Língua e alimentação: dois elementos da identidade ... · Agradecimentos Meus sinceros e...

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LIANA LAGANÁ FERNANDES LÍNGUA E ALIMENTAÇÃO: DOIS ELEMENTOS DA IDENTIDADE ITALIANA EM PEDRINHAS PAULISTA Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para a obtenção do título de Mestre. Orientadora: Profa. Dra. Loredana de Stauber Caprara São Paulo 2006 0

Transcript of Língua e alimentação: dois elementos da identidade ... · Agradecimentos Meus sinceros e...

  • LIANA LAGAN FERNANDES

    LNGUA E ALIMENTAO: DOIS ELEMENTOS DA

    IDENTIDADE ITALIANA EM PEDRINHAS PAULISTA

    Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Mestre.

    Orientadora: Profa. Dra. Loredana de Stauber Caprara

    So Paulo

    2006

    0

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CINCIAS

    HUMANAS

    LNGUA E ALIMENTAO: DOIS ELEMENTOS DA

    IDENTIDADE ITALIANA EM PEDRINHAS PAULISTA

    Liana Lagan Fernandes

    So Paulo

    2006

    1

  • Ao meu filho Cezar

    minha me e memria de meu pai

    2

  • Agradecimentos

    Meus sinceros e profundos agradecimentos

    minha orientadora de Mestrado, Prof Loredana Caprara que aceitou

    meu projeto e acreditou na minha capacidade de realizar este trabalho,

    incentivando-me, com seu pulso firme, nos momentos mais difceis;

    aos imigrantes pedrinhenses pela afabilidade com que me receberam e a

    Vincenzo Pignataro e sua famlia pela amizade e apoio prestado;

    Prof Giliola Maggio de Castro, por ceder gentilmente as entrevistas por

    ela colhidas em Pedrinhas Paulista, material que me foi muito til no

    decorrer deste trabalho;

    ao Prof. Joo Baptista Borges Pereira pelas sugestes dadas e por

    disponibilizar-me seus trabalhos inditos.

    3

  • RESUMO

    O trabalho apresenta uma anlise da atual linguagem ligada alimentao falada por

    imigrantes italianos em Pedrinhas Paulista, pequena comunidade italiana fundada nos anos

    50, localizada no interior do Estado de So Paulo.

    Utiliza, para tanto, depoimentos colhidos na prpria comunidade em 2002 e em 2005. Os

    trechos destacados para a pesquisa foram transcritos obedecendo as normas para transcrio

    do projeto NURC.

    Que lngua seria mais usada pelos imigrantes quando se trata de referncias alimentares: o

    italiano ou o portugus? Os italianos mantiveram a tradio da sua gastronomia?

    Mantiveram o lxico original das suas preparaes? Absorveram, em parte ou no, os

    hbitos alimentares locais e sua terminologia na lngua local? Os imigrantes criaram uma

    interlngua italiano-dialeto-portugus?

    Essas e outras questes sero levantadas e analisadas no decorrer do trabalho.

    Palavras chave: lngua italiana alimentao Pedrinhas Paulista imigrao italiana -

    interlngua

    SUMMARY

    The present study is an analysis of the language spoken by Italian immigrants living in

    Pedrinhas Paulista. This small community was founded in the 50's, and is located in rural

    Sao Paulo state. The analysis utilizes depositions from the community in 2002 and in 2005.

    Deposition excerpts chosen for the study were transcribed observing the NURC Project

    norms. Which language was spoken by the immigrants when discussing nutritional matters:

    Italian or Portuguese? Did the Italians maintain their gastronomic traditions? Did they

    change their recipes? Did they acquire local eating habits and their local terminology? If so,

    did they do it partially or completely? Did the Italian immigrants create an Italian-dialect-

    Portuguese interlanguage? These and other questions will be raised during the present

    study.

    Key words: Italian language local eating - Pedrinhas Paulista - Italian immigration -

    interlanguage

    4

  • NDICE:

    INTRODUO

    1. Tema do trabalho...............................................................................................................03

    2. Caminho percorrido..........................................................................................................03

    CAPTULO I

    1. Imigrao e Aculturao...................................................................................................09

    2. Apresentao de Pedrinhas e estudos sobre o assunto......................................................13

    CAPTULO II

    1. Imigrao e cultura italiana...............................................................................................18

    2. Corpus do trabalho e tcnica de transcrio......................................................................22

    3. A linguagem dos imigrantes italianos dos anos 50...........................................................25

    3.1. Alguns conceitos de linguagem.....................................................................................25

    3.1.1. nveis de linguagem.....................................................................................................26

    3.2. formao da linguagem em Pedrinhas Paulista .............................................................28

    3.3. Conservao da lngua italiana entre os italianos de Pedrinhas e entre os italianos

    imigrados nas dcadas de 1960/1970 em So Paulo.............................................................35

    CAPTULO III

    1. Alimentos e tradio em Pedrinhas Paulista.....................................................................41

    1.1. Alimentos encontrados pelos imigrantes em 1953.........................................................41

    1.2. Criao da tradio.........................................................................................................46

    1.3. Recuperao da identidade.............................................................................................52

    1.4. Lngua e alimentos.........................................................................................................54

    1.4.1. Consumo de carne, smbolo de status.........................................................................57

    1.4.2. Consumo de massas, smbolo de tradio...................................................................61

    1.4.3. O po, alimento por excelncia do ocidente, smbolo de religiosidade....................64

    1.5. Adaptaes e misturas .................................................................................................67

    1

  • 2. Linguagem da alimentao em Pedrinhas Paulista...........................................................72

    2.1. A permanncia do dialeto na linguagem alimentar: possveis motivos........................74

    2.2. Lngua materna, lngua aprendida e interlngua ...........................................................77

    2.3. Anlise qualitativa..........................................................................................................81

    2.3.1. Bilingismo e Interlinguismo na terminologia alimentar:........................................81

    2.3.2. Erros gramaticais........................................................................................................83

    a) uso inadequado do ci si se..........................................................................83

    b) verbos inventados..................................................................................................84

    c) Flexo de grau.......................................................................................................85

    2.4. Anlise quantitativa .......................................................................................................87

    CONSIDERAES FINAIS................................................................................................94

    BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................102

    ANEXOS

    1. anexo I - Projeto NURC..........................................................................................111

    2. anexo II -Transcries 2000....................................................................................113

    3. anexo III Transcries 2005.................................................................................129

    4. anexo IV - Transcries de So Paulo....................................................................148

    5. anexo V - Tabela anualpec......................................................................................153

    6. anexo VI - Tabela de ocorrncias lexicais..............................................................154

    7. anexo VII - Algumas formas dialetais encontradas.............................156

    8. anexo VIII Fotos...............................................................................157

    2

  • INTRODUO

    1. Tema do trabalho

    O presente trabalho prope-se a verificar a conservao de resqucios de lngua

    italiana, no campo lexical dos alimentos, bem como das adaptaes alimentares, de um

    grupo de italianos que imigraram na dcada de '50, anos que sucederam Segunda Grande

    Guerra. Em conseqncia do Tratado de Paz entre Brasil e Itlia foram liberadas verbas

    relativas aos bens italianos que foram congelados durante o perodo blico. Essas verbas

    foram destinadas compra de uma rea ainda pouco habitada no interior do Estado de So

    Paulo, apta para a fundao de uma colnia agrcola administrada por uma Companhia

    Colonizadora Italiana.

    A colnia, denominada Pedrinhas Paulista, em 1953, j estava estruturada em seus

    elementos bsicos para receber o grupo composto inicialmente por 143 famlias de

    imigrantes, em maioria camponeses, acompanhadas por um Padre, que provinham de vrias

    regies da Itlia e falavam principalmente seu dialeto.

    2. Caminho percorrido

    A escolha do tema deste trabalho foi um processo demorado, pois unir

    conhecimentos de nutrio com letras italianas no tarefa fcil. Mesmo assim, embora

    3

  • formada em nutrio, decidi ingressar no curso de ps-graduao em italiano, apresentando

    um projeto sobre fala e comida.

    No curso de italiano, o assunto j estava sendo estudado numa tese de doutorado,

    que abordava a terminologia alimentar das massas e os italianismos alimentares no Brasil,

    pela professora Paola Baccin.

    Ingressei nessa empreitada dos estudos lingsticos relacionados aos alimentos e,

    mesmo tendo feito diversas pesquisas em livros de receitas e alimentao de vrias regies

    da Itlia, no encontrava um vis satisfatrio, com consistncia suficiente para embasar

    uma dissertao de mestrado.

    Tive de passar por um perodo de adaptao, cursando matrias da graduao para

    aprimorar meus conhecimentos em gramtica, lngua e literatura italiana e, s depois,

    comecei a fazer os cursos do programa de ps-graduao sugeridos pela minha orientadora.

    Cursei a disciplina Lexicologia, Lexicografia, Terminologia: Teorias e Prticas e

    as aulas dos cursos mais especficos diretamente ligados ao assunto da pesquisa como: O

    italiano Medianamente Formalizado e O Italiano dos Imigrados: Lngua materna ou

    Lngua Inventada? A Experincia de Pedrinhas Paulista, alm de uma disciplina dentro da

    rea de Sade Pblica, Introduo Investigao Cientfica em Alimentos, Nutrio e

    Sade Pblica. Atravs desses cursos, de um semestre de durao cada um, pude obter

    embasamento para desenvolver e apresentar minha pesquisa.

    No momento em que fui apresentada a Pedrinhas Paulista, no curso O italiano

    dos Imigrados: Lngua Materna ou Lngua Inventada? A Experincia de Pedrinhas

    Paulista, ministrado pela professora Giliola Maggio de Castro, me entusiasmei com a

    possibilidade de fazer uma pesquisa com imigrantes. A leitura do livro do professor Joo

    Baptista Borges Pereira, Italianos no Mundo Rural Paulista, iluminou meu caminho,

    4

  • acenando para o fato de que a questo alimentar representa um forte trao cultural e que, na

    fase de implantao da colnia, os imigrantes passaram por muitas e dolorosas adaptaes,

    inclusive em relao lngua e aos alimentos.

    Apresentei a idia de fazer uma pesquisa lingstica da alimentao em Pedrinhas

    Paulista para a minha orientadora e ela aprovou.

    A escolha de trabalhar com imigrantes italianos no se deu por acaso, mas teve

    relao com as minhas questes pessoais. Como filha de me italiana e de pai brasileiro,

    desde cedo comecei a perceber as diferenas de lngua e de comidas no ambiente ao meu

    redor. No momento da escolha pela profisso, me inscrevi em dois vestibulares, o de

    nutrio e o de letras, lngua italiana. Ingressei em ambos, mas por motivos situacionais s

    pude concluir a Faculdade de Nutrio, matria pela qual naquele momento meu interesse

    era maior.

