linguagem do cinemaque compõem o quadro. A relação entre os elementos do quadro, objectiva ou...

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linguagem do cinema 1) a composição e a associação de imagens PLANO Define-se sumariamente como uma tomada de vista não interrompida, isto é, como uma acção filmada em contínuo dentro de um determinado quadro, que pode mudar para outro se houver movimento de câmara, em travelling ou panorâmica. Dentro do quadro existem sinais de um conjunto de elementos significantes que, relacionados entre si, geram um determinado sentido. COMPOSIÇÃO É o conjunto dos elementos contidos dentro do quadro. Independentemente deles, possui um sentido próprio enquanto unidade significante. Essa unidade é-lhe conferida pela relação entre cada um dos elementos que compõem o quadro. A relação entre os elementos do quadro, objectiva ou subjectiva, está sujeita a princípios que comandam o fenómeno da visão humana. No domínio da comunicação, está também sujeita a códigos, os que regulam o modo de vermos as coisas e os que, por outro lado, nos permitem interpretá-las como forma de linguagem. Sendo modo de expressão de alguém, a composição tem sempre uma determinada carga de intencionalidade. Além disso, sendo de ordem estética, a composição, para ser eficaz, está dependente do sentido de harmonia entre todos os elementos que compõem o quadro. A harmonia na composição de um plano é consequente do equilíbrio, qualquer que ele seja, entre os elementos estáticos e os elementos dinâmicos que se manifestam dentro do quadro. Será uma harmonia simples se forem poucos os elementos enquadrados e tanto mais elaborada será quanto mais forem esses elementos. CENA Cena é uma unidade cénica constituída pela acção decorrida num determinado tempo e em determinado lugar. No cinema, uma cena tanto pode ser contida num plano, em tempo real, como num conjunto de planos, em vários ângulos ou escalas. Neste caso, a acção é repartida numa sequência de noções básicas por Ricardo Costa versão 01/02/10 1

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linguagem do cinema

1) a composição e a associação de imagens

PLANO

Define-se sumariamente como uma tomada de vista não interrompida, isto é, como uma acção filmada em contínuo dentro de um determinado quadro, que pode mudar para outro se houver movimento de câmara, em travelling ou panorâmica.

Dentro do quadro existem sinais de um conjunto de elementos significantes que, relacionados entre si, geram um determinado sentido.

COMPOSIÇÃO

É o conjunto dos elementos contidos dentro do quadro. Independentemente deles, possui um sentido próprio enquanto unidade significante.

Essa unidade é-lhe conferida pela relação entre cada um dos elementos que compõem o quadro. A relação entre os elementos do quadro, objectiva ou subjectiva, está sujeita a princípios que comandam o fenómeno da visão humana. No domínio da comunicação, está também sujeita a códigos, os que

regulam o modo de vermos as coisas e os que, por outro lado, nos permitem

interpretá-las como forma de linguagem. Sendo modo de expressão de alguém, a composição tem sempre uma determinada carga de intencionalidade. Além disso, sendo de ordem estética, a composição, para ser eficaz, está dependente do sentido de harmonia entre todos os elementos que compõem o quadro.

A harmonia na composição de um plano é consequente do equilíbrio, qualquer que ele seja, entre os elementos estáticos e os elementos dinâmicos que se

manifestam dentro do quadro. Será uma harmonia simples se forem poucos os

elementos enquadrados e tanto mais elaborada será quanto mais forem esses elementos.

CENA

Cena é uma unidade cénica constituída pela acção decorrida num determinado tempo e em determinado lugar. No cinema, uma cena tanto pode

ser contida num só plano, em tempo real, como num conjunto de planos, em

vários ângulos ou escalas. Neste caso, a acção é repartida numa sequência de

noções básicas por Ricardo Costa versão 01/02/10

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planos filmados no mesmo lugar e em tempo subjectivo, encurtando ou expandindo a duração da acção

SEQUÊNCIA

Em linguagem cinematográfica sequência significa uma unidade de acção que decorre durante vários planos, durante mais de uma cena e mesmo em tempos diferentes. Estabelece uma relação entre planos com diferentes composições.

plano sequência

É um plano – uma tomada de vista não interrompida – que segue uma acção que decorre em diferentes quadros, podendo mesmo passar a diferentes lugares. É uma tomada de vista em tempo real.

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significante

A palavra, no entanto, invoca a imagem tal como a imagem invoca a palavra. O

processo é idêntico. Mas há uma diferença entre a representação pela fala (oudiscurso: parole em francês) e a representação pela imagem (fotografia, desenho, pintura ou outra). Saussure afirma que o signo linguístico é arbitrário, tanto pode ser casa como house, conforme a língua. Não é motivado, nele nãohá vestígios de qualquer forma de matéria que lhe dê origem.

2) a composição do plano e o sentido

No cinema, o sentido é produzido em parte pela associação dos planos em

sequência, no eixo das sucessões: aquilo que gera parte do sentido do filme. A outra parte do sentido é gerada pela imagem fotográfica, condicionada pela

composição, pela arrumação dos elementos significantes dentro do quadro, no eixo das simultaneidades. É por efeito das associações mentais que fazemos para discernir o sentido da coisa, aquilo que significa, que ela se torna evidente. E ela torna-se evidente porque temos em nós referências, sensíveis ou culturais, que se ajustam aos elementos que a compõem e que nos permitem interpretá-la. Ao vermos uma casa, a imagem que dela se forma em nós ajusta-se logo à imagem sugerida pela palavra que temos em mente: casa.

Vermos uma imagem é mais ou menos o mesmo que ouvirmos o que ela diz. Quer dizer, se virmos a imagem de uma casa, logo a associamos à palavra que a designa.

SIGNO

1) Saussure e o signo linguístico

Explicava o linguista suíço Ferdinand de Saussure (referindo-se apenas à linguagem falada), que o sentido é produzido pela intercepção desses dois

eixos de informação: o eixo das simultaneidades e o eixo das sucessões. Ao

pronunciarmos a palavra “casa” (ele dava como exemplo “árvore”), emitimos

uma sequência, uma sucessão de fonemas a que ele chama o significante (c+a+s+a, uma articulação de vogais e consoantes). Ao pronunciarmos essa palavra, projectamos a imagem a que está associada, transmitindo a alguém o seu significado. Significante e significado associados juntam-se no vértice de um triângulo, constituindo uma entidade a que ele chama signo linguístico.

SIGNO = imagem + palavra

casa

significado

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Isso, porém, não acontece com os signos que povoam a imagem (fotografia, desenho, pintura) que é motivada por conter, por identidade formal, uma parte

da coisa a que se refere. O signo motivado é geralmente designado por signo

próprio (proper sign). A única excepção que Saussure admite à arbitrariedade

do signo no discurso (na palavra, parole) é a onomatopeia. A onomatopeia é motivada porque contém uma identidade sonora com a coisa a que se refere: o ribombar do trovão, por exemplo.

