferem um do outro. A escolha que Paulo faz dos termos sem dúvida brotou da própria situação em Corinto (cf. capítulos 1 a 3). A “palavra de sabedoria” poderia ser imaginada como sendo “conhecimento

88 Carson, 37.89 Ibid. 90 Cf. Charismatic Movement , 17: “Aqui deve ser observado que São Paulo lista os menos espetaculares dons do Espírito, isto é, as atitudes e qualidades espirituais mais comuns do cristão, que resultam de sua regeneração.”91 Fee, 586.

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prático” (sapientia) e “palavra do conhecimento” como uma forma de conhecimento mais teórica ou doutrinária (scientia). O problema é que Paulo mesmo não parece fazer tal distinção. Em 1 Co 2.6 “sabedoria” é essencialmente doutrinária e refere-se à mensagem fundamental do cristianismo. De 1 Co 8.10,11 aprendemos que “conhecimento pode ser imensamente prático.”92

A expressão “palavra de sabedoria” chama à atenção um problema que Paulo aborda em 1 Co 1.17-2.16. À luz do argumento de Paulo em 2.6-16, a “palavra de sabedoria” revelada pelo Espírito não é um entendimento especial das “coisas mais profundas” ou dos “mistérios” de Deus. Antes, ela envolve “o reconhecimento de que a mensagem do Cristo crucificado é a verdadeira sabedoria de Deus, um reconhecimento que vem apenas para aqueles que receberam o Espírito.”93 Palavras espirituais que proclamam o Cristo crucificado pode muito bem ser o que é referido aqui.

Há também algumas ambigüidades ligadas ao significado do dom da “palavra de conhecimento.” Alguns exegetas sugerem que esta expressão se refere a uma dádiva sobrenatural. Outros a vêem como “algo mais semelhante a um ensino inspirado, talvez relacionado ao receber de discernimento cristão para o significado da Escritura.”94 À luz de 1 Co 1-3, pode também se referir ao plano de Deus da salvação e ao benefício da salvação.95

A maneira de Paulo descrever a natureza e transmissão do dom também é um tanto ambígua. Com respeito a sua natureza, Dunn argumenta que “para Paulo sabedoria e conhecimento como tais não devem ser considerados como charismata; apenas a palavra que revela sabedoria ou conhecimento é um charisma.”96 No caso de qualquer um dos dons, é possível que a mensagem transmitida tenha vindo diretamente do Espírito e então foi transmitida à congregação. É também possível, no entanto, que o conteúdo e mensagem foram obtidos através de instrução ou de experiência pessoal.

FéEste dom e aqueles que seguem parecem ser manifestações sobrenaturais do Espírito. A fé de que Paulo

fala parece ser distinta da fé salvadora, que todos os cristãos têm em comum. Alguns se referem a ela como “fé heróica,” uma fé que capacita a pessoa a realizar alguma obra extraordinária. É descrita em 1 Co 13.2 como uma fé que pode transportar montes. Pode se referir também a uma convicção sobrenatural de que Deus revelará Seu poder ou misericórdia de uma forma especial, em uma ocasião específica. Carson sugere que este tipo de fé capacita o crente a esperar que Deus aja de uma certa forma, mesmo se não se pode apontar para uma promessa específica. Alguém poderia indagar em que este dom difere dos milagres de curas. Há, afinal, diversos exemplos nos Evangelhos onde uma tal fé está associada a um milagre ou cura (por exemplo, Mt 9.22,29; 15.28; Mc 10.52; 11.22; Lc 5.20; 17.19; 18.42).

Dons de curarOs dons de curar sem dúvida envolvem milagres de uma forma ou de outra. É interessante que ambos os

termos estão no plural, assim que a tradução literal é “dons de curas” (cf. 1 Co 12.28,29). Esta expressão está sujeita a uma variedade de interpretações. O plural dons e o plural curas podem sugerir ou dons diferentes ou tipos diferentes de curas. O plural charismata poderia indicar que este não era um dom “permanente,” mas que cada manifestação era um “dom” em si mesmo.97 Poderia também sugerir que “nem todos seriam curados por uma pessoa, e talvez certas pessoas com um destes dons de cura poderiam ser, pela graça do Senhor, curar certas doenças ou curar uma variedade de doenças, mas apenas em certas ocasiões.”98

Operação de Milagres“Operação de milagres” (literalmente “operações de poderes”) também aparece no plural. Mas como

difere este dom dos dons de curas ou do dom da fé? Pode ser que “todas as curas são demonstrações de poderes milagrosos, mas nem todos os poderes milagrosos são curas.”99 É também possível que esta manifestação trate de atividades sobrenaturais que não o curar de doentes, tais como exorcismos, milagres na natureza e coisas semelhantes. O relacionamento entre os dons da fé, de curas e de milagres sugere que até certo ponto estes dons se sobreponham uns aos outros.

Profecia

92 Carson, 38.93 Fee, 592.94 Ibid., 593.95 Dunn, 219- 20.96 Ibid., 221.97 Fee, 594.98 Carson, 39.99 Ibid., 40.

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Paulo encoraja seus leitores a buscarem o dom de profecia acima de todos os outros (1 Co 14.1). Diferentemente das línguas, que edificam a própria pessoa, a profecia edifica, exorta e encoraja a igreja (1 Co 14.5). Uma discussão detalhada sobre o alcance de fenômenos que podem ser cobertos pelo termo “profecia” está além do escopo deste documento. Algumas observações, no entanto, podem ser feitas. Primeiro, embora Paulo diga que a profecia é para “edificação, exortação e consolo” da congregação (14.3), ele não define profecia. Parece que a pregação, o ensino e a oração servem às mesmas finalidades. Segundo, há evidências que sugerem que a profecia no Novo Testamento inclua o que nós hoje chamaríamos de pregação ou exposição da Escritura. Certamente no Antigo Testamento a maior parte das profecias anunciavam juízo e salvação, chamavam a uma reforma e instruíam o povo. Terceiro, 1 Co 14 sugere que aquelas profecias eram “mensagens espontâneas, inspiradas pelo Espírito, inteligíveis e anunciadas oralmente ... para a edificação ou encorajamento das pessoas.”100

Discernimento de espíritosPaulo pode ter em mente a habilidade de identificar espíritos falsos, que freqüentemente se manifestavam

ligados à mostra de um poder milagroso. Visto que “discernimento de espíritos” segue imediatamente à profecia, na lista de dons de Paulo, é possível que ele tenha em mente algo mais estreitamente ligado a profecia. Talvez ele deva ser visto como paralelo a “interpretação de línguas” e realizando funções semelhantes. Se for assim, ele pode envolver o discernimento, diferenciação e julgamento de profecias, como em 1 Co 14.29. A linguagem de “espíritos” se referiria, então, a palavras proféticas (cf. 1 Jo 4.1, onde o distinguir entre espíritos está, de alguma forma, relacionado ao discernimento doutrinário, confessional.

Variedade de LínguasEste é mencionado por último, talvez para realçar o interesse especial dos Coríntios nesta manifestação do

Espírito, que ocasionou toda a discussão de Paulo sobre os dons. Este dom, “no caso dos Coríntios, referia-se a uma ‘linguagem,’ ininteligível a outros, assim como ao que falava, pela qual um cristão louvava a Deus.” São Paulo obviamente o considerava como um autêntico dom do Espírito, mas enfatiza que ele “pode ser útil na igreja apenas se suplementado com o dom da interpretação (v. 5), pois somente assim edificará a igreja.” Também deveria ser “cuidadosamente observado que o apóstolo em 1 Co 12 e 14 não está discutindo o dom de línguas com o propósito de encorajar ou auxiliar os Coríntios para que adquirissem este dom.” Neste contexto específico, “seu propósito é, antes, apontar para os perigos e abusos que têm resultado do seu mau uso e para encorajar o uso de outros dons espirituais, especialmente a profecia.’101

Interpretação de LínguasDevido à evidente ininteligibilidade das línguas, este dom “evidentemente era a habilidade de transmitir o

conteúdo e mensagem de uma tal ‘linguagem’ para o benefício e edificação do que falava e dos outros membros do corpo de Cristo.”102 De acordo com 1 Co 12.7,10,27-30 esta também é uma manifestação do Espírito. Entretanto, não está inteiramente claro se este dom se refere a uma habilidade de interpretar ou se a referência é feita ao fato concreto de interpretação.

b. Os Dons de 1 Co 12.28-31

Paulo agora substancia seus argumentos anteriores, de que os Coríntios são todos individualmente partes do único corpo de Cristo (vv. 28,29) e que Deus é o responsável pela diversidade que compõe o corpo (vv. 4-6,11,18,24b). É sugestivo que ele comece com uma lista de pessoas, citando aqueles a quem Deus estabeleceu na igreja: apóstolos, profetas, mestres (cf. Ef 4). O quarto e quinto itens (milagres e dons de curar) se igualam aos listados nos versículos 8 a 10. O sexto e sétimo itens (socorros e governos) são novos na discussão. Estes dois dons, diferentemente dos outros no versículo 28, não são repetidos nos versículos 29 e 30; na verdade, eles não são mencionados em nenhuma outra ocasião no novo Testamento. Esta lista, portanto, inclui ministérios pessoais, charismata e atos de serviço. Tomados em conjunto, envolvem um amplo espectro de serviços e atividades na igreja.

ApóstolosPaulo lista apóstolos em primeiro lugar. É interessante que apesar de que os outros dons se manifestavam

na congregação de Corinto, não há evidência de que Paulo cresse que cada igreja local tivesse seus próprios apóstolos. Talvez eles sejam mencionados primeiro aqui de forma a realçar seu papel na edificação do corpo e para servir como uma lembrança do ministério do próprio Paulo, como apóstolo.

100 Fee, 595.101 Charismatic Movement , 20,21.102 Ibid., 20.

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ProfetasPaulo lista profetas em segundo. Não está claro se Paulo tem em mente um “grupo específico conhecido

como ‘profetas’ vis-a-vis com ‘apóstolos’ e outros membros da comunidade”, ou se a frase é puramente funcional e refere-se a qualquer que exerça o dom da profecia.103 Se este dom for visto como cumprimento de Jl 2.28-30, pareceria estar disponível a qualquer cristão após a vinda do Espírito em Sua plenitude no Pentecostes. 1 Co 14.1 sugere que todas as pessoas cheias do Espírito seriam potencialmente profetas. Podemos concluir de Ef 2.20 e 4.11, no entanto, que havia alguns que regularmente atuavam como profetas e eram um grupo identificável.

Se assumimos que o entendimento de Paulo sobre a profecia era moldado pelo seu próprio pano-de-fundo no Judaísmo e pelo seu conhecimento do Antigo Testamento, então um profeta seria uma pessoa que falava para o povo de Deus por impulso do Espírito Santo. Com base no Antigo testamento, profecia envolve mais proclamação do que predição, apesar de que este último poderia certamente estar incluído (por exemplo, At 11.28; 21.10-14). Hermann Ridderbos sugere que profetas eram “proclamados da Palavra de Deus para a igreja, impelidos pelo Espírito, que abriam o plano da redenção de Deus, bem como o elucidavam e imprimiam nele a importância da obra de Deus em Cristo, de uma forma pastoral e parenética.”104 A mensagem profética deveria ser testada para verificar sua genuinidade e veracidade (1 Ts 5.21; cf. 1 Co 14.37-40). Assim Paulo dá diretivas específicas sobre profecia no culto (1 Co 14.29-40). Havia tempo dedicado não só para a profecia, mas também para o julgamento por parte de outros (isto é, toda a congregação).

MestresPaulo menciona mestres em terceiro lugar. O ensino é intrínseco aos ofícios de apóstolo e de bispo ou

supervisor.105 Em Ef 4.11 Paulo une mestres com pastores, o que sugere um escopo mais amplo de significado. As funções de ensinar podem incluir edificação, conforto e direção espiritual. É difícil distinguir com um bom grau de precisão as atividades dos mestres em relação às dos profetas. Ensino pode envolver uma fonte menos direta que aquela da profecia, trazendo a “tradição” da igreja. Poderria referir-se ao catecumenato, `a tradição oral e/ou doutrina, bem como a práticas da igreja e formas de culto. Finalmente, não fica claro, no entanto, se este dom designa um ofício específico ou um papel assumido por alguém ou por todos cristãos em certas circunstâncias.

Milagres e Dons de CurarVer a seção acima, sobre 1 Co 12.8-11. “A ênfase aqui não é sobre pessoas que têm estes dons, mas

simplesmente na presença destes dons na comunidade.”106

Socorros e GovernosDois novos dons são aqui introduzidos. Em ambos os casos, não está claro se os dons se referem a

pessoas ou a habilidades. O primeiro, antilempsis (“socorro”) só é referido aqui no Novo testamento (ver Lc 1.54; At 20.35 e 1 Tm 6.2 para o uso do verbo cognato). Ele parece ser um termo geral que se refere a todo tipo de assistência. Pelo menos, a palavra implica que alguns cristãos deveria atender às necessidades físicas e espirituais de outros dentro da comunidade. Ele pode ser similar aos três itens finais de Rm 12.8 (serviço, dar-se a outros em necessidade, realizar atos de misericórdia).107

O segundo item (na sua forma singular, kybernesis) significa literalmente pilotar um barco Aparece em At 27.11 e Ap 18.17 com o significado aparente de “piloto.” Na Septuaginta (Pv 1.5; 11.14; 24.6) kybernesis inclui a idéia de dar direção a alguém. O termo pode envolver liderança ou mesmo administração (apesar de que “administração” no Português contemporâneo traz a idéia de habilidades administrativas, o que provavelmente não é o que Paulo tinha em mente). Uma tradução mais acurada “poderia ser ‘atos de orientação,’ apesar de que pode se referir a dar conselho sábio à comunidade como um todo e não simplesmente a outros indivíduos.”108 Kybernesis pode assim se referir a orientar ou governar outros, talvez assumindo liderança e responsabilidade para certas tarefas e atividades.

Línguas e Interpretação de Línguas

103 Fee. 620.104 Hermann Ridderbos, Paul: An Outline of His Theology , traduzido por John Richard De Witt (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1975), 451.105 Carson, 91.106 Fee, 621.107 Note-se que não combina exatamente com o que temos na tradução em Português. N. do T.108 Ibid., 622.

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Ver as seções acima sobre 1 Co 12.8-10 com respeito a “Vários Tipos de Línguas” e “Interpretação de Línguas.”

c. Os Dons de Romanos 12

Romanos 12 (6-8) lista como dons: profecia, serviço109, ensino, exortação, contribuição, auxílio110 e realização de atos de misericórdia. Assim como no caso dos dons discutidos previamente, nenhum destes dons é facilmente identificável, nem é imediatamente claro se eles se referem a qualidades e capacidades ou a ofícios e atividades.

ProfeciaPaulo escreve aqui que a profecia deve se realizar de acordo com a analogia da fé (cf. a discussão sobre 1

Co 12 acima). Evidentemente, uma norma mais objetiva é pretendida aqui, ou seja, a fé de acordo com seu conteúdo ou, em geral, a doutrina crista.”111 Isto pode corresponder à necessidade de julgar a profecia em 1 Co 12.

Serviço“Serviço” e “servir” (diakonia) pode se referir a um amplo espectro de ministérios. Um servo pode se

referir a um garçom que serve às mesas (Lc 22.27) ou a alguém que realiza tarefas domésticas (Lc 10.40). Ridderbos observa: “Talvez a palavra, que em geral pode denotar qualquer ato de serviço, em Rm 12.7, onde a questão é justamente de especialização, tenha o significado de um serviço que auxilia em amor, expressão prática de serviço, como é utilizado por Paulo em outros locais (por exemplo, Rm 15.31; cf. v. 25; 1 Co 16.15; 2 Co 8.4ss; 9.12ss).112 Diakonia pode bem ter o mesmo sentido geral do termo antilempsis em 1 Co 12.28.

Ensino e ExortaçãoAmbos termos podem se referir a aspectos do ministério público de pregação, cada um deles

possivelmente incluindo o outro. Uma pessoa pode encorajar pelo ensino e ensinar pelo encorajamento. O encorajamento pode incluir um escopo ligeiramente mais amplo do que o ensino, englobando desde “rogar” até “confortar” e “exortar”. Exortação também pode ser usado vinculado com profecia e ao ofício de ensino (cf. Ef 4.11,12; 1 Co 12.28,29).

Não conseguimos distinguir facilmente entre dons “naturais” e “sobrenaturais” com respeito ao ensino e exortação, porque ambas atividades são realizadas também por não cristãos. Comumente falamos de pessoas que “nasceram para ser professores” e outros que têm um dom de sensibilidade e encorajamento. A diferença entre mestres e “encorajadores” cristãos e não cristãos parece ser primariamente na área do assunto (o conteúdo do ensino e exortação), apesar de que também podem diferir com respeito ao por que e ao meio pelo qual ensinam e encorajam. Stott sugere que pode existir uma ligação entre talentos pré-conversão e dons espirituais pós-conversão no caso daquele “que ensina” (Rm 12.7) e “que exorta” (Rm 12.8).113

Contribuição, Auxílio e MisericórdiaOs dons listados no versículo 8 surpreendem não por serem obviamente milagrosos ou espetaculares, mas,

pelo contrário, porque são “positivamente terrenos.”114 Paulo exorta a igreja em Roma: “aquele que contribui, com liberalidade; aquele que auxilia, com zelo; aquele que pratica atos de misericórdia, com alegria” (12.8). “Contribuição” se refere ao ofertar dinheiro e é usado em Ef 4.28 para o ofertar aos que estão em necessidade. Dos três dons mencionados nesta passagem, o mais ambíguo é auxílio. O termo aqui usado por Paulo pode se referir a alguém que “governa”115 ou “toma a liderança” e designa líderes da igreja em 1 Ts 5.12 e 1 Tm 5.17. “Aquele que realiza atos de misericórdia” denota uma pessoa que auxilia outros em necessidade. Esta atividade, pode-se notar, não está limitada a cristãos. O que parece ser novo aqui, ou, ao menos, distintivo do cristão, não é o ato, o papel, a habilidade (em si mesmos), mas o objetivo e motivo para se fazer tais coisas. Estas atividades ajudam a edificar o corpo de Cristo e são realizadas voluntaria e alegremente.

Precisamente como estes três dons diferem um do outro não está claro pelo texto. Ridderbos conclui que “não é uma questão simples formar uma idéia clara de todas estas descrições e fazer uma distinção precisa entre, por exemplo, distribuir e realizar atos de misericórdia.” O primeiro pode ter o pobre em vista, enquanto que o

109 Almeida traduz por “ministério”. N. do T.110 Almeida traduz por “o que preside”. N. do T. 111 Ridderbos, 451.112 Ibid., 465.113 Stott, 93.114 Ibid., 91.115 Esta parece ser a idéia cf. Almeida (também na BLH: “quem tem autoridade”). N. do T.

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segundo pode ser tomado em um sentido mais geral. Como Ridderbos ressalta, entretanto, “os atos de serviço de 1 Co 12.28 poderiam então envolver tanto um como o outro.”116

d. Os Dons em Efésios 4

Ef 4.11 descreve dons mais em termos de pessoas e ofícios do que de habilidades: “E Ele mesmo concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres.” Paulo parecer estar dizendo que Cristo deu algumas pessoas para a igreja, e estas eram apóstolos, profetas, etc., ou que Ele deu o ofício e comissiona certas pessoas dentro da igreja para serem apóstolos, profetas (ou ambas explicações).

EvangelistasApenas Ef 4 menciona evangelistas como um dom. Visto que esta palavra ocorre apenas três vezes no

Novo Testamento, é difícil estabelecer seu significado preciso.117 Parece referir-se a homens que se põem a caminho para proclamar o Evangelho a descrentes (At 8.4; 21.8; cf. o uso do Particípio em At 8.12,35,40) ou àqueles que serviram como auxiliares dos apóstolos. Em 2 Tm 4.5, Paulo exorta Timóteo a “fazer o trabalho de evangelista”. Se Paulo tinha em mente um ofício ou simplesmente a atividade de evangelizar, isto está aberto a discussão. Ridderbod sugere que nos primeiros anos da igreja, evangelistas “freqüentemente formavam o ligação entre os apóstolos e os líderes na igreja. Com a morte dos apóstolos, os evangelistas também desapareceram.”118

Pastores e Mestres

Pastores são mencionados juntamente com mestres em Ef 4.11. No mínimo, isto sugere um relacionamento estreito entre os dois.119 Aos pastores é confiada a liderança e cuidado da igreja (ver At 20.28, onde os presbíteros de Éfeso são incumbidos de cuidar do rebanho). 1 Pe 5.4 fala de Jesus como sendo, Ele mesmo, o pastor e bispo da igreja. Não fica claro no texto como os pastores devem ser distinguidos dos mestres.120 Pode ser que estes últimos eram encarregados da instrução e os primeiros, da orientação ou supervisão.

Ligado à tarefa do pastor de liderar, podemos notar também que em Rm 12.8 Paulo exorta aquele que preside (ho proistamenos), que exerça este charisma com zelo. Ele usa a mesma palavra (na sua forma plural, proistemi) em 1 Ts 5.12 e a liga isto àqueles que admoestam. Em 1 Tm 3.4 a exigência é feita que os bispos governem (proistamenon) bem sua própria casa. Em 1 Tm 5.17, o presidir bem é atribuído a presbíteros. Como no caso de outros dons, isto poderia referir-se tanto ao ofício como a uma atividade, com ênfase nesta última. Tanto em Rm 12 como em 1 Co 12, Paulo pode estar aludindo a presbíteros ou a bispos.

4. Todos têm Dons?O Novo Testamento parece indicar que o Espírito manifestou-se de alguma forma na vida de cada cristão,

mesmo se um dom específico esteja sem uso.121 Os quatro capítulos nos quais ocorre uma lista de dons sustentam esta conclusão.

Digo a cada um dentre vós ... pense com moderação segundo a medida da fé que Deus repartiu a cada um. ... tendo diferentes dons segundo a graça que nos foi dada ... (Rm 12.3,6).Um só e o mesmo Espírito realiza todas estas coisas, distribuindo-as como lhe apraz, a cada um, individualmente. (1 Co 12.11)A graça foi concedida a cada um de nós segundo a proporção do dom de Cristo. (Ef 4.7)Servi uns aos outros, cada um conforme o dom que recebeu, como bons despenseiros da multiforme graça de Deus. (1 Pe 4.10)

116 Ridderbos, 456.117 Mesmo sendo a palavra evangelista rara, Paulo autodenomina- se um kerix (“pregador” ou “proclamador”) em 1 Tm 2.7 e 2 Tm 1.11, que seria considerado fazendo parte do mesmo grupo de palavras.118 Ridderbod, 454.119 O uso de um só artigo (tous de poimenas kai didaskalous ) pode indicar que Paulo esteja se referindo aqui a um ofício com duas funções. Ver: Ministry: Office, Procedures, and Nomenclature , A Report of the Commission on Theology and Church Relations of the Lutheran Church - Missouri Synod, 1981, 14.120 Cf. Henry Hamann, “The Translation of Ephesians 4.12 - A Necessary Revision,” Concordia Journal 14 (Janeiro 1988): 42-49; e “Church and Ministry: An Exegesis of Ephesians 4.1-16,” Lutheran Theological Journal 16 (Dezembro 1982): 121- 28.121 Stott, 104.

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Dizer que cada um tem um dom, não significa que cada pessoa tenha recebido uma habilidade intelectual especial ou uma habilidade física. Estes dons podem incluir um ofício, uma tarefa, um papel, uma oportunidade ou uma habilidade.

Paulo diz que o Espírito concede Suas manifestações “como lhe apraz” (1 Co 12.11). Esta passagem poderia também ser traduzida por “como Ele julga conveniente ou como lhe agrada.”122 Lembramos que Jesus disse que o Espírito, como o vento, “sopra onde quer” (Jo 3.8). A ênfase em 1 Co 12.11 está menos na decisão do Espírito e mais em Sua liberdade de distribuir os dons ou para manifestar-se como ele escolhe fazê-lo.

Dois pontos adicionais podem ser feitos. Primeiro, dizer que o Espírito distribui Seus dons como Ele quer implica que não ousaremos “encaixotar o Espírito” ou esperar que Ele atue em cada situação de acordo com nossas expectativas ou desejos. Ele pode ou não dar à igreja todos os dons em determinado tempo ou lugar. Alguns dons podem desaparecer, outros podem ser acrescentados. Alguns podem aparecer em um lugar numa determinada época; outros, em outro lugar, em outra época. Deus não promete todos os Seus dons para uma determinada pessoa (cf. 1 Co 12.29,30). Isto não significa que não possamos querer ter certos dons. Paulo encoraja-nos a fazer isto. Mas o desejo por determinado dom deve corresponder a uma necessidade específica da congregação. Assim, em 1 Co 12.31, Paulo encoraja os Coríntios a desejarem aqueles dons que edificam outros.

Segundo, o Espírito distribui estes dons como Ele quer. Quaisquer que sejam os dons que o Espírito dê, eles são dados por Sua livre vontade. Todo dom é acima de tudo um dom da graça, não um “direito” ou “recompensa.” A distribuição dos dons é um ato soberano e determinado livremente pelo Espírito. É precisamente por esta razão que eles são dons da graça. Nem pode qualquer dom ser considerado “intrinsecamente” ou “inerentemente” melhor que outro. Eles são todos igualmente dons.

SumárioCerto número de pontos podem ser esboçados a partir do material bíblico, para trazer algumas diretrizes

ou parâmetros para uma discussão sobre os dons espirituais.

Definindo um Dom Espiritual

Os dados bíblicos deixam claro que qualquer tentativa de formular uma definição precisa e ampla de um dom espiritual traz consigo uma série de dificuldades. Nenhuma definição, portanto, será capaz de levar em consideração o alcance completo do que as Escrituras ensinam nesta área. Tendo este cuidado, portanto, uma tentativa de definição deveria incluir as seguintes idéias:

Dons espirituais são melhor definidos como sendo manifestações especiais do Espírito (1 Co 12.7) que chamam os membros da igreja à ação de uma forma que confesse Cristo e edifique o corpo de Cristo. Estes dons ou manifestações do Espírito podem tomar a forma de atividades, habilidades, ofícios, papéis ou mesmo pessoas.

Apesar de que esta definição é um tanto geral, ela traz a verdade de que o ensino bíblico sobre os dons espirituais é “mais rico, mais amplo e mais flexível do que alguns têm sugerido.”123

A Natureza dos Dons Espirituais

À luz da definição acima, diversas facetas dos dons espirituais devem ser guardadas em mente:1. Dons e talentos estão estreitamente relacionados. Habilidades naturais ou dons inatos são dons de Deus

da mesma forma (Gn 1.26,27; 1 Co 4.7; Tg 1.7). O que temos que não tenhamos recebido? “Talentos e dons, então, não são nem antitéticos, nem simplesmente idênticos.”124Alguns sugerem que um dom espiritual é uma habilidade dada por Deus, que “pegou fogo.” Outros sugerem que a diferença entre um dom e um talento está na maneira como os crentes exercem seus talentos, com um caráter e atitude à semelhança de Cristo.

2. Alguns dos dons exigem um caráter sobrenatural, tais como a fé heróica, os dons de milagres e os dons de curas. Estes também devem ser levados em consideração, mas são apenas uma parte do quadro total da Escritura sobre os dons espirituais.

3. Há uma relação estreita entre dons e pessoas dotadas. As listas de dons incluem tanto habilidades como pessoas. Paulo fala de profecia (1 Co 12.10) e de profetas (1 Co 12.28), de ensino e de mestres. Ele se move livremente entre os dois e faz pouca distinção entre eles.125

122 Fee, 599.123 Boyd Hunt, Redeemed Eschatological Redemption and the Kingdom of God (Nashville: Broadman and Holman, 1993), 49. A discussão abaixo segue bastante o tratamento muito útil de Hunt sobre este assunto.124 Ibid., 51.125 Ibid., 52.

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4. Dons espirituais e tarefas na igreja também andam lado-a-lado. “Nem dons sem tarefas, nem tarefas sem dons são situações toleráveis. O chamado de Deus não é somente para privilégio, mas também para responsabilidade. Há trabalho a ser feito.”126

Identificando os Dons Espirituais

1. As listas do Novo Testamento com os dons não são exaustivas. As quatro listas principais variam significantemente de uma para outra. A razão sem dúvida está nas diferentes situações abordadas pelo apóstolo. Ele seleciona os dons em cada lista para tratar de situações específicas na congregação.127

2. O caráter ad hoc das listas de Paulo também indicam que muitos dons não podem ser identificados ou categorizados com algum grau de precisão. Em vez disso, existe considerável sobreposição entre muitos dos dons.

O Propósito dos Dons

1. Dons funcionam dentro do corpo. “Frente ao excessivo individualismo em Corinto, [Paulo] ampliou o ensino sobre os dons para enfatizar sua dimensão corporativa.” A natureza corporativa dos dons e seu uso indicam que os membros do corpo precisam uns dos outros. Como resultado, nenhum lugar fica para individualismo excessivo, rivalidade, disputas e inveja, que dividem os cristãos.128

2. Os Coríntios “carnais”, ao que parece, era “famintos por milagres.” Eles focalizavam-se mais nos “milagres visíveis” do que no espectro total de dons dados pelo único Espírito para a edificação do corpo de Cristo.129

III. Uma Teologia dos Dons e Chamados na Igreja

O desenvolvimento e uso de inventários de dons espirituais levantam diversas importantes questões teológicas e práticas que precisam ser tratadas dentro da igreja. Tentando auxiliar as pessoas a encontrarem seu “lugar” ou “nicho” no corpo de Cristo, os inventários de dons espirituais chamam a atenção para o desejo dos cristãos em servir Seu Senhor com seus talentos e dons em algum espaço na igreja. Eles também realçam a necessidade de muitos pastores e da igreja como um todo em identificar pessoas para o serviço e em equipá-las para viverem suas vidas como testemunhas de Cristo. De muitas maneiras, estas preocupações concentram-se nas questões mais amplas, da piedade cristã e da doutrina da santificação.

A. A Vida no Primeiro e Terceiro Artigos130

De forma a abordar completa e adequadamente as preocupações levantadas pelo desejo de viverem como cristãos e servirem a Deus dentro da igreja, podemos expandir os parâmetros teológicos da discussão no que segue nesta seção. Isto pode ser feito, através de um esboço sobre recursos teológicos importantes dentro da tradição luterana, e que têm sido negligenciados em tempos recentes, ou obscurecidos por outros assuntos, mas que agora precisam receber renovada ênfase.131 Estes recursos incluem o Primeiro Artigo como parte integrante da estrutura teológica trazida pelo Credo Apostólico, dentro de cuja estrutura a igreja pode pensar sobre muitos dos assuntos aqui envolvidos. Por vezes os cristãos parecem dar a impressão de serem “pessoas do Segundo e Terceiro Artigos”, que estão apenas preocupados em “salvação pessoal” e com a vida no além, ou com aquelas questões que pertencem apenas ao âmbito da igreja. Como resultado, o Primeiro Artigo e suas implicações para

126 Ibid., 55.127 Ibid., 52.128 Ibid., 53.129 Cf. Frederick Dale Bruner, A Theology of the Holy Spirit (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1970), 285- 322.130 O que aqui chamamos de “Vida no Primeiro e Terceiro Artigos” tem sido descrito por outros como vida nos “dois reinos” ou “dois governos”. Ver a discussão que segue.131 Gustaf Wingren tem sido de grande ajuda ao trazer este assunto para a vanguarda da discussão teológica, como um corretivo para as teologias de Karl Barth e de Oscar Cullmann, que tenderam a minimizar a importância e papel da criação como uma estrutura para a teologia. Ver, por exemplo, Gustaf Wingren, The Flight from Creation (Minneapolis: Augsburg, 1971).

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a vida neste mundo vão para um segundo plano do pensamento e prática cristãos. Quando isto ocorre, surge o perigo de que as pessoas não apenas distingam entre as obras de Deus, mas de fato separem-nas umas das outras. O que resulta é que os dons e as obras tratadas no Primeiro Artigo acabam tendo pouco a ver com as obras de Deus apresentadas no Segundo e Terceiro Artigos e vice-versa.

Os inventários de dons espirituais correm o risco de fazerem exatamente isto, ou seja, dicotomizar o Credo. Eles tendem a considerar a questão dos dons e funções por demais estritamente, ou restritivamente, confinando-os ao Terceiro Artigo. Com aquela afirmação, vem ou uma correspondente valorização dos dons espirituais e tarefas eclesiásticas sobre as mais ordinárias tarefas do dia-a-dia da vida cristã dentro da vocação de cada um, ou, no mínimo, uma benigna desconsideração por estas últimas. Muito freqüentemente, proponentes de tais inventários reconhecem que os talentos que recebemos no Primeiro Artigo podem ser usados dentro da igreja, mas eles freqüentemente parecem não considerá-los tão altamente como os assim chamados dons espirituais do Terceiro Artigo. Como um corolário, trabalhos dentro da igreja passam a ser considerados como intrinsecamente mais valiosos do que trabalhos no mundo, ou seja, dentro de nossas vocações. Afinal (assim o pensamento segue), dentro da igreja estamos servindo ao Senhor! Na prática, também acontece facilmente de que aqueles que são ativos dentro dos muros da congregação (servindo em vários departamentos, comissões e organizações) recebem mais reconhecimento, e aqueles que trabalham fielmente como testemunhas de Cristo em suas vocações são ignorados ou desvalorizados.

Para sermos exatos, a obra de Deus na criação deve ser distinguida de Sua obra na redenção e santificação. Até um certo ponto, podemos dizer que Deus atua de uma maneira entre todas as pessoas no mundo, e de outra entre Seu próprio povo, na igreja. Mas também há continuidade na Sua obra. O que Deus criou, também redimiu e santificou. Ele redime, restaura e ressuscita nossos corpos; Ele não os aniquila. Assim como Ele atuou através da criação para nos dar vida e sustentar nossas vidas, assim Deus nos redime e santifica através de elementos da criação, através da encarnação de Cristo, através da água, através do pão e do vinho. Assim, a criação serve à redenção e a redenção consuma a criação. Isto significa que um artigo do Credo, no caso o Primeiro Artigo, informa e molda os outros dois, que edificam sobre ele. De muitas formas, o Primeiro Artigo dá o fundamento e a estrutura para os outros dois artigos. Ele dá o contexto e o ambiente para os cristãos servirem seus próximos dentro da vida e ocupações diárias. Esta perspectiva e abordagem realçam a continuidade, mais do que a descontinuidade, entre os dons associados a cada um dos três artigos.

Uma forma de abordagem ao assunto dos dons espirituais dentro do contexto do Primeiro e Terceiro Artigos é fazer as perguntas: “O que é geral e aplicável a todos, sejam cristãos ou não cristãos?” e “O que é distintivamente cristão sobre estes dons?” Pode-se errar em ambas direções ao responder tais questões. O primeiro erro é responder que não há nada distintivamente cristão no que se refere aos dons espirituais. Em outras palavras, que não há tal coisa como dons ou atividades espirituais fora dos dons e tarefas próprias da criação (inatos). Esta posição realça a continuidade, com o risco de perder de vista a natureza distinta do Segundo e Terceiro Artigos. O extremo oposto é insistir que não haja dons espirituais fora do que foi dado exclusivamente aos crentes. Apenas aqueles dons dados no Batismo ou subseqüentes à conversão poderiam ser considerados com dons espirituais. Eles teriam pouco ou nada em comum com dons da criação inatos ou naturais. Esta posição leva a descontinuidade ao extremo. Entre estes dois extremos se encontra a questão igualmente importante: “Como os ‘dons espirituais’ se relacionam aos ‘dons inatos’?”

B. Dons da Criação

Uma consideração da obra criadora de Deus, no Primeiro e Terceiro Artigos, mostrarão que tentativas de restringir os dons espirituais a “capacidades” ou “habilidades” ( muitos menos a dons concedidos com ou subseqüentes à fé) é limitar o foco e ignorar a amplitude do pensamento da Escritura sobre o assunto. O Primeiro Artigo alarga o horizonte da identificação e definição da natureza e propósito dos dons espirituais. Os dons da criação envolvem muito mais do que as capacidades e habilidades que cada pessoa possui. Começando por nossa pessoa individual, estes dons incluem olhos, ouvidos, razão e todos os sentidos. Eles incluem as necessidades básicas da vida, tais como alimento do corpo, abrigo, trabalho, tarefas e comunidade. De fato, eles incluem toda a criação, incluindo o meio ambiente, bem como sociedades e governos humanos.132 Em cada caso, confessamos estes dons do Primeiro Artigo como dons recebidos de Deus. Esta confissão traz a verdade, “O que tens tu que não tenhas recebido?” (1 Co 4.7). A doutrina da criação nos ensina que “Criador absoluto é o gracioso doador.”133

132 Cf. Oswald Bayer, Schöpfung als Anrede: Zu einer Hermeneutik der Schöpfung (Tübingen: J. C. B. Mohr, 1986), 80-108. Bayer esboça e discute a maneira como Lutero desdobra sua discussão sobre o Primeiro Artigo, em círculos concêntricos que se expandem. Ver também Oswald Bayer, “I Believe That God Has Created Me with All That Exists. An Example of Catechetical- Systematics,” Lutheran Quarterly VIII:2 (Verão 1994), 129- 61.

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Um dos pontos altos do Primeiro Artigo é sua exultação ante a variedade e diversidade da maravilhosa criação de Deus. Mesmo se nos limitamos ao âmbito do ser humano, não podemos deixar de nos admirar ante a variedade e diversidade da obra de Deus. Dons inatos vêm em todo tipo, tamanho e espécie concebível. Deus concedeu a Suas criaturas humanas em particular uma imensa variedade de habilidades intelectuais e talentos artísticos. A uns são dadas tremendas habilidades físicas; a outros, poderes de percepção únicos. Alguns são competentes no trabalho com as próprias mãos. Outros preferem trabalhar com suas mentes. A variedade e diversidade de todos estes dons inatos distinguem uma pessoa da outra, e tornam cada pessoa alguém único. Não há duas pessoas que compartilhem das mesmas personalidades, interesses, capacidades ou habilidades. Até certo ponto, estas diferenças determinam nossa identidade, o que fazemos e onde vivemos nossa vida. Isto é o que o luteranismo tem tradicionalmente entendido como “vocação.”

Embora nossos dons inatos nos definam como indivíduos e nos distinguem um do outro, é apenas na medida em que somos diferentes que podemos nos ajudar e complementar uns aos outros, trazendo aquilo que falta a outros. Deus nos criou para comunidade, com o resultado de que necessitamos uns dos outros (Gn 2.18: Não é bom que o homem esteja só”). Deus ordenou todas as coisas no mundo, assim que cada parte da criação tem seu lugar dentro do todo e funciona para o bem do todo. Já o Gênesis 1 enfatiza a ordem e a distribuição dos vários elementos da criação dos dias dois ao seis. Ele coloca ênfase especial na ordenação destas atividades como o meio de Deus, através da criação, de prover um lar para as criaturas humanas e para o sustento de suas vidas.134 O Salmo 104 especialmente realça e celebra “a ordem do mundo como uma rede de mútuo auxílio e assistência entre as criaturas que, em última análise, é a própria obra graciosa e mantenedora de Deus.”135 Neste contexto, cada pessoa tem um dom, uma tarefa, um lugar, uma função para usar como canais de sua bondade criadora para com outros.

Deus não apenas providenciou as ordens da criação; Ele também colocou sobre elas Sua bênção divina. Por meio da bênção divina (Gn 1.28: “sede fecundos; multiplicai-vos”) Deus deu à criação a capacidade de produzir vida e deu à humanidade a habilidade de propagar-se, isto é, produzir vida e providenciar tudo o que é necessário para sustentar a vida. Assim, a palavra que criou a partir do nada continua a provar que é eficaz. Ela carrega consigo poder de Deus de trazer vida. “Sem ela, não haveria vida real.”136 A bênção divina continua a obra de Deus na criação,137 assim que a própria obra da criação continua (creatio continua).138 Deus continua a criar, através das ordens e estruturas da criação, que por sua vez funcionam como aquilo que Lutero denominava as “máscaras de Deus.”139

133 De uma monografia não publicada, de William Weinrich, “Creatio Ex Nihilo; The Way of God,”8.134 É interessante que do terceiro ao sexto dias há um espaço desproporcionalmente maior do que no primeiro e segundo dias da criação. São precisamente aquelas coisas criadas do terceiro ao sexto dias que dão suporte mais direto à vida dos seres humanos. O fluxo do pensamento é tal que estes dias são todos preparatórios para o ápice da criação de Deus, no sexto dia.135 De uma monografia não publicada de William Weinrich, “God, the Creator,” 4.136 Claus Westermann, Creation , traduzido por John J. Scullion (Philadelphia: Fortress Press, 1974), 46.137 Gordon J. Wenham, Word Biblical Commentary: Genesis 1-15 (Waco, Texas: Word Books, 1987), 24. O cumprimento da bênção fica muito evidente na dádiva de filhos e na lista de gerações. Pode ser observado que, onde a pessoa moderna fala de sucesso, o Antigo Testamento falava de bênção.138 É digno de nota que bara , “criar”, é usado freqüentemente em estreita proximidade com barak , “abençoar”, (Gn 1.21,22,27,28; 2.3; 5.1,2). Isto sugere que criação e bênção estão unidas ao propósito divino.139 Na visão de Lutero, “as coisas e relacionamentos externos, nos quais o homem vive, representam Deus para ele; eles são ‘máscaras’ de Deus” (Gustaf Wingren, Luther on Vocation , traduzido por Carl C. Rasmussen [Philadelphia: Muhlenberg Press, 1957], 117). Lutero diz: “Todo nosso trabalho no campo, no jardim, em casa, na guerra, no governo - em que tudo isto importa perante Deus senão como passatempo de criança, por meio do que Deus se alegra em dar Seus dons no campo, em casa e em toda parte? Estas são as máscaras de nosso Senhor Deus, por detrás das quais Ele quer estar oculto e fazer todas as coisas” (Ibid., 137,38). Como Wingren explica, “Em vez de vir em majestade visível (nua), quando dá um dom ao homem, Deus coloca uma máscara ante Sua face. Ele se veste na forma de um homem comum, que realiza seu trabalho na terra. Os seres humanos devem trabalhar ‘cada um de acordo com sua vocação e ofício’: através destes, eles servem como máscaras de Deus, por detrás dos quais Ele pode se esconder quando concede Seus dons” (Ibid., 138). “Uma máscara tanto esconde como revela o Criador. Assim é que ordens, ofícios e estados são também larvae Dei [máscaras de Deus] através dos quais Deus está constantemente confrontando os seres humanos com Sua vontade e Seu poder” (Donald R. Heiges, The Christian’s Calling , Edição revisada [Philadelphia:

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1. O Uso dos Dons e Talentos dentro da Criação

Deus quer que cada pessoa, com seus dons e habilidades, sirva como instrumento de bênção para outros. Por esta razão, é próprio falar de todas as Suas criaturas, incluindo os seres humanos, como cooperadores - embora não co-criadores - com Deus. Lutero escreve no Catecismo Maior:

Nossos pais e todas as autoridades, e a mais disso cada um relativamente ao seu próximo, têm ordem de nos fazerem toda sorte de bem. De maneira que não o recebemos deles, senão de Deus por intermédio deles. As criaturas são apenas a mão, o canal e o meio através de que Deus tudo concede, assim como dá seios e leite à mãe para dá-los à criança, e dá grãos e toda espécie de frutos da terra para alimentação. Criatura nenhuma pode produzir, por si mesma, um só que seja desses bens.140

Todos os nossos talentos e habilidades, tudo o que envolve quem somos, Deus nos concedeu através de nossos pais e daqueles que receberam responsabilidade sobre nós.

Da mesma forma como recebemos dons de Deus através de Suas criaturas, também nós nos tornamos canais para a atividade criadora de Deus fluir a outros. Biblicamente este pensamento está presente no relato da criação - a humanidade foi feita à imagem de Deus e recebeu a comissão de exercer domínio sobre a terra. A imagem de Deus (Gn 1.26-28) não apenas diferencia os seres humanos do restante da criação. Ela os habilita a representarem Deus na terra e a gerenciarem, como reis benevolentes, o estado terreno estabelecido pelo Criador. Nas palavras do Sl 8.5, “Fizeste-o, no entanto, por um pouco, menor do que Deus, e de glória e de honra o coroaste.” Ser “coroado” significa receber a glória e a honra de governar sábia e benevolentemente sobre as obras das mãos do Criador. Em Cristo vemos da forma mais bendita e perfeita a natureza deste domínio. Mas mesmo Adão e Eva, como criaturas de Deus, trataram com a criação no interesse do Criador. Eles deviam realizar a vontade do Criador para com Sua criação e expressar Sua preocupação pela preservação da vida. Eles deviam ser cooperadores com Deus na obra continuada da criação. Isto se aplica agora a todas as pessoas, sejam cristãos ou não. Para sermos exatos, estes últimos freqüentemente servem como instrumentos de Deus de forma involuntária e de má vontade, mas Deus continua a realizar Sua obra, mesmo através de pais, patrões e governantes não cristãos.

A imagem de Deus está diretamente ligada à comissão subseqüente, de ter domínio sobre a terra. Através de todo o Antigo Testamento, o vocabulário de domínio descreve o papel de reis (Sl 8; 72) que deveriam personificar o próprio governo gracioso de Deus. “Deste-lhe domínio sobre as obras da Tua mão, e sob seus pés tudo lhe puseste” (Sl 8.6). Gn 2.15 mostra que domínio não significa nem dominação, nem autonomia, mas responsabilidade pelo cuidado e cultivo da terra. Os seres humanos devem supervisionar a terra e garantir que ela continue a proporcionar o que for necessário para a promoção e preservação da vida.141 Inicialmente, isto tomou a forma de dois meios de vida básicos: agricultura sedentária e a vida nômade. Assim vemos Caim cultivando e Abel pastoreando (Gn 4). A implementação da comissão divina breve resultou em uma sucessão de realizações, tais como a edificação de cidades, o cultivo da arte e música, e o desenvolvimento da tecnologia (Gn 4.17-26). De modo geral, o Antigo Testamento apresenta uma visão positiva do desenvolvimento e progresso da civilização para áreas de especialização, à medida que brotava do domínio ordenado em Gênesis.142

À medida em que consideramos a criação e vemos uns aos outros como representantes de Deus, as descrições de trabalho que estabelecem nossos deveres e responsabilidades são dados em e com as ordens e estruturas da própria criação. Deus deu a cada pessoa uma “situação” e “local” onde cada um pode utilizar seus dons em favor dos outros. Na verdade, cada pessoa estará em um ou mais locais em um determinado tempo. Podemos ser pais e filhos, esposos e esposas, vizinhos e amigos, patrões ou empregados, governantes e cidadãos.

Nossa situação dentro desta rede de relacionamentos humanos descreve nosso papel e, até certo ponto, o determina.143 As necessidades daqueles de quem temos a nossa volta funcionam como chamado de Deus para que sejamos Seus cooperadores na criação. Se sou pai, tenho um chamado para cuidar de meus filhos. Se sou casado, sou chamado a tratar com carinho meu(minha) cônjuge. Fazemos aquilo que recebemos para fazer quando fazemos tais coisas. Em cada caso, as necessidades destas pessoas (e talvez as necessidades de toda a criação) funcionam, como chamado de Deus para nossa atuação. Em cada uma destas situações, fazemos uso de nossos dons - para alimentar e vestir nossos filhos, para auxiliar e favorecer nossos vizinhos, ou para servir nossos patrões, tendo em retorno o salário, que é usado para manter nossa vida terrena. Os Dez Mandamentos

Fortress Press, 1984], 52). 140 Livro de Concórdia , 398 (CM 1a parte 26).141 James Limburg, “The Responsibility of Royalty: Genesis 1-11 and the Care of the Earth,” Word and World 11 (Primavera 1991), 124- 30.142 Para um outro excelente exemplo da maneira como os valores do Antigo Testamento são expressos, ver Ec 2.24,25.143 Heiges, 50,51.

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estão enraizados na criação e estabelecem como podemos propriamente usar nossos dons no serviço da criação de Deus, dentro de nossa vocação ou estado.

Entre os mais preciosos e úteis de todos os dons recebidos pela humanidade na criação, para auxiliar no desempenho da comissão recebida, do domínio, é o dom da razão. “Para a criatura é dada uma capacidade para agir, correspondente a sua natureza; e esta capacidade para agir é exercitada por uma liberdade correspondente à intenção divina.”144 Este dom é utilizado para decidir como, onde, quando e até que ponto serviremos a Deus como cooperadores. Dentro dos parâmetros de nossas contingências como criaturas, podemos usar a razão de forma criativa para encontrar tantas maneiras diferentes de usar nossos talentos e tempo, quantas há pessoas. Isto mostra que o trabalho que Deus nos deu para realizarmos não é algo estático. Por meio de uma genealogia, Gn 4.17-26 nos mostra que a comissão para trabalharmos “inclui todo o problema da divisão de trabalho, bem como o progresso na arte e tecnologia.”145

A discussão acima leva à conclusão de que através do uso das faculdades de nossa mente, podemos desenvolver muitas ferramentas e instrumentos para auxiliar as pessoas a expor seus talentos e encontrar um lugar no mundo de Deus, para trabalharem e atuarem. Estes instrumentos podem revelar fraquezas que devem ser fortalecidas, ou pontos fortes que estão sendo pouco utilizados. Tal descoberta pode levar a novas direções na vida da pessoa ou abrir novas portas de oportunidade para serviço. Assim, ferramentas têm sido desenvolvidas para o uso nas escolas e por conselheiros.146 Ocasionalmente a igreja pode fazer uso de instrumentos similares, como aqueles administrados nos Seminários,147 para auxiliar no traçado do perfil pessoal dos estudantes. Tais testes são determinados para reconhecer os pontos fortes e fracos dos estudantes, assim que o Seminário possa melhor ajudá-los a utilizarem Seus talentos dados por Deus, dentro da igreja quando eles se tornarem pastores. Eles não pretendem fornecer a certeza infalível da presença do Espírito ou para medir a extensão da atividade do Espírito nos estudantes.

Parece que os inventários de dons espirituais pertencem a uma categoria semelhante ao citado acima. Não há inventários ou estratégias biblicamente estabelecidos para descobrir, desenvolver e desenvolver nossos dons. Deus nos tem dado o dom da razão para desenvolver tais instrumentos e ferramentas. Seu uso, portanto, deveria estar sujeito aos mesmos padrões científicos de exatidão e perfeição que são aplicados às ferramentas semelhantes utilizadas na sociedade em geral. Em outras palavras, eles devem estar sujeitos aos padrões da razão.

2. O Mau Uso de Dons e Talentos

O plano de Deus para a criação, no entanto, não funcionou como Ele pretendia. Sua obra criadora foi obscurecida e obstruída em grande parte porque os seres humanos cobiçaram as coisas criadas e, desta forma, transformaram estes dons do Primeiro Artigo em ídolos. De fato, “a postura de conquista ... constitui a atitude básica da descrença em relação ao Deus doador e criativo” e “automaticamente implica uma atitude de desamor” para com outros.148 O Primeiro Mandamento realça a maneira fundamental na qual Deus e os seres humanos se relacionam um ao outro: Deus dá, nós recebemos. Toda idolatria pode ser descrita como uma falha em reconhecer o Criador como sendo distinto da criatura. Wingren descreve esta frustração da criação como segue:

Ao procurar Deus na criação, que por si mesma necessita do que o homem necessita, o homem não atinge aquela vida que procura, mas apenas a morte, e sua descrença se torna maior. Por ligar-se às coisas da criação, sem ser capaz de deixá-las pelo medo de perdê-las, a porta através da qual o homem deveria passar, de modo a dar ao seu próximo, fica ainda mais bloqueada, e sua insensibilidade para com seu próximo fica ainda maior. Por curvar-se àquilo que foi criado, como se estivesse sujeito a estas coisas, e por fazer-se um escravo delas, o homem perde a possibilidade de se colocar sobre a criação, “governando-a” e “subjugando-a” a si mesmo (Gn 1.28).149

O que é dito aqui, se aplica não só a posses, mas ao tempo, tarefas, talentos e habilidades. Quando estes são cobiçados e utilizados unicamente para o ganho ou satisfação pessoais, eles não podem beneficiar o próximo. Quando cometemos este pecado, promovemos nossos interesses às custas de nosso próximo. O uso egoísta de posses e talentos não consegue evitar de ser destrutivo tanto para a família como para a comunidade

144 Weinrich, 4.145 Westermann, 21. O Novo Testamento continua esta aprovação do valor e necessidade do trabalho em ocupações do dia-a-dia (Mc 6.3; At 18.3; 1 Tm 5.8; 2 Ts 3.10- 12; Tt 3.1; cf. 1 Co 7.20). Cf. Heiges (38,39) para uma discussão útil sobre este assunto.146 Não traduzimos aqui exemplos fornecidos de Testes vocacionais em uso nos EUA. N. do T.147 Idem.148 Gustaf Wingren, Creation and Law , traduzido por Ross MacKenzie (Edinburgh and London: Oliver and Boyd, 1961), 50.149 Ibid., 51.

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mais ampla. A cobiça e o mau uso dos talentos resultam em julgamento e no domínio da morte, isto é, a desordenação da criação e da atividade vivificadora de Deus na criação.150

Apesar do impacto da cobiça e da resultante obstrução das intenções criadoras de Deus, a obra criadora de Deus continua. A humanidade não tem sido capaz de impedir totalmente a obra criadora de Deus. Após a queda em pecado, a atividade criadora de Deus tomou uma dimensão de Lei e Evangelho. A obra criadora de Deus continua a “promover a bênção e a vida, e a impedir a condenação e a morte.”151

Nem mesmo a pessoa mais pecaminosa e desobediente, nem mesmo o próprio diabo, o príncipe dos maus espíritos, pode anular a obra de Deus. Isto é verdade quanto a Sua criação original, bem como quanto a sua contínua e criadora luta contra os poderes da morte e destruição. Através de Sua lei e da ordem da criação Deus constantemente mantém a vida e a bênção no meio daquele mundo onde o pecado humano espalha morte e condenação.152

O mundo continua a produzir coisas boas. O governo procura manter a paz e trazer prosperidade. Os pais continuam a providenciar o necessário para seus filhos. Todavia, em cada caso as cicatrizes do pecado estão evidentes, onde quer que olhemos. É um testemunho da bondade e atividade criadora de Deus que estas coisas continuem a acontecer apesar de toda tentativa pecaminosa da humanidade de destruir as estruturas da criação e a construção da comunidade humana. Deus atua através de médicos, para curar outros, mesmo quando aqueles procuram egoisticamente beneficiar a si próprios. Ele continua a atuar através de fazendeiros e mercadores, que abastecem com alimento, mesmo quando os pensamentos destes estejam totalmente voltados para o acúmulo de fortuna. “A vontade do Criador segue como uma corrente no fundo do rio das obras humanas, e não é perturbada mesmo quando a superfície se encrespa.”153 Como um dique, a atividade criadora de Deus procura deter a morte, ainda que não a destrua (a destruição da morte é obra própria de Cristo). O Primeiro Artigo estabiliza o paciente de modo que possa ser levado à sala de operação do Segundo Artigo.

C. Segundo e Terceiro Artigos: O Espírito Santificador e os Dons Espirituais

Fora do Segundo e terceiro Artigos e como resultado da queda em pecado, o que é único e distintivo de cada pessoa é freqüentemente visto pelo indivíduo como sua posse pessoal. Ao invés de ver os dons de Deus como tendo sido recebidos para o benefício de outros - como canais através dos quais Sua bondade pode fluir através de nós para outros - usamo-los em serviço próprio e propósitos de autopromoção. Devido ao pecado, a própria criação sofreu um desvio, tendo como resultado que suas estruturas, ordens e dons se fragmentaram. Não deveria surpreender, portanto, que nossos dons e habilidades inatos sejam tão freqüentemente não utilizados, ou pouco utilizados ou mesmo mal utilizados.

No Segundo Artigo vemos que Cristo nos redime e nos restaura para Si mesmo, inaugurando assim uma nova criação, uma restauração e reclamação de tudo o que se desviou. No Terceiro Artigo encontramos a pessoa e obra do Espírito Santo. Os dons próprios atribuídos ao Espírito, no terceiro Artigo, brotam dos dons conquistados no Segundo Artigo. No Segundo Artigo confessamos que Cristo os obteve; no Terceiro, que Ele os concede. O Espírito Santo derrama sobre nós o perdão dos pecados, vida e salvação obtidos por Cristo. Este é o dom próprio e, de fato, único, do Terceiro Artigo. O dom comum do perdão dos pecados se coloca como o ponto alto do Terceiro Artigo. Nós todos recebemos o mesmo perdão dos pecados. Recebemos a mesma confissão de Cristo. O dom do perdão que nos leva a confessar Cristo como Senhor não é encontrado senão na igreja, onde é distribuído.

Nos Catecismos Lutero mostra o Espírito Santo como o Espírito santificante. O Espírito santifica por nos iluminar e chamar. Ele nos santifica dando-nos as bênçãos de Cristo.154 Assim, santificação envolve minha pessoa inteira e tudo que faço - quem sou perante Deus e minhas ações para com os outros. Com este tema, Lutero une o que podem parecer cinco itens desconectados, mencionados no final do Credo Apostólico: a santa igreja cristã, a comunhão dos santos, a remissão dos pecados, a ressurreição da carne e a vida eterna. O Espírito nos santifica, reunindo-nos na igreja. Nesta igreja, Ele nos santifica diariamente através do perdão dos pecados, e finalmente através da ressurreição da carne e da vida eterna.

A obra santificante do Espírito Santo terá importantes implicações para nosso entendimento da obra do Espírito dentro de nós e para o uso de nossos talentos, energias e ações. No Primeiro Artigo confessamos a Deus

150 Ibid., 49.151 Regin Prenter, Creation and Redemption , traduzido por Theodor I. Jensen (Philadelphia: Fortress Press, 1967), 202.152 Ibid., 204.153 Wingren, Creation and Law , 96.154 Embora o termo santificação possa ser empregado para se referir (1) à justificação e a subseqüente transformação interna do cristão, ou (2) apenas a transformação moral, devemos notar que também pode ser utilizado, como Lutero freqüentemente o faz no Catecismo Maior, como (3) sinônimo de justificação.

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como Criador. No Terceiro Artigo confessamo-lo como aquele que santifica e recria. Isto tem ramificações no que se refere a nossa individualidade e para nossa vida em conjunto em comunidade.

1. Diversidade na Unidade: Muitos Membros e Dons

A individualidade de cada crente não é nem destruída, nem suprimida dentro do corpo de Cristo, a igreja. O Terceiro Artigo nem deprecia ou diminui a importância dos dons da criação, nem ignora seu uso na igreja. A unidade que temos em Cristo não destrói a integridade e diversidade da criação de Deus. O perdão abole a maldição do pecado e, no final, destrói o poder do pecado, mas não destrói a criatura. O Espírito restaura e purifica o que é criado, mas não o substitui. Deus opera através da criação para dar, sustentar e proteger a vida. Ele entrou para a nossa história, para nos resgatar por meio da encarnação, morte e ressurreição de Cristo. Ele também nos santifica através de meios da criação - água, palavras, pão e vinho. Da mesma forma, Deus continua a fazer uso da Sua criação (incluindo nossos dons e atividades inatos) como os meios pelos quais quer agir - não apenas no Primeiro Artigo, mas também no terceiro Artigo. Deus não apenas usa dons inatos para a extensão da vida no mundo, mas também os traz ao serviço do Evangelho. Quando o Espírito opera através de um crente para ministério, ele “opera com a individualidade e identidade dadas por Deus àquela pessoa.”155 A imagem do corpo pressupõe uma variedade de membros com diferentes funções: olhos, ouvidos, mãos, pés e assim por diante. Deus o criou assim. Paulo reforça esta idéia ao enfatizar que Deus “dispôs” os membros no corpo e “coordenou” suas partes (1 Co 12.18,24).

Assim como o perdão dos pecados e o Batismo restauram-nos para nossa situação própria perante Deus, também começam a reclamar todos os nossos dons e talentos para seu uso e propósito próprios no serviço de Deus. Visto que a obra do Espírito é santificar, parece razoável sugerir que “dons espirituais” são aqueles dons que foram “santificados” pelo Espírito Santo. Em outras palavras, estes são os dons que foram purificados pelo Espírito, despidos do embaraço do pecado, e agora restaurados para seu uso próprio. O Espírito purifica e santifica não apenas nossas pessoas, mas também nossas obras (assim que toda obra no Espírito é uma obra espiritual) e nossas tarefas (assim que nossos dons da criação se tornam dons do Espírito). Assim como o Espírito nos santifica e nos consagra para os propósitos de Deus, assim também o Espírito santifica todo o que temos e tudo o que fazemos. O impacto da santificação sobre nossos dons inatos pode ser visto de pelo menos três perspectivas.

Primeiro, é de se esperar que quando uma pessoa é trazida à fé, ela não deixa para trás os dons inatos e os coloca para fora da porta da igreja. Em vez disso, indivíduos trazem para a igreja todos os dons e talentos que Deus lhes deu quando os criou, assim que possam colocar estes dons a serviço do Evangelho. O Espírito Santo “opera através de pessoas, não em lugar delas.”156 Usamos a mesma voz, mãos e mente no serviço do Evangelho, que utilizamos em nossas vocações. Muitos que entram na igreja usam agora, dentro da igreja, aqueles talentos que usam em outros lugares, no serviço da criação e da comunidade. Uma pessoa que trabalha como contador durante a semana, pode muito bem usar os dons que acompanham esta função, servindo como um gerente administrativo da congregação. Uma pessoa que cante profissionalmente pode muito bem servir como dirigente de coral ou solista dentro da igreja. Aqueles que são líderes dentro de diversas profissões ou dentro da comunidade, são prováveis candidatos para posições de liderança na igreja. Em cada um destes casos, há um certo grau de continuidade entre o servir a comunidade de Deus na sociedade e o servir à comunidade redimida dos santos. Os dons utilizados em nossas ocupações (criação de Deus) são agora usados também dentro do corpo de Cristo (a nova criação de Deus) sem deixar aqueles para trás. Ao invés de serem pressionados para o serviço de Satanás, estes dons são agora colocados no serviço de Deus.

Segundo, pode acontecer que antes da pessoa tornar-se cristã e ser trazida à igreja, seus dons inatos tinham estado latentes por um número de razões. Talvez alguns cristãos nunca tiveram a oportunidade de exercitar estes dons ou lhes faltou coragem e confiança para envolver-se em certas tarefas por medo de falharem. Isto, naturalmente, agrada Satanás, que procura suprimir e inibir a criação de atuar assim como Deus pretende que atue, opondo-se assim às dádivas generosas de Deus através da criação.

Quando pessoas se tornam membros do corpo de Cristo, tendo sido recriadas para boas obras, não deveriam surpreender-se que dons que estavam dormentes agora florescem e “pegam fogo” pelo poder do Espírito, assim como confessado no Terceiro Artigo. O Batismo compromete a pessoa a um diário afogar e levantar através da confissão e absolvição, assim que o velho eu cobiçoso é morto e o novo Adão venha, para usar os dons de Deus para o propósito para os quais Ele os deu. Acontecerá, então, que “a vida da congregação refletirá o florescer da originalidade individual de seus membros, porque aquilo que era próprio e privado de alguém está sendo subjugado e posta à morte.”157

155 Hunt, 51.156 Ibid.157 Gustaf Wingren, Credo: The Christian View of Faith and Life , traduzido por Edgar M. Carlson (minneapolis: Augsburg, 1981), 152.

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Os dons de um cristão podem florescer de diversas maneiras. Dons dos quais a pessoa nem estava à par pode vir à tona e ser descobertos. “Sem dúvida, visto que os crentes são novas criaturas em Cristo (2 Co 5.17), o Espírito concede habilidades e graças que surpreendem mesmo as próprias pessoas.”158 Ou um cristão pode subitamente encontrar a oportunidade de usar dons, onde estavam faltando oportunidades antes. “No serviço nos tornamos o que em nosso mais profundo ser já somos. Fora do corpo de Cristo, nossos dons estariam sem uso e não teriam sentido.”159E, para sua alegria, um cristão por mesmo usar tais dons e talentos com uma nova motivação e desejo, operados pelo Espírito.

O valor desta perspectiva é seu reconhecimento de que Deus normalmente opera através de meios. Os dons que cada pessoa tem foram dados por Deus por intermédio de outros. Eles foram descobertos e desenvolvidos através da assistência de pais, professores e escolas. Isto realça a continuidade da obra de Deus na criação e santificação, sendo que o primeiro encontra cumprimento no segundo. Deus restaura, reivindica e recria aquilo que ele já deu. E Ele o faz por meios naturais.

Finalmente, o que está dito acima não pretende sugerir que Deus não poderia ou não teria dado dons excepcionais e sobrenaturais aos Seus servos, necessários para tarefas especiais. O Novo Testamento menciona explicitamente poderes, dons de curas e línguas. Parece claro, no entanto, que estes são dons extraordinários, talvez dados para circunstâncias extraordinárias. Declarações inequívocas sobre quando ou como eles são dados ou descobertos não podem ser feitas com qualquer grau de confiança. Parece que tais dons são dados de acordo com as necessidades do povo de Deus. Assim, pode bem ser que eles não são nem dados, nem descobertos até que a pessoa esteja em uma tal situação que requeira o auxílio de um dom específico. Isto se aplicaria especialmente a dons tais como fé corajosa, martírio e uma esperança sem oscilações em um tempo de severo teste (1 Co 12.11). Outros dons (tais como o dom de apóstolos) podem bem ter cessado de existir quando cumpriram com seu propósito.

2. Unidade na Diversidade: Um Corpo

Além de reconhecerem sua individualidade e a o aspecto distintivo de seus dons, conforme o Primeiro e o Terceiro Artigos, os muitos membros da igreja - com seus diversos dons e talentos - devem também funcionar juntos como um corpo para o bem dos outros dentro do corpo. Fora do corpo, os membros individuais são inúteis e a comunidade se torna prejudicada. O que tem de bom uma mão cortada do corpo ou um olho arrancado? Mesmo a sociedade em geral sofre muito quando deixa de reconhecer a necessidade dos indivíduos trabalharem juntos para o “bem comum.” Em vez de usarem os bens da criação para o benefício de todos, as pessoas acumular e cobiçam - com o resultado de que a própria comunidade fique seriamente machucada e desordenada. O corpo de Cristo, como Sua nova criação, deve se manifestar ante o mundo como a comunidade humana como pretendia que fosse e trabalhar em conjunto como deveria (ver Ef 3.10). Ao invés de serem usados para propósitos egoísticos, os dons de Deus são agora usados para o benefício da comunidade, isto é, da igreja.

Em 1 Co 12 Paulo enfatiza: “Pois em um só Espírito todos nós fomos batizados em um corpo” (v. 13). Ele acentua o tema da unidade duas vezes: “Por um só Espírito ... em um corpo.” Há um Batismo, um Senhor, uma igreja. O que foi separado pelo pecado é colocado junto por Cristo. Nós todos fomos feitos um corpo. Ao entrarmos neste um corpo, entramos com tudo o que somos e tudo o que nos faz as pessoas únicas que somos. Tudo o que temos - nossos talentos, nossos corpos, nossas ferramentas, nossos interesses, nossas diferenças - entrem no serviço do único corpo. Todos os indivíduos e todos os dons são agora usados para o propósito e benefício daquele corpo. Aqui descobrimos quem somos e para o que fomos criados.

A imagem bíblica da igreja como um corpo tem sempre sido crucial para a teologia luterana. Em nenhum outro lugar sua natureza e importância são melhor expressas do que no Catecismo Maior.

Creio que existe na terra um santo grupinho e congregação composto apenas de santos, sob uma só cabeça, Cristo, grupo congregado pelo Espírito Santo, em uma só fé, mente e entendimento, com diversidade de dons, mas unânimes no amor, sem seitas e sem cismas. Eu também sou parte e membro dessa congregação, co-participante e co-desfrutante de todos os bens que possui.160

Como Paul Althaus observou, “Lutero nunca pensa da reunião dos muitos na unidade da comunidade sem entender a unidade em termos do ser membro no corpo e assim compartilhar uns com os outros.”161 Por um número de razões, a declaração de Lutero é importante pelo que diz sobre a natureza da igreja e a maneira na qual os dois aspectos de comunhão correspondem a fé e amor.162

158 Hunt, 51.159 Wingren, Credo , 153.160 Catecismo Maior 2 a parte 51,52.161 Paul Althaus, The Theology of Martin Luther , traduzido por Robert C. Schultz (Philadelphia: Fortress Press, 1966), 297.162 Ibid., 294- 97.

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Primeiro, Lutero afirma que todo cristão possui em comum com outros todos os benefícios e bênçãos de Cristo. Há um Batismo, um Senhor e um Espírito. Todos igualmente colocaram seus pecados sobre Cristo e todos igualmente receberam Seus bênçãos e benefícios. Apesar deque o catecismo Menor realça a individualidade, quando enfatiza que o Espírito “me chamou ... me iluminou ... me santificou e preservou,” imediatamente segue enfatizando que aquilo que aconteceu com respeito a cada cristão não é algo que só a ele pertence. Os próprios dons que são dados a cada um como resultado da obra de Cristo se aplicam a todos dentro da igreja. E assim temos a transição crucial: “assim também” Deus em Jesus Cristo chamou, reuniu, iluminou e conservou toda a igreja cristã na terra. O Espírito agiu em mim da mesma forma como tem agido em toda a igreja cristã, em todos os lugares e em todos os tempos. Esta atividade comum, com os dons comuns, nos traz juntos em uma igreja, um corpo. Estes dons e atividades são o que temos “em comum” - o próprio sentido de koinonia (comunhão) no Novo Testamento. Todos foram chamados pelo mesmo Evangelho e iluminados com os mesmos dons. Todos receberam rica e diariamente o mesmo perdão dos pecados. O dom do perdão, em lugar de distinguir-nos uns dos outros, coloca-nos no mesmo patamar diante de Deus. A mensagem de Paulo aos Coríntios é que, apesar de possuirmos diferentes dons, recebemo-los todos de um e o mesmo Doador.

