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Denise Pahl Schaan

A LINGUAGEM ICONOGRFICA DA CERMICA MARAJOARAOrientador: Prof. Dr. Jos Proenza Brochado

Porto Alegre, Maio de 1996.

Denise Pahl Schaan

A LINGUAGEM ICONOGRFICA DA CERMICA MARAJOARAOrientador: Prof. Dr. Jos Proenza Brochado

Dissertao de Mestrado apresentada como requisito parcial e final obteno do grau de Mestre Curso de PsGraduao em Histria rea de Concentrao Arqueologia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

Banca Examinadora: Prof. Dr. Jos Proenza Brochado Prof. Dr. Klaus Hilbert Prof. Dr. Incio Schmitz

Porto Alegre Maio de 1996

Pode ser que nas particularidades culturais dos povos sejam encontradas algumas das revelaes mais instrutivas sobre o que ser, genericamente, humano.(Geertz, 1978:55)

AGRADECIMENTOS

Penso que talvez s quem j tenha tido uma experincia semelhante possa avaliar todo o trabalho que envolve a produo de uma Dissertao de Mestrado, resultado de muitos e muitos meses de dedicao. Esse envolvimento implica em renunciar, ainda que temporariamente, a outras atividades tambm importantes e companhia de pessoas que nos so caras. Nessa jornada estabelecemos vnculos de amizade com pessoas que participam conosco de etapas desse trabalho e, mesmo que a amizade seja temporria e ligada s contingncias, as imagens dessas pessoas permanecem nas entrelinhas do texto, nos lembrando o quanto foram indispensveis. Muitos livros utilizados para a elaborao dessa pesquisa obtive por intermdio de pessoas s quais no tenho como agradecer. O resultado de sua ajuda preciosa o prprio trabalho. Gostaria de deixar aqui registrados meus agradecimentos ao Conselho Nacional de Pesquisa - CNPq, pela Bolsa de Estudos concedida durante o curso de Ps-Graduao em Histria, e s seguintes pessoas: A minha me, Gaysita Pahl Schaan, que acreditou em mim e pagou o primeiro semestre do curso; a meu pai, Jos Fernando Schaan, que me ajudou a comprar um computador, indispensvel para o trabalho. Aos professores do curso e em especial a meu orientador, prof. Dr. Jos Proenza Brochado, por sua sabedoria e disponibilidade; por ter se envolvido pessoalmente com o trabalho. Ao prof. Dr. Klaus Hilbert, pelo apoio, pelos livros, pelas conversas, pela amizade. Aos demais professores do curso, que me mostraram caminhos. prof. Teresa Fossari, por ter-me aberto as portas do Museu Universitrio Professor Oswaldo Rodrigues Cabral, da Universidade Federal de Santa Catarina, pelos livros emprestados, por sua paixo contagiante pela arqueologia, pelo apoio e carinho. A todos os funcionrios do Museu da UFSC, em especial Dorotha, pelos textos; ao Peninha, pelas conversas; Hermes e Deise pelo apoio. Aos amigos Helena e Maninho, pela recepo inesquecvel em Florianpolis. Aos colegas do curso, pela convivncia, pelos trabalhos em conjunto, pela solidariedade e amizade; em especial a Andr Jacobus, por ter lido e criticado parte do trabalho. Aos bilogos Geraldo Rodolfo Hoffmann e Marcos di Bernardo, pela ajuda inestimvel. s funcionrias do curso e do CEPA, Rosana, Carla e Mrcia, pelos favores e pela pacincia. A Lizete Dias de Oliveira, grande amiga, que me incentivou desde o incio. Finalmente minha famlia: a meus pais pelo apoio material e espiritual; a Nivaldo, meu companheiro, por tudo. Muito Obrigada.

NDICE

Introduo Captulo I Arte Indgena e Significado Concluses do Captulo Captulo II Registro Arqueolgico e Etnohistrico da Fase Marajoara Utilizao Arqueolgica do Modelo Analtico Cacicado Concluses do Captulo Captulo III O Estudo da Coleo Tom Wildi A Coleo Tom Wildi Coleta de Dados Anlise das Representaes Antropozoomrficas e dos Motivos Decorativos As Urnas Funerrias da Coleo Representaes Zoomorfas Representaes Antropomorfas Os Motivos Geometrizantes Formas Ligadas ao Uso de Alucingenos Tangas Concluses do Captulo Captulo IV A Linguagem Iconogrfica da Cermica Marajoara Concluses do Captulo Concluses Finais Referncias Bibliogrficas Anexos Pranchas com Desenhos e Fotos da Coleo

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INTRODUO

O estudo da arte nas sociedades indgenas, resultou, nos ltimos anos, em um grande nmero de trabalhos antropolgicos extremamente importantes para uma adequada compreenso do universo cultural nessas sociedades. realizadas em campo, com a convivncia por vrios meses As pesquisas

com as comunidades

indgenas, tm demonstrado ser, sem dvida, momentos privilegiados para que o cientista observe os processos artesanais de maneira integrada, uma vez que h a possibilidade de desfrutar do mesmo meio ecolgico e social, estabelecer dilogos com informantes, participar das atividades do grupo e, desta forma, poder apreender os aspectos simblicos e cosmolgicos da cultura. Ainda que a analogia etnogrfica seja importante para o trabalho do arquelogo, o estudo da arte em arqueologia desenvolve-se segundo mtodos e possibilidades bastante diversas. Os objetos artsticos, no contexto arqueolgico, no so encontrados no momento de sua produo e uso, mas no instante de seu descarte ou enterramento. Dessa maneira, v-se o arquelogo na contingncia de registr-los quanto sua posio estratigrfica e relao com os demais resduos, e descrev-los em suas dimenses plstica e esttica, classificando-os em tipologias estilsticas. As possibilidades de compreenso sobre as motivaes que impulsionaram o

desenvolvimento artstico em sociedades arqueolgicas ficam restritas, na melhor das hipteses, s analogias etnogrficas, isso quando o pesquisador no d poderes interpretativos sua prpria subjetividade. Na realidade, ele geralmente no v possibilidades de explicao a partir do leque de teorias cientficas a seu alcance. Dentro desse contexto, a arte passa a fazer parte do conjunto de fenmenos para os quais no h explicao plausvel, porque no h regularidades,

universalidades. Vemos que, apesar das manifestaes artsticas estarem presentes em todas as sociedades humanas, em maior ou menor grau, desde o paleoltico, estas se externam de tantas maneiras diferentes quantos so seus autores. No so poucos os pesquisadores que tendem, por todos esses motivos, a desprezar os objetos artsticos enquanto fonte importante de informaes a respeito do comportamento cultural dos povos pr-histricos. Se por um lado parece haver um desconhecimento sobre a real amplitude do significado da arte para as sociedades indgenas, por outro lado, a preocupao da arqueologia em construir um corpo terico enquanto disciplina autnoma tem feito seus tericos e pesquisadores se afastarem dos temas terico-metodolgicos mais polmicos, com cuidado de mover-se to-somente em terreno seguro. Enquanto que a segunda preocupao compreensvel e podemos dizer que, em certa medida, dela compartilhamos, a primeira revela, na melhor das hipteses, descaso em relao a trabalhos etnogrficos importantes que vm sendo desenvolvidos nos ltimos anos por antroplogos entre sociedades indgenas contemporneas ainda no totalmente aculturadas ou em processo de aculturao. Estudos etnolgicos recentes (Costa 1987; Dorta 1981; Illius 1988; Muller 1990, 1992; Ribeiro 1987a; Silva and Farias 1992; Velthem 1992; Vidal and Silva 1995) tm demonstrado que a arte para as sociedades indgenas tem um status totalmente diverso da arte como a conhecemos em nossa sociedade. Nas comunidades

indgenas, a arte se expressa invariavelmente em objetos que possuem utilidade: em utenslios, artefatos ou ainda adornos pessoais carregados de significado para o grupo. No existe o objeto artstico sem funo social. O arteso decora plasticamente objetos que possuiro utilidade para o grupo e a decorao ocorre em funo dessa utilizao. Essa relao entre arte e funo se d logicamente num contexto cultural em que no h tambm separao entre indivduo e grupo social, entre lazer e trabalho, entre direitos e obrigaes e, principalmente, onde no existe a propriedade privada. A esttica do artista a esttica do grupo. Os padres estticos do grupo, que se perpetuam pelas tradies, devem ser preservados e difundidos, uma vez que comunicam sobre a cosmologia e mitologia do grupo, sobre sua organizao social e sobre seu status de grupo social diferenciado em relao ao universo das outras comunidades e seres da natureza.

Na arte dos tempos modernos, h uma individualizao da produo artstica, ligada a conceitos de liberdade, criatividade e originalidade. Segundo Lvi-Strauss (in Charbonier 1989), essa individualizao crescente no se refere figura do criador, mas da clientela. Assim, em vez do grupo esperar que o artista produza os objetos necessrios s atividades coletivas, o indivduo adquire o objeto artstico segundo necessidades estticas no ligadas diretamente ao significado do objeto, mas capacidade de possu-lo. Ao perder sua funo significativa na medida em que no produzida para a sociedade-cliente, mas para o indivduo, a arte no funciona mais como linguagem, uma vez que esta um fenmeno essencialmente coletivo. Nas sociedades que no conhecem a escrita, a pintura e os grafismos so parte de um poderoso sistema de comunicao, como j salientamos, a respeito das tradies, dos mitos, da histria do grupo. Os desenhos muitas vezes representam momentos de uma epopia mtica e as figuras antropozoomrficas modeladas na cermica, pintadas em tecidos, esculpidas em madeira ou trabalhadas nos tranados so personagens que de alguma forma se ligam ao repertrio mtico. Esses mitos, invariavelmente, se referem ao tempo em que o homem era igual aos animais e explica porque as coisas se tornaram como so e devem continuar assim. Dentre os meios materiais utilizados pelo artista indgena como veculo de sua mensagem visual, a cermica e o ltico so os mais estudados arqueologicamente por causa de sua durabilidade. No caso da cermica, seu estudo reveste-se de grande importncia para a arqueologia porque sua utilizao est ligada a comportamentos culturais e sociais que caracterizam e diferenciam os diversos grupos culturais. As formas dos utenslios e sua decorao esto intimamente ligados aos contextos sociais em que esses objetos foram produzidos e utilizados. O estudo das culturas cermicas na Amaznia reveste-se de particular importncia, uma vez que na regio do baixo Amazonas encontram-se os stios cermicos mais antigos das Amricas e essa regio deve ter sido um dos focos de irradiao de tradies cermicas em direo ao leste e sul da Amrica do Sul (Brochado 1984, 1991; Roosevelt, et al. 1991). Alm disso, a cermica policrmica, sendo mais antiga no Baixo Amazonas, deve ter influenciado os estilos policrmicos que se desenvolveram a oeste, em regies amaznicas e andinas (Roosevelt, et al. op. cit.).