    Depois de dez anos envolvida com minha vida profissional como nutricionista, me

    senti compelida a terminar o que havia comeado e a retomar os estudos de lngua italiana.

    Pensei em usar os conhecimentos adquiridos na graduao, mas com a maturidade

    necessria para enfrentar uma nova etapa. No seria o caso de fazer um novo curso de

    graduao, mas aprofundar meus conhecimentos de nutrio e lingsticos no curso de ps-

    graduao.

    Aprendi a lngua italiana no colgio Dante Alighieri e no mbito familiar,

    convivendo com minha me, minha av italiana e meus parentes da Itlia. Durante minha

    formao em Nutrio, as questes ligadas aos hbitos alimentares das diferentes etnias

    sempre me causaram interesse, e minha ascendncia permitiu que eu convivesse

    diretamente com preparaes tpicas italianas, em casa e tambm em minhas visitas a

    parentes na Itlia.

    5

  • A cincia da Nutrio oferece uma srie de possibilidades de aprofundamento em

    especialidades de estudo, desde a nutrio em si, dietoterapia em hospitais ou consultrios,

    educao alimentar em escolas, nutrio em Sade Pblica para comunidades ou creches e

    nutrio do esportista, bem como estudar os hbitos alimentares brasileiros e de povos

    diferentes. Este ltimo assunto era o mais que me atraa. O pesquisador da rea de nutrio

    no encontra fronteiras, ou no deveria encontr-las, na medida em que se envolve com um

    tema voltado ao estudo dos hbitos alimentares de comunidades ou etnias, tal a ntima

    relao entre comida e povo. Cada comunidade expressa sua cultura e suas razes

    atravs da escolha e disponibilidade de alimentos, bem como de rituais de preparao dos

    mesmos, o que podemos chamar de culinria.

    Dois elos ligam um indivduo sua origem: o aprendizado da lngua materna e a

    comida que se est acostumado a comer na infncia. Ambos so preservadores da

    identidade social e tnica de um adulto (Visser 1998: p.41). Refletindo sobre essas

    observaes, resolvi desenvolver um trabalho sobre a lngua e a comida de um grupo de

    imigrantes italianos.

    Pedi autorizao Profa. Giliola Maggio de Castro para utilizar o material com

    depoimentos gravados por ela em italiano, composto por 45 entrevistas a moradores de

    Pedrinhas Paulista, recolhidas 50 anos aps a fundao do ncleo colonial. Dei incio, com

    um grupo de alunos da professora, ao processo de transcrio das fitas, dando nfase aos

    trechos de interesse para o meu trabalho a respeito da alimentao dos imigrantes de

    Pedrinhas Paulista. Tambm, atualmente, participo do grupo de transcrio do CNPq, que a

    mesma professora coordena.

    Ainda assim, havia a necessidade de coletar dados especficos para desenvolver

    minha pesquisa. Em 2005 estive em Pedrinhas entrevistando mulheres imigrantes com

    6

  • perguntas dirigidas diretamente alimentao e suas receitas e ento, pude perceber a

    abrangncia do item comida, tanto na preservao dos costumes tradicionais importados

    da Itlia, quanto nas adaptaes realizadas em solo brasileiro. A linguagem usada por elas

    seria tambm alvo de anlise. Ao chegar cidade fui recebida com muito carinho e

    medida que eu ia conhecendo as pessoas, cujas vozes eu ouvira nas fitas durante as

    primeiras transcries, sentia a importncia do trabalho de campo e do contato direto, pois

    as vozes foram tomando corpo em carne e osso, em rostos, em sorrisos, em sentimentos

    vivos.

    Minha me, imigrante italiana, me acompanhou nessa viagem, e esse fato se tornou

    fundamental para eu poder imergir mais profundamente e de forma no artificial - no

    cotidiano dos pedrinhenses. Esse contato real se deu no momento em que uma das

    entrevistadas usou palavras de seu dialeto regional calabrs e minha me se reconheceu e se

    emocionou, ao lembrar da sua vivncia na Itlia. Essa forte identificao se deu tambm no

    momento em que trocvamos experincias e recordaes sobre msicas antigas italianas e

    os festivais de San Remo. Da para frente, passei do status de pesquisadora para uma

    condio de igualdade, em que experincias foram trocadas, de imigrante para imigrante.

    Eu mesma senti a fora de minhas razes, de uma forma muito especial: alguns encontros se

    davam mesa na melhor tradio italiana - com comida farta e deliciosa, o que no podia

    estar mais adequado para o tipo do trabalho que proponho.

    Quebrada essa fronteira que separa entrevistador de entrevistado, as conversas se

    deram sem a preocupao de manter uma formalidade, o que facilitou a coleta de dados

    lingsticos.

    7

  • Infelizmente no pude comparecer s festas tpicas de Pedrinhas, que reproduzem a

    tradio italiana, atravs das msicas, comidas e danas, mas pude ver atravs de vdeo

    como tudo muito cuidado.

    Visitei o Museu de Pedrinhas, inaugurado recentemente - em 7 de agosto de 2003

    que rene objetos antigos da poca da colonizao, recuperados e cuidadosamente

    organizados pela Prefeitura: ferramentas agrcolas dos hericos pioneiros e colonizadores,

    as pequenas camas e mesinhas com os pratos usados no jardim da infncia da poca, cama

    com estrado de rede de ferro fornecida pela Companhia, foges, moedores de caf, lenis

    bordados, carteirinhas da biblioteca, mesa de parto da enfermaria e muitos outros objetos

    recolhidos de porta em porta e que hoje compem um rico acervo histrico ao lado de

    muitas fotos do incio da colnia.

    O ponto culminante dessa minha viagem se deu no dia de Finados, quando pude

    observar os italianos na missa realizada dentro do cemitrio, numa celebrao que retrata a

    realidade do cotidiano dos moradores mais do que qualquer festa tpica. Ouvi dialetos,

    italiano, portugus; vi senhoras apoiadas nos mais jovens para se locomover, grupos de

    senhores se formando para ouvir a beno do padre, mas tambm para se cumprimentarem

    e compartilharem a mesma dor, a dor da perda de entes queridos, fundadores da colnia.

    Gravei entrevistas com mulheres de diferentes faixas etrias de diversas regies da

    Itlia, imigrantes e filhas de imigrantes, e na volta a So Paulo dei inicio ao processo de

    transcrio desse novo material de pesquisa, contedo que corresponde diretamente ao meu

    foco de trabalho e sobre o qual vou desenvolver esta dissertao.

    8

  • CAPTULO I

    1. Imigrao e aculturao

    Os fenmenos lingsticos, tratados neste trabalho, esto ligados situao da

    imigrao italiana no perodo que se seguiu Segunda Guerra Mundial e, para tanto,

    necessrio estabelecer algumas premissas a fim de esclarecer o raciocnio que fundamenta o

    nosso discurso sobre a aculturao que se deu entre os italianos emigrados para Pedrinhas

    Paulista e o povo brasileiro, focalizando alimentao e lxico correspondente.

    O conceito de aculturao j foi largamente discutido por pesquisadores e seus pares

    na dcada de 50 e o nosso trabalho utilizar o termo aculturao no sentido em que o

    define Seppilli, ou seja:

    Il termine acculturazzione viene usato nelle scienze storico-

    sociali, e in modo specifico in quelle antropologiche, per indicare

    genericamente ogni tipo di processo di interazione che si determina fra

    pi culture quando esse entrano fra loro in una qualche forma di

    reciproco contatto(Seppilli -2002: 09)

    Algumas situaes facilitaram e intensificaram o contato entre culturas diferentes,

    so elas:

    - contato estabelecido entre populaes culturalmente heterogneas separadas por

    fronteiras;

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  • - ingresso de indivduos portadores de uma determinada cultura em um contexto

    social/ territorial totalmente diferente;

    - contatos entre indivduos culturalmente diferentes e de vrias origens, em

    territrios de alta visitao humana como portos e santurios;

    - interao cultural distncia atravs da mdia, especialmente nos tempos atuais de

    globalizao, pelo enorme salto da tecnologia em telecomunicaes e Internet. Isso

    possibilitou aos indivduos de culturas diferentes o acesso aos instrumentos de

    comunicao, conhecer e absorver sistemas culturais diversos, especialmente culturas de

    pases considerados de maior poder, de maior prestgio econmico-social.

    Cada uma dessas situaes facilita o contato entre indivduos e suas culturas,

    possibilitando entre eles a absoro de hbitos. A intensidade e o xito do processo

    aculturativo depende de vrios fatores envolvidos como: a durao do contato entre os

    indivduos; nmero de indivduos envolvidos; o tipo do sistema social; a hegemonia e o

    poder dos indivduos e das culturas.

    Um dos motivos causadores de maior impacto ao processo de aculturao foi o

    fenmeno migratrio. Um grande contingente populacional europeu imigrou em busca de

    oportunidade de trabalho. Tiveram como destino pases em crescimento econmico e

    populacional como Estados Unidos, Austrlia, Argentina, Canad e Brasil. No caso do

    Brasil, um pas j marcado pela plurietnia, onde ndios, negros e portugueses

    compartilhavam o territrio - no na mesma proporo nem na mesma situao econmico-

    social como j se sabe - a eles se somaram outros povos brancos: os conquistadores

    holandeses que no sc XVII ocuparam o nordeste brasileiro, portugueses imigrantes e, j no

    sc XIX e XX, povos de vrias etnias europias. No comeo do sculo passado o pas

    comeou a receber uma boa proporo de asiticos e imigrantes de mais de 60 pases,

    10

  • sendo os mais expressivos os povos italianos, espanhis, alemes, austracos, russos, srio-

    libaneses, iugoslavos, franceses, hngaros, belgas, suecos, tchecos e judeus (Borges

    Pereira: 1985).

    Todos os estudos relativos imigrao de europeus viram nisso uma manobra

    favorvel crescente necessidade de ocupar o territrio e branquear a populao, isso

    particularmente no perodo que foi denominado de primeira grande imigrao. O

    processo de integrao social entre os imigrantes foi facilitado, em maior ou menor grau, e

    dependeu de fatores como: 1) receptibilidade da sociedade aos de fora, 2) compatibilidade

    entre a sociedade acolhedora e o grupo acolhido e 3) dimenses sociais e culturais

    implcitas no processo.

    Os italianos da primeira leva de imigrao foram recebidos como grupos de

    agricultores a partir de 1875, quando representaram o maior contingente imigratrio do

    perodo. Dois modelos imigratrios se evidenciaram: o primeiro para substituir, como

    assalariados, a mo de obra escrava nas fazendas, espalhando os italianos pelas grandes

    plantaes de caf; e o segundo em forma de ncleos coloniais estabelecidos em espaos

    relativamente desabitados em que, j nesse perodo, os imigrantes comeavam a criar uma

    espcie de territorialidade tnica italiana, cultivando e recriando a sua cultura original e sua

    expresso lingstica. (Prado:1942)

    A situao da imigrao dos italianos de Pedrinhas Paulista, j em outro momento,

    no segundo ps-guerra, foi semelhante a esse segundo modelo, pois vieram para cultivar

    terras isoladas em espaos semi-desabitados. Retomaremos o assunto mais adiante.

