Língua Fluída VS língua imaginária

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Abordagens sobre a língua Entre ideologias e preconceitos Sérgio Ventura 10-08-2012 Artigo apresentado ao Professor Maurício Beck, como requisito parcial para aprovação na disciplina Linguística Geral, da Universidade Federal Fluminense.

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Algumas ideias sobre língua fluída VS língua imaginária.

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Universidade federal fluminense

Abordagens sobre a língua

Entre ideologias e preconceitos

Sérgio Ventura

10-08-2012

Artigo apresentado ao Professor Maurício Beck, como requisito parcial para aprovação na disciplina Linguística Geral, da Universidade Federal Fluminense.

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ConteúdoIntrodução.....................................................................................................3

Desenvolvimento..........................................................................................4

1. Algumas questões sobre língua, fala e escrita..................................4

1.1. Por que para a linguística a fala tem primazia sobre a escrita no

estudo das línguas humanas?............................................................4

1.2. Qual é a definição de língua e de fala no CLG (Curso de

Linguística Geral)?...............................................................................5

1.3 Em que medida estão relacionadas língua e fala?............................5

2. Opiniões abstratas sobre linguagem, discurso, ideologia e

preconceito linguístico........................................................................7

Conclusão...................................................................................................11

Bibliografia..................................................................................................12

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Introdução

Este trabalho tem como finalidade discorrer algumas linhas sobre a língua

portuguesa. Faremos abordagens generalizadas sobre a linguagem, a língua, a fala,

a escrita, a análise do discurso, a ideologia e o preconceito linguístico. No primeiro

tópico utilizaremos um texto que descreve a primazia da fala sobre a escrita no

estudo das línguas humanas, algo breve, seguindo alguns teóricos da língua. No

segundo tópico, a definição de língua e de fala no CLG (Curso de Linguística Geral);

no terceiro, em que medida se relacionam língua e fala, e no quarto, opiniões

abstratas sobre linguagem, discurso, ideologia e preconceito linguístico, todos

visando promover horizontalmente conceitos paralelos de língua fluída e língua

imaginária.

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Desenvolvimento

1. Algumas questões sobre língua, fala e escrita.

1.1. Por que para a linguística a fala tem primazia sobre a escrita no

estudo das línguas humanas?

Em a ideologia alemã, Carl Marx disse: “toda a vida social é essencialmente

prática. Todos os mistérios que conduzem ao misticismo encontram sua solução

racional na práxis humana e na compreensão dessa práxis”1. Da mesma forma,

podemos transportar essa prática ao mundo da linguística, da fala. A fala é sempre

uma prática contínua, sincrônica e diacronicamente, entre os participantes de

determinado grupo social; está sujeita a todos os tipos de transformações, quais

sejam diatópicas ou diastráticas. Sua imagem acústica, como o denomina seu

patrono Saussure, falando sobre a linguística externa, reflete um sistema variável

por ser não só social, mas também individual. Sobre o mesmo assunto, Tânia M.

Alkimim, em “sociolinguística”, diz que “a história da humanidade é a história de

seres organizados em sociedades e detentores de um sistema de comunicação oral

(…)”2 e Schleicher, em “a perspectiva da língua como sistema orgânico”, ainda que

falando sobre a língua, não exclui a fala como “um organismo natural ao qual se

aplica, portanto, o conceito de evolução desenvolvido por Darwin”3. Por mais que

não se queira, é necessária a visão dos grandes filósofos da linguagem, para

sustentar conceitos hoje simples, outrora complexos. Dessa incursão à ideia sobre a

fala, acrescente-se à contraparte da escrita que essa por si só não evolui, é estática,

e não se deixa acompanhar pelas futuras gerações. Sir Willian Jones, no séc. XVIII,

informou que “o latim, o grego e o sânscrito eram línguas aparentadas entre si (…) e

as três línguas eram derivadas de uma outra língua, já extinta, o protoindo-

europeu”4. Ainda que fosse possível provar a existência dessa língua primeira,

impossível seria reproduzi-la oralmente, e embora reproduzamos o latim já extinto,

1 MARX, K. & ENGELS, F. A Ideologia Alemã. Trad. Castro e Costa, L. C.. São Paulo: Martins Fontes, 2002. pp. 147.

2 MUSSALIM, F.; BENTES, A. (Orgs.). Introdução à linguística: domínios e fronteiras. In ALKIMIM, Tânia M. Sociolinguística. Vol. 1. São Paulo: Cortez, 2001.

pp. 21.3

____________. In ALKIMIM, Tânia M. Sociolinguística. Vol. 1. São Paulo: Cortez, 2001. pp. 22.

4 ____________. In JR., Nilson Gabas. Linguística histórica. Vol. 1. São Paulo: Cortez, 2001. pp. 77.