Segundo, as palavras de Lutero nos ensinam que todos os cristãos não apenas compartilham da confissão comum de Cristo, mas cada pessoa compartilha tudo o que tem, com os outros membros do corpo. A igreja manifesta aquilo para o que fomos criados, mesmo agora, enquanto aguardamos seus cumprimento final:

Creio que nesta congregação, ou igreja, todas as coisas são comuns, que as posses de cada um pertencem aos outros e que ninguém tem algo que é unicamente seu; portanto, todas as orações e boas obras de toda a congregação devem ajudar, aiistir e fortalecer a mim e a cada crente em todos os tempos, na vida e na morte, e assim cada um carregar as cargas dos outros, como ensina Paulo.163

Lutero entende communio (comunidade) “como o compartilhar de bens entre os crentes, o dar e receber dos membros para e da cada um dos outros, o tornar-se um com todos os outros, e trabalhar um pelo outro.”164 “Cada dom, cada poder, toda a saúde, paz e pureza pertencem ao amor e aos irmãos.”165 Desta forma, a igreja começa a expressar a recriação da humanidade perante Deus.

A unidade do corpo envolve um compartilhar de muito mais do que simplesmente dons definidos como “habilidades.” Ela envolve todos os bens, posses, cargas e trabalhos dos membros. Althaus observa três elementos: “Primeiro, o sacrifício das posses temporais e o serviço físico aos homens; segundo, serviço através de doutrina, consolação e intercessão;” e terceiro, “suportando as fraquezas do irmão e o compartilhar por parte daqueles a quem Deus tem sido gracioso e protegeu dos pecadores.”166 Semelhantemente, a ênfase da Escritura no uso dos dons não é tanto um chamado para “puxarmos juntos” em uma direção comum ou para lutarmos por um objetivo comum (como, por exemplo, expansão missionária).167 Antes, a Escritura enfatiza a importância de usarmos os dons que recebemos, para o benefício dos outros membros do corpo. Dentro do corpo há uma mutualidade de compartilhar que não existe entre aqueles que estão no corpo e aqueles que não estão. Isto significa não apenas que nos interessamos por cada um dentro do contexto da igreja e sua várias atividades, mas que continuamente nos preocupamos uns pelos outros onde quer que nos encontremos.

D. O Lugar dos Inventários de Dons Espirituais

Uma das questões levantadas pelo uso dos inventários de dons espirituais diz respeito à necessidade de que as pessoas saibam como e onde eles se encaixam na vida e atividades da igreja. Estas ferramentas pretendem ajudar as pessoas a descobrirem seus dons, de modo que possam encontrar onde podem ser de maior ajuda no corpo de Cristo. Ao empreender este esforço válido, a aplicação do Primeiro e do Terceiro Artigos do Credo fornece una estrutura para formularmos uma resposta adequada.

Primeiro de tudo, parece que os inventários de dons espirituais não precisam ser rejeitados de todo. Eles bem podem ter seu lugar e papel a cumprir. No entanto, hesitaríamos em chamá-los de inventários de “dons espirituais”. Eles podem ser de ajuda em identificarem nossos dons naturais (inatos) assim que possamos melhor servir a Deus onde quer que estejamos. Os métodos de identificar dons espirituais nos inventários utilizados presentemente não são realmente desenvolvidos a partir de quaisquer princípios bíblicos ou passagens bíblicas.

163 “ A Brief Explanation of the Creed” (1520), Works of Martin Luther , vol. 2, traduzido por C. M. Jacobs (Philadelphia: A. J. Holman, 1916), 373.164 Althaus, 296. Para uma visão geral do desenvolvimento histórico na terminologia e entendimento de Lutero sobre a igreja, ver: Thomas M. Winger, “ Communio Sanctorum: Gemeine or Gemeinschaft?” in Concordia Student Journal 15 (Páscoa 1992): 10-19.165 Althaus, 308.166 Ibid., 308,9.167 Isto não é para sugerir que estes fatores estejam excluídos ou não sejam importantes, mas simplesmente que eles não são mencionados ou tratados como o assunto em discussão.

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Apesar de que inventários de dons espirituais se propõem a auxiliar cristãos a descobrirem seus “dons espirituais,” parece não haver nada particularmente “espiritual” ou distintivamente cristão sobre os passos usados para descobrir estes dons. Eles ficam naquilo que chamamos usualmente de “senso comum.”

Considere os passos que são freqüentemente recomendados para se descobrir os dons de um cristão: (1) explore as possibilidades; (2) experimente tantos dons quantos puder; (3) examine seus sentimentos.; (4) avalie sua eficácia, isto é, veja o que vai acontecer; (5) espere confirmação de outros. Estes pouco diferem das considerações que muitas pessoas, cristãs ou não, levam em conta ao tomarem os mais diversos tipos de decisões na vida (por exemplo, que tipo de exercício poderia ser o melhor para eles; que carreira gostariam de entrar; ou em que tipo de serviço comunitário gostariam de estar envolvidos). Em cada caso, as pessoas tendem a explorar as possibilidades, vendo quais opções existem e em que delas eles poderiam ser bons ou gostar de fazer. Muito freqüentemente não sabemos o que é o melhor para nós ou mesmo o que gostamos, até que tentemos uma variedade de atividades. Se estamos interessados em alguma coisa, isto freqüentemente nos leva a trabalhar mais arduamente nela e, assim, nos tornarmos melhor nela. Ao mesmo tempo, podemos também perguntar quantos de nós querem continuar a fazer uma coisa se não somos bons nela ou se nosso trabalho prova ser ineficaz. Em alguns casos, o sucesso e proficiência crescente levam a pessoa a gostar do que está fazendo. Novamente, não é distintivamente cristão buscar “confirmação” disto. Em toda a nossa vida, nossos pais, pastores, professores e amigos nos ajudam a identificar nosso lugar dentro do mundo, mostrando aquelas áreas nas quais nos distinguimos. Freqüentemente alguém nos diz; “Você é realmente bom nisto. Deveria continuar.” Da mesma forma, estas mesmas pessoas podem também apontar para aquelas áreas onde nos faltam talento ou habilidade.

Se se deseja maior exatidão para a descoberta de talentos ou interesses, do que se obtém destes passos do “senso comum,” o desenvolvimento de algum tipo de inventário pode ser útil. Tal inventário, porém, deveria utilizar de padrões científicos rigorosos, aos quais outros instrumentos deste tipo estão sujeitos. Na verdade, existe uma disciplina especial para “criar e avaliar testes, conhecida como Psicometria.”168 Ela testa tanto “construct validity”169 como “criterion-related validity.”170 O primeiro se refere à “extensão até a qual um teste mede características ou habilidades relativamente abstratas.”171 Ele busca uma correlação demonstrável entre as questões perguntadas e a habilidade que elas querem medir. O segundo mede “a extensão até a qual os escores predizem a presença do objeto de medida.”172 Ele explora a conexão entre as colocações ou questões no inventário e a habilidade daquelas colocações em identificarem o dom em questão. Outro requisito é confiabilidade. Esta é a extensão para a qual o teste é consistente em medir o que mede. Finalmente, tais instrumentos deveriam oferecer base para se chegar a “escores padronizados”, de forma a fornecer resultados com significado.173

Segundo, ver estas ferramentas como inventários da obra do Espírito pode também criar problemas teológicos desnecessários. Um deles, não o menor, é que pode levar a uma confusão entre os dois reinos nos quais Deus atua. As questões em muitos inventários parecem fazer pouca provisão em avaliar a diferença entre dons naturais e dons espirituais. De fato, muitas das questões poderiam facilmente ser respondidas por não cristãos de uma forma que os poderia levar à conclusão de que também eles possuem dons espirituais! Por exemplo:

Recebi boas notas na escola.Gosto de conseguir soluções para problemas difíceis na vida.Parece fácil aprender verdades difíceis.Parece que as pessoas normalmente seguem meu conselho.Tenho um forte senso de confiança em minhas soluções para os problemas.

Embora estas colocações são ditas como auxílios para identificar “dons espirituais”, tais como profecia, conhecimento, administração e liderança, parece não haver diferenças entre estas características e aquelas que indicariam a presença de “apenas” talentos naturais. No caso do “Personal Renewal Study”, a condição espiritual da pessoa não é um fator em 27 de 60 (45%) afirmações.174

Um dos perigos que resultam da confusão dos dois reinos na forma discutida acima, é que a atenção e o foco podem ser transferidos da obra do Espírito através dos meios da graça, para a obra do espírito diretamente em nossos corações. Inventários tornam-se, então, ferramentas pelas quais tentamos calcular od efeitos, a extensão e a natureza da obra do Espírito.

168 Schaibley, 434.169 Parece ser um termo técnico da Psicologia. N. do T.170 Idem.171 Schaibley, 434. (Ibid.)172 Ibid.173 Ibid., 435.174 Ibid., 433.

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A questão também poderia ser feita, se os inventários sugerem, ou não, uma concepção radicalmente diferente do Espírito Santo - uma em que o Espírito é retratado como sendo o organizador da igreja, mais do que aquele que cria a igreja pelos dons da palavra e sacramentos. Será que os inventários encorajam pessoas a olharem internamente ( para suas próprias experiências e sentimentos) em busca de evidências de seus dons, ao invés de olharem para fora de si, para a Palavra externa de Deus? Isto levanta outras questões, tais como as que seguem: Quando os dons são dados? Na conversão? No Batismo? Por quais meios os dons são dados? Com o perdão dos pecados? Com o Sacramento do Altar?

Finalmente, parece que o uso dos inventários de dons espirituais cresceu a partir de uma eclesiologia específica. Esta observação tem diversas implicações. Primeira, o uso de tais inventários corre o risco de levar a atenção à parte dos meios da graça, para os dons ou habilidades particulares das pessoas, como chave para o crescimento a igreja. Os dons são vistos como a chave para organizar as pessoas para o crescimento da igreja. Não apenas se coloca a ênfase nos dons e na organização do laicato para o crescimento da igreja, mas a tarefa do ofício do ministério (onde ele é mencionado), de equipar (isto é, mobilizar, organizar, administrar) os leigos, é facilmente enfatizada mais do que a responsabilidade de proclamar o Evangelho e administrar os sacramentos. Na verdade, os inventários de dons como tais não requerem um pastor para proclamar o Evangelho e administrar os sacramentos. Tudo o que eles requerem, conforme Wagner, é um “guarda-livros.”175

O interesse nos dons espirituais e o desenvolvimento de inventários de dons espirituais têm trazido necessária atenção para áreas negligenciadas da vida e teologia da igreja. Todavia, a ajuda que tais inventários prometem providenciar freqüentemente trazem consigo perigos pastorais e teológicos. Afortunadamente, a herança luterana providencia ricos recursos teológicos que podem ser traçados não apenas para abordar as questões específicas levantadas pelos inventários de dons espirituais, mas assuntos mais amplos, relacionados à santificação e piedade cristã. Estes recursos incluem o ensino luterano sobre vocação, que nos ajuda a vermos como podemos alegremente receber e utilizar plenamente os dons, tanto do Primeiro como do Terceiro Artigos, e assim viver em ambos os artigos simultaneamente.

Conclusão

Os cristãos vivem sob o duplo governo de Deus, à medida em que vivem suas vidas no Primeiro e no Terceiro Artigos. Como criaturas que ainda vivem na terra, aguardando o cumprimento escatológico da salvação, eles vivem sob o governo de Deus na criação. Como aqueles que foram trazidos à fé em Jesus Cristo, eles vivem sob o governo da graça de Deus eda recriação, na igreja. Apesar de que estes dois reinos devem ser distinguidos, não podem ser separados, como se não houvesse relação ou interação entre eles. Eles não podem ser compartimentalizados, como se vivêssemos de uma forma no reino da criação e de outra forma no reino da graça.

Uma das preocupações teológicas que brotam em conexão com o uso dos inventários de dons espirituais é a questão sobre se tal uso dá testemunho de uma separação dos dois reinos, com o Primeiro Artigo sendo subordinado ao Terceiro Artigo. Em outras palavras, a pergunta poderia ser feita: “Terá ocorrido uma secularização, assim que apenas um dos reinos é reconhecido como divino, enquanto o outro é visto como profano?” Ambos reinos e ambos artigos pertencem a Deus. Ambos são a obra de Deus e estão ligados através da pessoa e obra de Cristo. Eles não devem ser separados um do outro, nem deve um ser subordinado ao outro. Em vez disso, existe uma mútua interação entre eles, assim que cada um informa e molda o outro.

Em diversos aspectos, o Primeiro Artigo e a doutrina da criação são básicos e de fundamento para o Segundo e o Terceiro Artigos. O entendimento da missão de Deus será, sem dúvida, distorcido, se colocado à parte da perspectiva universal da obra de Deus, que é trazida pela doutrina da criação.176 Onde estariam nosso entendimento sobre a encarnação e os meios da graça, à parte do primeiro Artigo? Em um tempo quando muitos “pensam que Deus apenas está relacionado à religião e vida espiritual,”177 o Primeiro Artigo nos faz alargar nossa perspectiva sobre a atividade de Deus. Ele nos lembra que Deus continua a exercer Sua atividade criadora

175 Wagner descreve como “extremamente eficaz” o método de evangelismo de uma congregação que “crê tanto na vida do corpo, que eles se recusam a colocar pastores na suas igrejas. Eles crêem que o Espírito Santo providencia para cada igreja todos os dons necessários para uma vida saudável na igreja, e que quando os membros estão usando seus dons da maneira certa, um ministro profissional é simplesmente excesso de bagagem. Os anciãos e o diáconos fazem a pregação. A única pessoa que a igreja contrata é o guarda- livros; o resto do trabalho é feito pelos próprios membros.” What Are We Missing? (Carol Stream, Ill.: Creation House, 1973), 81. Citado em Evangelismo e Crescimento da Igreja , 52, nota 86.176 Terence Fretheim, “The Reclamation of Creation: Redemption and Law in Exodus,” Interpretation 45 (Outubro 1991): 354- 65.177 Marc Kolden, “Vocation, Work and identity and the Church’s Mission,” Word and World 9 (Outono 1989); 368.

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através das estruturas e ordens deste mundo. Em e através destas estruturas - que incluem as necessidades de nosso próximo - Deus nos chama para que o sirvamos. Dentro deste contexto, cada um de nós tem um papel e um lugar para viver como cooperador de Deus. As freqüentes exortações de Lutero a que permaneçamos em nossos estados (sejam eles elevados ou humildes em poder e prestígio) e em continuarmos em nossas vocações individuais são não um chamado a que mantenhamos o status quo em nossas vidas, mas lembretes a que continuemos a agir como instrumentos de Deus na criação. Para dentro destas situações da vida diária, o Evangelho entra e é proclamado. Como Marc Kolden observou, “Uma noção de vocação dá objetividade à nossa vida de fé e nos ancora na obra e vontade de Deus. E, à medida que nos esvazia através do serviço aos outros, somos abertos para viver somente pela fé. Vocação, assim, abre espaço para Cristo, assim que Ele possa ser tudo em todos.”178

Se o Primeiro Artigo prepara o caminho, colocando o fundamento necessário e providenciando o contexto para o Segundo e o Terceiro Artigos, o Terceiro Artigo, por sua vez, nos traz a Cristo e, assim, ao pai, que revelou a profundidade de Seu amor por nós em Cristo. Resultando disso, a obra do Espírito, como confessada no Terceiro Artigo, em última análise nos leva a reconhecer o Criador como nosso gracioso Pai celestial e, assim, a receber tudo o que há na criação como um dom imerecido de Deus (ou como diz a explicação do Primeiro Artigo no Catecismo Menor: “sem nenhum mérito ou dignidade de minha parte”).179 Isto tem pelo menos três implicações para a igreja.

Primeiro, sem importar os diferentes dons e os vários graus nos quais os recebemos, o Espírito nos leva a recebê-los todos, grandes e pequenos, espetaculares e não espetaculares, como dons que vem de Deus. Nossas diferentes vocações, dons e talentos têm todos uma fonte comum, o Criador dos céus e da terra. Este é o reconhecimento fundamental ao qual Paulo tentou levar os Coríntios. Quando reconhecemos que todos estes dons vêm de Deus, também entendemos que Deus não está preocupado sobre as diferenças entre os dons, mas apenas com a forma como os usamos. Aos nossos olhos, ações e obras terrenas variam em glória e importância. Aos olhos de Deus, as diferentes obras em si não são o que é importante. Antes, Ele olha especialmente para nossa resposta a Ele em nossas obras e vocações. Como diz Lutero, “Portanto é Sua vontade que todos tenhamos consideração por Sua ordem e vocação.”180Lutero segue dizendo:

Assim Paulo escreve em Rm 12 e 1 Co 12: O corpo tem muitos membros, mas nem todos os membros têm o mesmo trabalho. Assim, somos muitos membros da única congregação cristã, mas nem todos temos o mesmo trabalho. Cada um deve olhar para seu próprio trabalho e não para o de outro; assim devemos viver juntos, em obediência simples, em uma harmonia de muitas missões e multiformes trabalhos.181

É colocando a devida atenção em nossas vocações que nos tornamos membros úteis no inteiro corpo de Cristo.

Segundo, a proclamação da igreja deve “nos deixar a par de que cada contexto na vida é um meio para servir a Deus e é o meio pelo qual Deus nos chama para tarefas concretas.”182 Como diz Richard John Neuhaus, “A vocação da igreja é sustentar muitas vocações.”183 O Terceiro Artigo nos leva de volta a nossa vida diária dentro do Primeiro Artigo, de modo que possamos começar nossa vida como Deus pretendeu que Sua criação atuasse. Como confessamos no Catecismo Menor, “devo dar-lha graças e louvor, servi-lo e obedecer-lhe”, conforme os Dez Mandamentos. Somos livres para confessar a Deus, o Criador, como nosso Pai celestial, assim que podemos devotar-nos à obra de Deus em nossos estados e ofícios, mesmo se eles não parecerem particularmente divinos ou espirituais, em comparação com o que outros estejam dando ou fazendo.184 De fato, no Catecismo Maior o Credo e o Pai Nosso estão orientados para o Dez Mandamentos de tal forma que os primeiros são dados para nops ajudar a guardar este último.

Terceiro, a revelação do amor de Deus em Cristo é de tal forma final e definitiva, e o perdão dos pecados é tão imenso, que somos levados a confessar a bondade da criação de Deus e de todos os nossos dons naturais, mesmo quando eles estão ocultos da vista, e mesmo quando experimentamos eventos que parecem contradizer a verdade da bondade de Deus. em última análise, pois, o Primeiro Artigo é tanto confissão de fé como o Segundo e o Terceiro Artigos. Como Edmund Schlink colocou-o sucintamente, não é “mais fácil conhecer a criação de Deus do que Sua redenção. ... Ser chamado a crer no Criador é tão ofensivo quanto a crer na cruz de Cristo.”185 Esta foi uma confissão radical e de contracultura, mesmo na igreja antiga.A doutrina da encarnação compeliu a 178 Ibid., 371.179 Catecismo Maior 2 a parte 63-66.180 Citado em Wingren, Luther on Vocation , 178.181 Ibid., 178,79.182 Kolden, 368.183 Richard John Neuhaus, Freedom for Ministry , edição revisada (Grand Rapids: William B. Eerdmans, 1992), 229.184 Kolden, 370.185 Edmund Schlink, Theology of the Lutheran Confessions , traduzido por Paul F. Koehneke e Herbert J. A. Bouman (Philadelphia: Muhlenberg Press, 1961), 59.

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igreja a confessar a bondade da criação. O Pai de Jesus Cristo provou ser o Criador do mundo, com o resultado que a criação foi valorizada em comparação com desvalorizações que se fazem sobre ela (por exemplo, no Gnosticismo). Deus criou o mundo do nada; Ele não simplesmente colocou ordem sobre uma matéria que fosse intrinsecamente caótica (contra diversas filosofias gregas, tais como o Estoicismo, Epicurismo e Platonismo).186 Esta visão sobre a criação uniu o Antigo e o Novo Testamentos (contra o Marcionismo), assim que o Antigo Testamento, e não a filosofia grega, trouxe o contexto teológico para o Novo Testamento.

A afirmação do Primeiro Artigo como um artigo de fé, se manifesta também na teologia da cruz, de Lutero, que envolve o confiar nas promessas graciosas de Deus, mesmo em meio a privações, sofrimento e morte. Lutero pergunta: “Se você não tem tanto quanto o prefeito, você não tem, antes, a Deus, o criador dos céus e da terra, Cristo e a oração? Sim, mesmo o imperador não tem mais do que isto.”187 Confessar que Deus é nosso bom Criador “em meio a nossa própria morte e corrupção, ou em meio àqueles que nos odeiam e nos maltratam não é nada além ou diferente do que crer que no pecador crucificado, Deus está criando ex nihilo [do nada], dando vida ao indigno e àqueles sem nenhum mérito.”188

Temos a restauração da criação e a consumação da salvação ao mesmo tempo já e ainda não. Elas são nossas já agora, pela fé, mesmo se ainda não podemos vê-las e experimentá-las. Temos estes dons na esperança. Esta convicção está bem expressa nos versículos finais de Habacuque:

Ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na vide; o produto da oliveira minta, e os campos não produzam mantimento; as ovelhas sejam arrebatadas do aprisco, e nos currais não haja gado, todavia, eu me alegro no SENHOR, exulto no Deus da minha salvação. O SENHOR Deus é a minha fortaleza, e faz os meus pés como os da corça, e me faz andar altaneiramente.

Enquanto esta restauração e consumação de que o profeta fala ainda não se realizou plenamente em nossas vidas, ainda assim nos regozijaremos. Deus é o Deus que veste, alimenta e nos concede corpos saudáveis, tanto já como ainda não.189 Todos os benefícios da criação restaurada e da salvação final consumada são encontrados em Cristo. Estes benefícios são nossos já agora pelo Batismo e na santidade da fé, e serão nossos plenamente e para todos verem, na ressurreição do corpo. Paulo traz todos estes temas juntos em sua carta aos Colossenses, e o centro é Jesus Cristo:

pois, nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele é antes de todas as coisas. Nele, tudo subsiste. Ele é a cabeça do corpo, da igreja. Ele é o princípio, o primogênito de entre os mortos, para em todas as coisas ter a primazia, porque aprouve a Deus que, nele, residisse toda a plenitude e que, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele, reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus. ... Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então, vós também sereis manifestados com ele, em glória.

O ESPÍRITO SANTO E OS DONS - PRINCÍPIOS190

1. Dons espirituais não devem ser considerados meios da graça

2. Deus não prometeu revelar-nos sua vontade direta e imediatamente como, por exemplo, através de visões e sonhos.

3. Sinais e maravilhas especiais não são garantias indispensáveis de que o Espírito de Deus habita em uma pessoa.

186 Cf. Frances M. Young, The Making of the Creeds (London: SCM Press, 1991), 16-32, para um relato útil sobre a natureza radical da confissão da igreja sobre a criação.187 Citado em Wingren, Luther on Vocation , 130.188 Weinrich, 14,15.189 O hino “See, the Conqueror Mounts in Triumph” olha para a frente com a mesma antecipação:

Levantaste nossa natureza humana Sobre as nuvens, para a mão direita de Deus;Lá nos assentamos nos lugares celestiais,Lá contigo na glória estamos.Jesus reina, adorado por anjos; Homem e Deus está no trono.Poderoso Senhor, em Tua ascensão,Nós pela fé olhamos para o que é nosso. (Lutheran Hymnal 218:5)

190 Movimento Carismático; Concórdia, 1977; traduzido por Arnaldo Schüler de Documento da CTCR da LC-MS.

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4. A fé em Cristo não elimina necessariamente enfermidade e aflição da vida do cristão.

5. A certeza cristã não se baseia em “sentimento”, mas nas promessas objetivas do evangelho.

6. “Batismo com o Espírito” não é fundamento para comunhão eclesiástica.

7. O dom do Espírito Santo não inclui necessariamente dons espirituais extraordinários.

ECLESIOLOGIA

A Doutrina da Igreja e do MinistérioA Doutrina da Igreja no Novo Testamento

1. O que é a Igreja? - textos do NT com o uso da palavra . (Ver adiante)

2. Metáforas da Igreja no Novo Testamento: - corpo - Ef 1.22,23; 1 Co 12- noiva - 2 Co 11.2; Ap 21- rebanho - Jo 10.16; 1 Pe 5.2,3- edifício - Ef 2.19-22; 1 Co 3.9- ramos - Jo 15.5- lavoura - 1 Co 3.9

3. A Igreja é obra de Deus- a distinção entre “reino de Deus” e “Igreja”- reino: ação de Deus, em Cristo, por Palavra e Sacramentos- igreja: o povo que é levado à fé, pela ação de Deus (reino)

4. Características da Igreja- una - Rm 12.5; Ef 4.3-6- santa - Ef 5.25-27- universal - 1 Co 1.2- apostólica - Ef 2.20; At 2.42- invisível / visível - 2 Tm 2.19a; Jo 10.17; (Lc 17.20,21?)

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O Uso de “Igreja” ( ) no Novo Testamento191

Mt 16.18 igreja universal 16.1,19* congregação - cristãos num lugarMt 18.17 congregação - cristãos num lugar 16.19 igreja reunida em casas

At 5.11 congregação - cristãos num lugar 2 Co 1.1 congregação - cristãos num lugar7.38 congregação relig. dos israelitas 8.1* congregação - cristãos num lugar

8.1,3 congregação - cristãos num lugar 8.18,19* congregação - cristãos num lugar9.31 igreja universal 8.23,24* congregação - cristãos num lugar

11.22 congregação - cristãos num lugar 11.8* congregação - cristãos num lugar11.26 congr.- cristãos num lugar(culto) 11.28* congregação - cristãos num lugar12.1 congregação - cristãos num lugar 12.13* congregação - cristãos num lugar12.5 congr.- cristãos num lugar(culto) Gl 1.2* congregação - cristãos num lugar13.1 congregação - cristãos num lugar 1.13 igreja universal (?)

14.23 congregação - cristãos num lugar 1.22* congregação - cristãos num lugar14.27 congr.- cristãos num lugar(culto) Ef 1.22 igreja universal15.3 congregação - cristãos num lugar 3.10 igreja universal15.4 congregação - cristãos num lugar 3.21 igreja universal

15.22 congregação - cristãos num lugar 5.23- 32 (6x) igreja universal15.41* congregação - cristãos num lugar Fp 3.6 igreja universal16.5* congregação - cristãos num lugar 4.15 congregação - cristãos num lugar18.22 congregação - cristãos num lugar Cl 1.18,24 igreja universal

19.32,40 uma reunião (genérica) 4.15 igreja reunida em casas19.39 assembléia política 4.16 congr.- cristãos num lugar(culto)20.17 congregação - cristãos num lugar 1 Ts 1.1 congregação - cristãos num lugar

20.28192 congregação - cristãos num lugar 2.14* congregação - cristãos num lugarRm 16.1 congregação - cristãos num lugar 2 Ts 1.1 congregação - cristãos num lugar16.4*193 congregação - cristãos num lugar 1.4* congregação - cristãos num lugar

16.5 igreja reunida em casas 1 Tm 3.5 congr.- cristãos num lugar (?)16.16* congregação - cristãos num lugar 3.15 congr. - cristãos num lugar (?)16.23 congr.- cristãos num lugar(culto) 5.16 igreja universal

1 Co 1.2 congregação - cristãos num lugar Fm 2 igreja reunida em casas4.17 congregação - cristãos num lugar Hb 2.12 congregação relig. dos israelitas 6.4 igreja universal 12.23 igreja universal

7.17* congregação - cristãos num lugar Tg 5.14 congregação - cristãos num lugar10.32 igreja universal (?) 3 Jo 6 encontro da congregação

11.16* congregação - cristãos num lugar 9,10 congregação - cristãos num lugar11.18 encontro da congregação Ap 1.4* congregação - cristãos num lugar11.22 congr.- cristãos num lugar(culto) 1.11,20* congregação - cristãos num lugar12.28 igreja universal 2.1,8,12,18 congregação - cristãos num lugar

14.4,5,12 encontro da congregação (culto) 3.1,7,14 congregação - cristãos num lugar14.19,28,35 no encontro da congr. (culto) 2.7,11,17,29

*congregação - cristãos num lugar

14.23 encontro da congregação (culto) 2.23* congregação - cristãos num lugar14.33,34 encontro da congregação (pl.) 3.6,13,22* congregação - cristãos num lugar

15.9 igreja universal (?) 22.16* congregação - cristãos num lugar

191 Fonte: A Concordance to the Greek Testament, Moulton & Geden. (Obs.: o termo é usado 111 vezes [ou 114, cf. NDITNT])192 “ Igreja de Deus”.193 “ Igrejas dos gentios”

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Algumas conclusões a partir do uso de no NT:

1. O termo encontra basicamente dois referentes: - o conjunto de todos os cristãos no mundo - o povo de Deus- a congregação local

- Não há nenhuma indicação de que um destes sentidos seja o “básico”. Por isso, não é correto falar da congregação local como uma “parte” da igreja.

2. Por um lado, a congregação local está, de alguma forma, vinculada à Una Sancta. Não pode querer viver como se só ela existisse. Isto seria separatismo - sectarismo.

3. Por outro lado, cada congregação tem, em si, os elementos necessários que a tornam “igreja de Deus”. Ela não é parte de uma “estrutura maior”. Ela até pode se estruturar, em termos de administração humana, com vistas a valorizar o aspecto universal. Mas o que a torna igreja é a presença de Cristo, por meio de Sua palavra e sacramentos. (Contra o “estruturalismo”, “organizacionalismo”)

4. O significado clássico da palavra - “assembléia”, “reunião” - não se perde totalmente quando aplicada à igreja de Deus. O reunir-se é um aspecto central do ser igreja de Deus. Não é um reunir-se por qualquer motivo, mas respondendo ao chamado de Deus em Sua palavra.

5. Há um grande número de textos onde o termo se aplica à situação dos cristãos reunidos em culto. No culto a igreja se manifesta como igreja. Pois no culto há o elemento constitutivo da igreja - palavra e sacramentos; e a resposta do povo, em adoração, que antecipa o culto celeste.

6. Há que se fazer uma distinção entre “reino de Deus” e “Igreja”. O texto de Lc 17.20,21 é, por vezes, aplicado à igreja para dizer que ela é “invisível”. O texto trata do reino. O reino é a ação de Deus em Cristo (Mt 12.28; Mc 1.15).

7. A igreja só pode ser dita “invisível” no sentido que Deus conhece, e somente Ele, os que lhe pertencem. Mas a igreja é visível, porque é formada por pessoas que confessam sua fé. O uso de leva a isto, impedindo um sentido “platônico” para a palavra, ao mesmo tempo em que impede um entendimento de igreja como organização.

As Teses de Walther sobre Igreja e Ministério194

PARTE I : SOBRE A IGREJA

1. A Igreja, no sentido próprio do termo, é a congregação [gemeinde] dos santos, isto é, a reunião de todos aqueles que, chamados, da raça humana, perdida e condenada, pelo Espírito Santo, através da Palavra, verdadeiramente crêem em Cristo e pela fé são santificados e incorporados a Cristo.

2. À Igreja, no sentido próprio do termo, não pertencem pessoas ímpias, nem hipócritas, nem irregeneradas, nem heréticas.

3. A Igreja, no sentido próprio da palavra, é invisível.4. Foi para esta verdadeira Igreja de crentes e santos que Cristo deu as chaves do reino dos céus, e ela é a única

e própria possuidora das dádivas, direitos, poderes, ofícios espirituais, divinos e celestes, e outras coisas que Cristo obteve e são encontradas em Sua Igreja.

5. Apesar de que a verdadeira Igreja, no sentido próprio do termo, é essencialmente [conforme a sua verdadeira natureza] invisível, sua existência pode, no entanto, ser definitivamente reconhecida, ou seja, pelas marcas da pregação pura da Palavra de Deus e administração dos sacramentos de acordo com a instituição de Cristo.

6. Num sentido impróprio, a Escritura também chama de “Igreja” (a Igreja universal [católica]) a reunião visível de todos os chamados, isto é, de todos que confessam e se unem à Palavra proclamada e usam os santos sacramentos, que consistem de bons e maus; assim também ela chama de “Igrejas” (Partikularkirchen [Igrejas particulares ou individuais]) suas diversas divisões, isto é, as Congregações que estão aqui e ali, nas quais a Palavra de Deus é pregada e os santos sacramentos são administrados. Isto ela faz especialmente porque nesta assembléia visível está oculta a invisível, verdadeira e propriamente chamada de Igreja de crentes, santos e filhos de Deus; fora desta assembléia dos chamados não há de se procurar nenhum eleito.

194 C.F.W. Walther, Church and Ministry , traduzido por John T. Müller, St. Louis: Concordia, 1987)

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7. Como Congregações visíveis, que ainda têm essencialmente a Palavra e os sacramentos, recebem, de acordo com a Palavra de Deus, o nome “Igreja” por causa da verdadeira Igreja invisível de sinceros crentes que pode ser encontrada nelas, assim também elas possuem o poder [autoridade] que Cristo deu à Sua inteira Igreja, por conta da verdadeira Igreja invisível oculta nelas, mesmo se lá houvesse apenas dois ou três [crentes].

1. Apesar de que Deus também reúne para Si Sua santa Igreja de eleitos onde Sua Palavra não é ensinada na sua pureza perfeita e os sacramentos não são administrados completamente de acordo com a instituição de Jesus Cristo, se apenas a Palavra de Deus e os sacramentos não são negados inteiramente, mas ambos permanecem em suas partes essenciais, cada crente deve, diante do perigo de perder a própria salvação, fugir dos falsos mestres, evitar todas as congregações e seitas heterodoxas e reconhecer e unir-se a Congregações ortodoxas e a seus pastores ortodoxos, onde quer que estes possam ser encontrados.

A. Também nas Igrejas heterodoxas e heréticas há filhos de Deus e também lá a verdadeira Igreja se manifesta pela Palavra pura e pelos sacramentos que ainda permanecem.

B. Cada crente, por amor da sua salvação, deve fugir dos falsos mestres e evitar todas as congregações e seitas heterodoxas.

C. Cada cristão, por amor de sua salvação, tem o dever de reconhecer e unir-se a Congregações e pastores ortodoxos, onde quer que possam ser encontrados.

1. Para obter a salvação apenas a comunhão na Igreja invisível, à qual somente todas as gloriosas promessas com respeito à Igreja foram originalmente dadas, é absolutamente necessária.

PARTE II : SOBRE O SANTO MINISTÉRIO OU OFÍCIO PASTORAL

1. O santo Ministério ou Ofício Pastoral, é um ofício distinto do sacerdócio de todos os crentes.2. O Ministério da Palavra, ou Ofício Pastoral, não é uma instituição humana, mas um ofício que o próprio

Deus estabeleceu.3. O Ministério não é um ofício arbitrário, mas um cujo estabelecimento foi ordenado à Igreja e ao qual a Igreja

está ordinariamente vinculada até o fim dos tempos.4. O Ministério não é um estado especial ou, em oposição àquele dos cristãos comuns, um estado mais santo,

como era o sacerdócio levítico, mas é um ministério de serviço.5. O Ministério Público [Predigtamt] tem o poder para pregar o Evangelho e administrar os santos

sacramentos, assim como o poder de julgamento espiritual.6. A. O Ministério da palavra [Predigtamt] é conferido por Deus, através da Congregação, como a

possuidora de todo o poder eclesiástico ou o poder das chaves, por meio do chamado, que Deus mesmo determinou.

B. A ordenação com imposição de mãos das pessoas chamadas não é uma instituição divina, mas simplesmente um rito [ordnung] eclesiástico estabelecido pelos apóstolos; não é mais do que uma solene confirmação pública do chamado.

7. O Santo Ministério [Predigtamt] é o poder, conferido por Deus, através da Congregação, como possuidora do sacerdócio e de todo o poder eclesiástico, para exercitar os direitos do sacerdócio espiritual no ofício público, em nome da Congregação.

8. O Ministério Pastoral [Predigtamt] é o ofício mais elevado na Igreja, e dele se originam todos os outros ofícios na Igreja.

9. A. Ao Ministério deve-se respeito, bem como obediência incondicional, quando o pastor usa a Palavra de Deus.

B. O Ministro não pode tiranizar a Igreja. Ele não tem autoridade para introduzir novas leis ou estabelecer arbitrariamente adiáfora ou cerimônias.

C. O Ministro não tem o poder de impor e executar excomunhão sem ter primeiro informado toda a Congregação.

10.Ao Ministério da Palavra, por direito divino, pertence também a obrigação [Amt] de julgar doutrina, mas os leigos também possuem este direito. Portanto nas cortes eclesiásticas (consistórios) e concílios eles têm lugar e voto junto com o clero.

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Sacerdócio Universal dos Cristãos

Textos bíblicos que falam explicitamente do sacerdócio dos cristãos:

Ap 1.6; 5.10; 20.6 - “selecionados do meio da humanidade para o serviço a Deus” (J. Baehr, NDITNT, III: 292)

1 Pe 2.9 - “Este conceito de sacerdócio abrange a idéia de acesso a Deus em conhecimento íntimo, bem como do papel profético do sacerdócio, ao proclamar o conhecimento de Deus. Complementa a idéia anterior de oferecer sacrifícios espirituais ... (1 Pe 2.5). (NDITNT, III: 292)

Hb 5.1,2,4 - características de um sacerdote (do AT), caracterizando o sacerdócio de Cristo: 1. é colocado para tratar das coisas de Deus;2. atua a favor dos homens;3. compadece-se dos ignorantes e dos que erram;4. é chamado (não se chama) por Deus para isto.

(Restaria perguntar até que ponto tal caracterização se aplica ao sacerdócio dos cristãos. Por certo, como em Cristo somos novas criaturas, criados segundo Ele mesmo, sendo Ele nosso modelo, temos aqui um quadro - se não completo, mas importante - para o nosso sacerdócio).

Outro texto que, agora implicitamente, fala do sacerdócio é Rm 15.16b - o sacerdote é alguém que, tendo recebido o evangelho, pode ofertar a Deus de forma aceitável, pois esta oferta é santificada pelo Espírito Santo (pela fé).

É significativo notar como 1 Pe 2.5-9 (o texto clássico do NT sobre o sacerdócio de todos os crentes) é empregado nas Confissões Luteranas:

Apologia IV , 239 - Não é o amor que nos torna justos perante Deus, mas pela fé somos justificados:

“... Pedro ordena ... que nos cheguemos para Cristo, a fim de sermos edificados sobre Cristo. E acrescenta: ‘Quem nele crer, não será confundido’ [1 Pe 2.6]. Nosso amor não nos livra de confusão quando Deus nos julga e argúi. Mas a fé em Cristo liberta nesses pavores, em razão do fato de sabermos que por causa de Cristo se nos perdoa.”

Apologia XXIV , 26 - nossas obras não são capazes de nos trazer perdão; nossas obras, feitas na fé em Cristo, são culto a Deus:

“... sacrifícios de ação de graças, que são chamados sacrifícios de louvor: a invocação, a ação de graças, a confissão, as aflições dos santos, sim, todas as boas obras dos santos. Esses sacrifícios não são satisfações pelos que os fazem, nem aplicáveis em favor de outros, e que lhes mereçam, em virtude da obra realizada, remissão de pecados ou reconciliação. Pois são feitos pelos reconciliados. E tais são os sacrifícios do Novo Testamento, conforme ensina Pedro, 1 Pedro 2: ‘Sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais’ [1 Pe 2.5] Sacrifícios espirituais, entretanto, são opostos ... a obras humanas oferecidas em virtude da obra realizada, porque ‘espiritual’ significa os movimentos do espírito Santo em nós. ... Essas [obras] valem não em virtude da obra realizada, mas em virtude da fé. É o que adverte a parte ‘por meio dele ofereçamos’, isto é, pela fé em Cristo.”

Fórmula de Concórdia - Declaração Sólida VI , 22(23) - pela fé em Cristo, não estamos debaixo da lei, mas sob a graça de Deus, apesar de nosso pecado:

“Como e por que as boas obras dos crentes, ainda que nesta vida são imperfeitas e impuras em virtude do pecado na carne, não obstante são aceitáveis para Deus e a Ele agradáveis, isso não o ensina a lei, que, a dever agradar a Deus nossa obediência, exige que seja absolutamente perfeita e pura. Mas o evangelho é que ensina que nossos ‘sacrifícios espirituais’ são aceitáveis para Deus ‘pela fé, por causa de Cristo’ [1 Pe 2.5]. Assim os cristãos não estão debaixo da lei, mas da graça, porque mediante a fé em Cristo a pessoa foi libertada da maldição e condenação da lei, e porque

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suas boas obras, posto que ainda imperfeitas e impuras, são aceitáveis para Deus por intermédio de Cristo.”

Apologia XII , 64,65 - só recebemos o perdão dos pecados através da fé em Cristo:“... a consciência aterrorizada não pode opor à ira de Deus nossas obras ou nosso amor, sendo apaziguada apenas quando apreende o Cristo mediador e crê as promessas dadas por causa dele. Não entendem o que é a remissão dos pecados ou como chega até nós quantos sonham que os corações são apaziguados sem fé em Cristo. Pedro cita de Isaías: ‘Quem nele crer não será de modo nenhum envergonhado’ [1 Pe 2.6]. ... De sorte que recebemos a remissão dos pecados unicamente por meio do nome de Cristo, isto é, por causa de Cristo, não por algum mérito ou obra nossos. Dá-se isto quando cremos que os pecados nos são remitidos por causa de Cristo.”

Tratado 69 - a igreja tem o direito de chamar pastores:

“... também a sentença de Pedro confirma isso: ‘Vós sois sacerdócio real’ [1 Pe 2.9], palavras essas pertinentes à igreja verdadeira, a qual, já que somente ela tem o sacerdócio, por certo que possui o direito de eleger e ordenar ministros.”

É interessante notar que das cinco vezes, em quatro o assunto trata da questão de salvação por obras “versus” salvação por graça, mediante a fé. O texto de Pedro é empregado exatamente para afirmar que somos sacerdotes, isto é, temos acesso a Deus, somos aceitos por Ele, unicamente por causa de Cristo, mediante a fé. Olhando por esta perspectiva - como nos ensinam nossas Confissões - o nosso sacerdócio há de ser visto antes como evangelho do que como lei! Em outras palavras, quando tratamos sobre o “sacerdócio universal dos cristãos” estamos falando de dádivas de Deus; estamos falando de um Deus amoroso, perdoador, e que tem uma mensagem de consolo para nós, através de Seu Filho Jesus Cristo.

Isto não nega o fato de que o nosso sacerdócio nos coloca responsabilidades. O próprio texto de Pedro aponta para a finalidade de proclamarmos as virtudes de Deus. Isto, no entanto, deve ser visto na perspectiva do evangelho, não da lei. Ser sacerdotes de Cristo é, a bem da verdade, um grande privilégio, uma grande bênção, uma tremenda dádiva!

É igualmente significativo que na única ocasião onde 1 Pe 2.9 é citado nas Confissões, é usado para relacionar o sacerdócio ao ministério, trazendo à tona a questão do chamado. Segundo os nossos pais luteranos, os assuntos - sacerdócio e ministério - estão relacionados. Isto nos vem lembrar que é preciso considerar ambos quando tratamos de um deles.

A ação do sacerdote - As Atividades dos Cristãos

Se observamos as cartas do NT notamos que elas seguem um esquema usual: lei e evangelho; parêneses. Ou, dito de outra forma: fundamentação (justificação); vida cristã (santificação). Queremos notar o conteúdo das parêneses, verificando “para que” os cristãos são dirigidos, em sua atuação como filhos de Deus neste mundo.

ROMANOS

A partir do capítulo 12 podemos notar os imperativos dirigidos aos cristãos. Colocados em tópicos, ficam da seguinte forma:• vida de culto a Deus, não moldada pelo mundo (12.1-2)• uso dos dons para o bem da Igreja (12.3-8)• diversas virtudes, especialmente de amor ao próximo, cuidando para não responder : “na mesma moeda” aos

ímpios (12.9-21)• obediência às autoridades (13.1-7)• o amor ao próximo, que resume e cumpre os mandamentos da segunda tábua (13.8-10)• vida pura, visto que o dia da vinda de Cristo se aproxima (13.11-14)• o cuidado com os que são fracos na fé, particularmente na questão do uso da liberdade cristã (14.1-23)• nossa atitude para com os outros há de refletir a atitude de Cristo (15.1-13)• apoio (financeiro) e com orações ao apóstolo (15.22-33)• que os cristãos recebam uma irmã que vem e lhe dêem apoio (16.1,2)

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• que evitem aqueles que provocam divisões - cismas (16.17-20)

EFÉSIOS

No capítulo 4 Paulo passa a orientar aos Efésios sobre a maneira de viver na “vocação a qual foram chamados”:

• guardando a unidade, que é dom do Espírito Santo (4.1-6)• crescendo em tudo, em Cristo, para a edificação de todos na fé (4.15,16)• vivendo diferente dos gentios, que vivem alheios a Deus (4.17-24)• falar a verdade, evitar a ira, trabalhar honestamente (4.25-28)• o cuidado com as palavras, que não devem servir a divisões, nem para fomentar os maus desejos (4.29-5.4)• viver como filhos da luz, cuidando para não imitar ou participar das obras das trevas (5.5-14)• andando puramente, aproveitando o tempo, louvando a Deus (5.15-20)• sujeitando-se uns aos outros (5.21)• a sujeição e amor entre marido e mulher (5.22-33)• relacionamento pais e filhos (6.1-4)• relacionamento empregados e patrões (6.5-9)• revestindo-se com a armadura de Deus para resistir aos ataques do maligno (6.10-20)

1 PEDRO

Após chamar seus ouvintes de “sacerdócio real”, Pedro passa a demonstrar o que isto significa na vida diária: • procedimento exemplar perante os não cristãos (2.11,12)• respeito às autoridades e instituições humanas (2.13-17)• os servos tratem com respeito aos senhores, mesmo sofrendo, conforme o exemplo de Cristo (2.18-25)• esposa e esposa tratem-se com respeito e consideração (3.1-7)• amor fraternal, não buscando vingança (3.8-12)• respondendo ao mal que nos é feito com um testemunho da nossa esperança (3.13-22)• evitando os excessos e vida ímpia (4.1-6)• serviço aos irmãos, com os dons que recebemos (4.7-11)• alegria por podermos sofrer com Cristo, pela justiça (4.12-19)• os que estão no ministério, sejam pastores que sirvam de modelos para o rebanho (5.1-4)• agir com humildade diante dos outros, especialmente os jovens diante dos velhos (5.5)

Conclusões

Mesmo tendo uma visão panorâmica apenas de duas cartas, as conclusões a partir disto poderiam ser observadas no restante do NT. As conclusões podem ser resumidas nas seguintes afirmações:

1. A atuação do cristão se dá em três “frentes”: sociedade, família e igreja.2. Não há nenhum texto que permita que se ordene esta três frentes, implicando graus de importância. Em

qualquer um destes três “lugares”, o cristão é igualmente chamado a atuar.3. Cada carta tem suas peculiaridades, por falar a alguma situação concreta, a pessoas que tinham necessidades

específicas. Por isto, há ênfases diferentes. Dependendo do problema específico a ser tratado, Paulo aborda a atuação dos cristãos com mais detalhe em alguma das três “frentes”. Por exemplo, em 1 e 2 Coríntios, a atuação na Igreja é enfatizada, visto que havia problemas de divisões, de questionamento ao ministério e do mau uso dos dons, especialmente no contexto do culto.

4. Estas três “frentes” são as “ordens” criadas por Deus. Nelas o filho de Deus exerce sua vocação, dada por Deus. Não há opção de se escolher uma delas, ou duas, em detrimento da(s) outra(s). A vida cristã é uma vida na fé em Cristo. Nesta fé qualquer lugar de atuação é lugar de viver com Cristo; qualquer atividade é oportunidade de servir a Cristo.

5. Não é correto supervalorizar a atuação dos cristãos na “igreja” em detrimento de sua atuação na família e sociedade. (O mesmo vale, naturalmente, para as outras ordens; mas parece que os exageros acontecem nesta, que aqui é abordada). O trabalho do pastor envolve o anunciar da vontade de Deus para a vida dos

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Seus filhos no dia a dia. Um cuidado deve ser tomado. O pastor não tem como função básica motivar, admoestar, dirigir, equipar as pessoas para que “trabalhem na Congregação”, em departamentos, comissões, grupos de trabalho, etc. Estas atividades também fazem parte da vida cristã, mas não são as únicas. Recebem muita ênfase na Escritura a vida pura, em um mundo ímpio e o cuidado com a família, cada um tendo seus deveres específicos.

6. Há os imperativos que dirigem os cristãos para as atividades de evangelizar, falar pessoalmente de Cristo, repartir a palavra com outros (Cl 3.16; 1 Pe 3.15). Estas atividades, ainda que não possam ser ditas “as mais importantes na vida de um cristão”, sublinham a vontade primordial de Deus para com o mundo: a salvação em Cristo; apontam também, ainda que indiretamente, para a grande missão que o povo de Deus tem entre a ascensão e a parousia: levar a salvação em Cristo para todos. No entanto, é preciso observar que o NT não fornece modelos de atuação evangelística e nem mesmo coloca em primeiro lugar as atividades relacionadas a isto. Cada trabalho feito pelo cristão, em fé verdadeira, é obra santa, purificada e que glorifica a Deus (1 Co 10.31).

7. Um pregador não está transmitindo fielmente a Palavra de Deus quando, em toda e qualquer exposição da palavra de Deus, coloca como objetivo final o testemunho, evangelismo, proclamação. Como se pode ver na leitura das cartas, há outros objetivos, todos dentro desta nova vida que temos em Cristo.

Os sacerdotes (“leigos”) são chamados por Deus, para um propósito de bênção, não só para si, mas para todos os que o rodeiam. Em 1 Pe 3.8, 9 é dito: “sede todos de igual ânimo, compadecidos, fraternalmente amigos, misericordiosos, humildes, não pagando mal por mal, ou injúria por injúria; antes, pelo contrário, bendizendo, pois para isto mesmo fostes chamados, a fim de receberdes bênção por herança.” Sobre isto comenta Edward H. Schroeder, em seu estudo “The Layman and his Church - A Theological Study” (The Layman and the Church, editado por Andrew J. Buehner, St. Louis: The Lutheran Academy for Scholarship, 1967):

O mundo dos “não-povo” opera, em larga medida, com o mal pelo mal, maldição por maldição, e assim muito de sua vida não passa de maldição (literalmente) após maldição. Mas o chamado do povo de Deus é para reverter a maldição, para desamaldiçoar o mundo e para repelir Gn 3.17 em todos os lugares onde tal maldição estiver em ação. O mundo é desamaldiçoado quando recebe a misericórdia de Deus, e os agentes para a misericórdia são aqueles que já a receberam. Aqueles que estão em melhor situação para esta função de desamaldiçoar o mundo são os cristãos comuns, que vivem e trabalham nas estruturas normais da sociedade, que Pedro (2.13) nomeia “instituições humanas” e dentro das quais ele admoesta que se viva como servos de Deus. ... as instituições já existentes na sociedade - casamento, governo, família, mesmo o sistema de escravidão, são canais viáveis para atuar na obra de desamaldiçoar o mundo, porque eles me colocam num contato face a face com outros seres humanos. Eles eliminam a necessidade de primeiro encontrar alguém para quem posso ser uma bênção, pois me confrontam com pessoas - cônjuge, pais, filhos, governantes, patrão, empregado - bem aqui e me desafiam a seu um sacerdote de Deus, literalmente um homem da igreja, “desamaldiçoando” esta parte específica da criação. (20)

Com isto conferem as palavras do Artigo XVI da Confissão de Augsburgo, DA ORDEM POLÍTICA E DO GOVERNO CIVIL:

Da ordem política e do governo civil se ensina que toda autoridade no mundo e todos os governos e leis ordenados são ordenações boas, criadas e instituídas por Deus, e que cristãos podem, sem pecado, ocupar o cargo de autoridade, de príncipe e de juiz, proferir sentença e julgar segundo as leis imperiais e outras leis em vigor, punir malfeitores com a espada, fazer guerras justas, combater, comprar e vender, fazer juramentos requeridos, possuir propriedade, casar, etc.

Aqui são condenados os anabatistas, os quais ensinam que nenhuma das coisas supramencionadas é cristã.

Condenam-se, outrossim, aqueles que ensinam ser perfeição cristã abandonar fisicamente casa e lar, mulher e filhos, e renunciar as coisas citadas, quando o fato é que APENAS VERDADEIRO TEMOR DE DEUS E VERDADEIRA FÉ CONSTITUEM A PERFEIÇÃO AUTÊNTICA. Pois o evangelho não ensina uma forma de vida e justiça exteriores, temporais, senão uma interior e eterna vida e justiça do coração, e não abole o governo civil, a ordem econômica e o casamento, querendo, ao contrário, que se guarde tudo isso como genuína ordem divina e que cada qual, de acordo com sua vocação, mostre, em tais ordenações, amor cristão e obras verdadeiramente boas . Por isso os cristãos têm o dever de estar sujeitos à autoridade e de obedecer-lhe aos mandamentos e leis em tudo o que não envolva pecado. Porque se não é possível obedecer à ordem da autoridade sem pecar, mais importa obedecer a Deus do que aos homens (Atos 5).

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O que podemos notar do texto de Pedro e da Confissão de Augsburgo é que a santidade da vida cristã, o ser bênção como servos de Deus, não é algo que ocorre à parte do secular. Na verdade, a nossa ação cristã ocorre dentro do secular, quando vivemos a partir da misericórdia recebida. Edward H. Schroeder aponta para isto, chamando a atenção do fato de que uma “área onde se faz necessária uma elucidação teológica, tendo em vista o leigo e sua igreja, é a área das realidades teológicas implícitas naquilo que a maioria de nós considera questões não religiosas - aquelas questões que são distintas e separadas do que normalmente acontece no prédio da igreja nos domingos e dias de semana.” Ele continua: “A teologia luterana tem tradicionalmente tido muito a dizer sobre este assunto, sob o tema dos dois reinos, os dois regimentos de Deus; o artigo XVI da Confissão de Augsburgo é uma manifestação disto.” (“The Layman and his Church”, p. 22)

Como um sacerdote de Cristo serve ao Senhor? Citamos aqui um excelente estudo escrito pelo Dr. Rudi Zimmer sobre “O Sacerdócio Universal dos Crentes” (Vox Concordiana 4/1 [1988], 6-11), onde ele aponta os privilégios e responsabilidades dos cristãos como sacerdotes reais:

1. O primeiro e principal dever e responsabilidade ... ensinar e confessar, proclamar e propagar os benefícios com que Deus tem os abençoado em e através de Jesus Cristo a outros (Cl 3.16; 1 Co 11.26)

2. o poder de reter e perdoar pecados (Mt 18.15-18)3. o privilégio de receber e administrar os sacramentos do Batismo e da Santa Ceia (Mt 28.19; Lc

22.19)4. se aproximarem de Deus em oração e intercessão em favor deles mesmos e de outros (Mt 7.7,8; Lc

11.13; 18.1; 1 Tm 2.1,2; Hb 4.16) 5. julgar todas as doutrinas, isto é, aprovar a doutrina correta e reconhecer e rejeitar doutrinas falsas

bem como mestres falsos (1 Jo 4.1; 1 Ts 5.21; Jo 10.27,5; Mt 7.15,16; Hb 13.17; Lc 10.17)6. oferecer sacrifícios espirituais - inclinações puras de um coração transformado pelo Espírito

Santo, a saber, verdadeiro temor e amor a Deus, fidelidade, gratidão, confissão, paciência, amor ao próximo, e outras obras boas (1 Pe 2.5; Rm 12.1; Hb 13.15,16)

O Ofício do Ministério

O ministério (ofício pastoral) não é uma invenção da igreja, não é um arranjo humano. Não é nem mesmo um ofício sobre o qual a igreja possa escolher ter ou não. O ministério (ofício da pregação) é instituição de Deus. Podemos vê-lo já no Antigo Testamento, com os levitas e os profetas. Mas no Novo Testamento temos uma visão ainda mais clara, a partir do chamado que Jesus fez aos apóstolos. Neste chamado, ficou evidente que Ele os queria preparar para um trabalho especial no Seu reino (Mt 4.18-22; 10.1ss).

O chamado feito através da Igreja continua sendo chamado de Deus (At 1.15-26; 14.23; Tt 1.5)! É Deus quem chama, por intermédio da igreja. Para o Novo Testamento, tanto Paulo (que foi chamado diretamente por Cristo - Atos 9), como Timóteo (que foi colocado no ministério por intermédio de Paulo - 2 Timóteo 1.6), como cada ministro da palavra, são igualmente chamados por Deus:

• At 20.28• 2 Co 5.18-6.3• 1 Co 12.28

Lutero observou que a Escritura dá grande importância ao chamado. Em seu escrito, “Pregadores Infiltrantes e Clandestinos”, Lutero afirma que

“pregadores sem chamado são do diabo. Eles roubam o ministério de pastores legitimamente chamados, e com isto roubam o próprio Deus. ... Se não mantermos firme e enfatizarmos o chamado e comissionamento, finalmente não existirá mais igreja. A igreja seria devastada por todo o tipo de entusiastas, seria dividida, e cedo nada mais ficaria.”195

A Escritura deixa claro que pelo chamado, o homem é colocado por Deus como pastor da Igreja de Deus. Este é um assunto sério, em que a própria Palavra de Deus orienta sobre como este ministério deve ser desempenhado, como o próprio pastor deve se portar como ministro de Cristo e como a igreja deve considerá-lo.

195 Robert Preus, “A Doutrina do Chamado nas Confissões e Ortodoxia Luterana,” Vox Concordiana 10/2 (1995): 20, n.19.

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Lutero, no Catecismo Menor, traz na sua “Tábua de Deveres” o que se espera dos pastores e dos cristãos em relação aos seus pastores.

Para os pastores, Lutero cita 1 Timóteo 3.2-6 e Tito 1.6-9. Aí temos a palavra do próprio Deus sobre o que se espera do pastor. Podemos acrescentar ainda 1 Coríntios 4.1,2; 2 Timóteo 2.15, 24-26; 4.1-5.

Para os cristãos, em relação aos pastores, Lutero cita: • Lucas 10.7• 1 Coríntios 9.14• Gálatas 6.6,7• 1 Timóteo 5.17,18• Hebreus 13.17

Textos das Confissões Luteranas, que tratam a respeito do Ministério:

- CA V 1-3- CA XIV- CA XXVIII 5,8- Ap XIII 11-13- Tratado 31- Tratado 67-72

“Estas passagens das Confissões Luteranas enfatizam os seguintes aspectos do entendimento luterano do ministério: - Deus deu a Palavra e os Sacramentos a fim de que as pessoas possam chegar à fé.- Deus providenciou para que a Palavra pudesse ser ensinada e os Sacramentos administrados.- Visto que tal ministério foi estabelecido por Deus, indivíduos são chamados para serem ministros pela igreja.- Aqueles que são chamados a serem ministros ocupam e exercem o ofício do ministério.- O poder ou ofício das chaves, dado por Cristo à igreja, é exercido publicamente em favor da igreja pelos ministros chamados.- O poder dos ministros é o poder para pregar o Evangelho, administrar os sacramentos e perdoar e reter pecados.- O poder do ministério não é um poder temporal, mas um poder em questões espirituais de Palavra e sacramento.- Ministros não podem arrogar-se tal autoridade para si mesmos, mas ela precisa ser conferida pelo chamado da igreja.”196

Relacionamento Igreja-Ministério:

1) Tanto um como outro são instituições de Deus, particularmente de Cristo (Mt 16.18 - “edificarei a minha Igreja”197; Mt 28.19).

2) Não se pode colocar subordinação essencial de um ao outro. Ambos estão debaixo de Cristo, o Senhor, que age através dos meios da graça. Por vezes, há subordinação:- da Igreja ao ministro - quando este proclama a Palavra, administra os sacramentos, perdoa ou retém pecados;- do ministro à Igreja - quando a Igreja julga seu ensino, para ver se é de fato a voz do Bom Pastor Jesus que o ministro está proclamando.

3) Falar de derivação do ministério a partir da Igreja não leva em conta com seriedade a maneira bíblica de enfatizar que o ministério é instituído pelo Senhor. Pertence a Ele, não à Igreja.

4) Da mesma forma, é contrário ao Novo Testamento qualquer tipo de tirania da parte do ministro sobre a Igreja. Sua missão é determinada pelo Senhor. É servo, não senhor! Por isso mesmo, não se podem compreender atitudes de ministros que usam seu chamado como um instrumento de coação, de poder, contra a vontade da Igreja, em assuntos que não dizem respeito à defesa do evangelho e dos sacramentos (ex.: para

196 The Ministry - Offices, Procedure and Nomenclature , CTCR - LC-MS, Setembro 1991, p. 8.197É interessante notar que na Sua afirmação sobre a Igreja, Jesus vincula a confissão de Pedro. Tendo em mente ainda Efésios 2.20 (“edif icados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas”), podemos afirmar que na fundação da Igreja Deus se vale dos ministros que Ele próprio escolheu e a quem confiou Sua Palavra. De uma certa forma, isto pode ser notado na ordem dos artigos da Confissão de Augsburgo (IV - Justificação pela fé; V - Ministério para a proclamação desta fé; VII e VIII - da Igreja).

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manter-se em um lugar, mesmo quando percebe que seu trabalho está trazendo divisão, dúvidas e dificuldades para o trabalho do reino de Deus na congregação em que está.)

5) Ainda que se pode entender corretamente a afirmação “o ministério pertence à Igreja” (no sentido que a Igreja recebe-o como dádiva do Senhor), é uma má aplicação a afirmação de que a Igreja tem o direito de, assim como chama, também “retomar” o chamado. Tal fato só poderia ser justificado quando o ministro deixa de ser fiel no seu ministério (1 Co 4.1,2), proclamando doutrina falsa, vivendo de forma ímpia, deixando de realizar o trabalho para o que o Senhor o incumbiu. Neste caso, a Igreja usa de seu privilégio de rejeitar o estranho, para ouvir a voz do bom Pastor. Outras situações (“incompatibilidade” entre o sistema do pastor e da congregação) só podem ser resolvidos através da conversa fraterna, com aconselhamento mútuo.

6) O Chamado ao ministério não deveria ser visto como um exercício de poder da Igreja, mas como um ato pelo qual ela recebe aquele que o Senhor lhe está concedendo. Por certo, o chamado salvaguarda o privilégio que a Igreja tem de participar na escolha do nome que irá exercer o ministério em seu meio.

7) O ministro jamais deveria ser imposto à Igreja, pois o Novo Testamento entende que ela participa na sua escolha. A Igreja submete-se aos critérios que Deus estabeleceu na Escritura (1 Timóteo 3; Tt 1; etc), mas atua no processo de chamar a pessoa que irá proclamar o evangelho em seu meio.

8) Do ministro se exige fidelidade; da igreja, obediência, sempre que o ministro prega como Deus ordenou. No caso de haver problemas, não são leis que resolverão, mas a conversa e admoestação fraternais, que sempre devem estar presentes na igreja.

Mateus 28.16-20198

INTRODUÇÃO

A questão a ser respondida: para quem melhor se aplica este texto: à Igreja como um todo ou ao Ministério Pastoral?

O método usado para estudar o texto: não a Crítica da Redação (que procura descobrir a teologia da “Comunidade de Mateus”, deixando o texto propriamente dito de lado, para tentar descobrir o que além e por detrás do texto). Utilizar-se-á alguns instrumentos da Crítica da Narrativa (lendo o texto como um todo, em que o que vem antes ajuda a entender o que vem depois, etc), sem esquecer o Método Histórico gramatical, com referência ao contexto geral da Escritura e a analogia da fé.

O texto não é bem compreendido se colocado ao lado do final dos outros Evangelhos, como se os quatro relatos (especialmente Mt,. Mc e Lc) formassem aspectos diferentes da “Grande Comissão”. Os textos claramente mostram que as palavras foram ditas em ocasiões diferentes e a grupos diferentes. Mateus coloca em cena unicamente os onze discípulos (apóstolos).

A ESTRUTURA DO EVANGELHO CONFORME MATEUS

Há diversas maneiras pelas quais os estudiosos têm explicado como este Evangelho está estruturado. Os mais importantes são:

1. A divisão em cinco partes - baseado na expressão (7.28; 11.1; 13.53; 19.1; 26.1). A divisão estaria baseada em cinco “discursos” de Jesus, finalizados por aquela fórmula. O ponto fraco desta proposta é que os capítulos 1, 2 e 26 a 28 tornam-se simplesmente um preâmbulo e um epílogo, não participando da estrutura em si.

2. A divisão em três partes - baseado na expressão (4.17; 16.21). A disposição seria:

(1) A Pessoa de Jesus, o Messias - 1.1-4.16(2) A Proclamação de Jesus, o Messias - 4.17-16.20(3) O Sofrimento, Morte e Ressurreição de Jesus, o Messias - 16.21-28.20

Há várias outras disposições possíveis. As duas acima, no entanto, representam bem a importância da estrutura para entender-se o conteúdo do Evangelho. Na primeira, a ênfase está nos ensinos de Jesus, o que pode

198 Resumo da Tese: “The Role of the Church and of the Ministry in the Mission of God, according to Matthew 28:16- 20,” Concordia Seminary, St. Louis, MO, 1993.

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gerar uma visão legalista do Evangelho (alguns comparam Jesus com Moisés, o escritor dos cinco livros da Lei). Ainda mais, quem se utiliza desta estrutura normalmente enfatiza Eclesiologia como tema central do Evangelho. No outro esquema, a pessoa e obra de Jesus tomam o centro.

A última perícope do Evangelho precisa ser entendida a partir de uma leitura do Evangelho como um todo, pois forma o ápice de toda a mensagem.

OS DISCÍPULOS NO EVANGELHO CONFORME MATEUS

O quadro de um mestre seguido por discípulos não é desconhecido nas antigas culturas judaica e greco-romana. “Círculos de discípulos eram o modelo usual para ensino superior tanto na antigüidade judaica como na greco-romana.”199 No período clássico grego, refere-se a “uma pessoa engajada na atividade de ‘aprendizagem’ com alguém que já tem a habilidade ou conhecimento pretendidos.”200

Uma diferença fundamental entre os discípulos em geral e os discípulos de Jesus: estes, para se tornarem discípulos, são escolhidos e chamados por Jesus. Não é por um livre exercício de decisão e escolha que eles se tornam discípulos de Jesus (como no caso dos discípulos de algum outro mestre).

Mateus é o Evangelho sinótico que mais utiliza a substantivo . Apesar de que há outras pessoas caracterizadas como “discípulos” de Jesus, normalmente a palavra (usada no plural) se refere ao grupo dos “doze”.

Pode-se notar, em Mateus, um contraste entre os doze discípulos e as multidões. Os discípulos vão aprendendo mais e mais com Jesus, mas as multidões vão ficando cada vez mais endurecidas. Os discípulos são preparados para ministrar às multidões, como sucessores de Jesus em seu papel de exorcista, cura, mestre e profeta. Em alguns estudos têm-se dito que o “seguir” caracteriza os discípulos de Jesus. No entanto, o verbo é usado diversas vezes em relação à atitude das multidões para com Jesus (8.1,10; 9.27; 12.15; 14.13; etc).

Um fato freqüentemente esquecido na discussão sobre discipulado é que Jesus escolheu e reuniu um grupo de homens, a fim de prepará-los para uma tarefa especial. A primeira ocasião em que Mateus mostra Jesus chamando os discípulos (4.18-22), revela o propósito: que eles se tornem pescadores de homens. Isto não é um sinônimo de “cristão”, mas uma designação para alguém em um ofício especial. “No pensamento judaico tradicional o peixe representa ou sugere a alma individual que aguarda salvação e os pescadores, trabalhando com linha ou rede, representam os agentes de Deus efetuando aquela salvação.”201 Assim sendo, os discípulos não devem ser vistos simplesmente como seguidores de Jesus, aprendendo de Seu ensino, mas como seguidores de Sua missão. Por esta razão, um julgamento severo está reservado para os que rejeitam aos discípulos (10.15). Assim como no caso de Jesus (4.17; 12.28), através deles é manifesto o Reino dos céus (10.7,8). Rejeitá-los é rejeitar o Reino e o próprio Cristo (10.40).

Pode-se reconhecer um caráter profético nos discípulos de Jesus. Isto pode ser visto em 10.41; 5.12202; 13.17; 23.34 (comparar com 10.17,23). Assim como hwhy enviou profetas a Israel, Jesus irá enviar profetas (Seus discípulos) a proclamarem o reino dos céus e a ensinarem aquilo que Ele lhes deu para ensinarem.

O TEXTO DE MATEUS 28.16-20

Versículo 16

Os onze discípulos - não há possibilidade de incluir outros (por exemplo, os 500 de 1 Co 15). O texto é explícito. São os mesmos que Jesus escolhera para serem “pescadores de homens” (4.19). São onze por causa da falta de Judas. Este fato lembra ao leitor que estes onze, à semelhança de Judas também fraquejaram (abandonaram a Jesus, em sua prisão). Mas estes voltaram até Ele, aceitando Seu convite (absolvição?!).

199 S. Cohen, From the Maccabees to the Mishnah (Philadelphia: The Westminster Press, 1987), 121.200 Michael J. Wilkins, The Concept of Disciple in Matthew’s Gospel , (Leiden: E. J. Brill, 1988), 12.201 J. Duncan M. Derret. “ ?????????????????? (Mk 1.16): Jesus Fishermen and the Parable of the Net”, Novum Testamentum 22/2 (1980): 109.202 A melhor tradução (parafraseada) seria: “Desta maneira perseguiram os profetas, aqueles que foram profetas antes de vocês”.