Na fala, no eixo das sucessões (do sintagma: «A Maria+é+uma flor»), as unidades mínimas de sentido, como os fonemas, dão origem e arrumam-se em

palavras, frases, em todo um discurso (parole) gerador de sentido. No eixo das

simultaneidades remete o sentido de cada signo para um paradigma, (o seu

significado exemplar), que é algo do domínio da língua (isto é, de uma determinada convenção usada por quem a fala, a língua portuguesa ou a

língua inglesa, por exemplo). “”Casa”” ou “house” são significantes diferentes

que se referem a idêntico significado. Tanto um como outro apontam para a mesma imagem, para idêntica representação, para a mesma definição, para

um significado universal: condição determinante no eixo das simultaneidades.

No cinema – que não é língua mas apenas linguagem e em que o significante é

imagem e não construção fonética – uma determinada forma de linguagem domina: neste caso, a da imagem fotográfica, articulada signo a signo, plano a plano, cena a cena, sequência em sequência, de modo a produzir um

determinado sentido, tal como o produz a linguagem falada, quando alguém fala.

2) Peirce e o signo em geral

Charles Sanders Peirce filósofo norte-americano

«A Semiologia aparece definida por Saussure, no Curso de Linguística Geral (editado pela primeira vez em 1915), da seguinte forma: "Pode portanto

conceber-se uma ciência que estuda a vida dos signos no seio da vida social;

ela constituiria uma parte da psicologia social e, por conseguinte, da psicologia

geral; nós chamá-la-emos semiologia (do grego semeion, signo). Ela ensinar

nos-ia em que consistem os signos, que leis os regem. (...) A linguística não

é senão uma parte desta ciência geral (...)».

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«Quanto à Semiótica, ela é definida, por Peirce, num fragmento de 1897, nos

seguintes termos: "Em seu sentido geral, a lógica é, como acredito ter

mostrado, apenas um outro nome para semiótica, a quase-necessária, ou

formal, doutrina dos signos"».

Peirce classifica os signos em três categorias: ícone, índice e símbolo:

"... I had observed that the most frequently useful division of signs is by trichotomy into firstly

Likenesses, or, as I prefer to say, Icons, which serve to represent their objects only in so far as

they resemble them in themselves; secondly, Indices, which represent their objects

independently of any resemblance to them, only by virtue of real connections with them, and

thirdly Symbols, which represent their objects, independently alike of any resemblance or any

real connection, because dispositions or factitious habits of their interpreters insure their being

so understood." ('A Sketch of Logical Critics', EP 2:460-461, 1909)

“… Constatei que a divisão dos signos mais frequentemente usados é por tricotomia, em

primeiro lugar por similitude, ou, como prefiro dizer ícones que servem para representar os seus objectos só na medida em que, em si próprios, são semelhantes a eles; em segundo lugar, índices, que representam os seus objectos independentemente de qualquer semelhança com eles, só por virtude de conexões reais com eles; em terceiro lugar símbolos, que representam os seus objectos sem possuírem com eles qualquer semelhança ou qualquer conexão, visto que certas disposições ou hábitos factícios garantem poderem ser assim

entendidos”

ÍCONE

O ícone (em grego antigoεἰκών eikōn "imagem"), termo que é usado em vários

contextos linguísticos (é comum para designar uma imagem religiosa, por exemplo um santo na linguagem do cristianismo) é, num sentido mais geral, o termo aplicado para designar um signo que contem uma qualquer relação, causal ou formal, com o objecto que designa. O ícone está para (stands for) o objecto representado tal como o objecto representado está para a coisa que nele se faz sentir, seja ela realidade, aparência, simples conceito incorporado

(embodied), um anjo por exemplo.

Por isso são tidas como iconográficas as formas de expressão pela imagem.

INDEX (ou índice)

O índex (indício ou sinal) é um signo próprio motivado por alguma relação causal entre significante e significado. No código da estrada, um sinal de proibição de virar à direita, como todos os outros, é um índex característico dessa linguagem, de certa convenção estabelecida para quem circula na estrada. Pode existir numa simples relação causal e lógica. O fumo é um sinal

de fogo: a imagem de fumo remete para um determinado significado, dando- nos a perceber que algo está a arder.

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SÍMBOLO 5

Arbitrário ou motivado, o símbolo é um signo abrangente: é todo o signo ou imagem que representa, (standing for) certa substância, certa matéria, certo

conjunto, certa cidade, certa pessoa: imagem, conceitual ou sensível, que tem

em si implícita uma certa inevitabilidade lógica. O número 5, apesar de ser um signo arbitrário (podia ter qualquer outra grafia), representa única e exclusivamente um conjunto determinado de unidades. Um conjunto de cinco amigos pode ser simbolizado pelo desenho de cinco figuras humanas juntas. Neste caso, o signo é motivado. Como motivado será o símbolo detectado no inconsciente do psico-analisado.

METÁFORA

A metáfora é um signo complexo que “parasita” – no eixo das simultaneidades – um determinado significado para dele se apropriar a fim de produzir um outro sentido. Na sequência linguística “A Maria é uma flor” o significante “flor” incorpora o de “Maria”, que aparece assim com novo significado.

A metáfora tem duas faces numa só: Maria + flor. A articulação de dois signos diferentes num único dá-lhe o relevo que merece. Passa de uma forma de linguagem literal, primária, traindo-a na sua necessária objectividade, a outra linguagem, para com ela dar a ver, com determinada intenção, a coisa referida

a nível “superior”.

É frequente no cinema o uso da metáfora: o sinistro fato preto do bandido, a ágil águia que voa, à imagem do herói. Os filmes estão imbuídos de metáforas,

que às tantas se tornam convenção: para “o bom” e para “o mau” da fita, para a

vampe, para o herói ou para o cobarde (por exemplo, um monte de merda no

chão à passagem do mauzão).

A forma de linguagem que se apoia noutra linguagem, aquela que adopta como referentes seus os signos de outra, chama-se metalinguagem.

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significado A Maria é bonita

significante: A Maria

É uma forma elaborada de expressão, que denota uma qualidade inexistente

no sentido literal do termo, do signo a que se refere a palavra “Maria”. E literal

quer dizer que tem em si implícito o sentido convencional do paradigmalinguístico (nome de mulher). Ao provocar a denotação por efeito de umaconotação, ao associar o seu significado ao significado padrão, actua noeixo vertical da linguagem, no das simultaneidades, no eixo paradigmático.

Integrado numa forma discursiva, associando-se em sucessão, o signo acabapor adquirir uma parte do sentido daquele a que está ligado. Introduzindo algo

de novo no seu sentido, conota-o, com uma forma particular ou com

determinada “cor”, em sentido pleno ou apenas alusivo. A conotação é

processo dominante na linguagem do cinema enquanto forma narrativa. Éproduzido no eixo horizontal, no das sucessões, no eixo sintagmático.