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não reflete a sua realidade oral da época. A escrita, enfim, à medida que o tempo

escorre, distancia-se da fala gradativamente, e consequentemente da possibilidade

geral de sua leitura. Tal fato se verifica com a importância das renovações dos

sistemas organizados escritos. Seria possível entrar na discussão entre difusionistas

e neogramáticos, ou da fonologia e fonética para explicar o porquê da escrita ficar

para trás em relação à fala, mas faz-se jus à simplicidade da resposta orientada por

Angel Corbera Mori que assim resume: “Os sistemas de escrita não acompanham o

desenvolvimento dinâmico da língua oral, daí essa defasagem entre a fala e sua

representação gráfica”5.

1.2. Qual é a definição de língua e de fala no CLG (Curso de Linguística

Geral)?

Para Saussure6, “a língua é o produto social da faculdade de linguagem”, e a

fala “é um fato individual, [que] representa uma realidade concreta da língua num

momento e lugar determinados”. A língua é um sistema abstrato, representado

diacronicamente e com uma estrutura invariante. É o conceito em si. A fala, como

sistema concreto, é variável, representada pela imagem acústica.

1.3 Em que medida estão relacionadas língua e fala?

Para Antoine Meillet, “as línguas não existem fora dos sujeitos que a falam”;

Bakthin, “a interação verbal constitui (…) a realidade fundamental da língua”;

Benveniste, “é dentro da, e pela língua, que indivíduo e sociedade se determinam

mutuamente”; todos eles precursores da sociolinguística, tendo como base teórica:

“língua e sociedade não podem ser concebidas uma sem a outra”. Em resumo,

pode-se afirmar que a fala é a própria concretização da língua, sem ela sua

disseminação social não se realizaria.7

5 MUSSALIM, F.; BENTES, A. (Orgs.). Introdução à linguística: domínios e fronteiras. in: MORI, Angel Corbera. Fonologia. Vol. 1. São Paulo: Cortez, 2001.

pp. 147.

6 SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2006.

7 MUSSALIM, F.; BENTES, A. (Orgs.). Introdução à linguística: domínios e fronteiras. In ALKIMIM, Tânia M. Sociolinguística. Vol. 1. São Paulo: Cortez, 2001.

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2. Opiniões abstratas sobre linguagem, discurso, ideologia e

preconceito linguístico.

A linguagem é a metáfora da realidade. Faz parte de uma convenção social,

portanto analisar a verdade é analisar o que foi convencionado como tal. A lógica

desse critério nos leva a pensar que o que uma sociedade convenciona como

verdade não pode ser interpretado de outra forma. Porém, não é o que acontece: as

convenções se refazem no tempo, e as verdade também; tem-se com isso que a

verdade é um falseamento que a própria linguagem cria para interpretar o momento

da realidade.

Pensemos o seguinte: o brasileiro pensa que não sabe falar a língua

portuguesa, e nisso ele está mais do que certo. É impossível para ele, que não tem

contato com a cultura portuguesa, quer dizer, de Portugal, falar a bendita língua

portuguesa. O que ele ainda não notou - e pudera mesmo - é que no Brasil não se

fala e muito menos se escreve português, mas sim brasileiro. Ele tem um

preconceito linguístico introjetado, como se ouve uma vez ou outra quando alguém

diz que não sabe falar a própria língua. O próprio ex-presidente FHC uma vez, em

um discurso, admitiu esse preconceito dizendo em linhas gerais “queremos que

todos os brasileiros falem a língua portuguesa muito bem”. O que se consta nesse

discurso é, entre mil e uma ideologias que caracterizam o pensamento comum de

qualquer sociedade, nesse caso a nossa, o de que o brasileiro fala mal a própria

língua, que conste a palavra própria.