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para a Galiléia - a região da Galiléia tem uma importância especial no ministério de Jesus. Algumas razões podem ser citadas:

1. Lugar onde Jesus passou Sua infância. Foi para lá, em cumprimento de uma profecia e para a proteção de Sua vida (2.22,23). O leitor fica sabendo que na Galiléia estão locais que são “os teatros divinamente escolhidos para a carreira de Jesus.”203

2. Lá Jesus iniciou Seu ministério de pregação, ensino e cura (4.12,17,23). A menção da Galiléia, por Mateus, pode estar enfatizando o paralelo entre o início do ministério dos discípulos às nações com o início do ministério público de Jesus a Israel.204

3. Galiléia é caracterizada como a “Galiléia dos gentios” (4.15). Ela é parte de Israel (2.20-22). A Galiléia é também o local do anúncio de que a esperança prometida dos gentios (Is 42.1-4) encontrará cumprimento (Mt 12.18-21). O ministério de Jesus na Galiléia assinala “uma visitação messiânica a Israel, que também engloba todas as nações, como a profecia de Isaías havia anunciado anteriormente.”205

4. Para os discípulos a Galiléia certamente trazia recordações importantes: - ali foram chamados a seguir Jesus - 4.18-22- receberam novo nome, apóstolos - 10.1,2,5- foram chamados de “trabalhadores da seara” - 9.38- ouviram quatro dos grandes discursos de Jesus - 5.1ss; 10.5ss; 13.3ss; 18.3ss- ouviram de Jesus o preanúncio de Sua morte e ressurreição - 16.21; 17.22,23; 20.18,19; cf. Lc 24.6,7- ali adoraram Jesus como o Filho de Deus - 14.33206

- ali Deus proclamou ser Jesus o Seu Filho - 17.5.

Para o monte - montes têm importância especial em Mateus. Importantes eventos ocorreram em montes (4.8; 5.1; 17.1; 21.1; 24.3; 26.16; etc). Em quatro ocasiões (5.1; 8.1; 14.23; 15.29), além de 28.16, Mateus se refere ao monte, sem nenhuma informação adicional sobre sua localidade. Talvez tenha sido um monte bem conhecido de Jesus e dos discípulos, que o denominavam simplesmente “o monte”.207

Tem sido sugerido que o ambiente de uma montanha tem uma importância teológica. Terence Donaldson, em um estudo sobre a importância das montanhas em Mateus, mostra que não só Sinai, mas o monte Sião estariam na mente de um leitor do primeiro século diante de um monte com importância religiosa. Os estudiosos que enfatizam Sinai como o monte principal normalmente vêem Jesus com muitas semelhanças com Moisés (que, de fato, existem). Tendo Sião como o monte de referência, nota-se que Jesus também assume o papel de hwhy :“pode haver pouca dúvida de que a declaração, feita no monte, sobre a presença permanente do Senhor ressuscitado em Mt 28.20, quer lembrar a promessa da renovação da comunhão de em Sião, o santo monte de Javé. Mateus está declarando que esta promessa antecipada por tão longo tempo tem seu cumprimento, não com a restauração de Sião, mas com a ressurreição e exaltação de Jesus. Deus está com Seu povo escatológico, não quando eles se reúnem em Sião, mas quando se reúnem com Jesus, que é, Ele próprio, chamado Emanuel (1.23; cf. 18.20).208

- Almeida R.A. traduz “[para o monte ] que Jesus lhes designara”. No entanto, tal tradução está sujeita a questionamento. O verbo pode ser considerado sob cinco significados: designar, causar ser, comandar, sugerir, dar-se para. 209 Conforme o Léxico de Liddell e Scott, o verbo denotava originalmente a designação de alguém para uma posição especial, tais como o preparo de

203 Sean Freyne, Galilee, Jesus and the Gospels - Literary Approaches and Historical Investigations (Philadelphia: Fortress Press, 1988), 77.204 Jack D. Kingsbury, “The Composition and Christology of Matthew 28.16- 20,” Journal of Biblical Literature 93 (1974): 581,2; R. T. France, The Gospel According to Matthew (Grand Rapids: Eerdmans, 1985), 412; Leon Morris, The Gospel according to Matthew (Grand Rapids: Eerdmans, Leicester: Inter- Varsity Press, 1992). 205 Freyne, Galilee, Jesus and the Gospels , 90.206 Este texto e Mt 28.17 são os únicos locais onde os discípulos adoram Jesus.207 Semelhante ao que ocorria com pastores da IELB, dizendo: “Vou até o morro ”, em uma referência ao “Mon’t Serrat”, em Porto Alegre.208 Terence Donaldson, Jesus on the Mountain . Journal for the Study of the New Testament Supplement Series (Sheffield: JSOT Press, 1985), 187,8.209 Johannes P. Louw e Eugene A. Nida, ed., Greek-English Lexicon of the New Testament Based on Semantics Domains (New York: United Bible Societies, 1988), vol. 2, 241.

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soldados para a batalha, ou de sacerdotes para seu serviço.210 Quanto ao uso de no Novo Testamento nota-se o seguinte:

• são oito ocorrências do verbo• em quatro delas, o assunto se refere a uma posição oficial :

- Lc 7.8 - um centurião em sua posição de autoridade- At 15.2 - representantes indo a uma reunião- Rm 13.1 - autoridades constituídas por Deus- 1 Co 16.15 - pessoas que se consagram a um serviço especial

• em dois casos o significado “mandar, ordenar” está totalmente fora de questão:- At 13.48 - pessoas determinados por Deus para a vida eterna- At 28.23 - um tempo especial é combinado para um encontro

• um caso pode ser disputado (mesmo aí há o estabelecimento de alguém em uma posição especial):- At 22.10 - Paulo saberia o que foi ordenado (ou estabelecido) para ele fazer (como um apóstolo de Cristo) A dificuldade de se traduzir o verbo como “ordenar, mandar” em Mt 28.16 é maior ainda quando se nota que em nenhum momento no Evangelho é dito que Jesus teria ordenado que eles fossem para um monte depois da Sua ressurreição.211

A outra possibilidade de tradução seria: “o monte onde Jesus os constituiu”. Claude Chavasse propõe esta tradução, a partir de três argumentos:

1. o uso do verbo no NT com o significado de “apontar, estabelecer, constituir” (1 Co 16.15; At 15.2; Lc 7.8);

2. os paralelos sinóticos de Mateus 10, que mencionam explicitamente que o estabelecimento dos doze como apóstolos aconteceu sobre um monte (Mc 3.13-19; Lc 6.12-19);

3. um pano-de-fundo do AT: conforme Dt 1.6,13 Moisés constituiu doze homens, sobre o monte Horebe, para julgarem as doze tribos de Israel.212

Interessante é que após o discurso de Jesus no capítulo 10 de Mateus, este conclui com as palavras (11.1). Se o verbo pode ser traduzido, conforme o significado clássico, “dispor, estabelecer”, então ocorre uma conexão direta entre Mt 28.16 e este texto, e entre as duas situações onde os discípulos foram enviados por Jesus.

A conseqüência de tal tradução (estabelecer, nomear) é simples: exatamente no monte onde os discípulos se tornaram “apóstolos” (enviados em uma missão especial, como representantes do Senhor), Jesus os envia novamente. Na primeira vez, deveriam proclamar que o reino de Deus estava próximo213 (10.7); agora eles sabem que Jesus tem toda a autoridade. O que aconteceu entre as duas situações - a morte e ressurreição de Jesus - trouxe o Reino à sua plenitude, em Jesus. Antes os apóstolos foram enviados somente para “as ovelhas perdidas da casa de Israel”. Agora todas as nações são o objetivo.

Em relação ao caráter dos onze discípulos, a distinção clara entre eles e as multidões, no capítulo 10 (já em 9.36-38), encontra paralelo em 28.16-20. As palavras de Jesus são dirigidas ao onze, não às multidões, nem mesmo a um grupo maior de “discípulos”.

A partícula possibilita a tradução alternativa. Seu significado mais freqüente não é “para onde” (cf. Almeida R.A. em Mt 28.16), mas “onde”.

Considerando a discussão acima, pode-se chegar a algumas observações:• se a tradução for (como em Almeida R.A.) “para o monte que Jesus lhes designara”, fica difícil

entender porque Mateus não mencionou esta ordem específica (principalmente notando que em três ocasiões este encontro foi mencionado por Jesus). É ainda uma possibilidade gramatical, mas não parece conforma-se à maneira de Mateus relatar a história de Jesus.

• Se a tradução for “para o monte onde Jesus os constituiu”, teremos claros paralelos (e contrastes) com o relato do capítulo 10.

210 Henry G. Liddell e Robert Scott, A Greek English Lexicon , 9 a edição, (Oxford: At the Clarendon Press, 1953), 1759,60.211 Isso é particularmente interessante, notando- se que por três vezes Jesus falou deste encontro : 26.32; 28.7,10.212 Na verdade, o contexto em Dt 1 indica que não só doze homens, mas muitos mais foram indicados - Dt 1.15.213 à mão!

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• A situação poderia ser explicada assim: os discípulos, ouvindo das mulheres que deveriam ir até a Galiléia, sem indicação adicional de lugar, foram para o local que lhes era particularmente significativo, o lugar em que foram chamados para a missão a Israel.214

• Poder-se-ia argumentar que Mateus não diz que o local de Mateus 10 é um monte - o leitor não saberia (na verdade esta última conclusão é impossível de ser averiguada). De fato, os discípulos sabiam!

• Se a primeira possibilidade acima for a correta, teremos um estranho exemplo de falta de referência no relato de Mateus (que não combina com seu estilo).

• Se a segunda possibilidade for a correta, o evangelista estaria tão somente acrescentando informação sobre algo relatado anteriormente (no capítulo 10) e esta informação adicional estaria em perfeito acordo com a importância que ele dá para os montes.

Versículo 17

- “E, quando o viram, o adoraram, mas alguns duvidaram”(Almeida R.A.).

O primeiro ponto importante a notar é a adoração efetuada pelos discípulos. Em Mateus, o verbo nunca é usado para uma mera reverência a uma pessoa. Somente Deus e Jesus são os receptores da ação designada pelo verbo. O ato dos discípulos foi, então, um legítimo ato de adoração.215

O que causa mais dificuldade é o que segue: “alguns duvidaram”. Quem seriam estes que duvidaram? Como pode adoração e dúvida andarem lado a lado? Comentaristas estão divididos. Alguns falam de um grupo maior que o dos onze; estes, além dos onze, seriam os que estariam em dúvida. Outros propõe uma divisão no grupo dos onze.

O texto não prova a existência de dois grupos. A partícula não introduz necessariamente um grupo distinto. Para isto, Mateus usa alguma outra expressão na primeira parte da frase ou deixa claro, no contexto, que há dois grupos diferentes. Aqui não é o caso. A explicação é dada em um estudo de Charles Giblin, que mostra que o v. 17b inicia uma nova frase. A anterior começara em 16 a indo até 17a. Ele dá exemplos de tais construções (2.9; 4.20; 9.31; 14.21,23; 22.19b; 20.5a). 216 Não há paralelo em Mateus de uma situação onde um segundo (visto que o v. 16 também inicia assim) pertenceria à segunda parte de uma frase, com um sujeito diferente.217 Assim, não há razões no texto para encontrar um grupo além dos onze, e nem mesmo dois grupos dentre os onze. Como, então, entender a dúvida no contexto de adoração (ou vice-versa)?

Sobre o verbo algumas observações podem ser feitas: • Em Platão, o termo denota “estado de incerteza e inabilidade de tomar uma decisão a partir da

evidência apresentada”. Em Aristóteles segue o mesmo padrão. O mesmo pode ser encontrado nos papiros e nos pais da Igreja.218

• A pessoa está dividida na sua convicção. Está implícita a presença da fé, mas de forma imperfeita.219

Este padrão parece combinar bem com os usos do verbo no NT - somente no texto em estudo e em Mt 14.31 (Pedro afundando na água, sendo repreendido por Jesus). É um tipo de dúvida no contexto da fé. A dúvida pode ser aí entendida, então, como “hesitação ou oscilação na prática, mais do que dificuldades especulativas sobre doutrina”.220 Tem a mesma força da “pequena fé”, denunciada por Jesus nos discípulos diversas vezes. Assim, o uso do “duvidaram” em Mt 28.17 não implica descrença. “Mateus está falando de irresolução e

214 “ O monte”, conforme discussão acima.215 Um detalhe interessante é apontado por Jose O’Callaghan, em seu estudo “Proskynein en la Correspondencia Cristiana (Siglos II a V),” Estudios Biblicos 33 (1974). O verbo passou a ser usado em correspondência cristã, referindo- se a um ato de admiração, respeito, mudando o padrão da LXX e NT, que usam o dativo, para o uso do acusativo, denotando uma “diminuição da sacralidade que o verbo tem no uso popular” (188). O que mais chama a atenção é que certas variantes de Mt 28.17 trazem (dativo). Em um tempo em que o verbo era usado com o acusativo para denotar afeição, aqueles documentos (as variantes do texto) preservaram explicitamente o sentido de adoração.216 Charles H. Giblin, “A Note on Doubt and Reassurance in Mt. 28.16- 20,” Catholic Biblical Quarterly 37 (1975): 68.217 Giblin, 69.218 I. P. Ellis, “But Some Doubted”, New Testament Studies 14 (1968), 576.219 Ellis, 576.220 John P. Meier, Matthew , (Wilmington: Michael Glazier, 1980), 369.

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hesitação. Eles não conseguiam decidir resolutamente”.221 Mas é ainda no contexto da fé, para o que há precedentes bíblicos: Sara (Gn 18.12); Gideão (Jz 6.11-24); Manoá (Jz 13.8).

O fato dos discípulos duvidarem - estarem irresolutos diante do que viam - parece enfatizar o que vem depois: a presença e, especialmente, as palavras de Jesus.

Versículo 18

- uma das grandes afirmações teológicas de Mateus e de todo o NT.222

Há dois elementos importantes no verbo :1) A voz passiva - sem o agente da ação. É um fenômeno muito comum em Mateus, servindo

como uma forma de evitar o uso do nome de Deus.223 É o divino passivo, que tem um uso muito amplo na literatura apocalíptica. O passivo divino não é apenas usado como uma forma de reverência ao santo nome de Deus, mas na literatura apocalíptica ele é “uma maneira de descrever, em termos ocultos, a misteriosa atividade de Deus no tempo do fim.”224 Assim, a autoridade de que Jesus fala é divinamente concedida e enfatiza uma verdade que aparece constantemente em Mateus, que há um relacionamento perfeito entre o Pai e Jesus, e que a missão de Jesus é orientada pelo Pai.

2) O tempo do verbo: Aoristo - é um Aoristo ingressivo, ou seja, refere-se a algo que aconteceu a pouco.225 J. Jeremias observa a força do verbo que, junto com o e a referência ao Filho do homem de Daniel 7.14, indica que “a profecia de que o Filho do homem seria entronizado como senhor do mundo foi cumprido na ressurreição.”226 Edmond Hiebert abre o escopo da referência para a obra inteira da redenção realizada por Jesus. Isto parece mais acurado conforme a maneira como Mateus indica a importância da paixão, morte e ressurreição de Jesus. J. Meier tem a tese que na morte e ressurreição de Jesus acontece um “desvio” da História, de modo que “a morte e ressurreição introduziram um período quando Jesus, como o filho do homem é o Senhor do cosmos.”227 Portanto, a declaração de Jesus em Mateus 28.18 não é uma simples maneira de iniciar Sua fala com os discípulos, mas é uma declaração solene de que algo realmente decisivo aconteceu a pouco e que uma nova era está iniciando.

Uma outra questão refere-se ao como pode ser que o Filho de Deus receba autoridade. As Confissões Luteranas dão uma grande ajuda nesta questão apontando para o fato de que Jesus fala aqui, não só como homem (segundo a Sua natureza humana)228, mas que agora está no estado de exaltação, que segue o estado de humilhação. A diferença entre estes estados não é o ter ou não ter autoridade229, mas em usar ou não sempre e inteiramente a autoridade divina.230 Assim, Mateus fecha o Evangelho mostrando Jesus, que sempre teve autoridade, agora a usa de forma plena e, pela primeira vez, fala abertamente sobre isto com Seus discípulos. A autoridade de Jesus é para ser declarada para e pelos discípulos.

A natureza da autoridade de Jesus ( ) merece maior clarificação. Este termo é o mais apropriado para denotar a “habilidade de realizar uma ação ao ponto em que não há mais obstáculos no caminho, distinto de , que tem o sentido de uma habilidade intrínseca.”231 Refere-se sempre a alguma posição especial na qual a pessoa está, tal como um rei ou um pai. 232 Na LXX segue-se este padrão. Quanto ao uso em Mateus, algumas observações podem ser feitas. Primeiro, a autoridade sempre se refere a Jesus. É a autoridade para ensinar a Palavra (7.29; 21.23,24,27), para perdoar pecados (9.6,8), para curar, por

221 Ellis, 577.222No Livro de Concórdia esta frase é citada nove vezes, sendo que oito no artigo VIII da FC, Sobre a Pessoa de Cristo. 223Bruce J. Malina, “The Literary Structure and Form of Matthew 28.16- 20,” New Testament Studies 17 (1971): 89.224Joachim Jeremias, New Testament Theology , Part One: The Proclamation of Jesus, Traduzido por John Bowden (Londres: SCM Press, 1971), 13.225J. Jeremias, New Testament Theology , 310.226J. Jeremias, New Testament Theology , 310.227John P. Meier, Matthew , 351.228Fato apontado pela maioria dos intérpretes.229Mateus mostra em diversos momentos - nos milagres, curas e prodígios, e nos ensinos - que Jesus sempre teve autoridade divina.230FC Ep VIII, 16. Cf. também: FC Ep VIII, 34, 39; FC DS VIII, 55, 70, 74, 85; VII, 43. 231Werner Foerster, , TDNT, 2:562.232Otto Betz, , O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento , Colin Brown, ed., 3:573: “Indica o poder para agir que alguém recebe em virtude da posição que detém.”

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palavras (8.9); para expelir demônios (10.1). A segunda observação é que em todas as ocasiões a autoridade de Jesus está ligada ao uso da Palavra! A autoridade que Jesus tem é sempre uma autoridade para fazer algo, por palavras. Nas palavras de W. Foerster, “ela [a autoridade de Jesus] é inseparável da proclamação de que o reino de Deus está próximo.”233

Versículos 19 e 20 - Estrutura

A força dos Particípios em relação ao Imperativo

Os versículos 19 e 20 apresentam a seguinte estrutura:

AORISTO PARTICÍPIO AORISTO IMPERATIVO 2 PRESENTES PARTICÍPIOS

Qual é a função de cada particípio é uma das questões importantes a serem respondidas, antes mesmo de se entrar na discussão do significado de cada verbo.

- Conforme Matthew Black, é característico das linguagens semíticas usar verbos auxiliares e incoativos, que servem para introduzir um discurso e para dar ênfase ao verbo principal da frase.234 Uma das situações mais comuns ocorre no uso de um verbo de movimento ( , por exemplo) como o verbo auxiliar: “Ao enfatizar o verbo principal, nenhuma idéia de ‘ir’ precisa estar presente.”235 No uso de Mateus, em todas as situações onde o particípio aoristo é empregado diretamente ligado a um imperativo aoristo, o particípio tem ou uma simples função introdutória, sem nenhuma força em si mesmo (9.13), ou implica em alguma ação, normalmente um movimento (2.8,13,20; 9.6,18; 11.4; 17.27; 28.7). em todos estes casos, no entanto, tal ação não tem nenhuma ênfase na situação e é perfeitamente esperada em vista do verbo principal. Em outras palavras, o particípio não acrescenta nenhuma informação adicional ao verbo principal da frase. Assim sendo, não se pode dizer que tem um “caráter imperativo”236 Daí que surpreende que a maioria das versões do NT trazem um imperativo traduzindo .237

Qual seria uma boa tradução para ? Certamente não uma que com caráter de imperativo (“ide”, “vão”). Uma tradução literal seria: “indo”, ou - acentuando o caráter de Aoristo - “tendo ido”. No entanto, mesmo tais traduções podem evocar a idéia de que este verbo traz o “primeiro passo” da ação toda, o que não teria fundamento no texto.238

... - Aqui a situação é bem diferente, pois os particípios claramente introduzem ações que explicam o verbo principal. O mesmo ocorre nas duas outras situações no NT onde se tem a presente construção (Imperativo Aoristo + 2 Particípios Presentes): Fp 2.2 e Cl 3.12,13.

Chama a atenção a leitura variante para , ou seja: ,239 o Aoristo Particípio. Seria uma ênfase no Batismo como um ato sem repetição?240 Ou enfatizaria a prioridade cronológica do Batismo em relação ao ensino (ou mesmo em relação ao verbo principal)? Traduções poderiam ser: “Fazei discípulos; tendo-os batizado, ensinai-os” ou “Fazei discípulos, batizando-os; então ensinai-os”. Ainda assim a leitura com o Presente Particípio tem mais evidência de ser o texto original.

233Foerster, , TDNT, 2:569.234Matthew Black, An Aramaic Approach to the Gospels and Acts , 3a edição (Oxford: At the Clarendon Press, 1967), 125.235Black, 126.236Cleon Rogers, “The Great Commission”, Bibliotheca Sacra 130/519 (Julho - Setembro / 1973), 260.237Assim as traduções em língua inglesa: KJV, NKJV, RSV, NRSV, NIV, New American Standard Version, Moffatt, New Berkeley Version, The Living Bible, The Jerusalem Bible, An American Translation, The New English Bible - todas trazem “Go”. O mesmo se verifica nas traduções em Português: Almeida R.A., Bíblia de Jerusalém, Novo Testamento - Edições Loyola - trazem “Ide”; A Bíblia na Linguagem de Hoje e O Novo Testamento Vivo têm “Vão”.238Bruce Malina, “The Literary Structure and Form of Matt. 28.16- 20”, New Testament Studies 17 (1971), sugere que o verbo não seja traduzido (90), o que estaria em perfeito acordo com o uso do mesmo verbo em Mt 9.13.239Documentos B e D.240Enfatizando a ação chamada ação pontilear.

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- Normalmente traduzido por “assim, portanto, conseqüentemente, então”. É uma partícula “inferencial, denotando que aquilo que ela introduz é o resultado ou inferência daquilo que precede”241 Portanto, esta partícula assinala que o texto dos vv. 19 e 20 - a “grande comissão” propriamente dita - depende do que foi dito no v. 18 - a afirmação de Jesus de que toda a autoridade lhe fora dada. Isto traz uma importante conseqüência teológica, ou seja, de que a “grande comissão” tem uma forte ênfase cristológica.

Versículo 19

- o verbo é usado apenas 4 vezes no NT: Mt 13.52; 27.57; 28.19; At 14.21. Nestes textos, o “ser discípulo” está ligado a:

• ser instruído nas coisas concernentes ao Reino dos céus (Mt 13.52);• estar vinculado a Jesus (o que depende de Ele chamar, pois ninguém se coloca no discipulado por sua

própria decisão) (Mt 27.57)• o anúncio do evangelho (At 14.21)• ação de Jesus ou de alguém que é constituído para fazer isto242

Note-se que em todos os casos, o Aoristo é utilizado. O uso em Mt 28.19 mostra ser fora de questão a explicação do Aoristo como “puntual”. Outra explicação é a de que o aspecto do verbo é entendido a partir do “foco” daquele que fala, em relação à ação: no Aoristo, o foco está na ação em si; no Presente, o foco está na conexão entre a ação e aquele que a realiza.243 Portanto, em Mt 29.19, o foco estaria na ação em si. O Presente enfatizaria a conexão dos onze com a tarefa. O Aoristo parece implicar que a ação continuará, mesmo depois dos onze pararem.

O que é um “discípulo”? Normalmente os estudos a respeito enfatizam o aspecto de seguir a Jesus, como o exemplo e modelo. Mas olhando para o Evangelho conforme Mateus como um todo pode-se ter uma visão mais ampla do que é o discipulado:

• é ter a felicidade de estar com Jesus, de ouvir Sua Palavra e testemunhar Seus atos maravilhosos

• é confessar a Cristo (pela revelação de Deus e pela manifestação do próprio Jesus)• é ouvir dele a proclamação de Sua paixão, morte e ressurreição• é receber o Seu corpo e sangue na celebração da Nova Aliança• é ser chamado de “irmão” de Jesus, mesmo quando se teve uma atitude reprovável em

relação a EleAssim, ao invés de uma visão unilateral, que enfatiza tão somente obediência, imitação, auto-sacrifício, o discipulado deveria ser definido como algo que englobasse as características citadas acima. Uma tentativa de formulação poderia ser:

Discipulado significa desfrutar da comunhão com Jesus, preparada e realizada por Ele, na qual recebemos dele as bênçãos do reino vindouro de Deus e vivemos com Ele uma nova vida, cuja perspectiva é eterna.

Ainda é preciso dizer que não se pode simplesmente identificar o grupo dos doze (agora onze) como os paradigmas do discipulado, em todos os sentidos. É preciso lembrar que no ministério de Jesus foi feita uma distinção entre este grupo e os demais que o seguiam; os doze foram preparados para serem “pescadores de homens”. Apesar de que há muitos elementos na vivência dos onze que servem de modelo para o discipulado cristão, há um elemento que não é compartilhado com todos os cristãos: o caráter apostólico!

- a questão básica é se os judeus estão aí incluídos. Alguns têm traduzido o texto por “todos os gentios”, excluindo os judeus. No entanto, o termo é usado tanto em Mateus como em outros livros do NT também em uma sentido mais amplo, que envolve os judeus. No caso de Mateus, parece haver um “ponto de inflexão”244 no uso do termo. Desde o início do evangelho, o significado “gentios” é preponderante.245 Até Mt 21.43, quando, após a parábola dos lavradores maus, Jesus

241BAGD, 592,3.242O texto de Atos mostra pessoas (Paulo e Barnabé) especialmente constituídas para a tarefa. Mesmo que não se possa ainda fazer conclusões definitivas, é importante notar que o verbo não é usado para designar testemunho cristão (de cada cristão)!243James W. Voelz, “Present and Aorist Verbal Aspect: A New Proposal”, Apresentado no 47 O Encontro Geral Anual da Studiorum Novi Testamenti Societas, em Madri, Espanha, em Julho de 1992, p. 6.244Turning- point.2454.15; 6.32; 10.5; 10.18; 12.18; 12.21; 20.19.

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anuncia que o reino será dado . Um “novo povo” receberá o reino. A questão aqui não é de mudança de nação ou etnia. A cláusula modificadora de - “que produzirá os seus frutos” mostra que a questão é outra. Depois deste texto, não há mais distinção entre os judeus e gentios, mas os judeus estão entre todos os povos: Mt 24.7; 24.9; 24.14; 25.32. Possivelmente a melhor tradução seria - “todas as gentes”, pois não há ênfase no sentido étnico, nem político.

O próprio Evangelho conforme Mateus, claramente enfatizando a universalidade da obra de Jesus, não deixa de incluir os judeus nesta missão, desde o início, com a genealogia a partir de Abraão, até o fim (no “todas as nações”). Assim, as palavras finais de Jesus funcionam como um “absolvição” para os que o rejeitaram - também para eles os onze são enviados com o mandato do Senhor.

- como as duas menções ao Batismo, antes de nosso texto, em Mateus, aludem ao Batismo de João, fazemos algumas observações acerca dele, especialmente distinguindo-o das abluções comuns aos judeus246:

• O Batismo de João não era repetido, como as abluções judaicas• tinha uma finalidade escatológica (apontando para a vinda e para o Batismo que o Messias traria)• Não era auto-administrado, mas João, o “Batista” (batizador) batizava outros• Era combinado à proclamação de julgamento e a necessidade de arrependimento.247

• Foi a marca do início do Ministério de Jesus (At 1.22; 10.37)• Um Batismo de preparação, diante da vinda de Cristo• Efetuava algo radical na vida do batizado - perdão dos pecados• Pertencia ao conselho divino e, portanto, era necessário aos homens (Mt 21.25)• Preparatório para o Batismo em nome de Jesus (At 18.25; 19.3,4) e, portanto, com uma importância

temporária (Mt 3.11).Um aspecto importante ligado ao caráter divino do Batismo de João é a manifestação do Pai e do Espírito Santo no Batismo de Jesus (Mt 3.16,17). O fato é que no Batismo ordenado por Jesus também é marcada a presença do Deus Triúno (Mt 28.19). A conclusão que se pode tirar é que no Batismo acontece uma Epifania do Deus Triúno. O Batismo, pois, não é algo que o homem oferece a Deus, ou um testemunho público de fé. Mas é uma ação na qual Deus mesmo é o doador e o homem, aquele que recebe algo.

O verbo é usado na imensa maioria das ocasiões como referência ao Batismo de João ou ao Batismo cristão. Algumas vezes se refere a uma lavar de purificação ritual (Mc 7.4; Lc 11.38) ou à morte de mártir (Mc 10.38,39). Há dois substantivos relacionados a “Batismo”: e . O primeiro, que poderia ser traduzido por “imersão” ou “lavagem”, é usado para referir-se a cerimônias de ablução e a lavagem de louça.248 A outra palavra - - é aplicada:

• à morte de Jesus e ao martírio cristão (Mc 10.38,39; Lc 12.50)249

• ao Batismo de João e o subseqüente Batismo cristãoAssim, é uma palavra que acentua o caráter novo e único do Batismo cristão (se comparado às abluções judaicas). No comando de Jesus, de fazer discípulos, batizando, temos de entender que a ligação mais acentuada é com o Batismo de João, onde arrependimento e remissão dos pecados estavam diretamente ligados ao Batismo.

Batismo - vinculações externas250 - um exame do Batismo no NT, especialmente no uso do verbo, nos mostra que não há referência ao povo de Deus em geral administrando o Batismo. Sempre é alguém enviado especialmente por Deus em um ofício: João Batista, Paulo, Pedro, Filipe, Ananias.

Em nome ... - Em primeiro lugar, é preciso investigar o sentido da preposição , especialmente em comparação com a preposição . As duas preposições podem, até certo ponto, ser intercambiáveis, ainda que, no parecer de diversos estudiosos, a primeira tem o sentido de para dentro de, enquanto que a segunda seria

246Lv 11; 13; 14; 15; Nm 19; além dos batismos dos prosélitos, utilizado no Judaísmo.247Edmund Schlink, The Doctrine of Baptism , (St. Louis: Concordia, 1972), 19,20.248Hb 6.2; 9.10; Mc 7.4,8.249W. F. Flemington faz um comentário signif icativo: “Atrás de todo Batismo cristão está não apenas o Batismo de Jesus no rio Jordão, mas também Seu outro ‘Batismo’, no Calvário”. (The New Testament Doctrine of Baptism [London: SPCK, 1957], 123).250” External entailment ” - substantivos e adjetivos baseados em verbos são considerados não apenas em si mesmos, mas no que o verbo cognato “vincula” (“entails”) - o termo e a base teórica nos vêm do Dr. James W. Voelz. Em Português usa-se o termo “implicatura”.

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simplesmente em.251 Não se pode, no entanto, considerar a importância da preposição sem notar o contexto em que é utilizada.

- duas idéias básicas têm sido propostas para explicar a expressão:1. À luz do seu uso no comércio helenístico: “na conta de” - a pessoa estaria sendo colocada

como possessão do Deus Pai, Filho e Espírito Santo. 2. Com base no pano de fundo aramaico: “com respeito a” - a pessoa é colocada em uma

relação definida com Deus. Na verdade, as duas explicações não se excluem. Concordamos com Alvim Paul Young, que observa que por esta expressão, a pessoa está

“sendo dedicada ao serviço de alguém, admitida na comunhão com alguém, inscrita com o nome da pessoa que é nomeada, e tornada sua possessão.”252

O nome - A importância do “nome” de alguém na cultura do Antigo Oriente é conhecida. Há uma relação muito estreita entre o nome e aquele que o tem. Isto é especialmente verdade no que tange ao nome de Deus. Especialmente após o êxodo, o nome hwhy evoca no israelita a lembrança dos atos de salvação que Deus demonstrou junto ao Seu povo. No AT, o nome de Deus é muitas vezes associado ao povo de Deus.253 Isto está relacionado ao fato que Deus ordenara que Seu nome fosse colocado sobre Seu povo, através da bênção sacerdotal (Nm 6.22-27). Isto aponta para a comunhão entre Deus e Seu povo. Eles lhe pertencem. Ele habita com o povo e se compromete com o povo. Algo muito semelhante acontece com o nome de Deus no NT, particularmente em Mateus. Há uma ligação estreita entre o nome de Jesus e Sua presença com Seu povo (1.21,23; 18.20; 28.19,20). Quando alguém é batizado, ele recebe o nome do Pai, Filho e Espírito Santo sobre si. Tendo recebido este nome sobre si, a pessoa batizada agora irá se reunir em Seu nome (18.20), celebrar o fato de que em Jesus, Deus veio com salvação (1.21,23).

Assim sendo, não se pode interpretar a expressão simplesmente como “com a autoridade de”. Pelo Batismo somos colocados na esfera do Deus Triúno, incorporados na Sua comunhão.

Versículo 20

- o verbo é bastante geral, no sentido de instruir, “seja o ponto de discussão a passagem de informação ..., de conhecimento ..., ou o adquirir de habilidades.”254 Fora do NT, o verbo é usado para trazer a idéia de passar informação com o objetivo de uma “assimilação gradual, sistemática e, portanto, fundamental”.255

Ensino - vinculações externas - não há casos no NT onde aparece o povo de Deus ensinando, com vistas a se fazer discípulos.256 NA grande maioria dos casos fora dos Evangelhos (onde Jesus é aquele que ensina), os apóstolos (principalmente Paulo) ensinam. O ensinar é um dos dons especiais de Deus (Rm 12.7). 257

Particularmente interessante é 1 Tm 2.12, onde o apóstolo diz que não permite que as mulheres ensinem. Aquela situação dá maior evidência à afirmação de que , no NT, designa uma atividade especial, aquela de alguém em um ofício especial, de se fazer discípulos de Jesus.

251A.T. Robinson, A Grammar of the Greek New Testament , mesmo reconhecendo a mesma raiz para as duas preposições , chama a atenção para o fato que o uso com o acusativo dá para uma idéia de movimento (para dentro de). (591). Se comparado com Marcos, Mateus emprega em um sentido locativo ou instrumental (3.6,11), enquanto Marcos usa neste sentido (1.9). Mateus conserva para denotar finalidade (3.11).252Alvin Paul Young, “The Use of the Term ð in the Gospel according to Matthew”, Dissertação de Mestrado (STM), Concordia Seminary, St. Louis, 1965, 45,46.253Por exemplo: o povo recebe o nome de Deus, assim que passa a ser conhecido pelo nome de Deus (Dt 28.10; Jr 33.16); Deus faz Seu nome habitar com Seu povo (Dt 12.11; 14.23; 16.11). Hans Bietenhard, ð , TDNT, 5:256.254Karl H. Rengstorf, , TDNT, 2:135.255Ibid.256Duas possíveis exceções seriam Mt 5.19 e Cl 3.16. Neste último, onde as pessoas são exortadas a , não há um “fazer discípulos” no caso, mas a vivência na comunhão cristã (poder- se-ia admitir aqui um uso diferente do verbo do que seu uso normal no NT, como se verá adiante, claramente diferente do uso em 1 Tm 2.12, por exemplo). No texto de Mt 5.19, são os discípulos os que primariamente recebem o ensino (v. 1,2).257Aqui se pode mencionar Ef 4.11, onde é dito que o é um dos dons que Jesus dá à Sua Igreja (cf. 4.8). Isto é verdade, não importa de que forma o termo está relacionado a .

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- pode significar “guardar”, “conservar” e “obedecer”. Os usos no NT (67 vezes) se dividem nestes significados. Há, no entanto, alguma que une os diversos usos: “As pessoa somente guardam coisas que consideram como tendo valor, seja seres humanos, prisioneiros ou objetos inanimados. Guardar alguma coisa é tornar-se dependente daquilo que se guarda, porque isso somente pode ser feito mediante o sacrifício de tempo e liberdade a este mister.”258 Por isso mesmo, não se deveria traduzir o verbo por “obedecer” em Mt 28.20, por limitar demais o sentido naquele texto. O melhor seria traduzir por “conservar”, “guardar”, deixando claro que é um assunto importante, necessário, que deve ser guardado com cuidado.

- O verbo é usado fora das Escrituras para denotar ordens que vêm de alguém que está em uma posição superior, normalmente uma comissão dada por um rei ou governante.259No NT é usado no sentido de comandar algo. Qual seria o referente disto em Mt 28.20? Normalmente os estudiosos têm explicado como se referindo aos comandos éticos de Jesus, especialmente encontrados no sermão do monte. O problema é que em nenhum outro texto em Mateus , além deste e 17.9, mostra Jesus comandando um comportamento ético. Daí que resumir os “comandos” de Jesus a isto não parece estar em acordo com o propósito de Jesus, especialmente pelo fato de Ele acrescentar “todas as coisas...”. Assim, parece mais pertinente entender o referente como sendo tudo o que Jesus ensinou, conforme mostra o Evangelho. Assim, não só a ética do sermão do monte, mas todas as instruções dadas aos discípulos. Por exemplo, a explicação sobre as parábolas (cap. 13); o direcionamento sobre como tratar um irmão que pecou (cap. 18); mesmo o comer e beber do corpo e sangue do sangue na Santa Ceia (26.26,27). Mateus não coloca nenhuma restrição. Tudo o que os discípulos aprenderam de Jesus eles devem agora ensinar a outros.

Há, ainda, um outro ponto que não deve ser esquecido, e que pode mostrar a verdadeira ênfase de Mt 28.20a. Em Mateus, é sempre usado para referir-se a mandamentos de Deus do AT, especialmente os Dez Mandamentos. Agora, os ensinos de Jesus devem ser considerados ao mesmo nível que as palavras proclamadas no AT, na Lei e nos Profetas. As palavras de Jesus são palavras de Deus!260 O que está em questão, pois, não é tanto o ensino da lei em oposição ao evangelho, mas o ensino de Jesus, como palavras de Deus.

Batismo e Ensino no Mesmo Contexto

Há duas situações descritas no NT, onde Batismo e Ensino são usados, no mesmo contexto, com o fim de se fazerem discípulos de Jesus:

1. Atos 18.8-11 - Paulo está em Corinto. Crispo e muitos dos coríntios são batizados e Paulo permanece lá ensinando por um ano e meio.

2. Atos 2.41,42 - Atos 2 pode ser considerado um exemplo típico da “grande comissão” sendo colocada em ação. - Lá havia pessoas de muitas partes (At 2.9-11 - estavam representadas); - não houve necessidade de ir, mas as pessoas vieram até onde os apóstolos estavam; - os “doze”, não toda a Igreja, cuidaram da situação (At 2.14,37);- o Batismo foi administrado (At 2.41);- as pessoas batizadas estavam perseverando no ensino dos apóstolos (At 2.42).

Em ambos os casos em que Atos mostra Batismo e Ensino juntos, os textos deixam claro que os apóstolos estavam agindo para o cumprimento do mandato de Jesus em Mt 28. Por isso, não há base no NT para se afirmar que todas as pessoas - os membros da Igreja - foram enviadas para fazer discípulos, batizando e ensinando. Dito de outra forma, ainda que o texto não seja taxativo em proibir à pessoas que façam isto, é um texto que não mostra a ação da Igreja, mas a instituição do santo ministério, a partir do envio dos apóstolos de Jesus. - a expressão é usada no Evangelho apontando para uma mudança no foco da história, quando uma nova situação entra na narrativa (ou na fala). Em algumas ocasiões a expressão é usada para mostrar ao leitor que um elemento novo está sendo introduzido e que é fundamental para se entender a situação toda.261 No presente texto, a expressão chama a atenção do leitor para a promessa da constante

258Hans-Georg Schuetz, NDITNT, 2:334.259Gottlob Schrenk, , TDNT, 2:544.260David P. Scaer, em seu artigo “The Relation of Matthew 28.16- 20 to the Rest of the Gospel”, Concordia Theological Quarterly 55/4 (Outubro 1991), sugere que o referente não é a “lei como uma condenação negativa”, mas “a terminologia do comando é aplicada aqui à palavras de Jesus como palavras divinas” (257).261Exemplos podem ser vistos em : 17.1- 8; 3.16,17; 12.41,42, etc.

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presença de Jesus. Particularmente aqui, após uma comissão dada por Jesus aos Seus discípulos, a mudança do foco acentua o aspecto cristológico do Evangelho. Jesus, e não os discípulos e sua missão, é o ponto que deve permanecer como a grande ênfase na mente do leitor, após ler este Evangelho.

- a presença de Jesus com os Seus é um constante tema em Mateus. As principais passagens são 1.23 ( ); 18.20 (promessa à Sua Igreja, que se reúne em Seu nome)262. Outras, no entanto, aparecem; 9.11; 9.15; 26.18,20; 26.29; 26.36.

Com quem Jesus promete estar presente? Apesar de que grande parte dos estudos responde: com a Igreja, não parece ser esta a resposta que corresponde ao texto. Jesus faz a promessa aos que Ele envia para fazerem discípulos pelo Batismo e Ensino.263 Esta presença de Jesus não está subordinada à obediência deles. Ela é, na verdade, uma realidade que os move a cumprirem com a missão. Além disso, fica evidente que a missão continua tendo o mesmo Senhor: Cristo Jesus. Ele que, em compaixão, habitou com os pecadores e os chamou para o desfrutar do Seu reino, durante Seu ministério terreno, continua estando entre os que Ele envia, para chamarem outros à comunhão consigo.

- a expressão é claramente escatológica, apontando não somente para o fim de tudo, mas para o cumprimento pleno do plano de Deus.264 A tarefa dos discípulos de fazerem discípulos é, assim, colocada como a grande atividade que o Senhor determinou para caracterizar este período, entre Sua ascensão e a Sua segunda vinda. O leitor de Mateus vive em uma era onde a autoridade de Jesus é o tema, a missão de fazer discípulos é a grande tarefa e a presença do Senhor com Seus mensageiros é a promessa.

A expressão ainda aponta para o fato que a missão dada por Jesus não termina com os onze discípulos. Ela continua até o fim dos tempos, com aqueles que, como os onze, serão preparados para o ofício em que, pela Batismo e pelo Ensino da Palavra, discípulos de Jesus continuarão sendo feitos.

CONCLUSÕES

1. o Evangelho conforme Mateus é cuidadoso na maneira como descreve as pessoas que estão atuando na história sendo relatada. OS doze discípulos (onze, em Mateus 28) são diferenciados das multidões e mesmo de outros seguidores. Mateus mostra que mais pessoas do que aquele grupo seguiram Jesus (as mulheres, José de Arimatéia, multidões que o seguiam). Os doze se diferenciam não só em que recebem instrução especial e manifestam uma reação diferente, comparados com as multidões. Uma distinção importante (que infelizmente é notada por poucos estudiosos do texto) é que o grupo dos doze foi preparado para uma tarefa que não foi dada nunca a outros: ser pescadores de homens, proclamar o reino, fazer discípulos. Considerando isto, é incorreto interpretar Mt 28.16-20 como se estivesse dizendo que os onze iriam trabalhar assim que outros pudessem ser como eles. O que a maior parte dos estudos sobre discipulado esquece é que não é possível chegar ao significado correto apenas observando o significado de . É necessário observar o que envolve ser um dos doze.

2. O texto não permite a idéia de que um grupo maior do que os onze discípulos estivesse presente. Em um contexto onde a universalidade é um grande tema, tornado explícito (“toda autoridade”, “todas as nações”, “todas as coisas”, “todos os dias”), seria no mínimo estranho que uma comissão dada a toda a toda a Igreja não tivesse expressado isto de forma mais clara, mas estaria - a referência à Igreja - escondida na referência aos onze discípulos.

3. A situação tem vários pontos de semelhança com aquela referida em Mateus 10. Lá Jesus chama os doze e os envia para uma missão muito especial - proclamar o Evangelho do reino e curar, missão esta que não é dada a nenhum outro grupo neste Evangelho. Possivelmente o mesmo lugar presenciava este segundo envio.

4. Introduzir a figura da Igreja em Mateus 28.16-20 traz consigo dificuldades. Em duas ocasiões quando Mateus menciona a Igreja (16.18; 18.17), ele deixa claro que há uma conexão estreita entre o grupo dos doze e a Igreja, mas ele não os identifica.

5. As vinculações externas (“implicatura”) da tarefa dada aos onze são importantes, especialmente tendo-se o Novo Testamento como o contexto. A atividade de fazer discípulos, pelo batizar e ensinar, é apresentada no NT sendo realizada por algumas pessoas comissionadas para esta tarefa especial, e não só isto, mas para um

262Um interessante paralelo pode ser encontrado na Literatura Rabínica (Pirke Aboth 3.2): “Quando dois se sentam e entre eles há as palavras da Torá, a Shekinah repousa sobre eles”. O nome de Jesus é a razão para o encontro e encontra paralelo na Torá (a Palavra de Deus); e a gloriosa presença de Deus (Shekinah) é comparada com a presença do próprio Jesus.263A promessa à Igreja é claramente colocada em 18.20.264Pois , o verbo cognato, refere- se a um completar de algo.

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ofício especial. A tarefa não é dada a todos os membros da Igreja. A própria escolha do 12O apóstolo em Atos 1 deixa claro que o grupo dos discípulos-apóstolos deve ser entendido como sendo distinto daqueles 120 crentes (At 1.15). O episódio do dia do Pentecostes é um exemplo claro de uma aplicação da “grande comissão”. Mesmo considerando que a Igreja estava toda reunida naquele dia, na hora da proclamação do Evangelho, foram os doze (com Pedro à frente) que ergueram suas vozes (2.14,37). Além disso, a nova comunidade perseverou (não “ensinou”) na doutrina dos apóstolos, isto é, o ensino que foi ensinado pelos apóstolos, aqueles que foram chamados e constituídos pelo Senhor para fazerem isto.

6. Mateus 28.16-20 não recebe uma aplicação correta quando aplicada a todos os crentes. O texto aplica-se ao ofício do ministério.

7. Os estudos do texto normalmente o abordam simplesmente do ponto de vista da tarefa a ser realizada pela Igreja. Há que se notar uma forte ênfase no aspecto de Lei, o que entra em contraste marcante com o tom do restante do Evangelho. A ênfase deixa de ser Cristo e Sua obra e passa a ser a tarefa que cada um tem de desempenhar. Neste estudo propomos uma maneira diferente de ler o texto.265 Jesus é aquele que, a exemplo do que acontece em todo o Evangelho, é primariamente o doador de dádivas celestes, não aquele que veio para exigir. O Evangelho conforme Mateus é ainda Evangelho em sua última perícope. As pessoas - mesmo os que crêem! - são ainda recipientes das manifestações do Reino em Jesus. Os discípulos são um grupo especial preparado para servir o povo com as mais graciosas dádivas: o Santo Batismo e a Palavra. Estamos propondo uma visão centrada no Evangelho, também ao lermos a “grande comissão”. Este texto é melhor entendido quando sua ênfase está na ação do Senhor exaltado em favor de todas as nações.

8. Poder-se-ia perguntar: Há alguma aplicação deste texto para a Igreja? Certamente. A Igreja que olha para o seu Senhor e nele confia, se regozija no fato deste Senhor estar lhe trazendo uma dádiva (Ef 4.11,12), na instituição do Santo Ministério. A Igreja é chamada a receber esta dádiva e ouvir as palavras proclamadas e a receber o Sacramento como vindos do próprio Senhor, que atua através dos instrumentos que escolheu.

9. A Igreja são aqueles que antes eram , pois estavam entre os povos a quem Jesus enviou Seus mensageiros. A Igreja é, pois, criação divina, através do Batismo e Ensino da Palavra.

10. Há diferentes “leituras” deste texto, todas possíveis e coordenadas entre si. Tendo Jesus como o ponto focal do texto, o mesmo pode ser visto como uma declaração do Senhor de que o mundo todo é o alvo de Sua obra da salvação. Missão, então, é o grande tema, mas uma missão que deve ser entendida propriamente como a obra de Deus em trazer pessoas para tornarem-se Seus discípulos, reunindo-os na Igreja. Focalizando a atenção nos discípulos e naqueles que os seguem na sua missão, o texto tem a ver com o Ofício do Santo Ministério, instituído por Cristo para atuar até o fim do mundo, de modo que gentios266 venham a se tornar discípulos de Cristo. Finalmente, tendo a Igreja como referente, o texto é visto como anunciando dádivas de Deus - o Ministério é dado de modo que o Batismo e o Ensino da Palavra do Senhor sejam trazidos e recebidos. Assim sendo, o texto de Mateus 28.16-20 pode ser proclamado nos púlpitos e nos estudos bíblicos não como um meio de mover as pessoas à tarefa do evangelismo, mas para levá-las a refletirem sobre sua própria situação diante de Deus; uma situação que não é definida pelo seu envolvimento em atividades (mesmo evangelismo), mas pelo Nome que foi colocado sobre eles no Santo Batismo e pela Palavra que foi recebida por eles, da parte do Senhor, através dos Seus mensageiros.

1 Coríntios 3.4-9 - Somos Cooperadores de Deus267

V. 4 Quando alguém diz: Eu sou de Paulo; e outro, eu sou de Apolo ... se refere a 1.10ss, quando Paulo

mostra um dos motivos pelos quais está escrevendo: havia divisões na Congregação de Corinto. E estas divisões lamentavelmente usavam os diferentes ministros da Palavra como "líderes" dos grupos adversários.

não sois homens? Almeida RA faz uma paráfrase: "Não é evidente que andais segundo os homens?", que parece trazer o sentido do texto. Ao se colocarem em grupos diferentes, com diferentes líderes, os coríntios somente estão demonstrando que agem "segundo a carne".

V. 5 O que, pois, é Apolo? E o que é Paulo? Na sua argumentação Paulo quer mostrar que o vínculo dos

coríntios é com Cristo. Por isso, a resposta esperada aqui seria "Nada"! Mas não é isso que ele responde:Servos através dos quais crestes. Neste texto (bem como no contexto - 4.1; e noutro texto, onde Paulo

trata do mesmo assunto - 2 Co 5.18; 6.3,4) fica claro o sentido específico de , quando vinculado à

265O que não é novidade, conforme o uso do texto nos Lecionários, para o Domingo da Santíssima Trindade.266Talvez “pagãos” seria melhor, para acentuar a inclusão dos judeus.267 Estudo apresentado em Reunião de Pastores - Distrito Paulista / IELB; Ipiranga, São Paulo - 13.06.95

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proclamação da Palavra: uma referência não aos cristãos em geral, mas aos que Deus colocou no Ofício da pregação! A importância de Paulo e Apolo não é desprezada. Eles foram instrumentos ( ) nas mãos de Deus para que os coríntios chegassem à fé. Paulo se confessa "servo" - antes de mais nada, servo do próprio Cristo. Mas também ele se coloca como servo da Igreja, por amor de Cristo (2 Co 4.5).

e a cada um conforme o Senhor deu. A ênfase recai não sobre a obra dos servos, mas na atuação de Deus. Note-se o que também aparece em Mt 28.18 e Ef 4.11. Deus é o doador de dádivas concretas à Sua Igreja. Neste caso, as dádivas são aqueles que Ele enviou como servos da Palavra e instrumentos para a salvação dos coríntios.

V. 6 Eu plantei, Apolo regou. Paulo procurava sempre proclamar o evangelho em locais onde ninguém havia

estado antes (Rm 15.20,21). Ele fazia a obra da evangelização, da proclamação do evangelho para pessoas que não haviam ainda entrado em contato com a mensagem cristã. Apolo, por outro lado, homem extremamente eloqüente nas Escrituras (At 18.24), fez o trabalho de nutrir a fé dos coríntios com o ensino aprofundado da Palavra, mostrando pelas Escrituras que Jesus é o Cristo (At 18.28). Cada um fez aquilo que Deus lhe deu para fazer (cf. v. 5). Nisto se deve ver a riqueza da graça de Deus e a riqueza dos dons que Ele confere, dons diferentes para aspectos complementares do mesmo trabalho, a edificação do Seu povo.

mas Deus fazia crescer. A frutificação da fé não é obra humana, mas divina. Deus se utiliza de instrumentos humanos para veicular o evangelho, que é o Seu poder para criar nova vida nos corações. É Deus mesmo e somente Ele que faz a fé germinar e crescer. O uso do Imperfeito pode estar mostrando a obra contínua de Deus em atuar por meio do ministério dos Seus servos.

V. 7 de modo que nem o que planta é algo, nem o que rega, Paulo deixa claro que não há uma importância

intrínsica naqueles homens (nos quais ele se inclui) para a vida cristã dos coríntios. Não é a pessoa deles que lhes dá fundamento na fé. Não é, portanto, na pessoa deles que os coríntios devem se sentir vinculados. A importância deles já foi colocada - é a importância de sua atuação como servos de Deus, que anunciam a Palavra que converte e edifica na fé.

mas o que faz crescer, Deus. A obra é de Deus. O ministério é de Deus. É uma dádiva para a Igreja. É instrumento que Deus usa para a salvação, mas é Ele, Deus mesmo, que atua e que "faz a missão"!V. 8

Mas o que planta e o que rega são um. Note-se o uso do neutro ( )! Os dois instrumentos humanos são "uma coisa só"! Ou seja, são servos no mesmo ministério da Palavra. Por que "um"? Porque Deus instituiu um ministério, pelo qual visa salvar a humanidade; ao qual confiou o evangelho e os sacramentos; o qual envia ao mundo; o qual dá como dádiva à Igreja. Mas o Ministério, que é um, se manifesta multiformemente:

e cada um receberá sua própria recompensa, conforme o próprio trabalho. É debatível se Paul está se referindo à recompensa final que Deus, em Sua graça, dará aos Seus; ou se se refere à recompensa de ver seu trabalho coroado de êxito. De qualquer maneira, este não é o assunto central.

V. 9 De Deus, pois, somos cooperadores. Note-se a posição enfática de . O mesmo ocorre nas duas

frases seguintes! É aí que a ênfase é dada - na ação de Deus e, no que tange aos ministros, sua vinculação com Deus, como instrumentos. "Cooperador" ( ) é alguém que trabalha junto, alguém que ajuda; alguém que se dedica ao mesmo trabalho, com o mesmo objetivo. Nesta frase pode haver dois referentes da cooperação:

1) cooperadores de (com) Deus - é o que parece indicar o genitivo (objetivo). Ambos, Paulo e Apolo, cooperam com Deus, ou seja, atuam no propósito que Deus tem para o mundo e Sua Igreja.

2) cooperadores um do outro, sendo ambos de Deus - entendendo como genitivo subjetivo (ou possessivo). O contexto parece favorecer este entendimento, já que Paulo quer demonstrar que ele e Apolo trabalham juntos - no mesmo propósito e sob o mesmo Deus.

O Dr. Vilson Scholz, em um breve artigo na Vox Concordiana - Suplemento Teológico 10/1 (1995), discute a questão e, baseado no contexto e no uso da palavra , prefere a segunda opção que colocamos acima. Ele argumenta:

Em 1 Co 3.9 temos, ou um assim-chamado genitivo possessivo (cooperadores de Deus, i.e., Deus possui cooperadores) ou um assim chamado genitivo objetivo (cooperadores de Deus, i.e., nós cooperadores com Deus). Almeida parece interpretar o genitivo como objetivo. Se for interpretado como possessivo, a tradução (literal) seria semelhante a “de Deus somos, cooperadores (uns dos outros)”. Pois é exatamente a ênfase que Paulo tem em vista no contexto de 1 Co 3. Ele fala de si e de seu colega Apolo, dizendo que um não é mais importante do que o outro. A ênfase recai sobre

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Deus, que é Senhor de ambos e dá o crescimento. Os demais contextos em que Paulo usa o termo synergoi tendem a confirmar esta avaliação: Paulo fala de seus colegas no ministério pastoral em termos de cooperadores com ele. Logo, prefiro uma tradução que reproduza o que diz a Tradução Ecumênica: “Pois nós trabalhamos juntos na obra de Deus.“ (p. 7,8)

Não se pode, no entanto, descartar uma deliberada ambigüidade, já que ambas conclusões recebem apoio de outros textos:

1) Os ministros da Palavra cooperam com Deus - 1 Co 15.10; 2 Co 6.1; 1 Ts 3.2.2) Cooperam uns com os outros, sendo que todos pertencem a Deus - Rm 16.3,9,21; Fp 2.25; 4.3.

Um detalhe interessante sobre os textos acima: Paulo chama de cooperadores seus não somente outros ministros da Palavra (ex.: Priscila e Áquila também são incluídos); mas somente pessoas no ofício do ministério são chamados cooperadores “com Deus”.

Assim sendo, os ministros da Palavra consideram-se uns aos outros como cooperadores - estão trabalhando sob o mesmo Deus, na mesma missão. Por isso mesmo, não podem considerar-se como líderes de diferentes facções; não podem considerar-se como adversários ou concorrentes. Esta seria a maneira legalista de encarar o assunto; seria a maneira .

Mas os ministros da Palavra são, igualmente, cooperadores de Deus. Não que acrescentem algo à obra de Deus, mas são a boca e as mãos de Deus no fazer Sua obra. Afinal, foi o próprio Deus que escolheu a estes e os deu como dádivas à Igreja, no propósito de fazer proclamar Sua graça e perdão em Cristo.

De Deus lavoura, de Deus edifício sois. A Congregação (para quem Paulo dirige estas palavras) é o campo no qual Deus está plantando a boa semente, através de Seus servos; é o edifício que Deus está construindo, por intermédio dos ministros da Palavra. Note-se a ênfase em Deus e a distinção clara entre nós (cooperadores - os sujeitos, enquanto instrumentos de Deus, da ação) e vós (lavoura, edifício - o objeto da ação). A Igreja aqui é vista não como aqueles que hão de fazer algo (mesmo que não se negue isto), mas aqueles que recebem algo, ou melhor, aqueles que vem a existir por meio da ação de outros.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS:

1. A unidade do Ministério pastoral é enfatizada neste texto. Os dons diversos e atividades especiais que os ministros desempenham não os colocam em diferentes ministérios. Neste ministério único para o qual fomos chamados, convém agirmos conforme o apóstolo, vendo-nos uns aos outros como cooperadores uns dos outros, sob Deus, nunca como concorrentes ou chefes de facções.

2. O texto faz uma distinção clara entre Ministério e Igreja; é explícito, também, ao apontar para os ministros da Palavra como os “cooperadores de (com) Deus”, enquanto instrumentos escolhidos por Deus e dados à Igreja para a edificação desta. Faríamos bem em confessar através de palavras e atitudes, no trabalho da Igreja, aquilo que Deus nos dá neste texto. A distinção entre Ministério e Igreja é salutar, pois enfatiza a graça de Deus em agir entre Seu povo através de instrumentos que escolhe e dá à Igreja. Há uma diferença muito grande entre uma ênfase sadia (bíblica e confessional) no Ministério e o (tão temido) clericalismo. Ao enfatizarmos o Ministério da Palavra, não estamos glorificando homens, nem fazendo uma camada (ontologicamente) diferente de pessoas na Igreja. Há, sim, uma distinção, que não pode ser desprezada (seria desprezar uma dádiva de Deus). A ênfase no valor do Ministério como instituiçào de Deus (não da Igreja) é uma ênfase em Deus como o Doador das boas dádivas.

3. É sempre atual o perigo da aplicação indevida de um texto bíblico; ou seja, usar um texto para confirmar o que já tínhamos concluído e que queríamos afirmar, apesar de o texto não dizer o esperado. A sabedoria (e humildade) do intérprete bíblico (o teólogo - o “apto para ensinar”) consiste em reconhecer o que é próprio de cada texto e confessar isto diante dos homens, no testemunho e na proclamação.

4. Ao usarmos o presente lema da IELB “Sendo cooperadores de Deus”, merecem reflexão as palavras do prof. Scholz:

Se a melhor tradução de 1 Co 3.9 não é “porque de Deus somos cooperadores” e se o texto não fala dos cristãos em geral, e sim daqueles que são ministros da palavra, seria errado usar o lema “sendo cooperadores de Deus” para conscientizar os cristãos de sua vocação no mundo? Não necessariamente. Lemas prescindem de contexto e funcionam nos contextos em que são inseridos. Restaria a tarefa de fundamentar teologicamente o “sendo cooperadores de Deus”. Não teríamos dificuldades em vermo-nos como cooperadores de Deus em termos do primeiro artigo do Credo. Também quanto ao terceiro artigo teríamos algo a dizer. Desenvolver isto não é nosso propósito. Tudo o que pretendíamos é mostrar que fica difícil fazê-lo a partir de 1 Co 3. (p. 8)

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O Ministério nas Confissões Luteranas

Confissão de Augsburgo V: Do Ofício da Pregação

“Para Conseguirmos essa fé, instituiu Deus o ofício da pregação, dando-nos o Evangelho e os Sacramentos, pelos quais, como por meios, dá o Espírito Santo, que opera a fé, onde e quando lhe apraz, naqueles que ouvem o Evangelho, o qual ensina que temos, pelos méritos de Cristo, não pelos nossos, um Deus gracioso, se o cremos.”

(Livro de Concórdia, p. 30)

Confissão de Augsburgo XIV: Da Ordem Eclesiástica

“Da ordem eclesiástica se ensina que sem chamado regular ninguém deve publicamente ensinar ou pregar ou administrar os sacramentos na Igreja.”

(Livro de Concórdia, p. 34)

Apologia da Confissão de Augsburgo XIII: Do Número e Uso dos Sacramentos

“A Igreja tem a ordem de constituir ministros, o que nos deve ser gratíssimo, porque sabemos que Deus aprova este ministério e nele está presente. E convém ornar o ministério da palavra o quanto possível com todo gênero de louvor contra os fanáticos que sonham ser o Espírito Santo dado não pela Palavra, mas em vista de certas preparações deles, quando se assentam, ociosos e silenciosos, em lugares escuros, esperando iluminação...” (12,13)

(Livro de Concórdia, p. 225)Confissão de Augsburgo XXVIII: Do Poder dos Bispos

“Os nossos ensinam que, de acordo com o Evangelho, o poder das chaves ou dos bispos é o poder e ordem de Deus de pregar o Evangelho, remitir e reter pecados e administrar e distribuir os sacramentos.” (5) “Segundo o direito divino, o ofício episcopal é pregar o Evangelho, perdoar pecados, julgar doutrina e rejeitar doutrina que é contrária ao Evangelho, e excluir da congregação cristã os ímpios cuja vida ímpia seja manifesta, sem o emprego de poder humano, mas apenas pela palavra de Deus. E nisso os paroquianos e as igrejas têm o dever de obedecer aos bispos, de acordo com a palavra de Cristo - Lucas 10: ‘Quem vos der ouvidos, ouve-me a mim’.” (21,22)

(Livro de Concórdia, pp. 56,57)

Tratado sobre o Poder e o Primado do Papa

“Onde quer que esteja a Igreja, aí existe o direito de administrar o Evangelho. Razão porque é necessário que a Igreja retenha o direito de chamar, eleger e ordenar ministros.” (67)

(Livro de Concórdia, p. 356)

Catecismo Maior - 4o Mandamento

“Há pais espirituais ... aqueles que nos governam e presidem mediante a palavra de Deus. ... Como, portanto, são pais, devida lhes é também a honra, até acima de todos os outros. Mas aqui é que menos se costuma tributá-la; porque a maneira do mundo os honrar é corrê-los do país e não lhes consentir um pedaço de pão. ... É necessário, todavia, infundir no ânimo do povo também o fato de que os que querem chamar-se cristãos tem, diante de Deus, o dever de ‘considerar merecedores de dobrada honra’ [1 Tm 5.17] aos seus curas d’alma, fazer-lhes o bem e provê-los do necessário.” (158-161)“Cumpre [aos pais] ponderar no fato de que devem obediência a Deus, e acima de qualquer outra coisa desempenhar-se-ão, de coração e fielmente, dos encargos de seu ofício ... . Trata-se de rigoroso preceito e injunção de Deus, ao qual também terás de prestar contas a esse respeito.” (168,169)

(Livro de Concórdia, pp. 419-421)

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O CARÁTER CRISTOLÓGICO DO MINISTÉRIO268

Este artigo trata da questão de como a pessoa e obra de Jesus Cristo se relacionam ao ofício do ministério. Se estamos preocupados em relacionar o ofício do ministério ao conceito do sacerdócio universal dos crentes, deveríamos estar, muito mais, em relacioná-lo à Cristologia. Gostaria de me referir a dois fatos que ocorreram ano passado.

Erlen Teigen, em The Confessional Lutheran Research Society Newsletter (No 25, Advento de 1991, 1-7; Logia, Vol. 1, No 1:9-15) chama a atenção de como J. Schaller e August Pieper relacionaram o sacerdócio universal dos crentes ao ministério. Teigen analisa o artigo de Schaller, “The Origin and Development of the New Testament Ministry,” que apareceu primeiro em Alemão, em 1911-1912, e novamente em 1917-1918, e agora em uma tradução para o Inglês, no Wisconsin Lutheran Quarterly (Inverno de 1989). Temos de deixar para o lado a discussão se isto representa a posição histórica de Wisconsin e encarar o fato de que o texto chega o mais próximo possível de apresentar a posição atual do Sínodo de Wisconsin sobre a questão. A tese de Schaller é que o ministério é inerente ao evangelho e, assim, o potencial para o ministério está no evangelho e pode ser derivado dele. Nenhuma distinção é feita entre Paulo e o crente e não se poderia detectar uma instituição específica do ministério nas palavras de Jesus (Teigen, Logia, p. 10).

A mesma edição do The Wisconsin Lutheran Quarterly contém a tradução inglesa de um artigo de August Pieper, publicado em Julho de 1916, tendo agora o título “Are There Legal Regulations in the New Testament?” As afirmações de August Pieper são surpreendentes. Por exemplo: “Reconheçamos que não há nenhuma forma divinamente instituída e prescrita de ministério, mesmo para a administração da Palavra e Sacramentos e que o Espírito Santo aqui atua livremente através dos cristãos ...” ( Teigen, Logia, p. 12). Consistentemente, August Pieper elogia os reformados pela sua doutrina do ministério. Teigen opina que a crítica de Francis Pieper a Höfling (Christian Dogmatics III, 445) poderia realmente ter sido dirigida ao seu irmão, August. Enquanto Teigen chama a atenção para o aparente antinomismo, esta pode ser uma sutil introdução de legalismo, simplesmente porque a igreja, enquanto um corpo político, passa a determinar quem pode fazer o que na igreja. Tomar decisões políticas (mesmo aquelas feitas por grupos legalmente constituídos) sobre questões determinadas pela Escritura, é legalismo.

A decisão de Wisconsin de ordenar professores paroquiais é a conclusão lógica da prática de permitir que eles celebrem a Santa Ceia, o que é, em última análise, derivado da teologia de Schaller e de August Pieper. Eu hesito em levantar a questão de como Missouri podia viver com Wisconsin enquanto existia divisão em um assunto tão importante. Teoricamente, agora não há razão válida para Wisconsin não seguir adiante e ordenar mulheres, ou, ao menos, dar-lhes supervisão sobre a Santa Ceia. Se não há mandatos para o ministério, quão importantes seriam outros mandatos, regulando uma instituição que, a bem da verdade, nem seria uma instituição? A proibição a mulheres pregadoras aplicar-se-ia a uma instituição estabelecida não por Deus, mas pela igreja. Assim, a regulamentação secundária, de proibir mulheres de serem pastoras teria força divina, enquanto que a instituição primária não.

Estas questões são levantadas com hesitação, visto que inevitavelmente seremos lembrados que Schaller e August Pieper realmente não representam a posição original de Wisconsin. De qualquer forma, há material suficiente para um embaraço em potencial por parte de Missouri. Aquilo que não toleramos em Höfling, toleramos em Wisconsin.

Trago esta questão à tona simplesmente para demonstrar que nossa atenção está continuamente focalizada em como um entendimento correto do ministério se relaciona ao sacerdócio universal, um procedimento que é raro nas Confissões Luteranas, sendo desconhecido para a Confissão de Augsburgo, Apologia, Artigos de Esmalcalde e Fórmula de Concórdia. As Confissões simplesmente não têm uma delongada discussão sobre o assunto, mas nós estamos sempre procurando ajustar os assuntos do Ministério e do sacerdócio universal. O Novo Testamento não coloca os dois assuntos juntos. É como testar lentes, para descobrir quais seriam apropriadas. O oculista vai mudando as lentes até que tenhamos a visão melhor. Enquanto considerarmos o Ministério e o sacerdócio universal como referência de um para o outro - o que não é privilégio de Wisconsin - estaremos sempre mudando lentes para encontrar uma melhor visão. O que estou sugerindo aqui é que demos um passo para trás e relacionemos a questão do ministério à Cristologia. E isto nos leva a um segundo fato.

Durante um debate em grupo em um Simpósio no Concordia Theological Seminary, Fort Wayne, irrompeu uma discussão sobre o relacionamento entre Deus e a linguagem e o ministério. Leonard Klein, do Lutheran Forum, insiste na tradicional linguagem masculina sobre Deus, mas ao mesmo tempo não se opõe à ordenação de mulheres, embora admita que não possa encontrar suporte para isto na Escritura ou na tradição. No meu ponto-de-vista, ele é culpado de contradição. O Deus que precisa ser representado como Pai e Filho também deve ser representado por um clero masculino. A inconsistência existe para mim, mas não para Klein, já

268 David P. Scaer, “The Integrity of the Christological Character of the Office of the Ministry”, Logia 2/1 (Janeiro 1993): 15-18; Igreja Luterana 57 / 2 (Novembro 1998): 153- 160.

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que para ele todas as referências feitas a Deus, incluindo Pai e Filho, são metafóricas. Fui lembrado que tal pensamento predomina na “Yale Divinity School”, onde ele obteve sua formação teológica. Estes seriam termos que Deus teria escolhido, em sua livre escolha, e não por ser Pai e Filho. Klein, se eu o entendo corretamente, não faz nenhuma conexão entre a encarnação e o clero masculino ou, colocando negativamente, entre a encarnação e a proibição a mulheres naquele ofício. Enquanto Schaller e August Pieper abordam o ofício do ministério como estando presente na proclamação geral do evangelho e, assim, potencialmente presente em todos os cristãos (este é seu entendimento próprio do sacerdócio universal), Klein deriva o ministério do batismo. Ele o faz, porém, de uma forma que, para mim, não é explicada com clareza (afinal como o batismo autoriza uma pessoa, seja homem ou mulher, a se tornar ministro, no sentido que o Novo Testamento dá ao termo?). Ainda as linhas de argumentação de Wisconsin e de Klein são as mesmas. O ministério é derivado de baixo e não de cima. Mas esta é, obviamente, a posição de Schleiermacher.