A metáfora é, por assim dizer, um signo superior, que se sobrepõe a outro.

METÁFORA

Maria Flor

significante: A Maria é uma flor

SIGNO

Maria

METONÍMIA será o Obama?

Duas imagens associadas dentro do mesmo quadro (um rosto + fumo a sair da cabeça) produzem um certo sentido, independente do significado de cada uma dessas imagens: cabeça + fumo > miolos a arder.

A metonímia – meta (mudança) + noma (nome), que consiste mais usualmente no uso de um significado particular para o tornar significado geral – é outra

forma peculiar de metalinguagem, outro tipo de metáfora. Funciona no eixo das sucessões: é uma coisa pela outra e não duas coisas numa só, como a metáfora pura. Alguém que é um “boa mesa” (pessoa + mesa farta) quer dizer uma pessoa que gosta de comer bem. “Casa Branca” pode significar

significado: certa Maria

Maria=flo

r

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presidência norte-americana. “Belém”, além do local, significa presidência da República Portuguesa.

No cinema, o uso da metonímia é prática recorrente e típica. É usada no recurso a certos planos para significar um realidade mais abrangente: um troço seco de rio para designar uma seca, um monte de notas para sugerir um homem rico. Como no caso de alguém-com-os-miolos-a arder, o sentido pode ser produzido por simples associação perceptiva. Esse tipo de associação tem um potencial harmónico que permite engendrar determinado sentido, transmitir certa mensagem, mais explícita ou menos explícita, denotando ou conotando. Sentido: isto é, algo apercebido pelos sentidos mas também algo decifrado pela mente. É nessa relação, entre aquilo que nos provoca emoções e aquilo que a razão nos diz, que se desenrola o fio que nos conduz ao estado de alma em que nos encontramos ao sair da sala de cinema.

Um dos efeitos primários desse tipo de associações é o chamado efeito Kuleshov, efeito de montagem estudado e teorizado pelo construtivista russo Lev Vladimirovich Kuleshov (1899/1970), um dos primeiros teóricos da linguagem cinematográfica e co-fundador da primeira escola de cinema do mundo, a Escola de Cinema de Moscovo.

plano 2 plano 1

o efeito Kuleshov

O efeito Kuleshov é um determinado raccord gerador de sentido numa simples ligação entre dois planos, entre quadros, e com composições diferentes. É uma metonímia característica do cinema e um dos processos básicos da sua linguagem. Primeiro plano: o rosto neutro de um actor (Ivan Mozzhukhin) olhando. Segundo plano: um prato vazio em cima de uma mesa. Sentido: o homem está com fome. É uma associação típica do eixo das sucessões: homem a olhar + prato vazio = fome. Contém, no entanto, a forma triádica do signo. Poderia mesmo chamar-se signo Kuleshov.

VER clip: https://www.youtube.com/watch?v=_gGl3LJ7vHc

MONTAGEM

Às associações que fazemos entre os elementos contidos no quadro – por vezes motivados (como no caso da imagem no filme documentário, que é realista por natureza), outras vezes bem menos precisos, com significados

incertos, apenas sugeridos – são induzidas pela carga significante contida no conjunto do quadro. Essa carga, que é algo mais que a soma do sentido de cada um dos elementos, flui no eixo das simultaneidades para um lugar virtual onde se produz um encontro entre aquilo que de facto eu vejo na tela e algo que ela invoca como representação, algo que existe fora dela, algo que eu apercebo como sendo de modo geral idêntico ao que ela contém: uma qualquer verdade, no mínimo algo que possui uma certa verosimilhança com

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certa realidade. O mesmo se passa se eu estiver a observar um quadro na sala

de um museu e não no cinema. No cinema, porém, a informação que eu

assimilo não circula apenas pelo canal das associações literais, as que remetem para o paradigma, mas também pelas que circulam no canal das

associações laterais que veiculam o sentido gerado pela ligação dos planos

entre si, pelo acréscimo de sentido produzido pela articulação sequencial dos

quadros. No cinema, na intercepção dos significados veiculados por cada um desses canais, gera-se um sentido mais amplo ou mesmo diferente daquele que está contido no quadro, que se limita a ser uma das componentes do filme.

No cinema, por outras palavras, a par da informação que circula no canal de

relações estabelecidas entre o observador e o quadro, noutro canal circula a

informação gerada pelo desenrolar da película: de fotograma a fotograma, de

plano a plano, de quadro a quadro. Um filme é narrativa. Sendo narrativa, é sempre forma de expressão de alguém que a ordena de forma a ser recebida por outrem com determinado sentido, durante todo um discurso que se

desenrola no tempo. A montagem dos respectivos quadros vem já prevista, mais ou menos, mesmo antes de a imagem ser imaginada, antes de o quadro ser composto. Mas só depois de concluída produzirá o desejado efeito, tendo

de ser feita com cuidado, passo a passo, com o auxílio de instrumentos adequados.

Em suma, a carga icónica (que, na linguagem própria do cinema, circula no eixo das simultaneidades, entre representação e paradigma) cruza-se em

determinado momento com a carga gerada no eixo das sucessões (o dos

sintagmas), pela ligação entre si de vários planos, pelo modo de encadeamento

dos planos. É essa intercepção mútua de energias assim veiculadas aquilo que gera a “faísca” que, iluminando a tela, nos ilumina por dentro.

Esta metáfora do cinema é solidamente motivada: o projector ilumina não só um espaço repleto de coisas que parecem reais e até chegam a ser, mas ainda

um espaço em que também nós, o espectador, lá estamos, visto lá nos

projectarmos como observadores em campo, objectos da informação, como se estivéssemos a espreitar pelo buraco da fechadura, estando do lado de cá e do lado de lá ao mesmo tempo: ao mesmo tempo em campo e fora de campo.

elipse

Por elipse entende-se uma curva suave, que une dois pontos e é isso mesmo que se passa no cinema quando uma acção, um troço da narrativa, é interrompida para recomeçar mais adiante, omitindo o tempo decorrido, num um salto elegante. Essa omissão, esse vazio entre um ponto e outro da narrativa pode gerar esse efeito subjectivo de curva geométrica em que o tempo se esbate e onde algo há que nos interpela, que nos desperta, que emociona.

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os vazios e os silêncios

Na narrativa, vazios e silêncios são signos, em elipse, de sentidos harmónicos. Fazem parte da «música da imagem», mesmo quando se fala de cinema mudo. Há de facto silêncios que falam, tal como os vazios criados

numa sequência de imagens. Neles vibram, como numa caixa de ressonância, sonoridades e sentidos de determinadas palavras, neles reverberam sinais e formas de certas imagens. Imagens ou palavras articuladas são o fio que nos conduz. Os silêncios que elas criam são o leito que nos embala. De uma maneira ou de outra, um filme é sempre quadro e melodia, filme mudo e

partitura..