Façamos uma pergunta: será que há uma não identificação entre o sujeito

brasileiro que diz não saber falar sua própria língua portuguesa e a língua

portuguesa? Será?

Acreditamos que o brasileiro, diante de todo desequilíbrio socioeconómico, se

veja como um estrangeiro em sua pátria, em sua língua. As exclusões sociais, que

são muito fortes no país, evidenciam a história desse povo; isso cria mais uma

ideologia, sempre patrocinada pelos habitantes dominantes. E quando se diz

preconceito o que se quer dizer? Essa resposta deixamos com as linhas de George

Gadamer (1988, p. 270)8, “preconceito significa um julgamento que é formulado

antes que todos os elementos que determinam uma situação tenham sido 8 Apud Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Preconceito linguístico e cânone Literário, nº 36, p. 27-44, 2008.

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examinados”. Seria mais adequado citar Marx para se entender a fundo como

funcionam as ideologias que patrocinam o preconceito e outras coisas mais, mas só

voltando ao parágrafo anterior em que citamos habitantes dominantes, temos pra

nós que a tradição apaga um pouco da história, e a classe dominadora, que impõe

as convenções sociais, apaga a história em si, criando outra própria história.

Sobre o discurso, por exemplo, Orlandi (2002)9 diz que “a ideologia da língua

pura faz manter o imaginário da língua portuguesa”. Talvez falar sobre o discurso

seja falar sobre o pensamento individualizado e coletivo. Vejamos bem: um homem

puro nascido e criado na natureza selvagem terá uma relação intrínseca com a

natureza ao seu redor, o mundo por ele conhecido, definido, pensado e falado será a

natureza selvagem. O discurso desse homem refletirá a sua condição no mundo. Ele

estará preso à natureza, e sua linguagem, história e expectativas não superarão a

realidade que o cerca - se ele não for migrado para outro ambiente, é claro. Toda a

ideologia, como a verdade desse homem será produzida pelo ambiente que o cerca,

que o prende, que o cativa. E se pensarmos no homem globalizado, a sua relação

com o mundo, com os mundos, com o universo será pensada de forma global? Sim.

O conhecimento universalizado desse indivíduo permitirá que ele reflita um uma

realidade homogeneizada, sua linguagem, ações, frustrações, comportamentos, em

geral, serão iguais em todos os lugares que participam do seu universo, igual ao

homem puro. O que permite isso é a ideologia, o espaço que reflete sempre o

sujeito. Esse espaço reproduz nele todas as ideologias, pois sua realidade é

deduzida e interpretada pela sua formação social.

Quando pensamos a análise do discurso, precisamos nos valer da história

para poder traçar uma linha de acontecimentos e de fatos que permitem

corresponder e definir a evolução do pensamento do sujeito. O que nos permite, nos

mesmos moldes da sociologia, conhecer o ser humano como determinado por sua

história e por suas relações sociais.

Se pregarmos num sujeito, por exemplo, que seja negro, more numa favela,

ouça “funk”, seja pobre, esteja rodeado pela delinquência, tráfico, isto é, crimes, as

condições ambientais desse sujeito reproduzirão nele a realidade de sua natureza.

Esse ambiente estará nele, e ele será identificado sem muita dificuldade. Sua

linguagem, que comporta o seu ser, será afetada pelo ambiente; essa identificação

9 ORLANDI, Eni P. A língua brasileira. Ciência e Cultura. Vol. 57, nº 2. São Paulo, abril/junho, 2005.

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trará a tona toda uma ideologia construída pela história desse ambiente: somando o

sujeito entre outras coisas ao crime, a falta de educação, à negatividade, ao

preconceito.

Já que falamos sobre ideologia, por que não voltarmos ao assunto que

concerne à língua, à nossa Língua?

Há dois conceitos-chave para se falar hoje sobre o preconceito que se tem da

língua portuguesa falada pelos brasileiros: a língua fluída e a língua imaginária. A

primeira não é senão a que se deixa levar pelo vento aos quatro cantos da terra. É a

língua sincrónica de Saussure10, a fala tal como é falada do Caburaí ao Chuí; a

segunda é a língua idealizada, a que não se fala, mas dever-se-ia falar.