O que me chama a atenção é a hesitação e o embaraço de entender o ministério a partir de nosso entendimento de Deus como Pai, Filho e Espírito, e da encarnação. De alguma forma, quando tal idéia é colocada, surgem as acusações de romanista, católico, ultra ortodoxo (você mesmo pode acrescentar outras). O esperado seria que as conexões entre o ministério e a encarnação e Deus fossem bem aceitas. Mas não são. Ao trazermos esta abordagem, não queremos oferecer a última palavra a respeito. Ao menos, deveríamos estar dispostos a considerá-la. Certamente tal abordagem é não somente permitida, como até sugerida pela Confissão de Augsburgo, na qual o Ministério segue os artigos de Deus, pecado original, Cristo e da justificação. O que aqui oferecemos é apenas preliminar e bastante elementar.

Termos que se aplicam a Jesus no Novo Testamento, como “pastor de ovelhas”, “pastor” e “bispo” são consistentemente aplicados ao clero. As mesmas palavras, ainda com “ancião” ou “presbítero” são aplicadas aos apóstolos. Eles não são aplicados aos cristãos em geral. Isto deveria nos alertar imediatamente de que o ministério é derivado de cima, não de baixo. Em Hebreus, Jesus é chamado de “o Grande Pastor” e 1 Pedro chama Jesus de “Pastor” e “Bispo de nossas almas” (2.25). 1 Pedro 5.1-4 chama os ministros de “pastores” e Cristo de “Supremo Pastor”. Pedro identifica-se como uma “testemunha” dos sofrimentos de Cristo, isto é, um “apóstolo”, mas também como um “presbítero”, tendo em comum um ofício com outros pastores. O ofício pastoral (ministerium, Predigtamt) é tanto cristológico como apostólico. Sempre reconhecemos estes dois aspectos, mas parece que tememos desenvolver as implicações do primeiro.

Quem quer que diga estar neste ofício, só está na medida em que toma parte no ofício de Cristo. Este tomar parte vai além da fé pela qual se é justificado. Não pode haver uma pretensão autônoma ou independente a este ofício ou suas funções. O ofício vem de Cristo, assim como Cristo vem do Pai: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio”(Jo 20.21). O Deus de quem Jesus vem e por quem é autorizado, é o grande Pastor de Israel. Assim, com nosso argumento, tiramos o ofício do Ministério de nós mesmos e o levamos de volta aos apóstolos, a Cristo e a Deus mesmo.

Este envio autorizado dos apóstolos não trata de piedade pessoal, mas é um envio público, autorizado oficialmente, capacitado pelo Espírito Santo, assim que os apóstolos que são enviados não falam meramente do que está neles, mas falam da mais elevada realidade, do Senhor crucificado e ressurreto. Somente depois que eles observaram Suas feridas e estão convencidos de Sua ressurreição, é que eles são enviados. Deve-se mencionar aqui que Jesus mesmo só foi autorizado a falar daquilo que o Pai autorizara. Esta não é apenas uma conclusão exegética, mas uma correlação dogmática necessária de nosso entendimento da Trindade. O artigo XXVIII da Confissão de Augsburgo vê no texto de João que estabelece o apostolado, o mandato para o ofício do Ministério. Nossa preocupação aqui não é estabelecer o caráter apostólico do Ministério, no que todos concordamos, mas sua origem e caráter cristológicos. Este ministério é cristológico não apenas porque tem como função principal proclamar Cristo, mas porque aqueles que estão neste ofício estão no lugar de Cristo. Esta é a posição da Apologia. Os ministros pregando o evangelho não são santos falando para si próprios, mas sua voz é a voz de Cristo falando aos santos. A partir desta realidade concreta de serem representantes de Cristo, os ministros proclamam Aquele a quem eles representam. As similaridades entre João 20.21-23 e Mateus 28.16-20 são facilmente reconhecíveis. Em ambos os casos, a audiência está limitada aos apóstolos, e em ambos os casos os discípulos se tornam os representantes autorizados de Cristo. Sua autoridade não vem da igreja, mas de Jesus, para serem responsáveis perante Ele. Esta responsabilidade para com Jesus mostra que seu primeiro relacionamento é com Ele, e a partir deste depende o relacionamento com a igreja.

Esta demarcação entre clero e povo é um tema neotestamentário comum. Paulo fala aos presbíteros ou bispos em Éfeso (Atos 20). Pedro identifica os presbíteros, ou pastores, como aqueles que compartilham com ele a responsabilidade pela igreja, a qual é identificada como o rebanho de Deus (1 Pedro 5.1,2). O que o ministério é e o que ele faz não é determinado por nós, ou por concílios, ou por papas, ou por assembléias, ou por congregações, mas por Jesus e pelo Novo Testamento. A partir de tal visão sobre o ministério, soam estranhas ao Novo Testamento as descrições modernas do ministério como se fosse um emprego dado por uma congregação ou por um comitê. Pertencemos ao ministério que se origina em Cristo e que foi exercido por Ele e pelos Seus apóstolos. Não deveríamos nos preocupar sobre como obter uma sucessão apostólica da parte dos Anglicanos, como desejam nossos amigos da ELCA (Evangelical Lutheran Church in America), mas temos de

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nos comprometer a uma sucessão cristológica, como Seus representantes. Temos uma sucessão cristológica, na qual somos quais débeis silhuetas e sombras, meras imagens daquele que, Ele só, é o Bispo de nossas almas e que deu a vida pelas ovelhas.

Diversas opiniões sobre o ministério surgiram na igreja. Começando pelo menos com o Pietismo, e sendo formulada por Schleiermacher, veio a opinião de que o ministério residia na congregação, como uma posse pessoal de cada membro da comunidade. Ainda hoje o sacerdócio universal degenerou para o individualismo, com cada pessoa fazendo uma contribuição para o todo. Isto não tem base no Novo Testamento, onde a igreja é uma realidade celestial, que vem de cima para baixo, trazendo para a comunhão consigo assembléias locais. Seres humanos podem estabelecer corporações eclesiásticas, mas não podem estabelecer a igreja mencionada no Novo Testamento e afirmada nos Credos. Esta comunidade, na visão de Schleiermacher e, mais tarde, de Höfling, designava certas pessoas para realizarem determinadas funções públicas no interesse de todos. Esta transferência era chamada um Übertragung, porque algo que era posse de todos, não apenas coletivamente, mas também individualmente, era exercido por uma pessoa. Para Schleiermacher a questão era apenas de ordem, assim que o membro individual pudesse exercer seus dons ou ministério da maneira mais eficiente e eficaz possível. Ele até concedia que a igreja não perderia suas credenciais se os membros concordassem em ter um sistema entre eles, sem um líder designado. Com suas raízes no Pietismo de seu pai e sua educação universitária entre os racionalistas do Iluminismo, Schleiermacher dificilmente pode ser considerado original em seu pensamento, mas até os dias de hoje ele tem dado o tom para a maioria do protestantismo, do que nossa própria igreja luterana não ficou imune. A questão não é simplesmente em que concordemos em ter um ministério por causa da ordem. Se a ordem é a última palavra, então a lei tomou o lugar do evangelho como sendo a proclamação última de Deus para a igreja, e então nem chegamos a ir além de Schleiermacher, mesmo sendo um pouco mais litúrgicos do que ele. Uma posição tal como esta não é antinomista, mas legalista.

Contrastando a posição luterana (de que o pastor está no lugar de Cristo) com a de Schleiermacher (de que o Ministério é nada mais do que a representação pública da posse comum da comunidade), não esgota as opções. Zwínglio, enamorado pela cultura e erudição do humanismo renascentista de Erasmo, via o ministro como a pessoa mais erudita da comunidade religiosa. Calvino, tendo a disciplina moral como a terceira marca da igreja, foi consistente ao considerar o ministro como sendo o disciplinador moral da comunidade religiosa. Talvez você já tenha visto este estilo ou modelo de ministério! Na visão de Schleiermacher, os ministros são os líderes espirituais, aplicando dons espirituais. Na visão de Zwínglio, o clérigo humildemente respinga pérolas de latim, grego e hebraico aos menos informados paroquianos, ou mostra sua amplitude de leituras, respingando nomes de autores famosos do alto dos seu púlpito. Ou, na visão de Calvino, eles ajudam o povo a procurar pecados secretos, assim que a congregação possa ser uma massa moralmente sem fermento. Ali onde o fermento não se desfermenta, Calvino está disposto e pronto a cortar o pão levedado para fazer sanduíches excomungados! Roma tradicionalmente vê seu clero como os representantes de Cristo, sacrificando-o na missa, assim como Ele uma vez sacrificou-se a Si mesmo. De fato, o ministério requer sacrifício, não que nós sacrifiquemos a Cristo, mas oramos para que Deus nos sacrifique com Cristo (o Vaticano II pode dizer algo diferente). Paulo vê o seu ministério não apenas em termos de uma autoridade com um mandato legal, mas no sentido de sofrer com e ser sacrificado com Cristo. O que aconteceu ao Mestre, acontecerá com os discípulos. Esta é a promessa de Cristo aos doze. Os ministérios orientados pelo sucesso e pela estatística, dos neo-evangelicais, varrem este aspecto do ministério para debaixo do tapete.

Para nós o ministério é, e sempre será, um assunto de carne e sangue, pois ele está intimamente relacionado com a encarnação e a expiação. Jesus foi real e essencialmente, não incidentalmente, um ministro, um pastor, não apenas em conduzir Sua ovelhas, mas em dar Sua vida por elas. O ministério provém da expiação. Ele não é uma abstração ou uma conclusão doutrinária. Ele existe “em, com e sob” a igreja, mas não deve nunca ser confundido com a igreja. João não está sozinho em falar de Jesus como Pastor, pois Mateus fala das pessoas sendo dispersas, como ovelhas sem pastor, referindo-se a Zacarias, de que o pastor seria morto e as ovelhas do rebanho seriam dispersas (26.31). Aqui o ofício de Cristo como pastor e Seu sacrifício são colocados juntos. Na sua tríplice comissão a Pedro para alimentar as ovelhas, estava claro que Jesus entendeu que Seus discípulos seriam pastores sobre o Seu rebanho, e Paulo vê os presbíteros em Éfeso da mesma forma (Atos 20.28).

Não precisamos nos escandalizar que Jesus seja, ao mesmo tempo, o Cordeiro de Deus e o Pastor de Israel. Também não deveríamos ficar surpresos em que podemos olhar para nós próprios nos termos de Isaías (53.6) e de Mateus (9.36) e vermo-nos, em nossa vida particular, como ovelhas que são dispersadas. Como ovelhas e como pastores somos chamados a nos sacrificarmos. O rebanho que se dispersou na morte de seu Pastor era claramente o grupo dos doze, mas estas mesmas ovelhas foram designadas por Jesus como pastores do rebanho. Se tomamos seriamente as palavras de Jesus, eles, como Ele, seriam destinados ao martírio - um conceito estranho em um mundo onde cristãos individuais são encorajados a exercitarem e edificarem seus ministérios com dons espirituais, e o clero freqüentemente olha seu ministério como oportunidade para o

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sucesso. Visto que o nosso ministério é apenas de Cristo, as palavras “eficaz” e “pleno de sucesso” não podem ter lugar em nosso vocabulário.

O ministro vive uma vida dupla. Por um lado, ele não pode deixar de ver-se como parte do rebanho pelo qual Cristo morreu. Por outro lado, ele não pode evitar identificar-se com o mesmo Cristo em seu ofício do ministério. O sentimento de fraqueza moral e de dependência espiritual em relação a Jesus não nos dispensam de sermos “pastores”, “bispos”, “ministros de Deus” e “cooperadores de Deus”, para usarmos termos do Novo Testamento.

O Batismo torna as pessoas ovelhas, cristãos. Não os torna pastores, ministros. Aqueles que estão no clero são chamados à responsabilidade de uma forma que os leigos não são. Apenas uns poucos podem se tornar mestres, devido à severidade da responsabilidade. Um julgamento severo é pronunciado sobre o falso mestre. Aos pastores é dada a responsabilidade pelo povo de Cristo e o ensino. Pelo menos esta é a opinião do autor de 1 Pedro, quando diz que aqueles a quem ele chama presbíteros como ele devem alimentar o rebanho de Deus. Não há idéia de que o rebanho irá alimentar-se a si próprio. Na verdade, quando o rebanho tenta fazer isto, vaga em campos sectários, alimentando-se de relva alucinante, que traumatiza as pobres ovelhas no pensamento de que elas são pastores.

Falamos primeiro de um ministério cristológico e, apenas secundariamente, de um ministério apostólico. A ELCA está buscando os anglicanos, a fim de infectar-se pelo contato manual com o vírus de sua sucessão apostólica, que mesmo a igreja de Roma vê como apenas uma reação artificial a uma bactéria morta. É um caso de falsa gravidez em um ventre estéril. Ao ansiar por sucessão apostólica, se está desejando muito pouco. Se celebramos a Santa Ceia com anjos e arcanjos e com toda a companhia celeste, certamente estamos em nossos púlpitos primeiro com Pedro, Tiago e João, e então com Tiago, o irmão de nosso Senhor, e Paulo e o escritor aos Hebreus e Cirilo de Jerusalém, Inácio, Atanásio, Lutero, Melanchthon, Chemnitz, Walther, Löhe e Pieper e com todos os nossos pais. Se estamos com estes homens em uma maravilhosa sucessão, não estamos no lugar destes. Estamos, sim, no lugar de Cristo, que nos designou para sermos ministros do Evangelho.

Pelo fato de ser derivado da encarnação, o ministério não é uma abstração, mas uma realidade de corpo e sangue. Se este ofício existiu no corpo formado na pura virgem - no nosso Senhor Jesus Cristo, a quem seja a glória na igreja para sempre - assim ele também existe em nossos lascados, rachados e, por vezes, inflexíveis vasos de barro. O mesmo Espírito pelo qual o Senhor foi concebido foi soprado sobre o ministério através dos apóstolos. Assim como a Palavra, não a água, torna o Batismo eficaz; assim como o corpo de Cristo, não o pão, faz o Sacramento; assim também a Palavra de Cristo - e não nossos corpos, almas e vozes - faz o Ministério. Sem a água não há Batismo e sem o pão não há o Sacramento; assim também, sem homens designados por Deus não há o Ministério.

Rogai ao Senhor da seara que envie mais trabalhadores à seara. Jesus viu esta oração ser respondida nos apóstolos. Paulo viu a oração ser respondida em Timóteo, Tito, Silas, Lucas, Marcos, Onésimo. Nós vemos aquela oração ser respondida nos estudantes de nossos Seminários. Em cada cristão há um pequeno Cristo. Mas não há, em cada cristão, um pequeno pastor ou ministro engatinhando para sair. Esta responsabilidade é nossa.

Ofício do Ministério, Chamado e IgrejaO Ministério no Novo Testamento

- Instituído por Cristo, com funções determinadas:• Mateus 28.19,20 - fazer discípulos, pelo Batismo e ensino da Palavra• Marcos 16.15 - pregar o evangelho• João 20.21-23 - enviados para perdoar e reter pecados• Efésios 4.11-16 - preparar os cristãos para estarem firmes na fé verdadeira

- é uma dádiva de Cristo para a Igreja:• Efésios 4.7-11 - está dentro dos dons que Cristo dá aos crentes; a alguns Ele dá a situação especial

de serem apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres,• 1 Coríntios 3.21-4.2 - a Igreja não deve fazer disputas e divisões por causa de ministros da Palavra,

pois estes foram dados à Igreja. Esta deve recebê-los como ministros (servos) de Cristo, recebendo deles os mistérios de Deus (Palavra e Sacramentos, pelos quais o mistério dos séculos - Cristo - é revelado, Ef 3.1-13; Cl 1.26,27).

- O ministério não é, em si, propriedade dos homens, nem do ministro, nem mesmo da Igreja. O ministério é de Cristo:

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• Apocalipse 1.20 (cf. 2.1-3.22) - estão nas mãos de Cristo, o mesmo que anda entre as Igrejas (A Igreja!).

- Ao dizermos que o ministério pertence à Igreja (Congregação) temos esta ressalva a fazer, com base na proclamação bíblica: a Igreja recebe de Cristo o ministério. Recebe-o como dádiva, não como possessão. Não entende o ministério, portanto, como algo sobre o que tenha direitos; mas pelo que louva a Deus, o Doador.

- Foi assim que o 12O apóstolo foi escolhido, após a morte de Judas - Atos 1.15-26. Neste texto podem-se notar alguns passos que demonstram a maneira como a Igreja entendeu o ministério:

• é colocado um critério objetivo para os “candidatos”: terem estado acompanhando o grupo escolhido por Jesus. Sabe-se que alguém vinha a se tornar discípulo de Cristo quando Este o chamava. Ninguém podia ser um discípulo por um simples ato de escolha pessoal (Mateus 4.18-22; 8.18-22; 9.9). Portanto, os candidatos - os que haviam acompanhado o grupo desde o tempo do ministério terreno de Jesus, eram pessoas que haviam sido escolhidas pelo próprio Jesus, e foram testemunhas de Sua ressurreição (cf. At 10.39-42 - escolhidos pelo próprio Deus).

• Diante do fato que há mais de um homem apto para o ministério apostólico, a Igreja coloca-os diante de Deus, em oração, suplicando que Deus faça a escolha.

• O lançar de sortes é o método de escolha. Noutras partes do NT há outra forma - escolha por parte da Congregação, sob a orientação dos apóstolos - “eleição” - At 14.23269; Tt 1.5.270 O método usado em Atos 1 enfatiza a atuação de Deus. Mas esta não está fora de questão nos outros casos citados.

- O Novo Testamento, pois, tem uma visão “teocêntrica” do ministério: Deus institui o ofício, capacita e escolhe as pessoas, dá o ministério (e as pessoas que estão nele) à Igreja.

- O Novo Testamento não necessita colocar intermediários na relação de Deus com os ministros da Palavra (nem mesmo a Igreja), pois o ministério não brota da Igreja, mas da instituição de Deus:

• os ministros são chamados “cooperadores de Deus” (1 Co 3.9271).• por isso, os ministros se baseiam nesta sua “qualidade de cooperadores com Deus” para exortar à

Igreja - 2 Co 6.1. Eles não se baseiam em alguma autoridade “transferida” pela Igreja; receberam-na de Deus, através da Igreja, que os recebeu como dádivas divinas.

* * * * * * *

Citações de teólogos luteranos

Edmund Schlink. Theology of the Lutheran Confessions. Traduzido para o Inglês por Paul F. Koehneke e Herbert J. A. Boumann. Philadelphia: Fortress Press, 1961.

“Neste ponto272 pode parecer natural inferir que o ministério público brote do sacerdócio universal de todos os crentes e que vem a existir através da comissão dada pela congregação; que sua autoridade é a autoridade da congregação transferida a um dos seus membros. O ministério público seria, então, uma ‘emanação’, uma ‘concentração’, ou uma ‘organização’ do sacerdócio universal de todos os crentes, um ‘ofício da comunidade’, baseado no ‘direito coletivo’ da congregação como um todo, e o pastor pregaria o evangelho e administraria os sacramentos em nome e sob a direção da congregação - ‘para a comunidade e como representante da comunidade’.273 Neste caso, ele iria ‘representar’ a congregação no culto (A. Ritschl). Mas estas conclusões são falsas. O ministério público não é uma criação da congregação, a partir do princípio moral de ordem, mas é uma instituição imediata de Deus, através do comando e promessa de Jesus Cristo. As

269Note-se o detalhe: Paulo e Barnabé são os sujeitos da ação - eles promovem em cada Igreja a escolha de presbíteros e os encomendam (ordenam?!) ao Senhor.270Neste texto o papel de Tito é enfatizado. Não se menciona a participação da Congregação. Mas não há motivo para pensar- se na Congregação sendo afastada do processo. No texto de Atos os apóstolos também tiveram uma atuação direta, com a participação da Congregação. O mesmo acontece em At 6, na escolha dos 7 homens que iriam auxiliar no trabalho de “servir as mesas”; mas são os apóstolos que os “encarregam” ( - mesmo erbo de Tt 1.5) deste serviço (At 6.3)271Note-se a distinção clara entre aqueles no ministério (“nós”) e a Igreja (“vós”).272Ao comentar que o ministério não tira do sacerdócio universal os privilégios deste.273Esta “Teoria da transferência” teria sido originada com Justus Henning Boehmer, morto em 1749.

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Confissões não nos permitem colocar o sacerdócio universal como uma instituição divina e o ministério público como uma instituição humana. A idéia da transferência dos direitos do sacerdócio universal para a pessoa do pastor é estranha às Confissões. A igreja não transfere seu ofício da pregação do evangelho e administração dos sacramentos a indivíduos em seu rol de membros, mas ela preenche274 este ofício confiado a ela por Deus, ela chama alguém para este ofício instituído por Deus. Neste ofício, portanto, o pastor atua em nome e sob a direção de Deus e em lugar de Jesus Cristo. Ele atua com autoridade não com base em um arranjo feito pelos crentes, mas com base na instituição divina. Isto se torna especialmente evidente na designação ocasional desta ‘ordo’ como um sacramento (Ap XIII, 11ss). Este termo é questionável pois o mandatum pelo qual Deus instituiu o ministério não compreende um sinal visível; a imposição de mãos na ordenação, por exemplo, não foi comandada por Cristo, assim como foram a água, o pão e o vinho. Mas as Confissões não poderiam nem por um momento falar do ministério e da imposição de mãos como um sacramento se Deus mesmo não chamasse para o ministério através do chamado dos homens, isto é, da igreja, ‘pois sabemos que Deus aprova este ministério e nele está presente’ (Ap XIII, 12). Assim como todas as promessas de Deus, assim também a aplicação das promessas ligadas à imposição de mãos no preencher do ofício ministerial, é obra de Deus. Ele próprio chama ao ministério através da boca de homens.275 O pastor não ocupa seu ofício simplesmente como um membro comissionado pela congregação; antes, ele permanece diante da congregação como representante de Deus na comissão de Deus. A palavra proclamada pelo ministro não é apenas a voz de um homem, mas é a voz do próprio Deus vinda do céu. O chamado ao ministério através da igreja é próprio apenas no reconhecimento da polaridade divinamente estabelecida entre Palavra de Deus e igreja, isto é, quando reconhecemos a instituição divina do ministério público. As Confissões tanto colocam esta polaridade do ofício e congregação no primeiro plano que elas consideram ofício espiritual, ministério e ministério público como conceitos idênticos, embora elas reconhecem a autoridade real e sacerdotal dada a todos os crentes.

“A pergunta poderia ser feita sobre se o ministério antedata a congregação ou vice-versa; se o ministério está acima da congregação ou vice-versa. Um tal ou/ou está fora de questão,276 da mesma forma como a questão

274 “ fills”.275Se, entretanto, o ofício pastoral é apenas o comissionamento ordeiro de um membro da congregação, a ordenação não poderá ser mais que um ‘ato de bênção eclesiástica’ que ‘não tem como reivindicar nem um mandatum divinum específico, nem uma promissio divina específica.’ ‘Não é Deus que está atuando aqui, como nos sacramentos, para dar uma graça específica e competência mental, antes são homens que agem na presença de Deus, que através da oração, consagram, santificam, fortalecem e confirmam sua relação de um para com o outro, como algo agradável e ordenado por Deus.’ (Hoefling, Grundsaetze der evangelisch-lutherischen Kirchenverfassung , 80) Apesar de que o ritual da ordenação, na doutrina luterana, pode ser entendido como um ato de bênção e como uma ratificação pública do chamado e da eleição, é, no entanto, verdade sobre todo o processo do chamado, eleição e ordenação - não claramente distinguidos nas Confissões - que através da ação da igreja, ou do governo da igreja, realizado sobre um membro da igreja, Deus está chamando para o ofício pastoral. Pois a igreja chama por comando de Deus. Assim o ato da bênção repousa sobre um mandatum divinum específico, e as orações têm uma promissio divina específica.276No século passado, A. Harless e Th. Harnack chegaram muito perto de evitar os perigos gêmeos de negar- se ou o sacerdócio universal ou a instituição divina do ministério público, os perigos de ver o ofício ou como uma classe ou como estando sob o controle da congregação. De fato, precisamos nos refrear na tentativa de estabelecer um relacionamento imediato e logicamente aceitável entre ofício e congregação. Ambas as coisas têm de ser ditas: ‘Precisamente porque todos temos o chamado para proclamarmos Cristo e as virtudes daquele que nos chamou das trevas, nenhum indivíduo tem o direito de fazê- lo arbitrariamente e publicamente diante da congregação, mas deve esperar uma eleição ou chamado especiais para fazê- lo, porque a congregação crente considera como seu dever fazer as provisões necessárias para a eleição e chamado de uma forma ordeira.’ ‘Do fato que a congregação convoca alguém, através de uma eleição e chamado em boa ordem, para o ministério da reconciliação, de maneira nenhuma segue que tal ministério é puramente um serviço, arranjo ou autorização congregacional. Pelo contrário, é precisamente pelo fato que a congregação reconhece este ministério como uma instituição, ordenança e autorização de Cristo - fundando, edificando e preservando Sua cristandade através da Sua Palavra e do ministério da Sua Palavra - que a congregação envia um chamado para este ofício.’ (Harless, Kirche und Amt , 18s). Th. Harnack corretamente mantém esta tese: ‘A igreja possui um ofício não pela fato de ter pessoas crentes e dotadas espiritualmente, mas porque tem os meios da graça e o mandato do Senhor. Tanto o hierarquismo como o fraternalismo comum, cada um de sua maneira, deixam de entender isto. Embora atuando a partir de premissas opostas, ambos chegam a um ponto onde o ofício desaparece atrás das pessoas; pois ambos colocam o foco na pessoa , um de forma hierárquica, outro, carismática.’ (Die Kirche, ihr Amt, ihr Regiment , 52)

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sobre a prioridade da igreja visível ou invisível é falsamente colocada. O relacionamento entre ofício e congregação não pode, de forma nenhuma, ser claramente apresentado em uma declaração direta do seu relacionamento, mas apenas no relacionamento de ambos com seu Senhor Jesus Cristo, que através do ministério governa o Seu reino, a comunhão dos crentes, os homens livres, aqueles que vivem e reinam com Ele. Pelo fato das Confissões olharem para este Senhor, que governa a congregação através da Palavra externa, elas não estão nada interessadas em uma clarificação logicamente satisfatória do relacionamento entre o sacerdócio universal e o ministério público. Isto tudo é estabelecido: que a doutrina luterana coloca ‘o ofício acima das pessoas e a igreja acima dos servos’ (Th. Harnack), e que o relacionamento entre o ofício e a congregação nunca é aquele de uma autenticação e influência unilateral, seja da parte do ofício, seja da congregação. O relacionamento é, antes, de reciprocidade, como aquele que existe entre a igreja e a pregação do evangelho,conforme o ín qua’ da C.A. VII: A igreja vem a existir onde o evangelho é proclamado e a igreja existe pela pregação do evangelho. A igreja prega o evangelho ao chamar o crente ao ministério da pregação do evangelho, e a igreja é edificada quando o crente chamado prega o evangelho. Este relacionamento duplo não pode nunca ser esquecido. Mas bem como o evangelho cria a igreja, e não inversamente a igreja ao evangelho - a igreja pode apenas testemunhar o evangelho - assim na doutrina do ofício ministerial a atenção é dirigida acima de tudo ao falar de Deus através deste ofício e não à palavra humana que chama para este ministério ou que é ouvida neste ministério. Assim, nem a congregação, nem a pessoa do pastor são a autoridade final, mas o Senhor de ambos governa ambos, pastor e congregação, com soberania real, através do evangelho e os sacramentos.” (p. 244-247)

*******************

Norman Nagel. “The Divine Call in Die Rechte Gestalt of C.F.W. Walther. Concordia Theological Quarterly 59/3 (Julho 1995): 161-190.Estudando o escrito de Walther, Dr. Nagel chama a atenção de que eleição, chamado, exame e

ordenação formam um todo, que não pode ser separado, quando se fala da divindade do chamado, porque esta é a maneira como o Senhor atua na Igreja, onde Congregação e ministros tem o seu papel, não havendo ocasião para tirania, nem do laicato, nem do clero. Por exemplo:

“Com Lutero, o chamado e a ordenação andam lado a lado - e nunca um sem o outro, exceto em emergência mortal. Um sem o outro abre caminho para a tirania de um ou de outro.” (171)

- Nagel enfatiza que o divino do chamado está no todo do processo, pelo que não se deveria isolar as partes, atribuindo a uma, e não a outra, o aspecto divino. Tudo isto se justifica pelo fato de que o chamado (no sentido amplo) de um pastor é visto sob o aspecto do evangelho, não da lei:

“Depois da eleição e do chamado - quando o chamado foi aceito - vem a ordenação, onde o chamado é validado e com base nisto aquele que foi declarado corretamente chamado é dado para realizar aquilo para o que o ofício existe; ... A obra está completa. Quando está completada conforme as palavras e mandato do Senhor, é, sem qualquer dúvida, divina. Quando começamos no início com as primeiras providências sendo realizadas, que levaram às outras, estávamos incertos sobre o quando uma destas podia ser chamada divina. Quando todas as coisas foram feitas, que fazem um pastor, não permanece nenhuma incerteza. O que foi feito, foi feito pelo Senhor - é claramente assim, quando feito conforme Suas palavras e mandato. Se então voltamos atrás do ponto de conclusão, aquilo que foi a base para o comprobatio, se claramente feito de acordo com as palavras e mandato do Senhor, pode ser também chamado de divino. Daí que o chamado divino é o chamado que emerge como o resultado final da eleição e é reconhecido na ordenação.” (180)- Imediatamente após estas palavras, Nagel chama a atenção para o problema de se isolar a eleição como sendo divina em si:

“Pode a eleição ser também chamada divina? Se nos recusamos a ignorar os ardis que podem ser observados acontecendo em alguns processos, poderemos muito bem hesitar em chamar a eleição de divina. Todavia, há aqueles que iriam manter que também a votação da assembléia congregacional deve ser considerada divina. Alguns, de fato, consideram a eleição como sendo litigável como um contrato civil: ‘Nós o colocamos; nós o retiramos’. Em tal caso, não haveria mais salvaguarda contra aqueles a quem Chemnitz chama uma multidão ou povo desordenado. O problema começa quando a eleição, contrário a Walther em Die rechte Gestalt, é retirada de seu contexto e é, enquanto um ítem isolado, pronunciada divina.” (180,181)

*************************** Werner Elert. The Structure of Lutheranism. Traduzido para o Inglês por Walter A. Hansen. St. Louis: Concordia, 1962.

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- Lutero, no seu escrito “Sobre a Missa Privada e a Consagração de Sacerdotes”, de 1533:“Pois isto devemos crer e estar certos, de que o Batismo não é nosso, mas de Cristo; que o Evangelho

não é nosso, mas de Cristo; que o ofício da pregação não é nosso, mas de Cristo; que o Sacramento não é nosso, mas de Cristo; que as Chaves, ou o perdão e retenção dos pecados não são nossas, mas de Cristo. Para resumir, o ofício e os sacramentos não são nossos, mas de Cristo. Pois Ele ordenou e legou tudo isto na Igreja, para praticar e usar até o fim do mundo. E ele não mente. Nem nos engana.” (WA 38, 240, 24)- Elert usa este texto para mostrar que Lutero aqui coloca o ofício ao mesmo nível que o evangelho e os sacramentos. (344)

CHAMADO E ORDENADO

Em um artigo entitulado “Chamado e Ordenado - Reflexões sobre a Posição do Novo Testamento sobre o Ofício do Ministério”, o prof. William Weinrich277 faz algumas considerações importantes, por vezes esquecidas no estudo sobre o ministério. Ele aborda especialmente a questão do ministério como continuação do ministério de Jesus. Algumas de suas reflexões:

“A distinção entre clero e laicato está implícita na Bíblia e brota da estrutura temática central e determinante da narrativa bíblica”. ... O início da carta aos Romanos dá uma “declaração programática da posição do apóstolo dentro da economia bíblica como um todo”. (Rm 1.1-6) ... “Mensageiro designado - proclamação - povo obediente na fé: esta é a seqüência e o modelo. No entanto, este modelo não inicia com Paulo. Nem com Jesus; mas com Moisés e então, após ele e à luz dele, o modelo continua com os profetas e sacerdotes.”(21)

Dois detalhes no chamado de Moisés: 1) Ex 3.12 - “O mensageiro profético está no lugar de Deus. Deus, por assim dizer, une-se a Moisés. Se alguém perguntasse: ‘Onde está Deus?’ a resposta teria de ser: ‘Com Moisés!’ entretanto, esta resposta não significaria simplesmente que Deus está com Moisés como uma companhia confortadora e encorajadora. Deus está com Moisés no sentido de que Ele deu a Moisés a Sua própria tarefa, assim que em e através de Moisés Deus mesmo é um agente presente, realizando Seu propósito de redimir Seu povo (cf. Dt 20.2ss). 2) Ex 4.10ss - “As palavras de Moisés não são nada mais do que as palavras de Deus. Deus fala a Seus inimigos e a Seu povo através de Seu porta-voz escolhido. (21)

No contexto do conhecido Ex 19.6 está a ação de Moisés como profeta de Deus, que vai sozinho ao monte e de lá vem trazer a mensagem de Deus ao povo. Disto segue a instituição do sacerdócio araônico e a escolha do povo de Israel como povo sacerdotal e nação santa. (22)

“A tarefa tanto do profeta como do sacerdote é lembrar ao povo a Torá, de modo que eles possam ser ‘reino de sacerdotes e nação santa’. Os vasos escolhidos por Deus estão situados como intermediários entre Deus e o povo. Entretanto, nesta posição como intermediário, o mensageiro não separa Deus de Seu povo, por estar no meio. O mensageiro é intermediário no sentido que em sua pessoa e trabalho, ele é o lugar da presença de Deus. Deus se faz acessível ao povo através do profeta e do sacerdote, que falam as palavras de Deus e realizam as obras de Deus.” (22)

“O distintivo ofício do Novo Testamento, aquele do apóstolo, está dentro da própria missão de Cristo, que incluiu o chamado de uma igreja de crentes e santos.” (22)

É um tema central no NT que Jesus foi o “enviado” pelo Pai (é até mesmo chamado de apóstolo em Hb 3.1) - Jo 1.17; 12.44-50; cf. também o batismo de Jesus. “Cristo é o ‘Escolhido de Deus’, que prega o reino que Ele próprio traz e que, através daquela pregação, reúne em torno de Si mesmo uma nova congregação, do tempo do fim. Como Harald Riesenfeld observou, Jesus ‘foi o primeiro a ter o ofício no novo povo de Deus’.” (23)

Sobre os textos em que Jesus fala do mordomo que foi constituído para cuidar dos servos da casa (Mt 13.34; 24.45; Lc 12.42): “É legítimo perceber em textos como estes declarações de Jesus nas quais Ele está aludindo não à totalidade de Seus seguidores, mas àqueles que recebem o serviço de supervisão dentro da comunidade de crentes. A referência em Marcos ao dono da casa deixando a casa e colocando seus servos na responsabilidade, muito provavelmente tem em mente a morte e ressurreição de Jesus e o comissionamento de Seus discípulos para continuarem Seu ministério” (23,24)

Outra imagem que Jesus sobre sua posição e Seu ministério entre os discípulos é aquela do pastor, que também é aplicada aos líderes humanos, já no AT (Is 40.11; Sl 23; Jr 23.2,4; Ez 34). (24)

O uso de “grande”, “primeiro” e “líder” em referência aos discípulos (Mt 22.24-27) junto com a figura de “servo” (Mt 20.26ss; Mc 10.42-45) - “Jesus antevê o ministério dos Seus discípulos e aqui Ele pretende defini-lo e dar-lhe o contorno e conteúdo corretos. Ao exercitarem seu ‘governo’ no meio do povo de Cristo, os discípulos devem ser ‘servos’, isto é, eles deverão ministrar, assim como Jesus ministrou. O ministério que os

277 “ Called & Ordained - Reflections on the New Testament View of the Office of the Ministry, Logia , 2/1 (Janeiro 1993): 20-27.

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discípulos receberão deve ser modelado pelo ministério de Jesus, que veio para servir e não para ser servido. O ministério messiânico de Jesus, portanto, é protótipo de todo ministério daqueles que serão escolhidos, enviados e colocados no meio dos discípulos de Jesus. ... No entanto o ministério de Jesus não é um protótipo simplesmente por um exemplo externo. Seu ministério é protótipo por extensão e continuação.” (24)

Os nomes dados aos ministros (pastores - At 20.28; 1 Pe 5.2ss; cf. 1 Co 9.7; mordomos da casa de Deus - 1 Tm 3.2ss; Tt 1.5,7; 1 Pe 4.10ss; lavradores - 2 Tm 2.6; 1 Co 9.7) são títulos que Jesus usou para Si mesmo. E as características dos bispos refletem as características do servo, exemplificadas na vida de Jesus. (25)

A respeito de 2 Co 5.17-6.2: “No pensamento de Paulo, o ato reconciliador de Deus em Cristo e sua própria recepção do ofício apostólico não são dois eventos distintos e autônomos. O ato reconciliador de Deus em Cristo não é um evento morto do passado, que podemos apenas trazer à memória e lembrar. Cristo morreu e ressuscitou, e por esta razão Sua morte reconciliadora permanece sendo o meio, o lugar e o conteúdo da pregação e vida apostólicas. De fato, o ato reconciliador de Deus em Cristo está presente e efetivo em e através do exercício do serviço apostólico de Paulo. Por esta razão, Paulo pode escrever que ele é um embaixador ‘em lugar de Cristo’ ( ), e ele pode lançar sua proclamação não no Indicativo, como se estivesse falando a respeito de Cristo, mas no Imperativo, discursando aos seus ouvintes in persona Christi: ‘Reconciliai-vos com Deus!’ (2 Co 5.20). De fato, o tempo da reconciliação de Deus em Cristo é o momento do discurso de Paulo: ‘Agora é o dia da salvação’ (2 Co 6.2). Se então fazemos a pergunta: onde e quando ocorre a reconciliação de Deus em Cristo, que a fé recebe e à qual a fé se apega, a resposta é: na proclamação do mensageiro de Cristo. Ouvi-lo e obedecê-lo é estar reconciliado com Deus.” (26)

MINISTÉRIO FEMININO - ANOTAÇÕES A PARTIR DO NOVO TESTAMENTO 278

INTRODUÇÃO

Uma das mais belas descrições da Igreja cristã e do Ministério é aquela encontrada no livro do Apocalipse, já no seu início: “...vi sete candeeiros de ouro, e, no meio dos candeeiros, um semelhante a filho de homem ...Tinha na mão direita sete estrelas ... Quando o vi, caí a seus pés como morto. Porém ele pôs sobre mim a sua mão direita, dizendo: Não temas; eu sou o primeiro e o último, e aquele que vive; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho as chaves da morte e do inferno. ... quanto ao mistério das sete estrelas que viste na minha mão direita, e os sete candeeiros de ouro, as sete estrelas são os anjos das sete igrejas, e os sete candeeiros são as sete igrejas.” (Ap 1.12,13,16,17,18,20) O Senhor ressurreto, que dera Sua vida em resgate da humanidade, pela Sua ressurreição abre as portas do céu para o pecador. Em Sua graça, constitui um povo para Si, o povo em meio ao qual Ele próprio anda; povo que Ele consagra através de Sua presença na proclamação da Palavra e pelo Seu corpo e sangue, distribuídos com o pão e o vinho. Ele é o Senhor da Igreja. Também é o Senhor do santo Ministério. O Ministério está em Suas mãos, é Sua instituição, Lhe pertence. Nem à Igreja, nem ao ministro, propriamente, pertence o sagrado ofício do santo Ministério, mas unicamente a Cristo.

O tema que temos diante de nós é reconhecidamente polêmico. Não há sobre ele unanimidade na cristandade. Duas grandes denominações cristãs, a Igreja Católica Apostólica Romana, e a Igreja Ortodoxa (Oriental), colocam-se em posição contrária à ordenação de mulheres para o ofício do ministério pastoral (“sacerdotal”). Por outro lado, um número crescente de denominações “Evangélicas” passa a ter o ministério feminino em seu meio. Neste último grupo estão, inclusive, representantes do luteranismo, seja na América, seja na Europa, inclusive no maior Sínodo Luterano no Brasil, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. A Igreja Evangélica Luterana do Brasil, juntamente com sua igreja-mãe-irmã (o Sínodo de Missouri), mantém-se, neste aspecto, mais próxima do Catolicismo tradicional.279

Sendo este um assunto onde a cristandade (também) está dividida, convém abordá-lo em humildade. No entanto, a pergunta do teólogo sempre busca resposta no “Assim diz o Senhor.” Encontrando-a, deve ser ousado em afirmá-la ou, mais propriamente, confessá-la.

I. ANOTAÇÕES SOBRE O OFÍCIO DO SANTO MINISTÉRIO

278 Estudo apresentado no encontro DAC-DAMAL, em São Paulo, de 19 a 21 de Setembro de 1996. Publicado em Vox Concordiana 12/1 (1997): 21-46.279 David P. Scaer aponta para o desconforto dos luteranos em obterem apoio teológico no Catolicismo, ao ponto de se sentirem sozinhos na busca da resposta à pergunta inevitavelmente feita: “Por que não?” (“The Question of Women Priests,” Concordia Theological Quarterly 57/1,2 [Janeiro - Abril 1993], 107.)

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Tem sido observado no debate quanto ao ministério feminino que um dos fatores decisivos para determinar a posição adotada é a consideração que se dá ao ofício do santo Ministério.280 Se se considera o ministério como uma emanação do sacerdócio universal de todos os cristãos, ou um adiáforo, sobre o qual a igreja pode optar ter ou não, fica mais fácil considerar-se uma mudança em relação à prática histórica da igreja cristã. Os luteranos têm tradicionalmente considerado o ministério como instituição de Deus, para ensinar o evangelho e administrar os sacramentos, pelos quais o Espírito Santo é dado, assim que a fé em Cristo seja operada (Confissão de Augsburgo V). Ao tratarmos da questão do ministério feminino, é mister que nos posicionemos quanto ao conceito de Ministério no Novo Testamento.

A fim de se ter clareza quanto ao ofício do santo Ministério, algumas anotações são agora apresentadas, baseadas no parecer da Comissão de Teologia e Relações Eclesiais, da “The Lutheran Church - Missouri Synod”, de Setembro de 1981, sobre o Ministério.281

“O ofício do ministério público não é simplesmente uma sugestão divina, mas um mandato divino. Deus determinou que a igreja deveria executar suas funções não apenas através de ações privadas, individuais, mas também pelo falar corporativo, selecionando homens em conformidade com os critérios divinos e a quem Ele então coloca no ofício do ministério público.

“O ofício e suas funções são chamados de ‘públicos’ não porque suas funções sejam sempre desempenhadas em público, mas porque são realizadas em nome da igreja. ... Além disso, a palavra ‘público’ tem a conotação de responsabilidade perante aqueles que o colocaram no ofício ‘público’.

“A partir destas referências282, emerge a figura de um ofício que foi instituído por Deus, em e com o apostolado, para o qual qualificações bem específicas são listadas, e cuja essência é definida propriamente na Confissão de Augsburgo, como “ensinar o evangelho e administrar os sacramentos” (CA V), em nome e com responsabilidade perante a igreja (‘publicamente’) (CA XIV).

“Deve-se fazer uma distinção entre ‘ofício’ e ‘função’. A falha em fazer tal distinção resultará em confusão. Por exemplo, quando uma congregação está temporariamente sem um homem para preencher o ofício do ministério público em seu meio, ela pode solicitar que um professor ou um líder leigo, devidamente supervisionados, realizem algumas funções do ofício do ministério público. Isto é feito em situação de emergência e não como simples conveniência. Entretanto, a execução de tais funções não torna aqueles que as realizam pessoas que estejam no ofício do ministério público. Mesmo em tais situações de emergência, a congregação solicita que um homem que ocupe o ofício do ministério público e esteja servindo como pastor em uma congregação vizinha, que ele assuma aquele ofício junto a eles, como ‘pastor em vacância’ ou ‘supervisor283

interino.’ Assim, a supervisão e responsabilidade continuam com alguém a quem a igreja chamou e designou como pastor e que supervisiona aqueles que temporariamente desempenham algumas funções pastorais.”284

II. EXAME DE TEXTOS DO NOVO TESTAMENTO

1. O Exemplo de Jesus

Diz-se que Jesus rompeu com Sua época, no que tange ao papel da mulher, dando a elas uma dignidade que não encontraram em nenhuma sociedade da época.285 Isto é fato manifesto, primeiro, na maneira direta como se referia a elas; segundo, por ter considerado importante que também as mulheres fossem instruídas na palavra de Deus; terceiro, a presença delas nos momentos centrais da história da salvação, como testemunhas da morte e da ressurreição do Senhor (Mt 27.55,56; 28.1-10). Um fato especialmente significativo é que as mulheres o acompanhavam, servindo-o com seus bens. Pode-se dizer que também mulheres o seguiam como discípulas286, que aprendiam dele, eram orientadas, consoladas e dirigidas com a pregação do reino. Isto está bem de acordo com Gl 3.28, “nem homem, nem mulher.”

280 Jobst Schöne, “Pastoral Letter on the Ordination of Women to the Pastoral Office of the Church,” Concordia Theological Quarterly 59/4 (Outubro 1995), 308,309; Erni Walter Seibert, “O Papel da Mulher na Igreja,” Vox Concordiana 5/1 (1989), 45; David P. Scaer, “The Question of Women Priests,” 106,107.281 The Ministry - Offices, Procedures, and Nomenclature .282 Citadas antes desta afirmação: 1 Tm 3.1; 5.17; Hb 13.7,17; Ef 4.11,12; At 6.4; 2 Co 3.6,8; 5.18; Cl 1.23; Tt 1.5,7; At 14.23; 20.17,28.283 O termo é utilizado como tentativa de tradução literal do termo grego , normalmente traduzido por “bispo” (1 Tm 3.2).284 CTCR, The Ministry ...”, 13-16.285 Em sua reação aos estudos, por ocasião do Encontro DAC-DAMAL, o Dr. Paulo W. Buss lembrou, com propriedade, que no ministério de Jesus e, conseqüentemente, na Igreja cristã, a mulher recebeu uma dignidade muito acima de qualquer sociedade da época. Apontou ainda para a diferença da dignidade da mulher em sociedades não cristãs (no Islamismo, por exemplo).

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Quanto ao “discipulado” de mulheres em relação a Jesus, é importante notarmos algumas distinções que os evangelhos assinalam. Tal procedimento se revela particularmente importante, visto que por vezes argumenta-se que também a mulheres se aplica o verbo que, segundo se diz, caracterizaria o discipulado em preparação ao ministério.287

Tomamos como base o Evangelho conforme Mateus, que caracteriza com muita exatidão os diversos personagens e grupos envolvidos com Jesus.288 Pode-se notar claramente a existência de pelo menos quatro grupos, distintos pela forma como se relacionam com Jesus e Seu ministério. Há os que rejeitam a Jesus. Estes são especialmente representados pelos sacerdotes e escribas. A caracterização destes é suficientemente clara, sem haver necessidade de apontar para uma linguagem específica aplicada somente a eles.

Outro grupo são as multidões ( ). Estes acompanham Jesus, o seguem - o verbo é usado algumas vezes aplicado às multidões, simplesmente no sentido físico de ir atrás de alguém.289 Em um determinado ponto do Evangelho estas multidões deixam a Jesus, ficando demonstrado que seu vínculo com ele é superficial.

Um terceiro grupo é aquele caracterizado como de discípulos de Jesus ( ). A este grupo pertencem aqueles que seguem Jesus, mas, diferentemente das multidões, crêem nele e se apegam a Ele e ao Seu ensino. Exemplos destes encontramos em Mt 13.52;290 27.57;291 28.19.292

Há, ainda, um quarto grupo, muito claramente descrito nos evangelhos, o grupo dos doze ( ).293 Estes não somente seguem a Jesus e nele crêem,294 mas são descritos como pessoas preparadas para um trabalho especial. Estes são caracterizados como aqueles que serão “pescadores de homens” (Mt 4.18-22). Logo após Jesus pedir que se rogue por “trabalhadores na seara”, ele demonstra o que quer dizer com isto, ao convocar os doze - que recebem um novo nome, - dando-lhes autoridade e enviando-os a pregar (Mt 9.35-10.7). São também estes os convocados por Jesus para se encontrarem com Ele após a ressurreição. Lá eles são constituídos como aqueles que, firmados na autoridade de Jesus e com a promessa de Sua presença, aplicarão os meios que Ele concede, para que pessoas sejam feitas discípulas.295 É especialmente curioso que foram mulheres as primeiras a verem Jesus ressurreto e falarem com Ele. É um destaque que, por vezes, deixamos de notar. Que dádiva o Senhor lhes concedeu, de serem testemunhas - as primeiras - de Sua ressurreição. No entanto, as mulheres devem dizer aos onze discípulos que Jesus os convoca; e é a eles, e somente a eles, que Cristo dá o comissionamento (Mt 28.9,10,16-20). Vale lembrar que também mulheres seguiam a Jesus (Mt 27.55 - ), não como as multidões, mas como aqueles que caracterizamos como o terceiro grupo. No entanto, nenhuma delas foi convocada para ser apóstola e, conseqüentemente, nenhuma foi constituída para batizar e ensinar ( ), como os doze. Note-se que no livro de Atos, quando a (assim chamada) “grande comissão” acontece na prática (At 2), quando a congregação estava reunida (At 2.1), com a presença de mulheres (At 1.12-15), são os doze que se levantam para proclamar o evangelho publicamente, a partir do que veio o batismo (At 2.38-41) e o continuado ensino dos apóstolos (At 2.42).

Com estes dados podemos notar que não é apenas nas epístolas que se evidencia a presença de um grupo na igreja que deve pregar e ensinar (1 Co 3.5-9; 4.1,2; 2 Co 5.20-6.3; 1 Tm 3.1ss; etc.). Isto já fica claro nos Evangelhos, quando um grupo é constituído por Jesus, dentre os que o seguem,296 para ministrarem às multidões, na verdade, para todos os povos. E a este grupo não pertencem mulheres. Estas não são diminuídas em seu valor por este fato. Na verdade, os Evangelhos mostram que na história da salvação, elas têm a dádiva

286 Uso o termo aqui no sentido amplo, como estamos mais acostumados em nossa linguagem, para se referir a todos os que seguiam a Jesus, e no sentido em que usado o verbo em Mt 28.19. No seu uso estrito, o termo é usado coletivamente para designar o grupo dos doze, aqueles que foram preparados para serem os apóstolos.287 Veja, por exemplo, Martin N. Dreher, “O Novo Testamento escrito por Homens e a Mulher na História da Igreja,” Estudos Teológicos 30/3 (1990), 278.288 Para maiores detalhes ver textos de Jack Dean Kingsbury; por exemplo: Mathew as Story , 2a Edição, Philadelphia: Fortress Press, 1988.289 Por exemplo: Mt 4.25; 8.1.290 O verbo é aqui utilizado - “versado”.291 Trata de José de Arimatéia, e novamente o verbo é empregado.292 Pelo batismo e pelo ensino da Palavra, as pessoas em geral ( ) serão tornadas discípulas de Jesus.293 O artigo definido vem mostrar que é um grupo específico que é referido.294 Apesar de fraquejarem muitas vezes, o que só vem ressaltar a graça e misericórdia de Jesus - Mt 8.26; 28.17,18.295 Aqui o termo é usado no seu sentido amplo, de “seguidoras” ou, sendo mais explícitos, “cristãs”.296 O que bem mostra que se deve distinguir, mas não se pode separar o ministério da igreja.

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de estarem presentes nas situações-chave do ministério de Jesus, sua morte e ressurreição.297 Talvez é importante lembrar que, como povo de Deus, sempre temos muito mais a receber do que dar para o nosso Deus. Quando as mulheres recebem a oportunidade de presenciarem a morte e serem testemunhas do Cristo ressurreto, isto não deve ser encarado como um status especial, mas como uma dádiva do Senhor, que é tão rico em abençoar os Seus. Da mesma forma, o ministério para o qual homens são chamados não deve ser encarado como “privilégio” (no sentido usual da palavra em nosso contexto social). É um serviço, onde são chamados a servir a Cristo e às pessoas (At 1.25; 6.4; 1 Co 3.21-23).

Com as observações acima, notamos que o Senhor não chamou nenhuma mulher para o apostolado. A nenhuma enviou.298 Poder-se-ia dizer que este é um argumento do silêncio e, portanto, fraco. Fica, no entanto, ainda assim uma questão intrigante. Teria o Senhor, que tão corajosamente rompeu com Sua época em vários aspectos em relação à mulher, teria Ele evitado uma explícita referência à mulher como apóstola (“ministra”), simplesmente para que a igreja chegasse a esta conclusão? Ou deveria Seu exemplo, em não preparar mulheres para o ministério, ser levado mais à sério pela igreja, de modo que esta não rompesse o que o Senhor não rompeu - justamente pelo fato de o assunto não tratar de costume da sociedade, mas de ordenação divina?!

É a posição deste estudo que, mesmo se tivéssemos apenas os dados dos Evangelhos sobre o ministério, faríamos bem em ser cautelosos (humildes) num assunto que envolve quebra de uma prática histórica da igreja. O fato, porém, é que há textos específicos a respeito do assunto e, a menos que assumamos uma posição histórico-crítica em relação à Escritura, teremos de considerá-los com a devida seriedade, como imperativos à igreja.299

2. 1 Coríntios 14.33b-35Algumas observações preliminares se fazem necessárias para um bom entendimento do texto.300

Primeiro, Paulo não está tratando aqui de algum costume ligado à época ou ao local a que se dirige.301 O assunto lida especificamente com algo que é obrigatório para a igreja em toda a parte e em todas as épocas. O imperativo presente do v. 34, , está ligado ao do v. 33b.302 Segundo, a questão envolve o culto da igreja. O contexto em 1 Coríntios 14, especialmente

297 Curiosamente, quando o décimo segundo apóstolo é escolhido, um dos critérios é que seja testemunha da ressurreição (At 1.22).298 Vale lembrar que nenhuma mulher esteve presente na instituição da Santa Ceia. A nenhuma foi confiada a administração da Santa Ceia: “Fazei isto.”299 Um exemplo de uma abordagem crítica à Escritura como revelação de Deus encontramos no estudo de Martin Dreher, “O Novo Testamento Escrito por Homens, e a Mulher na História da Igreja,” Estudos Teológicos 30/3 (1990): 273- 287. O autor utiliza- se de fontes gnósticas para criticar o posicionamento dos evangelistas e apóstolos sobre a mulher, chamando- os de machistas. Em tal assunto não se deveria simplesmente facilitar a discussão, apelando para o evangelho (a boa nova da salvação em Cristo), dizendo que ele nada sofre em se admitindo o ministério feminino. A própria afirmação não está livre de crítica. Além disso, não há necessidade de diminuir o conceito sobre a Escritura para valorizar o evangelho. Um bom estudo a respeito do relacionamento entre os princípios material (o evangelho) e o formal (a Escritura) da teologia luterana é oferecido no parecer da Comissão de Teologia e Relações Eclesiais da LC-MS, Gospel and Scripture - The Interrelationship of the Material and Formal Principles in Lutheran Theology , de Novembro de 1972.300 Não discuto aqui a questão da integridade do texto, considerando que alguns documentos colocam os versículos 35 e 36 após o v. 40, o que levaria a questão para o campo da boa ordem no culto, quebrada por conversas (sussurros) das mulheres. A evidência textual para a variante é fraca: D (séc. VI), F, G (ambos do séc. IX) e outros testemunhos de pouco valor. Apesar do testemunho quase unânime apontar para o lugar do texto onde o encontramos em nossas versões, há autores que pensam poder defender a teoria de que seja uma interpolação posterior. Por exemplo: Gordon D. Fee, The First Epistle to the Corinthians , NICNT, (Grand Rapids: Eerdmans, 1991), 699. Argumenta- se que o texto foi aí colocado para reconciliar 1 Co 14 com 1 Tm 2. No entanto, esquece- se que o copista teria criado um problema ainda maior (por sinal, apontado pelos comentaristas), do relacionamento deste texto com 1 Co 11.5ss.301 Como, por exemplo, no caso do profetizar e orar com véu (1 Co 11.2- 16). Ali há um princípio, qual seja, o da autoridade do homem. O uso ou não do véu é o costume que traz consigo a aplicação do princípio. Para um tratamento mais amplo daquele assunto, ver: Women in the Church , CTCR, 1985, p. 27-32; Pedro Brousveld, “Mulher, Véu e Cabelo,” Igreja Luterana 37/4 (1977): 188- 190.302 Estou considerando o final do v. 33 como dizendo respeito ao v. 34, seguindo o que fazem a edição Nestle- Aland e as traduções Almeida Revista e Atualizada , Bíblia de Jerusalém e Bíblia na Linguagem de Hoje . Uma tradução alternativa para o imperativo presente

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desde o v. 26, deixa claro que Paulo está falando do contexto do culto público.303 A proibição de “falar”, portanto, deve estar circunscrita ao culto, independente de como se interpreta neste texto.

A questão básica neste texto é o sentido de “calar-se”, ou seja, o não ser permitido falar para a mulher. Um exame das duas expressões em questão aponta para a solução. É preciso estarmos cientes que uma expressão “calar-se” é explicada pela outra, “não lhes é permitido falar”.

A respeito de , diz Walter Maier, levando em conta o uso do verbo nos outros textos do NT:

O que este comando significa precisamente? Deve ele ser entendido de forma absoluta, assim que signifique que as mulheres não podem unir suas vozes em responsos litúrgicos, na confissão de fé, nas orações e em cânticos durante o culto? Ou, se não for assim, de que forma tal comando deve ser entendido? A primeira coisa que pode ser assinalada é que em diversos outros textos do Novo Testamento nos quais formas do verbo sigaoo ou do substantivo sigee aparecem, não está envolvido um silêncio absoluto. Pode ser observado, então, que, quando estas palavras gregas significam o cessar de falar, em numerosos contextos Jesus, ou um apóstolo, ou outro cristão está comunicando a palavra de Deus a um grupo de pessoas, e os ouvintes ficam em silêncio de forma a apreender o que é dito, ou permanecem em silêncio por causa do que foi dito. Não está indicado que haverá um silêncio total dos ouvintes em todo o tempo em que estão em contato com aquele que lhes comunica a palavra divina naquela ocasião. Assim também, pessoas participando dos cultos no tempo de Paulo ficavam em silêncio quando a palavra de Deus era lida e pregada, mas eles (incluindo as mulheres) podiam participar e efetivamente participavam nos responsos litúrgicos, no cantar de hinos e nas orações durante o culto congregacional. Esta mesma coisa é verdade para os adoradores em nosso tempo.304

É interessante notar que o mesmo verbo, usado mais duas vezes no contexto, aparece aqui com um uso não qualificado, ou seja, não é especificado o que as mulheres estão proibidas de falar. No v. 28, o verbo se referia ao falar em línguas - calar-se quando não há intérprete; no v. 30, ao profetizar - calar-se quando a revelação vem a alguém outro. No texto em estudo, o referente parece ser algo além do profetizar ou do falar em línguas. Estes são dons especiais que Deus concede à Igreja, através de algumas pessoas. O texto de 1 Co 11.5 indica que também mulheres estão aí incluídas (particularmente no profetizar). A proibição de Paulo pode ser explicada de duas maneiras diferentes. Primeira, referindo-se a conversas paralelas das mulheres, durante o culto da congregação. Tal interpretação combina com o que é dito no v. 35. Estava ocorrendo o problema na congregação de Corinto. Paulo, então, para o bem do culto público, ordena que as mulheres se calem e façam as perguntas em casa, aos esposos. Esta é a interpretação oferecida pelo Dr. Donaldo Schüler:

...o verbo laleo significa, quando se refere ao falar de adultos, comunicar-se com intimidade. Se o apóstolo se refere a esse modo de falar no v. 34, pode-se fazer idéia do que acontecia nas

seria “parem de falar”, deixando claro que estava havendo algo em Corinto que perturbava a ordem do culto, envolvendo o falar das mulheres. Walter A. Maier discorda desta possibilidade. Ele argumenta:

Podemos notar que Paulo em nenhum local utiliza a expressão empregada em 11.18, dizendo algo como ‘estou informado haver mulheres falando em seus cultos’. (Compare-se também com 1.11 e 5.1, onde Paulo declara o que de fato estava ocorrendo em Corinto, por ter recebido uma informação direta a respeito.) O apóstolo nem mesmo indica que os Coríntios em sua carta o houvessem informado acerca de algo assim. É melhor presumir que ele está dizendo o que diz nos vv. 34,35 de maneira a prevenir um erro e não corrigir um perigo já presente. ... Como Paulo não afirma explicitamente que as mulheres da congregação de Corinto estivessem falando no culto, deveríamos entender que tal ação não chegou a ocorrer, mas talvez até tivesse sido discutida.”

(“An Exegetical Study of 1 Corinthians 14.33b- 38,” Concordia Theological Quarterly , 55/2,3 [Abril- Julho 1991], 93.)303 O verbo utilizado - - “Quando vos reunis” - é empregado por Paulo em 1 Coríntios neste texto e no contexto (v. 23) e ao tratar dos problemas ligados às reuniões para a celebração da Santa Ceia (11.17,18,20,33,34). Walter A. Maier sugere que a tradução de neste texto deveria ser “reuniões de culto”. (“1 Corinthians 14,” 82,83.) A Bíblia na Linguagem de Hoje traduz como “reuniões de adoração.” Apesar de tais traduções serem possíveis, elas não permitem concluir que as diretivas de Paulo se aplicam unicamente às reuniões de culto em Corinto . O uso do artigo definido e do plural apontam para o fato de que Paulo dirige as palavras a todas as igrejas (congregações). (cf. Gordon D. Fee, The First Epistle to the Corinthians , 706.) Parece mais correto, então, traduzir como “igrejas”, vistas, no entanto, particularmente em seu contexto cúltico.304 Maier, “1 Corinthians 14,” 84,85.

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reuniões cristãs em Corinto. Enquanto alguém profetizava, falava em línguas ou expunha as Escrituras, ouviam-se cochichos na assembléia. Eram senhoras que pediam explicações aos seus maridos, de modo familiar e íntimo. Essa prática o apóstolo proíbe com toda justiça. Esposas que desejam maiores informações de seus maridos, perguntem em casa.305

Para o nosso estudo em questão, é importante ressaltar que, se esta for a explicação correta, mesmo não se referindo ao exercício do ofício do ministério, seria estranha a ordem de Paulo, em uma situação em que as mulheres pudessem, tanto quanto os homens, dirigir os cultos da congregação, como pastoras. Além disso, tal interpretação contemplaria uma tratativa do apóstolo para um problema específico nos cultos em Corinto, isto é, a conversa das mulheres. No entanto, como já vimos, o texto todo tem uma amplitude maior, aplicando-se à igreja como um todos (“em todas as igrejas dos santos” - v. 33).

Investigaremos o uso do verbo por Paulo para verificar se há outra possibilidade na exposição do texto. O verbo é empregado trinta e quatro vezes em 1 Coríntios. Em doze ocasiões, refere-se ao “falar em línguas”, estando ligado a (a maior parte, no plural, ), todas as ocasiões entre 12.30 e 14.39.306 Neste mesmo contexto, o verbo é empregado junto com “profetizar” ou de forma mais genérica, mas ainda falando às pessoas (ou a si mesmo) a mensagem de Deus (doze ocasiões).307 Em seis ocasiões, Paulo refere-se ao seu próprio falar, anunciando a palavra de Deus, como apóstolo do Senhor, instruindo o povo de Deus.308 O verbo ainda é usado uma vez referindo-se a alguém que fala pelo Espírito de Deus (12.3 - contexto dos dons espirituais). E em apenas uma vez, o verbo é empregado no seu sentido clássico, de falar como criança (13.11). As duas outras ocasiões são aquelas no texto em estudo. Em 2 Coríntios, o verbo é sempre empregado (dez ocasiões) em referência a Paulo (algumas vezes no plural, incluindo Timóteo - 2 Co 1.1), anunciando às pessoas a palavra apostólica.309 Nas outras dezesseis ocasiões em que Paulo utiliza o verbo, em algumas delas o faz para referir-se à sua proclamação e em outras, sem um uso qualificado.

Se, por um lado, não podemos afirmar que Paulo sempre utiliza o verbo como um termo técnico para a proclamação da Palavra (e, ainda mais, por um ministro constituído), por outro lado, é inegável que o verbo é, na maioria das vezes, empregado neste sentido. Ainda mais, o uso do verbo em Paulo não recomenda a interpretação do mesmo no texto em estudo com referência a “cochichos” (cf. Donaldo Schüler). Walter A. Maier dá especial atenção ao contexto imediato e à relação entre os verbos e , concluindo:

Vemos nestas passagens [vv. 26-32] que o verbo certamente significa maneiras especiais de falar, em um culto - em línguas ou em profecia - e que estes tipos de fala são colocados em contraste com o oposto de cada um deles, isto é, manter-se em silêncio, sendo que então se utiliza uma forma do verbo . A importância, pois, da diretiva de Paulo para que as mulheres permaneçam em silêncio nos cultos é, de acordo com o contexto imediato e decisivo, que elas não hão de falar daquela maneira específica, isto é, em línguas ou em profecia; que elas não, uma após a outra, falem em línguas ou sejam profetizas que comuniquem a palavra de Deus aos outros presentes no culto, servindo de mestres da verdade aos homens.310

Nesta explicação do texto, conclui-se por uma referência ao exercício do ofício público do ministério. O problema desta interpretação é que ela parece excluir a possibilidade de a mulher profetizar, que Paulo entende ser possível (11.5). A solução pode estar na distinção entre o profetizar e o falar na igreja como pastor. Sobre isto trataremos mais adiante.

Por hora, é importante notar algumas observações feitas pelo parecer da Comissão de Teologia e Relações Eclesiais da LC-MS, “Women in the Church”, tratando destas questões.311

“À primeira vista, a colocação de Paulo, de que a mulher ora e profetiza (1 Co 11.5) parece estar em contradição com o comando ao silêncio em 1 Co 14. Os comentaristas têm oferecido diversas soluções para as dificuldades que surgem quando 1 Co 11 é comparado com 1 Co 14. Uma solução proposta é que deve-se fazer uma distinção entre dois tipos de encontros da Igreja nestes capítulos. Um deles seria em família, um encontro em que a igreja não está toda presente (Capítulo 11); o outro seria o encontro de toda a congregação (capítulo 14). Outra

305 “ A Função da Mulher na Igreja,” 40.306 12.30; 13.1; 14.2,4,5,5,6,13,18,23,27,39.307 14.2,2,3,6,9,9,11,11,19,21,28,29.308 2.6,7,13; 3.1; 9.8; 15.34.309 2.17; 4.13,13; 7.14; 11.17,17,23; 12.4,19; 13.3.310 Maier, “1 Corinthians 14,” 85,86.311 “ Women in the Church - Scriptural Principles and Ecclesial Practice,” setembro de 1985, p. 32,33.

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solução enfatiza a distinção entre dois tipos de fala. De acordo com esta explicação, ‘falar’ no capítulo 14 significa ‘fazer perguntas,’ enquanto que no capítulo 11 refere-se à fala em êxtase. Possivelmente não se pode ter clareza completa a respeito. Entretanto, as seguintes conclusões podem ser tiradas.

“Primeiro, que Paulo não está ordenando um silêncio absoluto é evidente do fato que ele permite o orar e o profetizar em 1 Co 11. O silêncio ordenado para as mulheres em 1 Co 14 não impede o orar e profetizar. Assim, o apóstolo não está dizendo que as mulheres não podem participar no cantar e orar da congregação. Deve-se notar o uso de Paulo do verbo laleo para ‘falar’ em 1 Co 14.34, que significa freqüentemente ‘pregar’ no NT (por exemplo, Mc 2.2; Lc 9.11; At 4.1; 8.25; 1 Co 2.7; 2 Co 12.19; Fp 1.4). Paulo não usa lego, que é um termo mais geral. (O argumento de que Paulo tem um significado diferente em mente e que ele usa o verbo aqui para proibir cochichos que perturbavam a ordem, é extremamente improvável.) Quando laleo tem um significado outro do que discurso religioso ou pregação no Novo testamento, isto é normalmente feito pelo uso de um objeto ou advérbio (por exemplo, falar como uma criança - 1 Co 13.11; falar como um tolo - 2 Co 11.23). Segundo, deve-se enfatizar que a proibição de Paulo, que as mulheres fiquem em silêncio e não falem, é feita em referência ao culto público da congregação (1 Co 14.26-33). Qualquer outra interpretação é artificial e improvável. Assim, Paulo não está dizendo aqui que a mulher deva ficar em silêncio em todo o tempo ou que não possa manifestar seus sentimentos e opiniões em uma assembléia da igreja. A ordem para que a mulher guarde silêncio é uma ordem para que ela não assuma o culto público, especificamente o aspecto de ensino-aprendizado do culto.”

Não creio ser necessário considerar as duas explicações acima como sendo mutuamente excludentes. O v. 34 pode estar colocando o princípio, sendo que o v. 35 seria tão somente uma aplicação concreta, para algo que vinha efetivamente acontecendo em Corinto. Como não havia mulheres pastoras, Paulo não viu necessidade de aplicar o princípio para uma tal situação. Ainda que não se possa negar a possibilidade do texto ser interpretado da forma como Donaldo Schüler o faz, o contexto em Paulo indica que a outra explicação (cf. Walter A. Maier) também é possível.312 Neste caso, é importante que a investigação se dirija a outros textos, cuja clareza seja indiscutível. No estudo em questão, este texto é 1 Tm 2.8-15. Qualquer que seja a interpretação correta de 1 Co 14, sabemos que não haverá contradição entre os dois textos.