É na intercepção dos fluxos gerados em nós pelo quadro e melodia juntos que surge a emoção. É quando isso sucede que nos inquietamos ou apaziguamos, É nesses momentos que, de súbito, somos tocados por uma nota, despertos por uma ideia.

É também em certos desses momentos reveladores que por vezes surge o fantasma, aparência vaga, figura que se insinua. Tanto pode ser leve impressão como sinal de algo ou de alguém que se oculta ou se anuncia. Por acto reflexo, despertamos para isso. Sinais desses podem ser de coisa má. Porventura serão de cosa boa. De uma forma ou de outra, aguçam em nós a curiosidade e não os perdemos de vista.

Às vezes, porém, escapa-se o fantasma. Desaparece sem se revelar. Salta para fora do filme, é certo, mas não se livra de deixar rasto. Mesmo que não se veja sinais dele, fica sempre um eco da sua passagem. Tal com em nós ficará, terminado o filme, o eco daquilo que nele vimos.

Filmes há que brilham pela verdade daquilo que denotam, outros pelo mistério daquilo que sugerem. Num caso e noutro, é a montagem que provoca o efeito.

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3) técnicas elementares nomenclatura, definições e processos

léxico

escala dos planos

PORTUGUÊS

POR

MGP

GP

PAP

PAM

PM

PC

PG

plano de pormenor

muito grande plano

grande plano

plano aproximado

plano americano

plano médio

conjunto

geral sequência

pormenor do rosto ou… só o rosto rosto + ombros rosto + peito a meio das coxas ou pouco mais da cabeça aos pés conjunto de pessoas, figura a + - 2/3 do campo

figuras em pequena escala no meio do campo

segue uma acção sem corte de plano

INGLÊS (terminologia adoptada pelo MIT)

POR EXTREME CLOSE-UP: A small object or part of the body fills most of the screen.

MGP CLOSE-UP: A person's head, or an object of a comparable size, fills most of the

screen.

GP MEDIUM CLOSE-UP: A person's head and chest would fill most of the screen.

PAP MEDIUM SHOT: A person seen from the waist up would fill most of the screen.

PAM MEDIUM LONG SHOT: (also called THREE-QUARTER SHOT and PLAN

AMERICAIN): A person from the knees up would fill most of the screen.

PM LONG SHOT: The full figure of a standing person would appear nearly the height of the screen.

PG screen.

EXTREME LONG SHOT: A building, landscape or crowd of people would fill the

VER fonte: http://shea.mit.edu/ramparts/commentaryguides/glossary/filmlexicon.htm#contin uitysystem#continuitysystem

aplica-se à escala da figura humana em campo

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FRANCÊS

POR PD MGP TGP GP GP PAP PR PAM PAMPM PM PC PE PG PG PS PS

campo

O plano, como o próprio nome indica, consiste na superfície plana coberta pelo olho da objectiva, que imita o olho humano, uma área rectangular semelhante à

área por ele coberta, num olhar fixo. É a área contida tanto no visor da câmara como na imagem projectada na tela.

O plano é uma unidade narrativa do filme, um todo constituído pela relação

existente entre os vários elementos que o compõem, relação essa de verosimilhança. É o ponto de vista da câmara em determinado ângulo, a posição que ela ocupa no interior de uma calote esférica de 180º, uma espécie de abóbora oca cortada a meio, cujos bordos são os da tela, lugar esse onde decorre a acção. A posição natural do observador é na vertical. É por isso natural que, no cinema, seja semelhante à do espectador de teatro: bem sentado,

comodamente virado para o palco. N u m e outro caso – aliás como na vida real

– observamos um espectáculo.

Plateau – palco em francês – é o espaço cénico onde decorre a acção. O termo

é usado em cinema para designar o mesmo, com a diferença de significar, na

linguagem do cinema, o espaço cénico coberto pelo olho da máquina.

A calote, a boca de cena, tem forma simétrica. É divisível em duas metades de 90º que se opõem uma à outra, dentro de uma só. É como a sala de cinema: tem duas plateias separadas por um corredor. Aí sentados, estamos a assistir a algo que decorre um pouco mais à esquerda ou à direita do sítio onde estamos, mas isso não nos impede de ver bastante bem tudo aquilo que se está a

passar ao centro. Aliás, podemos “levantar voo” da cadeira, aproximar-nos ou

afastar-nos da tela, ora centrando num ponto a atenção, ora desviando daí o olhar para abrangermos a totalidade do espaço, ora centrando-o de novo noutro qualquer ponto. Voamos no espaço, em movimento próprio ou levados pelo olho da câmara, discernindo bem melhor a acção que qualquer das

pessoas metidas no filme. Estamos a observá-las de frente, tal como elas entre si se observam, mas temos o poder de tudo observar, com um olhar muito mais

abrangente que o de qualquer personagem do filme.

plan de détail très gros plan gros plan plan rapproché plan américain plan moyen

plan d’ensemble

plan général plan séquence

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Vemos num filme pessoas e coisas do mesmo modo que Deus nos verá a nós e o mundo em que vivemos. Possuímos idêntica omnisciência, sentimos estar acima dos acontecimentos e gozamos muito com isso. Ouvimos e adivinhamos, por fora, certas coisas que decorrem fora de campo, off-screen, coisas por vezes insuspeitas. Por vezes até chegamos a ouvir uma voz que vem do alto, uma voice over, a de um Narrador que nos explica o que se vê. De

“cima” vem também a música que nos comove, em conjunção com a emoção

que o conjunto do quadro em nós provoca.

Envolvido em íntima relação com o quadro está o plano, elementar, básica e

prevalecente unidade da linguagem do cinema. Projectado na tela – rectângulo

longitudinal ali erguido – imita o nosso campo de visão. Dá-nos a ver as coisas como as víssemos do fundo da tal abóbora oca cortada ao meio: no fundo, como as vemos na vida. Com uma particularidade: por uma questão de lógica e de espaço, ela de não nos permite que as coisas sejam vistas do outro lado. Nem na abóbora do cinema nem na do teatro.

quadro

< eixo da acção >

eixo de campo O eixo de campo determina a divisão a 90º do quadro (ou da calote de campo) em

duas partes iguais e simétricas. Distinguem-se enquanto espaços de campo e de

contra-campo, que podem ser usados para marcar perspectivas opostas, em que por

exemplo duas personagens dialogam, uma diante da outra, tendo como fundo partes

diferentes do campo. A fim de obter esse efeito e de evitar que uma e outra personagem pareçam estar a observar do mesmo ponto, os pontos de vista opostos devem ser colocados no espaço exterior, à direita ou à esquerda, do espaço coberto

por um ângulo de cerca da 30º que incida sobre o eixo de campo.

esquerda bom

+ - 30º, espaço inadequado para filmar em campo-contracampo

centro mau

direita bom

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campo e contracampo

É a relação de sentido que se estabelece entre câmaras colocadas em lados opostos da calote de campo.