Nosso objeto de estudo a arte que se desenvolveu na Ilha de Maraj a partir do ano 400 A.D. e que chega at ns por meio dos resduos da atividade ceramista que se l se estabeleceu, segundo datas hoje amplamente aceitas, at 100 a 200 anos antes da chegada dos europeus ao continente. Esse material arqueolgico possui caractersticas que, se por um lado atraem a curiosidade do pesquisador, por outro lanam inmeras incertezas e colocam diversas dificuldades consecuo do trabalho de investigao cientfica. um material riqussimo em termos quantitativos e qualitativos, havendo inmeras peas que primam pelo requinte tcnico, com harmonia e singularidade de formas e designs, representando, sem dvida, uma das mais belas cermicas policrmicas da pr-histria recente das Amricas. Em contrapartida, no h etnografia sobre a sociedade que a produziu e que dela se serviu por cerca de

novecentos anos. Existem muitas dvidas sobre a origem desse povo e a razo de seu desaparecimento, assim como sobre o modo como viviam e como se adaptaram s complicadas condies fsicas e geogrficas da Ilha de Maraj. Num primeiro momento, colocamos como problema central da pesquisa a questo da simbologia e da iconografia na arte Marajoara. Pretendamos atravs dos smbolos e cones a serem identificados nas representaes pictricas e atravs de tcnicas de decorao plstica, onde tambm amplamente usada a modelagem, desvendar significados que contribussem para explicar inmeras questes levantadas desde as primeiras pesquisas na regio. A partir da consulta das diversas publicaes de arquelogos que escavaram nos stios-tesos de Maraj desde o sculo passado, percebemos que as colocaes feitas por esses pesquisadores a respeito dos significados das representaes artsticas eram simplesmente hipteses e

especulaes construdas em cima das evidncias coletadas nos stios, mas que nenhum estudo mais aprofundado e especfico sobre essas representaes havia sido feito. Essa situao bastante compreensvel, uma vez que havia uma grande quantidade de outras informaes empricas que necessitavam ser processadas, alm da necessidade de se estabelecerem dataes. Percebemos ento que nosso trabalho no poderia ficar distanciado da discusso a respeito dos problemas colocados a partir do resultado das escavaes, uma vez que entendemos que a arte se insere no contexto dos outros vestgios da cultura do grupo e deve ser fonte fundamental de informao sobre essa sociedade, assim como o so a constituio ssea, os padres alimentares, a localizao dos foges, dos stios-habitao, dos stios-cemitrios, dos

resduos da fauna e flora, enfim, de tudo aquilo que, de alguma forma nos comunica algo sobre a subsistncia e sobrevivncia do grupo. Mesmo utilizando o material j publicado a partir do resultado de escavaes, que traz, via de regra, boas ilustraes e fotos das peas cermicas, sentimos a necessidade de trabalhar de maneira mais prxima com uma amostra que, ao mesmo tempo em que fosse significativa dentro do universo das peas conhecidas, nos desse a oportunidade de manuse-las, medi-las, observar tcnicas, cores, espessuras e texturas, o que seria impossvel com material impresso. Alm disso, o fato de termos reproduzido graficamente os desenhos nos deu a oportunidade de observ-los melhor, de maneira a reconstituir a maneira como foram feitos originalmente, ou seja, observar a primazia e continuidade de traos, a ligao entre forma e decorao, o nvel de dificuldade das tcnicas, os relevos. O estudo da coleo Tom Wildi no s satisfez essas condies, inicialmente necessrias ao bom andamento da pesquisa, como teve o mrito de demonstrar as potencialidades do estudo de uma coleo museolgica. Com relao escolha e estudo dessa coleo, devemos agradecimentos especiais ao Prof. Dr. Jos Proenza Brochado, nosso orientador, que a indicou, e Prof. Teresa Fossari, diretora do Museu da Universidade Federal de Santa Catarina, que a colocou nossa disposio, ao mesmo tempo em que nos proporcionou boas condies de trabalho. Atualmente, h uma grande quantidade de material arqueolgico, em museus, que no analisada por falta de recursos materiais e humanos nessas instituies. Quando o material no est bem documentado, a situao ainda pior, pois no h interesse de outros estudiosos em despender tempo com objetos da cultura material com pouco potencial informativo. No entanto, importante que mais pesquisadores tomem conscincia de que o material descontextualizado no deve ser descartado, mas, antes, encarado a partir de abordagens diferentes. A coleo com que trabalhamos foi doada ao Museu Universitrio pela famlia de Tom Wildi, arquiteto aficcionado por objetos indgenas e em especial pela cermica policrmica, tendo empreendido, a partir da dcada de 1950, cerca de vinte viagens Ilha de Maraj, onde escavou pelo menos 7 stios, de onde recolheu abundante material para seu Museu particular. Apesar de no ser arquelogo e no utilizar quaisquer tcnicas arquelgicas nos seus trabalhos, obteve, nos anos em que visitou Maraj, o apoio dos fazendeiros da Ilha e de pessoas ligadas ao Museu Paraense Emlio Goeldi,

com os quais pde contar para encontrar os stios e desenterrar as peas de sua preferncia. A falta de registros sobre essas excurses aos tesos e sobre o material retirado faz com que a maioria das peas hoje no tenha procedncia conhecida. Trabalhamos, portanto, com a conscincia dessas limitaes. Se nossas concluses, em alguns momentos, ficam circunscritas ao universo da coleo, por outro lado surgem como indicadoras para pesquisas futuras. Alm disso, as metodologias testadas na coleo podem ser utilizadas em universos mais amplos e com material arqueolgico bem documentado. A partir das leituras realizadas e incentivados pela quantidade enorme de questionamentos que surgiram a partir do levantamento dos dados empricos, sentimos a necessidade de ampliar nossa discusso para alm do simples cotejamento dos nossos dados com o que nos fornecia a etnografia. Atravs de uma aproximao com os dados etnogrficos pode-se verificar que o desenvolvimento de determinadas tcnicas ceramistas esto ligadas a prticas culturais especficas. A partir disso pode-se inferir comportamentos e padres culturais de uma dada sociedade. Mas, a partir de nosso entendimento da arte indgena enquanto um sistema de significaes, sentimos a necessidade de fazer tambm uma discusso terica sobre as potencialidades do estudo da organizao social de povos pr-histricos atravs da arte arqueolgica. A complexificao das atividades rituais sugerida pelo grau de

desenvolvimento da cermica ligada a prticas funerrias invariavelmente leva a hipteses a respeito das formas de organizao social. A partir de trabalhos de campo realizados desde o sculo passado, surgiram algumas teorias a respeito do desenvolvimento histrico social do povo Marajoara com relao a sua origem, padres de assentamento e forma de organizao social. At a dcada de 1960 e mesmo 1970, aceitava-se a teoria amplamente defendida por Meggers e Evans (1957) de que na Ilha de Maraj ter-se-ia estabelecido um povo vindo das terras andinas, que trouxe a desenvolvida tecnologia cermica consigo, mas que no logrou permanecer por muito tempo a, onde teria entrado em decadncia devido s condies climticas e geogrficas adversas. Muitos pesquisadores colocaram, nos anos que se seguiram, essa teoria em dvida; no entanto foi Anna Roosevelt que, a partir dos anos de 1980, passou a

defender sistematicamente a teoria de um desenvolvimento autctone, este corroborado pelas dataes antigas encontradas e por evidncias arqueolgicas e etnogrficas

fornecidas por outros povoamentos na Amaznia. Apesar de defender a tese de que em Maraj se desenvolveu uma civilizao que se organizava na forma de cacicado, como se observa em outras regies das Amricas, a arqueloga admite que as evidncias no so suficientes para comprov-la (Roosevelt 1991). claro que as pesquisas arqueolgicas em Maraj so ainda insuficientes e que na medida em que se incrementarem as prospeces, escavaes e anlises muitos dados novos devero vir tona. Entretanto, pensamos que a falta de dados no justifica a tentativa de encaixar a sociedade Marajoara dentro de um esquema evolutivo tradicional e ligar automaticamente uma complexificao ritual e uma patente especializao das tarefas entre os membros do grupo a uma idia de hierarquia aos moldes dos cacicados. Sabemos que os produtos da cultura material de sociedades do passado invariavelmente indicam a ocorrncia de determinados padres culturais do grupo. Entretanto, essas associaes no so sempre to lgicas e diretas, e a enorme diversidade do desenvolvimento social e cultural das sociedades, apesar das condies impostas pelo meio ambiente, tm demonstrado que esse jogo no tem regras to fixas assim. Trabalhos recentes (Hays 1993; Yoffee 1993) lanam novas perspectivas para a discusso sobre a relao entre cultura material e organizao social. Queremos, nesse trabalho, tambm confrontar os dados disponveis sobre Maraj com as novas perspectivas que se avizinham. Antes de tentar encaixar a sociedade Marajoara em classificaes tradicionais do desenvolvimento social, pretendemos discutir suas especificidades e lanamos a hiptese de que o povo que produziu a cermica que aqui estudamos experimentou um desenvolvimento diversificado, tendo em vista as condies ecolgicas e histricas que se estabeleceram na Ilha na poca de sua ocupao. O exame detalhado dos motivos decorativos nos utenslios cermicos da coleo proporcionou a identificao de determinadas representaes claramente icnicas, que foram relacionadas com diversas caractersticas fsicas dos vasilhames, buscando regularidades. O estudo das representaes antropozoomrficas nas urnas funerrias, onde, para a identificao de espcies animais, contamos com o auxlio de bilogos, lana bases para estudos futuros acerca da mitologia na sociedade Marajoara. A partir da comparao entre cones e motivos geomtricos aparentemente abstratos utilizados na arte Marajoara, lanamos a hiptese de que essa arte tenha sido

na verdade uma linguagem visual iconogrfica, a exemplo do que se observa em estudos etnogrficos em sociedades indgenas atuais. Essa linguagem ou sistema de significaes socialmente compartilhado teria uma gramtica estrutural com regras de funcionamento determinadas a partir das relaes entre seus termos constitutivos. Se no possvel determinar significados, seria interessante estud-lo enquanto um sistema lingstico coerente. Para essa tarefa contamos com o embasamento terico-etnogrfico fornecido pelos trabalhos de Lvi-Strauss (1975; 1978; 1987)1, Munn (1962; 1966; 1973), Ribeiro (Ribeiro 1987a, b, 1992), Velthem (1992) entre outros. Isolamos, ento, possveis unidades mnimas de significao, obtidas atravs da comparao entre os diversos motivos e padres decorativos, buscando sua expresso estrutural. A diviso dos captulos se deu em funo das problemticas e hipteses colocadas acima. O primeiro captulo apresenta uma reviso bibliogrfica dos trabalhos etnogrficos e etnolgicos ligados s manifestaes artsticas indgenas e discute os conceitos tericos da semitica e sua relao com a arte. No segundo captulo realizamos um levantamento sobre o trabalho arqueolgico em Maraj relativo Fase Marajoara e discutimos as teorias e mtodos analticos empregados nos diversos estudos publicados. O terceiro captulo traz um relatrio do trabalho emprico realizado junto coleo Tom Wildi, com as conseqentes anlises e concluses. O quarto captulo apresenta nossa proposta de anlise da arte cermica Marajoara como uma linguagem iconogrfica, fazendo parte de um sistema de organizao social eficaz, complexo e coerente. As pranchas com desenhos e fotos encontram-se no Captulo III, onde foram distribudas na ordem em que so mencionadas no texto. Os desenhos foram feitos por ns e as fotografias so de Luiz Carlos dos Santos. Cada captulo possui tambm uma concluso referente s principais questes levantadas, de modo que a concluso final foi elaborada com carter de fechamento e possui um sentido mais abrangente. Ficar claro nas prximas pginas, ainda que no completamente manifesto, que defendemos - parafraseando Geertz (1978) - um conceito semitico de cultura. E se essa Dissertao no se atm unicamente aos dados fornecidos pela coleo

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A obra de Lvi-Strauss sobre essa questo bastante mais ampla e foi estudada tambm atravs de obras de outros autores, que constam da bibliografia.

trabalhada foi porque a utilizamos tambm como um exerccio de reflexo sobre as possibilidades interpretativas do trabalho arqueolgico. Esperamos, finalmente, que o resultado de nosso trabalho possa incentivar, de alguma forma, o estudo de colees museolgicas. Alm disso, ficaremos satisfeitos se esse trabalho tiver servido para contribuir para o estudo das linguagens visuais em sociedades arqueolgicas e somar-se, ainda que modestamente, aos esforos dos arquelogos que se dedicam ao estudo da pr-histria amaznica.

