Linguística Textual UFSC

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Linguística Textual Florianópolis - 2009 Rosângela Hammes Rodrigues Nívea Rohling da Silva Vidomar Silva Filho Período

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Linguística Textual

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Linguística Textual

Florianópolis - 2009

Rosângela Hammes RodriguesNívea Rohling da SilvaVidomar Silva Filho4º

Período

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Governo FederalPresidente da República: Luiz Inácio Lula da SilvaMinistro de Educação: Fernando HaddadSecretário de Ensino a Distância: Carlos Eduardo BielschowkyCoordenador Nacional da Universidade Aberta do Brasil: Celso Costa

Universidade Federal de Santa CatarinaReitor: Alvaro Toubes PrataVice-Reitor: Carlos Alberto Justo da SilvaSecretário de Educação a Distância: Cícero BarbosaPró-Reitora de Ensino de Graduação: Yara Maria Rauh MüllerPró-Reitora de Pesquisa e Extensão: Débora Peres MenezesPró-Reitor de Pós-Graduação: Maria Lúcia de Barros CamargoPró-Reitor de Desenvolvimento Humano e Social: Luiz Henrique Vieira da SilvaPró-Reitor de Infra-Estrutura: João Batista FurtuosoPró-Reitor de Assuntos Estudantis: Cláudio José AmanteCentro de Ciências da Educação: Wilson Schmidt

Curso de Licenciatura Letras-Português na Modalidade a DistânciaDiretora Unidade de Ensino: Felício Wessling MarguttiChefe do Departamento: Zilma Gesser NunesCoordenadoras de Curso: Roberta Pires de Oliveira e Zilma Gesser NunesCoordenador de Tutoria: Josias Ricardo HackCoordenação Pedagógica: LANTEC/CEDCoordenação de Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem: Hiperlab/CCE

Comissão EditorialTânia Regina Oliveira RamosIzete Lehmkuhl CoelhoMary Elizabeth Cerutti Rizzati

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Laboratório de Novas Tecnologias - LANTEC/CEDCoordenação Geral: Andrea LapaCoordenação Pedagógica: Roseli Zen Cerny

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Design InstrucionalResponsável: Isabella Benfica BarbosaDesigner Instrucional: Verônica Ribas Cúrcio

Copyright © 2009, Universidade Federal de Santa Catarina/LLV/CCE/UFSCNenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Coordena-ção Acadêmica do Curso de Licenciatura em Letras-Português na Modalidade a Distância.

Catalogação na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca Universitária da

Universidade Federal de Santa Catarina.

Ficha Catalográfica

R696l Rodrigues, Rosângela Hammes Linguística textual / Rosângela Hammes Rodrigues, Nívea Rohling da Silva, Vidomar Silva Filho. – Florianópolis : LLV/CCE/UFSC, 2009. 158p. : 28cm

ISBN 978-85-61482-19-0 Inclui bibliografia

UFSC. Licenciatura em Letras-Português na Modalidade a Distância 1. Linguística. 2. Análise do discurso. 3. Ensino a distância. I. Silva, Nívea Rohling da. II. Silva Filho, Vidomar. III. Título. CDU: 801

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Sumário

Apresentação ...................................................................................... 7

Unidade A: Primeiros passos e objeto(s) de pesquisa .......... 91 Panorama histórico da Linguística Textual ......................................... 11

2 Concepções de texto ..................................................................................17

Unidade B: Padrões de textualidade ........................................253 Noções Gerais ................................................................................................27

4 Coesão textual ...............................................................................................37

4.1 Coesão referencial ............................................................................................41

4.2 Coesão sequencial ............................................................................................48

5 Coerência .......................................................................................................61

5.1 Elementos linguísticos ....................................................................................62

5.2 Conhecimento de mundo .............................................................................64

5.3 Inferências ..........................................................................................................67

5.4 Focalização ..........................................................................................................69

5.5 Relevância ............................................................................................................73

6 Intencionalidade e aceitabilidade ..........................................................79

7 Informatividade ............................................................................................87

8 Situacionalidade ...........................................................................................97

9 Intertextualidade ......................................................................................101

Unidade C: Abordagens atuais ................................................ 11310 Referenciação ...........................................................................................115

11 A noção clássica de anáfora e a perspectiva socio-

cognitiva sobre os anafóricos ............................................................121

12 As formas nominais referenciais........................................................125

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Unidade D: O texto na sala de aula ........................................ 13713 O texto nas aulas de Língua Portuguesa ........................................139

14 O que é texto para o aluno? ................................................................145

Considerações Finais ................................................................... 153

Referências Bibliográficas .......................................................... 155

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Apresentação

Caros alunos,

A presentamos a vocês o livro impresso da disciplina de Linguística Tex-

tual, que faz parte do conjunto de disciplinas da quarta fase do Curso

de Licenciatura em Letras – Português na modalidade a distância.

Este livro tem por objetivo abordar o histórico dos estudos da Linguística Textu-

al e, principalmente, seus conceitos mais importantes para a formação do pro-

fessor. Além disso, objetiva discutir a questão do texto na disciplina escolar de

Língua Portuguesa. Para dar conta do objetivo proposto, o livro está organizado

em quatro Unidades. Na Unidade A, apresentamos um breve panorama histó-

rico da Linguística Textual e discutimos as concepções de texto que foram cons-

truídas durante o percurso de consolidação dessa área, e que fizeram com que

a disciplina fosse adotando, em sua trajetória, um caráter dinâmico e multidis-

ciplinar. Na Unidade B, introduzimos o conceito de textualidade e desenvolve-

mos os padrões de textualidade. A partir dessa Unidade, incluímos, ao final das

seções, uma orientação mais específica para a formação do professor, a qual re-

laciona os conceitos teóricos abordados com a prática de ensino-aprendizagem

dos conteúdos na disciplina de Língua Portuguesa. Na Unidade C, abordamos

um dos temas mais recentes de estudo da Linguística Textual, a referenciação.

E, por fim, na Unidade D, relacionamos mais especificamente o estudo teórico

do texto com o ensino-aprendizagem do texto nas aulas de Língua Portuguesa.

Nosso objetivo final é que este livro seja um meio eficaz para introduzir os

conceitos fundantes desse importante campo de estudo que é a Linguística

Textual, bem como demonstrar a articulação desses conceitos com o ensino-

aprendizagem das práticas de leitura, escuta e produção textual na disciplina

de Língua Portuguesa.

Rosângela Hammes Rodrigues

Nívea Rohling da Silva

Vidomar Silva Filho

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Unidade APrimeiros passos e objeto(s) de pesquisa

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934)

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Nesta Unidade, vamos apresentar uma introdução aos estudos da disciplina de Linguística Textual.

Os objetivos visados são:

Ӳ Conhecer a trajetória da Linguística Textual;

Ӳ Conhecer as diferentes concepções de texto, sujeito e língua que nortearam a pesquisa nessa disciplina;

Ӳ Refletir criticamente sobre as implicações teórico-metodológi-cas das diferentes concepções de texto nas práticas de lingua-gem em sala de aula.

Para atingir os objetivos propostos, dividimos a Unidade em dois capítulos: no primeiro, apresentaremos o histórico da disciplina; no se-gundo, abordaremos o objeto da Linguística Textual, por meio da dis-cussão dos conceitos de texto que se constituíram na disciplina.

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Capítulo 01Panorama histórico da Linguística Textual

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Linguística de Texto: o que é e como se faz (1983).

Panorama histórico da Linguística Textual

O texto foi e é objeto de investigação de diferentes disciplinas teóricas. Podemos observar que, no campo dos estudos da linguagem, a primeira dis-ciplina a se ocupar do texto foi a Retórica, seguida da Estilística e da Filologia. Também se ocupam do texto disciplinas de outros campos do conhecimen-to, como o da Teoria Literária, da Antropologia, da Sociologia etc. Neste Li-vro, vamos abordar o estudo do texto no campo da Linguística e, em especial, em uma dada disciplina, a Linguística Textual. É preciso ressaltar que, embo-ra todas essas disciplinas de algum modo partam do texto como unidade da interação humana, ou tomem o próprio texto como objeto de investigação, elas constroem objetos teóricos distintos. Por isso, Marcuschi, em livro pio-neiro de Linguística Textual no Brasil, destaca que a Linguística Textual não é Teoria da Literatura, nem Estilística, nem Retórica, embora reconheça o parentesco entre essas disciplinas. Para o autor, a Linguística Textual constitui uma linha de investigação interdisciplinar dentro da Linguística.

Até os anos sessenta do século vinte, no campo da Linguística, com a primazia dos estudos imanentes da língua, as unidades de análise foram o fonema, o morfema, a palavra, a oração, enfim, as unidades da língua vista na sua condição de sistema, de estrutura. O interesse pelo estudo do texto nesse campo surge somente a partir do final da década de sessenta, quando começam a aparecer novas pesquisas, cujo objetivo era olhar o texto não por meio da ampliação e/ou alteração das teorias já existentes, calcadas nos estudos imanentes da língua, mas por meio de uma nova teorização, cons-truída a partir do estudo do texto. Essa nova posição desenvolveu-se espe-cialmente na Europa continental, principalmente na Alemanha.

“Em linguística estrutural [...], chama-se imanente toda pesquisa que

define as estruturas de seu objeto apenas pelas relações dos termos in-

teriores deste.” (DUBOIS et al, 1993 [1973], p. 331). Por exemplo, a estru-

tura fonológica de uma língua é definida pelas oposições dos fonemas

entre si, sem levar em conta a realização concreta da fala e os partici-

pantes da interação.

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Capa do livro Linguistik der Lüge

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Em síntese, os estudos imanentes da língua são aqueles que olham a

língua como estrutura, abstraída das condições de uso, focalizando a

relação entre elementos dessa estrutura.

Segundo Bernárdez (1982), a linguística do texto como tal aparece pela primeira vez na segunda metade dos anos sessenta, em vários tra-balhos, mas independentes entre si: Das direkte Objekt in Spanischen, de Horst Isenberg; Pronomina und Textkonstitution, de Roland Harweg; e Semantische Relationen im Text und im System, de Erhard Agicola. Tam-bém nessa época, mais especificamente em 1966, é publicado o livro Linguistik der Lüge, de autoria do alemão Harald Weinrich . Já a pri-meira aparição do termo linguística do texto, de acordo com Bernárdez (1982), ocorreu um pouco antes, em 1956, no texto Determinación y Entorno, de Eugenio Coseriu. Nesse texto precursor, o autor discute a necessidade de se realizar também uma linguística da parole, dado que a linguística da langue já se encontrava constituída nos estudos linguís-ticos. E, salienta que o produto da fala (parole) é o texto; logo, havia essa necessidade de uma linguística do texto. Ainda segundo Bernárdez (1982), as idéias de Coseriu não encontraram continuidade imediata, pois os estudos iniciais do texto (o que se denominou como a primeira fase da Linguística Textual) não buscaram estudar o texto como produ-to da fala, ou seja, como produto de uma atividade linguística concreta dos falantes, mas, antes, explicar fenômenos sintáticos e semânticos que não podiam ser descritos adequadamente no nível da oração, como a correferencialidade.

A correferencialidade ocorre quando, no texto, dois itens lexicais têm

uma identidade referencial, ou seja, referem-se ao mesmo objeto no

mundo. Vejamos um exemplo: O Presidente Lula sobrevoou as cida-des catarinenses afetadas pela enchente. Ele ficou sensibilizado com a situação. O pronome anafórico Ele retoma o antecedente O Presiden-te Lula. A anáfora e o antecedente são correferenciais, o que equivale a

dizer que há uma identidade referencial entre anáfora e antecedente.

Eugenio Coseriu

O autor se refere à parole na dicotomia saussuria-na do signo linguístico:

langue/parole. Podemos observar que o autor discute o paradigma

epistemológico vigente da Linguística da época,

que toma como objeto de estudo a langue (língua

como estrutura).

De fato, o conceito de tex-to de Coseriu se aproxima mais das concepções con-

temporâneas de texto.

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Capítulo 01Panorama histórico da Linguística Textual

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Por essas diferenças teóricas iniciais da Linguística Textual, autores como Fávero e Koch (1988 [1983]) consideram que, embora a origem do termo linguística do texto seja da obra de Coseriu, o uso desse termo no sentido que lhe foi atribuído nos estudos iniciais do texto aparece pela primeira vez na obra Linguistik der Lüge, de Weinrich.

Assim, desde suas origens, a Linguística Textual propõe que se tome o texto como objeto de estudo (embora com enfoques diversos, como veremos a seguir, o que determina diferentes concepções do que seja um texto). Objetiva ainda que se reintroduzam nos estudos da linguagem o sujeito e a situação de interação, que, grosso modo, foram excluídos das pesquisas da linguística estrutural. De acordo com Fávero e Koch (1988[1983], p. 11), essa disciplina busca “tomar como unidade básica, ou seja, como objeto particular de investigação, não mais a palavra ou a frase, mas sim o texto, por serem os textos a forma específica da mani-festação da linguagem”.

No Brasil, os estudos com enfoque no texto surgem na década de 1970 e têm forte inspiração em estudos de autores europeus: Weinrich; Beaugrande e Dressler, entre outros, da Alemanha; Van Dijk, da Ho-landa; Charolles, Combettes e Adam, da França; e Halliday e Hasan, da Inglaterra. Todavia, é a partir da primeira metade da década de oitenta que há uma efervescência de pesquisas com foco nesse ramo da ciência linguística. Isso se deve, em grande parte, aos trabalhos dos pesquisado-res Ingedore Villaça Koch, Leonor Lopes Fávero, Luiz Antônio Marcus-chi, entre outros.

Segundo pesquisadores da área, no seu processo de constituição, a Linguística Textual passou por três momentos distintos – que marcam a ampliação do seu objeto de análise (da análise transfrástica para o es-tudo do texto nas suas condições de produção) e seu afastamento pro-gressivo teórico e metodológico das influências da linguística estrutural:

a) a análise transfrástica;

b) a construção de gramáticas textuais;

c) a construção de teorias de texto.

Autor da teoria das sequências textuais (ou tipos textuais). Essa noção será discutida na discipli-na de Linguística Aplicada.

Ingedore G. V. Koch

Leonor L. Fávero

Luiz Antônio Marcuschi

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É importante destacar que não há consenso entre os autores se hou-ve uma cronologia na passagem de um momento para outro. Por exem-plo, Conte (apud FÁVERO e KOCH, 1988) salienta que se trata antes de uma distinção tipológica, pois entre esses momentos não houve suces-são temporal, mas diferentes desenvolvimentos teóricos. De todo modo, há consenso entre os autores de que houve uma progressiva passagem de uma teoria da frase para uma teoria de texto. A seguir, apresentare-mos breve síntese desses três momentos da Linguística Textual.

Ӳ Análise transfrástica – Trata-se do momento da análise das re-gularidades que transcendem os limites da frase; parte-se desta em direção ao texto. Segundo Fávero e Koch (1988), o enfoque é o estudo das relações que podem ocorrer entre as diversas frases que compõem uma sequência significativa no texto. Nes-se estudo, destacam-se as relações referenciais, em particular a correferência, que é compreendida como um dos principais fatores de coesão textual.

Ӳ Gramáticas textuais – É o momento que tem como finalidade refletir sobre os fenômenos linguísticos inexplicáveis por meio de uma gramática da frase. A elaboração de gramáticas textuais objetiva: a) verificar o que faz com que um texto seja um texto, isto é, determinar seus princípios de constituição; b) levantar critérios para a delimitação de textos; e c) diferenciar os tipos de texto. (FÁVERO; KOCH, 1988). Embora nesse momento houvesse a busca pela construção do texto como objeto da Lin-guística, a sua compreensão ainda se pautava nos preceitos da linguística imanente. Por exemplo, postular a construção de gramáticas do texto pressupõe a existência de um sistema está-vel e abstrato, comum a todos os textos realizados.