3. 1 Tm 2.8-15313

Assim como em 1 Co 14, o contexto desta passagem é importante. Paulo está falando de uma situação de culto da igreja. Isto pode ser notado já a partir da própria carta onde o texto está. 1 Tm, assim como as outras cartas pastorais, é dirigido a um pastor-bispo (alguém responsável pela pregação da palavra em determinado lugar, mas também em organizar a igreja naquele local, inclusive pela constituição de ministros). No entanto, as três cartas concluem com uma saudação no plural (1 Tm 6.21b; 2 Tm 4.22b; Tt 3.15c). Pode-se depreender que a carta, apesar de dirigida em princípio ao pastor, será lida perante a congregação, seguindo o que era feito com outras cartas apostólicas (Cl 4.16; Ap 1.3314).

A linguagem do texto também conduz para o contexto de culto da igreja. Trata de oração coletiva, do aprender da palavra e do ensinar (ver abaixo, no estudo sobre ).

É um detalhe curioso, mas, julgo, não de pequena importância, que o texto em estudo é um parênteses entre duas declarações sobre o ofício do ministério. Antes do texto, Paulo, ao apresentar o evangelho da salvação, afirma ter sido constituído “pregador ( ), apóstolo ( ) e mestre ( )” (2.7). Após o texto, Paulo traz as qualificações necessárias para o bispo.315

312 Ann L. Bowmann, em seu estudo sobre 1 Tm 2.11- 15, aponta para uma terceira interpretação do texto de 1 Co 14.34: “o contexto (regras com respeito a declarações inspiradas no culto) indica que pode se referir a mulheres julgando profecias naquela situações.” (“Women in Ministry: Na Exegetical Study of 1 Timothy 2.11- 15,” Bibliotheca Sacra 149/594 [Abril - Junho 1992], 200, n. 20.) Mais sobre este assunto, na distinção entre “profetizar” e “ensinar”, mais adiante.313 Sobre este texto, dois excelentes estudos podem ser encontrados em: Donaldo Schüler, “A Função da Mulher na Igreja,” Igreja Luterana 32 (1971): 32-37; Ann L. Bowmann, “Women in Ministry: An Exegetical Study of 1 Tm 2.11- 15,” Bibliotheca Sacra 149/594 (Abril- Junho 1992): 193- 213.314 Note-se que no original lemos: “aquele que lê e aqueles que ouvem”.315 Note-se, especialmente, que o no v. 12 encontra eco antes e após o texto: na auto- caracterização de Paulo como e na qualificação exigida do

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“A mulher aprenda em silêncio, com toda a submissão” (v. 11). Sobre o “silêncio”, Donaldo Schüler nota, com muita precisão, que o sentido da palavra não necessita ser de silêncio, mas de tranqüilidade (2 Ts 3.12 e 1 Tm 2.2 são citados).316 Ele comenta:

Isto está em harmonia com o que o apóstolo disse a respeito dos trajes femininos. A intervenção indevida da mulher nos trabalhos religiosos perturba a ordem tanto quanto trajes e adornos chamativos. Paulo se opõe à exuberância feminina, mas solicita a participação ativa, ordeira e discreta, ‘aprenda’.317

Paulo requer da mulher que, neste contexto, do culto, onde ela há de aprender a palavra ordeiramente, que ela o faça “com toda a submissão”. Ann L. Bowmann aponta três possibilidades de interpretação:

Primeira, pode significar que a mulher deve ser submissa ao seu esposo. Apesar disto ser ensinado em outros lugares (Ef 5.22; Cl 3.18; Tt 2.5), tal significado é improvável aqui, onde o foco está sobre homens e mulheres em culto. Segunda, Paulo pode ter pretendido dizer que a mulher deve estar submissa aos presbíteros da igreja. Visto que falsos profetas estavam desviando crentes da verdade, a submissão aos presbíteros da igreja pode ter sido parte da solução de Paulo para o problema. Uma terceira possibilidade, muito próxima da segunda, é que as mulheres devem se submeter à doutrina pura. Qualquer uma das duas últimas interpretações dá uma explicação adequada. É também possível uma combinação das duas: as mulheres devem se submeter apenas àqueles presbíteros que ensinavam a doutrina pura.318

Donaldo Schüler dá uma explicação semelhante, mas enfatiza a questão da ordem que Deus coloca, tanto no mundo em geral, como no culto de Seu povo: “Submissão é um ato de reconhecimento da ordem e aceitação do lugar que nesta ordem cabe a cada um. ... A mulher que se enquadra em 1 Tm 2.11 aceita livremente o lugar que a ordem do culto lhe determina.”319

Chegamos, então, ao ponto central do texto, quando Paulo declara: “E não permito que a mulher ensine, nem que exerça a autoridade sobre o marido; esteja, porém, em silêncio” (v. 12). O que Paulo quer dizer ao proibir que a mulher ensine? Há exemplos no NT de mulheres “ensinando” a palavra de Deus (2 Tm 1.5; cf. 2 Tm 3.15; At 18.24). Não há, pois, uma proibição de que uma mulher exponha a palavra de Deus para outrem. O fato é que os textos citados acima não utilizam o verbo empregado em 1 Tm 2.12: . Um estudo mais detalhado do uso do verbo mostra que o que nós chamamos de “ensinar”, falando de forma genérica para qualquer tipo de aplicação da palavra de Deus (pregação, estudo bíblico, escola dominical, orientação cristã para um amigo, etc.) não é o conteúdo do verbo no Novo Testamento. Faz-se necessário, pois, trazer algumas observações sobre o verbo e seu uso no Novo Testamento.320

é um verbo utilizado fora do Novo Testamento especialmente para trazer a idéia de passar informações com o objetivo de uma “assimilação gradual, sistemática e, portanto, completa.”321 Na Septuaginta (LXX) e no Judaísmo Rabínico, a palavra não é mais utilizada para denotar a comunicação de habilidades gerais, mas a instrução da vontade de Deus, com o propósito de ensinar como o homem deve viver com Deus e com o próximo.322 Jesus foi reconhecido como um Mestre, não apenas pelas Suas atitudes externas (sentar-se para ensinar - Mt 5.1,2; o lugar: na sinagoga - Mt 4.23; 13.54; no templo - Mt 21.23; 26.55), mas no fato de que Ele ensinava de acordo com o Antigo Testamento e o fazia com autoridade (Mt 7.29). Nisto Ele se diferenciava dos rabis da época. Este ponto é importante, ao notarmos que Jesus enviou os Seus apóstolos a ensinarem, e o fez baseado na Sua autoridade (Mt 28.18,20). Este texto é chave para que se note o sentido de no Novo Testamento. Jesus está enviando os apóstolos para a missão de fazerem discípulos de todas as nações, pelo batismo e pelo ensino.

bispo - (3.2). Ao lermos que a mulher não deve “ensinar” o texto nos leva a ter em mente o ministério (“magistério”) de Paulo e a aptidão para ensinar, requerida de um bispo. Ou seja, o v. 12 poderia ser parafraseado: “Não permito que a mulher seja ministra”!316 Outros textos em que ou um cognato seu é utilizado no sentido de tranqüilidade, ordem (não silêncio total): 1 Pe 3.4; At 11.18; 21.141 Ts 4.11. No sentido de fazer silêncio, tem-se, da família da palavra, At 22.2; Lc 14.4; e ainda, em 23.56, no sentido de descanso.317 “ A Função da Mulher na Igreja,” 33.318 “ 1 Timothy 2,” 198,199.319 “ A Função da Mulher na Igreja,” 33,34.320 As informações a seguir são tiradas do texto deste autor, em The Role of the Ministry and of the Church in the Mission of God, according to Matthew 28.16- 20 , Tese de Mestrado não publicada, Concordia Seminary, St. Louis, EUA, 1993, pp. . 147- 150.321 Karl H. Rengstorf, “ ”, Theological Dictionary of the New Testament , G. Kittel, ed., 2: 135.322 Klaus Wegenast, “Ensinar,” Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento , Colin Brown, ed., 2: 43,44.

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É interessante notar a maneira como o Novo Testamento mostra pessoas ensinando; em outras palavras, como o verbo é aplicado, seguindo-se o comissionamento de Jesus aos onze.323 O verbo é utilizado não para algum tipo de instrução que uma pessoa traz a outrem. Na grande maioria dos casos, são os apóstolos (especialmente Paulo) que ensinam. O ensino é um dos dons especiais de Deus (Rm 12.7). Ele mesmo concede mestres ( ) à igreja (Ef 4.11).324 As evidências do Novo Testamento nos levam a concluir que o verbo é utilizado para designar uma atividade especial, de alguém que foi colocado por Deus em um ofício especial, seguindo o apostolado que originalmente foi confiado aos doze. Ann L. Bowmann assinala que

a palavra se refere quase que exclusivamente à instrução pública ou o ensino de grupos. No Novo Testamento, um mestre é alguém que ensina sistematicamente a palavra de Deus e que dá instrução no Antigo Testamento e no ensino apostólico (1 Co 4.17; 2 Tm 2.2).325

A conclusão é, pois, de que a mulher não deve ensinar no culto público da igreja ou, dito em outras palavras, não deve atuar como aquela que lidera o ensino da congregação, no ministério da palavra.326

Foi mencionado acima que o falar da mulher na igreja - proibido por Paulo em 1 Co 14 - deve ser distinguido do profetizar, que ele mesmo entende ser possível, em 1 Co 11.5. Convém aqui trazer algumas observações, distinguindo o profetizar do ensinar, de que Paulo fala em 1 Tm 2. Citamos do estudo do Dr. Donaldo Schüler:

1. A Bíblia entende por ensinar uma atividade permanente. O mestre (didáskalos) exerce sua atividade em quaisquer circunstâncias. O profeta, no entanto, atua em momentos especiais, com funções específicas (Jr 29.27,28).

2. Quem, ensina, transmite um sistema completo de conhecimentos, de modo contínuo, até atingir os objetivos estabelecidos (Mt 28.20). O profeta elucida certas áreas, em certos momentos, quando se sente por Deus enviado (Jr 11.1ss).

3. O profeta no AT, com raras exceções, não é sacerdote, e muitas vezes repreende os sacerdotes; não exerce função ligada ao culto (Jr 26 e 27). Ao conselho de bispos no NT é atribuída a função de ensinar, mas não a de profetizar (1 Tm 3). A atividade profética, no NT, é exercida nas reuniões públicas dos cristãos, mas não está circunscrita a uma determinada classe.

4. A igreja no NT não deve coibir a atividade profética, mas deve discipliná-la e examinar seus conteúdos para verificar se estão de acordo com a palavra de Deus, pois responsável principal da disciplina e do exame é o ministério docente (1 Ts 5.20; 1 Co 14.1,5,12,39).

Em face disto, não é permitido à mulher pertencer ao conselho de bispos, encarregado do ensino, em caráter permanente, mas pode profetizar (transmitir o plano da salvação com a finalidade de edificar, exortar e consolar) quando a isto é compelida pelo Espírito, de um modo discreto e ordeiro, sob a vigilância do ministério docente.327

Ainda sobre a questão do profetizar da mulher, conforme 1 Co 11.5, é importante notar que ao fazê-lo, a mulher o faz respeitando o princípio da submissão (vv. 7-10). Sobre este princípio trazemos agora algumas observações, citando Donaldo Schüler:

1 - Adão foi formado primeiro. Com isto Deus manifestou que a liderança cabe ao varão. Se no lar, a chefia deve ser masculina, pelos motivos vistos em Efésios, não há razão para que no culto deva ser diferente. O homem não só é cabeça no lar como também no culto (1 Co 11.3). Cabe-lhe, portanto, em situações normais a função de guia, onde quer que um grupo de pessoas esteja reunido, tanto para orar, como para meditar na palavra de Deus. ...2 - A segunda razão se baseia na primeira. Satanás foi o primeiro a subverter a ordem divina. Atribuiu à mulher uma responsabilidade para a qual ela não estava emotiva nem psicologicamente preparada. Não ataca a ‘cabeça’ porque se o fizesse acataria a ordem divina.

323 Aos quais mais tarde Matias é acrescentado - At 1.25,26. 324 K. Wegenast mostra que o termo é empregado no NT referindo- se a: Jesus (a grande maioria dos casos), João Batista (Lc 3.12), Nicodemos (Jo 3.10), os escribas (Lc 2.46), e os “mestres” da igreja (At 13.1; 1 Co 12.28; Ef 4.11; Tg 3.1). DITNT, 2: 50.325 “ 1 Timothy 2,” 200. Note-se que o verbo é utilizado em 1 Timóteo consistentemente para designar o ensino público da Palavra de Deus: 1.3,7; 2.7; 3.2; 4.11,13,16; 5.17; 6.2. (CTCR, Women in The Church , 34.)326 Esta, por sinal, é a conclusão a que defensores do Ministério Feminino chegam, a respeito da intenção de Paulo com aquele texto. Ver, por exemplo, Martin Dreher, “O Novo Testamento Escrito por Homens e a Mulher na História da Igreja,” Estudos Teológicos 30/3 (1990), 282.327 “ A Função da Mulher na Igreja,” 39.

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E seu objetivo é subverter a ordem. A transgressão de Eva sugere que a mulher, como líder, está mais exposta ao engano. Em virtude disto, Paulo julga inconveniente colocá-la em função de responsabilidade docente em caráter definitivo. ...328

Schüler ainda faz um comentário importante, mostrando que não se pode tomar as palavras de Paulo como se estivessem sendo dirigidas apenas para uma situação específica na congregação atendida por Timóteo:

O exemplo de Adão e Eva, invocado, universaliza a determinação de Paulo. A primeira transgressão do homem foi o acontecimento mais universal da história, porque envolveu efetivamente a humanidade inteira.329

4. Gálatas 3.28

Este texto é aplicado por alguns como sendo evidência de que mulheres não podem ser privadas do exercício do ministério público na igreja. Martin N. Dreher afirma

Na comunidade primitiva são eliminadas as diferenças raciais, religiosas e de papéis sociais (dominar e obedecer!). “Dessarte não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem e mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.”(Gl 3.28). A fórmula de Gl 3.28, que é fórmula batismal, confissão de fé batismal, afirma que os batizados estão em oposição a todos os valores raciais, sociais, patriarcais e religiosos da sociedade judaico-greco-romana. A comunidade cristã não tolera discriminações, características da sociedade na qual vive. Na comunidade cristã, a mulher e o escravo não estão à margem. São apóstolos, profetas e mestres. Marta e Pedro estão em pé de igualdade, pois ambos confessam que Jesus é o Cristo (cf. Jo 11.27 e Mt 16.16).330

Não nos parece que o texto dá evidências necessárias para todas as conclusões apresentadas. É fato que a comunidade cristã não tolera (pelo menos, não deve tolerar) discriminações. Nem o Novo Testamento o tolera! O ponto é que diferenças não são necessariamente “discriminação” (no sentido negativo da palavra). Parece-nos que o problema não é de exegese (como de resto na discussão sobre os textos referentes à mulher e o ministério), mas de hermenêutica!

Dreher ainda observa a diferença no texto. Paulo usa entre “judeu” e “grego”, e entre “escravo” e “livre”, mas usa entre “homem” e “mulher”. O fato não transparece na maioria das traduções. Dreher depreende daí que Paulo não está eliminando características de sexualidade de homem e mulher. Ele está, sim, diz Dreher, eliminando os “papéis sexuais (homem = dominar, mulher = obedecer). Tais papéis eram deduzidos de Gn 1.27 (homem e mulher os criou). Em Cristo tal dedução de papéis é impossível.”331 A bem da verdade, Paulo mesmo apela para Gênesis, na criação de homem e mulher, ao fundamentar sua proibição ao ensino por parte da mulher (1 Tm 2.11-14). A diferença das conjunções não precisa significar o que Dreher está propondo. Este pode, a bem da verdade, ser tão somente um recurso retórico de Paulo. Há outras situações onde ocorre uma modificação na cláusula final de uma frase com vários elementos que se seguem.332

328 “ A Função da Mulher na Igreja,” 35,36.329 Id., 36. Martin Weingaertner, em seu comentário a 1 e 2 Timóteo (Coleção Em Diálogo com a Bíblia. Curitiba: Encontrão Editora, Belo Horizonte: Missão Editora, 1993), interpreta 1 Tm 2.11 e 12, dizendo que “Paulo faz estas restrições por causa da fraqueza, para não causar motivo de tropeço para quem ainda não tinha este conhecimento. Se já era difícil não deixar confundir- se pela carne sacrificada devido à familiaridade dos ídolos, quanto mais a ‘familiaridade’ com o patriarcado dificultaria a aceitação da nova posição da mulher! ” (p. 40) Assim sendo, o autor trata o texto como sendo uma acomodação de Paulo ao costume da época. O mesmo autor tem dificuldade de tratar os versículos 13 a 15, levando a sério o “porque” que inicia este texto. A comparação é imprecisa, pois no caso das comidas sacrificadas a ídolos há diferenças marcantes: 1) Paulo deixa claro do porquê da diretiva dada (para não ferir as consciências fracas) - isto não aparece no texto de 1 Tm; 2) A conexão que Paulo faz é com um costume, mas no caso de 1 Tm é com a ordem da criação; 3) Paulo deixa claro que comer aquela carne não é em si pecado; mas em Tm Paulo jamais diz que há um ideal não atingível devido ao costume da época - o ideal apontado é o que ele está ordenando.330 “ O Novo Testamento Escrito por Homens, e a Mulher na História da Igreja,” Estudos Teológicos 30/3 (1990), 284.331 “ O Novo Testamento Escrito por Homens,” 287, n. 33.332 Por exemplo, em Mt 5.3-11, o tratamento da terceira pessoa do plural nos vv. 3 a 10 dá lugar à segunda pessoa do plural no v. 11; em Rm 2.21- 23, uma série de verbos no Presente Particípio no caso nominativo é seguida, na cláusula final, no v. 23, por um Presente Indicativo;

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Além disso, haveria motivo para Paulo modificar a cláusula que envolve homem e mulher, em relação àquelas, entre escravo e livre, e entre judeu e grego. A distinção entre homem e mulher pertence à criação de Deus. Deus os fez assim. E outros textos do NT mostram que não somente a sexualidade continua, mas também papéis diferentes, como veremos abaixo.

Sobre o texto de Gálatas em si, algumas observações se fazem, necessárias. Em seu estudo, “Feminismo Evangélico: Por que os Tradicionalistas o Rejeitam,” A. Duane Litfin, assinala o seguinte:

Gálatas 3.28 não diz nada explicitamente sobre como a relação entre homem e mulher deve ser conduzida na vida diária. Mesmo os feministas reconhecem que o contexto de Gálatas é teológico, não prático. Paulo está aqui fazendo uma declaração teológica sobre a igualdade fundamental de homens e mulheres na sua relação com Deus.

... a verdade de Gálatas 3.28 [no entanto,] não fica sem ramificações no campo social. ... há profundas implicações sobre como os cristãos se relacionam uns com os outros. ... Os feministas insistem que a implicação precisa ser a eliminação de todos os papéis baseados no gênero. Os tradicionalistas perguntam, por quê? Esta conclusão não é requerida logicamente. Igualdade ontológica e hierarquia social não são mutuamente exclusivos.

... os escritores do Novo Testamento estão regulando, e não eliminando, os papéis hierárquicos, para prevenir que sejam abusados. ... Aqueles que estão em posição de autoridade - esposos (Ef 5.25-33; Cl 3.19; 1 Pe 3.7), anciãos (1 Pe 5.1-4; At 20.28-31), pais (Ef 6.4; Cl 3.21), empregados (Ef 6.9; Cl 4.1) - são instruídos sobre como usar sua autoridade dada por Deus de forma cristã. Da mesma forma, aqueles que estão sob uma autoridade constituída - esposas (Ef 5.22-24; Cl 3.18), empregados (Ef 6.4-8; Cl 3.22-25), filhos (Ef 6.1-3; Cl 3.20), membros da congregação (1 Ts 5.12,13; Hb 13.17), cidadãos (Rm 13.1-7; Tt 3.1) - são também instruídos sobre como cumprir com seu papel de forma cristã. O resultado não é uma sociedade sem papéis de autoridade e submissão, mas uma hierarquia social, ordenada por Deus e realizada de uma maneira que está em acordo com o ensino de Cristo (Mt 20.25-28).333

O ponto é que Paulo está mostrando que em Cristo foram quebradas as paredes de separação entre gregos e judeus, entre escravos e senhores, entre homens e mulheres. Em Cristo é criada uma comunhão em que não há pessoas com valores diferentes. Mas o apóstolo não diz nada sobre as funções exercidas no corpo no qual o batismo insere as pessoas. O fato dos cristãos formarem uma unidade não significa que todos tenham as mesmas funções. Unidade não é o mesmo que uniformidade.334

O texto de Gálatas é importante, por mostrar o valor objetivo do santo Batismo, que nos torna filhos de Deus, pessoas revestidas por Cristo, de modo que resgatados, somos herdeiros (Gl 4.5-7). Valem aqui as palavras do Dr. Donaldo Schüler, mostrando o aspecto positivo do texto, no que se refere ao relacionamento daqueles que, em Cristo, formam um corpo:

A graça divina irmana. Os que contritos a reconhecem são incorporados na grande família dos redimidos de Deus, onde não há privilégios, onde uns estão ao serviço dos outros com o quinhão que Deus lhes concedeu. A diversidade demonstra a unidade na mútua cooperação. Como o senhor renascido se sente irmanado a seu escravo assim também o marido se sente irmanado a sua mulher. Os que foram incorporados em Cristo não se hostilizam, os senhores não oprimem seus escravos, os povos não consideram inimigos os que nasceram além de suas fronteiras culturais ou políticas, os maridos não aviltam suas esposas. O evangelho de Cristo substitui o ódio pelo amor, articula a diversidade numa unidade efetiva.335

CONCLUSÃO

Pelos dados apontados em nosso estudo, constatamos que o Ministério Feminino não encontra apoio no Novo Testamento. A bem da verdade, encontra uma proibição explícita no texto bíblico. Esta constatação,

o mesmo poderia ser o caso no disputado texto de Ef 4.11, com as expressões dando lugar a um na cláusula final. Devo esta argumentação ao Dr. James W. Voelz, professor de Novo Testamento no Seminário Concórdia de St. Louis, MO, EUA.333 “ Evangelical Feminism: Why Traditionalists Reject it,” Bibliotheca Sacra 136/543 (1979), 265,266.334 Bertil Gaertner, “Didaskolos: The Office, Man and Woman in the New Testament,” Concordia Journal 8/2 (Março 1982): 57.335 “ A Função da Mulher na Igreja,” 25,26.

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porém, não deve obscurecer a verdade de que tanto homens como mulheres são, em Cristo, sacerdotes reais e têm funções importantes a desempenhar no reino de Deus.336

É preciso lembrar que o trabalho no reino de Deus não fica restrito ao que é feito no âmbito da igreja. Cada cristão tem o privilégio de viver sua fé entre os irmãos, na congregação, mas também (e especialmente) na família e na sociedade em geral. Pessoas com formação teológica poderão, por certo, ser uma bênção em qualquer lugar que estiverem. Na igreja poderão ser de grande auxílio na edificação dos irmãos, seja em estudos bíblicos, mensagens, devoções, visitas missionárias, departamentos e comissões. Isso vale também para as mulheres. E, no desempenho de funções, reconhecerão a supervisão do ministro constituído por Deus e chamado por intermédio da congregação. O desempenho das funções através de muitas pessoas, mulheres e homens, por isso, não irá obscurecer o fato de que há um ministério instituído por Deus e que neste ministério a pessoa não entra em função de uma qualidade especial que tem, mas através do chamado que Deus dá por meio da Igreja.

BIBLIOGRAFIA

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336 Um excelente estudo sobre o papel da mulher na Escritura pode ser encontrado no parecer da Comissão de Teologia e Relações Eclesiais da Lutheran Church- Missouri Synod, Women in the Church - Scriptural Principles and Ecclesial Practice , Setembro de 1985, pp. 5-12. Sobre a atuação da mulher na Igreja, ver o estudo do Dr. Donaldo Schuler, citado neste trabalho.

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ESCATOLOGIA

A DOUTRINA DAS ÚLTIMAS COISAS

OS “TEMPOS DO FIM”Um Estudo sobre Escatologia e Milenismo337

INTRODUÇÃO

As duas últimas décadas de nosso século testemunharam um interesse crescente em vários aspectos da profecia bíblica. O sociólogo William Martin, da Universidade Rice, observou que “a História Judaico-cristã tem testemunhado numerosas efervescências de interesse em profecia bíblica, normalmente em tempos de agitação social, mas poucas, se porventura alguma, têm sido tão propagadas e influentes como a que está florescendo em círculos protestantes conservadores”.338

A percepção pública de tópicos relacionados aos tempos do fim, como o milênio, o arrebatamento e Armagedom tem sido aguçada através da pregação de tele-evangelistas e a publicação de livros muito lidos, tais como aqueles escritos por Hal Lindsay. Poucas pessoas poderiam imaginar que um livro que começa com as palavras “Este é um livro sobre profecia - profecia bíblica” venderia 15 milhões de cópias e que seu autor seria considerado pela New York Times como o autor com maior venda na década de 70!

Estes fatos, no entanto, têm causado grande preocupação em muitos cristãos, que consideram alguns dos atuais ensinos populares sobre os tempos do fim como sendo altamente especulativos e mesmo contrários às Escrituras e, portanto, prejudiciais à fé. No que tange aos pressupostos teológicos, questões sérias têm sido levantadas quanto aos princípios de interpretação bíblica (Hermenêutica) empregada por escritores milenistas na sua abordagem e exposição de textos bíblicos, especialmente naqueles livros normalmente denominados apocalípticos (Daniel, Ezequiel, Apocalipse). Além disso, a ausência de uma leitura destes textos no contexto de tudo o que as Escrituras ensinam sobre as últimas coisas tem trazido confusão e dúvidas no que tange ao conteúdo da esperança cristã. A deficiência - e, mais freqüentemente, a ausência - da teologia sacramental e do ensino dos meios da graça em geral na pregação milenista são especialmente evidentes para os que estão familiarizados com a doutrina confessional luterana. Igualmente preocupante é a falha dos pregadores e escritores milenistas em distinguir propriamente entre Lei e Evangelho.

No contexto de tais preocupações e em resposta a uma solicitação específica da Convenção de 1983 da “The Lutheran Church-Missouri Synod,”339 de que a Comissão de Teologia e Relações Eclesiais (CTRE) “preparasse um estudo sobre os tempos do fim (escatologia), incluindo milenismo, para orientação da Igreja”, a CTRE preparou este relatório sobre Escatologia e milenismo. Na primeira parte deste estudo, a Comissão apresenta um pequeno sumário sobre as quatro posições atuais sobre o “milênio”. Na segunda parte discute princípios hermenêuticos pertinentes, a doutrina da escatologia e alguns textos-chave que formam a base para o ensino milenista. A terceira parte do documento apresenta uma avaliação resumida do pré-milenismo dispensacional.

I. POSIÇÕES MILENISTAS ATUAIS

Apesar de que existem diversas variações no ensino milenista atual, uma divisão em quatro categorias tem sido amplamente aceita: (1) Pré-milenismo dispensacional; (2) pré-milenismo histórico; (3) pós-milenismo; (4) amilenismo.340 Das três primeiras categorias, todas sustentando a existência de um milênio, uma era utópica sobre a terra, a posição mais aceita é a do pré-milenismo dispensacional. No interesse de limitar a discussão que segue a proporções manejáveis e de procurar auxiliar os membros do Sínodo em sua avaliação deste ensino, a Comissão decidiu enfatizar o estudo desta posição pré-milenista mais conhecida e prevalecente. Antes de proceder com um exame mais detalhado dos vários elementos da doutrina milenista, oferecemos o seguinte sumário das categorias mencionadas acima.

A. Pré-milenismo Dispensacional

O pré-milenismo dispensacional, ou simplesmente dispensacionalismo, é um sistema teológico com origens entre os Irmãos Livres de Plymouth, na Irlanda e Inglaterra, no início do século XIX. O originador do

337 Relatório da Comissão de Teologia e Relações Eclesiais da Lutheran Church - Missouri Synod; Setembro de 1989; Traduzido por Gerson Luis Linden.338William Martin, “Waiting for the End”, Atlantic 249 (Junho 1982): 31.339Igreja Luterana - Sínodo de Missouri, igreja irmã da Igreja Evangélica Luterana do Brasil.340 3 Ver: Robert G. Clouse, ed., The Meaning of the Millenium: Four Views (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1977).

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sistema é John Nelson Darby (1800-82), um dos principais fundadores do movimento dos Irmãos Livres de Plymouth. O dispensacionalismo nasceu como uma reação contra a Igreja da Inglaterra e a amplamente aceita posição pós-milenista (ver parte C, abaixo).

Os ensinos do pré-milenismo dispensacional sobre profecia se espalharam amplamente no Canadá e nos Estados Unidos, especialmente devido à influência da Scofield Reference Bible, de 1909 e suas edições subseqüentes. Hoje em dia, o dispensacionalismo é sem dúvida a mais proeminente forma de milenismo. É oficialmente ensinado no Moody Biblical Institute (Chicago), no Dallas Theological Seminary e em cerca de duzentos Institutos bíblicos nos E.U.A. Ele tem sido promovido por tele-evangelistas como Jerry Falwell, Pat Robertson, Kenneth Kopeland e Jack Van Impe, por ministérios independentes, como o “Lamb and Lion” e “Word Profecy Ministry” e em dezenas de livros. Entre os mais conhecidos está o The Late Great Planet Earth, de Hal Lindsay,341 que deu origem a um filme.

Os dispensacionalistas342 normalmente dividem a atuação de Deus com a humanidade em sete “dispensações” distintas: Inocência (Gn 1.28-3.6), Consciência ou Responsabilidade Moral (Gn 4.1-8.14), Governo Humano (Gn 8.15-11.32), Promessa (Gn 12.1 - Ex 18.27), a Lei (Ex 19.3 - At 1.26), a Igreja (At 2.1 - Ap 19) e o Reino milenial (Ap 20). Uma dispensação é definida como “um período de tempo durante o qual o homem é testado com respeito a sua obediência a alguma revelação específica da vontade de Deus.”343 Em cada um destes períodos uma revelação distinta de Deus é dominante e testa a obediência da humanidade a Deus.

Quais, então, são os elementos principais da escatologia dispensacionalista? O Antigo Testamento, se ensina, promete ao povo judeu um reino terreno, governado pelo Messias. Quando Cristo veio, ele ofereceu este reino aos judeus. Os judeus daquela época, no entanto, rejeitaram-no e ao reino. Este reino, então, foi adiado até algum ponto no futuro. Enquanto isso, Cristo introduziu a "forma de mistério" do reino (Mateus 13) e estabeleceu a Igreja. Este “parênteses” do programa de Deus terminará no “arrebatamento”, quando todos os crentes, excluindo os santos do Antigo Testamento, irão para o céu para celebrar com Cristo “as bodas do Cordeiro” por sete anos. Então o propósito prometido por Deus para Israel será retomado. Durante este período de sete anos, vários eventos ocorrerão na terra (Ap 6-19):

1. Inicia a “tribulação”, cuja metade final é chamada de “grande tribulação”.2. O anticristo começa seu reinado cruel e no meio dos sete anos ele proíbe o culto judeu no

templo.3. Julgamentos terríveis vêm sobre a terra.4. Um remanescente de Israel (os 144.000 de Apocalipse 7) crê em Jesus como o Messias e

prega o “Evangelho do Reino”.5. Através de seu testemunho uma multidão de gentios é salva (Ap 7.9).6. Perto do fim, várias batalhas militares acontecem, levando até o Batalha de Armagedom.

No final deste período de sete anos, os dispensacionalistas ensinam, Cristo (com a Igreja) volta em glória e destrói seus inimigos. A grande maioria dos israelitas será convertida. Satanás será amarrado por 1000 anos. Os crentes que morrerem durante a tribulação e os santos do Antigo Testamento ressuscitarão e se unirão à Igreja no céu. Cristo julgará os gentios vivos (Mt 25.31-46). Os “cabritos” serão lançados no inferno. As “ovelhas” e os judeus crentes ainda vivos entrarão no milênio com seus corpos naturais. Eles casarão, se reproduzirão e morrerão. (Os crentes ressuscitados viverão na Jerusalém celeste, que estará pairando sobre a Jerusalém terrena). O milênio será uma época áurea, um tempo de prosperidade e paz, com o culto centralizado no templo reconstruído. Apesar de que no início do milênio somente crentes viverão na terra, alguns de seus filhos e netos não crerão em Cristo. Estes descrentes serão reunidos por Satanás para uma última revolta (Ap 20.7-9). Perto do fim, todos os crentes mortos durante o milênio ressuscitarão. Depois do “pouco tempo” de Satanás, todos os mortos descrentes ressuscitarão e serão julgados (Ap 20.11-15). A fase final será então introduzida, durante cujo período continuará a distinção entre judeus e gentios.

Três pressupostos são críticos para o sistema dispensacionalista. Estas premissas básicas podem ser resumidas da seguinte maneira:

1. A Distinção entre Israel e a IgrejaDe acordo com a posição dispensacionalista, Deus está, através das eras, buscando dois propósitos

distintos: um relacionado a objetivos terrenos e a um povo terreno, o povo judeu; e o outro, relacionado a objetivos celestes e um povo celeste, a Igreja cristã.344 A Igreja não foi prevista no Antigo Testamento e,

341Editado em Português, com o título “A Agonia do Grande Planeta Terra”.342Já que os dispensacionalistas diferem entre si em vários detalhes, o resumo a seguir é baseado na Oxford NIV Scofield Study Bible, ed. C. I. Scofield e E. Schuyler English, et al. (New York: Oxford University Press, 1984), 3, 6, 13, 18, 86, 1130, 1335-36.343Ibid., 3.344Charles C. Ryrie, Dispensationalism Today (Chicago: Moody Press, 1965), 41-45.

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portanto, constitui-se num “parênteses” no plano predito por Deus para Israel. No futuro, a distinção entre judeus e gentios será reestabelecida e continuará por toda a eternidade.

2. O Cumprimento Literal da Profecia BíblicaO Antigo Testamento - conforme argumentação dos escritores dispensacionalistas - contém muitas

promessas de que Deus estabelecerá um reino terreno envolvendo Israel. Estas promessas serão cumpridas literalmente. A promessa principal para Abraão era de que seus descendentes físicos receberiam a terra de Canaã como possessão perpétua. A aliança davídica contém a promessa de que um descendente de Davi (o Messias) governaria sobre Israel para sempre do trono de Davi, isto é, de Jerusalém. A nova aliança de Jr 31.31-34, apesar de possuir aspectos que também se aplicam a crentes na presente “era da Igreja”, é essencialmente uma aliança para Israel. Muitas passagens nos Salmos e nos profetas são interpretadas significando que Israel será recolhido na terra de Canaã sob o governo perfeito do Messias. Estas promessas se cumprirão literalmente durante o reino milenar de Cristo. Semelhantemente, muito de Daniel e de Apocalipse espera por um cumprimento literal no milênio futuro.

3. A Manifestação da Glória de Deus como o Propósito da HistóriaApesar de os dispensacionalistas concordarem que os seres humanos são reconciliados por Deus pela

graça somente, através da obra de Cristo na história, “o programa soteriológico, ou salvífico, de Deus não é o único propósito, mas um dos meios que Deus usa no programa global de glorificar a Si mesmo.”345 Assim, não é a salvação do homem, mas a manifestação da glória de Deus que constitui-se no principal tema e propósito mais amplo de Sua atividade na história humana em cada dispensação.

B. Pré-milenismo Histórico

Em contraste com o pré-milenismo dispensacional, aqueles que sustentam a posição pré-milenista histórica argumentam que o segundo advento de Cristo será um evento de um ato só, depois da tribulação. Seja neste tempo, ou antes, a vasta maioria dos judeus será convertida. Os crentes que morreram ressuscitarão, os que estiverem vivos serão transformados e todos os crentes encontrarão a Cristo nas alturas e então descerão com Ele para a Terra. Cristo então matará o Anticristo, prenderá Satanás e estabelecerá seu reino milenar sobre a terra. Cristo e Seus redimidos, tanto judeus como gentios em um só povo de Deus, reinarão visivelmente sobre as nações descrentes ainda na terra. Pessoas com corpos ressurretos e pessoas com corpos naturais viverão juntos sobre a terra. Pecado e morte ainda existirão, mas o mal externo será restringido. Os mil anos do reino milenar serão um tempo de justiça social, política e econômica e de grande prosperidade. Após estes 1000 anos Satanás será solto a fim de enganar as nações descrentes para fazerem um assalto final contra os redimidos. Satanás será destruído e a ressurreição dos descrentes mortos acontecerá. Então virá o julgamento de todos, tanto crentes como descrentes, e a eternidade.

C. Pós-milenismo

Em contraste com o que foi visto acima, a posição pós-milenista, a menos comum, coloca o segundo advento de Cristo após o milênio. Apenas então acontecerão o arrebatamento, a ressurreição geral, o julgamento geral e os estados eternos. O milênio não é entendido como sendo um reino visível de Cristo na forma de uma monarquia terrena, nem o período milenar é tomado literalmente como necessariamente de 1000 anos de duração. Nestes aspectos, o pós-milenismo corresponde muito proximamente à posição amilenista (ver abaixo).

Mas a posição pós-milenista de fato propõe um período milenar reconhecível, uma era áurea de prosperidade e paz entre todos, no fim da qual Cristo retornará. O milênio chegará gradualmente, sob a crescente influência do cristianismo, levando a uma redução universal do mal e a condições grandemente melhoradas nas esferas social, econômica, política e cultural. De fato, o mundo inteiro será, finalmente, cristianizado, ao ponto de que a crença e o sistema de valores cristãos tornar-se-ão a norma aceita por todas as nações. Mateus 28-18-20 tornar-se-á uma realidade.

D. Amilenismo

Uma escatologia que não ensina um reino terreno de Cristo de 1000 anos literais pode ser chamada “amilenista” (algumas vezes chamada "milenismo realizado" porque o período referido em Apocalipse 20 está agora em um processo de realização). Embora a exegese detalhada dos textos pertinentes pode variar entre cristãos amilenistas, aqueles que adotam esta posição concordam que os “mil anos” referidos em Apocalipse 20 é uma expressão figurada para o presente reino de Cristo, que começou com Sua ascensão ao céu e será

345Ibid., 46.

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manifesta plenamente na Sua segunda vinda. A segunda vinda de Cristo será um evento no qual Ele, nas palavras de Martinho Lutero, “me ressuscitará a mim e a todos os mortos e dará a mim e a todos os crentes em Cristo a vida eterna” (Explicação do Terceiro Artigo do Credo Apostólico). A escatologia apresentada nas Confissões Luteranas é claramente amilenista (CA XVII).

Excurso sobre o Adventismo do Sétimo Dia

O segundo advento de Cristo é central na escatologia Adventista.346 De acordo com o ensino Adventista, Cristo entrou no santo lugar do templo celestial na Sexta-feira santa e permaneceu lá por dezoito séculos, para apelar com Seu sangue pelos pecadores. Em 1844 (2300 “dias proféticos” ou anos após 457 a.C. - Dn 8.14), Cristo entrou no Santo dos Santos celestial para iniciar uma investigação da conduta dos crentes - um “julgamento investigativo”, que durará até Seu segundo advento. Quando as pessoas morrem elas deixam de existir, de corpo e alma, até esta segunda vinda. Pouco antes de Cristo retornar, aqueles que foram responsáveis por seu julgamento e crucificação (Ap 1.7) e os membros fiéis da denominação Adventista que morreram depois de 1844 (Ap 14.13) ressuscitarão para vê-lo vir. Na Sua volta, Cristo destruirá a besta, o falso profeta e os ímpios que fizeram guerra contra Deus e Seu povo em Armagedom (Ap 16.12-16; 19.11-21). Satanás terá os pecados do mundo colocados sobre ele, como um “bode emissário” e será enviado a um lugar desolado por mil anos (Ap 20.1-3). Ao mesmo tempo, todos os crentes que morreram antes de 1844 e todos os crentes não Adventistas que morreram depois de 1844 ressuscitarão (Ap 20.4-6). Todos os crentes que ainda vivem serão transformados, e ambos os grupos irão para o céu para reinar com Cristo por mil anos. Durante este período Cristo e os crentes governarão com o propósito de investigar a vida dos descrentes e determinar a quantidade de sofrimento que eles terão de experimentar. Depois do milênio os ímpios ressuscitarão, sofrerão em diversas medidas na terra e serão reunidos por Satanás para um assalto final à Jerusalém celeste que terá recém descido (Ap 20.7-9). Após isto Deus aniquilará Satanás, os anjos maus e todos os ímpios. Cristo e todos os crentes viverão, então, para sempre na nova Terra.

II. ESCATOLOGIA E MILENISMO

Uma avaliação detalhada para os argumentos de cada uma das posições resumidas acima está além do alcance deste estudo. A variedade de interpretações347 sobre os dados bíblicos dentro da escatologia milenista tornaria difícil uma tal abordagem e talvez de pouca ajuda. (Dentro do dispensacionalismo há, por exemplo, pré-tribulacionistas, pós-tribulacionistas, mesotribulacionistas e entre os mesotribulacionistas há os que sustentam uma “posição de arrebatamento parcial” e uma “posição pós-tribulacional imanente”). Assim sendo, a Comissão escolheu o que julgou serem as principais considerações que, de uma perspectiva luterana, devem estar em mente, por parte daqueles que procuram orientação com respeito aos “tempos do fim”. Especialmente importantes são os princípios de interpretação (Hermenêutica) usados no estudo dos livros proféticos e apocalípticos do Antigo e Novo Testamentos, dos quais o ensino milenista é largamente derivado. E, visto que o ensino milenista representa um sistema de interpretar e moldar todos os aspectos da escatologia, é também necessário rever doutrinas chaves sobre os tempos do fim e fazê-lo à luz das adaptações milenistas. Esta seção terminará com comentários específicos sobre alguns dos textos bíblicos que tiveram um papel determinante no desenvolvimento de algumas das posições populares do momento, com respeito aos tempos do fim.

A. Considerações Hermenêuticas

Ao abordar a escatologia bíblica, é especialmente importante que o leitor da Escritura leve em conta a natureza da literatura profética e apocalíptica. A maior parte dos profetas maiores e menores são escritos em poesia, com sua característica linguagem figurativa e pictórica. Por exemplo, Amós retrata as futuras bênçãos escatológicas para o povo de Deus, dizendo que “os montes destilarão mosto” (9.13). O profeta dificilmente estaria querendo dizer que os montes do Oriente Médio estariam um dia cobertos com vinho.

Linguagem simbólica deste tipo é especialmente comum na literatura apocalíptica, como Daniel e Apocalipse. Em Apocalipse, por exemplo, lemos sobre cavaleiros (capítulo 6), gafanhotos (cap. 9), bestas (cap. 13), Satanás acorrentado e jogado num poço sem fundo (cap. 20) e mais. Além disso, na literatura apocalíptica números são normalmente usados simbolicamente348 (os sete chifres e os sete olhos de Cristo [Ap 5.6], os

346F. E. Mayer, The Religious Bodies of America, 3a ed. (St. Louis: Concordia Publishing House, 1954), 431-42; Anthony A. Hoekema, The Four Major Cults: Christian Science, Jehovah Witness, Mormons and Mormonism, Seventh-Day Adventism (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1963), 89-143; Walter Martin, The Kingdom of the Cults, revisado e expandido (Minneapolis: Bethany House Publishers, 1985), 409-500.347Ver Apêndice I para um conjunto de diagramas mostrando as principais posições milenistas e o tempo do “arrebatamento” dentro do dispensacionalismo.

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144.000 selados [Ap 7.2-8; 14.1-5], os 1000 anos de Apocalipse 20). Claramente este tipo de literatura não pretende estar falando literalmente,349 como se todo verso estivesse apresentando linguagem em prosa direta, como em um jornal. O objetivo do intérprete deve ser buscar o sentido pretendido ou literal do texto e fazê-lo reconhecendo que Deus, em alguns casos, escolheu trazer o significado através de simbolismo e figuras de linguagem (por exemplo, metonímia, metáfora e símile).

Segundo, certos textos são melhor interpretados de acordo com o que tem sido normalmente chamado de perspectiva abreviada.350 Eventos de um futuro próximo e outros, mais distantes, são freqüentemente encaixados em uma única descrição, assim como os picos das montanhas quando vistos à distância. Algumas vezes os profetas focalizaram um futuro imediato; em outras ocasiões, um futuro distante; entretanto, ambos são vistos ao mesmo tempo. A profecia de Joel, por exemplo, move-se rapidamente de uma situação imediata, a praga dos gafanhotos (1.2-2.27), para o futuro distante do Pentecostes (2.28-29) e para um futuro ainda mais distante, a segunda vinda de Cristo (2.30-3.21). Jesus também profetiza desta maneira. Em Mt 24.15-28 (cf. Mc 13.14-23 e Lc 21.20-24) Ele projeta em uma cena tanto o ano 70 A.D., quando os romanos destruíram Jerusalém, como a perseguição intensificada final contra a igreja antes de Sua segunda vinda. A profecia bíblica freqüentemente não nos mostra os séculos intermediários que estão como vales entre os pontos altos da história da salvação.

Terceiro, o intérprete precisa reconhecer o “colorido histórico do tempo” da mensagem profética. Metodologicamente, a primeira tarefa na interpretação é determinar o que o texto significou na sua situação histórica. Refletindo sobre a situação histórica na qual eles falaram, os profetas pregaram para uma situação de vida definida e apresentaram seu oráculos em termos que seus ouvintes originais podiam entender. Por exemplo, Obadias prediz que aqueles no monte Sião escaparão à ira de Deus (Obadias 17). O Novo Testamento indica que esta profecia é definitivamente realizada na promessa de que o povo de Deus (todos os crentes - a Igreja), será salvo (Hb 12.22). Entretanto, Obadias não diz “a Igreja cristã será salva”, simplesmente porque estas palavras não estavam em seu vocabulário nos tempos antes de Cristo.

Quarto, a profecia do Antigo Testamento, especialmente quando tratando de temas escatológicos, é freqüentemente de natureza típica ou tipológica.351 Um tipo é uma pessoa, uma instituição ou um evento que prefigura e prenuncia uma realidade nova e maior (o antítipo). O antítipo, tanto histórica como teologicamente, corresponde, elucida, cumpre e completa escatologicamente o tipo. O antítipo não é mera repetição do tipo, mas é sempre maior do que sua antecipação. E, visto que as Escrituras são cristológicas, os tipos do Antigo Testamento (que são assim mostrados pela Escritura) estão relacionados, centrados e cumpridos em Cristo e no Seu povo, a Igreja.

A história de Israel no Antigo Testamento freqüentemente contém esta confiança orientada para o futuro, uma confiança tipológica. Os profetas constantemente expressam sua esperança para o futuro em termos dos atos de Deus no passado, que serão repetidos, no entanto, numa escala universal e que excederá mais gloriosamente qualquer coisa experimentada no passado. Isaías prediz um novo e maior êxodo da escravidão (Is 11.15; 43.16-19; 51.10-11; 52), um novo e maior rei davídico (9.1-7; 11.1-10) e uma nova Jerusalém habitada por um novo povo (65.17-25). O êxodo do Egito prefigura a libertação da escravidão do pecado em Cristo (1 Co 5.6-8; 10.1-11; 1 Pe 1.13,18-19). Davi tipifica o Messias (Mt 2.23; Lc 1.26-33; At 2.25-31). E a Jerusalém do Antigo Testamento prenuncia a Jerusalém celeste (Gl 4.26,27; Hb 12.22; Apocalipse 21). Assim, insistir , por

348Ver o capítulo sobre “Simbolismo” no Comentário sobre Apocalipse de Henry Barclay Swete, (Grand Rapids: Kregel Publications, 1977), cxxxi-cxxxix. Em Português, o leitor encontra exposição sobre a simbologia do Apocalipse no livro Vem, Senhor Jesus, de Johannes H. Rottmann (Porto Alegre: Concórdia, 1993), 20-26.349Por exemplo, C. C. Ryrie interpreta Ap 14.20 como segue: em Armagedom “o sangue dos mortos correrá por 200 milhas [aproximadamente 320 kilômetros], numa profundidade de cerca de 4,5 pés [aproximadamente 1,40 metros]”. The Ryrie Study Bible: New Testament (Chicago: Moody Press, 1976), 472.350John P. Milton, Prophecy Interpreted (Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1960), 15. De acordo com Milton, perspectiva abreviada significa que “numa mensagem profética o objetivo escatológico da aliança é freqüentemente visto como chegando logo. Parece ser esperado para logo após e em relação direta à situação histórica do momento para o qual a mensagem do profeta é dirigida”.351Para um tratamento mais extensivo sobre tipologia, ver Walter R. Roehrs, “The Typological Use of the Old Testament in the New Testament”, Concordia Journal 10 (Novembro 1984): 204-216; Hans K. LaRondelle, The Israel of God in Prophecy: Principles of Prophetic Interpretation (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1983), 35-59; e Leonhard Goppelt, Typos: The Typological Interpretation of the Old Testament in the New (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1982); R. Davidson, Typology in Scripture (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1981); Horace Hummel, “How to Preach the Old Testament”, in Concordia Pulpit 1986 (St. Louis: Concordia Publishing House, 1985), 1-23.

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exemplo, que a Jerusalém no Antigo Testamento (Monte Sião de Obadias 17) refere-se à moderna cidade de Jerusalém no Oriente Médio é ignorar sua importância tipológica.

O relacionamento entre os dois Testamentos é similar àquele entre o botão e a flor completa. Nas palavras da antiga formulação de Santo Agostinho, “O Novo Testamento está latente no Antigo (o ‘botão’); o Antigo torna-se patente no Novo (a ‘flor’)”. Quando, pois, se estuda um oráculo profético, é apropriado e necessário que o leitor das Escrituras faça estas perguntas: O Novo Testamento o cita ou alude a ele? Como o Novo Testamento trata os temas e pontos teológicos do oráculo?

Quando isto é feito, o intérprete descobrirá que o cumprimento é maior que a predição, assim como o antítipo é maior do que o tipo. Não se pode simplesmente assumir que deve existir uma correspondência literalística em todos os detalhes entre a predição e o cumprimento. Por exemplo, Ez 34.23,24 e 37.24,25 prediz que Davi reinará sobre o Israel restaurado. Isaías 7.14 prediz que o nome do Messias será Emanuel. O Novo Testamento, no entanto, informa-nos que Jesus de Nazaré, um descendente de Davi, é, de fato, este Messias prometido. Sem o Novo Testamento alguém poderia ser levado a esperar um Davi ressurreto cujo verdadeiro nome seria Emanuel. De fato o cumprimento algumas vezes corresponde diretamente aos detalhes preditos. Miquéias 5.2 prediz que o Messias virá de Belém, um fato ao qual o cumprimento corresponde precisamente (Mt 2.1-6; Jo 7.42). Entretanto, é o Novo Testamento, e não alguma noção pré-concebida de literalismo consistente, que deve determinar de que maneira a predição é cumprida.

Estas observações pressupõem que, visto ser Deus o único Autor de toda a Escritura, existe uma unidade orgânica entre o Antigo e o Novo Testamentos, tanto com respeito ao seu conteúdo (a doutrina do Evangelho em todos os seus artigos), como à sua função de tornar as pessoas sábias para a salvação. O princípio hermenêutico de que a Escritura interpreta a Escritura necessariamente pressupõe esta unidade. Assim, podemos olhar para o Novo Testamento para clarificar o que as pessoas, instituições e eventos mencionados pelos profetas tipificam. Hans LaRondelle, em The Israel of God in Prophecy, coloca o assunto bem:

O Novo Testamento foi escrito como a norma última para o cumprimento e interpretação das profecias de Israel. Um cristão estaria negando sua fé cristã e seu Senhor se lesse o Antigo Testamento como uma entidade fechada, como uma mensagem completa e final de Deus para os judeus, sem considerar a cruz e a ressurreição de Jesus, o Messias, e à parte da explicação do Novo Testamento para os escritos hebreus.352

Tudo isto é para mostrar que as próprias Escrituras, e não comentários sobre eventos atuais do século XX, devem dar a interpretação normativa para profecia do Antigo Testamento. Ezequiel 38-39 prediz que Gogue, da terra de Magogue, principal príncipe de Meseque e Tubal, junto com a Pérsia, Cushe, Pute, Gômer e Togarma farão guerra contra Israel. Dispensacionalistas freqüentemente identificam estes com países do século XX: Rússia (Meseque = Moscou, Tubal = Tobolske), Irã, Etiópia, Líbia (Pute), Alemanha (Gômer) e Sul da Rússia (Togarma), e dizem que estes países atacarão os modernos israelitas.353 O Novo Testamento, no entanto, interpreta estas referências tipologicamente, vendo estas nações inimigas do Israel do Antigo Testamento como ilustrando todo o mundo pagão, que é hostil para com a Igreja e que perseguirá intensamente a Igreja por um breve espaço de tempo antes do Dia do Julgamento (Ap 20.7-10).

Quinto, o intérprete da profecia do Antigo Testamento precisa ter especialmente em mente o foco cristológico da Escritura. Os profetas do Antigo Testamento eram tanto prenunciadores, como proclamadores. Eles eram pregadores da aliança, proclamando a Lei e o Evangelho para seus ouvintes originais. Mesmo suas predições escatológicas não foram dadas para prover pedaços de informação sem relação, nem para satisfazer a curiosidade sobre o futuro, mas para levar seus ouvintes ao arrependimento e fé. Portanto, o intérprete precisa relacionar toda profecia, incluindo profecia escatológica, à aliança, a Lei e Evangelho e, em última análise, a Cristo. O Antigo Testamento não pode ser tratado como uma entidade fechada em si mesma, sendo lido à parte de Cristo e do Novo Testamento. Isto significaria tratar o Antigo Testamento como um livro judeu, não cristão (cf. 2 Co 3.12-16). Insistir, por exemplo, com base em Ezequiel 40-46 que o templo de Jerusalém será reconstruído e que o sistema sacrificial será reinstituído é desconsiderar Cristo, que é o novo Templo (Mt 12.6; Jo 2.19-22; Ap 21.22) e o sacrifício totalmente suficiente (Hebreus 9-10, especialmente 10.18). A aliança mosaica, com seu sistema sacrificial, prefigura a nova aliança em Cristo (Jr 31.31-34; 1 Co 11.25; Hb 8.13). Agora que o antítipo veio, não se pode esperar o reestabelecimento do tipo (Cl 2.16,17; Hb 10.1).

Sexto, o Antigo Testamento prefigurou Cristo e Sua Igreja como o Novo Israel. Cristo é o Novo Israel, Israel reduzido a um. Ele recapitula e cumpre a história de Israel do Antigo Testamento, obedecendo a Deus perfeitamente onde Israel desobedeceu (Os 11.1; Mt 2.15; Dt 6.13,16; 8.2,3; Mt 4.1-11). “Os descendentes de

352LaRondelle, 8.353Hal Lindsay, The Late Great Planet Earth (Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1970), 59-71. Entretanto, estas identificações não são acuradas historicamente. Meseque e Tubal, por exemplo, estavam localizadas na Anatólia central e oriental. Ver Edwin M. Yamauchi, Foes from the Northern Frontier (Grand Rapids: Baker Book House, 1982).

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Abraão falharam e o fardo de Israel em sua inteireza veio para Jesus, a quem Deus designou como Seu Israel, chamando-o do Egito, colocando sobre Ele os fardos do mundo e ressuscitando-o para a vida”.354 Cristo é a semente prometida de Abraão, em quem todas as nações da terra são abençoadas (Gn 12.3,7; Gl 3.8,14-16).355

Visto que Cristo é o Novo Israel, todos os que nele crêem também se tornam o Novo Israel, descendentes de Abraão (Gl 3.29; 6.16; Rm 9.6-8,24-26; 4.16,17; Efésios 2; 1 Pe 2.9,10). Cristo começou a reconstituir Israel ao restaurar o remanescente fiel dos judeus (Mt 10.6; 15.24; Lc 24.47; At 1.8; 2.5-42; 3.25,26). Então Sua missão foi para os gentios, assim que também eles pudessem ser incorporados ao povo de Deus (Rm 11.17-24; Atos 10; 13.46-48; 15.14-18; Gl 3.14,27-29; Ef 2.11-22). Portanto a Igreja cristã é Israel restaurado, o herdeiro da promessa feita a Abraão (Gl 3.29).

O que foi dito nos parágrafos acima pode ser visualizado na seguinte maneira:

CRISTO

REMANESCENTE NOVO REMANESCENTE

ISRAEL IGREJA

HUMANIDADE HUMANIDADE

Este diagrama ilustra o plano de Deus de trazer a criação caída para um relacionamento apropriado com Ele. Sua maneira de fazer isto envolveu um estreitamento, desde Abraão e todos os seus descendentes (Gn 12.1-3) ao remanescente pós-exílico (Ag 2.2; Zc 8.6; Ed 1-2), e daí até Cristo, o Israel reduzido a um. A partir de Cristo, o relacionamento se ampliou, através do remanescente fiel dos judeus até toda a Igreja de judeus e gentios crentes. A Igreja, no entanto, não é um fim em si mesma, mas recebeu a missão de fazer discípulos de todas as nações (Mt 28.19,20).

Dever-se-iam ler as promessas proféticas de restauração de Israel (tais como Ezequiel 37; Os 1.8-11; Mq 4.1-5.9; Sf 3.11-20; Is 11.10-16; 60-61) à luz do exposto acima. Assim, apesar que estas promessas foram parcialmente cumpridas no retorno do cativeiro babilônico em 538 a.C., o cumprimento vem em Cristo, o Novo Israel, e, conseqüentemente, em Sua Igreja. O profeta Amós prevê que a dinastia davídica será reconstruída para incorporar o remanescente de Edom e de todas as nações (Am 9.11,12). De acordo com o apóstolo Tiago, esta profecia foi cumprida quando, através da pregação do evangelho, Deus chamou dentre os gentios um “povo para o Seu nome”(At 15.13-18). É, portanto, contrário à Escritura ensinar como doutrina bíblica a opinião de que o

354David P. Scaer. “Lutheran Viewpoints on the Challenge of Fundamentalism: Eschatology”, Concordia Journal 10 (Janeiro 1984): 10.355Os dispensacionalistas freqüentemente aplicam Gn 12.3 para a nação judaica de hoje, mais do que para Cristo. A implicação é que os Estados Unidos devem ser pró-Israel, para que não sejam amaldiçoados por Deus. A Oxford NIV Scofield Study Bible, em Gn 12.3, afirma: “Invariavelmente os povos que perseguiram Israel se saíram mal, e se saíram bem aqueles que o protegeram ... O futuro provará ainda mais notavelmente este princípio” (p. 18). Mais propriamente, à luz de Cristo, que é a semente de Abraão, este versículo deve ser entendido como mostrando que todo o que bendizer a Cristo será abençoado; e todo o que amaldiçoar a Cristo será amaldiçoado (cf. Mt 12.30; Gl 3.16).

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cumprimento das promessas da restauração de Israel se deram no estabelecimento do estado secular de Israel moderno em 1948 e/ou na tomada da velha Jerusalém pelos judeus em 1967.

Ligado a isso, uma diferença importante entre o Israel do Antigo Testamento e o Novo Israel deve ser notada. O Israel do Antigo Testamento era tanto Igreja como Estado, tanto uma assembléia espiritual de crentes como uma entidade política. Muitas das promessas do Antigo Testamento refletem este contexto teocrático de Israel do Antigo Testamento. O Novo Israel, no entanto, não é um Estado secular, nem mesmo em parte. Os aspectos políticos da existência de Israel no Antigo Testamento deixaram de existir no cumprimento. Isaías 9.7 profetiza que o Messias edificará Seu reino no trono de Davi (cf. 2 Sm 7.16; Sl 132.11,12). As palavras de Isaías foram cumpridas na ascensão do Messias crucificado e ressurreto e na Sua ida para a mão direita de Deus onde Ele agora graciosamente governa o Israel restaurado. Elas não serão cumpridas em algum “milênio” futuro, quando Cristo, de acordo com as predições milenistas, governaria na Jerusalém moderna (At 2.30-36; 13.32-37; 15.13-18; 28.26-28; Lc 1.32; 1 Co 15.25-27; Ef 1.20-23; Rm 15.12). Novamente, Is 19.23-25 profetiza que o Egito e a Assíria se unirão a Israel como povo de Deus. A inclusão de gentios crentes no Novo Israel, e não a Assíria e o Egito como tais (At 15.14,17; Gl 3.28; Rm 15.8-12), marca o cumprimento de Isaías 19.

Isto não quer dizer que o Antigo Testamento em toda a parte retrate o Messias e Seu reino dentro de uma moldura de referência política. Muitas das promessas messiânicas do Antigo Testamento não foram formuladas em termos políticos. Isaías 52.13-53.12 retrata um servo sofredor cuja missão é “justificar a muitos” carregando suas iniquidades como um sacrifício substitutivo. Ele traz salvação às nações (Is 49.6; 42.6,7). Da mesma forma o “um como o Filho do homem” vindo nas nuvens, em Dn 7.13,14, não é um rei terreno, político. De fato, o reino que Ele estabelece está claramente em contraste ao reinar temporal (cf. Dn 2.44). Em nenhum lugar o Novo Israel, sobre o qual o Messias governa, é representado como uma entidade secular, política. De fato, Jesus explicitamente rejeita a noção de que Seu ofício messiânico poderia ser concebido em termos políticos (Jo 18.36,37; cf. Lc 24.44-47).

A distinção entre o reino messiânico como uma realidade espiritual e o governo civil como uma realidade temporal, política, é mantida nos escritos confessionais luteranos. A Confissão de Augsburgo ensina que “toda autoridade no mundo e todos os governos e leis ordenados são ordenações boas” e, portanto, são uma forma de vida exterior e temporal (CA XVI, 1,4). O Evangelho, no entanto, ensina "uma interior e eterna vida e justiça do coração" (CA XVI, 4). “O reino de Cristo é espiritual, isto é, no coração o conhecimento de Deus, o temor de Deus e a fé, a justiça eterna e a principiante vida eterna” (Ap XVI, 2). Assim, “o Evangelho não traz leis sobre ordenação civil”, embora ele nos ordene que “obedeçamos às leis atuais” (Ap XVI, 6,3). Como um pressuposto hermenêutico esta distinção entre o governo civil e o reino de Cristo serve para prevenir uma interpretação política daqueles textos que falam do reino espiritual de Deus. Uma tal interpretação política, no entanto, não é incomum na abordagem feita pela interpretação milenista.

Sétimo, a terra de Israel prefigura Cristo e, em última análise, os novos céus e nova terra. Assim como o Novo Testamento transcende os aspectos étnicos e políticos de Israel, assim ele também transcende as limitações geográficas da Terra Prometida.

Para entender este ponto, é preciso notar a importância teológica da terra de Israel. No Antigo Testamento, a terra de Israel ou Palestina era como um mundo em miniatura no qual Deus ilustrava Seu reinar. A terra de Israel foi prometida como o lugar (Dt 4.21,38) onde Deus abençoaria Seu povo, os filhos de Israel (Dt 26.15; 28.8) e lhes daria descanso (Dt 12.9,10; 25.19). Entretanto, no Novo Testamento Cristo é o herdeiro da promessa dada a Abraão e é aquele através de quem (Gl 3.15-18; Hb 1.2; 6.19,20; Cl 1.27; Tt 2.13) o Novo Israel recebe as bênçãos de Deus (Rm 15.29) e verdadeiro descanso (Mt 11.28,29). LaRondelle afirma em relação a isto:

Onde quer que Cristo esteja, ali é o lugar santo. Esta é a essência da aplicação neotestamentária ao território santo de Israel. O Novo Testamento coloca a santidade de Jesus Cristo em substituição à santidade da antiga Jerusalém. Ele “cristifica” a santidade do antigo território e assim transcende suas limitações. Isso não deve ser considerado como uma rejeição, por parte do Novo Testamento, à promessa do território de Israel, mas como seu cumprimento e confirmação em Cristo.356

Desde que aqueles que tem comunhão com Cristo possuem vida eterna, pode-se dizer que a Terra Prometida de Israel prenunciava, em última análise, a Terra Prometida, os novos Céus e nova Terra (Is 65.17; 66.22; 2 Pe 3.13; Ap 21.1-3). Os crentes aguardam o usufruir pleno de sua nova herança (Ap 21.1,7; Ef 1.13,14; Cl 1.12; 1 Pe 1.3-5), quando Deus abençoará a Igreja com descanso eterno, um descanso que já é nosso através da fé em Cristo (Hb 3.1; 4.1,8-10).

356LaRondelle, 142.

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Considere como o Novo Testamento trata da promessa de Deus para Abraão sobre a terra de Canaã (Gn 12.1,7; 15.18-21; 17.8). Tanto Rm 4.13 como Hb 11.8-16 interpretam esta promessa como uma referência ao novo “mundo” e ao país “celestial” (cf. Hb 2.5). O próprio Jesus ampliou o alcance deste território para abranger a nova terra (cf. Mt 5.5; Sl 37.11). A terra da Palestina, onde Israel viveu, era, por assim dizer, a primeira prestação ou o penhor deste mundo futuro. Portanto, apesar de que as promessas dos profetas de que Israel habitaria na terra foram parcialmente cumpridas no retorno de Israel do exílio babilônico, o cumprimento final destas promessas vem em Cristo e na nova terra, não em um retorno literal dos judeus para a terra da Palestina.

B. A Doutrina da Escatologia357

Para uma avaliação das posições milenistas sobre os tempos do fim, é útil fazer uso de uma distinção entre o que alguns teólogos têm chamado de escatologia inaugurada e escatologia futura.358 A expressão escatologia inaugurada abrange tudo o que as Escrituras do Antigo e Novo Testamentos ensinam sobre a posse e gozo presentes do crente das bênçãos que serão plenamente experimentadas quando Cristo retornar. Escatologia futura focaliza os eventos que ainda estão no futuro, tais como a ressurreição, julgamento e os novos céus e nova terra.

1. Escatologia Inaugurada

Através de todo o Antigo Testamento há uma confiança orientada para o futuro. A fé do crente do Antigo Testamento era totalmente escatológica. Como diz o escritor aos Hebreus, “todos estes morreram na fé, sem ter obtido as promessas, vendo-as, porém, de longe, e saudando-as” (11.13). A perspectiva escatológica do Antigo Testamento pode ser resumida sob os sete pontos seguintes:359

a. Os crentes do Antigo Testamento aguardavam um Redentor futuro. De Gn 3.15 em diante o Antigo Testamento aponta para a frente, para o Redentor prometido. Ele seria o ponto culminante e o cumprimento dos ofícios de profeta (Dt 18.15), de sacerdote (Sl 110.4) e de rei (Zc 9.9), o “servo” cujo sofrimento expia os pecados da humanidade (Is 52.13-53.12) e o glorioso “um como o Filho do homem” a quem é dado “domínio, glória e reino” eternos (Dn 7.13,14).

b. Os escritores do Antigo Testamento aguardavam o reino de Deus360 escatológico, quando o reinar de Deus se tornaria uma realidade experimentada completamente não apenas por Israel, mas pelo mundo, seja em julgamento, seja em salvação (Sl 93; 95-99; Dn 2.44,45; 7; Is 24-27; Ob 21).

c. O Antigo Testamento antecipa a nova aliança que trará o perdão dos pecados e se constituirá no cumprimento das alianças de Deus no passado com Abraão, Israel e Davi (Jr 31.31-34).

d. A restauração de Israel é um elemento central da expectativa escatológica no período do Antigo Testamento. Os profetas aguardavam o dia em que Deus iria restaurar Seu povo arrependido, crente e purificado (Ez 36; Is 35; 54-55; 61).

e. O derramamento do Espírito era outro objeto da esperança escatológica possuída pelo povo de Deus no Antigo Testamento (Jl 2.28,29; Ez 36.27; 39.29; Is 32.15; 44.3).

f. Os profetas esperavam o dia do Senhor, que traria a ira de Deus sobre os ímpios, mas salvação para os crentes (Is 13.6-16; Sf 1; 3.9-20; Jl 2.32; Ob 15-21; Ml 4).

g. O Antigo Testamento aguarda os novos Céus e a nova Terra. Assim como a Terra é amaldiçoada como um resultado da queda (Gn 3.17,18), ela também deverá tomar parte do ato final de redenção de Deus (Is 11.6-9; 32.15; 35.1-7; 65.17; 66.22).

357Para um tratamento mais detalhado do material desta seção, ver Anthony A. Hoekema, The Bible and the Future (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1979). Nossa discussão segue o excelente tratamento que Hoekema dá àquelas doutrinas que são afetadas por posições milenistas.358Ibid., 1. Escatologia inaugurada deve ser distinguida de “escatologia realizada”, a teoria de C. H. Dodd de que o eschaton final veio em Cristo. De acordo com esta última posição, não haverá eventos futuros. O reino veio e com ele a realização escatológica.359Ibid., 4-12.360O reino de Deus pode ser definido como a prometida atividade de Deus de governar sobre e entre o povo, trazendo julgamento e misericórdia. “Os profetas anunciaram de antemão que este reino verdadeiro, mas oculto, tornar-se-ia um dia manifesto e universal; Deus revelaria final e definitivamente Sua mão, para levar toda a história ao seu fim, para triunfar sobre todos os que recusaram Sua misericórdia real e para trazer de volta para Si o Seu povo reunido dentre todas as nações”. W. R. Roehrs e M. H. Franzmann, Concordia Self-Study Commentary (St. Louis: Concordia Publishing House, 1979), 16, sob Mt 3.2.