CAPTULO I

ARTE INDGENA E SIGNIFICADO

Certa vez, um moo saiu para pescar, assim mandado pelo Inca. Encontrou pesca abundante, como era comum nos tempos antigos, e seguiu pescando uma infinita variedade de peixes e tartarugas. Fazia muito calor e o sol estava alto. O pescador, ento, avistou ao longe uma bela mulher e quis conhec-la. Caminhou circundando o curso das guas, mas a areia quente lhe queimava os ps. Pegou ento galhos molhados pela cheia e passou a caminhar sobre eles, sempre recolocando-os sua frente. A bela mulher corria sobre a terra quente e seus ps queimavam, pois no conhecia o proceder do homem. Assim ferida ela caiu desmaiada, sendo alcanada por seu perseguidor. Ele queria t-la salvo, mas era tarde. O homem contemplou a jovem morta. Nunca havia visto um rosto e um corpo mais bonitos: estava enfeitado por estranhas pinturas, iguais s suas vestes. O homem a tomou nos braos e a levou a seu povo. Todos viram e admiraram aquela beleza inanimada. Dos povoados prximos chegavam e olhavam fascinados. Primeiro vieram os Shipibo, depois vieram os Shetebo, os Conibo, os Huaria Pano, os Piro; todos ao redor dela. A desconhecida estava vestida com vrios panos de algodo finamente ornados. Os Shipibo se aproximaram do primeiro, que tinha o estilo em cruz; os Conibo tomaram o de linhas curvas; os Huaria Pano, os motivos folhados; os Piro pegaram o com linhas quebradas. Naquela poca as mulheres desconheciam as pinturas. Foi assim que aprenderam suas artes: bordados, pinturas, decorados dos corpos, vestidos, cermicas e armas. Dizem que a desconhecida foi enviada por Cori Inca, o Inca bom (Mito Shipibo, traduzido de Bertrand-Rosseau 1983).

A estria acima transcrita relembra um acontecimento do passado mtico de fundamental importncia para essas tribos, pois se refere ao recebimento dos desenhos que iro decorar seus corpos, vestimentas, implementos, armas, utenslios e adornos. Ao mesmo tempo em que os desenhos possibilitam seu relacionamento com o mundo sobrenatural, seu recebimento tem o sentido da ddiva: significa que os povos que os receberam so especiais e privilegiados em relao a outros que passam a ser vistos como atrasados ou selvagens. Alm do que o mito representa aos Shipibo e outras tribos, outro fato de extrema importncia que chama nossa ateno o de que os desenhos que ento passam a ser caractersticos do estilo de cada tribo no foram por eles inventados, e sim recebidos por meio de um acontecimento mtico. Os desenhos, portanto, no so aleatrios ou produto da criatividade do artista. Ao contrrio, quando cada grupo se apodera de uma parte do vestido da moa morta, apropria-se tambm de um estilo esttico que passa a ser identificado, a partir daquele momento, enquanto estilo tnico, estreitamente ligado personalidade do grupo. Visto de forma genrica, o mito sempre narra uma histria que teria acontecido realmente, em um passado remoto. Torna-se uma histria sagrada que, recontada por sucessivas geraes, muitas vezes reinventada, sem perder o contedo original. A recorrncia de histrias mticas semelhantes em povos to diferentes quanto distantes geogrfica e historicamente um fato que levou estudiosos a analisarem os mitos em busca de seu carter universal. Lvi-Strauss (1975) observou que a estrutura dos mitos se mantm a mesma em culturas distintas, variando apenas os elementos bsicos a partir dos quais se estabelecem as relaes que formam o corpo da narrativa. Portanto, apesar da histria mtica ser irreal e aparentemente sem lgica, pois nela tudo pode acontecer, ela encerra um sentido que reside na maneira pela qual os elementos encontram-se combinados entre si. A nosso ver, um mito estruturalmente semelhante ao dos Shipibo o que trata da origem da obteno da pintura corporal utilizada pelos Wayana2: o mito da lagarta Kurupak. Vale a pena transcrev-lo, assim como foi ouvido por Velthem (1992:53): Havia um tempo em que Wayana no se pintava. Certo dia, uma jovem ao se banhar viu boiando na gua vrios frutos de jenipapo recobertos de figuras. - Ah! Para eu me pintar - exclamou. Nessa2

Grupo indgena de lngua Carib, que habita a regio norte do Par, Guiana Francesa e Suriname.

mesma noite, um rapaz procurou-a na aldeia at a encontrar. Tornaram-se amantes, dormindo juntos noite aps noite. Entretanto, ao alvorecer, o jovem sempre desaparecia. Uma noite, contudo, o pai da moa rogou-lhe que permanecesse. E ele ficou. Quando clareou perceberam que seu corpo era inteiramente decorado com meandros negros. Como o acharam belo, pintou a todos, ensinado-lhes esta arte. Um dia o jenipapo terminou. O jovem desconhecido chamou a amante e foram sua procura. Prximo ao jenipapeiro, pediu-lhe que o aguardasse, enquanto colhia os frutos. Ela no obedeceu, foi v-lo subir na rvore. O que viu, entretanto, no foi o amante, mas uma imensa lagarta, toda pintada com os mesmos motivos. Enfurecida, disselhe para nunca mais voltar sua aldeia, pois seus irmos iriam mat-lo. Arrecadou os frutos que estavam cados no cho e regressou, sozinha.3 Em seu trabalho de campo junto aos Wayana, Velthem (op.cit.) observa que os padres decorativos utilizados, apesar de sua temtica abstrata, representam uma viso cosmolgica socialmente compartilhada e so condio de valorizao tnica. Para esse povo, no s a pintura corporal representa humanidade e socializao, como os objetos, para se tornarem sociais, devem ser decorados com os desenhos, que so tidos como sobrenaturais. Tambm os Apalai, outro grupo de lngua Carib, em processo de fuso com os Wayana, remete a obteno dos motivos de suas pinturas a um acontecimento mtico. Uma imensa serpente, denominada Tuluper, mais tarde derrotada pelos Wayana, impedia que os dois povos se relacionassem pacificamente. Durante o combate, os Wayana observaram suas pinturas negras e vermelhas, enquanto que os Apalai, chegando aps o combate e encontrando a serpente morta, s puderam observar um dos lados, de onde copiaram as pinturas (Velthem 1992, 1994). Existem para muitas outras tribos explicaes semelhantes para a origem dos padres estticos, o que justifica o carter sagrado conferido decorao dos objetos considerados mais importantes. Assim, no s a decorao nos objetos com as pinturas, mas tambm os adornos corporais fazem parte dos ensinamentos que, uma vez transmitidos pelos seres mticos e adotados pela tribo passam a se constituir em sua marca distintiva e a se transmitir atravs das tradies.

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Entre os Waipi, inimigos histricos dos Wayana-Apalai, o mito narrado praticamente da mesma maneira. Ao invs da lagarta, o rapaz na verdade era uma anaconda que volta sua condio natural aps ser morto pelos irmos da moa. (Conforme GALLOIS, 1992).

A importncia e a obrigatoriedade em se perpetuarem as tradies estticas no impede a manifestao da criatividade do arteso, mas a ela estabelece limites. A possibilidade de conferir ao objeto sua marca individual se exerce, ento, na estrita medida das possibilidades colocadas pela esttica do grupo. O arteso pode variar dentro do que tradicional e moralmente aceito pelo grupo, e essa possibilidade de variao pode-se dar de formas distintas nas diversas culturas. Pesquisando sobre os Asurini do Xingu, Mller (1992:247) observa de que maneira se d a atuao da artista: Da mesma maneira como o Xam se individualiza na identificao com seres sobrenaturais, a artista cria seu prprio desenho e o nomeia. Ou, ainda, pode-se destacar pelo esmero artstico da simetria, qualidade tambm individual, identificandose com a obra. Por outro lado, alm desse significado particular, esta ser interpretada pelos demais membros do grupo, e os desenhos sero reconhecidos como esteticamente aceitveis e com significado, de acordo com as regras formais e padronizao visual dessa cultura em particular. Desde as pesquisas dos etnlogos alemes Koch-Grnberg e Karl von den Steinen4 no final do sculo passado, diversos antroplogos, em suas pesquisas de campo, tm solicitado aos ndios que faam desenhos em papel, inquirindo sobre seus significados, com o intuito de preservar a cultura e poder estud-la. Adotando esse procedimento entre os Xikrin do Catet, Vidal (1992) observou que as mulheres, que so as que tem a tarefa cotidiana de desenhar e pintar, geralmente repetem os mesmos padres culturalmente aprendidos, buscando, entre as formas geomtricas conhecidas, as que melhor representam aqueles objetos ou seres que lhes so solicitados a desenhar. Os homens, ao contrrio, desenham mais livremente, fazendo uso tanto de formas abstratas como figurativas, com uma grande variedade de possibilidades. De acordo com o mito Shipibo, quando cada tribo apoderou-se de um pedao do vestido pintado que encobria o corpo da enviada do Inca, tomaram para si um estilo esttico: os Shipibo se apoderaram do estilo em cruz, os Conibo do de linhas curvas, os Huaria Pano os motivos foliados, etc. Entre o grupo atualmente conhecido como Shipibo-Conibo, a decorao de seus objetos conserva sempre esse sentido da revelao. Seu objeto mais sagrado o grande tacho (chomo) utilizado para armazenar sua bebida diria, a chicha, ou a ayahuasca, bebida alucingena usada em rituais. Os4

Koch-Grnberg registrou em papel desenhos feitos em petroglifos e pinturas corporais entre ndios do noroeste brasileiro. Steinen recolheu desenhos entre os ndios do Alto Xingu (Conforme Koch-Grnberg, 1910 e Steinen, 1940, apud Ribeiro, 1992:44).