Ӳ Teorias de texto – Nesse momento, a tendência dominante é construir teorias de texto que privilegiem os aspectos prag-máticos. Assim a investigação se estende do texto ao contexto, compreendido como as condições externas de produção e re-cepção (interpretação) dos textos.

Foi a partir da década de oitenta que o foco se voltou para o estudo do texto inserido no contexto pragmático; em outras palavras, começou

A coesão textual será dis-cutida na Unidade B.

“O aspecto pragmático da linguagem concerne às características de sua

utilização (motivações psicológicas dos falantes,

reações dos interlocutores [...].” (DUBOIS, 1993 [1973],

p. 480).

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Capítulo 01Panorama histórico da Linguística Textual

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a ser de interesse da Linguística Textual a análise dos textos nas condi-ções de interação. Isso levou os estudiosos da área a adotar em suas pes-quisas o conceito de textualidade, em que está imbricado um conjunto de padrões que contribuem para a construção e legibilidade do texto.

Analisando o percurso inicial da Linguística Textual por meio de seus diferentes momentos, podemos observar que, mesmo objetivando, desde as origens, construir um estudo do texto alternativo às teorias imanentes da língua, pelo menos nas fases iniciais, esse estudo ainda se realizou abstraído das condições de produção do texto e dos partici-pantes da interação; ou seja, também o texto foi analisado de um modo bastante imanente.

Atualmente, os estudiosos da área têm-se dividido em dois gran-des focos: o da cognição e o da enunciação. Analisando o percurso da disciplina, observamos que, de uma abordagem ao texto centrada mais na imanência, no produto e na construção de uma teoria geral do texto, a Linguística Textual, hoje, busca analisar o texto nas suas condições de produção, a partir de duas visadas: de uma parte, analisar como o sujei-to se apropria dos conhecimentos textuais e como os ativa na interação (foco da cognição); de outra, como as questões de ordem social e dis-cursiva interferem nos processos interacionais e, logo, nos processos de produção e interpretação de textos (foco da enunciação).

De acordo com Koch (2004), na vertente cognitiva, a partir da dé-cada de oitenta, inicia-se o interesse pelo processamento cognitivo do texto, especialmente a partir dos estudos de Teun A. van Dijk e Walter Kintsch. Essa vertente intensifica-se na década de noventa, porém, ago-ra, com forte apelo sociocognitivo. Nos estudos cognitivos da década de oitenta, as pesquisas centram-se nas questões relativas ao processa-mento cognitivo do texto (o que implica a consideração da produção e compreensão do texto), às formas de representação do conhecimento na memória, à ativação dos sistemas cognitivos por ocasião do proces-samento, às estratégias sociocognitivas e interacionais imbricadas no processamento textual (KOCH, 2002). Os trabalhos de ordem socio-cognitiva abordam os processos de referenciação e de inferenciação.

Já na vertente enunciativa, as pesquisas têm abordado questões de ordem interacional, tendo como foco de interesse, por exemplo, a rela-

A textualidade e os padrões de textualidade serão abordados na Uni-dade B.

Você pode conhecer mais sobre o trabalho de van Dijk no próprio website dele: http://www.discur-sos.org/

Podemos levantar a questão de que os estu-dos atuais estabelecem um quarto momento da Linguística Textual.

Ver discussão na Unidade B e, especialmente, na Unidade C.

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Linguística Textual

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ção entre oralidade e escrita e os gêneros do discurso, que são concebi-dos como mediadores das atividades de linguagem (KOCH, 2002).

A partir desse breve olhar para a trajetória da Linguística Textual, observamos que ela vem se consolidando como uma disciplina multi-disciplinar, dinâmica e funcional e que tem sido motivadora de uma profusão de pesquisas com enfoque no texto. Segundo Koch (2002), ini-cialmente essa disciplina era de inclinação gramatical (análise transfrás-tica), depois pragmático-discursiva e, atualmente, tornou-se um campo de forte tendência sociocognitiva. Entendemos que o caráter multiface-tado e complexo do texto é, de certa maneira, responsável pelos rumos que a Linguística Textual tem tomado como campo de estudo, confi-gurando-a como um campo transdisciplinar e que intensifica cada vez mais seu diálogo com as demais ciências.

Neste Capítulo, apresentamos o panorama histórico da Linguística Textual. No próximo Capítulo, apresentaremos as principais concep-ções de texto desenvolvidas nessa Disciplina.

Os gêneros do discurso se-rão abordados na Unidade B e, mais detalhadamente, na disciplina de Linguísti-

ca Aplicada.

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Capítulo 02Concepções de texto

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2 Concepções de textoEmbora tenhamos uma noção intuitiva do que seja um texto, que

saibamos que não se interage do mesmo modo e nem com a mesma finalidade em uma consulta médica, em uma conversa de bar, ou diante de um romance, de um e-mail de um amigo, de uma bula de remédio, de um boleto bancário, de uma charge etc., construir uma definição teórica do que seja um texto depende de uma série de fatores, como, por exem-plo, o próprio desenvolvimento teórico da disciplina e a concepção de língua e de sujeito que se tenha como fundamento teórico.

Neste Capítulo, vamos abordar algumas concepções de texto cons-truídas pela Linguística Textual, pois a noção do que seja um texto so-freu mudanças acentuadas nos estudos dessa disciplina, como resultado dos fatores anteriormente indicados: o próprio desenvolvimento teórico da disciplina e a concepção de língua e de sujeito. Primeiramente, vamos apresentar as concepções de texto dos diferentes momentos da Linguís-tica Textual. Em seguida, vamos cotejar essas concepções e relacioná-las com as noções de língua e de sujeito que as sustentam.

Durante os períodos da análise transfrástica e da elaboração das gramáticas textuais, época em que emergiram com muita força as pes-quisas de sintaxe gerativa, o texto foi concebido, de modo geral, como conjunto de sequências linguísticas. De acordo com Fávero e Koch (1988 [1983]), nessa fase os conceitos mais recorrentes de texto foram: frase complexa; signo linguístico primário e global; cadeia de pronominali-zações ininterruptas; unidade superior à frase; sequência coerente de enunciados. As propriedades organizadoras da definição de texto desse primeiro momento, segundo Bentes (2001), estavam expressas na forma de organização do material linguístico.

Desse período, o conceito de texto mais difundido no Brasil é o que relaciona o conceito de texto de Isenberg (sequência coerente de enun-ciados) com a noção de textualidade. Por exemplo, Koch e Travaglia (1989, p. 26, grifos nossos), ao discutirem a questão da coerência do tex-to, definem que “textualidade ou textura é o que faz de uma sequência linguística um texto e não uma sequência ou um amontoado aleatório de frases ou palavras”. Costa Val (1991, p. 5, grifos nossos), ao anali-

A sintaxe gerativa foi abordada na disciplina de Sintaxe em: MIOTO, C. Sintaxe do Português. Florianópolis: UFSC/CCE/LLV, 2009.

Estamos aqui nos refe-rindo aos dois primeiros momentos da Linguística Textual, abordados no Capítulo 1.

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Linguística Textual

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sar a textualidade nas redações de vestibular, chama de “textualidade ao conjunto de características que fazem com que um texto seja um texto, e não apenas uma sequência de frases”.

Analisando outras definições de texto dessa época, percebemos que

o termo enunciado é intercambiado pelo termo frase, demonstran-

do a relação entre eles. Nessas definições de texto, o enunciado é

tomado como uma unidade menor que o texto e conceituado como

“manifestação particular [...] de uma frase.” (DUCROT, 1987 [1984],

p. 164). Por exemplo, se duas pessoas (ou uma mesma pessoa em

tempos diversos) pronunciam “Faz bom tempo”, trata-se de dois

enunciados, pois proferidos por diferentes sujeitos em diferentes

momentos, de duas ocorrências da mesma frase (entendida como

uma estrutura lexical e gramatical).

Durante o momento das teorias de texto, tendo em vista a influência da Pragmática e das Teorias do Discurso, enfim, da crescente ampliação do escopo dos estudos linguísticos (da língua como sistema para a lín-gua em uso), passou-se a considerar, na elaboração do conceito de texto, aspectos relacionados à produção e à recepção dos textos, ancorados em situações de uso da linguagem. Dessa maneira, de uma estrutura, de um produto pronto e acabado, o texto passou a ser visto como um elemento importante nas atividades de comunicação. Podemos apresentar, como representantes desse momento, os conceitos de texto de Luiz Antônio Marcuschi (1983) e Ingedore Grunfield Villaça Koch (1997).

Para Marcuschi (1983, p.10-11),

o texto não é uma unidade virtual e sim concreta e atual; não é uma

simples sequência coerente de sentenças e sim uma ocorrência comu-

nicativa. [...]. Trata-se de uma unidade comunicativa atual realizada tanto

no nível do uso como ao nível do sistema. Tanto o sistema como o uso

têm suas funções essenciais.

Para Koch (1997, p. 22), o texto pode ser conceituado como

uma manifestação verbal constituída de elementos linguísticos selecio-

nados e ordenados pelos falantes durante a atividade verbal, de modo a

Observe que o autor está elaborando o conceito de texto de modo dialógico.

Nesta parte da citação, ele está se contrapondo

à concepção de texto baseada na teoria gerati-

vista, que postulava como escopo da descrição de

uma gramática textual o texto como uma unidade abstrata, como um texto

potencial. Em seguida, vai questionar o conceito

de texto como conjunto coerente de enunciados. Ambos são conceitos de

texto do primeiro e segun-do momentos da Linguísti-

ca Textual.

Terceiro momento da Linguística Textual.

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Capítulo 02Concepções de texto

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permitir aos parceiros, na interação, não apenas a depreensão dos con-

teúdos semânticos, em decorrência da ativação de estratégias de or-

dem cognitiva, como também a interação (ou atuação) de acordo com

práticas socioculturais.

Atualmente, segundo Costa Val (2004, p. 1), a partir dos avanços das teorias de texto, pode-se definir texto como “[...] qualquer produção linguística, falada ou escrita, de qualquer tamanho, que possa fazer sen-tido numa situação de comunicação humana, isto é, numa situação de interlocução”. Assim, tanto um romance como uma conversa cotidiana são textos. Para que tenha o estatuto de texto, segundo a autora, basta ao objeto que este faça sentido em determinada situação de interlocução. Para Costa Val (2004), essa concepção de texto traz duas implicações:

1) Nenhum texto tem sentido em si mesmo;

2) Todo texto pode fazer sentido, numa dada situação, para deter-minados interlocutores.

Nessa definição de texto de Val, bem como na de Koch, Marcuschi e

na maioria das definições de texto da Linguística Textual, o concei-

to de texto se fecha para os textos mediados pela linguagem verbal.

No entanto, é relevante também incluir na teorização os textos me-

diados pelas outras materialidades semióticas, como a pintura, por

exemplo. Essa inclusão não tira a força da noção de que a produção

de texto (em qualquer materialidade semiótica) é a realização de um

ato (ou ação) sobre o outro, o interlocutor, mediado pela linguagem.

Koch (2002) observa que as várias concepções de texto que vêm acompanhando (e delineando) a história da Linguística Textual levaram essa disciplina a assumir formas teóricas distintas. A autora resume tais concepções da seguinte forma (KOCH, 2002, p. 151):

1. Texto como frase complexa (fundamentação gramatical);

2. Texto como expansão tematicamente centrada de macroestruturas

(fundamentação semântica);

3. Texto como signo complexo (fundamentação semiótica);

Esta discussão pode ser exemplificada na análise de texto do Capítulo sobre Situacionalidade.

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Linguística Textual

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4. Texto como ato de fala complexo (fundamentação pragmática);

5. Texto como discurso “congelado” – produto acabado de uma ação

discursiva (fundamentação discursivo-pragmática);

6. Texto como meio específico de realização da comunicação verbal

(fundamentação comunicativa);

7. Texto como verbalização de operações e processos cognitivos (funda-

mentação cognitivista).

Analisando as concepções de texto apresentadas, podemos obser-var, de modo geral, a existência de duas vertentes básicas:

a) O texto visto como produto, ainda na sua imanência, que é o conceito básico de texto do primeiro e segundo momentos da Linguística Textual;

b) O texto visto como unidade de comunicação (interação), na sua relação com as condições de produção, que é o conceito básico de texto do terceiro momento e dos estudos atuais da Linguística Textual.

Em relação à primeira vertente, notamos que, de modo geral, as definições acerca do texto revelam um olhar para o texto como produ-to acabado, ou estrutura acabada, resultante da competência textual (e idealizada) do falante. As propriedades definidoras do texto estão ex-pressas principalmente na forma de organização do material linguístico. A ênfase recai no aspecto material e/ou formal do texto: sua extensão, seus constituintes, a relação interna entre esses constituintes. Além dis-so, segundo Bernárdez (1983), muitas vezes, o texto é visto como uma unidade linguística superior do sistema linguístico, o que mostra ainda a influência do estruturalismo nos estudos iniciais do texto. Por essas razões, Marcuschi (1983) afirma que são definições imanentes de texto, pois partem de critérios internos ao texto para defini-lo.

Já na segunda vertente, o texto passa a ser visto como unidade co-municativa (BERNÁRDEZ, 1983), e não mais como unidade linguísti-ca. Passa, portanto, a ser tomado como parte das atividades mais gerais de comunicação. Os critérios para a definição de texto são temáticos e transcendentes ao texto (à imanência do texto) (MARCUSCHI, 1983).

Embora, desde o início, a Linguística Textual bus-

casse uma teoria não imanente ao texto, que

se constituísse como uma alternativa aos estudos

estruturais da língua, como vimos no Capítulo 1, de fato, ela não conseguiu

se desvencilhar, nas fases iniciais, da forte tradição

estruturalista nos estudos linguísticos.

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Capítulo 02Concepções de texto

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Por isso, passa a ser central na definição de texto a consideração das con-dições de produção e recepção de textos, ou seja, a situação de interação e os interlocutores, pois “o texto não existe fora de sua produção ou de sua recepção” (LEONTÉV, 1969 apud FÁVERO e KOCH, 1988, p. 22).

Nas diferentes vertentes teóricas acerca da linguagem, aquele que

se enuncia é definido e conceituado de diversas formas: falante, lo-

cutor, enunciador, interactante, produtor de texto etc. Embora re-

conheçamos que essa diversidade reflete concepções teóricas dis-

tintas, para efeitos didáticos, de modo geral, usaremos os termos

produtor ou autor, considerado como aquele que se responsabili-za pelo texto enunciado. Da mesma forma, aquele a quem o texto se

destina será nomeado como interlocutor ou ouvinte/leitor. Quan-

do nos referirmos a ambos, usaremos o termo interlocutores.

Nessa vertente conceitual, a elaboração do conceito de texto leva em conta que:

a) a produção textual é uma atividade verbal, isto é, os falantes, ao pro-

duzirem um texto, estão praticando ações, atos de fala [...];

b) a produção verbal é uma atividade verbal consciente, isto é, trata-se

de uma atividade intencional, por meio da qual o falante dará a en-

tender seus propósitos, sempre levando em conta as condições em

que tal atividade é produzida [...];

c) a produção textual é uma atividade interacional, ou seja, os interlocu-

tores estão obrigatoriamente, e de diversas maneiras, envolvidos nos

processos de construção e compreensão de um texto [...] (BENTES,

2001, p. 254-255).

Segundo Koch, o conceito de texto depende das concepções que se tem de língua e de sujeito. Na concepção de língua como representação do pensamento e de sujeito como senhor absoluto de suas ações e de seu dizer,

o texto é visto como um produto – lógico – do pensamento (repre-

sentação mental) do autor, nada mais cabendo ao leitor/ouvinte senão

‘captar’ essa representação mental, juntamente com as intenções (psi-

cológicas) do produtor, exercendo, pois, um papel essencialmente pas-

sivo (KOCH, 2002, p. 16).

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Linguística Textual

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As diferentes concepções de língua, introduzidas brevemente na

disciplina de Estudos Gramaticais (veja em: GÖRSKI, E. Estudos Gramaticais. Florianópolis: UFSC/CCE/LLV, 2007), serão também

discutidas na disciplina de Linguística Aplicada. No entanto, é pre-

ciso salientar que as concepções de língua e de sujeito apresentadas

por Koch vêm das reflexões do Círculo de Bakhtin.