Campo designa aquilo que está contido no quadro, ao mesmo tempo que

sugere, conotando-o, o espaço que o circunda, em determinado momento e

por determinado efeito. Contra-campo designa o mesmo, mas em quadro oposto, do ponto de vista de outro observador. Campo e contra-campo focam a mesma acção vista ora por um ora por outro.

regra dos 180º

Filmando a mesma acção, as posições de câmara em campo e contra-campo

não podem ultrapassar o eixo da acção, a linha horizontal desenhada pela

base do visor (ou base do écran), a diagonal de um semi-círculo dentro do qual se podem mover personagens, objectos ou o próprio observador (a câmara). Respeitada a regra, haverá sempre raccord entre os dois campos. Caso contrário, além de saltos de campo impróprios, haverá planos cruzados.

más posições

eixo da acção < > eixo da acção

boas posições

posições 1, 2, 3 em raccord de campo-contra-campo (mesmo aproximando-se ou afastando-se as câmaras do motivo, mesmo virando-se para dentro da área do semi circulo para captar acções paralelas, os raccords entre planos resultarão.

posições 4, 5. 6 em erro de posição e plano cruzado (a figura que segue para a direita aparece no plano seguinte da direita para a esquerda).

Quando o eixo de campo cruza o eixo de acção, surgem

PLANOS CRUZADOS: a personagem corre nesta direcção

erro (plano cruzado)

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campo e contra-campo nos limites de campo

1 – no limite do eixo da acção

câmara 1 campo contra-campo câmara 2

eixo da acção (da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda)

Na diagonal, na linha dos 180º, confrontam-se duas perspectivas opostas. A alternância de campo faz-se num quadro em que uma personagem ou motivo surje à esquerda e o outro à direita e vice-versa.

2 – no limite do eixo de campo (viola a regra dos 30º)

eixo de campo

câmara 1

< eixo da acção >

câmara 2

Também neste caso a alternância de campo se deve fazer num quadro em que uma personagem ou motivo surje à esquerda e o outro à direita e vice-versa.

câmara 1 campo câmara 2 contra-campo

Neste caso temos planos cruzados, que são admissíveis visto corresponderem

a pontos de vista opostos (em que a posição relativa das personagens se inverte), e isso é válido filmando quer no limite do eixo da acção quer no limite do eixo de campo. O efeito é produzido por uma relação geométrica com a sua lógica e por motivos subjectivos.

campo

contra-campo

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câmara 2 contra-campo eixo de campo

O efeito de cruzamento de planos pode ser evitado desviando o eixo de campo

do seu limite máximo (90º), num desvio mínimo de 30º (< ou >). Isto é, a câmara foge do eixo de campo, deslocando-se mais para a esquerda ou mais para a direita, aproximando-se de uma das personagens e afastando-se da outra:

mulher homem

câmara 1 campo

<30º> < 60º > < 60º > <30º>

Mais 30º para a esquerda ou mais 30º para a direita: o raccord (feito na

“sobreposição” dos quadros) é criado pelo facto de, quer no campo quer no contra-campo, as personagens passarem a situar-se no mesmo meio-campo:

< 30º > mulher

< 30º >

eixo de campo (mulher sempre à esquerda, homem sempre à direita)

homem

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Idêntico efeito pode ser obtido se colocarmos a câmara, no campo e no contraa campo, num eixo mais ou menos paralelo ao eixo de campo, com um desvio de cerca de 30º entre cada posição:

mulher homem

eixo de campo

< 30º > campo contra-campo

Na linha do eixo de campo e com idêntico desvio, o campo e contra-campo poderão ser estabelecidos isolando os motivos ou as personagens, alinhando

cada um desses elementos mais à esquerda ou mais à direita, nos respectivos

meios campos:

campo contra-campo

c/cc no eixo:

campo

NOTA:

contra-campo

- à direita do quadro, num dos meios campos, é enquadrada uma das figuras, deixando ar no outro meio campo (um espaço vazio)

- à esquerda do quadro, num dos meios campos, é enquadrada a outra figura, deixando ar no outro meio campo (um espaço vazio)

O processo cria a seguinte ilusão: a linha do olhar de cada personagem converge para o outro.

Em campo e contra-campo no eixo, quer no eixo da acção quer no eixo de campo, as figuras poderão ser colocadas nas seguintes posições:

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Caso se queira introduzir um terceiro elemento na composição, o quadro pode ser dividido em três partes, em relativa proporcionalidade:

NOTA: o efeito tanto pode ser obtido por deslocação para a esquerda ou para a direita do eixo da câmara como falsificando a relativa posição das personagens.

Neste caso, o motivo central do quadro é a figura humana: no campo está o

homem, em contra-campo a mulher. Na periferia, associada ao homem, vê-se uma escada e, associado à mulher, vê-se um caminho. Da ligação entre campo

e contra-campo, da “sobreposição” sequencial entre homem e mulher

(masculino+feminino) surge um determinado significado que remete para o paradigma (homem+mulher = pessoa humana). A esse signo juntam-se dois significados laterais (caminho e escada), que, por sua vez associados, bem podem constituir uma metáfora (que, no entanto, só será metáfora se nela se projectar o sentido do filme).

É destes ajustes e desajustes – destas subtis convergências e divergências, destes deslizes e acertos semânticos e harmónicos que, em linguagem de cinema como em qualquer outra, tem regras próprias e usa determinados códigos – que brotará o sentido final do filme.

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3) o quadro: dinâmicas e flutuações de campo

o quadro

O campo da visão humana é frontal. No máximo, em olhar fixo, corresponde a um ângulo de cerca de 180º cobrindo áreas com nitidez diferente e com desvanecimento de cores na região periférica, situada entre os 60º e os 180º. A zona de percepção nítida, para detalhes, formas e cor, reduz-se a um ângulo de 90º. O ângulo com melhor resolução é de 60º e cobre o campo da visão central.

visão nítida e visão central o campo de visão pode ser representado por por uma oval

90º 180º

a parte superior do campo ocupa uma área menor

o campo da visão pode ser representado por um rectângulo

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observador

O quadro que melhor corresponde ao campo da visão humana tem uma proporção de cerca de 18X9. Sendo de 90º o melhor ângulo de percepção, formará um triângulo equilátero o espaço horizontal melhor coberto pela visão.

base do quadro

eixo de campo

Quer isto dizer que, para obter uma visão ideal do quadro, deve o observador colocar-se no eixo de campo e fora do vértice do triângulo. Se estiver do lado de dentro, os bordos do quadro entrarão no campo da sua visão periférica, com perda de informação.