    A segunda grande emigrao italiana ocorreu aps o fim da segunda guerra

    mundial, na metade do sc. XX.

    11

  • A Itlia destroada pela guerra, em situao poltica e econmica difcil, estava

    procurando se reconstruir, mas no podia oferecer trabalho para todos os cidados. A

    soluo para combater escassez de trabalho e de capital, mais uma vez seria a emigrao. A

    retomada da emigrao foi facilitada pela poltica governamental italiana. Muitos italianos

    emigraram para pases europeus, mas uma grande corrente canalizou-se em itinerrios

    transatlnticos. Alm dos italianos, no mesmo perodo e pelas mesmas razes, chegaram ao

    Brasil, alemes e povos da Europa Oriental e do Oriente Mdio. Em meados de 1950 o

    governo brasileiro ajustou acordos polticos com pases da Europa para estimular a

    receptao de imigrantes. Os tratados de colaborao econmica garantiam ao mesmo

    tempo obteno de mo de obra pelo pas hospedeiro e remessa de capital para o pas de

    origem. Consideremos os italianos:

    Na ptria, o trabalhador que se transferisse para alm-mar

    representaria, com a sua ausncia, um consumidor a menos e, com as

    suas remessas de divisas, um produtor a mais. (Trento, 1989: 405).

    Havia nesse perodo trs tipos de acordos imigratrios: 1) individual, em que o

    italiano esperava a chamada de acordo com a oferta de trabalho, 2) de colonizao agrcola,

    em que os italianos serviriam de mo de obra nas fazendas e 3) em grupos, em que famlias

    inteiras eram transferidas para criao de colnias agrcolas subvencionadas.

    Segundo Trento, a ltima iniciativa teve maior xito econmico por concentrar

    todos os esforos dos acordos imigratrios, apoiado pelo decreto-lei 6117 - sancionado pelo

    governo brasileiro - que regulamentava a formao de ncleos coloniais destinados a

    receber e fixar, na qualidade de proprietrios, no s trabalhadores rurais brasileiros mas

    tambm um grande contingente de estrangeiros. Houve vrias ofertas de colonizao

    12

  • agrcola aos italianos em diversas regies do Brasil, alguns estados chegaram a oferecer

    gratuitamente terras aos colonos, o que induziu a chegada de um grande nmero de

    agricultores italianos.

    Houve tambm que se pensar em como resolver o problema dos bens italianos

    retidos pelo governo brasileiro durante a guerra. Estabeleceu-se que a restituio seria feita,

    mas o dinheiro no poderia sair do territrio brasileiro e que deveria servir para facilitar a

    imigrao de agricultores e a colonizao de terras frteis, porm ociosas.

    Duas comisses tcnicas italianas foram formadas e subsidiadas pelo ECA

    Economic Cooperation Administration - e tinham como finalidade avaliar as condies de

    viabilizar a ocupao de territrio por imigrantes.

    2. Apresentao de Pedrinhas e estudos sobre o assunto

    Aps vrias medidas governamentais, tanto de um pas como de outro, para atrair

    imigrantes italianos e algumas visitas dos peritos italianos em misses, para avaliar a

    viabilidade de se fundar colnias italianas no Brasil, finalmente criou-se uma situao

    estvel que possibilitou o tipo de imigrao com grupos de famlias que se concentrariam

    em colnias agrcolas onde os lotes, assim como as despesas com a viagem, inicialmente

    subvencionados pela Companhia, seriam vendidos em prestaes aos colonos.

    Para tanto, os peritos procuravam terras com qualidade para plantio em posio

    geogrfica favorvel, onde houvesse vias de acesso para escoamento de produo e em

    proximidade a centros urbanos. Pedrinhas, ento um pequeno arraial com algumas famlias

    13

  • agrcolas nativas, prximo de Assis, na regio oeste do Estado de So Paulo, se apresentou

    como uma regio favorecida para o tipo de colonizao desejada e foi apontada como ideal.

    Com a aprovao da liberao dos bens italianos no territrio brasileiro, em 8 de

    outubro de 1950, foi constituda a Companhia Brasileira de Colonizao e Imigrao

    Italiana - com sede no Rio de Janeiro e em So Paulo - que comeou o trabalho de

    preparao da colnia.

    Em 1953, os imigrantes comearam a chegar e se instalar em lotes pr-determinados

    e organizados pela Companhia, que transformou as fazendas em terreno apropriado para a

    lavoura e construo de um ncleo urbano, de casas residenciais, comerciais e de servio

    pblico para suprir as necessidades iniciais dos colonos. Dentro desta organizao, os

    italianos encontraram-se em um ambiente diferente daquele em que viviam na Itlia e se

    viram obrigados a adaptar-se ao clima, ao ambiente, lngua falada por brasileiros e aos

    alimentos encontrados na nova terra.

    Os processos sociais e culturais envolvidos na fixao deste grupo de imigrantes

    foram estudados j desde o incio da criao da colnia e foram apresentados em livros e

    trabalhos. Uma investigao importante e pioneira sobre o assunto feita pelo prof. Joo

    Baptista Borges Pereira colheu aspectos fundamentais da colnia ainda em fase de

    fundao. Iniciada em 1960 e que somente em 1974 a pesquisa foi publicada com o ttulo -

    Italianos no Mundo Rural Paulista e reeditada em 2003. Nas palavras do prprio autor a

    pesquisa:

    teve como alvo a compreenso do processo [...] que envolve um

    grupo de imigrantes, quando, em seu deslocamento espacial, se v na

    contingncia de enfrentar, com seus recursos culturais de origem, uma

    14

  • nova realidade, que , ao mesmo tempo, fsico-geogrfica, demogrfica,

    social e cultural. (Borges Pereira, 2003: 23)

    A comunidade de Pedrinhas Paulista representa um ncleo de interesse de estudos

    sociais, culturais e lingsticos porque os italianos ali radicados ao chegarem viram-se

    obrigados a adaptar-se ao clima, ao ambiente, lngua falada por brasileiros e aos alimentos

    encontrados nesta nova terra. Mas mesmo com toda a dificuldade encontrada em um

    ambiente diferente daquele em que viviam at a transferncia de ptria, sempre

    conservaram o forte desejo de manter os costumes trazidos da pennsula. Os fatos que aqui

    nos interessam, ligados lngua e alimentao, fazem parte do social e do cultural,

    incluindo, de maneira especfica, os aspectos lingsticos, pois atravs da lngua que se d

    o intercmbio entre culturas, e atravs das palavras se nomeiam as coisas que nos

    circundam e formam o nosso cotidiano, inclusive as palavras ligadas alimentao.

    O professor Joo Baptista entra no cotidiano das pessoas recm-chegadas colnia,

    para as quais a estranheza de viver no novo ambiente se revelava nas pequenas coisas de

    todos os dias como comer, cuidar da casa e trabalhar os campos. Assiste diretamente esse

    drama, por isso seu testemunho fundamental para qualquer pesquisa posterior sobre

    Pedrinhas, referncia obrigatria, como tem acontecido, para todos os outros trabalhos

    realizados em Pedrinhas. o prprio autor, alis, a indicar isso na sua introduo, ao dizer

    que:

    claro que o presente estudo poderia dar contribuies mais

    substanciais na medida em que pudesse seguir o desdobrar dessa marcha

    aculturativa. Isso equivaleria, porm, a dedicar a vida a seguir o

    15

  • desenrolar do processo. Empresa difcil, mas no impossvel. (Borges

    Pereira, 1974: 05).

    O fato de ter sido Pedrinhas objeto de outros estudos, que retomaram e ampliaram

    as sugestes iniciais do professor Joo Baptista, mostrou que no se tratou realmente de

    uma empresa impossvel. O processo de aculturao em Pedrinhas continua suscitando

    interesse, sob os mais diversos aspectos.

    Pelo grande nmero de estudos realizados na colnia consideramos que Pedrinhas

    Paulista representa, at o momento, a comunidade de imigrantes que mais recebeu

    pesquisadores, chegando a ser objeto de estudo para teses de doutorado e tema para

    diversos artigos publicados por revistas do Departamento de Letras da USP. Veremos a

    seguir o elenco das pesquisas a respeito da colnia:

    1966 - Italianos no Mundo Rural Paulista. Tese de livre-docncia do professor Joo

    Baptista Borges Pereira. Obteve prmio Governador do Estado em 1974. Publicada pela

    ed. Pioneira e reeditada em 2002 pela Edusp.

    1967 - Organizao Social e Educao Escolarizada numa Comunidade de Imigrantes

    Italianos e seus descendentes. Tese de doutorado de Jos Fernando Martins Bonilha, sob a

    orientao do prof. Florestan Fernandes. Publicada em 1970.

    1969 - As Colnias Bastos e Pedrinhas, Estudo Comparativo de Geografia Agrria. Tese

    de doutorado de Fernando Fonseca Salgado, sob a orientao do prof. Pasquale Petrone,

    apresentada Faculdade de Presidente Prudente do Departamento de Geografia da USP e

    publicada em 1971.

    1997 - O cooperativismo no Vale do Paranapanema. Estudo das cooperativas:

    Riograndense, Agropecuria de Pedrinhas Paulista e Coopermota (1980- 1995). Tese de

    16

  • doutorado de Lus de Castro Junior sob orientao da Prof Maria do Carmo Sampaio di

    Creddo, do programa de ps Graduao de histria da UNESP de Assis.

    1997 - Ncleo de Pedrinhas: identidade, histria e cultura material. Dissertao de

    mestrado de Silvana Cristina Oliveira Muniz, sob orientao do Prof. Pedro Paulo Abreu

    Funari, do programa de ps-graduao em histria da UNESP de Assis.

    2000 - Menina, Menina! Storie da unoasi italiana in Brasile, Pedrinhas 1951-1991.

    Tese de doutorado de Michele Petochi, sob orientao dos professores Stabili e Flores, do

    programa de ps-graduao em letras da Universit degli studi Roma Tre, na Itlia. Estudo

    que relata a transformao e adaptao da lngua italiana do momento da criao da colnia

    at a emancipao para Distrito.

    2000 - Pedrinhas Paulista: Memria e Inveno. Tese de doutorado apresentada pela

    prof. Giliola Maggio de Castro, sob a orientao da Prof. Liliana Lagan, do programa de

    ps-graduao de Geografia da USP.