Na concepção de língua como código – ou seja, como apenas um instrumento para a comunicação – e do sujeito como pré-determinado pelo sistema,

o texto é visto como simples produto da codificação de um emissor a

ser decodificado pelo leitor/ouvinte, bastando a este, para tanto, o co-

nhecimento do código, já que o texto, uma vez codificado, é totalmente

explícito. Também nesta concepção o papel do ‘decodificador’ é essen-

cialmente passivo (KOCH, 2002, p. 16).

Na concepção de língua como interação (dialógica), na qual os su-jeitos são vistos como agentes sociais, “o texto passa a ser considerado o próprio lugar da interação e os interlocutores, como sujeitos ativos que – dialogicamente – nele se constroem e são construídos” (KOCH, 2002, p. 17). Como afirma Geraldi (1993 [1991], p. 102), “o outro é a medida: é para o outro que se produz o texto. E o outro não se inscreve no tex-to apenas no seu processo de produção de sentidos na leitura. O outro insere-se já na produção, como condição necessária para que o texto exista”. Em outras palavras: ao elaborar o texto, nós o fazemos pensando no interlocutor (quem ele é, o que sabe etc.) e nos efeitos de sentido que queremos produzir sobre ele (informar, convencer, esclarecer, ameaçar etc.).

Em resumo, podemos associar as duas primeiras concepções de texto apresentadas por Koch (2002) com a primeira vertente conceitual de texto, ou seja, o texto como produto acabado. Por outro lado, a tercei-ra concepção de texto da autora (texto como lugar de interação) pode

Círculo de Bakhtiné a expressão cunha-da por pesquisadores contemporâneos para se referir ao grupo de intelectuais russos que se reunia regularmente no período de 1919 a 1929, do qual fizeram parte Bakhtin, Voloshi-nov e Medvedev. A opção pelo nome de Bakhtin para se referir ao grupo deve-se, pro-vavelmente, à autoria de algumas obras de Voloshinov e Medve-dev, atribuídas também a Bakhtin por alguns es-tudiosos, e pelo fato de a maioria dos textos do Círculo ser de autoria de Bakhtin. É desse gru-po de estudiosos que se desenvolve a con-cepção de linguagem como interação. Os li-vros mais conhecidos no Brasil são Marxismo e filosofia da linguagem (VOLOCHINOV), Esté-tica da criação verbal (BAKHTIN) e Questões de literatura e estética (BAKHTIN).

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Capítulo 02Concepções de texto

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ser correlacionada com a segunda vertente conceitual de texto, isto é, o texto como unidade da comunicação discursiva, como lugar de interação.

Neste Unidade, apresentamos o histórico da Linguística Textual e as principais concepções de texto desenvolvidas pela área. Na próxi-ma Unidade, vamos discutir questões ligadas mais especificamente à constituição do texto, ou seja, à textualidade.

Leia mais!

Sobre a trajetória da Linguística Textual, indicamos a leitura do artigo de Ingedore Villaça Koch (1999) intitulado O desenvolvimento da Lin-güística textual no Brasil, publicado pela revista DELTA, disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-44501999000300007 &script=sci_arttext>. Acesso em: 10/6/2009.

Para aprofundamento sobre as concepções de texto, indicamos a leitura do capítulo Concepções de língua, sujeito, texto e sentido, publicado no livro Desvendando os segredos do texto (2002), também de autoria de Ingedore Villaça Koch.

Nessa segunda verten-te, podemos observar a influência dos estudos do Círculo de Bakhtin. Conceitos centrais de sua teoria, como interação, dialogismo, gêneros do discurso, esferas sociais, são fundamentais para a construção do conceito de texto dessa vertente.

João Wanderley Geraldi

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Unidade BPadrões de Textualidade

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Nesta Unidade, vamos abordar os padrões que constituem a tessitura dos textos, chamados de padrões de textualidade, os quais serão relidos à luz dos aspectos enunciativos do texto (objeto de estudo de uma das ver-tentes atuais da Linguística Textual) e à luz dos gêneros do discurso.

Apesar de o estudo dos padrões de textualidade estar ligado a um momento de pesquisa clássico da Linguística Textual, consideramos que o aprofundamento dessa temática, contraposta e complementada hoje com os estudos dos gêneros do discurso, é extremamente relevante para a formação do professor de Língua Portuguesa (e do professor de um modo geral), pois lhe fornece base teórica necessária para o trabalho com determinados aspectos do ensino-aprendizagem das práticas de escuta, leitura e produção textual. Por essa razão, ao final de cada Se-ção, também serão apresentadas algumas orientações pedagógicas para o trabalho em sala de aula. Salientamos que essa opção de abordagem teórica, ainda que indicada por alguns autores da Linguística Textual, não foi desenvolvida até o presente. Optamos por fazê-lo aqui, pelas razões acima indicadas.

Os objetivos previstos para esta Unidade são:

Ӳ Reconhecer os padrões de textualidade;

Ӳ Identificar o papel dos padrões de textualidade na tessitura dos textos;

Ӳ Reconhecer a importância do conhecimento dos padrões de textualidade para o trabalho com o ensino-aprendizagem das práticas de escuta, leitura e produção textual nas aulas de Lín-gua Portuguesa.

Para atingir os objetivos propostos, dividimos a Unidade em sete capítulos: no primeiro capítulo da Unidade, discutimos o conceito de textualidade e apresentaremos uma visão geral dos padrões de textuali-dade; nos demais capítulos, cada um desses padrões será abordado em mais detalhes.

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Capítulo 03Noções gerais

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3 Noções GeraisNa década de oitenta, no Brasil, os aspectos mais focalizados nas

pesquisas em Linguística Textual foram os padrões de textualidade, a partir do conceito introduzido por Robert-Alain de Beaugrande e Wolf-gang Dressler, em 1981, no livro Introduction to text linguistics. Para os autores, o texto pode ser definido como uma ocorrência comunicativa que reúne/satisfaz sete padrões constitutivos da textualidade, que são:

a) coesão;

b) coerência;

c) intencionalidade;

d) aceitabilidade;

e) informatividade;

f) situacionalidade;

g) intertextualidade.

No livro citado, os autores não apresentam explicitamente um con-ceito de textualidade, mas, pela análise da obra e dos padrões de textu-alidade propostos, podemos definir a textualidade como o conjunto de características manifestas/percebidas no texto, em uma dada situação de interação, que fazem com que o mesmo seja compreendido pelos interlo-cutores como um todo significativo, na situação de interação considerada.

Assim, dada a relevância dos padrões de textualidade para a com-preensão de como se constitui o texto e sua interpretação, eles serão o objeto de estudo desta Unidade. No entanto, à guisa de introdução, faremos já aqui uma breve exposição de cada um deles, segundo a con-cepção de Beaugrande e Dressler (2002 [1981]):

Ӳ Coesão – Diz respeito às formas como os componentes do tex-to de superfície, isto é, as palavras que efetivamente ouvimos ou vemos, conectam-se em uma sequência veiculadora de sen-tido. Para isso, a coesão deve se relacionar com os outros pa-drões de textualidade;

Esses padrões já foram introduzidos na disciplina de Produção Textual Aca-dêmica I. Veja em: ZAN-DOMENEGO, D.; CERUTTI-RIZZATTI, M. E. Produção Textual Acadêmica I. Florianópolis: UFSC/CCE/LLV, 2008.

No Brasil, a textualidade foi articulada por muitos pesquisadores com a noção de texto como se-quência de enunciados. O exemplo mais eloquente dessa perspectiva teórica é o conceito de Koch e Travaglia (1989, p. 26): “textualidade ou textura é o que faz de uma sequên-cia linguística um texto e não uma sequência ou um amontoado aleatório de frases ou palavras”.

Como a obra de Beau-grande e Dessler de 1981 que citamos é uma versão digitalizada de 2002, va-mos usar esta data como referência nas citações, se-guida da data da primeira edição entre colchetes.

Dressler e Beaugrande

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Ӳ Coerência – Diz respeito às formas nas quais os componentes do mundo textual, isto é, a configuração de conceitos e relações que subjazem ao texto de superfície, são mutuamente acessí-veis e relevantes. A coerência não é uma mera característica dos textos, mas antes o resultado de processos cognitivos entre os usuários de textos;

Ӳ Intencionalidade – Diz respeito à atitude do produtor de que o conjunto de ocorrências deva constituir um texto coeso e co-erente, eficiente ao cumprir as intenções do produtor. Relacio-na-se às intenções do autor, que podem ser: informar, impres-sionar, convencer, pedir, ofender etc.;

Ӳ Aceitabilidade – Diz respeito à atitude do interlocutor do tex-to de que o conjunto de ocorrências deva constituir um texto coeso e coerente e que tenha algum uso e relevância para o in-terlocutor;

Ӳ Informatividade – Diz respeito ao grau de informação contido em um texto: se as ocorrências do texto apresentado são espe-radas versus não-esperadas, ou conhecidas versus desconheci-das/incertas.

Ӳ Situacionalidade – Diz respeito aos fatores que tornam um texto relevante para uma dada situação de ocorrência. O sentido e a compreensão do texto são decididos pela situacionalidade.

Ӳ Intertextualidade – Diz respeito aos fatores que fazem a com-preensão de um texto dependente do conhecimento de um ou mais textos já existentes.

Esses padrões de textualidade têm sido rediscutidos recentemen-te, uma vez que, à época, foram interpretados e aplicados por pesqui-sadores no estudo do texto concebido como produto. Beaugrande, no livro New foundations for a science of text and discourse: freedom of access to knowledge and society through discourse (Novos fundamentos para uma ciência do texto e do discurso: liberdade de acesso ao conhe-cimento e à sociedade através do discurso) (2004 [1997]), aborda essa problemática. Discute, inicialmente, o fracasso de se estudar o texto a partir de sua descrição formal como conjunto de frases, porque o texto

Robert de Beaugrande dis-ponibiliza grande parte de

sua produção teórica em seu sítio pessoal: http://www.beaugrande.com/

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Capítulo 03Noções gerais

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é, em essência, uma unidade funcional. Dessa constatação, lembra o autor, o foco passou da elaboração de gramáticas do texto para o estu-do da textualidade.

Apesar disso, o autor salienta que essa passagem não foi suficien-temente longe, pois os padrões de textualidade propostos na obra de sua autoria e de Dressler (1981) foram equivocadamente interpretados a partir de uma perspectiva formal (texto produto, abstraído das con-dições de produção) e à luz dos estudos estruturalistas, fazendo-se uma correlação entre os padrões de textualidade e os níveis linguísticos, com vistas a analisar os textos: Passou-se a associar coesão com morfologia, sintaxe e gramática; coerência com semântica; intencionalidade, aceita-bilidade e situacionalidade com pragmática; informatividade com tópi-co/comentário e tema/rema; e intertextualidade com estilística.

Essas correlações, segundo o autor, são inadequadas, pois os níveis linguísticos foram descritos em termos formais e no isolamento da lin-guagem nela própria como um sistema virtual (abstrato). A associação dos padrões de textualidade a níveis linguísticos fez com que se olhasse o texto como produto, a partir de sua imanência, e incentivou que se tra-tasse cada padrão de textualidade isoladamente, sem correlação com os outros. Além disso, esses padrões de textualidade foram relidos como ca-racterísticas do texto em si e como critérios/fatores para se avaliar se um dado texto particular era coeso ou não, coerente ou não, por exemplo.

Para Beaugrande (2004 [1997]), esses padrões deveriam ser vistos de modo funcional, integrado e em uma perspectiva transdisciplinar, pois o texto é um evento comunicativo em que convergem questões de ordem linguística, cognitiva e social. Portanto, “a textualidade é não só a qualidade essencial de todos os textos, mas também uma realização hu-mana sempre que um texto é textualizado [...] um texto não existe como texto a não ser que alguém o esteja processando.” (BEAUGRANDE, 2004 [1997], cap. I, §41). Em outras palavras, os sete padrões de textua-lidade não são critérios/regras para identificar textos e não-textos – pois não existem não-textos –, mas são princípios que orientam o processa-mento (produção) do texto e sua interpretação e com os quais se atribui textualidade a um artefato. Um texto como produto é um mero artefato, segundo o autor, que se transforma em um texto no ato da interação.

Segundo o estruturalismo, a língua é uma estrutura composta de diferentes níveis hierarquizados. Cada nível é uma camada de análise, possui suas regras e é formado por unidades, cujas combina-ções formam as unidades do nível superior. Por exemplo, a combinação dos fonemas (nível fonoló-gico) produz os morfemas (nível do morfema).

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Vale destacar que, dado o sentido que se cristalizou em torno do ter-mo textualidade, como resultado das abordagens que tomaram o texto como produto, surge, em muitas pesquisas recentes, o termo textualização, com o objetivo de evidenciar um afastamento teórico em relação a essa noção de textualidade, que a instancia no texto como produto e a toma como fundamento para estabelecer a fronteira entre um texto e um não-texto. Na perspectiva da textualização, o sentido do texto não reside na sua materialidade, pois está atrelado às condições de produção do texto, ou seja, às condições cognitivas e sociais que estão imbricadas nos eventos comunicativos. Assim sendo, “o sentido do texto não está no texto, não é dado pelo texto, mas é produzido por locutor e alocutário a cada interação, a cada ‘acontecimento’ de uso da língua” (COSTA VAL, 2008, p. 60). Pode-mos observar que esse conceito de textualização converge para a noção de textualidade conforme proposta por Beaugrande e Dressler (2002 [1981]).

Com as crescentes pesquisas acerca dos gêneros do discurso no campo da Linguística Aplicada e na vertente enunciativa da Linguística Textual, os padrões de textualidade podem ser relidos à luz dos gêneros. Os estudos sobre os gêneros do discurso intensificam-se no Brasil desde a década de noventa, em decorrência, dentre outros fatores, dos estudos do texto a partir de suas condições de produção e da publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997) pelo MEC.

De modo sucinto, segundo Bakhtin (2003 [1979]), os gêneros cons-tituem-se a partir do surgimento e da (relativa) estabilização de novas situações sociais de interação e, uma vez constituídos, medeiam as inte-rações dessa situação social. Tomemos, como exemplo, o caso do gênero bula de medicamento. Originalmente destinada a servir para comuni-cação entre o laboratório e o profissional de saúde, a bula era vertida em estilo técnico e bastante hermético. Em tempos recentes, devido ao interesse do paciente em acompanhar a prescrição médica, ou, talvez, devido ao reconhecimento do fenômeno da automedicação, o estilo da bula passou a ser cada vez mais acessível ao cidadão comum e já existem muitas bulas didaticamente escritas na forma de perguntas e respostas.

Cada gênero tem sua concepção de autor e interlocutor, tem uma finalidade discursiva própria e apresenta certo modo de composição textual e estilo particular. Por exemplo, o mesmo indivíduo assume pa-

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Capítulo 03Noções gerais

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péis de autor bastante diversos ao escrever um romance ou uma tese; um artigo científico e um livro didático dirigem-se a interlocutores dis-tintos; a finalidade discursiva do artigo científico (apresentar resultados de pesquisa) é diferente daquela que tem o livro didático (apresentar conteúdos escolares aos alunos e mediar seu ensino-aprendizagem); o artigo científico e a notícia têm estilos diferentes, mesmo que ambos sejam redigidos na variedade linguística de prestígio.

Os gêneros do discurso são concebidos como modos sociais de in-teração sócio-historicamente constituídos, pois conduzem o processo de produção e interpretação de textos. Segundo Bakhtin, não consegui-mos interagir com pertinência em dada situação se não dominarmos o gênero dessa interação. No processo de produção, os gêneros balizam o autor: Em que esfera social se encontram autor e interlocutor? Em qual interação social? Qual a finalidade dessa interação? Quem é o in-terlocutor previsto? O que dizer e como dizer? No ato da leitura, se não soubermos a que gênero relacionar o texto que estamos lendo, teremos dificuldade em interpretá-lo. Será um artigo assinado? Uma crônica? Um editorial? Esses três gêneros circunscrevem diferentes situações de interação e, por isso, apresentam diferentes finalidades discursivas, o que gera expectativas distintas para o interlocutor e diferentes possibili-dades de interpretação dos textos a eles vinculados.