Vendo as coisas num ângulo de 180º, o observador, em olhar fixo, só pode ver o que tem diante de si. Para ver o que tem por detrás, terá de se virar ao contrário. Para ver bem aquilo que tem à esquerda ou à direita terá de rodar o corpo em cerca de 90º, para a esquerda ou para a direita. Fazendo rodar o corpo em torno do seu eixo natural, na vertical, o observador vê em círculo

aquilo que o rodeia, mas em quatro campos opostos, que “explicam” a

quadratura do círculo: frente trás, esquerda direita.

campo 1

campo 3 observador

campo 2

Sendo na vertical assimétrico o campo da visão, mais reduzido em cima e mais

amplo em baixo, essa condição determina uma assimetria entre os campos horizontal e vertical. Sendo todo ele mais virado para baixo, de modo a cobrir a

superfície trilhada pelo observador que se desloca, a calote global (frente+trás+esquerda+direita) coberta pelo olho não é esférica mas sim

ovóide, dirigida para o chão: mais volumosa em baixo do que em cima. Os nossos olhos, na vida real, são mais virados para a terra que para o céu.

campo 4

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Erguido, o homo erectus, consegue estabelecer um equilíbrio estável com

recurso a dois sentidos: o do olhar e o do ouvido. O sentido do olhar comanda,

o do ouvido ajuda. O “homenzinho” é um sempre-em-pé. A força da gravidade

a isso o obriga. A posição vertical cimenta a linha do seu olhar, quaisquer que sejam as oscilações do seu corpo. Mesmo estando inclinado, ele põe-se logo a

direito.

Por imperativo psicológico, o quadro tende a manter-se estável, mesmo que haja mudança de campo. Tende a ficar na posição horizontal que ocupa no interior do espaço circular que o rodeia, dentro da esfera que o envolve, mesmo que o olhar do observador se desvie para outro qualquer ponto.

relações harmónicas dentro do quadro

As relações harmónicas dentro do quadro (neste caso dentro daquele que corresponde ao campo da visão humana) processam-se em relação de proporcionalidade, tanto na horizontal como na vertical. As proporcionalidades harmónicas podem não ser simétricas.

As proporções geram dinâmicas entre as diferentes partes do quadro, tanto na

horizontal como na vertical, ou mesmo entre as suas componentes oblíquas. A relação entre as partes ou porções de espaço nelas contidas provocam um movimento em espiral, que é o fundamento de qualquer forma dinâmica.

Em relação simétrica, produzem-se essas dinâmicas do centro para a periferia:

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Parthenon

As duas colunas situadas a meio do edifício, são reagrupadas à esquerda e à

direita em espaços proporcionalmente iguais e a igual distância do centro, como se se afastassem simetricamente dos olhos do observador. Essa dinâmica é de ordem subjectiva: as colunas não se movem.

Canon do Homem

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A esfera, o Canon do Homem para Leonardo da Vinci, traçada pela fisiologia e pela dinâmica do seu corpo, condicionada pelo seu campo visual, tende entretanto a ser achatada no topo. Serve, todavia, a esfera para ilustrar bem a crença de que o Homem está no centro do mundo: num ponto, no mais pequeno de todos os pontos, no meio de um espaço vazio, no interior mais profundo dessa sua esfera, longe do tempo, longe de tudo, nesse infinitesimal lugar onde saltou a faísca da criação. Longe, por certo (e isso só hoje o

sabemos), do ponto onde se situava a “laranja” que deu origem ao Big Bang.

Para nós, diga-se o que se disser, o ponto em que nos encontramos é aquele em que estão os nossos olhos. A questão tem uma relação íntima e porventura misteriosa com um certo rectângulo de idêntica proporção, aquele que corresponde ao nosso campo de visão nítida, aquele em que se foca a nossa atenção. Essa proporção, aliás, está presente na fachada do Parthenon: proporção áurea traduzida por um número de ouro, uma constante real,

algébrica, tida por irracional, representada pela letra grega (phi), com o valor arredondado de três casas decimais de 1,618. Será ela na verdade assim tão irracional? Está presente na natureza, vê-se por todo o lado: no homem, no girassol, no pinheiro, no cipreste, no caracol. O número pode ser irracional, mas a forma dinâmica que ele exprime cumpre bem a sua função. A vida segue uma espiral. De algum modo, em espiral prosseguem os nossos propósitos e em espiral se realizam os nossos sonhos.

flutuações do quadro

Acontece que os olhos se desviam por saltos, translações bruscas, por sacades, saltando bruscamente de um campo para o outro, quer por movimento próprio quer por mudança de posição do corpo. Na realidade, desenham a cartografia do lugar num universo virtual em que o quadro é um pormenor apenas do mundo circundante.

As transições de campo na visão real não se fazem em continuidade. No cinema podem ser feitas suavemente em torno do eixo vertical da câmara (o do observador), em panorâmica para a esquerda ou para a direita, em torno do seu eixo horizontal, para cima ou para baixo, podendo ser feitas também em travelling, por deslocação no espaço do corpo da câmara (ou do observador), num trajecto linear, angular ou sinuoso. A panorâmica ou o travelling são artifícios narrativos próprios do cinema, de um processo mecânico de representação que pretende imitar o olhar, como se ele não fosse só feito de

retalhos. O artifício consiste em fazer “flutuar” a imagem no espaço, produzindo

um efeito harmónico entre os vários campos percorridos pelo quadro, do último ao primeiro, como resultado, e, pela intenção que determina o movimento, do primeiro ao último.

Antes desse efeito ser produzido, já o tempo de duração do quadro produziu o seu, dando a ver, em duração restrita, o sentido do quadro, composto pela unidade, harmónica também, dos elementos que o compõem. Idêntico efeito harmónico pode ser obtido pela associação de planos estabelecendo elos geométricos, associações de formas e de cores entre os sucessivos planos. E

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isso só é possível ser feito em função de uma geometria predominante, subjacente a cada plano, mais abrangente que qualquer deles. Essa harmonia só existe no universo virtual das representações. No entanto, sugere analogias

entre o virtual e o real.

O quadro pode ser povoado por múltiplos outros, na horizontal ou na vertical, conforme a atenção do observador se centra num fragmento do quadro ou dele se afasta para um ponto de vista mais abrangente. Nesses movimentos

mantém-se a proporção do quadro. Entre eles, de plano a plano, traçam-se as

linhas harmónicas do movimento que os une, quer seja a que une uma acção em campo quer a de uma inevitabilidade geométrica ou formal contida no quadro. A geometria própria do quadro, por si só, já contem simetrias geradoras de harmonia.

campo estável e campo instável

O campo correspondente ao quadro da visão humana é constituído por componentes estáveis e instáveis. Na relação entre si, as componentes

estáveis geram linhas de força que percorrem o quadro e determinam a harmonia da composição.

Existem dois tipos básicos de composição: a composição na horizontal e a composição na vertical.

1 – HORIZONTAL

composição horizontal

Em relação simétrica, o quadro está dividido em partes iguais. Pode ser dividido em partes assimétricas. Em cada uma dessas partes, podem ser introduzidas cores ou linhas. Por si sós, cores ou linhas poderão denotar significados imediatos e precisos.