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Com o primeiro advento de Cristo, estas esperanças escatológicas do Antigo Testamento se cumpriram. Jesus de Nazaré é o longamente esperado Messias, que derrotou Satanás, o pecado e a morte (Mt 12.22-29; Jo 12.31; Cl 2.11-15; Hb 2.14,15; 1 Co 15.55-57; 1 Jo 3.8). Em Sua vida, morte e ressurreição, o reino de Deus escatológico apareceu na história (Mt 12.28; Lc 1.32,33,68-75; 11.20; 17.20,21; Cl 1.13,14; Ap 1.6; Rm 14.17). O Novo Israel (Gl 3.29; 6.16; Rm 9.6-8) recebe o perdão dos pecados e todas as bênçãos da nova aliança em Cristo (1 Co 11.25; Hb 8-10). O prometido derramamento do Espírito já veio em Cristo (At 2; 8.14-17; 10.44-48; 19.1-7; Ef 1.13,14; Tt 3.5,6; 1 Co 6.19). O grande Dia do Senhor chegou em Cristo (Lc 19.44; Mt 3.1-12; 2 Co 6.1,2). E aqueles que estão em Cristo já participam da nova criação; eles são, na verdade, “uma nova criação” (2 Co 5.17). O eschaton já foi inaugurado; “os fins dos séculos têm chegado” (1 Co 10.11). Através do Evangelho e dos Sacramentos o cristão recebe desde agora, pela fé, as bênçãos escatológicas prometidas por Deus (Hb 6.5; 1 Pe 2.2,3; Rm 8.37-39; 6.1-11).

Assim, o cristão vive agora na era do cumprimento, nos últimos dias (At 2.17; 3.20,21; Hb 1.1,2; 9.26; 1 Jo 2.18; 1 Pe 1.20). O Novo Testamento declara que a era messiânica, prometida no Antigo Testamento, veio no primeiro advento de Cristo. O Messias prometido está agora reinando graciosamente no trono de Davi, através do Evangelho e dos Sacramentos, os meios através dos quais estende Seu convite gracioso (Mt 22.1-14). A era messiânica, que o Novo Testamento declara ser uma realidade presente, não pode, portanto, ser vista como apenas algo do futuro.361

E, todavia, os cristãos ainda aguardam a consumação destas promessas divinas. Eles aguardam a segunda vinda do Messias, quando o reino de Deus se manifestará plenamente (Mt 7.21-23; 8.11,12; 25.31-46; Lc 21.31; 22.29,30; 1 Co 6.9; 15.50; 2 Tm 4.18). Os cristãos aguardam ansiosamente a consumação da nova aliança, quando conhecerão perfeitamente o Senhor e não mais pecarão (Jr 31.31-34). Eles aguardam o dia em que todo o Novo Israel, cristãos vivos e mortos, será reunido para estar para sempre com o Senhor (Mt 19.28; 24.30,31; 25.31-34; 1 Ts 4.13-18). A dádiva do Espírito Santo, que foi derramado sobre cada um deles em seu batismo, é a primeira parcela e a garantia de sua herança de glória futura e da recepção de seu corpo espiritual (Ef 1.14; 4.30; 2 Co 5.5; Rm 8.23). E os cristãos esperam fielmente pelo futuro Dia do Senhor, quando habitarão com Ele para sempre nos novos Céus e nova Terra (2 Pe 3.10-13; 1 Ts 5.1-11).

Assim sendo, os cristãos vivem na proverbial tensão entre o já e o ainda não. Esta tensão está na base de tudo o que a Escritura ensina sobre escatologia. Por um lado, o fim chegou em Cristo. O crente recebe agora as bênçãos escatológicas prometidas através do Evangelho e dos Sacramentos. Por outro lado, a consumação ainda é uma realidade futura. O cristão ainda não entrou na glória do céu.

A vida dos cristãos nesta tensão é uma vida sob a cruz (Mt 16.24,25); as bênçãos escatológicas que os cristãos têm são deles pelo crer, não pelo ver (Rm 8.24,25). Daí que os crentes podem esperar sofrerem e serem perseguidos nesta vida. Mas a vida abundante que Jesus veio lhes dar, capacita-os a levantarem dos sofrimentos e, em meio ao seu sofrimento ajuda-os a colocarem o foco na consumação futura (Lc 6.22,23,26; 1 Ts 3.4; 1 Pe 5.10; Jo 16.33; At 14.22; Cl 3.1-4; Rm 8.18-25). Apenas no último dia os cristãos passarão da vida sob a cruz para a vida na glória.

2. Escatologia Futura

Quando as Escrituras falam dos eventos futuros dos tempos do fim elas o fazem apontando simultaneamente para o que tem sido chamado grande ato escatológico do passado.362 Desde que Cristo venceu a vitória decisiva sobre Satanás, o pecado e a morte no passado, os eventos escatológicos futuros são apenas o clímax do que já foi colocado em ação por este evento central da história humana. Com isto em mente passamos agora a olhar em detalhe para aqueles aspectos da “escatologia futura” que são cruciais para uma interpretação apropriada dos tempos do fim.

a. Os Sinais do Fim

A Escritura revela numerosos sinais que apontam para o retorno de Cristo (especialmente em Mt 24; Mc 13; Lc 21 e 2 Ts 2). Antes de considerar estes sinais, é importante entender seu propósito.

Primeiro, os sinais do fim não são apenas eventos que acontecerão no futuro. A Igreja em qualquer geração pode esperar testemunhar sua ocorrência. Guerras, fome, terremotos e forças anti-cristãs já estavam presentes no primeiro século A.D., e continuam hoje. Mesmo a promessa de Jesus de que o evangelho será 361A Oxford NIV Scofield Study Bible assume a posição que “Cristo não está agora sentado no Seu próprio trono. A aliança davídica ... e as promessas de Deus através dos profetas ... com respeito ao reino messiânico aguardam cumprimento. É ainda num dia futuro que Deus dará ao Seu Filho, uma vez coroado com espinhos pelos homens, a coroa de Seu pai, Davi” (p. 1318, sob Ap 3.21).362Hoekema, The Bible and the Future, 77, afirma: “O maior evento escatológico na história não está no futuro, mas no passado”.

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pregado em todo o mundo pode ser considerada cumprida já nos dias dos apóstolos (Mt 24.14; Rm 1.8; 10.18; Cl 1.23). Para sermos exatos, estes sinais tornar-se-ão mais evidentes e intensos imediatamente antes do retorno de Cristo, mas todas as gerações estavam e estarão agindo responsavelmente esperando a volta de Cristo em seu próprio tempo de vida. Vigilância precisa caracterizar a postura constante da Igreja, e não preguiça ou apatia criadas pela noção errada de que o retorno de Cristo deve estar longe no futuro (Mt 24.33,42-44; Lc 21.28; 1 Ts 5.6).

Segundo, os sinais do fim não pretendem dar aos cristãos meios para que calculem o tempo exato da segunda vinda de Cristo.363 Na verdade, o Novo Testamento adverte contra tais esforços de fixar a data (Mt 24.36; Mc 13.32; 1 Ts 5.1-3; 2 Pe 3.10). Os sinais do fim, apresentados na Escritura, asseguram ao cristão que Cristo certamente voltará.

Terceiro, o observar dos sinais tem um significado positivo para a vida hoje. Eles servem como lembrança do chamado de Deus à vigilância, vida santa e serviço a Cristo (Mt 25; Rm 13.11-14; 2 Ts 2-3; Tg 5.7-11; 2 Pe 3.11-18).

Finalmente, os sinais do fim não pertencem necessariamente à categoria do extraordinário e espetacular. As exortações para serem vigilantes, dadas por Jesus aos apóstolos, pressupõem que os sinais serão uma parte do curso ordinário da história (eventos não incomuns, como guerras, terremotos, fome, apostasia e a proclamação mundial do Evangelho) e, portanto, tal discernimento é necessário. Tal discernimento também é requerido, naturalmente, no caso do extraordinário; falsos “sinais e prodígios” são, de fato, possíveis (2 Ts 2.9; Mt 24.24).

Procedemos agora na discussão dos sinais individuais. O esboço sobre os “sinais dos tempos” proposto por Anthony Hoekema é uma boa maneira de apresentar o que as Escrituras ensinam sobre os eventos que terão lugar antes da vinda de Cristo. O agrupamento feito por Hoekema (com pequenas revisões) é como segue:364

1. O sinal evidenciando a graça de Deus: a proclamação doEvangelho às nações.

2. Os sinais indicando julgamento divino:a. guerrasb. terremotosc. fome e pestilênciad. sinais nos céus

3. Os sinais indicando oposição a Deus:a. tribulaçãob. apostasiac. Anticristo

O sinal mais importante do fim é a pregação missionária do Evangelho às nações (Mt 24.14; Mc 13.10). Ela dá à era presente seu propósito e significado primário (Mt 28.18-20). O período entre os dois adventos de Cristo é proeminentemente a era missionária, o tempo em que Deus graciosamente chama a todos os povos para serem salvos, um tempo previsto pelos profetas do Antigo Testamento (Is 2.1-4; 42.6,7; 49.6; 52.10; Am 9.11,12). Este sinal significa, portanto, que a Igreja executará um ambicioso programa para atingir ao judeu e ao gentio.365Ao proclamar a Igreja o Evangelho às nações, nada prevalecerá contra ela, nem mesmo as portas do inferno (Mt 16.16-19; Ap 7.3; 11.3-6; 20.1-6). Entretanto, precisamos admitir humildemente que somente Deus sabe quando este sinal terá sido completamente cumprido.

O próximo grupo de sinais - guerras, terremotos, fome, peste e sinais nos céus - indica julgamento divino (Is 19.2; 2 Cr 15.6; Mt 24.6-8; Mc 13.7,8; Lc 21.9-11,25,26; Jl 2.30,31). Isto não significa, obviamente, que as pessoas que sofrem tais desastres são necessariamente o alvo especial da ira de Deus (cf. Lc 13.1-5). Mas acontecimentos desta natureza servem para lembrar o fato de que o presente mundo caído está sob a ira de Deus (Gn 3.17; Rm 8.19-22). São manifestações da ira de Deus e assinalam a necessidade de que todos os pecadores se arrependam (Lc 13.3,5; Ap 9.20,21; 16.9). Os cristãos, no entanto, são também encorajados a considerarem estes sinais como as “primeiras dores” de um mundo novo e melhor (Rm 8.22; Mt 24.8; Ap 21.1-4) e receberem conforto no fato de que Deus promete protegê-los e preservá-los no meio deste sofrimento (Ap 3.10; 7.3,4).

363Por exemplo, William Miller, fundador do movimento que produziu o Adventismo do Sétimo Dia, concluiu que o retorno de Cristo ocorreria entre 21 de Março de 1843 e 21 de Março de 1844. Mais recentemente, Edgar Whisenant recebeu a atenção nacional dos meios de comunicação por calcular o retorno de Cristo para Setembro de 1988, e então revisar seus cálculos para uma aparição de Cristo em 1989.364Ver Hoekema, The Bible and the Future, 137.365O Novo Testamento claramente ensina que a Igreja deve continuar a evangelizar os judeus (Rm 1.16; 11.11-24,28-32; Mt 10.23; Gl 4.4,5; 1 Co 9.19-23).

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O terceiro grupo de sinais indica oposição a Deus e ao Seu reino: tribulação, apostasia e o Anticristo. Assim como os outros sinais, estes sinais de tribulação se aplicam a todo o período entre as duas vindas de Cristo. Assim como o Israel do Antigo Testamento experimentou sofrimento e angústia através de sua história, a Igreja não pode esperar menos. Jesus viu problemas à frente para Seu povo (Mt 5.10-12; Jo 15.18-20; 16.33). Por causa da contínua oposição do mundo ao reino de Deus, os cristãos podem esperar perseguição em várias formas durante esta era e são chamados a suportar em fé até o fim (Mt 24.9; Mc 13.9-13; Lc 21.12-19).

Entretanto, a Escritura também ensina que a tribulação para a Igreja se intensificará perto do fim. O Antigo Testamento prediz perseguição intensificada contra o povo de Deus perto do fim (Dn 12.1; Ez 38-39; Zc 14.1,2). Jesus fala de uma “grande tribulação, como desde o princípio do mundo até agora não tem havido, e nem haverá jamais” (Mt 24.21), imediatamente depois do que Ele voltará (Mt 24.29-31; cf. Mc 13.14-27; Lc 21.20-28). Quando Jesus aponta para o “abominável da desolação”366 em Mt 25.15, Ele provavelmente se refere à blasfema profanação e à destruição do templo em 70 A.D., que por sua vez tipifica o Anticristo, que se levanta na Igreja (cf. Lc 21.20; 2 Ts 2). Com “perspectiva profética abreviada” (ver nota 13), Jesus assim coloca numa mesma figura tanto a destruição de Jerusalém como a perseguição final intensificada contra a Igreja. Claramente esta perseguição não está limitada a Jerusalém ou à nação judaica, mas é diretamente contra toda a Igreja, já que em Mt 24.22 Jesus diz que aqueles dias serão abreviados “por causa dos eleitos”. Além disso, Jesus endereça Seu discurso aos Seus discípulos como representantes da Igreja.

O Apocalipse de João também descreve esta perseguição final à Igreja, embora numa linguagem simbólica (9.13-19; 11.7-10; 16.12-16; 19.19; 20.7-9). Este é o “pouco tempo” de Satanás, quando ele reúne o mundo anticristão numa tentativa de destruir a Igreja e impedí-la de pregar livremente o Evangelho às nações (Ap 20.7-9; Ez 38-39). O assalto final de Satanás é simbolicamente chamado de batalha de Armagedom, a transliteração grega do hebraico har megiddo - o “monte de Megido”, uma expressão que pode estar aludindo às famosas batalhas que aconteceram naquele local, no Antigo Testamento. Mas tendo em vista a natureza da linguagem apocalíptica, estes versículos não devem ser interpretados literalmente como se eles se referissem a uma guerra mundial no Oriente Médio. Nem se deve entender que esta tribulação durará três e meio, ou sete anos, já que os números em Daniel e Apocalipse são também simbólicos. Não se pode computar exatamente quando o “pequeno tempo” de Satanás começou ou começará. No entanto, visto que a oposição à Igreja cristã está muito espalhada em nossos dias, há toda razão para crer que já estamos neste período de tempo.

O propósito do sinal da tribulação é também de exortar os cristãos a “erguer as vossas cabeças, porque a vossa redenção se aproxima” (Lc 21.28; cf. Mt 24.33; Mc 13.29). A tribulação é também um meio de Deus purificar Sua Igreja e “provar” o cristão (1 Pe 1.6,7; 4.12; Zc 13.9; Dn 12.10). O julgamento que alcança a Igreja é o último preliminar do Dia do Julgamento (1 Pe 4.17) e, como tal, “alerta os membros da Igreja que procurar escapar do sofrimento renunciando a fé é uma insensatez fatal; escaparão do sofrimento presente apenas para encontrar evidente condenação”.367

Um outro sinal do fim que indica oposição a Deus é o sinal da apostasia. As apostasias na era do Novo Testamento foram prenunciadas no Antigo Testamento. O Antigo Testamento registra uma história de apostasia crescente que levou à destruição final tanto do reino do norte, como do sul. A história da Igreja cristã também é marcada por uma apostasia contínua através do período entre os dois adventos de Cristo (Mt 24.10-12; Hb 6.6; 10.29; 2 Pe 2.20-22; 1 Jo 2.19; Gl 6.12,13).

Entretanto, o Novo Testamento também prediz uma apostasia ou rebelião final. Jesus fala de falsos cristos e falsos profetas, enganando a muitos (Mt 24.24; Mc 13.22). O apóstolo Paulo ensina que o segundo advento de Cristo não virá “sem que primeiro venha a apostasia, e seja revelado o homem da iniqüidade” (2 Ts 2.3). Visto que este sinal é chamado de queda ou apostasia e que o “homem da iniqüidade” toma seu lugar na Igreja visível (isto é, “o templo de Deus”, v. 4), podemos assumir que aqueles que caem da fé estarão associados à Igreja cristã. A apostasia final e culminante, assim como o sinal da tribulação, será uma intensificação e clímax da rebelião que já iniciou nos dias de Paulo (2 Ts 2.7).

Finalmente, a oposição a Deus é marcada pelo sinal do Anticristo. O termo Anticristo é encontrado nas Epístolas de João (1 Jo 2.18,22; 4.3; 2 Jo 7) e significa tanto um Cristo substituto (o grego anti significa “em lugar de”), como um oponente de Cristo.

O Novo Testamento diz que a Igreja em sua história testemunhará muitos anticristos (Mt 24.5,23,24; Mc 13.6,21,22; Lc 21.8; 1 Jo 2.18,22; 4.3; 2 Jo 7). Todos os falsos mestres, que ensinam contrariamente à palavra de Cristo, são oponentes de Cristo e, enquanto agem assim, são anti-Cristo.

Entretanto, as Escrituras também ensinam que há um “Anticristo” culminante (Dn 7.8,11,20,21,24,25; 11.36-45; 2 Ts 2; 1 Jo 2.18; 4.3; Ap 17-18). Na opinião da maior parte dos exegetas, este Anticristo foi

366Esta expressão é citada de Dn 8.13 e 11.31. A maior parte dos exegetas conclui que Daniel está se referindo a Antíoco Epifânio, que levantou um altar pagão no templo em 167 a.C. Este “abominável da desolação” foi, pois, um tipo do altar erigido em 70 A.D. e, em última análise, um tipo do Anticristo. A intenção da frase semelhante em Dn 9.27 é disputada. Ver sob Dn 9.24-27.367Franzmann, Concordia Self-Study Commentary, 265, sob 1 Pe 4.17.

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prefigurado por Antíoco Epifânio, que profanou o templo de Jerusalém dedicando-o a Zeus, retirando o holocausto contínuo e colocando um altar pagão no alto do altar de holocaustos, em 167-164 a.C (cf. Dn 8.9-13,23-25; 11.21-35). Ele também foi prefigurado, assim se afirma, pelos exércitos romanos que adoravam o imperador, que profanaram (“abominável da desolação”) e destruíram o templo de Jerusalém em 70 A.D. (Mt 24.15; Mc 13.14; Lc 21.20). Pode-se esperar que a contrapartida satânica do Anticristo ao reino de Deus se intensificará perto do fim. As Escrituras revelam as seguintes marcas distintivas do Anticristo:

1) Assim como Antíoco Epifânio profanou o templo, assim o Anticristo toma seu lugar no “templo de Deus”, isto é, a Igreja cristã (cf. 2 Ts 2.4; 2 Co 6.16; Ef 2.21; 1 Tm 3.15).

2. Ele não é o próprio Satanás, mas opera “segundo a eficácia de Satanás” (2 Ts 2.9).3. Ele se atribui poder divino e se exibe como se fosse Deus (Dn 7.25; 11.36; 2 Ts 2.4).4. Ele é um pseudo-cristo, uma perversão satânica de Cristo. Ele tem uma “vinda” para

imitar a “vinda” de Cristo (2 Ts 2.8,9). Realiza “sinais e prodígios” (2 Ts 2.9) para imitar Cristo, que foi “aprovado por Deus ... com milagres, prodígios e sinais” (At 2.22). Ele representa o “mistério da iniqüidade” (2 Ts 2.7), para imitar o “mistério de Cristo” (Ef 3.4; Cl 4.3) e traz o “engano de injustiça”, e “operação do erro” para imitar e opor a verdade do Evangelho (2 Ts 2.10-12). Assim ele nega a Cristo e persegue os cristãos (1 Jo 2.22; 4.3; 2 Jo 7; Dn 7.25).

5. Ele permanece até o dia do julgamento, quando Cristo o destruirá (Dn 7.13,14,26; 2 Ts 2.8).

Quando Paulo escreveu aos Tessalonicenses, ele viu um obstáculo colocado sobre o “homem da iniqüidade”, que seria removido antes que este “homem da iniqüidade” fosse revelado. Paulo se referiu a este obstáculo como uma coisa (“o que o detém”, 2 Ts 2.6) e como uma pessoa (“aquele que agora o detém”, 2.7). Não sabemos o que ou quem ele tinha em mente. Talvez se referisse ao império e imperador romanos, cujo benigno poder de lei e ordem permitia que o Evangelho se propagasse e fosse glorificado (3.1). Não há como ter certeza.368

De qualquer maneira, a obra do Anticristo está sob o controle soberano de Deus. Martin Franzmann conclui corretamente: “Não há um equilíbrio de poder entre o satânico e o divino; o homem da iniqüidade precisa, involuntária e relutantemente, servir os propósitos de Deus. Através dele, Deus executa Seu julgamento, o terrível julgamento que entrega os homens que não amam a verdade para a mentira que desejam. Apenas se tornam vítimas da mentira poderosa aqueles que ‘detém a verdade’ (Rm 1.18) e assim invocam a ira de Deus”.369 Assim, os cristãos são conclamados a “permanecerem firmes” na fé diante daquele que vem “segundo a eficácia de Satanás” (2 Ts 2.9,15).

Com respeito à identificação histórica do Anticristo, afirmamos a identificação feita pelas Confissões Luteranas, do Anticristo com o ofício do papado, cujas reivindicações oficiais continuam a corresponder às marcas escriturísticas listadas acima.370 É importante, no entanto, que observemos a distinção que as Confissões Luteranas fazem entre o ofício do papa (papado) e os homens individuais que preenchem aquele ofício. Estes podem até mesmo ser cristãos. Não pretendemos julgar o coração de nenhuma pessoa. Igualmente reconhecemos a possibilidade de que a forma histórica do Anticristo possa mudar.371 Evidentemente, neste caso surgiria outra forma identificada por aquelas marcas.

b. O Segundo Advento de Cristo

368Dispensacionalistas normalmente identificam o obstaculador com o Espírito Santo e o obstáculo com a Igreja, que seriam “arrebatados” antes da “tribulação”. Então o Anticristo apareceria e operaria por sete anos. Entretanto, a idéia de que o Espírito Santo e a Igreja serão removidos antes da “tribulação” não tem base bíblica, como já mostramos.369Franzmann, Concordia Self-Study Commentary, 213, em 2 Ts 2.370Ap XV, 18; Tratado 39-59; FC DS X, 21,22; AE II, iv; ver o “Brief Statement of the Doctrinal Position of the Missouri Synod”, parágrafos 20,21,43; também John W. Behnken, “Papacy as Anti-Christ”, The Lutheran Layman (Dezembro 1955); e Paul Raabe, “Necessary Distinctions Regarding the Papacy”, Concordia Journal 14 (Janeiro 1988): 3. Também vale atentar para as “Theses of Agreement” (Teses de Entendimento) australianas (1966), que contêm uma seção com “Teses sobre Questões Escatológicas” (p. 14-18).371Até o ponto em que o papado continua a proclamar como dogma oficial os cânones e decretos do Concílio de Trento, que expressamente anatematizam, por exemplo, a doutrina “de que fé justificante nada mais é do que confiança na misericórdia divina, que perdoa os pecados por causa de Cristo, e que é somente através desta fé que somos justificados”, continua valendo o julgamento dos escritos confessionais luteranos de que o papado é o Anticristo. Ao mesmo tempo, precisamos reconhecer a possibilidade, sob a direção de Deus, de que discussões e declarações contemporâneas (por exemplo, a declaração do diálogo Luterano-Católico, nos EUA, em 1983, sobre “Justificação pela Fé”) podem levar a uma revisão da posição Católico Romana do dogma tridentino.

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As Escrituras do Novo Testamento ensinam que um dia Cristo retornará visivelmente em glória. Elas se referem à Sua segunda vinda usando diversos termos: “vinda” ou “presença” (parousia), “aparição” (epiphaneia; phaneroo), “revelação” (apokalypsis) e “o dia do Senhor” (he hemera tou Kyriou). Um estudo dos textos onde estes termos aparecem revela que o segundo advento de Cristo é um evento ao final da história. As Escrituras ensinam o seguinte a respeito da segunda e derradeira vinda de Cristo:

1. Cristo virá visivelmente e todos os povos o verão (At 1.11; Mt 24.27,30; Lc 17.22-24; 21.27,35; Mc 13.24-26; 14.62; Ap 1.7).

2. Cristo voltará em glória na companhia das hostes de Seus anjos (Mt 13.39-43,49; 16.27; 24.30,31; 25.31; 2 Ts 1.7; Ap 19.11-14; Tt 2.13; Jd 14,24; 1 Pe 4.13; Zc 14.3).

3. Quando Cristo voltar, uma ressurreição corporal de todos os mortos acontecerá. Crentes ressuscitarão para a salvação e descrentes para a condenação (Jo 5.27-29; 6.39,40,44,54; Ap 20.11-15; 1 Co 15.12-57; Dn 12.1,2). Todos os crentes, vivos e mortos, serão “arrebatados” para “o encontro do Senhor nos ares” (1 Ts 4.13-17). A morte será destruída (1 Co 15.26,54-57; Ap 20.14).

4. Quando Cristo retornar, Ele julgará todas as pessoas, vivos e mortos (Mt 25.31-46; Jo 5.27; At 10.42; 17.31; Rm 2.16; 2 Tm 4.1,8; Jd 14,15; Ap 20.11-15). Os crentes receberão salvação eterna e os descrentes, eterna condenação (Mt 25.31-46; 1 Pe 1.4,5,7; 5.4; 1 Jo 3.2; Hb 9.28; 2 Co 5.10; 2 Ts 1.6-10). Satanás e o Anticristo serão destruídos (2 Ts 2.8; Ap 20.10).

5. Quando Cristo retornar, serão criados “os novos Céus e a nova Terra” (2 Pe 3.10-13). Em nenhum lugar, no entanto, as Escrituras ensinam que na Sua volta Cristo estabelecerá um reino político, ou “milênio” neste mundo.

A data do segundo advento de Cristo não é conhecida. O próprio Jesus ensinou: “Mas a respeito daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos dos céus, nem o Filho, senão somente o Pai” (Mt 24.36; cf. Mt 24.42,44; 25.13; 1 Ts 5; 2 Pe 3). Os tempos e épocas fixados pela autoridade do Pai “não vos compete conhecer” (At 1.7). Portanto, é proibida a especulação quanto ao tempo do fim. Isto pode ser dito: o fato de que Deus retardou o fato por quase dois milênios até agora é devido à Sua paciência e misericórdia, pois “Não retarda o Senhor a Sua promessa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, Ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento” (2 Pe 3.9).

O ensino Escriturístico sobre o segundo advento de Cristo tem um propósito muito prático. Deus quer que todos venham a crer no Evangelho, levar uma vida santa em serviço a Cristo e ansiosamente esperar o último dia, com paciência (Rm 13.12-14; Tt 2.11-13; 1 Pe 1.13-15; 2 Pe 3.11,12; 1 Jo 3.2,3; 1 Tm 6.14; Mt 25.14-30).

c. A Ressurreição (Geral)

Uma ressurreição geral do corpo é verdade central da escatologia bíblica.372 As Escrituras ensinam claramente que o Deus Triúno373 ressuscitará corporalmente todos os mortos na segunda vinda de Cristo, dará vida eterna aos crentes e entregará os descrentes à eterna condenação.

Jesus ensinou: “Não vos maravilheis disto, porque vem a hora em que todos os que se acham nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão: os que tiverem feito o bem, para a ressurreição da vida; e os que tiverem praticado o mal, para a ressurreição do juízo” (Jo 5.28,29; cf. Dn 12.2;374 At 24.15). Em Ap 20 o apóstolo João fala da única ressurreição geral, quando escreve: “Deu o mar os mortos que nele estavam. A morte e o além entregaram os mortos que neles havia. E foram julgados, um por um, segundo as suas obras” (20.13). Esta ressurreição “geral” acontecerá no segundo advento de Cristo, isto é, no “último dia” (Jo 5.28,29; 6.39,40,54; 1 Ts 4.16; Fp 3.20,21; 1 Co 15.23). A posição pré-milenista, de que haverá duas, três ou mais ressurreições corporais separadas por períodos de tempo, simplesmente não pode ser sustentada com base no que as Escrituras ensinam sobre a ressurreição dos mortos.

Excurso sobre a Ressurreição do Corpo

A Escritura ensina que o que do homem está na tumba (i.e., seu corpo), isto ressuscitará. A identidade entre o corpo ressurreto com o corpo da vida terrena de alguém está implícita no termo ressurreição. Assim

372Ver A Statement on Death, Resurrection, and Immortality , um relatório da Comissão de Teologia e Relações Eclesiais (CTCR) da LC-MS, de 1969.373Esta obra é atribuída ao Pai (Jo 5.21; 1 Co 6.14; 2 Co 4.14), ao Filho (Jo 5.27-29; Fp 3.20,21) e ao Espírito Santo (Rm 8.11).374“Muitos”, em Dn 12.2, é a forma hebraica de dizer “todos”.

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como o Jesus ressurreto era a mesma pessoa que o Jesus crucificado e assim foi reconhecido pelos Seus discípulos, assim também os mortos ressuscitados serão as mesmas pessoas que viveram anteriormente na terra. Uma continuidade existe entre o corpo natural e o corpo ressuscitado daquele que ressuscitou.

Entretanto, há também uma descontinuidade entre o corpo natural e o corpo ressuscitado dos crentes. Assim como o corpo ressurreto de Jesus era um “corpo glorioso”, assim também o “corpo de humilhação” do cristão será transformado para ser semelhante ao corpo glorioso de Jesus (Fp 3.21). Esta transformação do corpo do cristão é necessária porque “carne e sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a incorrupção” (1 Co 15.50). Devido à queda da humanidade em pecado, o corpo natural está agora sujeito aos efeitos da queda (tais como: o pecado, fraqueza, doença, envelhecimento e morte), uma situação que chegará ao fim na ressurreição.

A discussão de Paulo em 1 Co 15 é o comentário mais completo dado na Bíblia sobre o corpo ressuscitado do cristão. O apóstolo apresenta seis contrastes neste capítulo:

1. O que é semeado corruptível ressuscita incorruptível. Já não mais será sujeito a doença ou decadência.

2. O que é semeado em desonra ressuscita em glória. Já não mais terá a desonra de ser sepultado, mas será glorificado, radiante e brilhante como o corpo glorificado de Cristo (cfr. Fp 3.21).

3. O que é semeado em fraqueza ressuscita em poder. As fraquezas que fazem as pessoas cansar e precisar descanso não mais os envolverão.

4. O que é semeado corpo natural ressuscita corpo espiritual. Ele não mais funcionará conforme seus instintos naturais, mas viverá completamente sobre o poder e direção do Espírito Santo.375

5. A natureza mortal será vestida de imortalidade (v. 53,54). Não estará mais sujeita à morte.

6. O corpo do cristão, que agora carrega “a imagem do que é terreno” terá então a imagem de Cristo (v. 49; cf. Rm 8.29; Cl 3.10).

Naturalmente, a Escritura não satisfaz toda a nossa curiosidade sobre a ressurreição (1 Jo 3.2). Ela nos conta, no entanto, que o cristão será glorioso e perfeito como Cristo, tanto no corpo como na alma, e não mais estará sujeito aos efeitos da queda.

Cristãos ressurretos serão “como anjos”, no que “não se casam, nem se dão em casamento” (Mt 22.30; Lc 20.35,36). Entretanto, a similaridade não deve ser estendida para incluir incorporeidade ou perda de identidade como macho e fêmea. Nem devemos crer que certas funções corporais naturais serão ainda necessárias na vida por vir (cf. 1 Co 6.13).

A ressurreição de Cristo é tanto a causa como a garantia da ressurreição dos cristãos. Sua ressurreição é “as primícias” da colheita final, garantindo que aqueles que estão nele também irão ressuscitar dentre os mortos (1 Co 15.20; Cl 1.18; Rm 8.29). Através do Batismo, o cristão já ressuscitou para a vida e está, assim, assegurado da ressurreição corpórea final (Rm 6.5,11,13; Cl 2.12; 3.1-4). O habitar do Espírito Santo, que foi dado no Batismo, é o penhor que assegura a ressurreição futura do cristão (Rm 8.11,23; 2 Co 1.22; 5.5; Ef 1.13,14). Da mesma forma, o corpo e o sangue de Cristo na Ceia do Senhor são uma antecipação das bênçãos escatológicas futuras (Mt 26.29; 1 Co 11.26).

d. O Arrebatamento

A palavra “arrebatamento” é uma tradução de um termo grego, em 1 Ts 4.17, que significa “ser tomado”. Refere-se ao evento descrito em 1 Ts 4.13-18, ou seja, de que todos os cristãos, tanto mortos como vivos, serão tomados pelo Senhor para encontrarem-se com Ele nos ares em Seu segundo advento. Paulo menciona o “arrebatamento” em resposta a um problema específico na Igreja de Tessalônica. Os Tessalonicenses lamentavam pela morte de alguns membros da Igreja porque temiam que estes mortos estariam excluídos da salvação futura associada com o segundo advento de Cristo (1 Ts 4.13).

Paulo corrige a visão destorcida dos Tessalonicenses sobre o fim, informando-os que “os mortos em Cristo viverão” e que, na verdade, precederão os vivos em serem arrebatados nos ares para encontrarem com Jesus. Assim sendo, os dois grupos de crentes - os mortos, que ressuscitarão e os cristãos vivos, que serão

375O contraste aqui não é entre material e não material, mas entre o corpo natural em sua existência amaldiçoada pelo pecado e o corpo sobrenatural, vivificado pelo Espírito Santo (cf. 1 Co 2.14,15; 10.3,4). Ver Eduard Schweitzer, “Pneuma, Pneumatikos”, Theological Dictionary of the New Testament (TDNT), traduzido e editado por Geoffrey W. Bromiley (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Company., 1964), 6:421.

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transformados (1 Co 15.51,52) - estarão “para sempre com o Senhor” (1 Ts 4.17; 5.10). O propósito do “arrebatamento” que Paulo descreve em 1 Ts 4.17 é evidente, a partir da linguagem que ele emprega neste versículo. A palavra traduzida por “encontro” é um termo técnico usado no tempo do Novo Testamento para descrever uma recepção pública dada por uma cidade a um visitante ilustre. Os principais cidadãos da cidade normalmente deixariam a cidade para “encontrarem-se” com o distinto visitante e então acompanhá-lo para dentro da cidade (cf. At 28.15). Paulo parece estar dizendo, portanto, que os cristãos irão se encontrar com o Senhor nos ares para acompanhá-lo em honra para a Terra para o Julgamento. Os cristãos estarão incluídos em Sua gloriosa companhia de anjos enquanto Ele desce para a terra.

Mas quando acontecerá o “arrebatamento”? (Ver o Diagrama no Apêndice I) Todos os milenistas crêem que ocorrerá antes do governo de “1000 anos” de Cristo sobre a terra. Pré-milenistas dispensacionalistas crêem que ocorrerá ou no início da tribulação dos “sete anos” (i.e., um arrebatamento “pré-tribulação”) ou após os primeiros três anos e meio da tribulação (i.e., um arrebatamento “mesotribulacional”). Eles crêem que os “santos arrebatados” irão então para o céu com Jesus e permanecerão lá por sete anos ou por três anos e meio, depois do que descerão para a terra, para o milênio. Pré-milenistas históricos crêem que ocorrerá no final da tribulação (i.e., arrebatamento “pós-tribulacional”), mas antes do milênio. À luz das claras passagens da Escritura sobre o assunto, é difícil ver como uma abordagem assim especulativa pode ser defendida seriamente. O “arrebatamento” descrito por Paulo ocorrerá na segunda vinda de Cristo, depois da “tribulação” (i.e., no fim da história), quando acontecerá a ressurreição e o dia do julgamento para todos. O último dia virá “como um ladrão à noite”, trazendo destruição para os descrentes, mas salvação para os crentes (1 Ts 5.1-10). O “arrebatamento” acontecerá após a aparição e obra do Anticristo (2 Ts 2.3). Cristo reunirá Seus eleitos ao final do tempo da tribulação (Mt 24.29-31). Nesta hora Ele julgará todos os povos (Mt 25.31-36). Quando os crentes são ressuscitados, a morte é destruída (1 Co 15.26,51-57). Esta destruição da morte ocorrerá após o assim chamado “milênio” (Ap 20.11-15). Isto indica que o “arrebatamento” ocorrerá depois dos simbólicos 1000 anos de Apocalipse 20.

e. O Julgamento Final

As Escrituras ensinam que haverá um dia do julgamento final, que acontecerá no segundo advento de Cristo, no final da história humana (Mt 13.40-43; 25.31,32; 2 Pe 3.7; 2 Ts 1.7-10; Sf 1; Is 24-27). Este último dia é mencionado como “o dia do julgamento” (Mt 11.22), “aquele dia” (Mt 7.22; 2 Ts 1.10; 2 Tm 4.8; Is 24-27; Sf 1), e o “dia da ira” (Rm 2.5; Sf 1.15). Não há nada nestes textos que suporte a posição pré-milenista de que haverá dois, três ou mais julgamentos separados por períodos de tempo, ou um longo processo de julgamento.

O julgamento final do mundo foi confiado pelo Pai ao Filho. Ele foi nomeado o Juiz final (Rm 14.10; Jo 5.22; At 17.31; cf. 2 Co 5.10; 2 Tm 4.1,8; At 10.42; Rm 2.16; Mt 25.31,32; Ap 19.15). 376 Que Cristo será o Juiz é boa notícia, já que Ele é o que morreu e ressuscitou pela salvação de todos. Aqueles que estão vestidos com Sua justiça o encontrarão como Salvador, enquanto aqueles que se baseiam em sua própria justiça o encontrarão como o Juiz que os condena.

f. A Nova Criação

Quando Cristo voltar Deus criará novos céus e nova terra (Is 65.17; 66.22; 2 Pe 3.13; Ap 21.1). As Escrituras indicam que entre o mundo presente e o novo mundo existirá uma continuidade e uma descontinuidade, assim como há continuidade e descontinuidade entre o corpo presente e o corpo ressuscitado do cristão.

A nova criação futura envolverá, de certa forma, a criação presente e será o ponto culminante da obra redentora de Cristo.377 Rm 8.19-23 fala da criação esperando com ansioso desejo e gemido, em sofrimento, pelo tempo quando ela será liberta de sua escravidão à ruína. Um dos resultados da queda de Adão é que a terra é amaldiçoada e produz cardos e abrolhos (Gn 3.17,18). Assim como os seres humanos, que voltam ao pó na morte, mas um dia ressuscitarão, assim a própria criação será liberta de sua escravidão: “Mas, a mesma continuidade, que torna o nosso corpo futuro um com nosso corpo atual, liga o novo mundo imaculado de Deus com o mundo que conhecemos, o mundo cuja beleza frustrada ainda nos causa admiração, cujas obras vãs ainda

376Há passagens no Novo Testamento que parecem ensinar que a base para a absolvição no dia do Julgamento serão as obras de justiça. Paulo escreve, por exemplo, em Rm 2.13: “os que praticam a lei hão de ser justificados”. A Apologia da Confissão de Augsburgo ensina que devemos entender passagens como esta no sentido que “são pronunciados justos os homens que têm fé e boas obras. Sim, pois as obras dos santos são justiças e agradam em razão da fé” (Ap IV 252).377J. Behm, s.v. “kainos”, TDNT 3:447-50. A continuidade entre a nova criação e a presente pode bem ser sugerida pelos termos gregos usados para “novo”. A palavra traduzida por “novo” (kainos) em 2 Pe 3.13 e Ap 21.1 normalmente significa novo em natureza ou em qualidade, em contraste com outra palavra grega (neos), que normalmente designa aquilo que é novo em tempo ou origem.

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podem testificar daquele que uma vez disse ‘Muito bom!’ e dirá novamente ‘Muito bom!’ para tudo o que foi feito por Suas mãos”.378 Como foi apontado anteriormente, a terra prometida de Canaã e a cidade de Jerusalém prefiguraram a Terra Prometida e a Jerusalém celeste (cf. Rm 4.13; Hb 3.11-4.11; 11.8-10,13-16; 13.14; Gl 4.26).

As Escrituras descrevem a nova criação em termos semelhantes a estas realidades do Antigo Testamento. Isaías descreve-a como um mundo novo, com vinhas e harmonia perfeita mesmo no reino animal (65.17-25; cf. 11.6-9). Joel e Amós a descrevem como uma terra rica, que destila vinho e leite (Jl 3.18; Am 9.13,14). Ezequiel a retrata como uma terra vivificada com água viva (47.1-12). João fala dela em termos de um novo jardim do Éden (Ap 22.1-4) e como uma nova Jerusalém, feita de preciosas pérolas (Ap 21.10-27; cf. Is 52.1; Ez 40-48). Todas estas descrições são, obviamente, escritas em linguagem poética e figurada, cujos detalhes não deveriam ser interpretados de uma forma literal. Entretanto, a discussão de Paulo em Romanos 8 deixa claro que a nova criação será, de um certa forma, semelhante à presente criação. O cristão não deve se sentir embaraçado pela descrição aparentemente “terrena” feita pela Escritura, nem deve tentar transcender sua descrição com base na razão humana ou numa “espiritualização” que despreza o fato de sermos criaturas.

Todavia, existirá também um elemento de descontinuidade entre o mundo que conhecemos e o mundo futuro. Os presentes céus e terra “passarão” (Mt 5.18; 24.35; Mc 13.31; Lc 16.17; 21.33; Ap 20.11; 21.1). Eles envelhecerão e serão enrolados como um manto (Hb 1.10-12; Sl 102.26-28) e estão sendo agora reservados para o fogo (2 Pe 3.7). Os corpos celestes (sol, lua, estrelas) serão dissolvidos pelo fogo (2 Pe 3.10). Os céus serão enrolados como um pergaminho (Is 34.4; Ap 6.14). As montanhas e as ilhas serão removidas (Ap 6.14; 16.20). A terra ficará desolada e será consumida (Sf 1.18). “A terra e as obras que nela existem serão atingidas” (2 Pe 3.10).

A nova criação consiste numa nova ordem de coisas. O dia será contínuo, sem noite, nem sol, nem lua, já que Deus e o Cordeiro serão a luz e a lâmpada (Ap 21.23; 22.5; Zc 14.6,7; Is 60.19-20). Ordenações da ordem da criação, tais como o casamento e o governo cessarão (Mt 22.30; Mc 12.25; Lc 20.34,35; 1 Co 6.1-11).

Finalmente, os céus e terra serão unidos em harmonia, como o lugar da presença de Deus. Este é o ponto de Ap 3.12 e 21.2,3, que descreve a Jerusalém celeste descendo. Então os seres humanos estarão em perfeito relacionamento com Deus, vendo-o como Ele é (1 Jo 3.2).

g. Condenação Eterna

Os descrentes sofrerão, tanto no corpo como na alma, a eterna separação e condenação no inferno (Mt 18.8; 25.46; Mc 9.43; Jo 3.36; 2 Ts 1.9; Jd 13; Ap 14.11).379 Tormento indescritível será conscientemente experimentado, sendo que o grau será determinado pela natureza dos pecados a serem punidos (Mt 11.20-24; 23.15; Lc 12.47,48).

O inferno é retratado como um lugar, de local não designado, de fogo inextinguível, onde as pessoas irão chorar e ranger os dentes (Mt 5.22; 13.41,42; 18.8,9; 25.30; Mc 9.43; Lc 16.23,24; Ap 14.10,11). É um lugar de profundas trevas (Mt 8.12; 25.30; 2 Pe 2.17; Jd 13), um lago que queima com fogo e enxofre (Ap 21.8), e um lugar onde os homens beberão o cálice da ira de Deus, uma metáfora usada comumente no Antigo Testamento (Ob 16; Sl 11.6; 75.8; Is 51.17,22; Ap 14.10; 16.19).380 Condenação eterna consiste numa exclusão permanente da comunhão com Deus (Mt 8.12; 25.41; 2 Ts 1.9), um estado no qual toda a força da ira de Deus será experimentada (Rm 2.5,8). Os descrentes já estão neste estado de condenação, que será plenamente manifesto no segundo advento de Cristo (Jo 3.18,36; Rm 1.18). “Uma coisa é certa: o inferno não tem ateus, pois os condenados experimentam realmente Deus como o justo Juiz”.381

A causa da condenação eterna é a recusa do homem de crer na obra expiatória de Cristo (Jo 3.18,36). Onde o perdão em Cristo não é recebido, o pecador é condenado (Ez 18.20; Gl 5.19-21; Ef 5.6; 1 Co 6.9,10; Ap 21.8; 22.15). Este ensino da Escritura é a forma mais vigorosa possível de Lei e pretende levar o pecador ao arrependimento, alertá-lo contra a descrença e segurança carnal, de modo que a pessoa possa ser salva. Visto que os cristãos são ainda pecadores, esta ameaça da Lei deve ser pregada também entre eles. Ela não deve ser enfraquecida pela sua substituição por outras idéias baseadas na razão humana, tais como a aniquilação dos

378Martin H. Franzmann, A Carta aos Romanos, traduzido por Mario L. Rehfeldt e Gládis K. Rehfeldt (Porto Alegre: Casa Publicadora Concórdia, 1972), 123.379A Escritura usa o mesmo adjetivo para “eterno” (aionion) para referir-se tanto à punição quanto à vida (Mt 25.46).380Algumas passagens usam o verbo apollymi (“destruir”), que na voz média significa “estar perdido” ou “perecer” (apollymai). A palavra se refere à perdição eterna, uma perdição que consiste de perda sem fim da comunhão com Deus, não aniquilação. A. Oepke, s.v. “apollymi”, TDNT, 1:394-97.381Francis Pieper, Christian Dogmatics (St. Louis: Concordia Publishing House, 1953), 3:546.

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ímpios, a possibilidade de um purgatório após a morte, universalismo ou a possibilidade da conversão dos vivos que não foram “arrebatados”.382

h. Vida Eterna

Em “corpo e alma” e em alegria eterna os crentes verão a Deus como Ele é - o que é a essência da vida eterna (1 Jo 3.2). Para sermos exatos, o crente já “tem a vida eterna” (Jo 3.36) e assim está num relacionamento correto com Deus através da fé em Cristo. Todavia nesta vida o crente conhece a Deus apenas através de Sua Palavra, isto é, mediatamente. Quando Cristo voltar, então Deus será conhecido perfeitamente e será visto face a face (1 Co 13.8-12; 1 Jo 3.2; Ap 22.4). A esperança da vida eterna brota da fé no evangelho do Deus da esperança (Rm 15.13).

A vida eterna é descrita nas Escrituras como um estado de bem-aventurança sem fim. Isto significa, por um lado, que os cristãos viverão para sempre em perfeita liberdade do pecado, da morte e de todo o mal (Is 25.8; 49.10; 1 Co 15.26,55-57; Ap 2.7,11; 20.14; 21.4). Ao mesmo tempo experimentarão a alegria sem fim de estarem com Deus nos novos céus e nova terra (Ap 21; 22; Sl 16.11). Estará afastada para sempre a possibilidade de se afastarem de Deus. Esta bem-aventurança trará consigo a alegria de se estar em eterna comunhão com os outros crentes, a quem, temos razão de crer, iremos reconhecer (Mt 17.3). E não haverá limitações ou graus no que tange ao desfrutar da alegria a ser experimentada, embora haverá graus de glória correspondentes às diferenças no trabalho e fidelidade aqui na terra, produzindo louvor a Deus, mas não inveja (ver 2 Co 9.6; Mt 20.23).

Somente a graça imerecida de Deus em Cristo, não aos obras ou mesmo a fé do crente em si, é a causa da vida eterna (Ef 2.8,9). Apenas aqueles que nesta vida crêem em Cristo e na Sua obra salvífica tornam-se recipientes e possuidores da dádiva da vida. Todas as formas de justiça das obras precisam ser declaradas contrárias ao Evangelho escriturístico da graça imerecida de Deus.

O que as Escrituras revelam sobre a vida eterna pretende servir como um incentivo para as pessoas crerem no Evangelho (Jo 20.31), assim como também perseverarem na fé no meio de provações e perseguição (Mt 5.12; Rm 8.37-39; 13.11-14; 2 Tm 1.12; Hb 13.13-16; 1 Pe 1.6-9; 2 Pe 3.13,14; Ap 2.10). A Igreja também é motivada para desempenhar a grande comissão com determinação (Mt 28.18-20). A doutrina cristã da escatologia deve ser sempre ensinada e enfatizada na Igreja com esta preocupação prática em mente.

C. Textos Controversos: Romanos 11.25-27 e Apocalipse 20

Um levantamento da literatura moderna que tenta apresentar a base bíblica para uma escatologia milenista indica que certos textos são básicos para este sistema de pensamento. De fato, muitas vezes estes textos, por mais difíceis que sejam para o leitor moderno, são usados como um artifício interpretativo para introduzir em outros textos significados que nunca foram pretendidos pelos autores bíblicos. Pelo fato de serem tão centrais na doutrina milenista, Rm 11.25-27 e Ap 20 estão entre aqueles que merecem ser separados por um comentário mais prolongado. (Ver Apêndice II para uma discussão de outras passagens controversas)

1. Romanos 11.25-27

Entre os estudiosos do Novo Testamento existem diferentes opiniões com respeito à interpretação precisa destes versículos, especialmente do significado da frase “e todo o Israel será salvo” (v. 26). Aqueles que sustentam uma escatologia milenista encontram suporte para algum tipo de conversão em massa dos judeus antes do dia do julgamento. Outros rejeitam esta visão com base em que ela reduz, grande ou até inteiramente, o conceito paulino de “Israel”, que é uma realidade espiritual, a um fenômeno político. As várias interpretações deste texto geralmente caem em uma das quatro seguintes categorias:

1. Toda a nação de Israel, incluindo cada judeu individual, será convertida no futuro.383

2. A nação judaica como um todo, mas não necessariamente cada judeu individual, será convertida no futuro ou no segundo advento de Cristo.384

382Os Adventistas do Sétimo Dia e os Testemunhas de Jeová ensinam a aniquilação; o Catolicismo Romano, o purgatório; a Associação Universalista Unitária, a salvação universal; e o pré-milenismo, a conversão pós-arrebatamento.383H. A. W. Meyer, The Epistle to the Romans (New York: Funk & Wagnalls Company, 1884).384Esta é a interpretação mais comumente defendida hoje. Dentro desta posição há, no entanto, algumas variações: (a) Dispensacionalistas ensinam que após o arrebatamento a nação judaica será convertida, seja imediatamente antes ou no próprio momento do retorno de Cristo para estabelecer o milênio [John F. Walvoord, The Millenial Kingdom (Grand Rapids: Zondervan, 1988)]. (b) Outros estudiosos, pré-milenistas, mas não dispensacionalistas, esperam uma salvação futura em massa da nação judaica como um todo [George Eldon Ladd, Theology of the New Testament (Grand Rapids:

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3. Todos os eleitos dentre os judeus serão salvos durante a história.385

4. Todos os eleitos, tanto judeus como gentios, serão salvos durante a história.386

As duas primeiras posições se colocam em conflito com a linha básica de argumentação de Paulo em Romanos 9-11. O apóstolo começa a discussão com a afirmação que nem todos os judeus por raça podem ser chamados “Israel”, mas apenas aqueles que crêem na promessa - que foi cumprida em Cristo (cf. 2.28,29; 9.6-8,27; Gl 3.7). Paulo diz que os judeus, “se não permanecerem na incredulidade”, serão salvos (11.23) e estão realmente sendo salvos “agora” (11.31).387 O apóstolo reconhece que nem todos os judeus serão salvos (9.27; 11.14). Ele não iria contradizer-se em 11.26 ensinando que todos os judeus ou a nação judaica como tal ou como um todo seria salva no futuro ou no segundo advento de Cristo.

A terceira interpretação merece a atenção pelas seguintes razões, propostas por W. Hendriksen e A. Hoekema. Eles argumentam que Paulo usa o termo Israel nos capítulos 9 a 11 de Romanos (incluindo 11.26) para referir-se aos judeus, distinguindo-os dos gentios. Entretanto, eles entendem todo o Israel em 11.26 como referindo-se à totalidade dos eleitos entre Israel (isto é, os verdadeiros israelitas dentre os judeus - 9.26), não a toda a nação judaica. Eles mantém que Paulo não faz distinção entre o reunir da totalidade do gentios e o reunir de todos os verdadeiros israelitas durante a história. Esta interpretação considera a salvação do número total dos gentios, que está ocorrendo entre a primeira e a segunda vindas de Cristo, como a ação de Deus de enxertar os não judeus em uma oliveira (isto é, “Israel”). A salvação de todo o Israel é vista como a ação de Deus através da história, entre o chamado de Abraão e a segunda vinda de Cristo, não como uma conversão da nação judaica na segunda vinda de Cristo. “Todo o Israel, portanto, difere do remanescente eleito, de que fala 11.5, mas apenas como a soma total de todos os remanescentes através da história”.388

Pelas razões dadas acima na avaliação das duas primeiras interpretações, entretanto, a quarta opção parece mais provável. O apóstolo coloca claramente que “nem todos os de Israel são de fato israelitas” (9.6). Os “filhos da promessa”, não os “filhos da carne” (a nação Israel), são filhos de Deus (9.8). Se Israel se referisse apenas aos judeus como nação, esta distinção estaria removida. Entretanto, se Israel se refere aos “filhos da promessa”, então a distinção é mantida e o argumento de Paulo em Romanos 9 a 11 continua - ou seja, que os eleitos de Deus, tanto judeus como gentios, serão salvos de acordo com Seu plano na história, que foi revelado no Evangelho (o “mistério”). Os herdeiros da promessa são aqueles que crêem, tanto judeus como gentios (Rm 4). Assim é que em outro lugar o apóstolo pode se referir à Igreja como “o Israel de Deus” (Gl 6.16).

Um exame mais detalhado na discussão de Paulo no capítulo 11 substancia a quarta explicação acima. Em Rm 11 Paulo aborda a questão referente a se Deus rejeitará todos os judeus, não se Ele salvará todos os judeus. Nos versículos 1 a 10 ele responde na negativa. Mesmo nos dias de Paulo há um remanescente de judeus crentes. No restante do capítulo, o apóstolo explica o propósito servido pela descrença da maioria dos judeus. Paradoxalmente, através de sua rejeição do Evangelho, este foi para os gentios (11.11,12,19,25,30). Por outro lado, a salvação dos gentios serve para causar “ciúmes” nos judeus descrentes, isto é, serve para incitá-los a que ouçam o Evangelho e sejam também salvos (10.19; 11.11,13,14,31).

O mistério revelado em 11.25-27 é que “veio endurecimento em parte a Israel, até que haja entrado a plenitude dos gentios. E, assim, todo o Israel será salvo”. A palavra assim significa “desta maneira”, isto é, do jeito descrito imediatamente antes; não significa “então”, como se pretendesse dizer após a totalidade dos gentios terem entrado. Como todo o Israel será salvo? A resposta é dada no v. 25 e é explicada através de todo o capítulo. O endurecimento de parte de Israel permitiu que o Evangelho fosse levado aos gentios e a inclusão dos gentios serve para incitar os judeus descrentes a crerem no Evangelho e assim serem salvos (enxertados em uma única árvore). Este processo continuará até o fim, “até que haja entrado a plenitude dos gentios”. A citação nos vv. 26,27 também sumariza este processo. Cristo veio de Sião (os judeus) para os gentios (cf. Jo 4.22; At 1.8) e Ele perdoará os pecados também dos judeus “se não permanecerem na incredulidade” (11.23). O versículo 26b não se refere ao segundo advento de Cristo, mas ao primeiro.

Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1974)]. (c) Ainda outros, nem dispensacionalistas, nem pré-milenistas, também esperam uma conversão da totalidade da nação judaica no segundo advento de Cristo [C. E. B. Cranfield, The Epistle to the Romans, International Critical Commentary on the New Testament (Edinburgh: T. & T. Clark, 1979)]. Roy A. Harrisville, Romans, Augsburg Commentary on the New Testament [Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1980], 182-87, interpreta o texto dizendo que todo o Israel conforme a carne será salvo, mas que não é claro se isto inclui cada judeu e/ou uma conversão em massa na segunda vinda de Cristo.385William Hendriksen, Israel in Prophecy (Grand Rapids: Baker Book House, 1968); A. Hoekema, The Bible and the Future, ver também a discussão de R. C. H. Lensky sobre Rm 11 em The Interpretation of St. Paul's Epistle to the Romans (Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1961).386Martin H. Franzmann, A Carta aos Romanos, 168-170.387Os melhores manuscritos contém a palavra agora em 11.31b.388A. Hoekema, The Bible and the Future, 145. Para uma explanação mais completa desta interpretação, ver W. Hendriksen, Israel in Prophecy, capítulos 3 e 4.

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Em resumo, “todo o Israel” consiste dos grupos mencionados no v. 25, a parte crente dentre os judeus e a “plenitude dos gentios”. “Todo o Israel” é a oliveira completa, que consiste de ramos naturais (judeus que creram), de ramos selvagens (os gentios que crêem) e os ramos enxertados (os judeus que virão a crer). Eles constituem o “todos” do v. 32.389 “Todo o Israel” é constituído de “todo aquele que invocar o nome do Senhor” (10.13), os eleitos dos judeus e gentios, o “Novo Israel” (Rm 4.11,12,16; 9.24; Gl 3.26-29; 6.15,16).

A posição dispensacionalista de que os judeus serão convertidos após o “arrebatamento” da Igreja coloca uma segunda oportunidade de conversão após o segundo advento de Cristo e é, portanto, contrário ao Evangelho. Além disso, a opinião de que os judeus serão convertidos instantaneamente no segundo advento de Cristo contradiz a ordem da salvação revelada na Escritura, de que o Espírito Santo cria a fé unicamente pelos meios da graça no tempo presente. Também já foi sugerido que os judeus iriam se salvar automaticamente no segundo advento de Cristo sem uma conversão.390 Cada uma destas três posições oferece uma esperança falsa e é perigosa para a salvação das pessoas. Rejeitando todas as promessas vazias e ilusórias, a Igreja precisa fazer todo o esforço para atingir também os judeus com a proclamação da Lei e do Evangelho, como fez o apóstolo Paulo, e fazê-lo sem demora (Rm 11.13,14; 1 Co 9.19,20).

Excurso referente aos Judeus

Os cristãos reconhecem com estima o papel dos judeus391 na história da salvação. “A salvação vem dos judeus” (Jo 4.22) e o Novo Testamento testifica que esta salvação foi realizada através da vida e obra de Jesus de Nazaré, o Cristo nascido da linhagem de Davi. O apóstolo Paulo argumenta que há um sentido no qual os judeus até mesmo ocupam uma posição de privilégio especial, pois “São israelitas. Pertence-lhes a adoção e também a glória, as alianças, a legislação, o culto e as promessas; deles são os patriarcas, e também deles descende o Cristo, segundo a carne” (Rm 9.4,5). De fato, os cristãos gentios não devem se vangloriar, mas agradecer a Deus, porque eles, como “oliveira brava” são enxertados na “boa oliveira” pela graça de Deus (Rm 11.17-24). Assim sendo, o anti-semitismo de qualquer espécie deve ser rejeitado pelos cristãos e, em seu lugar, a atitude da Igreja deve se caracterizar por uma consideração amorosa pelo povo judeu.392 Isto sem contar a gratidão devida aos judeus (por suas contribuições para a civilização e sociedade através da história), assim como compreensão e compaixão (pelas perdas e sofrimentos pelos quais passaram).

Apesar de que pode ser difícil para alguns judeus entenderem, o amor cristão constrange a Igreja a repartir o Evangelho da salvação com eles. Martinho Lutero disse, em seu último sermão, referente à atitude dos cristãos para com o povo judeu: “Queremos tratá-los com amor cristão e orar por eles, de modo que possam ser convertidos e recebam o Senhor”.393 Os cristãos crêem que ainda há uma esperança para os judeus descrentes. “Porque os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis”, Paulo lembra aos seus leitores (Rm 11.29). Deus ainda oferece a eles a salvação através do Evangelho. Portanto a Igreja deve continuar a repartir o Evangelho com eles (Rm 1.16), porque é o único meio pelo qual podem ser salvos (At 4.12).394 Judeus crentes constituem, junto com os gentios, o Novo Israel. Em Cristo não há “judeu nem grego” (Gl 3.28).

Falando do lugar dos judeus na história da salvação, as Escrituras não atribuem um cumprimento político para os textos do Antigo Testamento que tratam do futuro de “Israel”. O moderno Estado de Israel não é o cumprimento de profecia do Antigo Testamento. A posição de um milênio terreno com o templo reconstruído não pode ser substanciada. Dizendo de forma simples, as Escrituras silenciam com respeito a eventos políticos

389Franzmann, A Carta aos Romanos, 172, mostra que Rm 11.17-24,25-27,28-32 são seções paralelas. Cada seção termina com uma referência a todos os eleitos, tanto judeus como gentios.390Krister Stendahl, Paul among Jews and Gentiles (Philadelphia: Fortress Press, 1976). Ver também L. Gaston, “Paul and the Torah”, in Anti-Semitism and the Foundations of Christianity, ed. A. T. Davies (New York & Toronto: Paulist Press, 1979), 48-71; J. F. Gager, The Origins of Anti-Semitism (New York & Oxford: University Press, 1983).391O Judaísmo originou-se e se desenvolveu no período Intertestamentário. Não se deveria falar de judeus no Antigo Testamento. O povo de Deus no Antigo Testamento deveria ser referido como os israelitas ou judaítas. Nos livros mais recentes, começando por Jeremias, a palavra hebraica é literalmente traduzida “judaíta”, e não “judeu”.392A Lutheran Church - Missouri Synod adotou posição oficial sobre o Anti-Semitismo na sua Convenção de 1983. Ver Resolução 3-09, “To clarify Position on Anti-Semitism” (1983 Convention Proceedings, p. 157).393D. Martin Luthers Werke (Weimar: Hermann Böhlaus Nachfolger, 1914), 51:195. Ver também “That Jesus Christ Was Born a Jew”, in Luther's Works (Philadelphia: Fortress Press, 1962), 45:195-229.394Nos últimos anos alguns teólogos, incluindo luteranos, têm defendido a posição de que o Israel não cristão será salvo no segundo advento de Cristo, à parte da fé em Cristo. Ver Stendahl, Paul among Jews and Gentiles, 4. Stendahl enfatiza que Rm 10.17-11.36 não menciona Jesus Cristo explicitamente. O argumento é que Paulo resignou-se ao fato de que Israel não seria salvo através de Jesus Cristo, visto que a tentativa neste sentido havia falhado (p.132). Apenas um ato milagroso de Deus poderia realizar aquela salvação. Assim, há dois meios distintos de salvação, de acordo com esta posição (“A Visão das Duas Alianças”): os gentios são justificados por graça através da fé em Cristo; os judeus não cristãos serão salvos com base em sua fé na aliança do Antigo Testamento.

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modernos no Oriente Médio e a qualquer direito dos judeus quanto àquela terra. Julgamentos com respeito a tais assuntos não são, pois, questões teológicas.

2. Apocalipse 20395

O livro de Apocalipse foi escrito por João, que estava exilado na ilha de Patmos por causa de perseguição (1.9), provavelmente durante o reinado do imperador romano Domiciano, por volta de 95 A.D. O propósito do livro é fortalecer as Igrejas na Ásia Menor, em suas provações, assegurá-las de sua vitória em Cristo, que é Senhor sobre todos os poderes do mal, que agora assaltam o mundo, e aumentar nelas a verdadeira esperança em Cristo, que voltará em glória para eles.

O livro é escrito em linguagem apocalíptica e, portanto, como mencionado anteriormente, não pode ser interpretado literalmente. Algumas vezes João dá a interpretação dos elementos simbólicos de uma visão (por exemplo, 1.20). Em outras ocasiões, ele não o faz. Normalmente os símbolos usados pelo apóstolo são derivados do Antigo Testamento, de modo que é preciso que se esteja a par de seu pano de fundo do Antigo Testamento, para entender sua intenção. Em geral dever-se-ia seguir o princípio que o Apocalipse deve ser interpretado à luz de outras partes, claras e não figuradas, da Escritura, e não o contrário.

O reconhecimento do caráter repetitivo dos capítulos 6 a 20 tem um peso significativo para a interpretação de certos textos-chave. A profecia de João compreende as coisas que acontecerão desde a ascensão de Cristo (capítulo 5) até Seu segundo advento. Sua profecia está estruturada a partir de ciclos que se repetem e que são paralelos uns aos outros. Cada ciclo descreve o mesmo período de tempo, da ascensão de Cristo até Seu segundo advento, mas com ênfases diferentes. Estes ciclos consistem de três visões terrenas (sete selos - 6.1-8.5; sete trombetas - 8.6-11.19; sete flagelos - 15.1-16.21) e duas visões cósmicas (12.1-14.20; 20.1-15). Que o Apocalipse tem este caráter recapitulativo pode ser visto do fato que o fim da história é descrito cinco vezes, com aspectos centrais repetidos:

- 6.12-17 - o sexto selo: terremoto, todas as montanhas e ilhas são removidas; o grande dia da ira chegou.- 11.15-19 - a sétima trombeta: a ira veio; tempo do julgamento dos mortos; relâmpagos, vozes, trovões, terremoto, granizo.- 14.14-20 - a ceifa final: a ira de Deus. - 16.17-21 - o sétimo flagelo: “Feito está!”; relâmpagos, barulhos, trovões, terremoto; a ira de Deus; todas as ilhas e montanhas fugiram.- 20.11-15 - granizo, o julgamento a partir do grande trono branco; a terra e o céu fogem; os mortos são julgados.

A organização da revelação de João esboçada aqui tem implicações importantes para o entendimento do capítulo 20. O capítulo 20 é paralelo a 12.1-14.20, sendo que ambos começam com a derrota e fim de Satanás, com o dia do julgamento. O capítulo 20 resume a história desde o primeiro advento de Cristo até o segundo, mas nada diz sobre o templo, povo e terra judaicos. Ap 20.1-3 diz, de fato, que Satanás é amarrado por 1000 anos em um abismo. Se permitimos que partes não figuradas da Escritura nos ajudem a interpretar esta passagem, notamos que este amarrar aconteceu na vida terrena, morte, ressurreição e ascensão de Cristo. Satanás foi expulso, julgado e vencido no primeiro advento de Cristo (Jo 12.31; 16.11; 1 Jo 3.8; Lc 10.18; Hb 2.14). A referência ao “amarrar” Satanás (deo) ocorre apenas em Mt 12.24-29 e Mc 3.22-27, onde se refere ao primeiro advento de Cristo (cf. Lc 11.15-22). Este “amarrar” de Satanás é paralelo a Ap 12.7-13, onde ele é expulso do céu e não lhe é mais permitido acusar os santos, como ele fizera no tempo do Antigo Testamento (Zc 3; Jó 1-2).

O texto também diz que ele está amarrado, no sentido de que “não mais enganasse as nações” (20.3). Ele não é mais capaz de enganar as nações e impedí-las de ouvirem o Evangelho, como era o caso em geral no tempo do Antigo Testamento (cf. At 14.16; Mt 16.18). Ele ainda é “um leão que ruge procurando alguém para devorar” (1 Pe 5.8), mas não pode impedir o Evangelho de ir até os confins da terra (Mt 24.14).

Como é geralmente verdade na literatura apocalíptica, os números são simbólicos, representando

conceitos (por exemplo, Ap 5.6). O número 1000 representa algo completo (103). Ele indica o período completo de tempo para a Igreja realizar sua missão mundial, não 1000 anos literais de um reino de Cristo na terra.

Em Ap 20.4-6 João menciona a “primeira ressurreição”. Novamente o restante da Escritura nos auxilia na definição desta expressão. Sem dúvida, a referência é para a conversão, isto é, o ressuscitar com Cristo no Batismo (cf. Rm 6.2-5,11; Cl 2.12,13; Jo 5.24; 11.25,26; 1 Jo 3.14; 5.12; Ap 3.1; Ef 2.1-6). Aqueles que desfrutam desta “ressurreição” não estão mais sob o poder da morte eterna (20.6,14,15). Antes, são “sacerdotes

395Para uma boa introdução ao Apocalipse, ver William Hendriksen, More than Conquerors (Grand Rapids: Baker Book House, 1967).

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de Deus e de Cristo” (20.6; cf. 1.6; 5.10).396 Todos os cristãos, que “não adoraram a besta, nem tampouco a sua imagem” já reinam com Cristo, um reinar que não termina com a morte temporal, nem jamais terminará (20.4; cf. 5.10; 22.5; Rm 5.17; Ef 2.6).

Ap 20.7-10 descreve em linguagem figurada a perseguição intensificada do final contra a Igreja pelo mundo anti-cristão (cf. Dn 12.1; Mt 24.21,22). Satanás será solto por “pouco tempo” para enganar as nações e levá-las em um ataque contra “o acampamento dos santos e a cidade querida”, isto é, a Igreja (20.9; cf. 21.2,9). Esta perseguição final contra a Igreja também é mencionada em outra parte no Apocalipse, geralmente descrita como uma batalha (9.13-19; 16.12-16; 19.19). Armageddon, o “monte de Megido” em Hebraico, é o termo específico usado para esta batalha e, conforme comentado anteriormente, é uma alusão ao local onde batalhas famosas ocorreram no Antigo Testamento (16.16). O termo, no entanto, não se refere a uma guerra nuclear, como alguns têm sugerido, mas a uma perseguição intensificada contra a Igreja. O apóstolo também não entende “Gogue e Magogue” como representações de modernos Estados políticos (20.8). Tirando suas figuras de Ezequiel 38-39, João está se referindo ao inteiro mundo anti-cristão.

Se a Igreja já está ou não no “pequeno tempo” de Satanás é difícil responder. Todavia, pode-se certamente notar que o mundo anticristão está perseguindo a Igreja hoje e que a Igreja não consegue realizar sua missão em várias partes do mundo tão livremente como podia anteriormente. Embora de fato têm havido períodos de perseguição severa no passado, uma intensificação da tensão do fim da história, que se aproxima, bem pode estar sobre nós.

O capítulo 20 termina com um quadro do julgamento final de todos, como em 11.18 e 14.14-20. Aqueles cujos nomes não são encontrados no Livro da Vida são lançados no “lago de fogo” (20.15).

A mensagem de João no capítulo 20 é muito prática para a Igreja. Ele conclama a Igreja a perseverar fielmente em meio a perseguição crescente (cf. 13.10; 14.12), assegurando, ao mesmo tempo, aos cristãos que eles já são mais do que vencedores e que reinam com Cristo pela fé.