Nessa conceituação de gênero, podemos propor que os padrões de textualidade são balizados pelos gêneros, pois estes vão orientar diferen-ças de textualização dos textos que se inscrevem em diferentes gêneros. Até mesmo os padrões que foram inicialmente compreendidos como ligados à materialidade do texto – a coesão e a coerência – constituem ações linguísticas e discursivas mobilizadas com vistas a cumprir o pro-pósito discursivo dos interlocutores dentro de determinado gênero.

A construção da coesão dos textos, por exemplo, é largamente orientada pelos gêneros. É possível perceber nos fragmentos de texto a seguir a diferença de manifestação linguística da coesão em um artigo de divulgação científica e em um anúncio, que está ligada ao estilo de cada um dos gêneros.

1) Em sua teoria da relatividade especial de 1905, Einstein mos-trou que nossas noções de espaço e tempo como entidades rígi-

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das e imutáveis são ilusões causadas pelo fato de que os nossos movimentos são muito lentos, se comparados à velocidade da luz. Se nos movêssemos a velocidades comparáveis, mas me-nores, veríamos as coisas encolhendo e o tempo passaria mais devagar para elas. Entre as conseqüências, Einstein demonstra a equivalência entre energia e matéria, algo que só é possível a altíssimas energias. Na relatividade geral, de 1916, Einstein redefine a gravidade como sendo a curvatura do espaço. A ex-pansão do Universo e os buracos negros são descritos por essa teoria. (BRUM, E. O senhor do universo. In: Época, nº 429, 7 ago. 2006, p. 78-88.)

2) Era uma vez um menininho, de carne e osso, igual a tantos que se deleitam nas coisas simples que a vida dá. Ria nos seus mun-dos de faz de conta, voava nas asas dos urubus, assustava os peixes, nariz achatado nos vidros dos aquários, assobiava para os perus, andava na chuva. Todas estas coisas que as crianças fazem e os adultos desejam fazer e não fazem, por vergonha. Sua vida escorria feliz por cima do desejo. (ALVES, Rubem. Pinóquio às avessas: uma estória sobre crianças e escolas para pais e professores. Campinas, SP: Verus Editora, 2005.)

Como destacam Beaugrande e Dressler (2002 [1981], cap. 4, §41, grifo dos autores),

se a textualidade assenta-se sobre continuidade [...], os usuários de

texto veriam, naturalmente, as situações e eventos do texto e do mun-

do como relacionados. Lacunas perceptíveis poderiam ser preenchidas

mediante atualização, isto é, fazendo inferências sobre como o texto-

mundo está evoluindo.

Dessa forma, mediante análise dos tempos verbais, o lei-tor pode concluir, no primeiro caso (artigo de divulgação cien-tífica), que o tempo presente é usado para expressar as verdades gerais da ciência. Já no segundo trecho (conto), os verbos no pre-térito imperfeito descrevem a situação inicial de uma narrati-va, anterior ao conflito. Então, leitores familiarizados com o gêne-ro conto sabem que a situação descrita eventualmente será, total ou parcialmente, alterada.

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Capítulo 03Noções gerais

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Segundo Koch (1991 [1989]), a recorrência de termos verbais é um mecanismo de coesão, pois indica se se trata de um sequência de comen-tário (demonstra, redefine) ou de relato (assobiava, andava, escorria).

Sobre a relação entre gêneros e textualidade, Matencio (2006) con-sidera que os estudos dos gêneros têm o potencial de promover refle-xões acerca das relações entre a materialidade linguística e textual e o contexto histórico de produção de sentidos, e possibilita que se conside-re, a um só tempo:

(i) as instâncias ou esferas sociais que delimitam historicamente os dis-

cursos e seus processos, particularmente no que se refere às relações

entre instituições, lugares e papéis sociais e às suas representações;

(ii) as práticas discursivas efetivamente em construção nessas instân-

cias num aqui-agora, num dado evento de interação, ou seja, a

assunção efetiva de lugares e papéis comunicativos, as representa-

ções das ações que se deve empreender e dos modos pelos quais

elas podem se materializar numa forma linguageira;

(iii) os processos de textualização que daí resultam, isto é, a pro-dução de ações linguageiras, por um eu e por um tu, no aqui-agora. (MATENCIO, 2006, p. 139-140, grifo nosso).

Vejamos, na citação de Costa Val a seguir, como podem ser apreen-didos os padrões de textualidade, tal como propostos por Beaugrande e Dressler (2002 [1981]) e retomados nos estudos mais atuais, a partir da exemplificação da relação desses padrões em um texto de um dado gênero, o catálogo telefônico:

Um catálogo telefônico, que não apresenta as marcas linguísticas de

coesão responsáveis pela textura, tal como concebem Halliday & Hasan

(1976), é analisado por Beaugrande (1997) como produto que se textu-aliza num rico processo linguístico, cognitivo e cultural, à medida que a

ele aplicamos os sete princípios: com a coesão, conectamos suas formas

e padrões (nomes e números dispostos em lista); com a coerência, conec-

tamos seus significados; considerando a intencionalidade, supomos que

ele tenha algum propósito e interpretamos o que os produtores pode-

riam pretender significar e conseguir com aquela disposição formal e se-

mântica; atentando para a aceitabilidade, assumimos o que pretendemos

com ele e o que nos dispomos a fazer para tomá-lo como texto; buscan-

do informatividade, trabalhamos no sentido de interpretar os conteúdos

Essa questão será abor-dada no Capítulo sobre coesão.

São exemplos de esferas sociais a escola, a ciência, o jornalismo, a arte, a religião etc.

A autora não relaciona os padrões de textualidade com a noção de gêne-ros. No entanto, o modo como apresenta a exem-plificação torna a relação pertinente.

O exemplo da autora é se-melhante ao proposto por Beaugrande (2004 [1997]), no qual a autora se baseia.

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que ele nos apresenta a partir dos nossos conhecimentos anteriores; em

termos de situacionalidade, relacionamos o evento-texto às circunstân-

cias em que interagimos com ele, considerando como sua configuração

pode torná-lo útil e pertinente aos objetivos que temos em mente; ao in-

teragir com ele, inevitavelmente, recorremos à nossa experiência anterior

com outros textos, processando-o, pois, em função da rede de intertextu-alidade em que o situamos. (COSTA VAL, 2000, p. 47-48).

Implicações para o processo de ensino-aprendizagem

Como vimos neste Capítulo, segundo Beaugrande (2004 [1997]),

não existem não-textos. Isso porque quando as pessoas interagem,

elas buscam a resposta do interlocutor e, para isso, procuram cons-

truir um texto que atinja essa intencionalidade. Essa posição pode

levantar questionamentos para o professor de Língua Portuguesa,

tais como: Se não existe o não-texto, se tudo é texto, se não exis-te texto sem coerência e sem coesão, uma vez que os padrões de textualidade estão sempre presentes, então, não há nada mais a fazer com os textos produzidos por meus alunos? Veja a resposta

de Beaugrande (2004 [1997]) e Costa Val (2000):

“Os padrões são aplicáveis sempre que um artefato seja textualiza-do, mesmo que alguém julgue o resultado ‘incoerente’, ‘não inten-

cional’, ‘inaceitável’ etc. Esses julgamentos indicam que o texto não

é apropriado (adequado para a ocasião), ou eficiente (fácil de lidar),

ou eficaz (proveitoso para o objetivo proposto); mesmo assim é um

texto. Normalmente, as perturbações e irregularidades são descon-

sideradas, ou, na pior das hipóteses, interpretadas como sinais de

espontaneidade, estresse, sobrecarga, ignorância, e assim por dian-

te, e não como perda ou negação da textualidade”. (BEAUGRANDE,

2004 [1997], cap. 1, § 52).

“Acredito, pelo contrário, que este modo de compreender a textua-

lidade abre perspectivas mais promissoras para o ensino e gostaria,

agora, de mostrar as possibilidades de aplicação que vejo para este

quadro teórico nas salas de aula de Língua Portuguesa.” (COSTA VAL,

2000, p. 48-49).

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Capítulo 03Noções gerais

35

Na sequência de seu artigo, a autora apresenta um texto de um

aluno produzido em situação de exame e mostra como o professor

pode interpretar diferentemente um texto de um aluno quando ele

o olha não como um artefato, mas como “resultado de uma ativida-

de linguístico-cognitiva socialmente situada”. O texto analisado é:

Meu amigo

Eu queria ter um amigo e minha mãe o expulsou de casa.

Lá fora tinha um pouco de gente e eu vendi o cachorro.

E à noite caiu um temporal. E a mãe teve que pagar um prejuízo maior, teve de trocar o telhado da casa.

Costa Val demonstra que quando resgatamos as condições de pro-

dução desse texto entendemos por que o aluno textualizou esse

texto. Veja a análise completa que ela faz desse texto, lendo o artigo

da autora, que se encontra na webteca desta disciplina.

Em resumo, quando o professor olha o texto de seu aluno a partir

das condições de produção, ele consegue entender por que o aluno

textualizou determinado texto e tem condições de indicar caminhos

para que esse aluno, no ato da reescritura de seu texto, consiga ade-

quá-lo àquelas condições de produção, de modo que ele seja aceitá-

vel para aquela situação de interação. Vamos voltar a essa discussão

na disciplina de Linguística Aplicada, quando discutirmos a noção

de gêneros e os processos de reescritura de textos em sala de aula.

Neste Capítulo, exploramos o conceito de textualidade e aborda-mos brevemente os padrões de textualidade. Nos Capítulos seguintes desta Unidade serão apresentados mais detalhadamente os sete padrões de textualidade.

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Capítulo 04Coesão textual

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4 Coesão textualBeaugrande e Dressler (2002 [1981], cap. 4, §1) afirmam que “co-

esão e coerência são noções centradas no texto, designando operações dirigidas aos materiais do texto”. À primeira vista, parece que, para os autores, a coesão é um fenômeno que deve ser analisado no texto de superfície e explicado a partir dele. Essa impressão, contudo, logo se desfaz quando os autores discutem longamente a relação entre coesão e processamento cognitivo do texto.

Apesar de a concepção cognitiva de coesão apresentada por Beau-grande e Dressler (1981) estar até mais afinada com as tendências cog-nitivas de abordagem do texto, no restante deste Capítulo, adotaremos como referência obras de Ingedore Koch, especialmente Koch (1989), por serem essas obras seminais e que muito contribuíram para popula-rizar entre nós o conceito de coesão textual e tiveram uma importância capital para a Linguística Textual no Brasil.

Neste livro, dadas as condições materiais deste suporte, os exemplos

apresentados são apenas de textos escritos. No entanto, ressaltamos

que os padrões de textualidade referem-se também aos textos ver-

bais orais e aos mediados por outros sistemas semióticos.

Texto 1

Pinóquio às avessas

Era uma vez um menininho, de carne e osso, igual a tantos que se

deleitam nas coisas simples que a vida dá. Ria nos seus mundos de

faz de conta, voava nas asas dos urubus, assustava os peixes, nariz

achatado nos vidros dos aquários, assobiava para os perus, andava

na chuva. Todas estas coisas que as crianças fazem e os adultos dese-

jam fazer e não fazem, por vergonha. Sua vida escorria feliz por cima

do desejo.

Não sabia que uma conspiração estava em andamento. Tudo come-

çara bem antes, quando um nome lhe fora dado. Nome do pai. Claro,

Neste Capítulo apresen-taremos a coesão textual sob a perspectiva da Lin-guística Textual da década de oitenta. Na Unidade C, no capítulo sobre referen-ciação, a coesão será re-tomada sob a perspectiva dos estudos mais recentes da Linguística Textual. Esse percurso tem por objetivo evidenciar a trajetória da Linguística Textual, desde sua fase cognitivista até a fase sociocognitiva.

A história original de Pinóquio foi escrita em 1881, na Itália, por Carlo Loren-

zini, sob o pseudônimo de Carlo Collodi. A história versa sobre um boneco de

madeira que queria se tornar um menino de verdade e alcança seu objetivo através

da Fada Azul.

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Linguística Textual

38

confissão de intenções: que o menino sem nome e sem desejos acei-

tasse como seus o nome e desejos de um outro que ele nem mesmo

conhecia. Filho, extensão do pai, realização de desejos não realizados,

sobrevivência do seu corpo, uma pitada de onipotência, uma gota de

imortalidade.

“Que é que ele vai ser quando crescer? Médico? Diplomata? Cientista?”

E as conversas se prolongavam, temperadas com sorrisos e boas inten-

ções, enquanto silenciosas se teciam as malhas do desejo em que pai e

mãe esperavam colher/ acolher/ encolher o menino dos desejos simples...

Até que chegou o dia em que lhe foi dito: “É preciso ir para a escola.

Todos os meninos vão. Para se transformarem em gente. Deixar as coisas

de criança. Em cada criança brincante dorme um adulto produtivo. É

preciso que o adulto produtivo devore a criança inútil.”

E assim aconteceu. Há certos golpes do destino contra os quais é inútil lutar.

O menino de carne e osso aprendeu coisas curiosas: nomes de heróis,

frases que teriam dito, as alturas de montes onde nunca subiria, as fun-

duras de mares onde nunca desceria, a distância de galáxias, o ‘SE’, par-

tícula apassivadora, o “se”, símbolo de indeterminação do sujeito, nomes

de cidades de países longínquos, suas populações e riquezas, fórmulas

e mais fórmulas...

Sabia que tudo aquilo deveria ter um motivo. Só que ele não entendia.

O desejo permanecia selvagem. E disto eram prova aquelas notas ver-

melhas no boletim, testemunhas de como o menino cavalgava longe

do desejo dos outros, conspiradores secretos, escondidos na monoto-

nia dos currículos que não faziam o seu corpo sorrir...

“Pra que serve tudo isto?”, ele perguntava. E o pai respondia, sábio e

paciente: “Um dia você saberá. Por ora basta de saber que papai sabe o

que é melhor para seu filho...”

O menino cresceu. E aconteceu que, em meio às suas rotinas, veio a se

encontrar com dois cavalheiros bem vestidos e de fala branda, que se

puseram a contar estórias de um mundo encantado sobre o qual ele

nunca ouvira falar. Eles disseram de heróis em aventais brancos caval-

gando microscópios e telescópios, brandindo máquinas fantásticas e

aparelhos misteriosos, em meio a líquidos mágicos que faziam viver e

morrer, encastelados em templos onde as coisas visíveis ficavam invi-

síveis e as coisas invisíveis ficavam visíveis, e lhe disseram de prodígios

de verdade, e lhe perguntaram se ele não desejava se transformar num

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Capítulo 04Coesão textual

39

mago, num artista... A recompensa? O Poder, o conhecimento de segre-

dos que ninguém conhece, a glória, ser olhado por todos como um ser

diferente, sublime, superior. Se os seus prodígios fossem maiores que

os de todos, ele poderia aparecer no palco supremo da ciência, em país

distante, onde os mortais se revestem de imortalidade...

O menino grande se lembrou dos sonhos do menino pequeno. E sorriu.

Finalmente, chegara o momento da sua realização. Estranhou que os

narizes dos respeitáveis cavalheiros tivessem crescido enquanto fala-

vam. Mas, logo o tranquilizaram: “É só para te cheirar melhor, meu filho...”

Começaram as transformações. Primeiro os olhos. Já não refletiam ou-

tros olhares e nem borboletas... Aprenderam a concentração, a discipli-

na. Depois o corpo, que desaprendeu a dança, o voo dos papagaios

e o brinquedo. Era necessário dedicar-se totalmente. Os pensamentos

abandonaram as fantasias e os contos de fadas. Passaram a morar no

mundo das fábulas e dos experimentos. Até o prazer da comida se sa-

tisfez com os sanduíches rápidos do almoço, e na cama o corpo se es-

queceu do corpo...