desenhos que adornam as paredes externas do chomo so revelados ao xam pelos espritos, que ento os transmite s mulheres encarregadas de pint-los. Durante os rituais, seres mticos transmitem, atravs de cantos, esses desenhos aos xams, que os vem (os desenhos) e os cantam, num fenmeno que Illius (1988) chama de alucinao sinesttica. Existen claras pruebas de que las percepciones sinestticas provocadas por la utilizacin de la droga (que produce, entre otras, simultneamente sensaciones pticas, acsticas, olfativas y tctiles) se utilizaron como patrn para la conservacin de melodas y - a la inversa - que melodas servieron como codificacin a los diseos, y que en algunos casos se utilizan as en la actualidad (Illius, op.cit.:2). O xam transcrevia os desenhos assim recebidos em tiras de crtex (segundo Illius, em algumas verses seriam os prprios espritos que faziam os desenhos) que eram entregues s mulheres, que os reproduziam nos vasos. Os desenhos possuem uma ntima ligao com a melodia tambm ensinada pelo xam. Como os chomos antigamente eram muito grandes, era comum que mais de uma mulher o pintasse, freqentemente a mestra e sua aluna. Por isso, para que a pintura como um todo tivesse um resultado harmnico, elas entoavam a melodia sagrada (op.cit.). Os desenhos, assim dispostos no vaso, representam a viso cosmolgica da tribo e so um veculo de comunicao de seus valores e tradies, podendo ser utilizados para o ensino-aprendizagem dos mais jovens. Assim como o xam Shipibo recebia os desenhos sobrenaturais, chamados quen, por meio de um ritual em que utilizava a droga ayahuasca, para diversas outras tribos a execuo de desenhos est ligada ao transe alucingeno. Essas alucinaes visuais foram percebidas e relatadas no somente por ndios, mas tambm por europeus e americanos que experimentaram a ayahuasca. Alm da viso de uma aura em torno das pessoas, a droga faz com que visualizem, por algum tempo, figuras geomtricas abstratas que cobrem a superfcie dos objetos. Segundo depoimentos colhidos pelo autor, no princpio e final do transe os quen so percebidos como motivos retilneos, enquanto que no auge da alucinao so predominantemente curvos. Uno de los efectos del ayahuasca es una micropsa e macropsa temporarias. Los quen no se hallan adaptados a los contornos y superficies del paisaje del modo en que los quen son adaptados

en la alfarera a la curvatura del recipiente, sino que permanecen en su dibujo como un montaje sandwich de las diapositivas, independiente del fondo. (Illius, 1988:10) interessante o fato de os desenhos percebidos no transe alucingeno no serem completamente adaptados aos limites dos objetos sobre os quais se projetam; isso seria uma explicao para uma caracterstica da decorao observada em diversos objetos cermicos, onde se tem a impresso de que os motivos, nas extremidades, esto incompletos. Reichel-Dolmatoff (1976 apud Ribeiro, 1992) constatou que os grafismos produzidos pelos ndios Tukano estavam relacionados a vises luminosas produzidas pelo estmulo fisiolgico de drogas como o caapi ou o yaj. Ele prprio ingeriu a droga e identificou as imagens observadas como sendo os fosfenos de Knoll. Max Knoll (1963) identificou imagens mais ou menos padronizadas que se formavam no campo tico, produzidas espontaneamente por estmulos qumicos neurolgicos a partir do fechamento dos olhos ou da ingesto de certo tipo de drogas, a que deu o nome de fosfenos (Ribeiro 1992:46). Esses signos ideogrficos, formados na retina do olho teriam, entretanto, um significado culturalmente determinado: Pode-se pensar que, em um estado de alucinao, a pessoa projete sua memria cultural-visual sobre a confusa tela de cores e formas e veja ento certos motivos e personagens (ReichelDolmatoff, 1976 apud Ribeiro, 1992:47). Informantes do autor declararam que no s os grafismos, mas tambm adornos e plumagens rituais teriam sido reproduzidos a partir de vises alucingenas. Os Siona5 tambm relatam que seus desenhos tm origem no que vem a partir dos rituais alucingenos. So motivos geomtricos bsicos que se combinam de forma a comporem um sem nmero de desenhos. Antigamente, rituais coletivos que envolviam a ingesto de Yaj eram comandados pelo xam, que deveria guiar as pessoas em seu contato com o mundo dos espritos. As vises eram de certa forma padronizadas, uma vez que eram estimuladas por desenhos conhecidos (conforme Langdon 1992).5

Os Siona hoje esto divididos em pequenos grupos, ao sul da Colmbia e norte do Equador, quase que completamente aculturados.

Na observao do ritual yaj notria a tentativa de se controlar a experincia. Cada vez que a droga ingerida, existe uma inteno de se atingir uma determinada viso, como por exemplo, contatar o esprito da caa, descobrir a causa de uma doena, adivinhar o futuro etc. Cada esprito tem vises, cores e msicas prprias. O objetivo do ritual permitir que todos os membros experimentem o que Dobkin del Rios (1972) chamou de viso estereotpica, e os Siona se utilizam de diversos meios para conseguir isso: na escolha da classe de yaj a ser preparado, no mtodo de preparao, nas msicas, cantos e danas do mestre xam e na criao de motivos de desenhos alucingenos que so parte da vida cotidiana e ritual (op.cit.:71). Tambm nas vises Siona so identificados os fosfenos de Knoll, e ainda nesse caso essa caracterstica universal proporcionada pela droga interpretada de acordo com padres culturais. Nesse contexto, a arte no apenas um mecanismo instigador da experincia qualitativa pela qual a pessoa passou, mas tambm uma criadora da experincia real. Eles recriaram as formas geomtricas experimentadas nas vises de maneira estilizada e padronizada. Desse modo, quando esto sob os efeitos do Yaj, percebem os efeitos dos fosfenos de acordo com formas culturalmente reconhecidas (Langdon, 1992:86). Todas essas colocaes trazem como conseqncia a necessidade de que se construa um conceito de arte em funo justamente da maneira como ela compreendida nas sociedades indgenas. Falamos de desenhos, de pinturas, de esttica. Vimos como a esttica a esttica do grupo, uma esttica herdada e tradicionalmente aceita e perpetuada. Podemos dizer que a arte nas sociedades indgenas existe, mas cumpre uma funo social e se insere no mbito de todas as outras expresses culturais humanas. () o sentimento que as pessoas tm pela vida aparece, certamente, em muitos outros lugares alm de sua arte. Aparece na sua religio, moralidade, cincia, comrcio, tecnologia, poltica, divertimento, leis, mesmo na maneira pela qual eles organizam, no dia-a-dia sua existncia prtica. Falar de arte no falar meramente de tcnica ou espiritualizao da tcnica - mais do que isso - coloc-la no contexto destas outras expresses das pretenses humanas e do padro de experincia que elas sustentam coletivamente (traduzido de Geertz 1983:96).

Colocar a arte no contexto dessas outras expresses humanas, nas sociedades indgenas, significa admiti-la como parte inseparvel do objeto que a contm. O vaso para chicha, dos Shipibo-Conibo, torna-se um chomo quando est pintado com os desenhos sagrados, chamados quen. So os quen que conferem personalidade e utilidade ao vaso. Os quen tm funo social e so to essenciais ao objeto quanto o barro, o tratamento de superfcie, ou a queima. So os quen que tornam o chomo adequado, sob todos os aspectos, para conter a chicha ou a ayahuasca. Da mesma forma, uma vasilha boa para levar oferendas em um ritual deve ser feita de determinada maneira e carregar os smbolos plsticos e artsticos que fazem daquela pea um utenslio bonito e dentro de padres estabelecidos, adequado queles objetivos. Os objetos a que chamamos artsticos tm, portanto, nas sociedades indgenas, no s significado esttico, mas tambm social, tcnico, religioso, moral, tnico e simblico. Vidal e Silva (1995) mostram que as sociedades indgenas no diferenciam tecnologia de arte, trabalho de lazer, belo do bom, etc. As prprias culturas indgenas no recortam, dentro de sua experincia coletiva, uma esfera separvel que poderia ser qualificada de cultura material ou artstica (Vidal and Silva 1995:373). Essas autoras observaram que para os Kaxinaw, do Acre, bom, saudvel e bonito so sinnimos; tambm os Xavante, do Mato Grosso, no diferenciam bom e bonito. Essa concepo de esttica ligada no ao belo, mas ao bom, saudvel e til, obriga a que se reflita sobre o conceito de arte indgena descolados de uma perspectiva cronocentrista. No possvel conceber o arteso inspirado traando cuidadosamente linhas a seu bel prazer, ou criando novas formas em arroubos de criatividade, ou ainda imprimindo sua marca individual num objeto ritual. Ainda que para alguns autores, como Velthem (1994), uma compreenso tnica da arte indgena seja corrente entre os acadmicos, o texto de Kroeber (1987:65) mostra como at pouco tempo alguns especialistas tinham dificuldade para perceber as especificidades das manifestaes artsticas indgenas: Os nativos da Amrica do Sul no conseguiram atingir qualquer das artes realmente grandes da histria humana, embora

diversos desenvolvimentos aproximem-se deste estgio. (...) O que falta mais, no todo, liberdade e imaginao. (...) So frgeis no acrescentar interesse e habilidade na representao, que levaria a produtos como os dos Maya - ou egpcios e chineses nos quais a semelhana com a vida, uma aproximao s realidades da natureza, conseguida com a reteno bem sucedida tanto da expresso decorativa quanto da religiosa. (...) Em geral, as expresses estticas sul-americanas devem ser caracterizadas como deficientes no que diz respeito inspirao, com algo de pedestre em sua qualidade, como se seus ps permanecessem um pouco atolados na tecnologia que uma predisposio essencial de toda arte. Os artistas sentiam predominantemente com suas mos, mais do que com emoo esttica que lhes controlasse a habilidade manual. E sobre a arte Marajoara: Pode ser melhor entendida (...) como uma cultura que, j possuidora de uma competente arte cermica, conseguiu produzir um ou dois indivduos iluminados que acrescentaram novas idias e tratamentos e, por isso, abriram oportunidades para que outros artistas dotados tambm fizessem suas contribuies, at que o estilo desenvolvido se tornasse propriedade de ceramistas mais imitativos. H pouca indicao da arte ter sido conectada com um sistema maior de simbolismo mitolgico ou ritual, como o Chavn certamente era: suas referncias parecem ser essencialmente funerrias (Kroeber, op.cit.:107). Kroeber demonstra uma viso iluminista da arte e equivoca-se ao aplic-la esttica indgena sul-americana. Alm de considerar o artista indgena como um artista menor e desvincul-lo de seus propsitos, no percebe que a arte cumpre um papel social e cultural peculiar em cada grupo indgena estudado. Estudos antropolgicos demonstraram que smbolos clnicos so usados para identificar as pessoas que pertencem a determinado grupo social e estas so reconhecidas pelos objetos que trazem consigo. A arte dos tranados Mundukur ilustra bem esse fato. Nessa tribo, um dos mais importantes objetos tranados o cesto cargueiro chamado Iti, utilizado para transporte de gneros alimentcios ou para carregar quaisquer objetos em viagem. Na sua forma, todos os Iti so semelhantes, mudando apenas os motivos decorativos e a ala de sustentao. Entretanto, feito pelo homem para ser usado pela esposa ou filha, os motivos aplicados na parte externa do cesto, assim como a cor da ala determinam o lugar que ocupa na sociedade o homem que o confeccionou e a mulher que o usa. Os motivos, chamados kurp, informam