    2003 Eles Fizeram a Amrica! A saga dos Imigrantes Italianos de Pedrinhas Paulista.

    Dissertao de mestrado de Danusa Rodrigues Alcades sob orientao da Prof. Ester

    Kominsky UNESP de Marilia.

    2005 - Terra Nostra em Mudana: identidade tnica, identidade religiosa e pluralismo

    religioso numa comunidade italiana do interior paulista. Dissertao de mestrado de

    Mariovaldo Gouveia, sob orientao do Prof. Joo Baptista Borges Pereira, do Programa de

    ps-graduao da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

    17

  • CAPTULO II

    1. Imigrao e cultura

    Meu interesse pelo aspecto alimentar no processo de aculturao de imigrantes,

    especialmente dos fixados em Pedrinhas, prende-se no s minha formao profissional,

    sendo eu graduada em Cincias da Nutrio, mas ao fato de considerar o ato de comer, um

    dos traos fundamentais da cultura italiana, como bem ressaltou Fabiano Della Bona em

    seu trabalho Literatura Italiana e Gastronomia: Um Dilogo Interdisciplinar. Diz o autor:

    Talvez nenhum outro povo dedique tanto tempo e d tanta

    importncia ao ato de comer como os italianos [...]. Comer, para um

    italiano, muito mais do que um ato meramente fisiolgico. Ao sentar

    mesa, a preocupao de um italiano no somente a de satisfazer seu

    paladar. A comensalidade, o ritual quase sagrado da companhia e da

    preocupao com a qualidade, procedncia egenuinialidade dos

    alimentos tambm o preocupam. Sem falar no prprio ato de prepar-los,

    que em si j pressupe prticas tambm muito rituais, todas elas

    permeadas de tradies que afundam suas razes em tempos muito

    remotos. No se pode ignorar todas as influncias que as culturas

    estrangeiras que dominaram o territrio italiano exerceram sobre os

    mais diversos aspectos da vida italiana, e a cozinha, obviamente, no

    ficou de lado (Della Bona, 2003: 03).

    18

  • Se, como ressalta o autor, a cozinha italiana sofreu, ao longo dos sculos, variadas

    influncias estrangeiras dos povos que dominaram o territrio italiano, sendo, portanto,

    fruto de variadas culturas, que ainda se fazem sentir de maneira marcante nas profundas

    diferenciaes regionais e locais, como se dar a aculturao no contato com outra cultura,

    quando os italianos chegam, como imigrantes, em novas terras? Se para o italiano comer

    to importante, a ponto de ser - como de resto acontece com muitas culturas - um dos

    aspectos fundamentais ligados prpria identidade, como ter sido o trauma vivido pelos

    que emigraram, arrancados fora de suas origens e do seu meio, ao perderem contato com

    aqueles alimentos a que estavam acostumados? De que maneira superaram (os que

    superaram, pois muitos abandonaram a colnia Pedrinhas ainda no incio, como bem relata

    o trabalho de Joo Baptista) a forte saudade causada pela ausncia, no s das paisagens

    costumeiras, mas tambm da comida cotidiana, ao chegarem num pas com caractersticas

    fsico-climticas e gneros alimentcios totalmente diferentes daqueles deixados na terra

    natal? Sendo os imigrantes de Pedrinhas provenientes de diversas regies da Itlia (e

    portadores, portanto de significativas diferenas regionais) teria acontecido, como

    aconteceu com a lngua, uma generalizada uniformizao entre os italianos das mais

    variadas procedncias, a ser contraposta aos padres alimentares do local a que chegavam,

    tendo que recorrer forosamente aos alimentos que tinham disposio? Essas so algumas

    das questes que sero levantadas ao se enfrentar este estudo sobre a influncia italiana na

    alimentao em Pedrinhas, questes que acompanham a mesma problemtica da lngua

    falada.

    No se trata, neste trabalho, de aprofundar a questo to importante e fundamental

    da alimentao, especialmente para um povo, como o italiano, para quem o comer se

    reveste de uma importncia particular, sendo um dos traos fundamentais de sua cultura,

    19

  • mas trata-se de reconhecer nas palavras dos imigrados quais foram os traumas ligados

    alimentao, no momento do transplante para a nova terra, e como se deu a posterior

    adaptao ao novo meio, at a criao de uma forma de alimentao, em que se

    misturaram: a tradio trazida da ptria deixada, a utilizao de novos ingredientes e a

    assimilao de hbitos alimentares dos habitantes nativos.

    Meu trabalho tambm tem como objetivo analisar a terminologia alimentar da

    lngua italiana ainda em uso pelos imigrantes na colnia Pedrinhas e aprofundar os aspectos

    que dizem respeito aos hbitos alimentares e lngua falada. Poucos trabalhos nesta linha

    foram publicados, muito provavelmente pela interdisciplinaridade que envolve tal tipo de

    pesquisa. O desafio realizar um trabalho sob esse enfoque, que at agora foi

    marginalmente citado nas pesquisas realizadas anteriormente nesta comunidade. As

    dificuldades iniciais encontradas pelos imigrantes italianos em Pedrinhas foram objeto de

    algumas consideraes por parte do professor Joo Baptista, no sendo seu objeto

    especfico de estudo. No entanto os depoimentos por ele recolhidos diretamente dos

    imigrantes so muito interessantes para captar o trauma que significou o primeiro contato

    com a nova terra. Diz ele:

    Por fim, nesta ordem de consideraes em torno das reaes do

    imigrante a estmulos derivados dos quadros naturais, cabe lugar de

    destaque s referncias alimentao. Nas confisses dos colonos so

    corriqueiras as observaes a respeito do cheiro e do gosto diferentes e

    desagradveis dos alimentos. Este trecho, extrado da histria de vida de

    uma camponesa proveniente da regio central italiana (Lazio),

    exemplifica, com riqueza de detalhes, as reaes do italiano perante tal

    situao: Chegamos nas Pedrinha, numa sexta feira, em 1952. Fazia

    muito calor. Nossa casa estava quase totalmente coberta de mato. Tinha

    20

  • mato at na porta de entrada. Fui ao poo tomar gua. Antes de beber j

    comecei a chorar, pois sabia que a gua tinha cheiro e gosto diferentes.

    No comeo, a gua no matava a sede. Alguns dias depois, uma vizinha

    presenteou-me com um mamo e um abacaxi. Fiquei com o estmago

    enjoado s de sentir o cheiro das frutas. As crianas comeram e disseram

    que o mamo tinha gosto de coisa podre. Acho que s depois de muito

    tempo foi que comecei a comer certas frutas. De banana, at hoje, eu no

    suporto o gosto. Nem a laranja daqui era gostosa como as da Itlia. No

    comeo eu comia certas coisas, tapando o nariz, sem respirar: o cheiro

    era pior que o gosto. Hoje, quase no sinto a diferena(Borges Pereira,

    1974: 51)

    Este dramtico depoimento, em que, para comer (e portanto se alimentar e manter a

    vida) a pessoa deixa de respirar, extremamente significativo do padecimento sofrido

    pelos imigrantes em seus primeiros contatos com a diversidade da terra. No entanto outros

    depoimentos, tambm recolhidos pelo professor Joo Baptista, falam de um progressivo

    aprender a cozinhar com as vizinhas brasileiras, incorporando alimentos novos, como a

    carne de boi, que nunca fora alimento freqente na terra de origem:

    Eu punha bastante alho e cebola para disfarar o gosto e o

    cheiro da comida. A carne me deu muito trabalho. Na Itlia s se comia

    carne de vitela; era macia e fcil de cozinhar. Aqui a carne de boi

    velho. Eu no sabia como fazer. Fui casa de um brasileiro. Junto com

    outras mulheres italianas, e l aprendemos a fazer o bife, do jeito

    brasileiro. No difcil, e at gostoso. Meu marido outro dia me disse

    que quer voltar Itlia s para comer carne de vitela. Eu j me

    acostumei tanto com a carne de boi velho que nem sei mais que gosto tem

    a da vitela (Borges Pereira, 1973: 51).

    21

  • Estas ltimas observaes so importantes para entender o processo de aculturao,

    pois ao lado de um aprendizado existe um esquecimento - e existe tambm a percepo

    das diferenas - que se realiza em todos os mbitos da vida cultural (desde o alimentar ao

    lingstico) e que ser a base para a criao de algo novo.

    2. Corpus do trabalho e tcnica de transcrio

    O professor Borges Pereira no se preocupa diretamente com o estudo lingstico e

    as citaes dos depoimentos dos italianos que encontramos na sua obra so relatadas em

    portugus correto e fluente e no na linguagem real que essas pessoas podiam usar. No

    nosso caso, apresentaremos os depoimentos em italiano, ou, para sermos mais exatos, numa

    lngua que tem por base o italiano. A transcrio reproduz a lngua falada em todas as

    suas caractersticas e irregularidades, embora ciente de que esse modo poder chocar quem

    no est acostumado leitura de transcries, consideramos que a melhor forma de

    mostrarmos no apenas o que, em Pedrinhas aps 50 anos, sobrou das tradies alimentares

    italianas, mas tambm mostrar o que os pedrinhenses ainda lembram da lngua italiana

    quando falam do que lhes diz respeito.

    Uma intensa pesquisa de campo, realizada pela Profa. Giliola Maggio de Castro do

    Departamento de Italiano da USP, fornecer parte do corpus. So depoimentos de

    imigrantes colhidos no perodo de 1998 a 2000, nos quais os entrevistados relatam suas

    impresses, angstias e alegrias do momento da chegada ao Brasil e suas adaptaes nova

    terra. Quase todos os depoimentos contm informaes interessantes relativas

    22

  • alimentao, o que me possibilitou sua utilizao. Mas uma nova pesquisa se fez necessria

    e fui buscar em Pedrinhas dados relativos alimentao e suas preparaes. Entrevistei

    mulheres italianas e pedi para que me explicassem o procedimento de cada etapa das

    preparaes dos pratos tpicos da regio de origem. Consegui receitas das mais variadas, o

    que enriqueceu meu corpus, permitindo uma anlise especfica para o presente estudo.

    Usamos para o processo de transcrio o modelo do NURC (anexo 1), mas foi

    necessrio criar algumas regras adicionais que foram adaptadas para este trabalho, por se

    tratar de um estudo indito sobre lngua (que envolve italiano e portugus) e alimentao

    (que envolve hbitos alimentares) e tivemos que preservar alguns termos criados pelos

    italianos que misturam as duas lnguas. No nosso caso, apresentaremos os depoimentos em

    italiano, ou, para sermos mais exatos, numa lngua que tem por base o italiano.