III. UMA AVALIAÇÃO DO PRÉ-MILENISMO DISPENSACIONAL

O presente estudo sobre Escatologia e Milenismo enfocou especialmente aspectos básicos da escatologia do pré-milenismo dispensacional. Oferecemos agora uma avaliação resumida desta posição, para o estudo e orientação dos membros do Sínodo, à medida em que se defrontam com questões concernentes à doutrina milenista. Ao oferecer a seguinte crítica, a Comissão reconhece que há diversos elementos no ensino dispensacional que seriam também afirmados por aqueles que estão comprometidos com a doutrina confessional luterana. Aqueles que ensinam a posição pré-milenista dispensacional geralmente confessam as Escrituras como a Palavra de Deus verbalmente inspirada e inerrante. Sua escatologia enfatiza um retorno visível e pessoal de Cristo. A justificação por graça através da fé em Jesus Cristo é ensinada entre eles. No entanto, o ensino dispensacional contradiz as Escrituras em muitos pontos críticos e, portanto, se constituem em perigo sério para a doutrina pura do Evangelho.397

1. O pré-milenismo dispensacional ensina que o Messias e Seu reino, prometidos no Antigo Testamento, são de natureza essencialmente política. Neste sentido ele defende uma posição que lembra a expectativa messiânica do Judaísmo do primeiro século. A obra expiatória de Cristo na cruz não é central no plano de Deus de acordo com esta posição. Antes, Ele é erroneamente visto como vindo para estabelecer um reino deste mundo e, quando rejeitado, tendo-o postergado.

2. Esta posição considera a era messiânica como sendo unicamente uma realidade futura. Ela tende a trocar o “já” pelo “ainda não”, privando assim o povo das promessas confortadoras do Evangelho no tempo presente. Na verdade, Cristo inaugurou o Reino dos céus em Seu primeiro advento, um reino que é agora nosso pela fé, apesar de ainda estar escondido sob a cruz até sua consumação, no segundo advento de Cristo.

3. O pré-milenismo dispensacional tende a considerar como o centro da teologia a glória de Deus, mais do que a Sua misericórdia, que é revelada - e ainda assim oculta - no sofrimento e morte de Jesus na cruz, pelos pecados do mundo. As manifestações visíveis do poder de Deus no final da história e a obediência à vontade de Deus se tornam o foco primário, ao invés da graça de Deus revelada na cruz de Jesus Cristo (1 Co 2.2) - que o cristão considera e aceita pela fé como o lugar do triunfo definitivo de Deus sobre o pecado e todo o mal (na teologia luterana, a “teologia da cruz”, em oposição à “teologia da glória”).

396Note-se que isto já era verdade para João e seus leitores originais e não algo aguardando cumprimento em um futuro distante (1.6; 5.10).397Ver Theodore Engelder, “Dispensationalism Disparaging the Gospel”, Concordia Theological Monthly 8 (Setembro 1937): 649-66; e Hoekema, The Bible and the Future, 194-222.

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4. O pré-milenismo dispensacional subestima, e até mesmo ignora, a importância da tipologia bíblica. Toda profecia aponta Jesus Cristo como o cumprimento. Ele é o antítipo dos tipos do Antigo Testamento. Quando acontece determinada realidade para a qual o Antigo Testamento aponta, não se pode voltar às “sombras”, tais como o templo do Antigo Testamento (Cl 2.17,17; Hb 10.1).

5. A compartimentalização da Escritura em dispensações distintas negligencia a unidade em Lei/Evangelho do Antigo e Novo Testamentos. Por exemplo, ela faz uma distinção radical entre o período da “lei” mosaica e a era da “graça” da Igreja. O relacionamento entre o Antigo e o Novo Testamentos é o de promessa e cumprimento, não de dispensações distintas.

6. Em última análise, a escatologia do dispensacionalismo oferece uma esperança perigosamente falsa. As visões de um arrebatamento pré-tribulacional ou mesotribulacional oferecem ao cristão a falsa esperança de não participar da perseguição intensificada perto do fim. Além disso, oferecem uma segunda chance de conversão para aqueles que são deixados após o arrebatamento. O foco da esperança na Escritura não é um reino terreno de 1000 anos, mas a eternidade com Cristo.

7. A visão dispensacionalista de uma quebra radical entre Israel e a Igreja contradiz o ensino escriturístico de que a cruz de Cristo eliminou para sempre a distinção entre judeu e gentio (Gl 3.28; Ef 2.11-22; Rm 2.25-29).

8. A Hermenêutica dispensacional do literalismo consistente é contrária aos princípios de interpretação derivados da Escritura (cf. seção um acima).

9. As múltiplas ressurreições e julgamentos do dispensacionalismo são contrários ao claro ensino da Escritura sobre a escatologia (cf. seção dois acima).

10. A segurança e esperança de salvação tendem a serem fundamentadas em uma interpretação dos sinais dos tempos, mais do que na segura Palavra da promessa concedida nos meios da graça.

11. Os sacramentos do Santo Batismo e da Ceia do Senhor, ambos importantes para um entendimento bíblico da escatologia, recebem pouca atenção no ensino dispensacionalista.

CONCLUSÃO

No presente estudo a Comissão de Teologia e Relações Eclesiais procurou avaliar abordagens contemporâneas à escatologia, à luz do que as Escrituras ensinam com respeito aos “tempos do fim” e aos pressupostos interpretativos para uma leitura fiel dos dados bíblicos. É também o desejo da Comissão que este relatório estimule um renovado interesse e estudo sobre o tema da escatologia. Mas, ainda mais importante, a Comissão espera que este relatório leve a uma reavaliação do lugar e importância da escatologia bíblica, não apenas na atividade de pregação e ensino da Igreja, mas também na vida pessoal de fé dos cristãos individuais, enquanto aguardam a “bendita esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus, o qual a Si mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda a iniqüidade, e purificar para Si mesmo um povo exclusivamente Seu, zeloso de boas obras” (Tt 2.13,14).

Tomado em sua totalidade, o ensino escriturístico sobre a escatologia prevenirá os cristãos de sucumbirem a dois extremos opostos que, desde os tempos apostólicos, têm sido uma ameaça constante à fé - de um lado, a preocupação febril com os “sinais dos tempos”; por outro, a frouxidão espiritual, baseada na noção errada de que a vinda de Cristo não é mais iminente. Nenhuma destas distorções da esperança escatológica, que é nossa através de Cristo, toma realmente a sério o significado daquela esperança para a vida no aqui e agora. Típica da articulação neo-testamentária da esperança cristã é a implicação tirada de que agora é o tempo para sermos “firmes e inabaláveis, e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, o vosso trabalho não é vão” (1 Co 15.58). E uma vida assim é para ser vivida com a consciência total de que hora é esta, “porque a nossa salvação está agora mais perto do que quando no princípio cremos” (Rm 13.11). Outra verdade que também é repetidamente ensinada por Cristo e pelos apóstolos é a de que a hora exata da vinda de Cristo permanece oculta no conselho secreto de Deus (Mt 24.36). A Igreja não deve, pois, engajar-se em especulações incertas no que tange aos sinais dos tempos. Antes, os cristãos devem devotar-se à proclamação clara da lei e do Evangelho, assim que as pessoas possam vir à fé em Jesus Cristo e, através de arrependimento diário, prepararem-se para Sua vinda.

ANEXO I

DIAGRAMAS DAS DIFERENTES POSIÇÕES SOBRE O MILÊNIO

A. PRÉ-MILENISMO DISPENSACIONAL

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Era da Igreja

----- Retorno Secreto de Cristo / Ressurreição

dos justos / arrebatamento

----- Tribulação de 7 anos

---- Armagedom ----- Retorno Visível de Cristo / Julgamento

ovelhas e cabritos

------ 1000 anos

----- Pequeno tempo de Satanás

------- Ressurreição dos ímpios / Julgamento

do Trono Branco

------- Novos céus e nova terra

B. PRÉ-MILENISMO HISTÓRICO

Era da Igreja

----- Segunda Vinda de Cristo / Ressurreição dos

justos

----- 1000 anos ---- Pequeno tempo de Satanás

-----

Ressurreição dos ímpios / Julgamento do Trono Branco ------ Novos céus e nova terra

C. PÓS-MILENISMO

Era da Igreja

----- 1000 anos ---- Pequeno tempo de Satanás

---- Ressurreição dos ímpios / Julgamento do Trono Branco

------ Novos céus e nova terra

D. AMILENISMO

Era da Igreja

----- 1000 anos ---- Pequeno tempo de Satanás

---- Segunda Vinda / Ressurreição Universal / “Arrebatamento” /

Julgamento universal

------ Novos céus e nova terra

ANEXO II

REVISÃO EXEGÉTICA DE TEXTOS ADICIONAIS

1. Isaías 11 e 65.17-25

Isaías 11 descreve a era messiânica. O Messias virá da linha davídica caída (v. 1). O Espírito e Suas dádivas repousarão sobre Ele (vv. 2,3). Ele absolverá o fiel, mas matará o perverso (vv. 3-5). Ele introduzirá uma era de harmonia e paz perfeitas (vv. 6-9). Ele recolherá o remanescente fiel de Israel, que foi disperso no oitavo e sexto séculos a.C., e outras nações virão a Ele (vv. 10-12). Israel retornará do cativeiro (vv. 15,16) e será vitorioso sobre seus inimigos (vv. 13,14). Com a “perspectiva profética abreviada” Isaías visualiza tanto o retorno dos exilados em 538 a.C. como o primeiro e segundo adventos de Cristo, com uma ênfase nos dois últimos eventos.

Os escritores do Novo Testamento declaram expressamente que as palavras do capítulo 11 de Isaías foram cumpridas na vinda de Jesus Cristo. Ele é o “Renovo” (no Hebraico: netzer) sobre o qual o Espírito repousa (Mt 2.23; 3.16). Sua vida, morte e ressurreição conduzem à “justificação que dá vida” a todos os homens (Rm 5.18; 3.21-26). Cristo reuniu o remanescente de Israel (At 2; 3.25,26; Rm 11.1-5) e incorporou gentios em Seu povo (Rm 15.8-12). Todavia a promessa ainda aguarda sua consumação no segundo advento de Cristo. Então Ele destruirá o perverso, que rejeita Sua justiça (Ap 19.11,15). Na vinda de Cristo novos céus e nova terra serão criados, nos quais “o lobo habitará com o cordeiro” (Is 11.6).

Isaías 65.17-26 focaliza especialmente esta nova criação que será estabelecida na segunda vinda de Cristo. Na linguagem do Novo Testamento, Deus criará “novos céus e nova terra, nos quais habita justiça” (2 Pe 3.13; Ap 21.1) e uma nova Jerusalém, na qual não mais haverá luto nem pranto (Ap 21.3,4). Numa era

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caracterizada pela longevidade (Is 65.20) os dias do povo de Deus serão como os dias da árvore (v. 22).398 Em uma alusão a Isaías 65, o apóstolo João explica que “a morte já não existirá” (Ap 21.4). O povo de Deus desfrutará plenamente das Suas bênçãos (Is 65.21-23). A criação será restaurada para uma perfeita harmonia (v. 25). Apesar de já agora desfrutarem, pela fé, das bênçãos da nova criação, os crentes esperam pelo dia do Senhor, quando finalmente entrarão no paraíso eterno de Deus.

Pré-milenistas dispensacionais, entretanto, lêem para dentro de Isaías 11 e 65.17-25 o reino de mil anos.399 Eles sustentam que no Seu segundo advento, após a tribulação de sete anos, Cristo governará em Jerusalém por mil anos. Durante este tempo haverá harmonia no reino animal (11.6-9; 65.25); os gentios procurarão a Cristo (11.10); Ele restaurará a nação judaica, que derrotará seus inimigos (11.11-14); as pessoas morrerão, apesar de viverem mais tempo (65.20), plantarão vinhas frutíferas (65.21,22) e gerarão filhos (65.23). Esta visão pré-milenista dispensacional não apenas falha em levar a sério o comentário do Novo Testamento sobre os textos de Isaías, mas é também incapaz, apesar de sua alegação de tomar as Escrituras literalmente, de encontrar uma única referência a um reino de 1000 anos nestes textos do Antigo Testamento.

2. Ezequiel 37-48

Em Ezequiel 37, o profeta combina, em uma figura, novamente na “perspectiva profética abreviada”, tanto o retorno do exílio na Babilônia, em 538 a.C., como a era messiânica. Deus promete restabelecer Sua aliança com o povo restaurado de Israel e estabelecer seu rei (a saber, Davi), que os pastoreará para sempre (37.24-28).

Perto do fim desta era messiânica (38.8,14,16), Deus reunirá as nações distantes e hostis para fazerem guerra contra Seu povo.400 Ele, então, irá vindicar Seu santo nome diante de todo o mundo, destruindo os inimigos do Seu povo. Esta destruição será tão aterradora que serão necessários sete meses para sepultar os mortos, cujos cadáveres serão devorados pelos pássaros e pelos animais do campo (39.11-20).

Ezequiel 40-48 descreve a visão que Ezequiel teve em 573 a.C. Nos capítulos 40 a 43 Ezequiel descreve o templo, seus pátios e seu altar. Os capítulos 44 a 46 relatam as ordenações deste templo e a distribuição da terra em volta do templo. Os capítulos 47 e 48 descrevem o escoamento de água do templo (que torna frutífero o vale do Mar Morto), os limites da terra e a divisão da terra pelas doze tribos de Israel.

À medida em que examinamos o material de Ezequiel 37 a 48 observamos que a linguagem é apocalíptica e altamente simbólica. Ezequiel profetiza sobre a visão do vale de ossos secos (37), o banquete de pássaros e animais (39.17-20), as águas frutificantes vindas do templo (47.1-12) e os limites e divisões da terra (que são geograficamente impossíveis; ver 47.13-48.29).

Quando aqueles que sustentam uma posição dispensacionalista lêem esta seção de Ezequiel, insistem em um cumprimento literal da visão de Ezequiel no futuro. Os equivalentes modernos dos países mencionados no capítulo 38, predizem eles, atacarão Israel perto do fim dos sete anos de tribulação da batalha de Armagedom. Os capítulos 40 a 48 descrevem o reino milenar. O templo será reconstruído em Jerusalém e o sistema sacrificial será restabelecido.401

O que pode ser dito em resposta a esta maneira de interpretar os textos de Ezequiel? Primeiro, deve-se reconhecer que Ezequiel não está escrevendo um projeto arquitetônico que há de ser cumprido literalmente, ou no período pós-exílico ou em um futuro distante. Por exemplo, quando Ezequiel, em sua visão sobre a nova era futura, descreve a vida cúltica dos redimidos em termos sacerdotais de oferecimento de sacrifícios de animais no templo, ele está apontando para uma realidade que transcende em muito o sistema de antes de Cristo. Da mesma forma, o apóstolo João escreve por revelação que não há templo na Jerusalém celeste, pois “o seu santuário é o Senhor, o Deus todo-poderoso e o Cordeiro” (Ap 21.22). Nem há sacrifícios de animais, visto que a morte sacrificial de Cristo é o sacrifício final e totalmente suficiente (Hb 8-10; Ap 5.6).

Segundo, uma consideração cuidadosa deve ser dada ao paralelismo existente entre os textos de Ezequiel e Apocalipse 20 a 22. Ap 20.1-6 contém uma mensagem sobre a “primeira ressurreição”, a era

398A tradução inglesa NIV (“New International Version”) traduz corretamente o hebraico no v. 20: “Quem morre aos cem anos será considerado um jovem; quem falha em atingir cem será amaldiçoado”. [Almeida R.A. traz: “morrer aos cem anos é morrer ainda jovem, e quem pecar só aos cem anos será amaldiçoado”. N. do T.]399Oxford NIV Scofield Study Bible, 689,90, 744,45. Esta versão separa 65.17 dos versículos seguintes.400Gogue, da terra de Magogue, não pode ser identificado com certeza, mas alguns estudiosos o vêem como sendo possivelmente uma referência a Gigues, rei da Lídia, na Turquia ocidental. Meseque e Tubal estavam localizados na Anatólia central e oriental. Cushe era a Etiópia antiga. Pute se refere a Cirenaica, no norte da África; Gômer, aos antigos Cimerianos do norte do Mar Negro; e Togarma, a Til-garimmu, capital de Kammanu, na fronteira de Tubal. Ver Yamauchi, Foes from the Northern Frontier.401A maior parte dos dispensacionalistas crêem que estes sacrifícios terão um caráter memorial, apontando para o sacrifício passado de Cristo e não tendo nenhum valor expiatório. Outros, no entanto, negam que haverá sacrifícios de animais e consideram Ezequiel como apresentando o culto de Israel usando termos familiares em seus dias. Oxford NIV Scofield Bible, 864.

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messiânica inaugurada no primeiro advento de Cristo, que é paralela à ressurreição dos ossos secos em Ez 37. Ap 20.7-10 está em paralelo com Ez 38-39, o “pequeno tempo” de Satanás, quando todas as forças anti-cristãs (“Gogue e Magogue”) se engajam no seu último assalto à Igreja e são, então, consumidos pelo fogo (cf. Ez 39.6). Os capítulos 21 e 22 de Apocalipse descrevem a Jerusalém celeste e a terra prometida com seu rio frutificante e é paralela a Ez 40 a 48. A referência aqui simplesmente não pode ser entendida num sentido literalístico para designar um reino milenar.

3. Daniel 2 e 7

Em Daniel 2 e 7 Deus revela quatro impérios mundiais a Daniel, que foi levado para a Babilônia em 605 a.C. No capítulo 2 estes impérios são retratados como uma grande imagem consistindo de uma cabeça de ouro, peito e braços de prata, ventre e quadris de bronze e pernas e pés de ferro e barro. No capítulo 7 estes impérios são descritos como um leão, um urso, um leopardo e um animal desconhecido. Estes quatro impérios podem ser identificados como sendo Babilônia, Medo-Pérsia, Grécia e Roma.402

Daniel profetiza que Deus estabelecerá Seu reino eterno nos dias dos reis do quarto império (2.44). O cumprimento desta profecia foi inaugurado no primeiro advento de Cristo, durante o domínio de Roma, e será consumado no segundo advento de Cristo.

No capítulo 7, Daniel pode ver mais adiante no futuro, até o julgamento final. Do quarto império vêm dez chifres, que são identificados com dez reis (7.24). O número 10 é um símbolo de totalidade, isto é, o número completo de reis que governam entre o fim de Roma e o levantamento do pequeno chifre. Mas então um pequeno chifre, que fala grandes coisas, levanta-se depois deles. O pequeno chifre que fala palavras contra o Altíssimo e persegue o povo de Deus (7.25) deve ser identificado com o Anticristo, o “homem da iniqüidade” de 2 Tessalonicenses 2. Ele persegue o povo de Deus por “um tempo, dois tempos e metade dum tempo” (7.25). A expressão tempo aqui é deliberadamente indeterminada e não significa “ano” (cf. 2.8,9,21; 4.16,23,25,32; 7.12). “Dois tempos” indica que seu poder duplicará. Mas ao invés de seu poder duplicar novamente para mais quatro tempos, dando um total de sete, indicando poder total, lemos “metade de um tempo”, significando seu fim súbito.

O julgamento final vem quando “um como o Filho do homem” recebe o reino do “Ancião de dias” (Deus, o Pai) e o Anticristo é destruído (7.13). Este “um como o Filho do homem” é um indivíduo escatológico, messiânico, divino, que é como um ser humano. Isto pode ser visto pelo que segue: Ele aparece no julgamento final; recebe o reino; vem com as nuvens do céu; e a expressão “filho do homem” significa um ser humano (cf. 8.17). O Novo Testamento, obviamente identifica-o com Jesus Cristo (Mt 24.30,44; etc). Sobre Ele é dito que “o seu reino será reino eterno, e todos os domínios o servirão e lhe obedecerão” (7.27; cf. v. 14).

Aqueles que fazem uso do método histórico-crítico normalmente interpretam estes dois capítulos de forma diferente.403 Eles identificam os quatro impérios como sendo Babilônia, Média, Pérsia e Grécia. O pequeno chifre é então considerado como sendo Antíoco Epifânio, o mesmo do pequeno chifre em 8.9, que se levanta a partir da Grécia. O “um como o Filho do homem” é considerado como um título coletivo para todos os santos do Altíssimo. Entretanto, esta visão acusa Daniel de inexatidão histórica, visto que a Média não conquistou sozinha a Babilônia; e faz de Daniel um falso profeta, já que o reino eterno de Deus não foi inaugurado durante o domínio da Grécia.404 Além do mais, tal interpretação não reconhece a identificação feita pelo Novo Testamento, do “filho do homem” com a pessoa de Jesus Cristo.

Os dispensacionalistas também oferecem uma interpretação diferente.405 Eles concordam que os quatro impérios são a Babilônia, Medo-Pérsia, Grécia e Roma. Entretanto, Roma está dividida em duas fases separadas por 1000 anos. A primeira fase de Roma, dizem eles, terminou em 476 A.D. Depois do arrebatamento da Igreja, Roma reviverá na forma de uma confederação de 10 nações, que corresponde aos dez dedos da imagem (2.42) e os dez chifres do quarto animal (7.24).406 O governante deste império romano revivido é o pequeno chifre, o Anticristo, que derrotará três destas nações (7.24,25). Ele perseguirá a nação judaica durante os últimos três e meio anos da tribulação (7.25). Em Seu segundo advento em glória, Cristo destruirá este império romano revivido (2.44) e o pequeno chifre (7.26) e então estabelecerá o reino milenar terreno (2.44; 7.14,27).

402Note-se que o leopardo com quatro cabeças e quatro asas (7.6) é o mesmo império que o bode com quatro chifres que apontavam para os quatro ventos (8.8); e este é identificado como a Grécia (8.21). Portanto o quarto império é provavelmente uma referência a Roma.403Por exemplo, Norman W. Porteous, Daniel: A Commentary, 2a edição revisada (Londres: SBC Press, 1979); e W. Sibley Towner, Daniel (Atlanta: John Knox Press, 1984).404Para uma crítica a esta posição, ver Edward J. Young, “The Prophecy of Daniel”, in An Introduction to the Old Testament (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1949).405Por exemplo, a Oxford NIV Scofield Study Bible e John F. Walvoord, Daniel: The Key to Prophetic Revelation (Chicago: Moody Press, 1971).406Freqüentemente tal confederação é identificada com o Mercado Comum Europeu. Ver Hal Lindsay, The Late Great Planet Earth, 88-97.

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Em resposta a esta interpretação, observamos que não há indicação de um espaço de tempo entre Roma e os 10 reis (7.24). Nem há qualquer razão para interpretar os três e meio “tempos” como três e meio anos. Como já vimos, o reino de Deus não é um reino terreno, político, de 1000 anos, no fim dos quais as nações atacam a Cristo (Ap 20). Antes, Daniel 2 e 7 enfatizam a diferença entre o reino de Deus e os quatro reinos anteriores. Estes quatro impérios são humanos e temporários, sendo cada um deles superado sucessivamente pelo reino seguinte, e são abomináveis. Em contraste, o reino de Deus é divino, perpétuo, inconquistável e benevolente. Jesus e o Novo Testamento continuamente enfatizam que Seu reino “não é deste mundo” (Jo 18.36; Rm 14.17).

4. Daniel 9.24-27

Daniel 9.24-27 é umas das passagens mais disputadas em toda a Escritura. Em nosso julgamento duas interpretações têm sido dadas que estão em harmonia com o restante da Escritura e com a analogia da fé. Ambas são possíveis e é difícil decidir entre as duas.

Uma pode ser chamada de posição “Messiânica tradicional”,407 que vê a profecia como atingindo seu clímax na primeira vinda de Cristo. Daniel recebe uma visão de “setenta semanas” concernentes ao futuro do povo de Deus e de Jerusalém. Alguns entendem estas “setenta semanas” como 70 semanas de anos, isto é, 490 anos. Um entendimento simbólico destas figuras é mais provável, tendo em vista a natureza apocalíptica de Daniel. Desde o decreto que levou à reconstrução de Jerusalém (538 a.C ou 458 a.C) até a vinda de Cristo há sete semanas e sessenta e duas semanas, isto é, sessenta e nove semanas. Durante este período Jerusalém será reconstruída (v. 25). Durante a sétima semana Cristo é crucificado e os romanos, sob Tito, destroem Jerusalém (v. 26). O v. 27 é paralelo ao v. 26. Cristo confirma a aliança com muitos, mas no meio da septuagésima semana é crucificado, cumprindo e abolindo, assim, o sistema sacrificial.

Outra interpretação possível pode ser chamada de posição “Messiânica Tipológica”,408 que considera a segunda vinda de Cristo como o ápice da profecia. Esta posição também entende as “setenta semanas” simbolicamente. Desde o decreto de Ciro para restaurar Jerusalém (538 a.C.) até Cristo há sete “semanas”.409

Durante as próximas sessenta e duas “semanas” a Igreja, o antítipo de Jerusalém, é edificada (v. 25). Perto do fim da história, durante a septuagésima “semana”, Cristo e a Igreja têm pouco ou nenhum prestígio e influência exteriores (cf. Ap 20.7-9; Mt 24.21,22). Mais ainda, o povo do Anticristo, o antítipo de Antíoco Epifânio, atacará a Igreja (v. 26). Novamente notamos que o v. 27 é paralelo ao v. 26. O Anticristo confirma uma aliança com muitos e impede o culto. No entanto, ele será rapidamente destruído. Então os propósitos eternos de Deus serão consumados (v. 24).

Estudiosos Histórico-críticos410 normalmente entendem as setenta “semanas” como 490 anos. Os primeiros 49 anos, sustentam eles, vão desde a destruição de Jerusalém (587 a.C.) até Josué ou Zorobabel (538 a.C.). As seguintes sessenta e duas “semanas” (434 anos), nos quais Jerusalém é reconstruída, terminam com a morte do sacerdote Onias III, em 171 a.C. Durante os próximos sete anos Antíoco Epifânio persegue Jerusalém. No meio desta septuagésima “semana” ele proíbe o culto no templo (167 a.C.). O autor então prediz que três anos e meio restam até a consumação dos propósitos de Deus (v. 24). Esta posição deve ser rejeitada, porque acusa Daniel de imprecisão histórica, por não ter calculado os anos corretamente. Além disso, a promessa do v. 24 não foi cumprida em 164 a.C.

Os dispensacionalistas oferecem ainda outra interpretação.411 Eles entendem as setenta “semanas” como 490 anos de 360 dias cada. As primeiras sete e as sessenta e duas “semanas”, isto é, sessenta e nove “semanas” vão desde o decreto para a reconstrução de Jerusalém (445 a.C.) até o Domingo de Ramos (29 A.D.). Depois destas sessenta e nove “semanas”, Cristo é crucificado (cinco dias depois) e o templo de Jerusalém é destruído (70 A.D.). Entre os versículos 26 e 27 há um espaço de quase 2000 anos. Esta é a era da Igreja, que não é revelada no Antigo Testamento. Quando a Igreja é arrebatada, a tribulação de sete anos (a septuagésima “semana”) inicia (v. 27). O Anticristo firma uma aliança com os judeus. Após três anos e meio, o Anticristo bane o culto judaico do templo, estabelece a “abominação da desolação” (cf. Mt 24.15) e persegue os judeus pelos restantes três anos e meio. No final da septuagésima “semana”, Cristo volta em glória, destrói o Anticristo e traz as bênçãos do reino milenar (v. 24).

Há sérios problemas exegéticos e teológicos nesta última interpretação. Primeiro, não há nenhuma indicação de um espaço entre os versículos 26 e 27. Os versículos são, na verdade, paralelos, descrevendo a septuagésima “semana”. Segundo, é problemático interpretar, de uma maneira crassamente literalística, as

407Por exemplo, em Young, “The Prophecy of Daniel”.408Por exemplo, H. C. Leupold, Exposition of Daniel (Grand Rapids: Baker Book House, 1949, 1969).409Esta posição coloca um “ponto” após as primeiras “sete semanas”. A primeira posição coloca um “ponto” após as “sessenta e duas semanas”.410Por exemplo, Porteous, Daniel: A Commentary.411Por exemplo, Oxford NIV Scofield Study Bible.

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setenta “semanas” como sendo 490 anos e, ainda mais, como anos de 360 dias cada. Terceiro, esta posição erradamente assevera que eventos como o culto dos judeus no templo reconstruído e a atividade do Anticristo acontecerão após o arrebatamento. Finalmente, as promessas do v. 24 não são de um reino milenar, após o qual Satanás teria um “pouco tempo” (cf. Ap 20.7-9). Antes, a promessa do v. 24 é que o pecado chega ao fim e vem a justiça eterna.

GLOSSÁRIO

Amilenismo.A posição de que não haverá 1000 anos literais de um reino terreno visível (o “milênio”). Esta posição é melhor designada como “milenismo realizado”, visto que ensina que os 1000 anos de Apocalipse 20, entendidos simbolicamente, começaram no primeiro advento de Cristo.

Armagedom.Derivado do hebraico har megiddo, “o monte de Megido”, na Palestina, Armagedom se refere à batalha mencionada em Ap 16.16.

Arrebatamento.Refere-se ao evento descrito em 1 Ts 4.14-17, quando os crentes serão “arrebatados”, “levados para cima” nas nuvens para se encontrarem com Cristo nos ares. A posição do “arrebatamento pré-tribulacional” sustenta que o arrebatamento acontecerá antes da tribulação de sete anos; a posição do “arrebatamento mesotribulacional” coloca o arrebatamento no meio da tribulação de sete anos; a posição “pós-tribulacional” sustenta que o arrebatamento acontecerá após a tribulação.

Dispensacionalismo.Também chamado de Pré-milenismo dispensacional, é um sistema teológico que divide a história em dispensações ou períodos de tempo distintos, nos quais Deus dá uma revelação específica e o homem é testado com respeito à sua obediência a ela. Todos os dispensacionalistas são pré-milenistas, mas nem todos os pré-milenistas são dispensacionalistas.

Escatologia.Derivada da palavra grega eschaton, “fim”, escatologia é o estudo dos tempos do fim. Escatológico significa “relacionado ao fim”.

Literatura Apocalíptica.Derivado da palavra grega apokalypsis (Ap 1.1), “descobrir”, “revelar”, este tipo de literatura, encontrado mais especificamente em Daniel e em Apocalipse, utiliza imagens altamente simbólicas.

Milênio.Derivado das palavras latinas mille, “mil”, e annus, “ano” (Apocalipse 20), o milenismo ensina que haverá um reino visível de Deus na terra por 1000 anos. Isto é chamado também de quiliasmo, da palavra grega chilia, “mil”.

Pós-milenismo.Esta é a posição de que o segundo advento de Cristo acontecerá após o “milênio”, entendido como uma era áurea na terra, mas não necessariamente com duração de 1000 anos.

Pré-milenismo.Esta é a posição de que o segundo advento de Cristo ocorrerá antes do “milênio”, entendido como o governo de Cristo na terra por 1000 anos.

Tribulação.Refere-se à perseguição intensificada contra o povo de Deus, precedendo o segundo advento de Cristo. Os dispensacionalistas entendem-na como uma perseguição de sete anos contra a nação judaica, enquanto os amilenistas a vêem como uma perseguição contra a igreja, de duração desconhecida.

BIBLIOGRAFIA SELECIONADA

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O REINO DE DEUS E ESCATOLOGIA BÍBLICAJames W. Voelz412

A. A palavra "reino" (tWkl.m; / ) é normalmente dinâmica, não estática, denotando mais o reinar e governar ativos de Deus do que o domínio (Sl 145.11-13; 103.19).

B. Pano-de-fundo no Antigo Testamento1. Deus foi o governante de Seu povo desde o princípio, estabelecendo, implementando e exercitando este

governo (cf. especialmente o chamado e destinação dos patriarcas [Gn 12.1-3], e a escolha [Dt 7.6-8] e a condução do povo de Israel [Dt 6.10-12]; At 13.16-23). Isto continuou a ser aparente no tempo dos juízes (Jz 8.22,23 [cf. 6.11-14]).

2. O povo exigiu um rei visível, que eles receberam. Todavia, este rei permaneceu apenas como agente do governo de Deus (1 Cr 28.5; 2 Cr 13.8).

3. Sob os reis, as "bênçãos" do reinar de Deus ficaram amargas e os propósitos de Deus foram negados: Israel não cumpriu sua função como povo especial. Isto foi especialmente o caso quando eles foram oprimidos e levados ao exílio (cf. Dt 6.20-23; Gn 12.3).

4. Havia, no entanto, uma esperança profética de que tudo isto seria corrigido. Um dia Deus iria "visitar" (dq;P' / ) Seu povo, no "Dia do Senhor".5. Este "Dia do Senhor" iria conter julgamento e graça: julgamento sobre Israel e Judá, por um lado (cf. Am 3.1,2; 5.1,2, 18-20 e Jr 16.10-13, 16-18) e, por outro lado, sobre os inimigos do povo de Deus (Is 10.12-19 [Assíria]; Is 14.4-25; Jr 30.11-16 [Babilônia]); e graça sobre o povo de Deus, resgatando-os de seus inimigos (Is 10.20-23; Jr 29.10-14 [note o uso de "visitar" aqui]; Ez 36.1-15), mas, como um tema menor, também pelo conservar um remanescente na terra (Sf 2.9). Este "Dia do Senhor" era visto como algo "histórico" (isto é, no tempos do AT).6. Atrás deste "dia do Senhor", entretanto, ficava para os profetas a visitação definitiva, o dia do Senhor definitivo, quando Deus viria e julgaria toda a perversidade em toda a parte, e finalmente iria ajustar todas as coisas para Seu povo de forma completa. Este tempo é freqüentemente chamado de "últimos dias" (mymY"h; tyrx]a; / [daí: "escatológicos"]) (Is 2.2; Mq 4.1), ou "depois" (rx;a; / ) (Os 3.5 [cf. Jl 2.28]) nos profetas. Nota: Freqüentemente é difícil distinguir quando os profetas estão discutindo esta visitação final e quando estão falando da visitação "histórica". Freqüentemente os dois estão combinados (Is 2). As seções seguintes, entretanto, estão claramente orientadas para a visitação final ou escatológica: Is 24-27; Is 34-35; Sf 1 e 3. Este "Dia do Senhor" definitivo iria, novamente, incluir julgamento e graça, mas agora num sentido mais completo e universal.

a. Características de Julgamento 1. Todos os homens perversos estariam sob a ira de Deus, não simplesmente as nações que

aprisionam os judeus (Is 24-27; Is 34-35; Sf 1.2,2; Is 2.9-11, 12-22; 13.9,11). 2. A própria ordem da criação seria submetida ao julgamento e ira de Deus, assim que a natureza

seria violentamente sacudida (Is 24.19,20; 13.10-13).b. Características de Graça

1. Deus mesmo viria e estaria presente (Sf 3.15-17; Is 35.3,4; Zc 2.10; Ez 34.15,20-22).2. A criação seria restaurada (Is 35.5,6; Ez 34.25,28; Is 11.6-9).3. Os mortos ressuscitariam (Is 26.19; 25.8).4. O Espírito de Deus seria derramado (Jl 2.28-32).

412 Traduzido a partir de polígrafo. O mesmo material está incluído, com poucas modificações, no livro do autor, What Does This Mean? Principles of Biblical Interpretation in the Post-Modern World , 2a edição, St. Louis, Concordia, 1995, pp. 244- 262.

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5. O povo de Deus passaria por uma mudança (Sf 3.10-13; Jr 31.31-34).6. Davi reinaria novamente (Os 3.5; Jr 23.5,6; Ez 34.23).7. Pleno perdão dos pecados estaria presente (Jr 31.34; Zc 13.1).8. O povo de Deus retornaria à sua terra (Is 11.11,12; 27.12,13; 35.10).9. Os gentios tornar-se-iam povo de Deus (Is 2.2,3; 11.10)10. A paz reinaria (Is 2.4).

C. Cumprimento no Novo TestamentoO anúncio de João Batista: "O Reino de Deus está próximo" proclama o iminente cumprimento da esperança escatológica do Antigo Testamento. Esta é a mensagem do Novo Testamento: na vida, morte e ressurreição de Cristo, e no Pentecostes (="o evento de Cristo") a visão dos profetas sobre os "últimos dias" é cumprida.-- Jesus afirmou isto diretamente: Mt 12.28; Lc 19.44.-- O povo sabia isto: Lc 7.16; 1.68,69.-- Paulo o afirmou: 1 Co 10.11.

1. Uma comparação dos eventos relatados nos Evangelhos e em Atos com a esperança profética do Antigo Testamento mostra que tudo o que os profetas anteviram escatologicamente foi cumprido no evento de Cristo.

a. Características de Graça1) Jesus era Emanuel, Deus conosco: Mt 1.23; Jo 10.11.2) Os milagres de Jesus, como restaurações da criação, repetiram a visão de Isaías: Mt 11.2-6 (Nota:

Em muitos aspectos, esta é a mais importante passagem no NT, visto que ela é claramente usada por Jesus para mostrar a correspondência entre Seu ministério e a esperança profética do AT [Is 35].) Notar também a sobrevivência de Jesus no deserto, em Mc 1.13 (cf. Ez 34.25,28).

3) Jesus ressuscitou os mortos: a filha de Jairo (Mc 5.41,42), o jovem de Naim (Lc 7.14,15), Lázaro (Jo 11.43,44).

4) O Espírito foi derramado no Pentecostes: At 2.4.Nota: Pedro, na sua fala no Pentecostes (At 2.16,17) não temeu em chamar o acontecido de cumprimento dos "últimos" dias. Notar também que ele muda a expressão usada por Joel, "depois", para "últimos dias" (2.17), provavelmente para dar maior clareza.

5) O povo de Deus foi mudado, como Jesus caracteriza no Sermão do Monte. Ver também Zaqueu (Lc 19.1-10).

6) "Davi" reinou novamente na pessoa de Cristo: Mt 21.5,9; Lc 1.32,33,69.7) Perdão dos pecados foi verdadeiramente distribuído: Mc 2.5.8) O povo de Deus foi reunido desde os fins da terra: At 2.9-11. Nota: Este é, de certa forma, um

dos mais interessantes e difíceis aspectos do assunto. É notável que a lista de povos em Atos, apesar de não ser perfeitamente correspondente ao que achamos em Is 11.11,12, é, em essência, a mesma.

9) Os gentios vieram até nosso Senhor durante todo o Seu ministério (cf. os gregos de Jo 12), mas isto fica particularmente claro na vinda dos Magos: Mt 2.1-12.

10) A paz é o lema do Reino: Mt 5.9; 26.52,53.

b. Características de Julgamento1) Deus veio em glória contra os perversos na ressurreição: Mt 28.4 (comparar com Is 2.9-11). Ver

também Jo 18.6.2) A própria criação sofreu convulsão quando Cristo foi crucificado: Mt 27.45,51.

Nota 1: É evidente que nem todos os doentes da Palestina foram curados no ministério de nosso Senhor, nem todos os mortos foram ressuscitados, nem toda a terra foi convulsionada e sacudida. Portanto, é muito apropriado afirmar que no evento de Cristo tudo foi cumprido em princípio, mas nem tudo foi cumprido sem deixar um resto. Ou: em sua essência o Reino de Deus veio no evento de Cristo. Ou: o novo éon veio, mas não tão exaustivamente que o antigo éon ter-se-ia ido totalmente. (Ver At 4.23-28 para um exemplo deste entendimento de cumprimento em princípio num texto do AT, pelos apóstolos; também At 2.16-21). Haverá uma consumação final, a parousia, no qual tudo será cumprido sem deixar um resto (quando tudo será completamente cumprido) (At 3.21 [cf. 1.6]; Rm 8.21-23; Ap 21.1-5).

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Nota 2: Este cumprimento da esperança profética do AT em Cristo "em princípio" pode ser caracterizada como proléptica, no sentido de que veio "antes do tempo" para dentro da História, antes da consumação final (cf. Mt 8.29: ...)

Nota 3: É interessante e, creio, teologicamente importante, observar que o lado de julgamento no ministério de Jesus é muito mais difícil de demonstrar do que o lado da graça (daí a mudança no roteiro acima). É evidente que Jesus possuía o poder de julgar e o usou (cf. C.1.b.1. acima). Entretanto, na maior parte do tempo Ele reteve Sua mão (cf. Lc 9.51-56). Isto, creio, nos fala alguma coisa sobre a natureza de nosso Deus, que sempre "erra" pelo lado da graça! Isto levou E. E. Ellis a dizer que a graça de Deus veio prolepticamente em Cristo, mas que o julgamento está reservado para a segunda vinda. Creio que este fato causou confusão a João Batista (Mt 11.2) (cf. a pregação de João [Lc 3.7-9]).

Nota 4: Os apóstolos levaram consigo, em seus próprios ministérios, o cumprimento "em princípio" de Jesus da esperança profética escatológica do AT. Podem-se notar, especialmente: as curas (At 3.6-8; 5.12-16; 19.11,12); e ressurreições (At 9.36-43; 20.7-12); Paulo não sofrendo dano da "besta selvagem" (serpente) (At 28.3-6); o derramamento do Espírito através de sua pregação (At 10.44-46; 19.6); manifestações evidentes do juízo de Deus contra o mal (cf. o cegar de Elimas [At 13.8-11]; a morte de Ananias e Safira [At 5.1-11]); e a convulsão da natureza (cf. o terremoto em Filipos [At 16.26]).

Nota 5: A imagem de uma batalha (freqüentemente designada o "Tema Christus Victor") explica bem o entendimento do evento de Cristo como "cumprido em princípio/consumação" e é a orientação básica dos Evangelhos Sinóticos e de Atos, especialmente se se vê uma analogia entre o evento de Cristo e o Dia "D" na 2ª Guerra Mundial (Cullmann). O inimigo está, em princípio, derrotado e não pode vencer a guerra (cf. o Dia "D"), mas ele continua a lutar e a atacar, bem ou mal, até que suas armas lhe sejam finalmente tomadas. Assim também no evento de Cristo a batalha decisiva foi travada e as dádivas da era por vir foram concedidas. Portanto, a vitória final está assegurada, mas o inimigo não desapareceu completamente; há, ainda, batalhas a serem travadas. Todavia é apenas uma questão de tempo até o tiro de misericórdia.

Realmente a analogia com o Dia "D" nos ajuda a entender o fato que, após a ascensão de Cristo, o Reino e sua presença se tornaram bem menos aparentes. Já no ministério dos apóstolos poucas pessoas foram curadas, poucos mortos foram ressuscitados, o apóstolo Tiago foi morto (At 12.2 [cf. em contraste com Jo 18.9]). E hoje o Reino se mostra ainda menos. Lembramos que após o Dia "D" as coisas estavam indo inicialmente muito bem para os aliados; mas então problemas começaram a surgir -- o inimigo reagiu bem (cf. a Batalha do "Bulge"). No entanto, ninguém tinha dúvidas sobre o que iria acontecer no final.

2. É apropriado também entender a evidência do NT de uma segunda maneira (antinomicamente). Todas as promessas do AT foram cumpridas no evento de Cristo, mas de forma oculta, isto é, de forma que os benefícios do reinar de Deus são totalmente nossos, mas não aos olhos humanos. De acordo com este ponto de vista, o novo éon está aqui, mas continua oculto sob o velho éon. Assim Jesus pode dizer que seus seguidores já "passaram da morte para a vida" (Jo 5.24) ou que aquele que vive e crê nEle "não morrerá eternamente" (Jo 11.26). Este é o ponto de vista essencial em João e é a maneira como se pode entender muito bem a importância de tanto de nossa liturgia, especialmente a Santa Ceia. (Notar que também este ponto de vista é proléptico). De acordo com esta explicação, a parousia é a revelação final e completa da realidade assim como ela de fato é (Mt 13.43; Rm 8.19,19).

3. É apropriado também entender a evidência do NT numa terceira (antinômica) maneira. Também pode ser dito que Jesus cumpriu as esperanças escatológicas dos profetas completamente em Sua própria pessoa. De acordo com este entendimento, Jesus é, em Si mesmo, o objeto de todas as promessas e cumprimento, assim que Ele cumpre tanto o papel de Deus, como o de povo de Deus.

a. Características de Graça1) Ele é Deus mesmo.2) Ele exibe em Si mesmo a criação perfeitamente restaurada na ressurreição. Ele habitou

pessoalmente com as feras.3) Ele foi ressuscitado dentre os mortos.4) O Espírito foi derramado sobre Ele no Seu Batismo.5) Ele é o perfeito israelita, cumprindo perfeitamente o que é dito nas Bem-aventuranças e no

Sermão do Monte.6) Ele próprio foi o "Maior Filho do grande Rei Davi".7) Nele, na cruz, o perdão dos pecados se efetivou.

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8) Ele "voltou" para a terra de Israel, do Egito, após a morte de Herodes.9) Os Magos vieram a Ele, assim como centuriões, gregos, etc.10) Ele exibiu a perfeita paz (cf. Mt 26.53).

b. Características de Julgamento1) Nele toda a humanidade foi julgada sobre a cruz. Assim o terrível julgamento visto em Isaías e

noutros profetas foi executado, ao ponto de Ele chegar ao grito pelo abandono.2) Em Suas últimas horas, a terra tremeu, o sol escureceu, etc. (ver acima).

Nota: De acordo com este ponto de vista, o cumprimento proléptico da esperança escatológica do AT não é "em princípio", mas é, de fato, com respeito a Cristo, "sem resto". Nós somos incorporados nesta nova realidade no Batismo (R, 6.3-5 [cf. Cl 3.3]), e a parousia é o tempo da completa visibilidade (Cl 3.3,4) e implementação (1 Co 15.23,52) "sem resto". Este é o ponto de vista básico de Paulo, com seu "em Cristo" ( ) (cf. 2 Co 5.17; Rm 8.39; 2 Co 1.20).

4. Todos estes modelos podem bem ocorrer no mesmo autor e são freqüentemente usados no mesmo contexto. Ver, por exemplo, Jo 11.25 (Christus Victor) e 26 (realidade oculta); Rm 8.18,19 (realidade oculta) e 20-23 (Christus Victor); 2 Pe 3.10 (Christus Victor/realidade oculta).

* * * * * * *

O REINO DE DEUS E ESCATOLOGIA BÍBLICAParte II

A. Qual é a conexão entre as visitações históricas de Deus no AT e Sua visitação escatológica?1. Há uma clara diferença, como podemos notar especialmente em Isaías (cf. capítulos 24-27, 34-35).2. Mas há também um importante relacionamento. Isto é visto em várias situações.

a. As visitações históricas de Deus são freqüentemente vistas com base na Sua visitação escatológica (Jr 4.11-22 [H] e 4.23-26 [E]; Is 2.9-22 [E] e 3.1-4.1 [H]; Sf 1.2,3,14-18 [E] e 1.4-13 e 2.1-3 [H]; Is 13.1-16 [E] e 13.17-22 [H]).

b. As duas visitações estão freqüentemente fundidas, isto é, as históricas estão "vestidas em roupagem escatológica". Por exemplo: em Jl 2, vv. 1-11 mostram uma visitação escatológica, enquanto os vv. 12-14, algo histórico; mas o versículo 20, que descreve um exército e visitação históricos, claramente refere-se à visitação descrita escatologicamente nos primeiros onze versículos.

c. Além disso, as duas visitações são freqüentemente descritas pelos mesmos vocábulos.(1) "dia do Senhor" - (H) Am 5.18; (E) Is 13.6,9.(2) "naquele dia" - (H) Is 3.18; (E) Am 8.9.(3) "vem dias" - (H) Am 4.2; (E) Am 9.13.

3. Assim vemos que há uma unidade importante entre as duas visitações. Em cada uma temos o mesmo Deus, agindo da mesma forma, para os mesmos propósitos.

4. De fato, a evidência sugere que podemos dizer mais, ou seja, que as visitações históricas de Deus eram um tipo da visitação escatológica. Assim, podemos olhar para as históricas para ver a ação de julgamento/graça de Deus na Sua visitação escatológica. Isto é expressamente afirmado em Is 14.25-27.

5. E, parece, podemos dizer ainda mais. Dos textos acima podemos dizer que as visitações históricas de Deus são uma manifestação preliminar da visitação final -- ou melhor, que elas são uma manifestação proléptica daquela visitação, assim como a visitação de Deus em Cristo foi uma manifestação proléptica do prometido .

6. As visitações históricas de Deus no AT eram, entretanto, diferentes da vinda proléptica do escaton no evento de Cristo. Eram diferentes em que, nas visitações históricas no AT, o julgamento e graça de Deus no fim dos dias apareciam antes do tempo na história em, ao que parece, uma forma superficial. Isto quer dizer que meios ou agências humanos eram usadas para as ações de Deus (por exemplo, exércitos ou governantes estrangeiros), assim que Deus não estava pessoalmente presente da mesma maneira como esteve em Cristo.

B. Pode ser observado ainda que o que foi dito acima é verdadeiro também do AT como um todo. Isto quer dizer que virtualmente tudo na história de Israel é uma manifestação proléptica em forma superficial das ações escatológicas de Deus, em julgamento e graça. Isto não é óbvio à primeira vista, pois eventos "ordinários" do AT raramente são descritos com descrições escatológicas, como o são as visitações históricas (mas, ver a

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descrição de Davi de seu resgate por Deus de seus inimigos e de Saul em 2 Sm 22.1-20, especialmente versículos 8 e 16!). Os seguintes ítens de importância escatológica podem ser delineados na história de Israel:1. A presença de Deus - na coluna de fogo, na arca da aliança e no tabernáculo.2. Perdão dos pecados - nos sacrifícios, especialmente no Dia da Expiação.3. Julgamento sobre o mal - na vitória dos exércitos de Israel sobre os pagãos (Nota: Isto é porque, por vezes,

ocorreram massacres; tal destruição do inimigo era uma amostra da destruição total do mal, que Deus fará no fim dos tempos).

4. A santidade do povo de Deus - na necessidade de obedecer as leis da Torah literalmente.5. Restauração da criação - na necessidade dos sacerdotes serem perfeitos fisicamente, assim como nós

seremos perfeitos quando a criação for totalmente restaurada; também no receber de uma terra abundante, manando leite e mel.

6. Liberdade - no ano do jubileu.7. Paz - nas cidades de refúgio.8. Gentios se tornando parte do povo de Deus - nos prosélitos.

Pode-se notar que em cada caso as promessas escatológicas de Deus se cumpriam "antes do tempo", embora de uma maneira preliminar ou "superficial", na história do povo de Deus, Israel.

C. Podemos dizer, então, que o que aconteceu no AT, seja "ordinariamente", ou nas "visitações" históricas especiais de Deus, aconteceu por causa do futuro. Isto quer dizer que o que aconteceu na história de Israel foi determinado pelo futuro, pelo que iria acontecer na era por vir , a nova era). As coisas não acontecerão na segunda vinda, e as coisas não ocorreram com Cristo, porque elas copiaram a história de Israel e o que acontecera ao seu povo nos tempos do AT. Pelo contrário, as coisas aconteceram na história de Israel, o povo do AT experimentou o que experimentou, por causa do que Deus iria fazer na era por vir (era que invadiu a história [prolepticamente] no evento de Cristo). Desta forma, o AT é sempre relevante para a igreja, pois olhando para ele, ela pode ver seu próprio futuro, porque seu destino já foi descrito para ela no povo de Deus da Antiga Aliança.

Escatologia Inaugurada

Um exame da Escritura (NT) no que se refere à presença do reino:

Mc 1.15 - “o reino de Deus está próximo”- . O verbo significa “aproximar-se, chegar perto”. Pode ser empregado para dizer que alguém está chegando perto de um lugar, às vezes tão perto quanto na entrada da cidade (Lc 7.12); ou para aproximar-se de uma pessoa (Lc 15.1). O uso do Perfeito do verbo aponta para uma ação completa, cujos efeitos podem ser sentidos!

Mt 8.29 - os demônios clamam para Jesus: “vieste para nos torturar antes do tempo” - . É interessante o uso de - não tanto o tempo cronológico, mas época, estação, era! Há um tempo de julgamento, o fim dos tempos está reservado para isto. Jesus vem antes e age com juízo sobre as forças do mal. Na Sua obra (já no Seu ministério terreno, de pregar, ensinar e curar) Jesus antecipa o julgamento do mal.

Mt 12.28 - “é chegado o reino de Deus sobre vós”. O verbo ( ) dá a idéia de se chegar a algum lugar (2 Co 10.14), ou a uma situação (Fp 3.16 - note-se neste texto a tensão entre o “já” e o “ainda não”). Interessante é que o verbo está no Aoristo, dando a idéia de um fato histórico ocorrido. Outro detalhe digno de nota no texto é a conexão do que Jesus está anunciando com a obra do Espírito Santo. Jesus está agindo .

Lc 17.21 - Interrogado sobre a chegada do reino de Deus, Jesus alerta para que as pessoas não pensem que o reino acontecerá de forma visível, e completa: “o reino de Deus está dentro em vós” (ARA). - pode ser traduzido como ARA o faz ou como : “está no meio de vós”. O léxico BAGD mostra que o termo pode significar “dentro de”, mas também “na companhia de” e daí “no meio de”. BJ traduz assim (“no meio de vós”) e explica na nota de rodapé: “como uma realidade já atuante”. O curioso é que logo adiante destas palavras Jesus claramente se refere à parousia (vv. 24ss), ainda que não se possa negar a presença de referência à queda de Jerusalém (v. 30,31; cf. Mt 24).

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Hb 1.2 - “nestes últimos dias” - lit.: “no fim (último) destes dias” ( ). BJ: “nestes dias, que são os últimos”. A BJ faz uma nota neste ponto dizendo; “Na plenitude dos tempos (Mc 1.15; Gl 4.4) abrem-se os últimos tempos ou os últimos dias (At 2.17; Jl 3.1; 1 Pe 1.20; cf. 1 Tm 3.1; 2 Pe 3.3; 1 Jo 2.18 [“já é a última hora”]; Jd18).” A expressão “últimos dias” pode referir-se tanto à segunda vinda, com o julgamento final (Jo 6.39s,44,54; 11.24; 12.48), como também aos tempos do NT (At 2.17; 2 Tm 3.1; Tg 5.3; 2 Pe 3.3).

1 Pe 1.20 - Jesus foi “manifestado no fim (lit.: último) dos tempos” ( ).

1 Co 10.11 - - perfeito de = chegar (a); vir (até). Usado para a chegada de alguém em algum lugar (At 16.1 - “Chegou a Derbe”); ou a alguma situação (Ef 4.13 - “até que cheguemos à unidade da fé”).- a “eras” - o NT fala “desta era” e da “que vem” - Mt 12.32. De uma certa forma, Paulo mostra que as duas eras se encontraram. O tempo Perfeito parece indicar que isto (um fato passado) gerou um estado, em que as duas eras convivem no mesmo tempo e local físicos. A questão que se coloca é sobre o “referente” - a que se refere esta chegada da era? Certamente à encarnação, vida e obra do Filho de Deus!

É importante perceber a dimensão dinâmica do reino - o reino é basicamente ação - a ação de Deus no mundo, com juízo e salvação.

Por isso mesmo, é bastante questionável identificar o “reino” com a “igreja”. As parábolas (especialmente Mt 13) deixam claro que o reino tem a ver diretamente com Jesus e Sua obra e, daí, com a proclamação do Evangelho.

A igreja é, a bem da verdade, fruto do reino! É criação do reino! Da mesma forma, é instrumento do reino, visto que o reino se manifesta onde está a igreja - onde palavra e sacramentos são administrados.

Daí vem o cuidado com a aplicação de Mt 6.33 - “Buscai em primeiro o reino ...” - não pode ser aplicado direta e acriticamente ao trabalho na igreja (“Congregação”). Busca-se o reino também (se se considera o âmbito de congregação) nas outras ordens - sociedade e família, na medida em que vivemos com Cristo, por obra do Espírito Santo, por fé na Sua palavra. A vida toda (não só a participação na congregação) é santificada pela presença do reino entre nós.

Lutero: “O que significa o reino de Deus? Resposta: outras coisa não é senão o que ouvimos acima, no Credo: que Deus enviou ao mundo a Cristo, seu Filho, nosso SENHOR, para que nos redimisse e libertasse do poder do diabo e nos levasse a ele e nos governasse como rei da justiça, da vida e da bem-aventurança, contra o pecado, a morte e má consciência. Para tanto também nos deu o seu Espírito Santo, que nos convencesse disso mediante a sua santa palavra, e por seu poder nos iluminasse e fortalecesse na fé. Pedimos, por conseguinte, aqui, em primeiro lugar, que isso tome efeito entre nós, e que destarte seu nome seja exaltado pela santa palavra de Deus e por uma vida cristã, tanto para que nós, que a aceitamos, nisso permaneçamos e diariamente progridamos, como também a fim de que alcance assentimento e adesões entre outros homens e marche poderosamente pelo mundo universo, a fim de muitos deles, trazidos pelo Espírito Santo, virem ao reino da graça e se tornarem partícipes da redenção, para que dessa maneira todos juntos fiquemos eternamente em um só reino, agora principiado.

“Porque ‘a vinda do Deus a nós’ ocorre de duas maneiras: primeiro aqui, no tempo, mediante a palavra e a fé; em seguida, na eternidade, pela revelação. Agora pedimos ambas as coisas: que venha àqueles que ainda não estão nele, bem como a nós outros - que já o recebemos - por diário incremento, e futuramente, a vida eterna. Tudo isso outra coisa não é do que dizer: ‘Amado Pai, pedimos que nos dês primeiro a tua palavra, para que o evangelho seja pregado retamente em todo o mundo; em segundo lugar, que também seja aceito pela fé, e atue e viva em nós, de forma que pela palavra e poder do Espírito Santo o teu reino tenha curso entre nós e seja destruído o reino do diabo, para que não tenha direito nem poder sobre nós, até que afinal seja totalmente aniquilado, e o pecado, a morte e o inferno sejam exterminados, a fim de vivermos retamente em plena justiça e bem-aventurança.’”

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(Catecismo Maior 3a parte, 2a petição; p. 463,4)

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A Morte Temporal, do Cristão e do Ímpio

I. TEXTOS BÍBLICOS413

A MORTE TEMPORAL

A morte temporal é o fim da existência terrena do homem; ela é a separação da alma imortal do seu corpo mortal.

1. A alma é imortal: Mt 10.28; Mt 22.32; Ap 6.9; Ec 12.7.2. O corpo é mortal: Rm 8.11; 1 Co 15.35-37,44,53; Mt 10.28.3. A morte temporal é a separação da alma imortal do seu corpo mortal: Lc 12.20; 2 Tm 4.6; Fp 1.23,24; 2 Co 5.1,4,8; Lc 23.43.

A MORTE DO ÍMPIO

A morte temporal dos ímpios é a conseqüência e ao mesmo tempo castigo do pecado não perdoado; ela é a transição da alma espiritualmente morta para a morte eterna que significa existência eterna longe de Deus na eterna condenação.

1. A morte dos ímpios é conseqüência do pecado: Rm 5.12,17,21.2. A morte dos ímpios é ao mesmo tempo castigo do pecado não perdoado: Rm 6.23; Ez 18.20,26; 33.18.3. A morte temporal dos ímpios é a transição da alma espiritualmente morta para a morte eterna, que significa existência eterna longe de Deus, em eterna condenação: 1 Pe 3.18-20; Ap 20.1-3; 6.8; Lc 16.23; Pv 11.7.

A MORTE TEMPORAL DO CRISTÃO

A morte temporal do cristão é também conseqüência do pecado, porém não é mais castigo de pecados não perdoados; é, ao contrário, sua libertação na carne corrompida e a porta que o conduz da vida espiritual que consiste em fé e esperança, para a vida eterna que consiste em bem-aventurança completa na presença de Deus.

1. A morte temporal do cristão é também conseqüência do pecado: Rm 5.12,15; 1 Co 15.25,26; 2 Co 5.4; Rm 8.10.2. A morte temporal do cristão não mais é castigo de pecados não perdoados; por causa da morte de Cristo o castigo já foi tirado e nossa dívida paga: Is 53.5; Gl 2.19; Fp 1.21,23; Lc 2.29.3. A morte temporal do cristão é sua libertação da existência na carne corrompida: Rm 7.22-25; 2 Tm 4.18; Fp 1.21-23; Lc 23.39-43..4. A morte temporal do cristão é a porta que o conduz da vida espiritual que consiste em fé e esperança, para a vida eterna que consiste em bem-aventurança completa na presença de Deus: Rm 8.24,25; Ap 14.13; Lc 23.43; 2 Co 5.2,8; Fm 23; At 7.59; Ec 12.7.

II. TEMPO, ETERNIDADE E O ESTADO INTERMEDIÁRIO 414

Resumo: O autor trata da questão da situação dos mortos, entre a morte física e a ressurreição. Começa mostrando a idéia de alguns teólogos de que o período intermediário seja atemporal. Para os mortos, sob esta explicação, não haveria diferença de tempo entre a sua morte e o juízo. Os que advogam tal idéia utilizam-se do conceito da atemporalidade de Deus - para Ele todos os momentos da História se passam no mesmo instante. Assim na eternidade a atemporalidade seria a característica básica da existência. E isto já valeria pra o estado intermediário. O autor, então, mostra que tal posição entra em conflito com a Escritura, por não fazer justiça à distinção entre a morte física e a ressurreição da carne e, conseqüentemente, por não poder suportar a

413 Retirado de Apostila distribuída pelo Prof. Johannes H. Rottmann, no Curso “Imortalidade, Morte e Ressurreição” (1984).414 Anotações a partir do artigo: “Time. Eternity and the Intermediate State”, de Edward G. Kettner, em: Concordia Journal 12/3 (Maio 1986): 90-100.

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ressurreição do corpo que foi sepultado. Por isso, segundo o autor, é preferível dizer que na eternidade haverá um novo tempo, mas nào atemporalidade.

- Argumentos levantados por Paul Althaus contra a afirmação de que os mortos estejam em um estado de espera, entre sua morte e ressurreição:

1) a idéia não consideraria amorte com seriedade;2) o julgamento final teria perdido seu sentido;3) tal ensino seria por demais individualista. (90)

- Uma alternativa seria: “na morte o indivíduo deixa o tempo para uma eternidade atemporal, na qual a ressurreição já aconteceu”. (91)

- “Falando da eternidade como atemporal, as categorias de extensão, intervalo e sucessão são limitadas a este universo físico e são descritas como sendo transcendidas na eternidade, de modo que o eterno ‘agora’ não está de modo nenhum relacionado ao decorrer dos eventos neste universo.” (91)

- S. P. Hebart (da Igreja Luterana da Austrália): “Nosso estado além da morte não é um tempo de espera sem fim. É um tempo diferente. É o tempo de Deus, o qual é atemporal. Assim não há um antes e um depois na eternidade. O que para nós parece como um antes e um depois, primeiro a morte, depois o estar com Cristo, então a ressurreição e daí a vida eterna, sob o ângulo de Deus seria ‘como o dia de ontem’ [Sl 90.4; 2 Pe 3.8], assim que nosa morte e nossa ressurreição são virtualmente colocadas juntas em um simples evento na eternidade, uma coisa que vai além de nosso poder de pensamento e conpreeensão.” (91)

- Gilbert A. Thiele (LC-MS):“No eterno AGORA de Deus, que é sempre presente, no qual não há ontem nem amanhã, mas apenas um HOJE permanente, é como se a ressurreição já tivesse acontecido.” (91)

- Outros teólogos que advogam tal idéia da eternidade: Karl Barth e Emil Brunner.

- Entra em questão a atemporalidade de Deus. Francis Pieper:“Deus é o Criador do tempo, sem se tornar temporal. Ele acompanha o tempo, sem se tornar sujeito ao tempo ou às suas leis. A relação de Deus com o tempo é como Sua relação com o espaço. Pois embora Deus tenha criado espaço e lugar e estar presente em toda a parte, Ele não se torna local, mas permanece exaltado acima do espaço e local.” (92)

- “Cullmann não concorda com tal interpretação do Salmo 90 e declara que o Salmo 90.4 e 2 Pedro 3.8 referem-se ao caráter ilimitado (sem fim) do tempo de Deus, mais do que à sua atemporalidade.” (92)

- “R. G. Swinburne vê a idéia [da atemporalidade de Deus] expressa na Escritura, mais claramente em João 8.58 (‘Antes que Abraão existisse, eu sou’) e também em Apocalipse.” (93)

- “Cullmann crê firmemente que a idéia de eternidade como atemporalidade vai inteiramente contra a concepção cristã de redenção e consumação no tempo. ... Burtness .. concorda que a idéia da eternidade como atemporalidade nega muito da verdade cristã. De fato, ele nota que a idéia pode ser usada para formar uma base para a imortalidade da alma, mas não para a ressureição dos mortos.” (95)

- “O fato de que o tempo da eternidade será qualitativamente diferente deste tempo, isto não muda o fato de que ainda será tempo, e que pode ser (e na Escritura é) descrito como seguindo o fim da presente era.” (97)

- “A Escritura tem algo a dizer sobre o assunto, e o que ela tema a dizer aponta para um entendimento do estado entre a morte e a ressurreição como um no qual o crente está na glória, ainda que esperando a ressurreição, e no qual o descrente está em tormento, ainda que esperando a ressurreição. ... O aspecto de ‘ainda não’ mostra que eles ainda estão, num certo sentido, em um ‘tempo direcionado’ - o tempo direcionado para o fim do mundo e a ressurreição geral.” (97)

- “O clamor do ‘até quando’ (Ap 6.10) e a afirmação de preocupação pelos irmãos do homem rico (Lc 16.28) usam aquela concepção.” (98)

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- “Se 1 Pedro 3.18,19 é entendida como se referindo à descida de Cristo ao inferno ... então não há possibilidade de que a morte possa ser entendida como uma passagem do tempo para uma eternidade atemporal.” (98)

A Terra e o Estado de Israel na Profecia e no Cumprimento415.

“Será o retorno do povo judeu à sua antiga Terra prometida e sua restauração do Estado de Israel no presente século um cumprimento das profecias bíblicas?”

A QUESTÃO HERMENÊUTICA

É importante relacionar tal interpretação ao princípio básico de interpretação das Escrituras: a Cruz de Cristo é o centro da mensagem bíblica. Jesus é a chave para o entendimento da Escritura.

“O Corpo de Cristo neste mundo caminho nos passos do Crucificado e sob o sinal da cruz, sem eventos externos vindicando sua fé e manifestando o Reino para os olhos do mundo, até o retorno de Cristo em glória para o julgamento e redenção final” (Ole Chr. M. Kvarme)

“De outra forma, a salvação e a justificação seriam apropriadas essencialmente pelo assentimento intelectual a provas externas, não por fé”.

“Não Jesus Cristo, o Salvador de Israel e das nações, mas antes o povo e a terra de Israel tornaram-se tanto a chave para interpretar a Escritura como também uma espécie de co-redentor.”

ISRAEL NA PROFECIA E NO CUMPRIMENTO

A terra prometida “para sempre”.

“ ‘olam no AT pode bem indicar uma situação que não é absolutamente eterna, mas apenas relativamente permanente dentro de limitações históricas, isto é, além do futuro previsto”.

Textos que falam da restauração de Israel na sua terra “para sempre”: Is 61.7,8; Jr 32.37-41; Ez 37.24-26; Am 9.15.

“Seu contexto sempre indica que seu cumprimento depende de certas condições serem realizadas”: - condenação da injustiça e descrença (Is 59.1-15); - fé e obediência (Jr 32.23s,29-35; Ez 37.23s);- justiça e misericórdia (Am 5.12-24; 8.4-12).

“Se os israelitas tivessem cumprido seus obrigações da aliança, Deus os teria abençoado de tal forma que eles possuiriam a terra de Canaã e habitariam nela próspera e permanentemente, como prometido a eles por Moisés (Dt 28.1-14).”

Com a vinda do Messias de Israel, Jesus: “porque a Ele foi confiado o domínio sobre todo o mundo e Ele não governa de um trono terreno (Mt 28.18; Jo 18.36), nenhuma terra - nem mesmo a antiga terra natal de Israel - tem qualquer importância única. A ‘terra’ do Israel do Messias é o mundo todo.”

Uma segunda volta para Israel dos quatro cantos da terra (Is 11.11s).

A primeira volta de que fala o profeta é o retorno dos israelitas, sob a liderança de Moisés, da escravidão do Egito (v. 16). A segunda volta, no entanto, não precisa ser necessariamente identificada com a volta da Babilônia. O texto é messiânico (v. 11-16): “É o Messias de Israel, então, que vai liderar o povo de Israel de sua dispersão dos quatro cantos do mundo. Interessante é que Israel não teve uma diáspora de vulto nas terras mencionadas por Isaías, com exceção de Assíria (v. 11).”

“É interessante que este novo retorno está relacionado à revelação do Messias às nações do mundo. Isto tem acontecido desde o Pentecostes. Portanto, devemos concluir que esta nova reunião do remanescente de Israel (v. 16) tem ocorrido simultaneamente com a evangelização dos gentios (ver Rm 11.11,14). Este remanescente é, pois, idêntico a aqueles judeus que aclamam Jesus como seu Messias e Salvador, isto é, os verdadeiros israelitas segundo Paulo (Rm 9.6-8).”

O cumprimento se dá não na volta à terra de Canaã, mas ao Messias!

Um retorno a Israel nos “últimos dias”. (Jr 30.24; Ez 38.16)

415 John R. Wilch, “The Land and State of Israel in Prophecy and Fulfillment ”, Concordia Journal Set/1982, 172- 178

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“Em hebraico, a frase diz literalmente: ‘no fim dos dias’. Isto significa freqüentemente não mais que uma situação após um período desconhecido ou ao final de um tempo definido cuja duração não é revelada (por exemplo, Gn 49.1; Jr 23.20). Pode, de fato, apontar para a era Messiânica (Is 2.2; Jr 30.24; 48.47; 49.39; Ez 38.16; Os 3.5; Mq 4.1), a era entre os dois adventos de Cristo, na qual estamos agora vivendo. Cristo cumpre estas passagens, da mesma forma como em relação a Is 11.11-12 (ver acima). Em contraste, “no tempo do fim” em Dn 11.40 é sem dúvida uma expressão diferente que se refere ao fim do mundo e aos concomitantes julgamento e ressurreição.”