sobre o cl patrilinear a que pertence quem o confeccionou. A cor da ala, feita pelas mulheres, corresponde metade exogmica a que pertence a mulher. A organizao social reflete-se, portanto, no Iti, atravs dos quais se revelam os cls, que regulam casamentos e relaes sociais (Velthem 1994:89). J entre os Bororo, a arte plumria no possui apenas o sentido esttico, mas carrega principalmente um forte significado social. O nmero e tipo de adornos plumrios utilizados durante cerimnias e rituais variam de acordo com o sexo e posio social. O tipo de ave de que provm as plumas, sua cor e disposio revelam os cls e sub-cls a que pertence seu usurio e so smbolo de status. Alm disso, determinados artefatos possuem conotao mgica, pois podem ter o poder de curar ou causar doenas e morte. Especificamente o Parko, artefato plumrio estudado por Dorta (1981) construdo cuidadosamente pois tem o sentido de um cdigo que comunica visualmente o grau de prestgio e influncia de seus possuidores na vida da aldeia. Nas sociedades grafas, a arte cumpre, portanto, o papel de transmissora do conhecimento cosmolgico, mitolgico e das tradies. Conforme constatado por Illius (1988), os desenhos em torno do chomo (o recipiente para chicha dos Shipibo-Conibo) demarcam reas cosmolgicas diferenciadas. A decorao externa do recipiente o divide em quatro regies: a superior, ou o pescoo do vaso representa, atravs de desenhos finos e curvilneos, o mundo superior, a regio mais elevada do cosmos. Abaixo do mundo superior h uma regio onde imperam os desenhos que so vislumbrados nas alucinaes produzidas pela ayahuasca, um desenho mais geomtrico, largo e retilneo. Na terceira regio, abaixo da metade do chomo, se encontra o mundo intermedirio, que simboliza a terra e possui desenhos de qualidade comum. A parte inferior no possui desenhos e representa o mundo aqutico e subterrneo. O recipiente usado pelo xam para a instruo dos jovens. Os desenhos possuem riqueza de detalhes sobre os seres mticos que habitam os diferentes mundos e as relaes que guardam entre si. Alm disso, h diversos exemplos buscados na etnografia que mostram que h o entendimento de que a decorao do corpo e dos objetos significa o que ns entenderamos por civilidade ou cidadania, o que para eles entendido como tornar-se humano.

Assim como a decorao de recipientes lhes confere utilidade e lhes d status cultural, muitas tribos acreditam que a pintura corporal est ligada humanidade. Para os Shipibo-Conibo, seus desenhos geomtricos, chamados quen, so smbolos de sua identidade tnica; os diferencia tanto dos no ndios como dos ndios selvagens ou no civilizados (Illius, 1988). Ao contrrio dos animais, como as cobras, as onas, os

peixes, o homem no nasce com o corpo decorado. Precisa ento pint-lo de acordo com caractersticas que o tornam humano. Os Yoruba, por exemplo, decoram com os mesmos motivos o corpo e seus utenslios: Linhas, de vrias profundidades, direes e comprimentos, cortam suas bochechas, formando cicatrizes, servindo como maneira de identificar a linhagem, tornar-se atraente, e expressar status; e a terminologia do escultor e do especialista em cicatrizes correspondem precisamente uma outra. Mas isso vai alm. Os Yoruba associam linhas e civilizao: Esse lugar se tornou civilizado, significa, literalmente, na lngua Yoruba, esta terra tem linhas sobre sua face (traduzido de Geertz, 1983:98) A maneira como combinam as linhas materializa uma forma de experincia, transportando para o mundo fsico suas idias, onde podem ser vistas (op.cit.:99). Os Xavante6 tambm vem a pintura corporal como marca de humanidade. Alm disso os motivos desenhados representam a ligao cosmolgica do grupo com seres mticos e mostram distines sociais (Mller 1992). Os Xerente7, por sua vez, utilizam a pintura corporal como signo de identidade clnica. No entanto, pintam os corpos apenas em ocasies cerimoniais. Segundo Silva e Farias (1992), existem dois motivos bsicos na pintura: o trao e o crculo que, combinados de diversas maneiras e dispostos em locais especficos do corpo formam padres exclusivos e comunicam sobre que cl e a que metade exogmica patrilinear pertence o indivduo. Assim, a pintura corporal demonstra no apenas status, mas revela as relaes sociais. As crianas at 2 ou 3 anos ainda no utilizam as pinturas clnicas dos adultos e podem andar pintadas cotidianamente com os padres decorativos da ona (para os recm-nascidos) e do tamandu (para os maiores).

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Povo de lngua J, espalhados por vrias reservas no Mato Grosso. Povo de lngua J que habita o norte do Estado de Gois.

Os Asurini8utilizam a pintura corporal principalmente para marcar momentos especficos da vida dos indivduos. Os mortos so pintados com urucum, enquanto os recm-nascidos so pintados com o jenipapo; nesse caso a pintura marca do social (Andrade 1992)9. Andrade observa que a pintura corporal a nica forma de perceber diferenas internas, uma vez que no existem hierarquias sociais de nenhuma forma: assim, a pintura marca etapas do ciclo vital ou eventos importantes. Tambm identifica se o indivduo casado ou tem filhos. Existem diversos padres decorativos que podem ser utilizados na pintura corporal e h uma lgica que determina sua combinao. Apenas trs desses padres so utilizados na pintura da cermica, mas nunca so combinados entre si. O fato de esta tribo estar em processo de aculturao impediu que se colhessem informaes mais precisas sobre o significado e origem dos desenhos. No entanto ntida a tendncia de perpetuar-se a tradio e esta determina o que certo ou errado no uso dos padres decorativos. O estudo de Lux Vidal (1992) sobre os Kayap-Xikrin do Catet vem somar-se aos exemplos de tribos indgenas que utilizam a pintura corporal enquanto signo de socializao. De acordo com os acontecimentos sociais, no s rituais como cotidianos, a pintura corporal assume padres diferentes que simbolizam processos e determinam posies sociais. Estabelece-se uma correspondncia entre o tico e o esttico - a pele social, sobreposta pele biolgica (Turner 1980). Da mesma forma, os ornamentos corporais, como os discos auriculares e labiais, comunicam sobre os valores do grupo e conferem status aos seus usurios. Mesmo sendo ornamentos utilizados por vrios grupos indgenas, certamente no possuem o mesmo significado para todos. O ato de furar orelhas e lbios freqentemente aparece ligado a ritos de passagem e o significado desses smbolos s pode ser entendido a partir de suas relaes com esses rituais e outras caractersticas da cultura. Seeger (1980) afirma que a ornamentao de um rgo pode simbolizar a importncia que esse rgo tem em uma sociedade. Ele observou que, entre os Suy10ndios da famlia lingstica Tupi-Guarani, que habitam a Reserva do Trocar, nas margens do Tocantins, prxima a Tucuru. 9 Entre os Wayana estudados por Velthem (1992), a pintura corporal lisa com urucum tem o sentido de socializao e estabelece uma base sobre a qual sero feitos os desenhos. Entre os Kayap (VIDAL, 1992) tambm o recm-nascido pintado com jenipapo aps a queda do coto umbilical, como marca de status de pessoa humana. 10 Os Suy so uma tribo de lngua J que habita o Parque Nacional do Xingu, ao norte do Mato Grosso. O autor realizou trabalho de campo junto a essa tribo entre os anos de 1971 e 1973.8

o ornamento de orelhas e boca estava relacionado importncia da audio e da fala para aquela tribo, enquanto faculdades eminentemente sociais. Eles afirmam que a orelha furada para que as pessoas possam ouvir-compreender-saber. Dizem que o disco labial simblico de, ou associado com, agressividade e belicosidade, que so correlacionadas com a auto-afirmao masculina, a oratria e a cano (op.cit.:51). Seeger percebeu que os Suy entendiam o ouvido como o depositrio do conhecimento apreendido, em vez do crebro. A boca, por sua vez, est ligada grande importncia dada ao canto, envolvido em rituais e cerimnias onde a viso no importante: os homens cantam no escuro, andando pela aldeia, enquanto as mulheres recolhem-se s suas redes para ouvi-los at o amanhecer. Os ornamentos corporais, acima de tudo, tornam os conceitos intangveis, tangveis e visveis. Os discos auriculares e os discos labiais dos Suy so smbolos com uma variedade de referentes que unem os plos dos fenmenos naturais (os rgos e os sentidos) com os componentes da ordem social e moral. Podemos dizer que os Suy internalizam os seus valores literalmente corporificando-os atravs das manifestaes simblicas que so seus artefatos corporais. (Seeger 1980:55). Tendo em vista suas caractersticas peculiares, Velthem faz restries utilizao da expresso arte indgena. Por um lado, o vocbulo arte encerra toda uma gama de significados que interiorizamos a partir da nossa cultura ocidental individualista e que no se adeqa ao carter comunitrio e utilitrio da arte nas comunidades indgenas; por outro, pressupe um julgamento de valor que muitas vezes distingue produes mais elaboradas de outras mais rudes (Velthem 1994:86). Silver (Silver 1979:268 apud Velthem, op.cit.) prope como soluo a utilizao do conceito de etnoarte, que faz referncia tanto a uma tradio plstica determinada como contextualiza a arte scio-culturalmente. No s o etngrafo, o etnlogo ou o arquelogo percebem a etnoarte como um sistema de comunicao, na medida em que atravs dela identificam uma rede de significados culturais, como nas prprias comunidades indgenas os desenhos e os grafismos so utilizados como se fossem uma linguagem escrita.

As gravuras rupestres pr-histricas encontradas na Amrica, Austrlia, Europa e frica, que tiveram surgimento praticamente sincrnico a partir do final do pleistoceno (Pessis and Guidon 1992), mostram a importncia que a arte teve no desenvolvimento dessas sociedades. O que se pensou ser inicialmente uma ingnua representao do real (Leroi-Gourhan 1985) na verdade fazia parte de um sistema de comunicao, provavelmente, em certas circunstncias, ligado a uma magia ritual. Segundo Pessis e Guidon (op.cit.), as tradies de gravuras e pinturas rupestres podem ser comparveis a famlias lingsticas, no que diz respeito a sua evoluo. A tentativa dos especialistas em desvendar a linguagem visual dos grafismos originou incurses nos mtodos e teorias estruturalistas (Greenberg 1975 e LviStrauss 1975, apud Ribeiro 1987b), mesmo que no houvessem profisses de f nesse sentido (Rex Gonzlez 1974)11, mas sem dvida obteve seu grande xito com o trabalho magistral de Munn (1962; 1966; 1973) sobre a iconografia Walbiri12. O estudo de Munn demonstrou que a arte grfica Walbiri era na realidade uma linguagem visual, apesar de os ocidentais perceberem-na apenas como desenhos geomtricos decorativos. Entre os Walbiri, diferentemente do que se percebe em outras sociedades, a feitura dos desenhos no prerrogativa das mulheres, mas ambos os sexos os utilizam, freqentemente para ilustrarem, na areia, uma histria ou narrarem uma experincia. Munn percebeu que os desenhos se constituam em um cdigo visual cuja estrutura estava ligada a noes fundamentais de espao, tempo e viso cosmolgica do grupo. Os Walbiri crem que seus ancestrais foram responsveis pela criao de tudo o que existe, desde a topografia do pas at sua cultura. Os Sonhantes, como so chamados esses ancestrais, viveram em um tempo em que sonharam sua msicas, desenhos e parafernlia ritual. Sua linguagem grfica possui uma estrutura interna com regras de combinao a partir de cerca de 30 elementos bsicos. Cada elemento possui um significado referencial amplo, podendo por isso remeter a vrios referentes dependendo11