    O instrumento que permite chegar o mais perto possvel do discurso genuno do

    falante so as normas de transcries do NURC utilizadas: prolongamento de vogal (:::),

    truncamentos (/), etc. Esses sinais especficos do projeto NURC ultrapassam os sinais

    grficos que o falante alfabetizado utiliza quando escreve, como: acentos agudos,

    circunflexos e til. No arquivo sonoro como chamando pelos prprios autores do NURC,

    as marcaes de transcrio propostas permitem que o que foi realizado no plano sonoro

    seja materializado aos olhos do leitor. Aps compreender o funcionamento de cada sinal

    proposto e ao ler um trecho de transcrio consegue-se chegar muito perto da linguagem

    oral ali manifestada.

    Evidentemente existe, na linguagem oral, um complemento de comunicao de

    atividade no verbalizada atravs de signos como gestos e expresses faciais do falante,

    que se perdem no processo de reproduo em udio.

    23

  • Para a proposta desta anlise a falta desses elementos lingsticos no verbais nas

    transcries no far diferena.

    Quando o discurso oral passado para o formato de texto outro signo da comunicao

    abandonado: a entonao da voz do falante. Consideraremos a marcao grfica (NURC)

    com letras maisculas para indicar alterao emocional, quando o falante eleva o tom de

    voz.

    Esses sinais de transcrio - como colocar letras em maisculo para acenar que o falante

    elevou a voz - tm como finalidade enfatizar a palavra: por exemplo quando ele eleva o tom

    de voz ao dizer banane, a expresso grfica dessa palavra dentro desse contexto ser

    BANANE. E quando o entrevistado desejar enfatizar algum fonema, naturalmente ele o far

    pronunciando-o pausadamente, a imagem grfica para esse fonema ser representado

    separando-o por slabas assim: BA-NA-NE.

    Essa manobra da transcrio suficiente para identificar o grau de afetividade que o

    falante italiano tem com a comida. Vamos considerar que BA-NA-NE sinal grfico que

    expressa um maior grau de afetividade possvel numa transcrio, quando o falante elevou

    o tom de voz e teve o cuidado de pronunciar pausadamente.

    de conhecimento comum que muitas palavras italianas entraram para o

    vocabulrio portugus porm com modificaes em sua escrita (morfolgicas e sintticas),

    como por exemplo: lasanha e lasagna. Por se tratar da anlise do lxico alimentar, preferi

    utilizar a grafia italiana da palavra como se eles estivessem falando: lasagna.

    Por se tratar de uma linguagem oral, na qual se notam pronncias diferentes, o processo de

    transcrio das entrevistas precisou de uma definio em relao s diferenas fonticas

    como por exemplo: mamon registramos como mamo, feijon como feijo, etc. Nesse

    caso, mantivemos a palavra em portugus que o que a pessoa queria dizer,

    24

  • desconsiderando suas limitaes de pronncia. Por outro lado, foram mantidas as

    consoantes duplas para os casos das palavras criadas, para preservar sua formao

    fontica no caso da pronncia ser muito marcada.

    3. A linguagem dos imigrantes italianos dos anos 50

    3.1. Alguns conceitos de linguagem

    Cada indivduo tem certo nmero de elementos lingsticos memorizados que permitem

    a comunicao. A linguagem humana fruto da capacidade do homem de comunicar-se

    com seus semelhantes atravs de signos verbais, num sistema compreendendo lxico e

    todas as regras gramaticais; foi aprendido em casa e no meio social, existe na conscincia

    de cada indivduo, que tem liberdade de combinar os signos e utiliz-los para elaborar sua

    mensagem e organizar os pensamentos. (Barbosa, 1995)

    Para ter uma idia mais clara do assunto, consideramos os dicionrios mdios em uso

    no Brasil e na Itlia. O Novo Aurlio de 1999 registra 435 mil verbetes, locues e

    definies abrangendo todas as reas do conhecimento. O Zingarelli de 1983 apresenta

    127 mil verbetes relativos principalmente tradio literria. Nos anos do ps guerra, o

    Novo Palazzi registra 64 mil verbetes de tradio literria. Mesmo no mais reduzido desses

    dicionrios temos um nmero de palavras que nenhum falante capaz de memorizar. O

    sistema muito mais amplo do que a capacidade do homem - mesmo o mais culto de

    armazen-lo.

    Quantas dessas palavras so conhecidas pelo falante comum ou mesmo por aquele

    com escolaridade mdia superior? Alguns milhares. Quantas palavras conhece o povo no

    25

  • escolarizado ou pouco escolarizado? Talvez 500 ou mil. H uma diferena muito grande de

    conhecimento lingstico lexical entre as pessoas, determinada pelo nvel scio cultural.

    Existem vrios graus de comunicao: quando o ouvinte consegue absorver parte da

    informao; quando o ouvinte consegue absorver quase toda a informao e quando o

    ouvinte consegue absorver toda a informao. No ltimo caso, ouvinte e falante usam

    exatamente o mesmo sistema ou cdigo lingstico, nos dois primeiros casos o ouvinte

    desconhece signos que fazem parte do sistema ou cdigo do falante. Quando o cdigo

    lingstico utilizado no comum entre o falante e o ouvinte, a conseqncia uma

    compreenso fragmentada.

    Mais complexa era a condio das massas populares italianas dos anos 50,

    particularmente os agricultores pobres de regies afastadas, com escolaridade mnima que

    falavam tambm dialeto, numa poca em que a mdia no era to difundida como hoje,

    tinham conhecimento limitado da lngua materna. Foram esses os que emigraram. Antes

    mesmo de chegarem ao Brasil tinham dificuldade em se comunicar em italiano com

    pessoas estranhas ao seu pequeno mundo e no entendiam com clareza uma linguagem

    mais sofisticada. Apesar disso muitos chegaram ao Brasil carregando livros, preocupados

    em no perder o pouco que sabiam da lngua materna, pela qual tinham carinho e apreo e

    que ainda e de alguma forma preservam.

    3.1.1. Nveis de linguagem:

    A primeira distino na linguagem, ento, social e cultural. A segunda acontece

    entre lngua falada e lngua escrita. A lngua escrita passa por um processo de planejamento

    26

  • e organizao que permite uma seqncia contnua de idias. Na lngua falada o processo

    de reflexo e elaborao so paralelos, ocasionando interrupes e retomadas dos assuntos,

    o discurso torna-se truncado e interrompido. Nosso material para anlise apresenta-se em

    texto oral transcrito. Preservamos as caractersticas da oralidade na comunicao:

    truncamentos, abandono, retomada de assuntos, pausas, etc., o que pode provocar

    estranhamento, mas no significa falta de conhecimento da lngua.

    Em relao s diferenciaes diafsica e diastrtica da lngua italiana, De Mauro

    (1963) sintetiza os nveis lingsticos na seguinte hierarquia: italiano scientifico, italiano

    standard, italiano popolare unitario e italiano regional colloquiale.

    Berruto (1987) apresenta outro modelo das diferenas de linguagem do italiano

    contemporneo baseado em trs premissas: 1. evitar misturar as diferentes variaes, mas

    saber que os nveis de linguagem se interseccionam. 2. lembrar que a diferenciao

    geogrfica tem um peso importante para a lngua italiana (dialetos). 3. considerar as

    variantes diafsica, diastrtica e diamsica. Berruto desenha uma linha horizontal que vai

    do polo italiano scritto-scritto ao polo parlato-parlato (diamsica).

    Numa anlise diastrtica, traa uma linha vertical que vai do polo alto, scio

    cultural alto, ao polo basso scio cultural baixo. No eixo formado por essas duas linhas,

    ele desenha uma outra linha transversal para classificar os diferentes nveis de

    formalidade/informalidade, numa anlise diafsica. Ainda, isola algumas categorias de

    linguagem a ttulo exemplificativo, com variedades fundamentais que estabelecem pontos

    de referncia. Do formal ao informal; acadmico, burocrtico, literrio; do culto ao regional

    e ao popular. Berruto tambm atesta que tnue a linha que separa os nveis de

    diferenciao de linguagem:

    27

  • Il riconoscimento dellautonomia della dimensione diamesica non

    del tutto chiarito in sede teorica. Indubbiamente, uso scritto e uso

    parlato rappresentano due grandi classi di situazioni dimpiego della

    lingua: e questo un buon argomento per ritenere la diamesia una

    sottocategoria della diafasa. Daltra parte, anche vero che

    lopposizione scritto-parlato taglia transversalmente la diafasa e le altre

    dimensioni, e non riconducibile completamente allopposizione

    formale-informale. (Berruto,1994:24)

    Os diferentes nveis de linguagem no se apresentam numa disposio rgida e

    simples, tornando possvel encontrarmos: nvel de linguagem oral formal e nvel de

    linguagem oral informal, etc.

    Nessa tica, as transcries que fazem parte do corpus desse trabalho apresentam

    caractersticas da linguagem falada de nvel coloquial popular com influncias

    regionais/dialetais acentuadas.

    3.2. Formao da linguagem em Pedrinhas Paulista

    Ao longo da permanncia no Brasil, os italianos sofreram adaptaes como

    acenamos no capitulo anterior. Uma delas foi a adaptao e mudana da linguagem usada

    por eles.

    De acordo com obras consultadas sobre o tema, podemos visualizar um quadro geral

    da situao lingstica dos italianos da comunidade em trs momentos distintos: em 1953,

    no perodo da sua chegada ao Brasil; outro momento em 2000, na pesquisa da prof Giliola

    28

  • Maggio de Castro, e mais adiante em 2005, nas entrevistas colhidas por mim

    especificamente para este trabalho.

    Em 1950 havia na Itlia 47 milhes de habitantes, sendo que sete milhes e meio

    eram analfabetos, treze milhes com curso primrio no concludo mas que sabiam ler

    alguma coisa, 25 milhes com curso primrio completo, trs milhes e meio com curso

    mdio (correspondente oitava srie) e 1,3 milhes diplomados no colegial, dos quais

    apenas 1,8% com curso superior. ( wwwold.inran.it/Documentazione)

    Dados encontrados em bibliografia citada no captulo I desta dissertao mostram

    que os emigrados das vrias regies da Itlia nos anos seguintes Segunda Guerra faziam

    parte de uma mesma realidade: condio scio-econmica baixa, pouca escolaridade e falta

    de oportunidade de trabalho. Em sua maioria eram trabalhadores braais (operrios e

    agricultores) e usavam uma linguagem simples, basicamente composta pelo dialeto na fala

    cotidiana e pela lngua nacional - aprendida na escola e pelos meios de comunicao -

    comprometida pelo baixo grau de conhecimento e raras ocasies de uso. Em sua maioria

    cursaram alguns anos do curso elementare, equivalente primeira parte do ensino

    fundamental no Brasil e muitos emigraram antes de alcanar a idade escolar. Os adultos,

    operrios e agricultores, se valiam apenas de seu trabalho braal para garantir o sustento da

    famlia.