E aprendeu coisas preciosas. Que o corpo do cientista é neutro. Que ele não

se comove por considerações de valor ou prazer. Que está acima da vida e

da morte (isto é coisa de políticos, militares e clérigos), em dedicação total

ao saber. Bastava-lhe ser um devotado servidor do progresso da Ciência.

Mas tantos sacrifícios acabaram por receber merecida recompensa. A

sorte soprou, favorável, e de seu corpo diferente surgiu uma nova ma-

gia, e o palco da imortalidade lhe foi aberto. Lá, perante todos, compre-

endeu que valera a pena. Duas lágrimas lhe rolaram pela face.

Já não era o menino de outrora, carne e osso , crescera. Estava diferente.

Os aplausos de madeira enchiam a sala. Era a glória. E foi então que o mi-

lagre aconteceu. O recinto se encheu de suave luminosidade, e a Mosca

Azul, que até então só habitava os seus sonhos, veio de longe e roçou

o seu rosto com suas asas. E a grande transformação aconteceu. Era um

boneco de madeira, inteligência pura, sem coração. E os milhares de

bonecos, iguais, de pé, não paravam de tamanquear os seus aplausos

ao novo irmão, enquanto gritavam o seu nome: “Pinóquio, Pinóquio,

Pinóquio...”.

ALVES, Rubem. Pinóquio às avessas: uma estória sobre crianças e escolas

para pais e professores. Campinas, SP: Verus Editora, 2005.

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Linguística Textual

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No Texto 1, os elementos destacados em roxo e em negrito são exemplos de mecanismos de coesão textual. Koch (2004, p. 35) define coesão como “[...] a forma como os elementos linguísticos presentes na superfície textual se interligam, se interconectam, por meio de recur-sos também linguísticos, de modo a formar um ‘tecido’ (tessitura), uma unidade de nível superior à da frase, que dela difere qualitativamente”. Ela é responsável, em grande medida, pela legibilidade do texto, uma vez que explicita as relações semântico-discursivas entre os elementos linguísticos que compõem o texto.

As palavras destacadas em roxo correspondem a elementos que fazem referência a outro elemento do texto. Na maior parte do texto, desenvolve-se um processo de retomada do item Pinóquio, que ocorre desde o título do texto, Pinóquio às avessas, até o fechamento do texto, Pinóquio, Pinóquio, Pinóquio... Há também referências a outros itens le-xicais textualizados no texto, como é o caso de corpo do cientista, que é retomado pelos pronomes ele e lhe em: Que o corpo do cientista é neutro. Que ele não se comove por considerações de valor ou prazer. [...] Bastava-lhe ser um devotado servidor do progresso da Ciência [...]

Já as palavras destacadas em negrito correspondem a elementos que atuam na sequenciação no texto, ou seja, fazem o texto progredir, como, por exemplo: E as conversas se prolongavam, temperadas com sor-risos e boas intenções, enquanto silenciosas se teciam as malhas do desejo em que pai e mãe esperavam colher/ acolher/ encolher o menino dos de-sejos simples [...].

Fazer a retomada de um item lexical (palavras destacadas em roxo) ou realizar a sequenciação do texto (palavras destacadas em negrito) são dois grandes movimentos de coesão textual, que têm a função de estabelecer relações semântico-discursivas entre os segmentos do texto, de modo que o processo de construção do texto, por meio de retomadas e sequenciações, constitua-se como uma unidade de sentido.

A partir da análise das formas e/ou do funcionamento dos meca-nismos de coesão na construção da textualidade, muitos autores têm tentado classificar esses mecanismos. Por exemplo, Koch (1991 [1989]) propõe a existência de duas grandes modalidades de coesão, observadas a partir de sua função na construção da textualidade: 1. Coesão referen-

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Capítulo 04Coesão textual

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cial; e 2. Coesão sequencial, que se subdividem em novos agrupamentos. Já Fávero (1991), por sua vez, apresenta a seguinte proposta de classifi-cação, também baseada, segundo a autora, na função que esses mecanis-mos estabelecem na construção do texto: 1. Coesão referencial; 2. Coesão recorrencial e 3. Coesão sequencial. Essa classificação, como a de Koch (1991[1989]), também se subdivide em novas unidades.

Neste Capítulo, seguiremos a apresentação da coesão textual a par-tir do agrupamento proposto por Koch (1991[1989]), a saber, a coesão referencial e a coesão sequencial.

4.1 Coesão referencial

De acordo com Koch (1991[1989]), a coesão referencial é aquela em que um componente da superfície textual faz remissão a outro(s) elemento(s) do universo textual, ou seja, é aquela que marca as retoma-das dos referentes textuais ao longo do texto. Koch (1991[1989]) chama de forma referencial ou forma remissiva o componente que faz referência a outro elemento do texto e de elemento de referência ou referente textual a forma que é referenciada.

No Texto 1, as ocorrências dos pronomes sua e lhe (formas refe-renciais/remissivas) fazem referência a outro elemento do texto. O pronome possessivo sua (Sua vida escorria feliz por cima do desejo) e o pronome pessoal lhe (Tudo começara bem antes, quando um nome lhe fora dado), como formas referenciais/remissivas, retomam o referente textual ativado anteriormente: Pinóquio às avessas. Do mesmo modo, as formas remissivas menininho de carne e osso, menino sem nome e sem desejos, filho, extensão do pai, ele, menino de carne e osso, menino de outrora retomam o referente textual Pinóquio. Entretanto, essas reto-madas, no processo coesivo, não têm somente a função de estabelecer a ligação com o referente, pois esse referente não é idêntico: ele muda ao longo do texto, e as retomadas coesivas apontam para essa mudança; logo, o processo coesivo não tem implicações somente na interligação, mas também na ressignificação do referente. Por exemplo, Pinóquio é retomado, mas também ressignificado como menininho de carne e osso e, no final, como boneco de madeira, inteligência pura, sem coração.

Essa questão será retoma-da na Unidade C.

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Linguística Textual

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De acordo com Koch (1991[1989]), a referência/remissão a um refe-rente textual pode ser exofórica ou endofórica. A exofórica ocorre quan-do a remissão é feita a algum elemento de referência da situação comu-nicativa, isto é, quando o referente está fora do texto. Já a endofórica, por sua vez, ocorre quando o referente está expresso no texto. Se o referente textual preceder a forma referencial/remissiva, tem-se a anáfora; se vier após a forma referencial/remissiva, tem-se a catáfora.

No Texto 1, temos um exemplo de anáfora em: [...] dois cavalheiros bem vestidos e de fala branda, que se puseram a contar estórias de um mundo encantado sobre o qual ele nunca ouvira falar. Eles disseram de heróis em aventais brancos cavalgando microscópios e telescópios, bran-dindo máquinas [...], uma vez que se e eles fazem referência/remissão a dois cavalheiros e essa retomada está textualizada após o referente tex-tual. Já em Tudo começara bem antes temos um caso de catáfora, pois a forma remissiva/referencial Tudo é resumitiva de um referente que será explicitado em seguida: quando um nome lhe fora dado.

Koch (1991[1989]) agrupa os mecanismos de coesão referencial a partir de duas grandes modalidades: formas remissivas não-referenciais e formas remissivas referenciais. A seguir, apresentaremos uma síntese desses agrupamentos.

4.1.1 Formas remissivas não-referenciais

As formas remissivas não-referenciais, de acordo com Koch (1991[1989], p. 33, grifos da autora), “não fornecem ao leitor/ouvinte quaisquer instruções de sentido, mas apenas instruções de conexão (por ex., concordância de gênero e número) e podem ser presas ou livres”.

As formas remissivas não-referenciais presas, segundo Koch (1991[1989], p. 34), “são as formas que vêm relacionadas a um nome com o qual concordam em gênero e/ou número, antecedendo-o e ao(s) possível(eis) modificador(es) de nome dentro do grupo nominal e que, embora não sendo (a priori e sempre) artigos, exercem, nessas condi-ções, a ‘função artigo’, isto é, pertencem ao paradigma articular funcio-nalmente definido”.

Nas pesquisas atuais, utiliza-se o termo anáfora

para se referir aos dois processos. Assim, na Uni-

dade C, aprofundaremos o conceito de anáfora.

O conceito de arti-go exposto por Koch

(1991[1989]) é mais amplo que o apresentado nas

gramáticas tradicionais. Nesse caso, outras ca-

tegorias – pronomes e numerais – da gramática

tradicional podem assumir a “função de artigo”, que é

acompanhar um nome e seus modificadores.

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Capítulo 04Coesão textual

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Podem desempenhar a função de formas não-referenciais presas os

artigos, os pronomes adjetivos (demonstrativos, possessivos, inde-finidos, interrogativos) e os numerais cardinais e ordinais (KOCH,

1991[1989]).

No Texto 1, podemos observar como a coesão referencial se realiza por meio de artigos definidos (o, a, os, as) e indefinidos (um, uma, uns, umas). No seguinte fragmento, o sintagma nominal (SN) nome é introduzido pela primeira vez pelo artigo indefinido um: Tudo começara bem antes, quando um nome lhe fora dado. O artigo indefinido geralmente é utilizado como catafórico e indica que o sintagma, o termo nome, está sendo introduzido no texto pela primeira vez. Já na inserção subsequente do mesmo sintagma, utiliza-se o artigo definido, que é anafórico, como em: [...] aceitasse como seus o nome e desejos de um outro que ele nem mesmo conhecia.

Em síntese, a sequência de uso de artigos nesse exemplo – primei-ramente o uso de artigo indefinido e, a seguir, o uso de artigo definido – não é aleatória, trata-se de uma regra do emprego dos artigos como formas remissivas. Koch (1991[1989], p. 35) descreve essa regra da se-guinte maneira: “[...] um referente introduzido por um artigo indefinido só pode ser retomado por um SN introduzido por artigo definido [...]. Já um SN introduzido por um artigo definido só pode ser retomado por outro SN introduzido por um artigo definido [...]”.

Outra forma remissiva não-referencial presa com função de artigo são os pronomes adjetivos. Os pronomes adjetivos são elementos de re-tomada quando acompanham o núcleo do SN. Nesses casos, não só o adjetivo tem função coesiva, como também o sintagma; já os pronomes substantivos, como veremos ao abordar as formas remissivas não-refe-renciais livres, são essencialmente coesivos. A diferença entre pronomes adjetivos e pronomes substantivos pode ser observada na comparação das seguintes pronominalizações no Texto 1: Sua vida escorria feliz por cima do desejo e Tudo começara bem antes, quando um nome lhe fora dado. Na comparação desses exemplos, podemos observar que o pro-nome adjetivo sua apresenta uma função coesiva somente na interde-pendência com o núcleo do SN vida. Já o mesmo não ocorre com o pronome substantivo lhe, que por si só assume a função coesiva.

Sobre essa regra de fun-cionamento dos artigos, é importante que o profes-sor, no ensino-aprendiza-gem da produção textual escrita, ressalte esse uso de artigos como um fator relevante nos processos de referenciação no texto.

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Linguística Textual

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Para Koch (1991[1989]), os pronomes adjetivos que assumem função

de artigo são os pronomes demonstrativos este, esse, aquele, tal; os pronomes possessivos meu, teu, seu, nosso, dele; os pronomes inde-finidos algum, todo, outro, vários, diversos etc.; os pronomes interro-gativos quê, qual; e o pronome relativo cujo.

Podemos verificar, no Texto 1, alguns exemplos de pronomes adje-tivos que assumem a função de artigo: o pronome demonstrativo aquela e o pronome possessivo seu: E disto eram prova aquelas notas vermelhas no boletim, testemunhas de como o menino cavalgava longe do desejo dos outros, conspiradores secretos, escondidos na monotonia dos currículos que não faziam o seu corpo sorrir.

Koch (1991[1989]) aponta ainda os numerais cardinais e ordinais como elementos que podem exercer a função de artigo nos casos em que acompanham um nome. No Texto 1, observamos o seguinte exem-plo: [...] E aconteceu que, em meio às suas rotinas, veio a se encontrar com dois cavalheiros bem vestidos e de fala branda, [...].

Vimos até aqui que algumas categorias gramaticais como artigo, pronome adjetivo e numerais assumem a função de formas remissivas não-referencias presas, pois estão, como o próprio nome diz, “presos” a um nome dentro de um grupo nominal e que, nesses casos, têm função de artigo. Junto com o nome, nos textos, são formas referenciais que estabelecem a coesão textual.

Contrariamente às formas presas, as formas remissivas não-referen-ciais livres, segundo Koch (1991[1989], p. 34), “são aquelas que não acom-panham um nome dentro de um grupo nominal, mas que são utilizadas para fazer remissão, anafórica ou cataforicamente, a um ou mais consti-tuintes do universo textual”. Em outros termos, uma forma remissiva não-referencial livre assume sozinha o papel de forma referencial/remissiva, com vistas ao estabelecimento da referência no texto. Koch (1991[1989]) denomina genericamente essas formas de pronomes ou pro-formas.

Os elementos gramaticais que podem assumir a função de formas remissivas não referenciais livres, exercendo a função de pronomes (pro-

Na sequência, faremos uma breve exposição dos mecanismos que operam

como formas não-referen-ciais livres mais recorren-

tes em língua portuguesa, como é o caso dos prono-

mes de 3ª pessoa e pro-nomes substantivos. Em

Koch (1991[1989]) há uma explanação mais detalha-

da sobre as possibilidades de formas remissivas não-

referenciais livres.

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Capítulo 04Coesão textual

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formas) são: pronomes pessoais de 3ª pessoa: ele, ela, eles, elas; pronomes substantivos; numerais cardinais e ordinais; advérbios pronominais; ex-pressões adverbiais; formas verbais remissivas (KOCH, 1991[1989]).

O papel dos pronomes é de extrema importância no processo co-esivo. No caso das formas remissivas não-referenciais livres, temos o pronome de 3ª pessoa (ele, ela, eles, elas) como um importante elemento de coesão, tendo em vista que essa categoria gramatical fornece ao lei-tor/ouvinte o elemento de referência, como podemos ver em: O menino cresceu. [...] se puseram a contar estórias de um mundo encantado sobre o qual ele nunca ouvira falar. Nesse exemplo, o pronome de 3ª pessoa ele faz remissão ao referente menino.

Os pronomes substantivos, como já dito, são formas que não acom-panham um SN e que assumem a função referencial de forma indepen-dente do SN. Koch (1991[1989]) aponta alguns pronomes substantivos como exemplos de formas remissivas não-referencias livres: pronomes demonstrativos, possessivos, indefinidos, interrogativos e relativos.

No Texto 1, temos o seguinte exemplo: O desejo permanecia sel-vagem. E disto eram prova aquelas notas vermelhas no boletim [...]. O pronome demonstrativo isto (preposição de + pronome isto = disto) faz remissão ao referente O desejo permanecia selvagem. Podemos observar que o pronome substantivo disto carrega, sozinho, a função de estabe-lecer a coesão, ou seja, não está acompanhando um SN, por isso, nesse caso, trata-se de um uma forma remissiva livre. Observamos também que esse pronome opera somente na conexão do texto e não na amplia-ção de sentido, por isso é uma forma remissiva não-referencial. Outro exemplo de pronome substantivo como forma remissiva não-referencial livre é o uso do pronome relativo (que, o qual, quem). Vejamos os se-guintes exemplos:

a) em: O recinto se encheu de suave luminosidade, e a Mosca Azul, que até então só habitava os seus sonhos [...], o pronome relativo que faz referência à Mosca Azul;

b) em: [...] se puseram a contar estórias de um mundo encantado sobre o qual ele nunca ouvira falar, o pronome o qual se refere a um mundo encantado.

Chamado na literatura de pronominalização (anafó-rica e catafórica) (KOCH, 2002).