Segundo BERTA RIBEIRO (1987), tanto o trabalho de GREENBERG (1975) sobre a arte cermica dos Hopi, grupo Pueblo do Arizona, como o de LVI-STRAUSS (1975) junto aos Kadiwu, se ativeram anlise formal, no tendo levado a efeito um trabalho de contextualizao para desvendar significados. Enquanto Greenberg relacionou o processo de produo dos desenhos com uma viso de ordem csmica, LviStrauss interpreta a assimetria dos desenhos Kadiwu como signo de hierarquizao social. O trabalho de Rex Gonzlez, onde foi utilizado de certa forma um mtodo estruturalista, ser comentado no Captulo IV. 12 O trabalho de campo entre os Walbiri, povo do Centro-Oeste australiano, foi realizado entre 1956 e 1958.

das combinaes e do contexto em que so utilizados. As representaes grficas compem-se de crculos, arcos e linhas que se combinam de diversas formas com diferentes graus de complexidade. Os traos caracterizam o objeto definindo-lhe a forma de maneira simplificada. Advm da o fato de Munn considerar a relao que se estabelece entre o referente e o signo como icnica, o que caracteriza o sistema como uma iconografia. Todas as iconografias compartilham certas caractersticas estruturais fundamentais, apesar de grandes diferenas estilsticas. Especialmente, todas operam por meio de vocabulrios ou unidades elementares relativamente padronizadas (veiculando, como na linguagem oral, categorias vom vrios graus de generalizao), e tm regras implcitas para a combinao dos elementos. Apesar de que uma iconografia, como eu considero aqui, materializa-se primariamente em meios extra-somticos de duas ou trs dimenses, esta pode tambm tomar forma somtica atras de danas ou performance ritual. A extenso da disseminao de um sistema particular sobre vrios meios possveis , certamente, matria para determinao emprica (traduzido de Munn 1973:216). Munn demonstrou como o estudo estrutural das representaes visuais no precisa se ater apenas a seu aspecto formal, mas deve relacion-lo com o sistema scio-cultural do qual faz parte, construindo uma teoria simblica totalizante. Depois de todos esses exemplos, podemos concluir que, vista sob todos os seus aspectos, a etnoarte no s encerra informaes culturais como serve como meio transmissor de conceitos e verdades tnicas. Sob esse enfoque, Otten (1971) a compara aos livros (citada em Velthem 1994). No apenas a questo do ensino, da transmisso de conhecimentos e informaes e da perpetuao das tradies esto envolvidas nesse fantstico sistema de comunicao que se opera atravs da etnoarte. Principalmente h que se considerar a necessidade, intrnseca ao ser humano, de teorizar, abstrair e comunicar a experincia vivida. Geertz (1983) observa que o ser humano sempre tira um sentido da experincia, a simboliza, organiza e relata. Aquilo a que chamamos a viso cosmolgica de uma sociedade nada mais do que uma teorizao a respeito do lugar que os humanos ocupam no mundo natural (Silva 1994). Existe a necessidade de explicar, entender e transmitir essa posio de uma tribo frente s outras e frente ao meio ambiente, composto tanto de seres animados como inanimados. Por isso, segundo

Leroi-Gourhan (1985), a existncia do grafismo est ligada reflexo, capacidade de pensar simbolicamente. O autor considera que a arte figurativa est mais prxima da escrita do que da obra de arte: Temos agora a certeza de que o grafismo comea no por uma representao inocente do real, mas sim do abstrato (...) Particularmente interessante o fato de o grafismo no ter comeado por uma representao servil e fotogrfica do real, mas organizando-se (...) a partir de sinais que parecem ter exprimido primeiramente os ritmos e no as formas (Leroi-Gourhan 1985:189). Estudando a arte Kayap, Lux Vidal concluiu pela existncia de uma linguagem visual, apesar de no ter desenvolvido especificamente um trabalho de anlise estrutural de seus grafismos: A ornamentao e, especialmente, a pintura corporal entre os Kayap expressam de maneira muito formal e sinttica, na verdade de uma forma estritamente gramatical, a compreenso que esses ndios possuem de suas cosmologias e estrutura social, das manifestaes biolgicas e das relaes com a natureza, ou melhor, dos princpios subjacentes a esses diferentes domnios (Vidal 1992:143). Nas sociedades indgenas a arte confunde-se com a prpria cultura, se entendermos a cultura, segundo (Geertz 1978), como um cdigo simblico compartilhado pelos membros de uma sociedade. Assim, h uma aceitao tcita dos mesmos conceitos e padres, e os movimentos de evoluo ou mudana se do dentro da mesma estrutura cognitiva. Por isso mesmo a compreenso dos significados simblicos s possvel dentro da prpria cultura que os produziu. A expresso de uma intelectualizao sobre a vida como ela deve ser vivida simbolizada ento atravs da arte, cujo significado s pode ser apreendido de forma contextual. Nesse sentido, entendemos que a comparao etnogrfica vlida apenas na medida em que aponta possibilidades, no para assegurar regularidades. Pode-se dizer que a etnoarte ao mesmo tempo um veculo de socializao e comunicao. Socializao porque, unida tecnologia, produz objetos essenciais ao uso social, e, alm disso, confere ao grupo que a utiliza o status de grupo humano, possuidor de uma identidade tnica. veculo de comunicao porque atravs dela revivida a mitologia do grupo, porque expressa sua viso cosmolgica, seus valores

morais e ticos. , por fim, um cdigo cultural compartilhado pelos membros de uma comunidade. O estudo dos sistemas de comunicao inerentes s culturas humanas levou criao de uma cincia especificamente voltada para esse fim: a semitica. Ela estuda os sistemas de signos responsveis pela troca de informaes entre os diversos agentes culturais. Gary Shank (1984, apud Deely 1990) encara a semiose como um fenmeno psicologicamente encarnado quando reconhece os seres humanos como essencialmente narrativos em oposio aos outros animais. Na verdade, o que est no cerne da semitica a constatao de que a totalidade da experincia humana, sem exceo, uma estrutura interpretativa mediada e sustentada por signos (Deely 1990:22). Um signo , em princpio, tudo aquilo que possui significado para algum, que diz ou comunica alguma coisa. Os vestgios materiais de uma sociedade pr-histrica so signos que informam algo sobre o comportamento social e cultural daquele grupo. Os signos podem ser arbitrrios ou artificiais, e nesse sentido a compreenso de seu significado depende de uma conveno estabelecida e socialmente aceita. As letras do alfabeto so signos arbitrrios e sua compreenso depende do aprendizado por parte dos que pretendem ler ou escrever. Nesse caso a funo sgnica instituda e o significado pode variar, mesmo quando o smbolo e o referente permanecem inalterados. Alguns signos no necessitam de convenes para que sejam compreendidos e so chamados signos naturais ou ndices. Um exemplo disso seria o carvo disposto em meio a um conjunto de pedras assim encontrado arqueologicamente, indicando que ali havia um fogo. A compreenso do fenmeno atravs do ndice depende no de uma conveno, mas de um conhecimento ou hbito culturalmente adquirido e que se expressa atravs de uma inferncia. H, portanto, uma relao de causalidade entre o ndice e seu objeto. O signo meio ou ponto de mediao entre a realidade, ou aquilo que existe, mesmo que no materialmente, e o significado, ou a conscincia que o interpreta. Por isso os signos so presenas que marcam ausncias (Epstein 1986). Alm disso, um signo pode representar um conceito e no um objeto materialmente determinado, o que

advm da capacidade de abstrao do homem que, em contato com vrias classes de objetos, pode apreend-los em forma conceitual. As cores so freqentemente utilizadas como smbolos conceituais, como entre os Abelam13, para os quais determinadas cores so signos de poder. Eles nominam as cores apenas em objetos rituais ou animais totmicos relacionados com ritos, como alguns pssaros. Os Abelam consideram as linhas elementos antiestticos, enquanto que a pintura tem fora mgica. Usam principalmente um motivo de maneira quase obsessiva e recorrente, um ponto oval, vagamente icnico, representando o ventre feminino (Geertz 1983). De interesse especial para nossos propsitos, uma vez que estamos estudando a arte enquanto sistema de comunicao, so os signos classificados como smbolos e cones. O smbolo um signo que representa algo convencionalmente conhecido e determinado culturalmente. O mesmo smbolo grfico pode ter, e geralmente tem, significados diferentes para culturas diferentes. Logo, o smbolo representa algo, est no lugar de outra coisa - seu referente - e tem o seu significado sua referncia - culturalmente determinado. Esse significado , portanto, extrnseco e convencional. O cone - vocbulo de origem grega que se traduz por imagem - ao contrrio, guarda uma relao de semelhana com o objeto que representa, com parte ou qualidade deste, e assim pode ser identificado, apesar de sua insero cultural. Por isso, Peirce (1974) considera a metfora um tipo de cone, mesmo que se relacione com o objeto apenas atravs de uma comparao subentendida. Uma figura icnica muitas vezes reproduzida e levada simplificao pode finalmente tornar-se um smbolo, na medida em que seu grau de iconicidade torna-se fraco, ou mesmo nulo, e no mais compreendida fora de seu contexto cultural. De toda a maneira, um signo pode ser ao mesmo tempo cone e smbolo e isso vai depender do contexto no qual ele se apresenta. A linguagem visual construda a partir de grafismos ou figuras abstratas em sociedades indgenas, como entre os Walbiri e Wayana, foi considerada, por alguns autores como iconogrfica (Munn 1973; Velthem 1992), apesar de ela no se apresentar assim para um observador no-culturalmente inserido. Isso se deve ao fato

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Povo da Nova Guin.

de que as representaes grficas so simplificadas e analgicas em relao ao objeto, o que torna seu grau de iconicidade fraco, mas perfeitamente eficaz dentro daqueles contextos culturais. O smbolo freqentemente possui mais de um referente, uma vez que ele uma condensao de sentido, uma representao de um conceito. Alm disso ele possui a propriedade de evocar sentimentos que no seriam adequadamente expressos por palavras. Por isso, o smbolo autntico est ligado ao intuitivo e no pode separarse dele (Urban 1952). Jung (Jung and Franz 1964) pondera que as religies empregam os smbolos para representar conceitos que esto alm do entendimento humano. Provavelmente as religies esperam que estes conceitos permaneam ininteligveis, o que confere aos seus smbolos um carter sagrado. Tendo em vista a fora de sua ao persuasiva, Epstein (1986) alerta para o fato de que os smbolos podem ser usados para desencadear determinado tipo de situaes. O exemplo que usamos dos discos auriculares e labiais dos Suy mostra a capacidade dos smbolos em serem concisamente eloqentes. Encerram tanto significado que Seeger (1980) precisou escrever vrias pginas para explan-lo. Entretanto, para aquele povo, no preciso verbalizar esse significado; bastam o uso dos discos e todo ritual que envolve sua utilizao. Os rituais so momentos privilegiados para se observar como so simbolizadas as relaes que se estabelecem, no seio de cada cultura, entre os humanos e o sobrenatural. Eles expressam a viso que o grupo tem do universo, pela teatralizao de seus mitos, e geralmente traduzem preocupaes de natureza universal, observveis em todas as culturas. Sendo para marcar situaes de passagem de um ciclo vital a outro, ou relacionado com as atividades de subsistncia, os rituais envolvem no s a transmutao dos atores sociais em personagens das narrativas mticas como a utilizao de objetos de grande importncia para o relacionamento dos homens com os mundos natural e sobrenatural. Assim, esses objetos carregam grande significado simblico, como parte de um processo que envolve a matria-prima, as tcnicas e concepes cosmolgicas expressas na decorao. Sobre o cesto Iti Wayana, que marca de status pessoal, Velthem (1994:90) observa que