    Os primeiros anos dos italianos na colnia e o processo de adaptao s novas

    condies de vida foram relatados na obra do prof. Joo Baptista e o autor faz algumas

    consideraes no que diz respeito ao plano lingstico:

    ....na colnia [...] essa variedade de dialetos fracionou o

    universo de comunicao do grupo, levando-o a buscar uma esfera

    29

  • comum de entendimentos recprocos. Duas alternativas se apresentaram

    ao grupo: cultivar a lngua italiana ou a portuguesa.....(Borges Pereira,

    1964:205)

    Um fator importante a ser considerado na anlise da linguagem dos pedrinhenses a

    convivncia com o padre Dom Ernesto, guia espiritual do grupo heterogneo dos

    imigrados, provenientes de diferentes regies da Itlia. Este convvio durante muito tempo

    possibilitou ao grupo usar e melhorar a lngua italiana nacional, como meio de

    comunicao entre eles. Dom Ernesto chegou ao Brasil em 1952, com os primeiros

    colonos, e participou ativamente da construo da comunidade, mantendo sua coeso

    religiosa e lingstica e a identidade italiana.

    ....A Igreja foi uma das primeiras construes planejadas para a

    Colnia, sua pedra fundamental, lanada em 21/09/1952 marcou a

    fundao da colnia [...] Desde sua inaugurao esteve sob a

    coordenao do Monsenhor Ernesto Montagner, que manteve preservada

    a cultura peninsular, realizando todas as missas e bnos em italiano,

    at o ano de 1995 quando faleceu. Atualmente um padre brasileiro est

    frente da Parquia, e a periodicidade das missas naquele idioma no a

    mesma, mas a comunidade conserva a tradio, participando dos atos

    religiosos e cantando os famosos cantos gregorianos..

    (http://www.pedrinhaspaulista.sp.gov.br/omunicipio/turismo)

    No entanto, a presso do ambiente local para o cultivo da lngua portuguesa foi

    reforada pelos meios de comunicao como rdio, jornal e televiso da poca, mesmo que

    no princpio no existissem em nmero considervel na colnia. Apesar dos constantes

    30

  • esforos do padre e das escolas do jardim da infncia com freiras italianas, para se manter a

    lngua italiana, segundo a opinio do professor Borges Pereira ...a lngua portuguesa saiu

    vencedora..... Na poca de sua pesquisa j estava ocorrendo a construo de uma espcie

    de italiano misturado com elementos lexicais dialetais e portugueses, iniciava-se a

    formao de uma interlngua.

    ...na prtica o que est ocorrendo , no momento, a adoo de

    uma espcie de lngua franca, formada de elementos italianos, dialetais,

    brasileiros e de termos regionais, sobretudo de expresses nordestinas.

    Ainda que bastante sincrtico, tal elaborao lingstica d o

    denominador comum atravs do qual os indivduos se entendem e se

    colocam em comunicao com os brasileiros.... (Borges Pereira 1964:

    206)

    Essas consideraes so importantes para o entendimento da nova realidade

    lingstica que veio se formando ao longo dos anos e que podemos reavaliar no ano de

    2000, ano em que os italianos de Pedrinhas foram revisitados para uma nova pesquisa que

    mostra o quadro lingstico atual. As consideraes da profa. Giliola Maggio de Castro so

    de extrema relevncia:

    A anlise da evoluo lingstica em Pedrinhas Paulista, na

    medida em que possvel verific-la, mostra que, sua chegada o

    imigrante no falava italiano, mas o dialeto de sua aldeia. Em seguida,

    entrando em contato com outros imigrantes, provindo de outras regies

    italianas que, por sua vez, falavam o prprio dialeto, ele teve de adaptar-

    se a um italiano comum, a fim de comunicar-se com eles. Finalmente, o

    imigrante teve de adaptar-se ao portugus-brasileiro, em sua variedade

    31

  • local, para os contatos com os brasileiros que ali moravam. Nesse

    quadro de fragmentao lingstica, insere-se a aprendizagem e a

    manuteno do italiano dos pedrinhenses como um meio de no esquecer

    suas origens. (Castro, 2002:145)

    Como se v, tanto em um enfoque social quanto lingstico, as adaptaes pelas

    quais tiveram que passar os imigrantes em estudo foram muitas.

    A ao do padre que, durante o contato com seus paroquianos, mantinha seu

    discurso na lngua italiana, foi marcante. Atravs dos documentos (os sermes eram falados

    por muito tempo em lngua italiana) que se encontram em Pedrinhas Paulista e de memrias

    de pessoas que o conheceram, percebemos que o nvel lingstico de sua fala era bastante

    informal, mas no incorreto, o que era necessrio para poder se comunicar com seus fiis.

    Os pedrinhenses, ento, entre eles, mantinham contato com a lngua italiana, embora dentro

    do ncleo familiar falassem o dialeto. Eram religiosos (a maioria) portanto no s

    freqentavam a igreja mas conversavam com o padre, o que em parte preservou formas de

    cultura peninsular, como atesta a prof Giliola:

    Quanto ao uso do italiano comum na comunicao entre

    imigrados de regies diferentes, preciso destacar a ao do padre Dom

    Ernesto que, falando em italiano do plpito e nas conversas pblicas e

    particulares com seus paroquianos, com a autoridade de sua funo e de

    sua personalidade, alm de manter unida a comunidade pedrinhense ao

    redor de seus ideais cristos, de suas tradies familiares e da imagem

    da Itlia que lhe era prpria, ajudou tambm na manuteno e ampliao

    do patrimnio lingstico originrio italiano de seus paroquianos. A ao

    do padre, por algum tempo, criou uma barreira contra aquela que

    32

  • poderia ser a natural expanso do portugus na pequena comunidade. .

    (Castro, 2002: 147)

    Nas transcries das entrevistas se percebe o esforo dos pedrinhenses para

    utilizao do maior nmero possvel de elementos lexicais do italiano pois, tanto nas

    entrevistas da prof Maggio de Castro, como nas minhas, conduzimos sem imposio - o

    uso da lngua italiana. O contedo das entrevistas que temos em mos como objeto de

    estudo permite inmeras anlises. Essa mescla de lnguas e dialetos falados em Pedrinhas

    Paulista recebe, nesta proposta de trabalho, um tratamento sob o ponto de vista alimentar,

    ou seja a linguagem da alimentao. O material que compe o corpus desse trabalho est

    numa forma escrita de linguagem oral, informal e misturada, apresentada em transcries

    com todas as caractersticas da oralidade.

    O motivo da opo pela anlise de entrevistas com referncia aos alimentos vem da

    hiptese que lngua e alimentao tm uma forte ligao entre si na preservao da

    identidade cultural. A lngua um bem ao qual cada indivduo se sente ligado

    visceralmente e o ato de alimentar-se compreende no apenas a necessidade de nutrir-se e

    manter a vida, mas algo fortemente interiorizado em cada ser humano, algo individual que

    transcende a questo cultural e que promove a manuteno de hbitos alimentares. Porm,

    no plano do consciente que o indivduo, dentro da sua comunidade, preserva os rituais de

    preparao e consumo das refeies, repetindo as receitas ao longo dos anos e conservando

    o lxico relacionado aos alimentos.

    33

  • Alm disso, o alimentar-se remete ao afeto, principalmente o materno, pois a me

    quem d vida e alimento ao beb, ela tambm quem ensina as primeiras palavras1,

    colaborando na formao da identidade alimentar que se mantm ao longo dos anos.

    Veremos durante a anlise geral do corpus se no falar do italiano instalado em

    Pedrinhas Paulista aparecem esses elementos da cultura e da identidade ligados

    alimentao, mas no nos deteremos agora ao to complexo tema da afetividade ligada a

    alimentos, porque isso envolve muitos outros fatores que desconhecemos e no nos

    compete e nem temos instrumentos para explicar. Mas decidimos que se o momento em

    que o falante elevou o tom de voz coincidir com a referncia a um determinado alimento,

    essa palavra aparecer em letras maisculas, indicando que existe um fator emocional

    ligado ao alimento dentro do contexto. Consideraremos que o fator emocional um forte

    mantenedor dos hbitos alimentares e do lxico alimentar correspondente.

    Verificaremos se o processo lingstico dentro do campo lxico alimentar

    acompanha o processo de interao geral e misturas entre as lnguas. Ser que o lxico

    alimentar original na lngua italiana (consideramos o que foi preservado do italiano e do

    dialeto) ficou no plano secundrio sendo vencido pelo portugus mela substitudo por

    ma; pasta por macarro, etc. - ou, esse processo no ocorreu e o lxico alimentar

    italiano ficou preservado?

    1 A primeira lngua aprendida chamada de lngua materna.

    34

  • 3.3. Conservao da lngua italiana pelos imigrantes de Pedrinhas e

    pelos italianos imigrados nas dcadas de 1960/1970 em So Paulo

    capital

    preciso ressaltar que a cidade de So Paulo tambm acolheu italianos do segundo

    ps-guerra e isso aconteceu em dois momentos distintos: os que chegaram em condies

    semelhantes s dos italianos de Pedrinhas na dcada de 50 e os que chegaram num

    momento posterior, nos anos 60 e 70, que j estavam inseridos no processo de

    crescimento econmico italiano e foram chamados por consociate, para desenvolver

    funes diretivas nas filiais de empresas italianas no Brasil. Devido condio scio-

    econmica a que pertenciam, estes italiani allestero se instalaram em bairros da elite

    brasileira, mas tiveram de adequar seus hbitos ao novo contexto social, assim como todo

    imigrante.

    O grupo de imigrantes que chegou na cidade de So Paulo no imediato ps-guerra

    espalhou-se pela cidade, especialmente por bairros como Brs e a Mooca, onde os traos

    culturais italianos da primeira imigrao j haviam sido parcialmente estereotipados e num

    ambiente em que j habitavam muitas outras etnias. Pouco a pouco foram perdendo o

    contato com a lngua italiana fora do mbito familiar, conforme pesquisa - que vem sendo

    realizada desde 1994 - sobre a lngua italiana ainda falada na coletividade italiana em So

    Paulo, coordenado por docentes do Departamento de Lngua e Literatura Italiana da

    Universidade de So Paulo, permite conhecer parte da situao lingstica em So Paulo.

    Verificou-se que a maioria dos que chegaram como imigrantes haviam perdido o uso

    35

  • fluente da lngua italiana. Apenas aqueles que chegaram atravs de contratos de trabalho

    por empresas italianas no Brasil falavam o italiano padro.