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Em resumo, as formas remissivas não-referenciais (presas e livres), como elementos coesivos, operam somente na conexão do texto, ou seja, não apresentam ao leitor/ouvinte indicações de sentido.

4.1.2 Formas remissivas referenciais

Na Seção anterior, vimos que as formas remissivas não-referenciais (presas e livres) operam somente na conexão do texto, ou seja, não apre-sentam ao leitor/ouvinte indicações de sentido. Já as formas remissivas referenciais, a seu turno, não somente estabelecem a conexão textual, como também possibilitam indicações de sentido no nível da referên-cia (KOCH, 1991[1989]. Assim, a diferença entre as formas remissivas não-referenciais e as formas remissivas referenciais está na questão de como estabelecem a referência. As formas remissivas não-referenciais têm como prerrogativa estabelecer a conexão referencial entre partes do texto, como em: O menino cresceu. [...] ele nunca ouvira falar. O prono-me ele está no lugar de menino. Não há, nessa remissão, uma ampliação de sentido, trata-se de uma remissão estritamente linguística. Já em um menininho, de carne e osso e boneco de madeira há uma relação de co-nexão referencial, mas também uma implicação de sentido importante para a construção semântico-discursiva do referente do texto.

Conforme Koch (1991[1989]), as formas remissivas referenciais e marcam no texto a partir do uso de expressões nominais definidas; no-minalizações, expressões sinônimas ou quase sinônimas, nomes genéricos, hiperônimos, formas referenciais com lexema idêntico ao núcleo do SN antecedente, formas referenciais cujo lexema é uma categorização da par-te antecedente do texto, formas referenciais metalinguísticas e elipse.

As expressões nominais são definidas pela autora da seguinte ma-neira: “trata-se de grupos nominais introduzidos pelo artigo definido [e indefinido], que exercem função remissiva” (KOCH, 1991[1989], p. 45).

Logo no início do Texto 1, temos o referente Pinóquio às avessas, que é retomado por expressões nominais como um menininho, de carne e osso; o menino sem nome e sem desejos; o menino grande. Tais expres-sões nominais são constituídas de artigo (definido ou indefinido) mais SN e operam não só na coesão do texto, como também na ampliação de sentidos no texto.

Na Unidade C as formas re-missivas referenciais serão

revistas sob o olhar dos estudos da referenciação, que representam as pes-

quisas mais recentes sobre os processos de estabele-cimento de referência no

texto.

Na Unidade C aprofunda-remos a discussão sobre

os efeitos de sentido que o uso de expressões nomi-

nais produz no texto.

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Capítulo 04Coesão textual

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O uso de expressões nominais no Texto 1 é fundamental para a construção dos sentidos do texto. Podemos dizer até que são as próprias expressões nominais que delineiam a coerência do texto, uma vez que o uso de expressões nominais como o menino de carne osso; menino sem nome e sem desejos; e o menino grande expressa a mudança que se opera no referente Pinóquio e faz com que o texto progrida com relação ao desfecho da narrativa.

Seguem, agora, exemplos de coesão realizados por meio de nomi-nalizações, expressões sinônimas ou quase sinônimas, nomes genéricos, hiperônimos e formas referenciais metalinguísticas, extraídos de Koch (1991[1989], p.46-47):

Ӳ Nominalizações: referem-se às formas nominalizantes (nomes deverbais), através das quais se remete ao verbo e argumentos da oração anterior: Os grevistas paralisaram todas as atividades da fábrica. A paralisação durou uma semana;

Ӳ Expressões sinônimas ou quase sinônimas: A porta se abriu e apareceu uma menina. A garotinha tinha olhos azuis e longos cabelos dourados.

Ӳ Nomes genéricos (ex. coisa, pessoa, fato, fenômeno): A mul-tidão ouviu o ruído de um motor. Todos olharam para o alto e viram a coisa se aproximando;

Ӳ Hiperônimos (ou indicadores de classe): Vimos o carro do mi-nistro aproximar-se. Alguns minutos depois, o veículo estaciona-va adiante do Palácio do Governo;

Ӳ Formas referenciais metalinguísticas: Então o marido ergueu-se dizendo: “Vai embora mulher, não existe mais nada entre nós.” Esta frase ficou martelando-lhe na cabeça por um longo tempo.

E, por fim, no grupo de formas referenciais, temos a elipse, que con-siste em uma substituição por zero, a qual é simbolizada por ∅. Em outras palavras, na utilização de elipse ocorre um apagamento de ou-tro segmento (HALLIDAY; HASAN apud KOCH, 1991[1989]). A elipse pode ser nominal, verbal e frasal. No Texto 1, podemos destacar o uso de elipse verbal, que se realiza nas desinências verbais, como podemos veri-

Koch alerta que há di-ferentes tipos de elipse. Para saber mais sobre esse assunto, ver Koch (1991[1989]).

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Linguística Textual

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ficar em: Era uma vez um menininho, de carne e osso, igual a tantos que se deleitam nas coisas simples que a vida dá. ∅ Ria nos seus mundos de faz de conta, ∅ voava nas asas dos urubus, ∅ assustava os peixes, nariz achatado nos vidros dos aquários, ∅ assobiava para os perus, ∅ anda-va na chuva. Nesses exemplos, os verbos no pretérito imperfeito – ria, voava, assustava, assobiava e andava – atuam na retomada de um meni-ninho, de carne e osso, substituindo o pronome pessoal de 3ª pessoa ele.

Até aqui apresentamos o conceito de coesão referencial, como tam-bém expusemos algumas manifestações desse tipo de coesão a partir das formas remissivas não-referenciais e referenciais. A seguir, nesse mesmo percurso, apresentaremos a coesão sequencial.

4.2 Coesão sequencial

A coesão sequencial consiste em estabelecer conexão e interrelação entre partes do texto, com o objetivo de possibilitar a progressão textual.

Koch (2004, p. 35) conceitua a coesão sequencial da seguinte ma-neira:

A coesão sequencial diz respeito aos procedimentos linguísticos por

meio dos quais se estabelecem, entre os segmentos do texto (enuncia-

dos, partes de enunciados, parágrafos e mesmo sequências textuais),

diversos tipos de relações semânticas e/ou pragmático-discursivas, à

medida que se faz o texto progredir.

A progressão textual pode acontecer com ou sem o uso de ele-mentos recorrentes, ou seja, retomando ou não itens lexicais já textu-alizados no texto (KOCH, 1991[1989]). Aos casos em que se utilizam tais elementos de recorrência, Koch (1991[1989]) chama de sequencia-ção parafrástica; aos casos em que não há elementos de recorrência, a autora chama de sequenciação frástica. A partir dessa distinção, Koch (1991[1989]) agrupa a coesão sequencial em parafrástica e frástica. A seguir, faremos uma apresentação desses agrupamentos.

4.2.1 Coesão sequencial parafrástica

De acordo com Koch (1991[1989], p. 51), “tem-se coesão sequen-cial parafrástica quando, na progressão do texto, utilizam-se procedi-

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Capítulo 04Coesão textual

49

mentos de recorrência”, tais como: recorrência de termos; recorrência de estruturas – paralelismo sintático; recorrência de conteúdos semânticos – paráfrase; recorrência de recursos fonológicos e recorrência de tempo e aspecto verbal. Esses mecanismos de coesão sequencial parafrástica são explicados por Koch (1991[1989], p. 51-54) da seguinte forma:

Ӳ Recorrência de termos: quando há reiteração de um mesmo item lexical. Ex.: E o trem corria, corria, corria...

Ӳ Recorrência de estruturas – paralelismo sintático: quando se utilizam as mesmas estruturas sintáticas, que são preenchidas com itens lexicais diferentes. Ex.: Vejamos o seguinte exemplo, extraído do Texto 3, que se encontra no Capítulo sobre coerência.

Rua

torta.

Lua

Morta [...].

Ӳ Recorrência de conteúdos – paráfrase: quando o mesmo con-teúdo semântico é apresentado sob formas estruturais diferen-tes. É importante ressaltar que a reapresentação de conteúdo traz alterações semânticas (ajustamento, síntese, previsão). Podemos apontar algumas expressões linguísticas que intro-duzem paráfrases, como: isto é, ou seja, quer dizer, melhor di-zendo, em síntese, em resumo, em outras palavras etc. Vejamos o seguinte exemplo: [...] Em resumo, quando o professor olha o texto de seu aluno a partir das condições de produção, ele conse-gue entender por que o aluno textualizou determinado texto [...].

Ӳ Recorrência de recursos fonológicos: quando há igualdade de metro, ritmo, assonâncias, aliterações. Vejamos o exemplo:

O poeta é um fingidor

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

(Fernando Pessoa)

Exemplo extraído de Koch (1991[1989], p. 51).

Trecho extraído da Unida-de B deste Livro.

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50

Ӳ Recorrência de tempo verbal: quando há indicação de que se trata da sequência de comentário ou de relato. Sequência de relato: Era uma vez um menininho”. Sequência de comentário: Obama se beneficiou do “timing” da crise [...].

Dentre os mecanismos de coesão sequencial parafrástica, destacamos a recorrência de tempo verbal, pois ela está na fronteira entre a coesão frástica e a parafrástica. Segundo Weinrich (apud KOCH, 1991[1989]), existem dois tipos de atitude comunicativa: comentar e narrar. De acordo com Koch (1991[1989]), em português, são tempos do mundo comenta-do: o presente do indicativo, o pretérito perfeito, o futuro do presente; e tem-pos do mundo narrado: o pretérito perfeito simples, o pretérito imperfeito; o pretérito mais-que-perfeito e o futuro do pretérito do indicativo.

No Texto 1, a recorrência de tempos verbais é um importante ele-mento de sequenciação textual. Tendo em vista que se trata de uma nar-rativa, há a predominância de verbos do mundo do narrar, conforme apresentado anteriormente. Esses verbos do mundo do narrar são al-ternados ao longo do texto para que, por meio da mudança dos tempos verbais, a própria narrativa tome corpo e movimento. Inicialmente, te-mos um menininho, de carne e osso, que é introduzido por uma recor-rência de verbos no pretérito imperfeito: Era uma vez um menininho, de carne e osso, igual a tantos que se deleitam nas coisas simples que a vida dá. Ria nos seus mundos de faz de conta, voava nas asas dos urubus, assustava os peixes, nariz achatado nos vidros dos aquários, assobiava para os perus, andava na chuva. Todas estas coisas que as crianças fazem e os adultos desejam fazer e não fazem, por vergonha. Sua vida escorria feliz por cima do desejo.

Depois, ao passo que se desenrola a narrativa, o tempo verbal se altera para marcar o início da ação, uma vez que na narrativa há uma ação/evento que se desenrola em um tempo e em um espaço. Essa ação se circunstancia através da mudança dos tempos verbais; passa-se, en-tão, da recorrência do pretérito imperfeito para a recorrência do preté-rito perfeito: Até que chegou o dia em que lhe foi dito: “É preciso ir para a escola”. [...] E assim aconteceu. O menino de carne e osso aprendeu [...].

Na sequência, há novas alternâncias dos tempos verbais (entre elas o uso do mais-que-perfeito) até que, por fim, novamente volta-se à re-

Trecho extraído do Texto 2.

Trecho extraído do Texto 1.

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Capítulo 04Coesão textual

51

corrência do pretérito imperfeito: Era um boneco de madeira, inteligência pura, sem coração. E os milhares de bonecos, iguais, de pé, não paravam de tamanquear os seus aplausos ao novo irmão, enquanto gritavam o seu nome: “Pinóquio, Pinóquio, Pinóquio...” Assim, no desfecho da narrativa, há um retorno ao uso do tempo verbal utilizado no início do texto (pre-térito imperfeito). As alternâncias marcam a ação ocorrida e o desfecho é marcado pela retomada do tempo verbal utilizada no início do texto. Essas alternâncias verbais na narrativa marcam o movimento do texto e, fundamentalmente, expressam a mudança sofrida pelo personagem Pi-nóquio. Assim, a transformação do menino de carne e osso para o menino de madeira é textualizada não só por meio de formas nominais, como também através da alternância dos tempos verbais. Em síntese, podemos dizer que a recorrência de tempos verbais, juntamente com as formas nominais, além de estabelecer a coesão textual, incide na construção da coerência do texto, corroborando para a construção de sentidos do texto.

4.2.2 Coesão sequencial frástica

Na coesão sequencial frástica, segundo Koch (1991 [1989], p.55), “a progressão se faz por meio de sucessivos encadeamentos, assinalados por uma série de marcas linguísticas através das quais se estabelecem, entre os enunciados que compõem o texto, determinados tipos de relação”.

De acordo com a autora, os mecanismos de sequenciação frástica constituem fatores de coesão textual uma vez que garantem:

a) a manutenção do tema;

b) o estabelecimento de relações semânticas e/ou pragmáticas en-tre os segmentos (maiores ou menores) do texto;

c) a ordenação e articulação de sequências textuais.

Os mecanismos de coesão sequencial frástica são: procedimentos de manutenção temática; progressão temática; e encadeamento.

Observemos, primeiramente, o Texto 2, que servirá de base para os exemplos que serão posteriormente apresentados.

Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/elianecan-tanhede/ult681u464302.shtml.> Acesso em: 20 jan. 2009.

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Linguística Textual

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Texto 2

Obama: além de tudo, sortudo

George W. Bush foi um dos presidentes mais populares dos EUA, com

índices de aprovação que chegaram a bater em 90% depois do 11 de

setembro, mas sai da Casa Branca pela porta dos fundos, com uma crise

financeira internacional sem precedentes, com as contas dos EUA de

pernas para o ar e com a biografia para sempre manchada por ter inva-

dido o Iraque em cima de uma mentira – a das armas químicas, afinal

inexistentes – e passando por cima da ONU. Quantos soldados america-

nos pagaram e quanto a economia do país pagou por isso?

Barack Obama, o senador negro, nascido no Havaí, filho de queniano,

é um salto histórico enorme. Um salto de qualidade, pela simbologia,

pela concretização de uma mudança profunda que é política, social e

cultural. Mas é também um salto no escuro. Aos 47 anos, é bastante jo-

vem para o desafio, jamais ocupou cargos executivos de ponta e era um

desconhecido não apenas no mundo, mas dentro dos próprios EUA, até

sair da cadeira de senador e bater a então imbatível Hillary Clinton nas

primárias do Partido Democrata.

Para fazer um bom governo, um governo tão extraordinário quanto sua

eleição, Obama conta com fatores objetivos e subjetivos. O mais objeti-

vo de todos é a força política: ele venceu com uma margem expressiva

e surpreendente de votos, contrariando as sempre apertadas eleições

americanas (vide a do próprio Bush...), vai unir um democrata na Casa

Branca com uma sólida maioria democrata no Congresso, contrariando

a tradição, e chega ao poder da maior, ou única, potência, com uma

simpatia internacional poucas vezes vista.

Além disso , Obama se beneficiou do “timing” da crise: ela se alastrou pelo

mundo e foi aguda durante a campanha, mas está ficando sob controle e

tende a amenizar por gravidade no início do seu governo. Ou seja: a crise

de certa forma prejudicou as pretensões do republicano John McCain,

correligionário de Bush, e favoreceu Obama, que é democrata e baseou

o discurso na “mudança”, na capacidade de tirar o país do atoleiro. E ele,

ao assumir em 20 de janeiro de 2009, já deverá encontrar um ambiente

econômico muito mais sereno, ou pelo menos muito menos assustador.

E poderá capitalizar indiretamente o clima do “pior já passou”.

Seu desafio será recolocar as contas públicas, o balanço de pagamen-

tos e os indicadores macroeconômicos americanos no lugar. Mas sem

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Capítulo 04Coesão textual

53

o desespero da crise de setembro e outubro. Não será fácil, e o risco de

frustração realmente existe, mas é possível e bem provável que a situ-

ação no início do seu governo esteja muito melhor do que no fim do

mandato Bush. O primeiro passo é acertar na equipe, com os homens e

mulheres certos nos lugares certos.