O poder do sistema decorativo no adviria tanto de seu significado, mas sobretudo da sua capacidade em express-lo visualmente, no que complementaria as descries orais. A autora ainda coloca que, em todo o processo que envolve a produo dos artefatos (...) a decorao se destaca, pois por seu intermdio que os artefatos recebem tanto o reconhecimento social como a significao cosmolgica. (op.cit:91) Entre os objetos rituais destacam-se sobremaneira os instrumentos musicais, geralmente relacionados com o poder de diversos tipos de espritos (Seeger 1987). Existe toda uma simbologia ligada no s manufatura e decorao desses instrumentos como ao modo e lugar de sua utilizao, ou seja, quem o toca, como e quando o faz, o que determinar, finalmente, sua eficcia simblica (Ribeiro 1987b). condio para a interpretao dos smbolos a conscincia de que todo o smbolo possui uma referncia dual: de um lado est o objeto original e de outro o objeto que agora representa (Urban 1952). Existe um consenso entre os autores de que a tentativa de explicar o significado do smbolo o descaracteriza enquanto tal, uma vez que a explicao bem menos eloqente do que smbolo. Essa interpretao do contedo simblico, denominada expanso do smbolo, uma metfora retirada da fsica (Epstein 1986; Urban 1952), retira dele sua mais forte caracterstica que a conciso. Alm disso, a percepo do contedo simblico no totalmente consciente, por isso sua explicao jamais esgotar seu campo de significados ou conseguir exprimir a sua capacidade de desencadear reaes emotivas e resgatar sentimentos inconscientes. Determinar o contedo simblico de manifestaes artsticas de tribos indgenas depende de uma metodologia apropriada que considere, alm do aspecto formal, os contextos da produo e do uso do objeto artstico e a histria mitolgica do grupo. O que, para o observador externo, representam apenas padres abstratos podem ser na realidade desenhos figurativos, j que caracterizariam o objeto representando-o por um trao definidor de forma (Munn 1962; Ribeiro 1987a) Tomando como base o estudo de Munn sobre a iconografia Walbiri, Ribeiro (Ribeiro 1987a) estuda a cestaria Kayab e parte, como Munn, do princpio de que os desenhos so representaes iconogrficas, relacionadas com sua mitologia e com um

forte carter tnico. Berta Ribeiro percebe que os motivos mais importantes remetem a entes mitolgicos ou a objetos que fazem parte dos mitos, e que se combinam de diversas maneiras, com variaes semnticas. Ela isolou unidades de significado que, por sua nomenclatura, se referenciam a unidades tambm significativas do repertrio mtico (Ribeiro, op.cit.:286). A autora obteve informaes junto aos ndios e atravs da observao de rituais que reviviam os mitos, nos quais constatou a atuao dos mesmos entes mticos presentes nos desenhos dos tranados. Por isso os motivos dos desenhos nos tranados foram tratados como desenhos semnticos e o seu conjunto como uma iconografia (op.cit). Ribeiro observou a linguagem visual dos Kayab num contexto amplo, combinando, segundo suas prprias palavras, expresso e contedo; textos verbais e textos visuais. Sem o auxlio das mensagens verbais e visuais fica difcil estabelecer o que seria uma linguagem iconogrfica de uma simblica ou determinar a fronteira entre uma e outra. De qualquer forma, a compreenso de que existe uma linguagem visual ou um sistema de significaes dentro de um sistema de comunicao visual a ser desvendado remete a uma abordagem semitica da etnoarte e construo de uma metodologia adequada s especificidades culturais.

Concluses do Captulo

Esse primeiro captulo foi elaborado tendo como objetivo a construo de um substrato terico, e at certo ponto tambm etnogrfico, para toda a anlise que se desenvolve a partir do Captulo III sobre a arte cermica Marajoara. A idia era estabelecer um conceito de arte indgena para, a partir desse conceito, entender as motivaes e propsitos que impulsionaram o desenvolvimento de to elaborada arte. Alm disso buscvamos meios para a construo de uma metodologia apropriada para o estudo da decorao cermica em uma sociedade arqueolgica. As informaes que se possui sobre a populao que habitou os tesos em Maraj durante cerca de novecentos anos se restringem praticamente ao que se pode depreender dos vestgios da cultura material, constituindo-se, a maior parte dessa, de utenslios cermicos. uma cermica requintada, que demonstra o desenvolvimento de

um alto nvel tcnico e artstico. Trata-se de uma arte em alguns momentos figurativa, mas predominantemente abstrata. Outra caracterstica importante a padronizao da decorao, de maneira que muitos utenslios carregam os mesmos padres

decorativos, s vezes com desenhos praticamente iguais. Buscamos levantar dados sobre manifestaes artsticas em outras culturas indgenas, com o intuito de conhecer mais sobre as relaes que esses povos estabelecem com a produo artstica, para poder ento criar uma base etnogrfica a partir da qual pudessem ser avaliadas as possibilidades de uso do mtodo comparativo. Alguns estudos etnogrficos tocam, via de regra, no problema terico. Portanto, a preocupao em recolher esses dados etnogrficos tinha o objetivo de tambm trabalhar modelos tericos. Os dados nos mostraram que faz parte da natureza humana a necessidade de narrar experincias, de conceitualizar percepes e de trocar esses conceitos uns com os outros. Alm disso, o ser humano sente a necessidade de saber sobre suas origens e seu papel nesse mundo, enfim, entender o sentido de sua existncia. Praticamente todas as sociedades indgenas remetem a explicao para essas questes ao mito da criao, que narra uma histria a respeito da origem do grupo - nem sempre ligado origem do homem enquanto ser humano, mas sobre a origem de um grupo especfico. So mitos que se referem a um tempo em que as pessoas ainda no existiam enquanto seres humanos. Esses mitos trazem elementos que esto ligados existncia de mulheres e homens enquanto seres eminentemente sociais e culturais, e percebemos que existem certas categorias cognitivas que esto ligadas a essa existncia. O conceito de ser humano se constri no mito em oposio quilo que era antes. Alguns mitos14 reportam que o ser humano, antigamente, era um animal, ou, visto de outra forma, que o ser humano no tinha caractersticas totalmente humanas. Geralmente mitos que falam sobre a origem do ser humano esto muito ligados origem do conhecimento das tcnicas utilizadas no cotidiano e maneira como estas intermediam o seu

relacionamento com a natureza. O mito, portanto, em essncia, no fala a respeito do nascimento do ser humano, mas a respeito do momento em que ela ou ele passa a se tornar um ser social e cultural, com uma personalidade tnica.

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Consideraes feitas a partir de leituras sobre mitos constantes nas diversas obras citadas na bibliografia.

Esse momento freqentemente est ligado apreenso de um conhecimento, de uma tecnologia, portanto possibilidade de transformar a natureza, de criar utenslios, implementos, artefatos, de decorar seu prprio corpo, de criar adornos - de criar-se a si mesmo. Umberto Eco (1976) afirma que no o homem que pensa os mitos, mas os mitos se pensam nos homens, ou, numa perspectiva estrutural, os mitos se pensam entre si. Para Lvi-Strauss atuariam a as leis constantes do esprito: (...)os fenmenos fundamentais da vida do esprito, os que a condicionam e determinam as suas formas mais gerais, se colocam no plano do pensamento inconsciente. Estamos aqui diante de atividades que parecem nossas e alheias, condies de todas as vidas mentais de todos os homens e em todos os tempos (Mauss 1972 apud Eco 1976). Na verdade, os mitos so a forma que assumiu a reflexo sobre a natureza humana, sendo a prpria representao dessa natureza. E no s a maneira de o homem refletir sobre sua natureza como de narrar essa idia, de tornar esse um conceito socialmente compartilhado. Comentamos nesse captulo a existncia de mitos ligados obteno dos designs caractersticos expressos atravs das artes plsticas por algumas tribos. Esses designs servem para decorar o corpo, com a funo de conferir identidade ao homem; servem tambm para decorar os utenslios, que se tornaro, a partir desse momento, utenslios sociais. No conjunto, esses designs so um veculo de comunicao de conceitos compartilhados por essa sociedade. A pesquisa etnogrfica tem a possibilidade de registrar as narrativas mticas nas ocasies em que estas so contadas aos mais jovens. Alm disso, o investigador tem a oportunidade de observar os rituais, que so momentos em que os mitos so revividos atravs de uma dramatizao, sendo essa tambm uma forma de arte. Ento a arte permeia todas as esferas do social: se manifesta no drama, na pintura corporal, na decorao dos objetos. Tudo isso est ligado a um sentimento a que chamamos cosmolgico, que remete insero do ser humano no mundo onde ele vive. Essa viso cosmolgica trata da origem do homem e de como ele deve viver nesse mundo, como deve se relacionar com o mundo natural e seus semelhantes.

Por ocasio dos rituais, os atores vivem, eles prprios, a histria mtica que, ao narrar um acontecimento do passado, atravs da dramatizao, adquire existncia no presente, numa perspectiva atemporal. Alguns dos trabalhos citados, principalmente, de Lcia van Velthem, sobre os Wayana, e de Nancy Munn, sobre os Walbiri, mostraram que a mitologia desses povos se expressava nos rituais, na decorao plstica, nas pinturas, nos grafismos, na pintura corporal e nos objetos; tornar visuais esses conceitos e tornar visual o mito uma maneira de perpetu-los. No podemos esquecer que o conceito advm primeiramente de um processo mental - e quando falamos de conceitos, no estamos considerando o referente, que no tem importncia para essa anlise, mas a referncia -; para que ele seja compartilhado existe a necessidade de que ele seja visvel, audvel, ou verbalizvel. As sociedades indgenas, geralmente, no levam em alto grau a verbalizao. Pelo contrrio, a forma de percepo preponderantemente visual. Existe, portanto, uma necessidade de tornar esses conceitos e a prpria histria visuais, o que se d atravs da arte. Enquanto sistema de signos identificados e socialmente compartilhados, a arte confunde-se com a prpria cultura. A maneira como os conceitos so expressos plasticamente remete existncia de referentes identificveis pelo grupo. O grupo compartilha as mesmas referncias, ou pelo menos referncias similares. A questo que se coloca a de como o observador de fora pode perceber essas referncias ou chegar a apreender os conceitos. Na verdade ele no pode apreend-los em sua totalidade, por no estar culturalmente inserido naquele contexto. Os pesquisadores costumam buscar o sentido literal do smbolo para que ele se traduza cientificamente em termos de assertivas e em termos analticos como o pensamento cientfico. Pretendem defini-lo, conceitu-lo; no entanto, no momento em que se verbaliza o contedo do smbolo ele j no existe enquanto tal, e ao mesmo tempo esse significado no seria verbalizvel em sua totalidade. O que existe, ento, uma tentativa de uma aproximao da compreenso do que seriam as malhas de significado que a sociedade em estudo compartilha. O estudo entre os Walbiri mostrou que aquelas figuras aparentemente abstratas representavam, na verdade, uma linguagem visual iconogrfica; quer dizer, os grafismos se referenciavam ao objeto real - ou a uma parte dele - ou lembravam alguma qualidade desse referente. Munn isolou unidades de significado que se combinavam de maneiras diferentes mostrando que essas combinaes possuam um sentido