    Foram colhidos depoimentos com italianos pertencentes a este segundo grupo. Os

    entrevistados na cidade de So Paulo vieram da Itlia com uma situao econmica elevada

    o que permitiu viagens freqentes Itlia e a conservao das relaes com a cultura

    italiana atravs de associaes ou entidades tais como: Crcolo Italiano, COMITES,

    Instituto Italiano de Cultura, onde continuam falando a lngua que haviam estudado

    longos anos na escola e na universidade. Esses foram os dois principais motivos que

    colaboraram para a conservao da lngua italiana e preservao da sua identidade cultural

    e lingstica. O resultado dessa pesquisa mostra, como atesta a Prof Loredana Caprara,

    que:

    Queste persone, forse alcune migliaia, nonostante il lungo

    periodo passato allestero e unattivit spesso svolta in ambiente

    brasiliano, continuano a parlare un italiano fluente e abbastanza

    corretto, anche se, in certa misura, un po differente dallitaliano

    peninsulare, perch meno attualizzato e pi conservatore, in definitiva un

    po rigido e antiquato (Caprara, 2004:105)

    luz da leitura dessas entrevistas (anexo IV) percebemos que se trata de outra

    realidade, muito diferente da de Pedrinhas Paulista. O motivo da imigrao no foi to

    dramtico e a transferncia de pas parece ter deixado menos cicatrizes. Vieram para

    exercer suas profisses em condies privilegiadas no mercado de trabalho, onde suas

    especializaes seriam valorizadas.

    36

  • No entanto em relao ao sentimento envolvido com a alimentao, tambm essas

    pessoas tm uma forte ligao com a comida e com as tradies alimentares da ptria, e que

    deixam transparecer nas entrevistas. O lxico alimentar aparece como argumento principal

    em alguns momentos de seu discurso.

    Aproveitando o material dessa pesquisa, achamos interessante traar uma rpida

    comparao entre a lngua da alimentao falada pelos dois grupos mas lembramos que a

    anlise detalhada da linguagem em Pedrinhas Paulista se desenvolver no decorrer deste

    trabalho. s transcries feitas na cidade de So Paulo, daremos o nome de transcries do

    grupo SP, e s de Pedrinhas, transcries do grupo Pe.

    Num recorte para uma pesquisa diastrtica comparativa entre os italiani allestero

    dos anos 60 e 70 - o grupo SP - e o grupo de italianos entrevistado em Pedrinhas Paulista

    - o grupo Pe -, observamos que o primeiro grupo esteve e est inserido em um ambiente

    scio-cultural mais elevado e as condies de imigrao foram outras: o nvel de linguagem

    usada nos encontros com italianos e no falar cotidiano corresponde diretamente

    escolaridade e ao nvel cultural a que cada grupo pertenceu at o momento da emigrao,

    no decorrer desses anos e ao que est inserido atualmente. Sob um recorte diatpico atual

    dos dois grupos de imigrantes podemos constatar que os que imigraram para o campo e os

    que imigraram para o centro urbano tiveram experincias diferentes em relao ao meio e

    isso foi um dos motivos fundamentais determinantes da manuteno, ou no manuteno,

    de hbitos e lngua materna.

    Os dois grupos, cada um sua maneira, mantiveram o uso da lngua: os italianos de

    So Paulo por se encontrarem em situao scio-cultural favorvel, e os outros por estarem

    isolados como grupo social de caracterizao tpica italiana, num determinado territrio no

    qual a maior parte da vida cotidiana se desenrolava naquele mbito restrito. Verificamos

    37

  • tambm que os dois grupos selecionados para a pesquisa O Italiano dos Italianos de So

    Paulo, apesar das diferenas, possuem pontos em comum. Ambos so compostos por

    italianos que provm de regies diferentes, so homens e mulheres na faixa etria dos 70

    anos e permaneceram coesos durante muitos anos relacionando-se entre si.

    Considerando que o conhecimento do lxico alimentar bsico comum a todas as

    classes sociais, os dois grupos formaram o seu vocabulrio com um conjunto de palavras do

    campo alimentar na infncia, independente da regio de provenincia e de seu dialeto local.

    A comparao entre as duas linguagens se valida nessa premissa: o que nos interessa saber

    quanto o lxico alimentar italiano foi preservado durante o curso imigratrio at os dias

    atuais.

    Os trechos que dizem respeito alimentao do grupo de imigrantes SP so poucos,

    porque as entrevistas foram dirigidas verificao da competncia em vrios nveis de

    linguagem, focalizada em questes como atividades profissionais e culturais alm da vida

    domstica, ao passo que o segundo grupo foi conduzido ao assunto por uma seqncia de

    perguntas aplicadas sobre as impresses iniciais em relao alimentao e adaptaes.

    Percebemos a diferena entre os dramas vividos pelos dois grupos em relao

    alimentao. Todavia, vale lembrar que ambos os grupos passaram o perodo da guerra na

    Itlia, isto , presumimos que se no passaram fome propriamente dita, pelo menos

    passaram por uma situao que favoreceu a valorizao da alimentao. Nos depoimentos

    do grupo SP nos parece que a alimentao e suas adaptaes ficaram secundrias a outros

    interesses; para o grupo Pe, a alimentao ocupa outro grau de importncia reforado pelo

    cenrio ps-guerra, quando eles passaram por uma carncia de determinados gneros, o que

    ocasionou uma extrema valorizao da questo alimentar: o que parece representar um

    38

  • papel importante na adaptao s novas condies de vida no novo continente. Assunto que

    ser retomado e analisado no captulo III deste trabalho.

    Alm disso, nos anos 60 nos grandes centros urbanos brasileiros j havia mais

    disponibilidade de alimentos industrializados em relao zona rural. Na poca, nos

    centros urbanos - estamos falando de So Paulo - um ambiente italianizado j havia se

    formado, pois os italianos da primeira imigrao (desde 1870), haviam espalhado seus

    costumes alimentares, como pizza, polenta e macarro, os quais, aos poucos se

    incorporaram aos hbitos dos brasileiros. A presena dos italianos formava um mercado

    consumidor que favoreceu a importao de massas prontas e farinha de trigo e em virtude

    de crises externas como a Primeira Guerra Mundial, ampliou-se o parque industrial em So

    Paulo destacando-se as indstrias de pastifcios, passando os produtos alimentcios a serem

    fabricados no Brasil (Dean, 1971).

    No houve muita dificuldade para o grupo SP no processo de adaptao nova

    condio alimentar por dois principais motivos: a cidade j havia sido italianizada e a classe

    econmica a que pertenciam permitia aquisio de gneros italianos, mesmo os mais caros.

    No entanto faltavam algumas frutas e verduras a que essas pessoas estavam acostumadas.

    Os italianos de So Paulo mantiveram os hbitos alimentares de origem, porm tambm se

    deixaram seduzir por iguarias da comida brasileira formando uma dieta mista, o que de fato

    deve ter acontecido com a maioria dos italianos imigrados. Vejamos um exemplo:

    Doc e le abitudini alimentari?

    Inf ah le abitudini alimentari (+) la feijoada mi piace molto (++)

    (ridono) bevo la caipirinha per (+) mangio molta pastasciutta

    (ridono)

    39

  • Doc2 e lei si brasilianizzato (+) o conserva alcuni costumi italiani Inf no non mi sono assolutamente Doc2 no Inf brasilianizzato non pretendo assolutamente brasilianizzarmi sono nato milanese (+) la mia: (+) il nome della mia famiglia viene da (+) prima dellanno mille: quindi ancora (voglio) continuare a essere milanese fin quando fino alla fine Doc1 lei ma lei conserva ancora prima delle alcuni: le abitudini per esempio alimentari a casa mangiate molto la pasta qualcosa del genere (+) (sebbene) che a::al nord si mangia abbastanza anche il riso no inf beh a Milano (+) il riso (+) doc 1 il riso doc1 fondamentale ( ) doc1 [ci sono delle risaie ( ) inf [alis alis (+) pi che (++) a Milano si mangia pi riso che pasta doc 1 [s s inf sia como risotto sia come (+) come minestra sia minestra di verdura con riso si mangia pi riso che pasta a Milano e queste abitudini (+) sono in parte rimaste (+) intendiamoci bene anche nel campo dellalimentazine que si cambia (+) si cambiato: (++) evidentemente quelle che erano le diretrici italiane nel senso che si sia adatta molto di pi anche per questione di clima senzaltro per questini de clima doc2- ahn ahn s inf rimane quache cosa delle vecchie abitudini per esempio il risotto giallo milanese non adattato eh: non so anche bistecca alla milanese qualche volta (ridono)

    40

  • CAPTULO III

    1. Alimentos e tradio em Pedrinhas Paulista

    De posse de um corpus robusto, rico em referncias alimentao e suas receitas,

    propomos fazer uma anlise sob diferentes aspectos, tanto em relao aos hbitos

    alimentares quanto em relao linguagem da alimentao. Essa parte da pesquisa tratar

    especialmente das adaptaes e misturas alimentares.

    1.1. Alimentos encontrados pelos imigrantes em 1953

    A origem da alimentao do brasileiro vem do ndio, do negro e do portugus. Dos

    ndios a alimentao brasileira herdou a mandioca e seus derivados como farinha seca,

    mingaus, bolos e at pes, o palmito comido in natura ou em tortas e piro. Os ndios

    consumiam pimenta vermelha e amarela como forma de condimento, como at hoje,

    chegando a masc-la muitas vezes, hbito que no se difundiu entre outros povos.

    Consumiam o milho, abbora, paoca e banana dgua cozida. As frutas eram cajus,

    abacaxis, goiabas, laranjas limas e limes. Conheciam o arroz e o feijo, mas no se tem

    registro do consumo da mistura arroz com feijo. Como alimentos de origem animal,

    consumiam apenas animais de caa, assim como cotias, tatus, capivara, algumas aves

    41

  • aquticas, peixes, crustceos e moluscos. A carne era consumida assada numa espcie de

    churrasco colocada no espeto que vinha apoiado em duas forquilhas acima de brasas.

    Este procedimento para assar carnes muito apreciado at hoje em reunies sociais

    e festas familiares. Para os italianos, o churrasco, alm de promover consumo de carne em

    abundncia, tambm usado como motivo para reunir a famlia:

    236 (...) L1 - mi piace tanto quando unisco tutti i miei figlinostro

    sistema tutto italiano :: non si scappa sia dal dolce sia dal

    mangiare.. so che qu in Brasile un sistema molto buono e ci piace

    molto churrasco che in Italia non esiste la clima che non si pu

    mangiare come qua in Brasile qua bisogna sustentar-se di pi

    perch un clima molto caldo e sfibra molto la gente.

    458 () L1 nel churrasco facciamo tante cose...eh:::

    prendo/facciamo la picanha neh che si cuoce prima tutta intera poi

    si fa a fettine a volte si passa nella graticola con con la/col burro e

    si d una tostatina neh?...()

    Dos africanos foi herdado o uso de carnes de caa de animais de grande porte como

    o gado bovino, arroz, sorgo ou trigo e derivados como o cuscuz (Kuz-Kuz), feijes de

    vrias espcies, inhame, amendoim, azeite de dend e leite de coco, sementes dos alimentos

    trazidos pelos escravos durante suas traumticas viagens em navios negreiros.