Tudo somado, temos que Barack Hussein Obama, além de todos os pre-

dicados concretos, tem também aquele que é fundamental: sorte. A ex-

pectativa é que assuma justamente quando o pior da crise já tiver passa-

do, prontinho para fazer o que é preciso fazer e colher no final os louros.

Se a fase aguda da crise parece estar passando, isso vale também para o

Brasil, onde Lula mantém seus 80% de popularidade, os indicadores da

indústria ainda não acusaram o golpe e tudo indica que, entre mortos e

feridos, a campanha de Dilma Rousseff em 2010 vai muito bem, obrigada.

Lá nos EUA, como aqui no Brasil, Obama e Lula têm muitas coisas em

comum. Uma delas é essa: sorte, uma incomensurável sorte. Ótimo. Que

isso reflita positivamente para os EUA, para o Brasil e principalmente

para o mundo.

Eliane Cantanhêde é colunista da Folha, desde 1997, e comenta gover-

nos, política interna e externa, defesa, área social e comportamento. Foi

colunista do Jornal do Brasil e do Estado de S. Paulo, além de diretora de

redação das sucursais de O Globo, Gazeta Mercantil e da própria Folha

em Brasília. E-mail: [email protected]

A manutenção temática em um texto ocorre através do uso de termos pertencentes a um mesmo campo lexical. Vejamos o exemplo: Barack Obama, o senador negro, [...] bastante jovem para o desafio, jamais ocupou cargos executivos de ponta e era um desconhecido não apenas no mundo, mas dentro dos próprios EUA, até sair da cadeira de senador e bater a en-tão imbatível Hillary Clinton nas primárias do Partido Democrata.

Os itens lexicais destacados em roxo são termos recorrentes no campo político. Por isso, por meio desses termos, ativa-se um esquema cognitivo (frame) na memória do leitor, o que lhe possibilita o estabele-cimento das inferências, bem como a possibilidade de avançar nas pers-pectivas sobre o que deve vir a seguir no texto.

A manutenção temática está, pois, ligada à progressão temática, que, por sua vez, está relacionada à maneira como se estabelece a organiza-

Esse conceito é desen-volvido na disciplina de Semântica. Veja: PIRES, Roberta. Semântica. Florianópolis: UFSC/CCE/LLV, 2009.

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ção e a hierarquização das unidades semânticas no texto. Vejamos no Texto 2 como se organiza a progressão temática. Esse texto tem como acontecimento desencadeador a eleição presidencial nos EUA em 2008. A partir desse evento, a colunista manifesta seu posicionamento sobre as condições em que se deu a eleição de Barack Obama, bem como sobre as condições favoráveis em que se encontra Obama para assumir o governo.

Logo no título, Obama, além de tudo, sortudo, a autora anuncia a probabilidade de Obama ter um bom início de governo. Isso porque, de acordo com a autora, há um conjunto de fatores que beneficiam Obama. Um desses fatores destacados no texto é a força política de Obama, con-forme podemos verificar no seguinte fragmento: “[...] ele venceu com uma margem expressiva e surpreendente de votos, contrariando as sem-pre apertadas eleições americanas (vide a do próprio Bush...), vai unir um democrata na Casa Branca com uma sólida maioria democrata no Congresso, contrariando a tradição, e chega ao poder da maior, ou única, potência, com uma simpatia internacional poucas vezes vista.”

Outro fator apontado é a crise financeira mundial, como podemos observar em: “Além disso, Obama se beneficiou do ‘timing’ da crise: ela se alastrou pelo mundo e foi aguda durante a campanha, mas está ficando sob controle e tende a amenizar por gravidade no início do seu governo. [...] E ele, ao assumir em 20 de janeiro de 2009, já deverá encontrar um ambiente econômico muito mais sereno, ou pelo menos muito menos as-sustador. E poderá capitalizar indiretamente o clima do ‘pior já passou’.”

Além desses predicados concretos, a autora apresenta um terceiro, a sorte do presidente eleito. A sorte atribuída a Obama é o fio condutor das considerações tecidas pela colunista, bem como o fator preponde-rante, segundo ponto de vista defendido pela autora, para um bom iní-cio de governo: “Tudo somado, temos que Barack Hussein Obama, além de todos os predicados concretos, tem também aquele que é fundamen-tal: sorte. A expectativa é que assuma justamente quando o pior da crise já tiver passado, prontinho para fazer o que é preciso fazer e colher no final os louros.”

Para manifestar seu posicionamento, a autora organiza o texto da seguinte maneira:

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Capítulo 04Coesão textual

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Ӳ Título – Apresenta a primeira inserção do atributo sorte de Ba-rack Obama, o qual será retomado no decorrer do texto e no seu fechamento;

Ӳ 1º e 2º parágrafos - Estabelecem uma comparação entre as condições em que o presidente dos EUA, George W. Bush, as-sumiu a presidência e as condições em que encerrou seu man-dato e apresentam Barack Obama e as condições em que se deu sua eleição à Presidência dos EUA;

Ӳ 3º, 4º e 5º – Aprofunda a análise sobre o cenário em que se de-senrolou a eleição presidencial, tece considerações sobre o fu-turo governo (os desafios) do recém-eleito Barack Obama, que é figura central do texto. Apresenta e desenvolve os fatores que beneficiam o presidente eleito quando assumir a presidência;

Ӳ 6º – Inclui um novo fator com o qual Barack Obama conta para seu governo: a sorte, a partir do qual a autora constrói seu posi-cionamento no texto. É o fator preponderante, segundo ponto de vista defendido pela autora;

Ӳ 7º – Apresenta uma comparação entre a crise nos EUA e no Bra-sil;

Ӳ 8º – Estabelece uma comparação entre Barack Obama e Lula com relação ao atributo sorte: ambos possuem uma incomensu-rável sorte no governo. Com essa posição a autora produz o fecha-mento do texto.

Ӳ Biografia resumida da colunista.

O que objetivamos mostrar com essa reflexão é que no Texto 2 te-mos um tema geral, que se organiza de forma funcional em subtemas, que convergem para o tema geral.

Até aqui apresentamos aspectos relacionados à manutenção e à pro-gressão temática em um texto. Agora, discorreremos sobre a coesão se-quencial por encadeamento. Segundo Koch (1991[1989]), os sucessivos encadeamentos que se marcam no texto fazem com que ele se desenrole sem rodeios e sem retornos que provoquem lentidão no fluxo informa-cional. A coesão por encadeamento se caracteriza pelo estabelecimento de

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Linguística Textual

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relações semânticas e/ou discursivas entre orações ou sequências maiores de texto (KOCH, 1991[1989]). A autora destaca que conectores de diver-sos tipos configuram-se como responsáveis pela sequenciação frástica.

A seguir, apresentaremos exemplos de conectores que corroboram para o estabelecimento da sequenciação e de determinadas relações no texto (extraídos do Texto 2, destacados em roxo:

Ӳ Se: estabelece uma relação de implicação entre um antecen-dente e um consequente – Se a fase aguda da crise parece estar passando [...] os indicadores da indústria [...];

Ӳ e, também, como, além de: esses conectivos somam argumen-tos em favor de determinado argumento – Lá nos EUA, como aqui no Brasil, [...];

Ӳ mas: introduz uma oposição com relação ao que se disse ante-riormente. Seu desafio será recolocar as contas públicas, o balan-ço de pagamentos e os indicadores macro-econômicos americanos no lugar. Mas sem o desespero da crise de setembro e outubro;

Ӳ Até, quando – imprime o sentido de tempo – A expectativa é que assuma justamente quando o pior da crise já tiver passado, [...].

A coesão por encadeamento pode ocorrer por meio de justaposição ou de conexão (KOCH, 1991[1989]). Sobre o encadeamento por justapo-sição Koch (1991[1989], p. 60) escreve:

A justaposição pode dar-se com ou sem uso de partículas sequencia-

doras. A justaposição sem partículas, particularmente no texto escrito,

extrapola o âmbito da coesão textual [...], diz respeito ao modo como

os componentes da superfície textual se encontram conectados entre

si através de elementos linguísticos. Inexistindo tais elementos, cabe ao

leitor construir a coerência do texto, estabelecendo mentalmente as

relações semânticas e/ou discursivas. Nesses casos, o lugar do conec-

tor ou partícula é marcado, na escrita, por sinais de pontuação (vírgula,

ponto e vírgula, dois pontos, ponto) e, na fala, pelas pausas.

Podemos verificar como ocorre o estabelecimento da coesão através do encadeamento por justaposição no seguinte exemplo, extraído da Uni-dade A deste Livro: Primeiramente, vamos apresentar as concepções de tex-to dos diferentes momentos da Linguística Textual. Em seguida, vamos cote-

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Capítulo 04Coesão textual

57

jar essas concepções e relacioná-las com as noções de língua e de sujeito que as sustentam. No exemplo apresentado, temos justaposição com sinais de articulação que estabelecem um sequenciamento coesivo e que funcionam como marcadores de ordenação de tempo e/ou espaço, mais precisamente, como indicadores de ordenação textual. Em textos de gêneros didáticos e acadêmicos, esses marcadores de ordenação são recorrentes, tendo em vista que possibilitam a sinalização da organização do texto para o leitor.

Outro processo de encadeamento por justaposição ocorre por meio de marcadores de metanível (ou nível dos enunciados metacomu-nicativos) que, de acordo com Koch (1991[1989], p. 61), “funcionam como sinais demarcatórios e/ou sumarizadores de partes ou sequências textuais”. Podemos observar esse processo coesivo no seguinte trecho extraído da Unidade A deste livro: Essa posição pode levantar questio-namentos para o professor de Língua Portuguesa, tais como: [...], que su-mariza parte do que foi dito no texto.

Já o encadeamento por conexão, por sua vez, ocorre quando se uti-lizam conectores interfrásticos que estabelecem entre diversas partes do texto diversos tipos de relações semânticas e/ou pragmáticas. Nesse caso, operam não somente as conjunções, mas também as locuções con-juntivas, prepositivas e adverbiais, que têm a função de interconectar enunciados (KOCH, 2004).

Segundo Koch (1991[1989], p. 62),

Trata-se de conjunções, advérbios sentenciais (também chamados de

advérbios de texto) e outras palavras (expressões) de ligação que esta-

belecem, entre orações, enunciados ou partes do texto, diversos tipos

de relações semânticas e/ou pragmáticas.

As relações de sentido estabelecidas entre os elementos textuais através dos conectores podem ser lógico-semânticas ou discursivo-argumentativas.

As relações lógico-semânticas, segundo Koch (1991[1989], p. 62), ocorrem “[...] entre orações que compõem um enunciado e são esta-belecidas por meio de conectores ou juntores de tipo lógico”. Podemos apontar, no Texto 1, exemplo de mecanismo de coesão sequencial por conexão do tipo lógico-semântico, que estabelece uma relação de tempo-ralidade: Primeiro os olhos. Já não refletiam outros olhares e nem borbo-

Ex.: por consequência, em virtude do exposto, dessa maneira, em resumo, essa posição etc.).

Trazemos aqui um exemplo de relação lógico-semân-tica de temporalidade. Contudo, vale destacar que Koch (1991[1989]) apre-senta as seguintes relações lógico-semânticas: relação de condicionalidade; rela-ção de causalidade; relação de mediação; relação de temporalidade; relação de conformidade.

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letas... Aprenderam a concentração, a disciplina. Depois o corpo, que de-saprendeu a dança, o voo dos papagaios e o brinquedo. O uso do numeral primeiro e do advérbio depois tem a função de fazer o texto progredir, bem como imprimir uma continuidade temporal das ações.

Já as relações discursivo-argumentativas, segundo Koch (1991[1989], p. 65), “são responsáveis pela estruturação de enunciados e textos, por meio de encadeamentos sucessivos [...]”.

A autora estabelece a seguinte diferença entre as relações lógico-semânticas e as discursivo-argumentativas:

Lógico-semânticas: trata-se de uma relação estabelecida entre o con-

teúdo de duas orações.

Discursivo-argumentativas: produzem-se dois (ou mais) enunciados

distintos, encadeando-se o segundo sobre o primeiro, que é tomado

como tema. Os encadeamentos podem ocorrer entre orações de um

mesmo período, entre dois ou mais períodos e, também entre parágra-

fos de um texto. Além disso, esses operadores introduzem no enuncia-

do uma orientação argumentativa (KOCH, 1991[1989], p. 65).

Podemos apontar, no Texto 2, alguns exemplos de mecanismos de coesão sequencial por conexão que se utilizam de operadores discursivos, como além de e também. Em “Tudo somado, temos que Barack Hussein Obama, além de todos os predicados concretos, tem também aquele que é fundamental: sorte”, temos a locução conjuntiva além de, que caracte-riza uma relação de conjunção que, segundo Koch (1991[1989), ocorre quando o elemento coesivo liga enunciados que constituem argumentos para uma mesma conclusão. Outros operadores que estabelecem rela-ções de conjunção são: também; não só... mas também; tanto... como; além de; além disso; ainda.

Já em “Barack Obama, [...] é um salto histórico enorme. Um salto de qualidade, pela simbologia, pela concretização de uma mudança profun-da que é política, social e cultural. Mas é também um salto no escuro,” o operador discursivo mas estabelece uma relação de contrajunção, pois contrapõe enunciados de orientações argumentativas diferentes. Ou-tros operadores que estabelecem relação por contrajunção são: porém, contudo, todavia, entretanto. Vejamos outro exemplo de operador dis-

Trazemos aqui um exemplo de relação discursivo-argu-

mentativa de conjunção. Koch (1991 [1989]) apre-

senta as seguintes relações discursivo-argumentativas:

relação de conjunção; relação de disjunção ar-

gumentativa; relação de contraconjunção; relação de

explicação ou justificativa; relação de comprovação;

relação de conclusão; rela-ção de comparação; relação de generalização/extensão;

relação de contraste; relação de correção/redefinição.

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Capítulo 04Coesão textual

59

cursivo de contraconjunção: Tanto favoritismo, porém, tem despertado preocupação entre os eleitores de Obama.

O uso do operador argumentativo mas possibilita à autora ma-nifestar oposição contrária ao que vinha sendo dito antes, ou seja, as perspectivas favoráveis ao candidato Barack Obama são contrapostas, através desse operador. É interessante também mostrar que esse opera-dor se repete ao longo do texto, o que aponta para uma forte orientação argumentativa do texto. Em alguns gêneros jornalísticos (comentário, artigo, carta do leitor, editorial), podemos observar que os operadores de contraconjunção desempenham um importante papel na constru-ção argumentativa, na medida em que contribuem para a construção da orientação apreciativa do autor no texto.

Implicações para o processo de ensino-aprendizagem:

É importante salientar que, não raras vezes, os livros didáticos redu-

zem os mecanismos de coesão textual aos pronomes e às conjun-

ções, quando, na verdade, os recursos coesivos são extremamente

variados. Vejamos um pequeno trecho extraído de um livro didático

de sétima série do Ensino Fundamental, que exemplifica o que afir-

mamos:

Conjunções:

As conjunções são importantes elementos de coesão. No texto, além de ligar orações, elas estabelecem relações entre parágrafos, auxiliando-nos a expressar com clareza nossas idéias.

A parte de gramática que estuda as conjunções é a Morfologia (Morfo = forma + logia = tratado, ciência).

Essa informação encontra-se em uma caixa de texto, no capítulo sobre

uso da língua e no tópico sobre conjunções, que trabalha com compo-

sição de períodos a partir de indicação de determinadas conjunções.

Se a informação fornecida sobre a coesão não está incorreta, por ou-

tro lado, é extremante pobre e vaga. Provavelmente, o aluno não vai

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Linguística Textual

60

aprender a função e o uso dos mecanismos coesivos. Conjunções e

pronomes são elementos coesivos no texto. Fora dele, perde o sen-

tido falar de coesão. Se atentarmos melhor, veremos que o que o

autor quer trabalhar na seção são as conjunções e não os mecanis-

mos de coesão. Provavelmente seja por isso que os autores de livros

didáticos somente falam de coesão quando abordam pronomes e

conjunções. Se o tema fosse, de fato, a coesão, outros recursos de-

veriam ser explorados, como os grupos nominais definidos, as elip-ses, a manutenção e a progressão temática etc. Mas esses recursos

somente conseguem ser demonstrados nos textos.