Um retorno de todas as doze tribos. (Ez 37.11,19-22; 47.13-48.35)

“Particularmente importante é que os israelitas no novo Judá ao tempo de Esdras consideraram-se como sendo, ou pelo menos representando, as doze tribos de todo Israel, pelo que firam oferendas (Ed 6.17). O NT também considera os judeus daquele dia em Israel e na diáspora como constitutivos de todas as doze tribos (At 26.7; Tg 1.1). Visto que o NT considera ‘as doze tribos de Israel’ como uma expressão figurativa para a totalidade da igreja, o cumprimento final das profecias de Israel não foi a volta dos judeus da Babilônia, mas a reunião dos judeus e gentios na igreja de Cristo, como os verdadeiros ‘filhos de Abraão’ (Rm 11.17; Gl 3.29).”

A restauração física da terra.

“O prometido recultivo da terra de Israel, a reconstrução de suas cidades e o crescimento da população já se cumpriram historicamente nos quatro últimos séculos antes de Cristo. Mas teologicamente, se cumprem no bem-estar físico, mental e espiritual (shalom) que o Messias realiza entre os Seus seguidores e que estes mediam para seus respectivos povos e culturas.”

A terra no Novo Testamento.

“O que Cristo preanunciou sobre Jerusalém e o povo de Israel foi, respectivamente, sua destruição e dispersão (Lc 21.6,20-24). Mas o que Ele e Seus apóstolos profetizaram sobre a terra prometida e sobre uma volta do povo judeu para ela? Nada! Não há retorno para a terra, não há restauração, não há uma nova posse de Jerusalém, não há reconstrução do templo. Estes fatos são notáveis pela sua ausência, mesmo no Apocalipse.”

“Cristo preanunciou a reunião de Seus eleitos no Seu segundo advento “de uma a outra extremidade dos céus” (Mt 24.31), o que relembra as profecias sobre a volta de Israel para sua terra (Dt 30.4; Zc 2.6). Entretanto, há a menção apenas dos seguidores do Messias, não de todo o povo de Israel, nem de sua terra. A figura simbólica do reino milenar de Cristo com Seus mártires fiéis (Ap 20.1-6) não menciona uma localidade específica. Mesmo a nova Jerusalém, que vem do céu não vem para Sião ou Israel, mas, antes, para a recém criada nova terra (Ap 21.12). O centro da atenção no NT não é mais o povo físico de Israel, mas os seguidores fiéis do Messias de Israel - não é mais a terra de Israel, mas estar na presença do Messias: o foco está somente em Jesus Cristo.”

“Não é assim que o NT esteja em silêncio sobre a terra de Israel, como se não tivesse nenhum significado para o povo de Deus depois do primeiro advento do Messias. Por um lado, é digno de nota como lugar do qual o evangelho vai para todas as nações (Lc 24.47; At 1.8). Por outro lado, ela continua servindo como um tipo da Nova Jerusalém celeste, que será revelada no fim, como herança de todos os crentes, tanto judeus como gentios (Jo 14.2; Gl 4.26; Hb 11.13-16; 12.22-24; 13.14). Ela pode nos lembrar dos poderosos atos de julgamento e salvação de Deus através do antigo Israel, de Cristo e os apóstolos, e de Suas promessas de glória futura. Mas, visto que o cumprimento final não envolverá a terra de Israel, ela não é um chão santo em si mesmo.”

A Restauração da nação de Israel.

“Algumas profecias prometiam que Israel continuaria “para sempre” como uma nação, seria vitoriosa sobre seus inimigos e possuiria novamente Jerusalém. Entretanto, os judeus tornaram-se novamente nacionalmente independentes por cento e um anos sob seus líderes hasmoneanos (164-63 a.C.). Derrotando seus antigos inimigos, filisteus, edomitas, moabitas e amonitas, Judá quase alcançou o tamanho e a prosperidade que Israel uma vez desfrutara sob Davi e Salomão.”

“Em Jr 31.36 e Mc 4.7, Israel é chamado goy, que indica uma nação organizada politicamente com fronteiras estabelecidas. Em comparação, o termo ‘am denota um povo unificado racialmente. Entretanto, visto que os termos podem ser usados intercambiavelmente no AT, o mero fato de que goy seja empregado nas passagens acima, não prova que uma nação politicamente independente no sentido moderno esteja sendo referida, e não uma entidade étnica não política. O contexto imediato de Jr 31.35-37 não exige a tradução

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‘nação’ ao invés de ‘povo’. Os versos precedentes, 31-34, e Mq 4.6-8 são profecias messiânicas, cumpridas na instituição de Cristo da nova aliança e no Seu reino como o novo Davi.”

A monarquia davídica.

“O restabelecimento da nação de Israel é freqüentemente ligado à reinstituição da monarquia davídica (Jr 23.5s; Ez 34.22-31; 37.21-26; Am 9.11-15; Mq 4.7s; 5.2-4). Obviamente, o presente estado de Israel não é uma monarquia, muito menos davídica. De fato, ninguém vivendo hoje pode dizer com segurança ser um descendente de Davi. Cristo explicou aos Seus discípulos que, apesar de Ele era de fato o prometido Rei Davi, a profecia estava sendo cumprida por Ele espiritual e universalmente, e não física e localmente. Ele governa através de Sua presença divino-humana e do Espírito Santo (Mt 18.20; 28.18-20; Lc 17.21; Jo 14.16-27; 18.36s). Este é o cumprimento da anunciação de Gabriel para Maria (Lc 1.32s), assim como os apóstolos entenderam já no ‘concílio’ de Jerusalém (At 15.14-21).Isto não foi claramente previsto pelos profetas, mas Deus escolheu cumprir suas predições com respeito ao governo do novo Davi desta forma (Is 2.2-4; 9.6s; 11.1-5; 42.1-9; 49.9s). De fato, desde Sua ascensão, Cristo está reinando eternamente no trono de Davi (At 2.33-36; 14.33-37; Ef 1.20-23; Ap 1.5,6). É isto que cumpre a promessa de que a casa, o reino e o trono de Davi seriam estabelecidos para sempre (2 Sm 7.16; Sl 89.3s,18-37). Contrastando com isto, um reino milenar estaria limitado a apenas mil anos.”

Os conflitos finais.

À base de textos como Ez 38-39; Dn 11.40-45; Zc 12-14 e Ap 4-19, há escritores que identificam países modernos e constroem todo um arcabouço de acontecimentos políticos, que levariam à 3 a Guerra Mundial, e que estariam sendo preanunciados pela revitalização da nação e do estado de Israel em sua antiga terra, com crescente animosidade das nações contra Israel.

“Entretanto, todas as passagens acima citadas são altamente figurativas: primeiro, os nomes étnicos em Ez 38.2,6 referem-se a povos antigos da Anatólia e não têm qualquer relacionamento com modernos países ou povos europeus.”

“Segundo, Dn 11.1-5 aponta para o tempo dos Ptolomeus e Selêucidas e sua guerra sobre Judá no 3 o e 2o séculos a.C. e 12.1-2 pertence ao verdadeiro fim. Embora os versículos intermediários tragam alguma semelhança à conquista romana do Oriente Próximo, eles são or demais vagos para conectá-los a eventos futuros ou modernos. Assim como interpretado por Paulo em 2 Ts 2.3-4, a figura do maligno ‘rei do Norte’, que historicamente foi representada por Antíoco IV, receberá seu cumprimento pelo anticristo no fim.”

“Terceiro, certas passagens em Zc 12-14 forma obviamente cumpridas pelo próprio Cristo (12.10; 13.7). Outras podem ser entendidas como tendo sido cumpridas naquele tempo: o lamento dos judeus na morte de Jesus (12.10-14); a redenção para Israel através da morte de Cristo (13.1). Quanto ao restante, pode estar prevendo eventos do fim, apesar de que sem ser específico a respeito dos inimigos de Israel. Entretanto, pode muito bem estar incluída uma predição figurada de como Deus pune qualquer nação que persiga Israel, cumprindo Sua promessa a Abraão: ‘aquele que te amaldiçoar, eu o amaldiçoarei’ (Gn 12.3).”

“Quarto, em Ap 4-19, os fiéis são encorajados contra as forças do mal por meio de símbolos de cataclismas universais. Algumas poucas passagens podem ser tomadas quase que literalmente, indicando a queda de Roma (14.8; 18.2-20) e a bênção para os fiéis (14.13; 19.9). Isto leva à conclusão de que estes capítulos de Apocalipse apontam não para o fim, mas, com base no pano-de-fundo da então perseguição dos cristãos pelo imperador romano Domiciano, A.D. 93-96, para os sofrimentos dos cristãos em qualquer parte do mundo até o fim. Apesar da mais terrível oposição, Deus irá vindicá-los e salvá-los e derrotará todos os ímpios inimigos (19.1-9). Como consolo, isto é relevante para quaisquer cristãos que sofram perseguição, mas não para os eventos atuais de outra natureza.”

A IMPORTÂNCIA DA MODERNA RESTAURAÇÃO DE ISRAEL

“O restabelecimento moderno do estado de Israel não é um cumprimento da profecia bíblica, como interpretado por entusiastas contemporâneos. Entretanto, isto demonstra que Cristo, como o Rei universal e davídico, não esqueceu Seu povo segundo a carne. Assim, Seu chamado aos judeus para que o aceitem como seu Messias e Salvador continua válido. Cristãos gentios têm, portanto, o dever de oferecer ao povo judeu o evangelho do Messias (Rm 10.12-15) e serem Seus seguidores de tal forma em ações, de modo que os judeus se tornem ciumentos (11.11,14) desta salvação para todos.”

“Assim como a comunidade de Qumran e sectários de todos os tipos têm feito, os entusiastas de hoje estão realizando não uma cuidadosa exegese, mas eisegese, ao lerem eventos e experiências presentes para dentro da Escritura. Isto é, no mínimo, uma troca parcial de Cristo e da salvação através dele somente por sensacionalismo jornalístico e fé em eventos históricos que virão. Um acontecimento atual pode bem ser um

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sinal que nos lembra que Deus através de Cristo governa a história e que Ele a trará a um fim. Entretanto, nenhum intérprete cristão da Escritura, da história ou do presente pode obscurecer a Cristo. ele somente é o meio da salvação, não eventos presentes. Concluindo, diz Lutero: “Tire Cristo das Escrituras e o que mais você encontrará nelas? ... As Escrituras precisam ser entendidas a favor de Cristo, não contra Ele.’(WA, 18:607)”

O Propósito dos Sinais dos Tempos do Fim

1. Não é o de permitir cálculos por parte da igreja, que despertem nela um senso de manipulação sobre os atos que pertencem unicamente a Deus (Mt 24.36; 1 Ts 5.1-3; 2 Pe 3.10).

2. Não é o de causar terror nos filhos de Deus, ou deixá-los inquietos e angustiados. Na verdade, tal reação é provocada por falsos profetas, contra o que Cristo alerta os Seus (Mt 24.6; 2 Ts 2.2).

3. Deixam os cristãos alertas para os fatos que hão de vir. Cristo não deixa Sua igreja em uma situação de ignorância. Além da palavra anunciada, Ele concede, misericordioso, sinais que deixam Seu povo em constante prontidão (Mt 24.4,25).

4. Assinalam o fato de que este mundo, e as coisas que nele estão, não são eternos, mas se encaminham para um fim. É, portanto, loucura, depositar nas “coisas” a confiança para a vida (Mt 24.7,8,35; cf. 16.26; Lc 12.20,21).

5. Mostram que Jesus continua reinando com graça e poder. Os acontecimentos que apontam para o fim foram por Ele anunciados e estão debaixo do Seu governo. A igreja, portanto, sabe-se amparada, pois Aquele em quem ela deposita a confiança tem nas Suas mãos o destino do mundo.

6. Chamam à vigilância diante do fato que a vinda de Cristo, anunciada na Escritura e apontada pelos sinais, pode ser aguardada para qualquer momento. Isto significa que não se pode considerar a vida cristã sem a perspectiva do encontro com o Senhor. A vigilância consiste, não em um capacidade e preparo humanos, mas em arrependimento e fé verdadeira, operados pelo próprio Deus, por Sua palavra. Ainda, tal vigilância se manifesta em vida consagrada e de serviço a Cristo. (Mt 24.33,35,42; 25.1-30; Mc 13.33-37; 1 Ts 5.6).

7. Oportunizam consolo aos cristãos. Estando em Cristo, o fim é aguardado serena, paciente e alegremente, pois é, acima de tudo, redenção, para a qual os sinais também apontam (Lc 21.28; 1 Ts 4.18).

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O Anticristo

“A preposição anti originalmente significa “no lugar de”, e depois, “contra”. ... A palavra composta com pseudo, porém, ... dá à palavra a conotação de ser falso ou enganoso.” (NDITNT, “ ” , I: 232, por E. Kauder).

é utilizada em Mt 24.24 (e no texto paralelo, Mc 13.22). Sobre esta palavra, diz o Léxico BAGD: “alguém que, de forma mentirosa, apresenta-se como sendo o Cristo, um falso Messias” (p. 892).

A diferença entre os dois conceitos parece ser que “o anticristo se opõe a Cristo, enquanto que o pseudocristo é meramente um pretendente ao ofício messiânico.” (H. B. Swete, Commentary on Mark, 309)

Pode-se considerar também o “abominável da desolação” como sendo uma referência ao anticristo, tendo em vista que no texto de Mc 13.14 “a abominação da desolação é personificada, pois a construção gramatical está no masculino” (NDITNT, I: 233)

Tradicionalmente416 considera-se que 2 Ts 2 também se refira ao anticristo, quando fala do “”homem da iniqüidade” e sua atuação de semear o erro no mundo. Também Ap 13 é lembrado, com a “besta” que tem sua atuação diretamente vinculada com o dragão (Satanás) e que atua com violência (v. 7) e sedução (v. 14) contra a igreja.

Textos que empregam a palavra : 1 Jo 2.18,22; 4.3; 2 Jo 7.

Há algumas características deste Anticristo, segundo a Escritura:• Sua atuação está diretamente ligada à apostasia417 e iniqüidade (2 Ts 2.3)• Ele é o “filho da perdição” (2 Ts 2.3)• Ele quer tomar o lugar de Deus no “templo de Deus”, isto é, a Igreja Cristã (2 Ts 2.4)• Ele se mostra como se tivesse poder divino; se exibe como se fosse Deus (2 Ts 2.4; cf. Dn 11.36)• Estava atuando na igreja primitiva, como “anticristos”, que saíram do meio da igreja; sua presença revelava

estarem em processo os tempos do fim (a “última hora”) (1 Jo 2.18)• Caracteriza-se por agir contra Jesus, negando Sua Pessoa e obra (1 Jo 2.22; 4.2; 2 Jo 7)• nos tempos apostólicos, sua atuação estava limitada (restringida) por alguém (alguma coisa) (2 Ts 2.6,7)• Ele é um falso cristo. Quer imitar a Cristo. Tem uma “vinda”, para imitar a vinda de Cristo (2 Ts 2.8,9).

Realiza “sinais e prodígios” (2 Ts 2.9), para imitar Cristo, que realizou milagres, prodígios e sinais (At 2.22). Para combater a verdade do Evangelho, Ele traz o “engano de injustiça” e “operação do erro” (2 Ts 2.10-12).

• Ele permanece até o dia do julgamento, quando Cristo o destruirá (2 Ts 2.8).

Nas Confissões Luteranas:

• Apologia VII, VIII 4 (p. 177) (não referência direta ao papado, mas dizendo que o anticristo “domina e exerce ofícios na igreja)

• Apologia VII, VIII 48 (p. 186) (não se refere ao papado, mas a falsos mestres - anticristos)

• Apologia XV 18 (p. 230) - referência ao papado

• Apologia XXIV 51 (texto alemão) (p. 277) - referência ao papado (“os adversários”)

• Apologia XXIV 98 (p. 287) - referência ao papado

416 Ver estudo de Weinrich sobre o Anticristo na Igreja primitiva e a abordagem no Livro de Concórdia (Ap VII 4; AE II 4 o 10,11; Tr 39).417 O termo significa apostasia ou rebelião, tanto no sentido político como religioso; o último, porém, predomina no AT (Js 22.22; 2 Cr 29.19; 33.19; Jr 2.19). No NT é empregado no texto em estudo e em At 21.21, também no sentido religioso, o que segue o uso do verbo cognato, (Lc 8.13; 1 Tm 4.1; Hb 3.12).

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• Artigos de Esmalcalde 2a parte 2o artigo 25 (p. 317) - referência ao papado

• Artigos de Esmalcalde 2a parte 4o artigo 10, 14 (p. 321) - referência ao papado

• Artigos de Esmalcalde 3a parte XI 1 (p. 338) - referência ao papado

• Tratado 39-59 (pp. 352-355) - referência ao papado

A Segunda Vinda de Jesus418

1. A volta de Cristo será visível - todos os verão.

Mt 24.27,30: “Porque assim como o relâmpago sai do oriente e se mostra até no ocidente, assim há de ser a vinda do Filho do homem. ... então aparecerá no céu o sinal do Filho do homem; todos os povos da terra se lamentarão e verão o Filho do homem vindosobre as nuvens do céu com poder e muita glória.”Ap 1.7: “Eis que vem com as nuvens, e todo olho o verá, até quantos o traspassaram. E todas as tribos da terra se lamentarão sobre ele. Certamente. Amém.

Não há uma vinda secreta de Jesus, como propõe alguns milenistas (Pré-milenismo dispensacional: Cristo voltaria primeira vez para o arrebatamento dos justos)

2. Cristo voltará em glória, acompanhado pelos seus anjos.

Mt 16.27: “Porque o Filho do homem há de vir na glória de seu Pai, com os seus anjos, e então retribuirá a cada um conforme as suas obras.”

3. Quando Cristo voltar, os mortos - bons e maus - ressuscitarão.

Jo 5.28,29: “Não vos maravilheis disto, porque vem a hora em que todos os que se acham nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão: os que tiverem feito o bem, para a ressurreição da vida; e os que tiverem praticado o mal, para a ressurreição do juízo.”Jo 6.40: “De fato a vontade de meu Pai é que todo homem que vir o Filho e nele crer, tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia.”

Não há base para afirmar uma ressurreição antes do . A ressurreição de todos os mortos se dará no fim dos tempos. Não há um espaço entre a volta de Cristo, a ressurreição dos mortos e o destino eterno destes, como bem mostram as palavras de Jesus em João.

4. Quando Cristo voltar para o juízo, os crentes serão arrebatados e se encontrarão com o Senhor nos ares.419

1 Ts 4.14-17: “(14) Pois se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também Deus, mediante Jesus, trará juntamente em sua companhia os que dormem. (15)Ora, ainda vos declaramos, por palavra do Senhor, isto: nós, os vivos, os que ficarmos até a vinda do Senhor, de modo algum precederemos os que dormem. (16) Porquanto o Senhor mesmo, dada a sua palavra de ordem, ouvida a voz do arcanjo, e ressoada a trombeta de Deus, descerá dos céus, e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; (17) depois nós, os vivos, os que ficarmos, seremos arrebatados juntamente

418O comentarista (milenista) Russel Norman Champlin (em o Novo Testamento Interpretado ) faz um interessante comentário sobre a importância do ensino da παρουσια na Escritura: “É acontecimento predito nas páginas do AT (Dn 7.13); e figura tão freqüentemente no NT que é mencionado numa média de um versículo a cada vinte e três.” (5: 202)419É ponto básico na doutrina milenista a diferenciação entre a vinda de Jesus “para a Igreja” e “para o juízo”. Os milenistas colocam entre estes (segundo eles) dois acontecimentos o período da “grande tribulação”. Russel N. Champlin cita John F. Walvoord, presidente do Dallas Theological Seminary, que aponta “ cinqüenta razões pelas quais cria no arrebatamento antes da tribulação, o que significa que a Igreja nào passaria pelo período da grande tribulação.” (Champlin, 5: 203; meu grifo)

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com eles, entre nuvens, para o encontro do Senhor nos ares, e assim estaremos para sempre com o Senhor.”Os milenistas, conforme o demonstra Champlin no seu comentário, entendem este texto como sendo a

vinda de Jesus para a Igreja, arrebatando a Igreja, antes da grande tribulação e da vinda para o Juízo. Uma interpretação assim é problemática, tendo em vista que em todos os textos bíblicos em que se relata a volta de Jesus há uma identificação imediata daquele acontecimento com o julgamento de todas as pessoas, vivos e mortos, bons e maus. Somente com “proezas” exegéticas, jogando um texto contra o outro (não interpretando os mais difíceis à luz dos mais simples) é que se chega àquela interpretação equivocada. No que tange ao texto específico de 1 Ts 4, fica realmente muito difícil sustentar um tempo entre uma vinda de Cristo para a Igreja e o Juízo. O contexto aponta noutra direção. No início do cap. 5 (v. 2) Paulo fala do “dia do Senhor”, que vem “como ladrão de noite”. A mesma expressão é usada por Jesus no seu discurso escatológico (Mt 24.42-44), num contexto onde claramente se fala do fim dos tempos, quando “todos os povos da terra se lamentarão e verão o Filho do homem vindo sobre as nuvens”(v. 30). No mesmo contexto, no capítulo 25 de Mateus, Jesus fala da vinda do Filho do homem (deixando claro que está falando do mesmo acontecimento relatado no cap. 24), quando acontecerá que “todas as nações serão reunidas em sua presença e ele separará uns dos outros...“ (Mt 25.31,32).

O Documento da CTRE LC-MS sobre “Os Tempos do Fim” tem um comentário importante sobre o texto, especialmente para o v. 17:

O propósito do “arrebatamento” que Paulo descreve em 1 Ts 4.17 é evidente, a partir da linguagem que ele emprega neste versículo. A palavra traduzida por “encontro” é um termo técnico usado no tempo do Novo Testamento para descrever uma recepção pública dada por uma cidade a um visitante ilustre. Os principais cidadãos da cidade normalmente deixariam a cidade para “encontrarem-se” com o distinto visitante e então acompanhá-lo para dentro da cidade (cf. At 28.15). Paulo parece estar dizendo, portanto, que os cristãos irão se encontrar com o Senhor nos ares para acompanhá-lo em honra para a Terra para o Julgamento., Os cristãos estarào incluídos em Sua gloriosa companhia de anjos enquanto ele desce para a Terra. (40)

Mt 24.40,41: “Então dois estarão no campo, um será tomado, e deixado o outro; duas estarão trabalhando num moinho, uma será tomada, e deixada a outra”.

Antes de mais nada, é preciso entender este texto à luz do contexto mais amplo. No início do capítulo 24, os discípulos perguntam a Jesus “que sinal haverá da tua vinda e da consumação do século” (v. 3). No sermão escatológico Jesus fala de dois eventos, a queda de Jerusalém e a consumação do século, isto é, o fim do mundo. Ao referir-se ao segundo evento, deixa claro que ocorrerá na sua segunda vinda, que acontecerá de forma visível, com os anjos de Deus, em grande glória (v. 27-31).

Depois, note-se que o versículo 31 trata do mesmo assunto que os versículos 40 e 41, ao dizer: “E ele enviará os seus anjos, com grande clangor de trombeta, os quais reunirão os seus escolhidos, dos quatro ventos, de uma a outra extremidade dos céus”.

Comentando sobre os versículos 30 e 31 do mesmo capítulo, Frederick D. Bruner faz importantes ressalvas à interpretação milenista:

Este encontro é o que a Igreja chama de arrebatamento. É importante notar que este arrebatamento ocorre depois da vinda cósmica, pública, visível do Filho do homem. Não há na Escritura algo como um arrebatamento secreto. O arrebatamento não é um misterioso rapto por um Filho do homem invisível antes de uma última vinda. A vinda e o arrebatamento acontecem juntos e nesta ordem, aqui e em toda a parte na Escritura. ...

A Escritura não sabe nada de duas vindas futuras de Cristo - uma secreta, para a Igreja, e uma pública, para o mundo. Antes, o Filho do homem volta uma vez - cósmica, visível e publicamente - para reunir os seus eleitos e condenar os impenitentes. ...

A decisão sobre escatologia dispensacionalista pode ser feita pela decisão de entender a Escritura ou como evangelho ou como um quebra-cabeças. (Matthew, vol. 2: 873)420

Sobre os versículos 40 e 41, Bruner aponta para o fato de que o arrebatamento não está ocorrendo com pessoas especiais (pastores, líderes), que estejam em lugares ou situações especiais (na Igreja, em oração), mas pessoas no seu lugar de trabalho. Ele completa:

Este fato honra as vocações seculares e os cristãos sendo fiéis nelas (este ponto será enfaticamente trazido nas parábolas e julgamento no capítulo 25) Assim levar a sério a vinda do Senhor para o julgamento não significa levar menos a sério o trabalho. (882)

420Bruner comenta neste ponto a asserção de Hal Lindsay, de que as profecias sobre a volta de Jesus são como peças de um quebra- cabeças espalhadas pelo Antigo e Novo Testamentos. A “f igura” completa só poderia ser encontrada a partir de uma decodificação realizada por mestres especialmente dotados! (873)

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5. Em nenhum lugar nas Escrituras a volta de Cristo está associada a um estabelecimento de um reino terreno, político, o “milênio”.

O professor Walter Kunstmann, em um estudo sobre o “Quiliasmo”, faz um desafio interessante:Desafiamos os quiliastas de nos apresentar uma só passagem clara que fala de uma dupla volta visível do Salvador, de uma dupla ressurreição dos mortos e de um reino de Cristo de mil anos aqui na terra.421

Os textos bíblicos que falam da volta de Jesus mostram que Ele virá para o julgamento e para levar os crentes para a vida eterna. Ver Mt 16.27; 25.31; Jo 14.3; 2 Ts 1.7. O Dr. Kunstmann conclui:

Não há lugar para introduzir entre estes dois acontecimentos indissolúveis a volta de Cristo e o juízo, um intervalo de 1000 anos. (123)

No seu estudo, o Dr. Kunstmann utiliza Ap 20 - texto base para os milenistas - para comprovar sua tese. Para tanto, compara422 aquele texto com outros textos no NT, mostrando que os “mil anos” são o que no restante do NT se caracteriza como o tempo da graça:

Apocalipse 20.6 Textos no NT Significado“bem-aventurados” Mt 5.3; 16.17; Lc 11.28;

Jo 20.29assim são chamados os que ouvem a Palavra de Deus e vivem vida cristã.

“primeira ressurreição” Ef 5.14; Jo 5.25 é a ressurreição espiritual da morte espiritual [conversão]

“santos” Rm 1.7; 1 Co 1.2; 2 Co 1.1; 1 Pe 2.9; Ef 5.27; Hb 3.1

assim são chamados os crentes em Cristo

“sobre estes não tem poder a segunda morte”

Jo 3.36; 10.27; 11.26 os crentes todos estão livres da morte eterna

“serão sacerdotes de Deus e de Cristo”

Is 61.6; 1 Pe 2.5,9; Ap 1.5

todos os crentes da era messiânica são assim chamados

Kunstmann conclui corretamente: Não é possível restringir o acima testificado apenas a poucos mártires ressuscitados, mas claro é que estes privilégios dizem respeito a todos os fiéis em comum. (125)

V. Como Jesus podia desconhecer a data de Sua volta? (Mt 24.36)

Fórmula de Concórdia Epítome VIII 16: Segundo a união pessoal, sempre teve esta majestade; todavia, em seu estado de humilhação abriu mão dela, e por isso verdadeiramente cresceu em idade, sabedoria e graça diante de Deus e dos homens. Razão porque não mostrou esta mejestade sempre, mas quando assim lhe agradava, até que, depois de Sua ressurreição, pôs inteiramente de lado a forma de servo, e não a natureza [humana], e foi estabelecido no pleno uso, revelação e manifestação da majestade divina, e assim entrou em sua glória, de modo que agora, não só como Deus, mas também como homem, sabe tudo, pode fazer tudo, está presente a todas as criaturas ...423

Mueller, Dogmática Cristã:A Fórmula de Concórdia emprega como sinônimos as expressões encobrimento (krypsis) e não-uso da majestade divina de Cristo comunicada à natureza humana. (Decl. Sól., VIII, 26, 65: “Esteve encoberto e retido [para a maior parte] ao tempo da humilhação.”). Este emprego dos dois termos é escriturístico; pois a humilhação de Cristo encerrava um verdadeiro encobrimento da majestade divina de Cristo, por isso que era verdadeira e efetivamente Deus, Cl 2.9, e não obstante aparecia como simples homem, Jo 19.5. Por outra parte, a humilhação de Cristo encerrava também uma renúncia de fato, na verdade não dos atributos segundo a sua natureza divina, porém da aparição na forma de Deus (morphée Theou), ou seja, do pleno uso dos atributos divinos a ele comunicados; pois que positivamente apareceu na forma de servo (morphée doulou).424

421Igreja Luterana Julho, Agosto/ 1950: 121.422Kunstmann, “Quiliasmo”, 124,125.423Livro de Concórdia , p. 525. (Ênfase acrescentada)424John Theodore Mueller, Dogmática Cristã , I: 300.

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A Ressurreição dos Mortos

Jó 19.25-27

Texto Massorético: `~Wqy" rp'[ '- l[; !Arx]a;w> yx' ylia]GO yTi[.d;y" ynIa]w: 25 `H;Ala/ hz<x/a, yrIf'B.miW tazO-WpQ.nI yrIA[ rx;a;w> 26

`yqixeB. yt;yOl.ki WlK' rz"-al{w > War' yn:y[ew> yLi-hz<x/a, ynIa] rv,a] 27Septuaginta:

25 26 27

Almeida R.A.:

25 Porque eu sei que o meu Redentor vive, e por fim se levantará sobre a terra. 26 Depois, revestido este meu corpo da minha pele, em minha carne verei a Deus. 27 Vê-lo-ei por mim mesmo, os meus olhos o verão, e não outros; de saudade me desfalece o coração dentro em mim.

BLH:

25 Pois eu sei que o meu defensor vive; no fim ele virá me defender aqui na terra. 26 Mesmo que a minha pele seja toda comida pela doença, ainda neste corpo eu verei a Deus. 27 Eu o verei com os meus olhos; os meus olhos o verão, e ele não será um estranho para mim. E desejo tanto que isso aconteça!

Bíblia de Jerusalém:

25 Eu sei que o meu Defensor está vivo e que no fim se levantará sobre o pó: 26 Depois do meu despertar, levantar-me-á junto dele, e em minha carne verei a Deus. 27 Aquele que eu vir será para mim, aquele que meus olhos contemplarem não será um estranho. Dentro de mim consomem-se os meus rins.

Horace Hummel, The Word Becomming Flesh, pp. 476-480.O texto está dentro do grande contexto de Jó, numa triste situação, estar tentando encontrar

equilíbrio espiritual. O texto é um dos pontos altos de todo o livro e de toda a luta de Jó. O que nem sempre é lembrado é que este texto é o clímax de um assunto que já vinha sendo tratado, pelo menos em três outros textos.

Primeiro, em Jó 9.33, com o x;ykiAm - árbitro. Jó está pintando Deus como um grande tirano, diante do qual nenhum dos seus esforços tem qualquer valor. Mesmo se pudesse ir à corte com Deus, de nada lhe adiantaria. Tudo o que Jó pode ansiar é por um árbitro, um mediador (a LXX traduz o termo por ) neutro, que “ponha a mão sobre nós ambos”. No pensamento pagão politeístico, existe formalmente um paralelo, na idéia de um deus pessoal, que defende a pessoa no conselho dos deuses. Se Jó tem isto em mente (usa palavras de sua época), “árbitro” seria uma fraca tradução. Daí que entende-se porque alguns têm visto aqui uma profecia messiânica direta, o que talvez seja um exagero.O capítulo 14 é importante no assunto. Pela primeira vez, a idéia de uma solução além do túmulo parece entrar no pensamento de Jó. A maior parte do capítulo é uma meditação sobre a brevidade da vida humana. Sendo ela assim breve, por que Deus não deixa simplesmente o homem ter repouso e ter “prazer no seu dia”? (v. 6) No entanto, a partir do v. 13 Jó fala de si mesmo e pergunta se ele não poderia ser “escondido” (ynInEPIc.T de !Pc = esconder, guardar) - não “morto”, mas protegido da ira de Deus. E então, ao Deus o chamar, ele voltaria para uma nova situação (v. 15). Mas parece que isto é esperar demais (vv. 18ss). É interessante que no v. 12 Jó emprega três termos que são usados para a idéia da ressurreição.

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A idéia vem novamente em Jó 16.18-22. Apesar de Deus e de seus “consoladores molestos” (v. 2) não o ajudarem, Jó não desiste. Ele pede que seu sangue não seja sepultado, para que possa clamar aos céus por justiça (cf. Gn 4.10; Is 26.21; Ez 24.7,8). No entanto, para que isso tenha algum valor, é preciso que alguém esteja no céu para ouvi-lo. E então, Jó deixa de falar hipoteticamente e afirma que “a minha testemunha está no céu” (v. 19).

Quem será esta “testemunha” (ydI[e ), o que “advoga a minha causa” (ydIh]f )? Há quem interprete como sendo o próprio Deus. Neste sentido, Jó estaria apelando para “Deus contra Deus” ou, em outras palavras, apelando ao Deus de misericórdia, que certamente deveria se manifestar, apesar de até agora estar se manifestando em ira. Não é impossível que Jó esteja pensando assim, apesar de que o contexto parece excluir esta idéia, visto que Deus se mostra como acusador. Outra possibilidade é que a “testemunha”, assim como o “árbitro” (9.33) seja uma terceira parte, um intercessor ou intermediário, que atue junto a Deus, assim como no caso um “homem contra o seu próximo”.

Em Jó 17.1-3 Jó parece ver que não há uma testemunha sua na corte celestial; por isso, apela para o próprio Deus, para que este lhe dê um penhor.425 O cristão sabe que só o Cristo ressurreto cumpre com esta expectativa, mas o quanto Jó sabia isto claramente é difícil dizer.

O ânimo de Jó muda já em 19.23. Agora Jó articula sua esperança em termos de um “redentor” (ylIa]GO ),426 que pode, a grosso modo, ser comparado ao “árbitro” e ao “testemunha” dos textos anteriores. A tradução “redentor”, não é tanto errada quanto prematura. O laeGO é um parente que é obrigado a “redimir” da escravidão seus parentes menos afortunados, ou ao menos impedir que seus bens lhe sejam tirados. Um exemplo é dado no caso de Boaz e Rute. Jó parece estar adaptando o caso a sua situação diante de Deus na corte celestial. Assim, algo como “defensor”, “advogado de defesa” (talvez explicitamente contra Satanás, como o “promotor”) seria uma tradução aceitável. Assim como no capítulo 16, é possível que Jó esteja pensando em Deus mesmo, mas parece mais provável que uma terceira parte esteja em vista (apesar de que, à luz do cumprimento, a diferença se estreite no Deus-homem, Jesus).

No restante do AT, não há dúvida que a figura do laeGO seja aplicada num sentido mais amplo a Deus, como o redentor do Seu povo, particularmente no êxodo. Olhando para o texto (e o vocábulo) no seu contexto canônico amplo, não há dúvida que sua aplicação última só pode ser Cristo, nosso “Advogado” (1 Jo 2.1), que “ressuscitou para nossa justificação” (Rm 4.25).

É interessante notar que a palavra para “levantar” (mWqy" ) é a mesma empregada em 14. 12, num claro sentido de ressurreição.

A vida após a morte é inegável nestes versículos. A menção de “pele”, “olhos” e “coração” (lit.: “rins”) favorece a interpretação de que Jó pensa em termos corporais e não apenas em alguma vida no estado intermediário.

É interessante notar que a idéia do “árbitro - testemunha - mediador” reaparece, pelo menos mais uma vez, nos lábios do enigmático Eliú, em Jó 33.23. Há diversas dificuldades na perícope, sobre a identificação do “anjo intercessor”. No entanto, fica clara mais uma vez uma questão séria do livro, de que há uma “lacuna de comunicação” entre o homem e Deus e, portanto, há necessidade de um intercessor, que seja semelhante a Deu, para Lhe falar; e que seja semelhante ao homem, para falar por ele.

* * * * * * *

Anotações a partir do artigo:Th. Reuter, “Jó 19.25-27”, Igreja Luterana 6/1,2 (Jan., Fev. / 1945): 8-13.

⇒ Contexto: Jó, na sua triste situação, se vê deixado pela esposa e pelos amigos, que passam a criticá-lo. Então Jó lembra-se do seu Redentor, que não o abandona.

⇒ O uso enfático de “eu” - na situação triste em que está, Jó faz sua confissão de fé.

425 Em outras palavras, que Deus se torne o fiador de Jó, que Ele deposite a caução, para que seja embargada a penhora.426 BJ e BLH traduzem o termo por “meu defensor”.

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⇒ O “Redentor” - ylIa]GO - - palavra usada no AT no sentido de libertador (Lv 25.47-49); ou como vingador de sangue (Nm 35) - Jó tem um resgatador/vingador “espiritual - que vinga sua morte espiritual e o resgata da servidão espiritual.”

⇒ Um texto - Is 63 16 - diz que “Redentor” é o nome de Deus.

De que Deus redime Jó? Isto se relaciona com o uso de rp'[ ' - pó. “... a matéria da qual Deus fez o homem . Esta palavra serve também ... como imagem da corrupção (Gn 3.19) e mesmo para ilustrar o lugar do corpo morto do homem (Is 26.19). Jó não duvida do fato de se realizar também em seu corpo a ameaça de Gn 3.19. Sua doença lho ensina: O pó vencerá sobre o seu corpo vivo. Seu corpo se decomporá em pó e será coberto de pó. Será, entretanto, isto o fim definitivo? ... O Redentor, o Messias prometido, o Filho de Deus dará libertação ao corpo, vítima do pó. Dotará o corpo de vida nova.”⇒ V. 26: “E depois a minha pele circundará isto [subentendido que Jó tenha mostrado seu próprio corpo] e de

dentro de minha carne verei a Deus.” “Com estas palavras Jó indica ao mesmo tempo a bem-aventurança deste novo estado do seu corpo e da sua alma.”

⇒ O verbo pode ser traduzido, no Piel, por “destruir”, e é assim que alguns intérpretes o entendem, levando a crer que Jó estaria falando da situação de sua pele destruída, isto é, na morte, Não sendo, portanto, uma referência à ressurreição do corpo. No entanto, o piel do verbo também se traduz por “circundar”, dando a idéia de que a pele “circunda”, ou envolve o corpo. Isto está mais dentro do contexto.

⇒ “Interpretamos a Escritura pela Escritura e obtemos uma tradução gramaticalmente correta e concordante com o corpo doutrinário da Bíblia.”

* * * * * * * * * * *

1 Coríntios 15.12-58

“Corpo natural e corpo espiritual” - a que isto se refere?427

- o termo é empregado em 1 Co 2.14 - “O homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são

loucura; e não pode entendê-las porque elas se discernem espiritualmente”- “psíquico”- “o homem deixado apenas com os recursos da sua natureza”, BJ.

15.44,46 - “corpo natural”Tg 3.15 - “Esta não é a sabedoria que desce lá do alto; antes, é terrena, animal e

demoníaca”.Jd 19 - “São estes os que promovem divisões, sensuais, que não têm o Espírito.”

Fica claro por estes textos que não se trata de algo “material” em si. O problema que os textos apontam para o aspecto “natural” é que ele contrasta (e é diametralmente contrário) ao Espírito Santo. Ou seja, o “natural” não tem a ver com matéria, mas com natureza pecaminosa.

- o uso do termo é mais diversificado no NT: Rm 1.11; 7.14; 15.27; 1 Co 2.13,15; 3.1; 9.11; 10.3,4 (2x); 12.1; 14.1,37; 15.44 (2x),46 (2x); Gl 6.1; Ef 1.3; 5.19; 6.12; Cl 1.9; 3.16; 1 Pe 2.5 (2x). É interessante notar que das 25 vezes que o termo é empregado, só em uma o é fora de Paulo.

Concentrando a atenção no uso da palavra em 1 Coríntios (14 vezes), podemos observar: Em 1 Co 2.13,15 - é usada também a palavra , sendo marcado o

contraste.3.1 - Paulo lhes falou não como “espirituais” mas como carnais

( ).9.11 - Paulo semeou coisas espirituais ( ), por que

não poderia colher bens materiais ( )? 10.3,4 - os israelitas, no deserto, comeram e beberam da fonte e do manjar espirituais.12.1 - os dons espirituais (ou: os [pessoas] espirituais).14.1 - dons espirituais14.37 - se alguém se considera espiritual

427 Sobre a discussão sobre as marcas de Jesus (sinais dos pregos) na sua ressurreição e corpo glorif icado, ver: Heinrich Schmid, Doctrinal Theology of the Evangelical Lutheran Church , 654.

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Atuação do Espírito Santo, vida consagrada, Evangelho, dons de Deus - são referentes para a palavra, em 1 Coríntios.

O Espírito Santo em Paulo:428

“O Espírito como marca fundamental de pertencer a Cristo. Como no caso dos primeiros cristãos, assim também com Paulo é o dom do Espírito que torna o indivíduo um membro de Cristo(Rm 8.9; cf. 1 Co 2.12; 2 Co 11.4; 1 Ts 4.8). ...

“O Espírito escatológico. O Espírito, tanto para Jesus quanto para Paulo, é o poder da nova era, já irrompida na velha, não de tal modo que acabe com a velha ou a torne totalmente ineficaz, mas, sim, para capacitar o crente a viver dentro de, e através da velha era, no poder e na luz da nova. Desta forma, o Espírito é a ‘entrada e garantia’ (arrabon) de que Deus completará a obra começada em Cristo e através do Espírito (2 Co 1.22; 5.5; Ef 1.13,14); o Espírito é ‘as primícias’ (aparche) da ceifa de Deus do fim dos tempos (Rm 8.23); o Espírito é a primeira prestação da herança que o crente recebe no reino de Deus (Rm 8.15-17; 14.17; 1 Co 6.9-11; 15.42-50; Gl 4.6,7; 5.16-24; Ef 1.13,14). ... A consumação da atividade redentora de Deus é o cumprimento final daquilo que ele já começou mediante o dom do Espírito Santo, e se realiza quando o Espírito toma o controle completo da pessoa total - ou seja - na ressurreição do corpo, tão somente quando o crente fica sendo um ‘corpo espiritual’, totalmente pertencente à nova era, totalmente sob a direção do Espírito (Rm 8.11,23; 1 Co 15.44-49; 2 Co 5.1-5; Ef 1.14).”

O Juízo Final

Quem será Julgado? Qual o critério?

Alguns textos deixam claro que todos estarão no juízo:

Rm 14.10 - “todos compareceremos perante o tribunal ( ) de Deus”.O contexto é importante - Paulo fala contra um irmão julgar o outro (na situação específica de costumes - dias, comida). Daí ele diz: por que julgar um ao outro se teremos de todos comparecer perante o julgamento de Deus?!

2 Co 5.10 - “importa que todos nós compareçamos perante o tribunal de Cristo para que cada um receba segundo o bem ou o mal que tiver feito por meio do corpo.”

O “corpo” faz referência à vida presente, onde “vivemos por fé” (v. 7) e estamos aguardando a habitação celestial (v. 2). O julgamento não é algo que fica no campo das idéias; o corpo, isto é, toda a existência terrena é levada em conta.

É significativo que o NT insista no fato de que Jesus será o Juiz de todas as pessoas, vivos e mortos: Rm 2.16; 2 Tm 4.1; At 10.42; 17.31. O mesmo fica claro no texto de Mt 25.31ss. Naquele texto, porém, alguns detalhes a mais são dados.

Primeiro, que para os crentes este comparecimento diante do tribunal não tem um significado de juízo (condenação), nem mesmo de investigação sobre os atos feitos. O veredito (favorável) de Jesus é dado antes que se possa fazer qualquer tipo de investigação. Segundo, as obras (só boas!) evidenciam uma relação de fé com o Senhor. Este aspecto relativo das obras fica evidente quando se compara o texto a Mt 7.22,23 (onde o assunto também é o juízo final) - as obras em si não salvam, nem mesmo identificam a pessoa como sendo de Cristo. Pode haver falsidade nelas, que só é percebida pelo próprio Senhor.

O primeiro aspecto (o não julgamento dos cristãos) é enfatizado por João 3.18, onde é claramente dito que . O verbo é aqui empregado no sentido de “ser condenado”. Mesmo presentes no juízo final, os cristãos não sofrerão acusação.

Lei e Evangelho.

428 Anotações tiradas do verbete “Espírito”, de autoria de J.D.G. Dunn, no NDITNT, II: 143ss.

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A distinção entre lei e evangelho é importante também neste assunto, da presença dos cristãos no juízo final. A lei coloca a todos debaixo da mesma situação, de pessoas que precisam comparecer perante o Juiz e submeter-se ao Seu julgamento. O interesse prático disto é que ninguém deve se considerar intocável pelo juízo de Deus. A vida neste mundo tem uma perspectiva eterna. O mau uso do que Deus deu - evangelho, tempo, bens, dons, próximo - tem conseqüências na consumação do mundo. Neste sentido, o juízo final geral é anúncio de juízo já agora e, por isso, um chamado sério e urgente ao arrependimento.

Quanto ao evangelho, por sua vez, a doutrina do juízo final geral traz consolo aos cristãos. Primeiro, porque o Juiz é o próprio Salvador. Quem nele crê, tem nele um Advogado. Não precisa se preocupar em argüir em sua defesa; Cristo faz isto já agora (1 Jo 2.1). Além disso, a própria presença dos cristãos não será para investigação de seus atos; estes serao declarados pelo próprio Senhor, como evidência visível da fé.

Assim, diante da pergunta se a doutrina do juízo final é lei ou evangelho, deve-se responder: ambos! A questão é: para quem esta doutrina está sendo ensinada?! Para os ímpios, é só lei, enquanto não se arrependerem. Para os cristãos, é lei, dirigida ao velho homem, que “deve ser afogado e morrer com todos os pecados e maus desejos”, de modo que o cristão não se orgulhe da sua situação, olhando para si próprio, ao invés de para Cristo. Acima de tudo, porém, para o cristão, é evangelho, é boa notícia de que seremos publicamente declarados como sendo do Senhor e chamados a estar com Ele.

Valem aqui as palavras de F. Pieper:

“Estas declarações nomísticas devem avisá-los [os cristãos] contra uma segurança carnal e manter vivo o conhecimento de seu pecado. Quando este propósito é alcançado, isto é, quando eles, em diário arrependimento conhecem sua pecaminosidade e em fé vão para Cristo como seu Redentor de todo o pecado, eles são tratados conforme a palavra: ‘Cristo é o fim da lei’, daí também do julgamento. ‘Aquele que crê nele não é condenado’ (Rm 10.4; Jo 3.18).” (Christian Dogmatics, III: 541)

Ainda quanto à presença das pessoas no julgamento, vem a pergunta do porquê do julgamento para aqueles que já morreram. Hebreus 9.27 deixa claro que há um juízo ( ) já por ocasião da morte.429 não significa simplesmente condenação, mas uma divisão, uma separação. BAGD, 453, comenta, sobre Jo 3.19: “O julgamento que está operando aqui e agora consiste no fato de que os homens se dividem entre aqueles que aceitam a Cristo e aqueles que o rejeitam.”.

Assim, por ocasião da morte já acontece uma separação - uns para salvação, outros para condenação. Esta separação, no entanto, está em continuidade com o que vá vinha acontecendo antes, na vida terrena (uns crendo, outros não) e será evidenciada, de forma pública, por ocasião do juízo final.

* * * *

A participação dos cristãos

Alguns textos deixam claro que os cristãos não apenas não serão julgados (no sentido de condenados e punidos), mas inclusive participarão do julgamento ao lado do Senhor:

1 Co 6.2,3 - “... não sabeis que os santos hão de julgar o mundo? Ora, se o mundo deverá ser julgado por vós, sois acaso indignos de julgar as coisas mínimas? Não abeis que havemos de julgar os próprios anjos; quanto mais as coisas desta vida?”

Sobre isto, comenta Gordon D. Fee: “Crucial para todo o argumento é a perspectiva de Paulo, da igreja como comunidade escatológica, cuja existência como futuro povo de Deus determina completamente sua vida na era presente. (The First Epistlke to the Corinthians - NICNT, 230)“... é um assunto comum na escatologia apocalíptica judaica ... [Dn 7.22; Sab 3.7,8; 1 Enoque 1.9; 95.3]. ... Paulo não explica o que isto significa no contexto cristão, nem qualquer outro o faz no NT; antes, é algo que se assume ter sido já tratado ... (233)

429 Esta mesma verdade está evidente na história do rico e Lázaro (Lc 16.22- 26); na promessa de Jesus ao malfeitor arrependido (Lc 23.43); na confiança de Paulo (Fp 1.21- 24); na situação dos que viveram no tempo de Noé (1 Pe 3.19,20); de uma certa forma também no que é dito de Judas (At 1.25b).

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Ap 3.21 - “Ao vencedor, dar-lhe-ei sentar-se comigo no meu trono, assim como também eu venci, e me sentei com meu Pai no seu trono.”

Mt 19.28 - “Jesus lhes respondeu: Em verdade vos digo que vós, os que me seguistes, quando, na regeneração, o Filho do homem se assentar no trono da sua glória, também vos assentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel.”

Mt 20.21-23 - (Jesus perguntou à mãe de Tiago e João:) Que queres? Ela respondeu: Manda que, no teu reino, estes meus dois filhos se assentem, um à tua direita e o outro, à tua esquerda. Mas Jesus respondeu: ... o assentar-se à minha direita e à minha esquerda não me compete concedê-lo; é, porém, para aqueles a quem está preparado por meu Pai.”

Lc 22.29,30 - “Assim como meu Pai me confiou um reino, eu vo-lo confio, para que comais e bebais à minha mesa no meu reino; e vos assentareis em tronos para julgar as doze tribos de Israel.”

Esta verdade já parece evidenciada no fato de que Deus dá aos “santos” o participar no Seu reino: Dn 7.22; Ap 20.4 - estes textos parecem ter como referente a participação dos cristãos no reino de Cristo aqui no mundo, pela pregação do evangelho e julgamento de toda doutrina falsa (1 Jo 4.1; 1 Ts 5.21).

Sobre este fato, diz John T. Mueller:

“Que os justos julgarão o mundo juntamente com Cristo, é doutrina expressa da Escritura (1 Co 6.2-4). Julgarão o mundo e os anjos maus nisto que cooperarão nas decisões de Cristo e apoiarão o seu veredicto (assessores). Esta grande dignidade, que Cristo lhes confere em pura graça, deveria incitá-los a julgar com justiça entre os irmãos já nesta vida presente (1 Co 6.5).” (Dogmática Cristã, II: 311)

O Fim do Mundo

“Após o julgamento final, virá o fim absoluto deste mundo; com a excessão dos anjos e homens, tudo o que pertence a este mundo será queimado pelo fogo e reduzido a nada. Não será uma transformação do mundo, portanto, mas há de se esperar uma aniquilação absoluta de sua substância.” (Schmid, Heinrich. Doctrinal Theology of the Evangelical Lutheran Church. 3a Edição. Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1961, 655,6)

Para a primeira frase, Schmid se baseia em Bayer e Hollaz:

Baier: “Quando o julgamento tiver terminado, o fim do mundo imediatamente seguirá, pelo qual céus e terra e, da mesma forma, os outros elementos e os corpos compostos dos elementos perecerão, com respeito à sua substância, por meio do fogo.”430 (656)

Hollaz: “A consumação do mundo é uma ação do Deus Triúno, pela qual, para a glória da Sua verdade, poder e justiça e para a libertação dos eleitos, Ele destruirá com fogo e aniquilará toda a estrutura 431de céus e terra e todas as criaturas, com excessão dos seres inteligentes.” (656)

“Deus destruirá o mundo por meio de fogo verdadeiro (2 Pe 3.12); mas nenhuma mortal é capaz de descobrir o poder e a natureza deste fogo.” (656)

Negando uma simples transformação, Schmid cita Quenstedt:

“A formas desta consumação não consiste em uma mera mudança, alteração ou renovação das qualidades, mas na abolição total da substância do mundo e sua redução ao nada (Sl 102.26; 2 Pe 3.10; Ap 20.11; Is 34.4; Lc 21.33; Jó 14.12).” (656)

430Note-se o “com respeito à sua substância”, que nega uma mudança apenas na forma (“secundum accidentia” - enfatizado por Heimann em seu estudo; ver abaixo)431” fabric” - estrutura, textura.

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Bem ao contrário de Schmid, Heimann nega a aniquilação total (niilização) e defende enfaticamente a “renovação”.

“... nenhuma vez os verbos gregos traduzidos por passar, perecer, mudar-se, consumar são empregados, nos seus primeiros sentidos, como sinônimos de niilizar, destruir ou aniquilar. Apenas num sentido mais lato, e numa linguagem quase figurativa, é que estas palavras também alcançam estas significações. Normalmente são empregados para descrever certas situações, as quais tomaram novos rumos; objetos que existiam e que foram perdidos - mas ainda existem; esconder algo sob uma forma diferente.” (Heimann, Leopoldo. “Novos Céus e Nova Terra”. In: Igreja Luterana 31 (1970), 21)

Sua conclusão é que os textos bíblicos “parecem indicar apenas um passamento, uma renovação, uma transfiguração, uma

regeneração, uma transformação da aparência externa, secundum accidentia. A forma, o tamanho, a condição, a aparência de toda a estrutura presente será, evidentemente, mudada, transformada e purificada. Mas a substância deste mundo não será aniquilada ou niilizada ou reduzida ao nada. Ela servirá como matéria prima para a formação dos Novos Céus e Nova Terra432.” (22)John Theodore Mueller (Dogmática Cristã) mostra que grande parte dos teólogos luteranos ensinou a aniquilação total (gerhard, Questedt, Calov, etc), mas que outros, como Lutero e Brenz, preferiram a explicação da transformação. Chama a atenção a observação de Quenstedt, de que os que ensinam a transformação “não devem ser acusados de heresia.” (Mueller, II: 312)

Francis Pieper (Christian Dogmatics) cita Gerhard, que diz: “Não defendemos nossa opinião, da destruição do mundo de acordo com sua substância, como um artigo de fé, mas afirmamos que esta posição está mais em conformidade com as declarações enfáticas da Escritura com respeito ao fim do mundo.” (III: 543)

Novo Céu e Nova Terra

“NOVO” -

“Das duas palavras mais comuns para ‘novo’, desde o período clássico, isto é, e , a primeira significa ‘que não existia antes’, ‘que somente apareceu agora’, e a segunda significa ‘que é novo e distintivo’ em comparação com outras coisas. é novo em tempo ou origem, isto é, jovem, com uma sugestão de imaturidade ou falta de respeito pelo velho. é aquilo que é novo na sua natureza, diferente do usual, que impressiona, melhor do que o velho, superior em valor ou atração. ...

“No NT significa ‘ainda não usado’, em Mc 9.17 e paralelos, Mc 2.21; Lc 5.36; Mt 27.60; Jo 19.41, e ‘incomum’ ou ‘interessante’ em At 17.21; Mc 1.27; At 17.19; cf. V. 20, mas especialmente ‘novo em tipo’, Mt 13.52; Ef 2.15; Jo 13.34; 1 Jo 2.8 ... e capaz e ordenado como tal para substituir e exceder o velho, Hb 8.13. ...”. (Theological Dictionary of the New Testament, Ed. Gerhard Kittel; Johannes Behm: , III: 447,8)

“ é a epítome da coisa totalmente diferente e milagrosa que é trazida no tempo da salvação. Daí ‘novo’ é um importante termo teleológico na promessa apocalíptica: um novo céu e nova terra, Ap 21.1; 2 Pe 3.13 (Is 65.17); a nova Jerusalém, Ap 3.12; 21.2; o vinho novo do banquete escatológico, Mc 14.25 e paralelos; o novo nome, Ap 2.17; 3.12 (Is 62.2; 65.15); cf. 19.12; o novo cântico, 5.9; 14.3 (cf. Is 42.10; Sl 95.1). ... A nova criação é o fim glorioso da revelação da salvação de Deus. É o objetivo supremo da esperança cristã primitiva e é refletida da salvação futura na existência presente de cristãos na velha terra, porque ela se tornou salvaçã opresente em Cristo, 2 Co 5.17; cf. Gl 6.15; o novo éon, que apareceu em Cristo, traz uma nova criação, a criação do novo homem. Cristo mesmo é o novo homem, o iniciador da nova criação do último tempo. Assim se torna um slogan da realidade da salvação que já conhecemos em Cristo.” (TDNT, III: 449)

432A questão séria a se colocar é: qual a base bíblica para tal afirmação? Uma outra questão seria o porque de uma negação tão contundente da “niilização”. Haverá o receio de que algum erro doutrinário possa ser causado a partir de uma explicação que fale de destruição total? Se é este o caso, qual seria o erro?

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O parecer da CTCR da LC-MS sobre Escatologia e Milenismo se baseia nasobservações acima para falar de uma continuidade entre o mundo presente e o novo mundo, tendo como ponto de contato a redenção em Cristo: “A nova criação futura envolverá, de certa forma, a criação presente e será o ponto culminante da obra redentora de Cristo.” (Os Tempos do Fim, 42)

A descrição bíblica do novo mundo enfatiza este elemento de continuidade:• vinhas e harmonia perfeita mesmo no mundo animal (Is 65.17-25; cf. 11.6-9)• terra rica, que destila viho e mel (Jl 3.18; Am 9.13,14)• terra vivificada com água viva (Ez 47.1-12)• um novo jardim do Éden (Ap 22.1-4)• uma nova Jerusalém, feita de pedras preciosas (Ap 21.10-27).433

A EXPRESSÃO “CÉU E TERRA”

Há quem pense que “novos céus e nova terra” é uma expressão que denota dois locais diferentes, um deles seria este mundo (após uma renovação ou recriação) e o outro a mansão celeste, o lugar de Deus e os anjos e os salvos. Para os Testemunhas de Jeová, no “novo céu” só alguns irão (144.000), enquanto que os demais salvos ficarão na “nova terra”. No entanto, a expressão “céu e terra”, na Escritura, é usada para denotar toda a criação, o Universo (Gn 1.1; Sl 121.2; Jr 23.24; Mt 5.18; 24.35).434 Desta forma, o mais correto é afirmar que “novo céu e nova terra” é uma expressão que tem como referente o mundo novo criado por Deus, quando Ele habitará entre Seu povo (fato enfatizado pela descida da Jerusalém celeste, em Ap 21.2).

Morte Eterna e Vida Eterna

Mateus 25.46

- - usado só aqui e em 1 João 4.18: “O amor produz tormento (Almeida R.A.). Palavra significa: punição; usada em referência à punição divina, especialmente a punição eterna. (BAGD, 440,1) No texto em Mateus está em contraste com - “vida”. É interessante que o contraste não é entre “morte” e “vida”,435 nem entre “punição/castigo” e “recompensa”.436

- o aspecto de eternidade no julgamento não pode ser eliminado do texto, sob pena de se perder de vista o propósito de Jesus, de chamar as pessoas ao arrependimento e fé nele (demonstrada na atitude para com os “pequeninos irmãos”). Não havendo a perspectiva da eternidade, perde peso a ênfase de Jesus, em todo o Seu ministério, de que é preciso aproveitar o tempo da oportunidade para a preparação para a vinda plena do reino de Deus (no juízo final).

- Outros textos que enfatizam a eternidade do sofrimento no inferno: Is 66.24; Mc 9.48; Ap 14.11; Ap 20.10.

2 Tessalonicenses 1.9

- O contexto mostra Paulo louvando a Deus pela fidelidade dos Tessalonicenses. Tal fidelidade se mostrou evidente no fato de eles sofrerem por causa da fé e permanecerem fiéis. Paulo mostra que Deus manifestará Sua justiça, quando Cristo retornar, em meio aos anjos, quando irá castigar os ímpios.

- No versículo 8 nos é dito quem estará sob juízo: • - aos que não conhecem a Deus

433Os Tempos do Fim , 43. O Documento da CTRE chama a atenção de que a linguagem é claramente poética e figurada, de modo que os detalhes não deveriam ser interpretados literalmente.434Leopoldo Heimann, Novos Céus e Nova Terra , 17.435Talvez para não se pensar na condenação como aniquilação. A “morte” eterna significa punição ativa do condenado.436Possivelmente para não se entender a salvação como merecimento (o que seria muito natural se o texto todo realmente quisesse ensinar - como pensam alguns - a salvação como prêmio à atitudes de solidariedade.

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• - aos que não obedecem ao Evangelho do nosso Senhor Jesus

Este texto (especialmente a primeira frase) elimina a possibilidade de salvação para os que não ouviram o Evangelho (sugestão dada por alguns exegetas, como Frederick D. Bruner, no Comentário a Mateus, em Mt 25). O juízo vem sobre quem não conhece a Deus. E também437 sobre os que não receberam o Evangelho como deviam.

- - justiça, retribuição, punição. Além do texto de 2 Ts, o termo aparece em• At 28.4 - uma personificação da “Justiça” (segundo as pessoas que viram Paulo ser mordido por uma

serpente, a “justiça” não o deixaria viver.• Jd 7 - uma referência à condenação de Sodoma e Gomorra, que é um exemplo da condenação eterna.

- - Futuro de = pagar; com significa: receber punição. Usado apenas neste texto no NT.

- - destruição, ruína, morte. Usado em• 1 Co 5.5 - aquele que vivia em pecado devia ser “entregue a Satanás para a destruição da carne”.• 1 Ts 5.3 - a destruição que virá no fim do mundo, para os ímpios.• 1 Tm 6.9 - o amor ao dinheiro leva os homens à ruína e destruição.

- a expressão dá idéia de alguém deixar a presença de outro. É usado assim em outros textos, como At 5.41; 7.25; especialmente Ap 6.16 e 20.11. Charles Wanamaker438sugere que Paulo reproduziu aqui as palavras, na LXX, de Isaías 2.10,19,21, onde o profeta fala do juízo que Deus trará, ao ponto das pessoas esconderem a face diante do terror promovido pela presença de Deus (“o terror do Senhor e a glória de Sua majestade”). Marshall comenta que aquilo que foi aplicado a Javé no AT, é aplicado por Paulo a Jesus, no NT. Wanamaker observa que este foi uma das características da Igreja Antiga ao descrever Jesus, manifestando a identificação de Jesus com Deus.439

Lucas 12.47,48

- O contexto mostra Jesus falando do Seu retorno e da necessidade de constante vigilância da parte dos seus seguidores. Ele compara esta situação com a de um senhor, que viajou e que pode voltar a qualquer momento. Seus empregados devem estar preparados, aguardando seu retorno. Farão isto, cumprindo sua vontade, que eles conhecem.- Apesar do texto não ser explícito quanto a “graus de condenação”, ele certamente mostra uma diferença no castigo daqueles que conheciam a vontade do Senhor e dos que não conheciam. Ainda assim, para ambos os grupos está reservado o castigo.

- o mesmo pode ser visto em Mt 11.24, onde Jesus fala de uma diferença no rigor do juízo de Sodoma e Gomorra em comparação com Cafarnaum e outras cidades, que tiveram a oportunidade de ver a Cristo e Seus feitos.

- Sobre isto, diz J. T. Mueller: “Que os castigos do inferno diferem em grau, segundo a qualidade e medida do pecado, a Escritura o ensina com muita clareza (Mt 11.24; Lc 12.47; Mt 23.15). O pecado a ser punido com a maior severidade é o da oposição maldosa ao evangelho de Cristo (Mt 11.16,24).” (Dogmática Cristã, II: 316,317)

Mateus 19.29

- Este texto traz à tona a questão dos “graus de glória”. Jesus, ao que parece, está assegurando àqueles que o seguiram heroicamente um grau superior de galardão no céu. Outros textos bíblicos que trazem este assunto:437Outro grupo de referentes, ou o mesmo grupo, com outra característica: os que não conhecem a Deus são os que não obedecem ao Evangelho - os que não crêem em Cristo.438Commentary on First and Second Tessalonians - NIGTC ; Grand Rapids: Eerdmans, 1990, p. 229.439Wanamaker, 229.

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• 2 Co 9.6• 1 Co 15.41,42• Dn 12.3

O certo é que a felicidade de todos no céu será a mesma. E não haverá sentimentos de inveja por causa dos graus de glória. Deus é que será glorificado, pois o galardão é dado conforme Sua graça.

- Sobre isto comenta J. T. Mueller: “Conquanto não haja graus de felicidade, uma vez que todos os santos de Cristo verào a Deus e, destarte, serão completamente bem-aventurados, a Escritura ensina que há graus de glória (doxa, gloria), proporcional à fidelidade e aos sofrimentos dos crentes cristãos na vida presente (2 Co 9.6; 1 Co 15.41,42; Dn 12.3). ... Estas diferenças de glória não suscitarão inveja, visto que o ciúme é pecado (Gl 5.20,21) e o pecado estará completamente abolido no céu (Sl 17.15; 16.11).” (Dogmática Cristã, II: 323)

Pode soar estranho falar em recompensa aos cristãos; no entanto, a linguagem é bíblica e é encarada com tranqüilidade pelos escritos confessionais; por exemplo: Ap IV 193,194,366-368.

- “Hoenecke corretamente insiste que nós não podemos declarar nem o ‘que’, nem o ‘como’ das diferentes recompensas que serão dadas com base nas obras dos fiéis. Os graus de glória estào fundamentados exclusivamente na boa vontade de Deus e são inseparáveis de Sua liberdade em distribuir dádivas diversas às Suas criaturas. ... O uso prático da doutrina dos graus de glória é visto na sua exposição do encorajamento apostólico, de que aqueles que ouvem o evangelho da ressurreição devem saber que ‘no Senhor, o trabalho não é em vão’ (1 Co 15.58). O fato desta doutrina também serve para enfatizar a verdade que, assim como cada pessoa é chamada a glorificar a Deus de uma forma própria a cada pessoa, assim também a dádiva da vida eterna é concedida de uma forma própria a cada pessoa salva, que desfrutará da comunhão pessoal e sem repetição com Deus no contexto de sua experiência corporativa da salvação (ver Ap 2.17).” (John R. Stephenson, Escathology - Confessional Lutheran Dogmatics - vol. XIII, p. 131,132)

* * * * * * *

O Estado dos Salvos no Céu

- “A vontade dos bem-aventurados conformar-se-á em todas as coisas com a de Deus. Os sentimentos carnais que são sinais de nossa fraqueza na vida presente cessarão completamente na vida vindoura, quando o nosso amor se estenderá aos que são amados de Deus e a quem o mesmo fez herdeiros da vida eterna. Nos condenados, porém, admirarão supremamente e bendirão eternamente a justiça de Deus exaltada” (Hutter, Doctr. Theol., p. 662).440

- Quenstedt divide as bênçãos no céu em privativas e positivas:

PRIVATIVAS:• ausência de pecado e de todas as suas causas,

- o incitamento da carne, - o sugestionamento do diabo, - a sedução do mundo.

• Ausência dos castigos do pecado, das calamidades, da morte temporal e da condenação eterna

• Imunidade contra sentimentos e ações do corpo, como: fome, sede, matrimônio, etc.

POSITIVAS: • visão beatífica e imediata de Deus (afeta corpo e alma)• iluminação perfeita do intelecto (1 Co 13.9-12)• retidão completa da vontade e dos desejos (Sl 17.15; Ef 5.27)• a mais alta segurança com respeito à duração perpétua desta bem-aventurança (Jo 16.22)• espiritualidade (1 Co 15.44,47; Fp 3.21)

440Mueller, II: 322.

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• impassibilidade (Ap 7.16; 21.4)• imortalidade e incorruptibilidade (1 Co 15.42-48, 53; 2 Co 5.4)• força e sanidade (1 Co 15.43)• esplendor (Dn 12.3; Mt 13.43; 1 Co 15.14,43)• beleza (1 Co 15.43; Fp 3.21)• a mais deleitante comunhão com Deus (Lc 23.43; Jo 12.26; 14.3; 17.24; 2 Co 5.8; Fp 1.23),

com os anjos (Hb 12.22) e com todos os bem-aventurados (Mt 8.11; Lc 13.29; Hb 12.23)• a mais bela e magnificente habitação441

Teologia Sistemática IIIPolígrafo - sumárioProf. Gerson Luis Linden

Programa da Disciplina ................................................................................... 1

I. Pneumatologia

1. O Deus Pouco Conhecido .......................................................................... 72. A Ação do Espírito Santo e a Missão .......................................................... 183. O Espírito Santo - ênfases .......................................................................... 214. Dons Espirituais (CTCR) ........................................................................... 225. O Espírito Santo e os Dons - Princípios .....................................................

II. Eclesiologia

59

6. A Doutrina da Igreja no Novo Testamento ................................................. 617. As Teses de Walther sobre Igreja e Ministério ............................................. 648. Sacerdócio Universal dos Cristãos .............................................................. 669. O Ofício do Ministério ................................................................................ 7210. Mateus 28.16-20 ....................................................................................... 7511. 1 Coríntios 3.4-9 - Somos Cooperadores de Deus ..................................... 8912. O Ministério nas Confissões Luteranas ...................................................... 9213. O Caráter Cristológico do Ministério ......................................................... 9314. Ofício do Ministério, Chamado e Igreja ..................................................... 9815. Chamado e Ordenado ................................................................................ 10216. Ministério Feminino - Anotações a partir do Novo Testamento .................

III. Escatologia

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17. Os Tempos do Fim - CTCR ...................................................................... 11818. O Reino de Deus e Escatologia Bíblica ...................................................... 15319. Escatologia Inaugurada ............................................................................. 15820. A Morte Temporal, do Cristão e do Ímpio ................................................ 16021. A Terra e o Estado de Israel na Profecia e no Cumprimento ....................... 16322. O Propósito dos Sinais dos tempos do Fim ................................................ 16723. O Anticristo .............................................................................................. 16824. A Segunda Vinda de Jesus ......................................................................... 17025. A Ressurreição dos Mortos ....................................................................... 17426. O Juízo Final ............................................................................................. 17927. O Fim do Mundo ....................................................................................... 18228. Novo Céu e Nova Terra ............................................................................ 18429. Morte Eterna e Vida Eterna ...................................................................... 185

441Citado por John T. Mueller, Dogmática Cristã , II: 321. Não citamos algumas das características dadas por Quenstedt, por não refletirem a verdade bíblica ou por serem especulativas: invisibilidade, impalpabilidade, ilocalidade, subtilidade.

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