Por exemplo: mar e céu profundidade

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2 – VERTICAL

composição vertical

É traçada em paralelo à força da gravidade ou ao eixo do corpo humano. Pode induzir a percepção de campos abertos ou de campos fechados, pondo em relevo, em relação simétrica ou assimétrica, a lateralidade dos volumes que se opõem à visão ou à passagem. É divisível em duas partes iguais, mas nesse caso não estará nela representado o dinamismo antia gravitacional das linhas verticais. Para isso, terá de haver não uma mas pelo menos duas linhas, dividindo o campo em três partes.

parte esquerda parte central parte direita

O quadro correspondente ao campo da visão humana tem como básicas estas duas componentes: a horizontal e a vertical. Cada uma dessas linhas tem uma carga semântica elementar e poderosa. Relacionadas, são o ponto de partida do processo da visão e é essa relação que estabelece o seu dinamismo.

Actuando em conjunto, a horizontal e a vertical fundam um sistema generativo

de constantes estáveis. Agem entre si sugerindo a existência de forças oblíquas, instáveis, de variáveis, de oscilações que acabem sempre por convergir em estabilidade.

A horizontal é a linha mestra por excelência. Tangente à superfície da Terra, é a projecção sobre a qual todas as verticais assentam ou se implantam. É o chão, base ou traçado paralelo à base, uma representação dela a outro nível, superior ou inferior. Sugere estabilidade, perfeito equilíbrio. Corresponde a um

plano que tudo sustem e sobre o qual, mesmo em movimento, tudo se manterá estável, como em repouso, parado ou em vias disso. É número zero: aquele de os outros surgem, de onde nascem as coisas, o lugar que contem o húmus que faz crescer as plantas. É tão elementar que nada mais simboliza.

A vertical é número um. Assente em zero, é o princípio do número dois. É unidade pura, unicidade. Sou eu de pé, perante algo ou alguém como eu. É a

linha que atravessa o meu corpo de alto a baixo e vai até ao centro da Terra, a linha que se desenha numa oposição de forças, de cima para baixo e de baixo para cima, a linha básica, a do sempre-em-pé: a nossa linha de referência. Aquela linha que, em determinado ponto, entre dois pólos, se divide em duas

(uma a da gravidade, outra aquela que se lhe opõe) e que, em consequência

disso, determina as coordenadas do meu percurso, do caminho que eu sigo, cruzando o meu campo de visão, ao centro. É, além disso, uma linha de divisão e de demarcação. Separa partes opostas, à esquerda e à direita, pertencendo

a uma e à outra ao mesmo tempo, sem ser exclusiva de nenhuma delas. Sendo única é (e será esta porventura a sua característica mais importante) o princípio da multiplicidade. É, não haja dúvida, uma linha atrevida. Tem uma

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disposição vigorosa, uma dinâmica própria que a torna vitoriosa. Intromete-se

em tudo, em todas as arte do espaço, no desenho, na pintura, na fotografia, na arquitectura. É vedeta no cinema.

Na sua expressão mais pura, a vertical tem esta forma:

Divide o quadro em dois, em relação simétrica, ao situar-se ao centro e ao dividir o campo em partes iguais mas

opostas, à esquerda e à direita.

Este simples facto é o bastante para que nele surja implícito um dinamismo gerado não pela simetria das suas partes mas pelas potenciais e

inevitáveis assimetrias que o quadro irá

cobrir quando os olhos se movem.

O olhar é por natureza dinâmico: os olhos giram a cada fracção de segundo, saltando de um campo para outro. A cada mudança de campo, em que as relações geométricas se multiplicam, detectam logo sinais de outras configurações, sondando um perfil, uma tonalidade, um movimento. E acabam sempre por avistar qualquer coisa.

Temos alguém diante de nós, ou alguma coisa. Detectam primeiro os olhos algo de desfocado, de impreciso, mas logo, guiados pelo mecanismo gerador do equilíbrio, descobrem uma figura precisa. Centram a figura no

quadro, onde ela, embora centrada, surge desenhada com certas linhas em desequilíbrio que, no entanto, em nada afectam a sua estabilidade. O perfil triangular da figura (traçado aqui pelas

linhas da massa verde) garante a sua

firmeza.

Entre o traçado da horizontal e da vertical, abrindo novos campos dentro do próprio campo, desmultiplica-se o quadro. Tornam-se mais precisas e mais sólidas a observação e a

interpretação.

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Alguém ou algo salta à vista. Depois deste primeiro salto, salto para a frente, logo tentamos recuar para um

ponto que nos dê a profundidade de campo suficiente para analisar a figura de outros ângulos. Basta afastar-nos

um pouco, coisa que nos convém. Estando ao centro, a figura barra a linha do nosso olhar, impedindo-nos de ver o que está oculto por trás dela, num lugar estratégico, oposto ao nosso ponto de vista.

O mecanismo da visão é aliás comandado por um sistema perceptivo que, logo à partida, cruza a informação a meio do cérebro, desestabilizando a imagem

para a podermos ver em relevo e, tanto quanto possível, em três dimensões.

As imagens que os nossos olhos captam são conduzidas da retina até ao cérebro por dois nervos ópticos cruzados no tálamo, cuja função é gerir o equilíbrio. Primeiro, até ao

córtex visual primário, situado na base do cérebro, na parte posterior da cabeça. Daí, as imagens do olho esquerdo vão parar ao hemisfério

direito e as do olho direito ao hemisfério esquerdo. No hemisfério

esquerdo age com predominância o sistema da fala. No hemisfério direito

age o da visão. A informação recebida a esse nível e a esse nível tratada é depois conduzida a um nível superior, até ao lobo frontal direito (um massa neural do tamanho de uma bola de ténis, situada por cima do olho).

É aí, nessa central de informação – que

trabalha em correlação com o lobo frontal esquerdo, associado à

linguagem e à lógica – que se geram as respostas finais aos estímulos visuais. Além disso, os olhos estão separados por um distância de cerca de 6 cm, suficiente para discernir o relevo, vendo a figura um pouco do lado esquerdo e

um pouco do direito ao mesmo tempo.

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3 – LEI DOS TERÇOS

É neste contexto que entra em jogo a lei dos terços, regra não isenta de excepções, criada com os estudos da composição durante o Renascimento. Estabelece a regra a conveniência em colocarmos o motivo principal junto da

intercepção das linhas horizontais e verticais que dividem o quadro em partes iguais.

O campo da visão central surge assim demarcado por quatro pontos focais que se alinham em paralelo na horizontal (A+B e C+D) e na vertical (A+C e B+D). Este alinhamento implica no entanto relações oblíquas entre os pontos opostos na transversal (A+D, B+C), relações essas geradoras de desequilíbrios e de potenciais harmonias. Neste contexto, é contrariada a simetria básica do quadro

pela simples razão de os olhos girarem dentro das

órbitas, de um lado para o outro, provocando

flutuações de campo e instabilidade dentro do

quadro.