Esses dois conceitos chocam-se quando se discute o que é saber ou não

saber falar português ou qual é a língua portuguesa padrão, a mais bonita, a mais

harmoniosa, a mais vistosa, etc. A resposta até que seria simples se ela não tivesse

que passar por um cem números de avaliações. Por exemplo, o que entendemos

como língua portuguesa padronizada não é outra coisa senão um grande engano. A

língua portuguesa padronizada, normatizada, a que aprendemos para escrever, só

existe em um lugar: no papel. Ela é uma língua morta que tendo vivida no passado

insiste em assombrar-nos como se fosse viva, real. É uma língua portuguesa que se

confunde com a de Portugal, mas não é nem de lá nem de cá. A língua padronizada

que tentamos falar é ilusória, e só tentamos porque não nos pertence, embora faça

parte da nossa imaginação. Imaginar, idealizar, alcançar é mais um desses mitos do

nosso mundo que nos impõe pensamentos de inferioridade, que nos faz acreditar

que se não alcançarmos o ideal padrão de língua, não seremos falantes credíveis da

nossa própria língua natural. É algo complexo pensarmos que temos que descartar a

língua da qual fazemos uso, abandonando-a, negativando-a para adotar uma língua

artificial, morta, inválida. É deixar de beber a água do rio, que hidrata o organismo,

para beber a do mar, que faz o contrário; é nos negarmos para assumirmos o que

nunca seremos. Pensar que não falamos a nossa língua é negar o que somos e

assumirmo-nos como seres ilógicos, irracionais e, acima de tudo, contraditórios. O

que o homem pensa da sua realidade talvez não seja diferente do que os homens

do “mito da caverna”, de Platão11, pensavam. No geral, todos nos esquecemos do

10 Ferdinand de Saussure (1857-1913) foi um linguista e filósofo suíço, cujas elaborações teóricas propiciaram o desenvolvimento da linguística enquanto

ciência autônoma.11

Platão (428-347 a.C.) criou a alegoria do mito da caverna para ilustrar seu pensamento, explicando melhor a evolução do processo de conhecimento e a

diferença entre a realidade e as projeções falsas ou incompletas feitas dela, as sombras

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passado, e esse esquecimento acaba produzindo outros sentidos que consideramos

verdadeiros, por crer que são os mesmos do passado, mas que na verdade se

configuram como mitos.

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Conclusão

Em linhas gerais, as ideologias carregam o imaginário que temos da nossa

própria língua, apaga a nossa história e produz verdades falseadas. E não importa o

quanto reflitamos sobre a língua e sua postura no mundo, não importa que saibam

alguns o que consideram a verdade, no final das contas, predomina sempre a

consciência coletiva que dirime com seu poder as expectativas da massa. Já dizia o

grande sociólogo Emile Durkhein que “a consciência coletiva (...) exerce todo o seu

poder de coerção sobre os indivíduos”12

12 Apud COSTA, Cristina. Introdução à ciência da sociedade. São Paulo: Moderna,1987. p. 55.

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BibliografiaCadernos de Letras da UFF – Dossiê: Preconceito linguístico e cânone Literário, nº 36, p. 27-44, 2008.

COSTA, Cristina. Introdução à ciência da sociedade. São Paulo: Moderna,1987. p. 55.

MARX, K. & ENGELS, F. A Ideologia Alemã. Trad. Castro e Costa, L. C.. São Paulo: Martins Fontes, 2002. pp. 147.

MUSSALIM, F.; BENTES, A. (Orgs.). Introdução à linguística: domínios e fronteiras. In ALKIMIM, Tânia M. Sociolinguística. Vol. 1. São

Paulo: Cortez, 2001. pp. 21.

____________. In: JR., Nilson Gabas. Linguística histórica. Vol. 1. São Paulo: Cortez, 2001. pp. 77.

____________. In: MORI, Angel Corbera. Fonologia. Vol. 1. São Paulo: Cortez, 2001. pp. 147.

ORLANDI, Eni P. A língua brasileira. Ciência e Cultura. Vol. 57, nº 2. São Paulo, abril/junho, 2005.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2006.

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