semntico prprio. Na verdade essa estrutura que a autora percebeu que existia na arte Walbiri a mesma estrutura que Lvi-Strauus identificou nos mitos: unidades de significado que se combinam, que se relacionam para expressar um contedo. O mito expressa o contedo de diversas formas nas diferentes sociedades. As unidades de significado podem ser diferentes; o que permanece a maneira como elas se relacionam para poder originar determinados contedos semnticos. Como a linguagem visual dos Walbiri estava estreitamente ligada sua mitologia, Munn usou a mesma metodologia com resultado bastante fecundo. Nancy Munn teve a possibilidade de identificar a existncia da linguagem iconogrfica e isolar as unidades de significado na arte, uma vez que podia referencilas s unidades de significado no mito ou no ritual. A dificuldade para o arquelogo reside justamente em isolar unidades de significado de forma no arbitrria, uma vez que no se conhece o conjunto da cultura, nem sua histria mitolgica. Hodder (1988) considera que perceber uma marca em uma vasilha como uma unidade de anlise ou motivo decorativo supe dar um sentido, interpretar um contedo e pretender ver aquilo da maneira como a sociedade o via. De qualquer maneira, toda anlise est carregada de subjetividade. Outro problema que se coloca o de como entender essa iconografia e a dinmica dessas relaes sem uma base etnogrfica. A maneira que nos parece possvel para enfrentar essas dificuldades a de apostar numa certa analogia etnogrfica e numa metodologia que tenha conscincia dessa dificuldade e que avance at onde for possvel apesar da falta de dados referenciais. No h um mtodo infalvel para trabalhar com uma sociedade arqueolgica da qual no se tem nenhuma referncia etnogrfica. A maneira de trabalhar a iconografia depender das condies encontradas. O pesquisador tem que, ao mesmo tempo em que se referencia numa teoria e metologia conhecidas, criar seus prprios passos dentro dessa metologia e, at certo ponto, pensar ou repensar a teoria de acordo com sua realidade. De qualquer maneira, algumas questes levantadas nesse captulo so fundamentais e o auxlio que a antropologia tem prestado atravs dos trabalhos etnogrficos imprescindvel. A conscincia desse papel to importante e inequvoco da arte para as sociedades indgenas algo que tem que se fazer presente no trabalho arqueolgico e que remete a uma outra maneira de encarar a cultura material dessas sociedades. Geralmente o arquelogo releva a um segundo plano os objetos artsticos,

porque considera que no pode, a partir deles, inferir significados. Entretanto, todos os exemplos levantados mostram que existem preocupaes comuns s sociedades indgenas e que arte cumpre uma funo social determinada, apesar de possuir expresses e contedos diferentes de uma cultura para outra. Pode-se dizer, por exemplo, que a necessidade da pintura corporal para diferenciar os seres humanos dos animais, ou para diferenciar uma tribo de outra, uma caracterstica universal. Mesmo uma sociedade que no utilize a pintura corporal, de alguma forma, nas suas vestimentas, nos seus adornos, procurar marcar uma caracterstica resultado de uma necessidade intrnseca ao ser humano. So essas caractersticas peculiares de cada cultura que, na diversidade das manifestaes humanas, nos mostram elementos a respeito do que seria uma natureza humana comum (Geertz 1978). Segundo Geertz (op.cit.), a natureza humana no um denominador comum em que todas as culturas se incluem, mas deve ser buscada nas diferenas que enriquecem a viso de uma natureza comum. Essa natureza comum, observvel atravs das manifestaes culturais, no se encontra, para usarmos os termos da teoria semitica, nos signos, referentes ou referncias, mas no cerne das relaes que se estabelecem entre estes trs plos do processo da comunicao. Em outras palavras, apesar da imensa diversidade de formas que assumiram as respostas adaptativas do homem ao meio, elas tm-se dado sempre no sentido de demostrar uma lgica interna, a partir da qual se revelam similaridades em sociedades aparentemente diferentes. tnica, como

CAPTULO II

REGISTRO ARQUEOLGICO E ETNOHISTRICO DA FASE MARAJOARA

O registro arqueolgico e as crnicas etnohistricas tm sido as nicas fontes disponveis e possveis para a reconstruo do passado pr-histrico na Ilha de Maraj e, ainda que as fontes arqueolgicas sejam metodologicamente mais apropriadas, os arquelogos no tm se furtado em utilizar os relatos dos primeiros viajantes europeus em terras brasileiras como parmetro para a construo de modelos tericos. Esse captulo no encerra dados exaustivos sobre as pesquisas arqueolgicas em Maraj, que so produto de um sculo de prospeces e escavaes, uma vez que esses dados podem ser consultados com maior fidedignidade junto s obras dos autores que citaremos aqui. Assim sendo, vamos nos restringir a expor a situao atual da pesquisa arqueolgica relativa ocupao pr-histrica na Ilha, com nfase para a fase Marajoara, objeto desse trabalho. As fases anteriores, denominadas por Betty Meggers & Clifford Evans, no seu relatrio publicado em 1957, como Fases da Floresta Tropical, no merecero uma ateno especial, uma vez que foram pesquisados poucos stios e a amostra estudada no permite estabelecer, ainda, a natureza das relaes entre aquelas ocupaes e a Fase Marajoara. Os dados so escassos e trazlos discusso no contribuiria muito com as questes levantadas nesse momento. Antes de entrarmos na questo do registro arqueolgico, vamos apresentar o que nos colocam os relatos etnohistricos, primeira fonte etnogrfica sobre a pr-

histria recente da Amaznia1 enquanto regio geogrfica na qual a Ilha de Maraj se insere. Os dados que nos trazem as crnicas quinhentistas e seiscentistas podem ser muito teis quando cotejados com as evidncias arqueolgicas. Aps a conquista do Peru, em 1532, espanhis e portugueses se animaram a explorar a nova terra em busca dos tesouros que, acreditavam, ela poderia oferecer. A busca do Eldorado e da Terra das Amazonas, mitos correntes na poca e reforados pelos relatos dos ndios, e a necessidade de tomar posse dos territrios recmconquistados a fim de assegurar o direito a suas riquezas, fez com que se organizassem diversas expedies, patrocinadas pelas duas Coroas, que percorreram ento as bacias dos grandes rios. O trajeto utilizado foi, via de regra, a partir do Napo ou do Huallaga descer o Maraon, antiga denominao do Rio Amazonas, at o Arquiplago de Maraj, saindo no Oceano Atlntico ou aportando no Par, no continente. Num primeiro momento, as expedies foram patrocinadas pela Espanha que, a partir do Vice-Reinado do Peru, buscava ampliar seus domnios e dar a conhecer aos mais novos sditos dos Reis de Espanha sua condio de vassalos de um imprio cristo. Dessas expedies freqentemente participavam religiosos que levavam a cabo a tarefa de registrar os acontecimentos, quando isso no era feito pelo prprio capito ou outro tripulante. O relato mais antigo de que se tem notcia o do Frei Gaspar de Carvajal, participante da expedio do Capito Francisco de Orellana que, tendo descido o Amazonas em 1541, completou com sucesso a travessia em setembro de 1542. Esse relato originou diversas verses, posteriormente publicadas, que guardam entre si algumas diferenas. Da jornada comandada pelo General Pedro de rsua e levada a cabo pelo rebelde Aguirre no ano de 1560, produziram-se as crnicas de Francisco Vsquez, Altamirano, Gonzalo de Ziga e Pedro de Monguia. Um segundo ciclo da etnografia do Amazonas tem incio com a viagem do Capito portugus Pedro Teixeira do Par a Quito, para tomar posse das novas terras em nome da Coroa Portuguesa, quase um sculo depois das primeiras expedies espanholas (Porro 1993:115). Fruto da expedio de retorno de Pedro Teixeira, em 1637 2, tem-se o relato do Padre Acua que, em relao aos anteriores, mais1

O termo pr-histria recente da Amaznia largamente utilizado na literatura especializada referindo-se poca imediatamente anterior chegada dos colonizadores europeus ao continente, quando sociedades indgenas bastante numerosas ocupavam a regio de maneira sedentria. 2 Data de PORRO, op. cit. e LA CONDAMINE (1992); no relato de ACUA (1946), h a data de 1639.

descritivo e preciso. O jesuta Alonso de Rojas, que fez parte tambm dessa expedio, deixou escritas suas impresses e, a semelhana de algumas passagens com o publicado pelo Padre Acua faz supor que este teria copiado de Rojas alguns captulos (Porro, op.cit.). A partir dessa poca produzem-se muitas crnicas de missionrios, uma vez que proliferam as misses jesuticas e franciscanas no Peru, Equador e no Brasil. As crnicas posteriores a essa poca - Frei Laureano de La Cruz, Samuel Fritz, Maurcio de Heriarte - j se referem ao comeo do fim das civilizaes da vrzea, e j mostram os sinais da desagregao e desaculturao que comea a se processar entre as culturas indgenas. Mesmo assim, os relatos de missionrios, como o de Claude dAbbeville sobre os Tupinambs do Maranho, so contribuies importantes, pois foram produzidos em um momento em que o objetivo era o de conhecer o modo de vida indgena para catequizar e dominar politicamente as comunidades. Apesar da impreciso geogrfica e da forte carga emocional que caracterizam muitas das descries, uma vez que os viajantes viam-se na contingncia de enaltecer as riquezas da terra recm-conquistada e estavam afeitos a todo o tipo de perigos, uma leitura atenta e um estudo comparativo entre as mesmas levam os estudiosos hoje a chegarem a concluses importantes sobre os padres de assentamento e prticas culturais das populaes que habitavam a vrzea amaznica alguns anos antes da chegada dos europeus. Observa-se que a margem dos grandes rios - o Amazonas e seus principais afluentes - era densamente povoada e, segundo notcias dos ndios, o interior tambm o era: ... no espao de quase quatro mil lguas de contorno encerra mais de cento e cinquenta naes de lnguas diferentes... (Acua 1946:11). Fomos caminhando por esta terra e senhorio de Omgua mais de cem lguas, ao cabo das quais chegamos a outra terra de outro senhor, chamado Paguana, que tem muita gente e muito pacfica, pois chegamos, no princpio de sua provncia, a um povoado de mais de duas lguas de comprimento, aonde os ndios nos esperavam em suas casas, sem fazer mal nem dano, antes nos davam do que tinham. Desse povoado seguiam muitos caminhos para o interior, porque o senhor no reside beira do rio ...(Carvajal, et al. 1941:48-49).

Todo este rio das Amazonas, nas ilhas, nas margens e terra adentro, est povoado