Neste caso, os pontos de foco derivam em torno do rosto da Vénus reflectido no espelho e da massa das suas ancas, no centro do quadro. É gerada

uma relação entre campo e contra-campo, dentro do quadro, entre a cabeça da Vénus e o seu reflexo no espelho. Ao mesmo tempo, idêntica relação se estabelece entre a linha do seu olhar, que vai direita ao rosto reflectido, e a que dele provem, cruzando-se com a linha do nosso olhar, a do observador. O

motivo central é as suas ancas e tudo se passa como se ela estivesse a ver algo que é de comum interesse, do seu e do observador.

Em torno desta relação outras se tecem entre as várias componentes do quadro, em quadros associados segundo determinada lógica, fazendo o quadro falar,

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Em vez de constituírem um todo, essas componentes, sendo parcelares, poderão ser alinhadas em sequência narrativa, conforme o sentido que atribuímos ao conjunto e que desejamos traduzir em forma de linguagem.

Por exemplo:

plano 1 – c plano 2 – cc plano 3 – c

corpo do anjo

plano 4 – cc

rosto no espelho > Vénus centrada

ponto de vista

no eixo de campo

centro esquerda 90 º centro direita

O enquadramento de cada plano tanto pode ser obtido fazendo girar o eixo de campo em movimento panorâmico para a esquerda ou para a direita como por deslocação do eixo, em paralelo ao eixo da acção, em traveling, mantendo-se

sempre perpendicular a ele. No primeiro caso a imagem surge com deformações oblíquas e no segundo sem sofrer qualquer deformação, relevando o padrão geométrico das linhas de força no equilíbrio da composição.

Tal como a imagem composta do quadro, também a montagem fala: a disposição linear e coerente das componentes do quadro em sequência. Fala a

seu modo, de um modo diferente da imagem contida no quadro. Não fala de um modo geral, como fala o todo, mas em particular, plano a plano, frase a

frase, para pôr a nu aquilo que está no centro: um nu ainda mais nu que o

> > corpo da

Vénus plano 5

– c

reflexo no

espelho plano 6 –

c

> centro do corpo

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corpo da Vénus, um branco irradiante, arredondado, que excede o do seu corpo e que nos conduz ao mistério.

4 – O PONTO DE FUGA

Todo o quadro harmónico tem um ponto de fuga: um ponto de fuga por excelência, que é aquele onde convergem, num vórtice mais forte que os outros, todas as energias criadas pelas instabilidades que o girar dos olhos provoca ao pretender detectar o sentido das coisas. No quadro a Vénus desnuda, de Diego

Velázquez (1599 – 1660), desenham-se linhas em espiral que geram a

harmonia da composição, cujo ponto de fuga – ponto superior direito do

campo da visão central – se situa junto da intercepção da segunda

linha vertical com a primeira linha horizontal de divisão do quadro em partes simétricas: o ponto B.

A localização do ponto de fuga (das forças dinâmicas do quadro) corresponde

neste caso à dos olhos (ocultos) da Vénus, que se reflectem no espelho, para o

qual se dirige a linha do seu olhar. Centrado a meio do quadro, o ponto de vista

do observador cruza a linha do seu olhar, que lhe chega pelo reflexo do espelho. A partir do ponto de vista do observador, passando pelo reflexo, flui em elipse um movimento de refluxo, envolvente, que percorre o corpo da

Vénus e que converge no seu rosto. É no entanto e paradoxalmente ponto de chegada e ponto de partida. É ponto de chegada do olhar do observador e

ponto de partida do olhar da Vénus, o que lhe permite ver aquilo que, não vendo, dá a ver: as suas nádegas, bem colocadas, no centro do quadro.

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É o brilho e o movimento aquilo que primeiro atrai o olhar. Havendo várias intensidades de luz e vários movimentos inscritos no quadro, os olhos, envolvem e avaliam primeiro o seu conjunto para convergirem logo depois para as zonas mais salientes. Rejeitando o que parece não ser pertinente, cedo descobrem o sentido daquilo que surge em evidência.

O quadro de Velázquez está repleto de luzes intensas e de fortes movimentos, por vezes contraditórios. Não os ignorar não é coisa fácil para o observador, mas, nesse labirinto, ele acaba por ser guiado pelos olhos de alguém.

Opõe-se a direcção do movimento das espirais, à esquerda, entre as duas partes superiores e as inferiores do quadro, provocando turbulência nessa zona. O terço direito do quadro é, pelo contrário, gerador de harmonia, pois contem nas massas do topo e da base a mesma espiral que a do ponto de fuga. Na massa do corpo, a figura do anjo contem espirais contraditórias, mas harmónicas na direcção do seu olhar, que também converge para o centro, onde surge em relevo a massa dominante da composição.

Na sequência montada, apesar de o quadro se modificar em escalas menores

com outros enquadramentos, mantém-se a relação harmónica das componentes, que será reforçada com os tempos certos da narração, em

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sequência, em melodias que se desenham, crescendo em espiral, dando-se ares de partitura.

Feitas as contas, tudo poderá ser visto assim: o que significa afinal o quadro?

Qual o sentido em que aponta o vórtice que gira? No sentido dos ponteiros do relógio? Em sentido contrário? Significa por certo o quadro que quem o pinta gosta de desfrutar sentidos a que ninguém será indiferente, que deseja gozar os efeitos de certas vertigens, de vertigens que nos transportam.

No que toca a preferirmos, na composição do espaço, situar o ponto de fuga à direita, uma razão há que a explica: por natureza, salvo algumas excepções (os canhotos), somos mais destros à direita. Todo o nosso corpo á mais hábil à

direita, em particular o braço. Será por isso melhor termos a coisa que mexe mais ao alcance dessa mão e no lado direito do eixo de campo.

Esta flor poderia ser metáfora do corpo da Vénus. Tem a parte mais irradiante à direita e a mais alongada à esquerda. O vórtice, à esquerda, absorve um certo fluir das pétalas, concentrando-o num ponto.

Mais correcto seria dizer, visto que uma planta cresce, que esse núcleo é o ponto onde a flor explode, um lugar de expansão, o contrário de um buraco negro que absorve. Podendo ser uma e outra coisa, o motivo central, que se destaca do corpo, é o seu estigma.

Vista ao contrário, poderia ser metáfora do corpo do observador, colocado no vértice inferior do triângulo, com o anjinho papudo à esquerda e a Vénus à direita. Teria ele absorvido os rubores da bela, mas seria outro o seu

estigma.

Ambos os planos fariam raccord. É aliás nessa básica relação que Velázquez implanta toda a construção do quadro. Serve este exemplo para mostrar também que, em certos momentos, das flutuações do campo surge novo equilíbrio.

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A SEGUIR:

enquadramento no campo simétrico

CONTINUA (sem data):

Ricardo Costa http://ricardocosta.net mail [at] ricardocosta.net

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