    Dos portugueses herdamos ensopados de carnes, ovos, po de trigo, presunto, vinho

    e confeitos de acar.

    42

  • Estava formada uma gastronomia que at hoje consideramos como tradicional

    brasileira com algumas diferenas regionais, mas sendo mais freqente em Minas Gerais,

    onde a ocupao dos portugueses e negros escravos foi macia especialmente na poca da

    extrao do ouro. Preparaes como tutu de feijo, feijoada preparada com carne seca e

    pedaos considerados inaproveitveis do porco, frango com quiabo e farofa de mandioca

    foram sendo criados ao longo dos anos de minerao2, inicialmente em Ouro Preto e

    imediaes, e de l, espalharam-se pelo Brasil.

    Na culinria do norte do Brasil tambm se encontra a presena dos alimentos

    trazidos no perodo da colonizao como cuscuzes, azeite de dend, camaro seco, feijes e

    farinha de mandioca. Todos esses alimentos se misturaram aos alimentos trazidos pelos

    imigrantes do comeo do sculo, entre eles os italianos, que estranharam alguns dos

    alimentos brasileiros, como farinha de mandioca, feijo preto, inhame, po de milho e

    carne-seca.

    Embora o arroz seja a base da alimentao do mundo oriental e o feijo seja

    largamente consumido em pases da frica e tambm no Mxico, a dupla feijo com

    arroz notoriamente brasileiro. Os tupinambs j conheciam o feijo e o arroz antes

    mesmo de Cabral apontar em terras brasileiras: o feijo chamava-se comand, palavra

    que significa alimento muito e o arroz era chamado abatiap, milho dgua.

    A composio feijo com arroz preto no branco, prato bsico que se tornou

    sinnimo de alimento, de sustento brasileiro assim como a pastasciutta tem lugar na

    simbologia italiana sendo parte essencial da sua base alimentar. Tanto o arroz como o feijo

    no so alimentos desconhecidos na culinria italiana: o feijo consumido nas sopas, o

    2 Nos primeiros anos de minerao a carne era salgada e transportada nos lombos dos burros at secar durante o transporte no longo trajeto Parati-Ouro Preto. Processo que conservaria a carne para consumo nas viagens.

    43

  • arroz, em risotos. Os risotos tomam o lugar da pastasciutta como base da alimentao

    dos italianos de muitas cidades do norte da Itlia e so freqentemente consumidos

    misturados a ervilhas, frutos do mar, cogumelos ou mesmo misturados apenas a queijo

    parmeso e manteiga:

    541 (...)L1 ecco come si fa il risotto...i risotti son fatti tutti

    alla stessa maniera neh [...] si cambia ingredienti neh da noi

    usano molto ste risotti per esempio nel veneto ci sono risotti

    di di...piselli che la/ che noi ... risi e bisi bisi perch i

    piselli in dialetto si chiamano bisi [...] bisi... che hanno

    offerto at alla regina Elisabete ( ) alla Venezia e riso con i

    funghi dopo con con cose di mare neh [...]Poi si pu fare con

    le zucchine puoi fare con qualsiase cosa [...] da noi si usa pi

    i risotti neh...

    284 (...) L1 mamma faceva sempre pasta e fagioli mamma

    faceva pasta e fagioli molto e pastasciutta pi alla

    domenica...

    357 (...) L1 i radicchi si mangiava i radicchi pure tagliati

    fini con i fagioli si faceva insalata neh il mangiare tipico

    veneto neh?...

    A expresso feijo com arroz largamente usada pelos brasileiros, que desde

    pequeninos aprendem a cantiga Um, dois, feijo com arroz. Trs quatro, feijo no prato.

    Cinco, seis, feijo outra vez ou, como elemento fortificador da dieta, est fraco, precisa

    44

  • comer mais feijo com arroz, ou ainda na injusta expresso no fez nada diferente, ficou

    no feijo com arroz.

    A cincia da nutrio provou que esse prato to popular e singelo ainda desempenha

    destaque nutricional, essa mistura a que mais se aproxima das recomendaes

    internacionais de ingesto de macronutrientes3.

    O feijo com arroz em sua simplicidade tem papel de igual importncia na cultura

    de brasileiros, aparecendo em obras literrias, contos e msicas.

    bem verdade que os brasileiros enriqueceram seu cardpio com pratos

    estrangeiros, mas tambm todos os que aqui vieram, renderam-se delcia de um prato de

    arroz com feijo. Os italianos em Pedrinhas Paulista no tiveram muita dificuldade para

    incorpor-lo dieta por motivos bastante convincentes: facilidade de plantio em terras

    brasileiras e sabor agradvel e conhecido. Consumidos separadamente na Itlia em sopas de

    feijo ou risotos, juntar esses dois elementos em um prato s no representou grande

    esforo:

    170 (...) L1 -.possiamo dire riso e fagioli per esempio il

    mangiare...nostro qui...per me stato uno de/delle cucine pi/pi

    grande pi interessante perch non ho mai detto eh...ma riso e

    fagioli li mangiano i brasiliani...io da/dalla prima volta che mi

    sono seduto nel ristorante di Santos e mhan (mi hanno) portato

    davanti tutto quel mangiare quello riso bianco dentro quelle

    pannellette piccole li i fagioli quella terrina di terracotta io sono

    rimasto soddisfatto ma si buonssimo e non c non cho mai

    dispr/ non ho mai disprezzato solo che no/non ha mai abbandonato

    anche la nostra neh... ci sono della maggioria la maggior parte dei

    3 A combinao arroz com feijo , na proporo de trs para um, tem composio 60% de carboidratos, 15% de protenas e 25% de gorduras e tima combinao de aminocidos para compor protenas completas.

    45

  • giorni si fa riso e fagioli anche si fa la pasta fuori il resto si vive

    non c problema...

    1.2. Criao da tradio

    A chamada dos italianos inscritos no programa de imigrao pelo modelo de

    colonizao que fixava as famlias em ncleos agrcolas, alimentava o sonho de

    enriquecimento, pois a expectativa de vencer pelo prprio esforo numa terra de

    oportunidades era reforada pelas facilidades que a Companhia ofereceria. De fato, cada

    famlia no haveria de se preocupar com os elementos bsicos como moradia e terras para

    trabalho, podendo se concentrar no objetivo principal: fazer a Amrica. Em segundo

    lugar mas no menos importante, esse modelo garantiria, no imaginrio dos italianos, a

    manuteno da italianidade do grupo, recriando uma pequena Itlia dentro do Brasil. De

    fato, as tradies italianas se mantiveram melhor preservadas nas localidades onde o fluxo

    migratrio foi implantado em forma de comunidades tipicamente italianas, o que favoreceu

    o retardo ao processo de aculturao.

    Mas a dura realidade mostrou aos italianos que, viver em outro ambiente no era

    tarefa fcil e o processo de transferncia de pas e todas as adaptaes decorrentes foram

    traumticas. Muitos regressaram logo nos primeiros anos, mas as famlias que

    permaneceram passaram por um doloroso processo de ajustes e progressiva aceitao da

    nova condio de vida.

    A primeira impresso foi marcada pela sensao de que tinham acreditado numa

    iluso: encontraram as casas - que lhes foram prometidas - imersas em vegetao crescida,

    46

  • insetos de todos os tipos, terra vermelha por toda parte, falta ou dificuldade de obteno de

    gua e outras dificuldades relacionadas ao clima, o que impediu ou dificultou o cultivo da

    lavoura ou criao de animais pelos mtodos utilizados na Itlia, obrigando-os ao

    aprendizado dos mtodos brasileiros, tanto para a lavoura e a criao de animais como para

    o preparo dos alimentos.

    100 (...) L1- quando siamo arrivati a casa peggio ancora::; lerba che non si vedeva neanche per entrare dentro di casa...ci hanno portato la pastasciutta su:::su un camioncino d/dentro l/la pentola grande cos col mescolo la pastasciutta un pezzo di pane...(ridono) oh si ride ma...a veder quella casa a veder mo/mobili...

    141(...)L1 - ... certo dopo non stato facile...o fatto di ambientarsi::: tipo di lavoro e::: un po la lingua e:::: la gente tutto ci hanno tutto un altro costume nostro e::: ci mancava tutto perch::: abbiamo lasciato lambiente la casa l/abbiamo arrivato qui la Companhia ci ha dato una casetta ci ha dato il letto per dormire::: un pezzo di cucina con sedie con tavolo tutto quanto...ma non era quello che avevamo lasciato...cominciare dal mangiare da quell/tutto quelle storie...

    A obteno de gua livre de terra vermelha dos rios era tarefa difcil e forou os

    italianos a consumi-la ainda no muito lmpida, provocando rejeio em todos,

    acostumados gua cristalina proveniente das nascentes dos Alpes e dos Apeninos. A

    obteno de gua mais limpa - estava condicionada escavao de poos artesianos que

    alcanavam apenas lenis freticos superficiais que depois de um tempo ficavam

    esgotados. Para lavar as roupas brancas tinham de ferv-las, como faziam as brasileiras.

    47

  • Por meios mais modernos, pde-se alcanar atravs de perfurao mais profunda, as

    guas do aqfero de Botucatu ou Guarani, o maior do mundo, o que colocou fim ao

    problema da gua impura do incio da ocupao da colnia.

    (fonte:www.daaeararaquara.com.br/guarani)

    Os relatos a respeito da gua encontrada no incio da colnia so unnimes e sempre

    em tom negativo. Selecionamos alguns:

    74 (...) L1 - Siamo venuti qui... arrivato...si presentato un ragazzo, un::: altone ( ).. e ci aveva pergutato se avevamo acqua...o companheiro cera dato due filtri che erano de terracotta, sti filtri erano dentro e lacqua si manteneva fresca e ( ) insomma bevevamo cos...

    105 (...) Doc: e il problema pi grande cos per adattarsi [...] L1 - stato un po duro perch si abitava fuori e non cera e:::/ non cra acqua...e:::e:::e lacqua ce la portavano con i fusti ...e. ( ) ce nera poca perche con quei fusti ( ) si vede che Dio non voleva che si amalassi n perch (ridono) i pozzi furavano i pozzi e poi::: dava lacqua un due tre mesi e poi venivano sempre con questi pr/pr/pr/ portarci::: ci portavano lacqua con questi fusti e:::per laVARE per fare da mangiARE per tutto allora si prendeva con::con dei secchi:::cecchi se/ secchi secchi neh? L2 ( ) da lacqua con baldi neh?... e::: pulita quella pi pulita per fare da mangiare e per bere, dopo quella ci la/ce la mettevano sui fusti la roba invec