Um trabalho produtivo com a coesão como padrão de textualidade

somente se efetiva no ensino-aprendizagem das práticas de escuta,

leitura e produção textual. Na leitura, o professor pode orientar seu

aluno para a importância de saber retomar o referente para a com-

preensão das partes do texto, para os efeitos de sentido e os acentos

de valor que se marcam nas retomadas do referente (por exemplo,

tem um acento de valor bastante diverso retomar, em um texto, o

referente celular antigo por esse modelo e aquele tijolão).

Da mesma forma, na reescritura dos textos, o professor, via media-

ção com o aluno, pode observar se os mecanismos de coesão usa-

dos pelo aluno estão adequados ou não, se produzem ou não os

efeitos de sentido desejados pelo aluno.

Neste Capítulo, exploramos a coesão textual e seu papel na constru-ção da textualidade. No capítulo a seguir, dando continuidade à expo-sição dos padrões de textualidade, apresentaremos a coerência textual.

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Capítulo 05Coerência

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5 Coerência Para Beaugrande e Dressler (2002 [1981], cap. I, §6), coerência é

o padrão de textualidade que está relacionado às formas mediante as quais conceitos e relações subjacentes ao “texto de superfície são mutu-amente acessíveis e relevantes”.

Os conceitos, por sua vez, são definidos pelos autores como “confi-gurações de conhecimento (conteúdos cognitivos) ativáveis ou recupe-ráveis na mente”, e as relações são “ligações entre conceitos que ocorrem juntos em um mundo textual”. Assim, a coerência, conforme definida por Beaugrande e Dressler, não é uma propriedade do texto em si, mas essencialmente um conjunto de processos cognitivos que constroem a interpretação do texto. Portanto, em termos gerais, todos os elementos que colaboram para que um texto se constitua como interpretável para o interlocutor podem ser analisados como fatores de coerência.

Considerando que a coerência não está no texto em si (artefato), mas é estabelecida no momento da interação, os fatores que contribuem para a coerência textual dizem respeito tanto aos aspectos imanentes ao texto, quanto ao interlocutor, ao produtor do texto e à situação de inte-ração em que eles se encontram. O estabelecimento da coerência depen-derá, portanto, não apenas do esforço do interlocutor em construir sua interpretação do texto, mas também da capacidade do produtor do tex-to de prever quanto de conhecimento seu interlocutor pretendido pos-sui a respeito dos processos de textualização e dos gêneros do discurso.

Koch e Travaglia resumem que o estabelecimento da coerência do texto depende:

a) de elementos linguísticos (seu conhecimento e uso), bem como, evi-

dentemente, da sua organização em uma cadeia linguística e como e

onde cada elemento se encaixa nessa cadeia, isto é, do contexto lin-guístico; b) do conhecimento de mundo (largamente explorado pela

semântica cognitiva e/ou procedural), bem como o grau em que esse

conhecimento é partilhado pelo(s) produtor(es) e receptor(es) do texto,

o que se reflete na estrutura informacional do texto, entendida como a

distribuição da informação nova e dada nos enunciados e no texto, em

função de fatores diversos; c) de fatores pragmáticos e interacionais,

Como no capítulo anterior, também optamos por usar neste Koch e Travaglia como referência.

Os autores definem o texto de superfície como “as palavras que efetiva-mente ouvimos ou vemos” (BEAUGRANDE; DRESSLER, 2002 [1981], cap. I, §4).

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Linguística Textual

62

tais como o contexto situacional, os interlocutores em si, suas crenças

e intenções comunicativas, a função comunicativa do texto. (KOCH e

TRAVAGLIA, 1999 [1989], p. 47-48, grifos dos autores).

Os autores examinam a contribuição, para a construção da coerência, dos seguintes fatores: conhecimento linguístico, conhecimento de mun-do, conhecimento partilhado (entre produtor e interlocutor), inferências, focalização, relevância, fatores de contextualização, informatividade, in-tertextualidade, situacionalidade, intencionalidade e aceitabilidade.

Neste Capítulo, vamos discutir o papel dos seguintes elementos para a construção da textualidade: elementos linguísticos, conheci-mento de mundo, inferências, focalização e relevância.

Os fatores informatividade, intertextualidade, situacionalidade, in-tencionalidade e aceitabilidade, como constituem padrões de textuali-dade, serão apresentados em capítulos específicos desta Unidade. Esses fatores também contribuem para a construção da coerência porque for-necem, de diferentes maneiras, elementos para a constituição do entrela-çamento de conceitos e relações que constituem o aparato sociocognitivo de que se vale o leitor/ouvinte para elaborar sua interpretação do texto.

5.1 Elementos linguísticos

Como vimos no Capítulo 4 sobre coesão textual, pronomes, con-junções e variadas formas de retomada lexical permitem a criação e manutenção de uma rede coesiva que contribui para que o texto seja percebido como uma unidade textual. Assim, os elementos linguísticos formam a base da coesão. Da mesma forma, o estabelecimento da coe-rência também depende fortemente do léxico e da sintaxe. Esta, contu-do, não pode ser entendida tão-somente em seu sentido estrito, como uma estruturação das frases, com termos dispostos linearmente e uni-dos por relações de dependência estrutural, marcadas ou não por co-netivos. É o que se evidencia no poema Serenata Sintética, de Cassiano Ricardo, cuja sintaxe se constrói essencialmente por via de paralelismos:

In: RICARDO, Cassiano. Um dia depois do outro. São Paulo: Companhia Editora

Nacional, 1947.

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Capítulo 05Coerência

63

Texto 3

Serenata Sintética

Rua

torta.

Lua

morta.

Tua

porta.

Esse poema, que se enquadra dentro da proposta estética do Con-cretismo, caracteriza-se pela ausência de conectivos (preposições, con-junções) e pelo uso de sentenças nominais (sem verbos). A coesão é criada pelo jogo de repetições próprio do texto poético: métrica regular (versos monossílabos), rimas em versos alternados (AB AB AB), alitera-ções (/r/ e /t/), estrofes de mesmo tamanho (dois versos).

Em termos lexicais e sintáticos, também se dá um jogo de repeti-ções que contribui para a coesão do texto: em cada estrofe, há um carac-terizador (torta, morta, tua) e um substantivo caracterizado (rua, lua, porta).

São os elementos linguísticos que, num primeiro momento, garan-tem a coerência do poema, ao remeter o interlocutor a um ambiente noturno (serenata, lua) e externo (rua), assim como a um contexto de história de amor (serenata, tua porta). Mas esses elementos também po-dem remeter o leitor a outros níveis de interpretação do texto. O adjeti-vo sintética corresponde ao caráter minimalista do poema, mas também pode referir-se a fabricado, industrial, artificial. Em um plano interpre-tativo, o adjetivo torta refere-se ao formato sinuoso da rua. Mas torto também pode ser entendido como errado, duvidoso. Daí que a rua torta possa ser entendida como os próprios descaminhos do eu-lírico ou de quem está por trás da porta.

O adjetivo morta, em um plano de interpretação, refere-se à ausên-cia de vida. Temos então um sentido trivial: A lua, efetivamente, é um astro sem vida. Mas morto também evoca o sentido de desaparecido.

Movimento poético sur-gido no Brasil, na década de 50, cujas característi-cas incluem “abolição do verso tradicional, falta de linearidade, ausência de pontuação, ruptura com a sintaxe; aproveitamento do espaço – do ‘branco da página’ – e a disposição geométrica das palavras no papel; a exploração do significante quanto aos seus aspectos sonoros, visual e semântico [...]” (JORDÃO, R.; OLIVEIRA, C. B., 2005. p. 301)

Algumas possibilidades de interpretação que o léxico oferece só podem ser rejeitadas a partir de ou-tros fatores de coerência, como a situacionalidade e a relevância.

No texto poético, o eu- -lírico é a voz que se dirige ao leitor; corresponde, grosso modo, ao narrador do texto narrativo.

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Então, nesse plano interpretativo, a lua já se esconde além do horizonte e se tem uma noite sem lua, escura, portanto, misteriosa. O pronome tua parece referir-se, num primeiro plano, à amada do eu-lírico. Mas também podemos supor que o eu-lírico dirige-se ao leitor. Nesse caso, o pronome tua referir-se-ia à pessoa do leitor. A negação dessa hipó-tese, como veremos adiante, exige a ativação de outros conhecimentos além do sistema linguístico. A palavra porta, que, em um plano inter-pretativo, é apenas a entrada para uma casa, comporta grande variedade de outros significados, entre os quais acesso. Então, tua porta pode ser interpretado também como acesso a ti, acesso ao teu coração. Por fim, retornando ao título, a expressão serenata sintética tanto pode referir-se ao conteúdo do poema – elementos mínimos de uma serenata – como ao poema em si, ele próprio bastante sintético.

Observamos que os elementos linguísticos do texto, ao evocar con-ceitos e relações variadas, permitem a criação de um mundo textual, nos termos de Beaugrande e Dressler (2002); ou, mais propriamente, devido ao caráter ambíguo do texto poético, variados mundos textuais.

5.2 Conhecimento de mundo

Um mesmo texto poderá parecer trivial ou impenetrável para dife-rentes interlocutores, dependendo de quanto conhecimento a respeito do assunto do texto eles possuam. Essa situação mostra que a construção da coerência de um texto é grandemente determinada pelos conheci-mentos de mundo prévios do interlocutor. Por isso, pessoas que possuem conhecimentos de assuntos variados têm melhor compreensão dos tex-tos em geral e estabelecem a coerência textual com maior facilidade.

Segundo Koch e Travaglia (1999 [1989]), os pesquisadores costu-mam diferenciar o conhecimento em: conhecimento enciclopédico (ba-ckground knowledge) e conhecimento ativado (foreground knowledge). O primeiro tipo de conhecimento representa aquilo que está guardado na memória de longo prazo. Já os conhecimentos do segundo tipo são tra-zidos à memória presente, ou operacional. Uma distinção importante entre os dois tipos de memória é que, na memória de longo prazo, os conhecimentos encontram-se mais organizados e integrados entre si,

Considerando que sere-natas são, normalmente,

feitas por homens para agradar a mulheres, su-

põe-se que o eu-lírico seja um homem e a amada,

uma mulher. Mas ressalte-se que, do ponto de vista estritamente linguístico,

nem o sexo da pessoa amada se pode garantir.

Uma importante implica-ção escolar dessa questão

é a necessidade de os alunos terem acesso a

conhecimentos variados, obtidos por meio da in-

teração com documentá-rios, filmes, jornais, livros,

visitas a museus, expo-sições de arte, parques

ecológicos etc. Em escolas que possuam recursos de

informática, também se pode acessar uma varie-

dade de sítios eletrônicos que permitem acesso

a museus e galerias de arte virtuais, assim como

a materiais em domínio público (livros e filmes,

por exemplo).

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Capítulo 05Coerência

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formando redes conceituais, enquanto que, na memória operacional, os itens não estão tão integrados e, assim, são mais facilmente esquecidos.

Esse conhecimento guardado na memória de longo prazo é aquilo a que normalmente nos referimos como conhecimento de mundo e envol-ve uma ampla gama de informações de natureza bastante diversa, entre as quais se poderia incluir:

Ӳ propriedades dos seres e seu comportamento;

Ӳ memória de fatos passados, com variados níveis de relevância, desde aqueles essencialmente pessoais até os eventos históricos;

Ӳ gêneros do discurso; elementos da cultura do próprio grupo social e de outros grupos;

Ӳ relação entre conhecimento científico e cotidiano;

Ӳ relação entre ficção e realidade etc.

Para exemplificar como o conhecimento de mundo é relevante na construção da coerência, vamos analisar seu papel na letra da música De frente pro crime, de autoria de João Bosco e Aldir Blanc (1975):

Texto 4

De frente pro crime

1 Tá lá o corpo estendido no chão

2 em vez de rosto uma foto de um gol

3 em vez de reza uma praga de alguém

4 e um silêncio servindo de amém

5 O bar mais perto depressa lotou

6 malandro junto com trabalhador

7 um homem subiu na mesa do bar

8 e fez discurso pra vereador

9 Veio camelô vender anel,

10 cordão, perfume barato

11 baiana pra fazer pastel

12 e um bom churrasco de gato

Esta questão também está relacionada ao letramento. O conceito de letramento emerge na década de 80 como reconhecimento das diferentes práticas sociais de uso da leitura e da escrita mais comple-xas que a codificação e decodificação (aprendiza-gem do sistema de escrita; alfabetização no sentido estrito do termo). Assim, vale destacar que, em uma sala de aula, incluem-se diferentes sujeitos. Os alunos ali agrupados estão inseridos em diferentes práticas de letramento, o que tem implicações nas práticas de linguagem na disciplina de Língua Portuguesa.

BOSCO, J. Caça à raposa. São Paulo: RCA Victor, 1975. 1 disco: 33 1/3 rpm, estéreo. LP 31.84.

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13 quatro horas da manhã baixou

14 o santo na porta-bandeira

15 e a moçada resolveu parar

16 então...

17 Tá lá o corpo estendido no chão

18 em vez de rosto uma foto de um gol

19 em vez de reza uma praga de alguém

20 e um silêncio servindo de amém

21 Sem pressa foi cada um pro seu lado

22 pensando numa mulher ou num time

23 olhei o corpo no chão e fechei

24 minha janela de frente pro crime

O corpo no chão (verso 1) poderia ser de alguém dormindo, de al-guém embriagado, de uma vítima de acidente. Entretanto, nosso conhe-cimento de mundo nos leva a pensar em morte por causa da palavra crime no título da canção.

No verso 2, um desafio à construção da coerência: Como a face de alguém vira uma foto de um gol? A morte, obscena, precisa ser tirada das vistas. Daí cobrir-se o morto com algo que esteja à mão. Nesse caso, usou-se um jornal que trazia estampada a foto de um gol. Observe-se que isso só é inferível por um leitor que conheça o fato de que é – ou, pelo menos, costumava ser – usual cobrir cadáveres ainda não recolhi-dos, como sinal de respeito.

Logo a seguir, nos versos 3 e 4, uma aparente incoerência: Se não há reza, mas praga, por que amém (verso 4), que é fecho próprio de ora-ções? A ativação do conhecimento de que amém significa “assim seja” reinstaura a coerência: Um dos circunstantes pragueja contra a crimina-lidade, contra a polícia ou contra o próprio morto; o silêncio dos demais sugere uma concordância com essa fala ou com o próprio assassinato – trata-se de “um marginal a menos”.

Outros conhecimentos de mundo precisam ainda ser mobilizados para a construção da coerência. Por exemplo, compreender a relação dos versos de 5 a 15 com o restante do texto implica ter alguma ciência sobre a banalização da morte no ambiente das metrópoles brasileiras.

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Capítulo 05Coerência

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5.3 Inferências

Estreitamente ligada ao conhecimento de mundo está a construção de inferências. Segundo Beaugrande e Dressler (2002 [1981]), inferir é suprir conhecimento de que já se dispõe a fim de organizar um mun-do textual: “Esta operação [inferir] envolve suprir conceitos e relações apropriados para preencher uma lacuna ou descontinuidade em um mundo textual.” (BEAUGRANDE e DRESSLER, 2002 [1981], cap. V, §32). Portanto, o processo de inferenciação consiste em suprir, com base em elementos textuais e no conhecimento de mundo, uma informação necessária ou pertinente ao estabelecimento de relações entre entidades no texto ou entre essas e o mundo.

Os autores descrevem a inferenciação como um processo ativo, guiado pelas metas do produtor e do interlocutor: “[...] a inferencia-ção é sempre dirigida para a resolução de um problema, no sentido de [...] transpor um espaço onde a trilha não alcança”. (BEAUGRANDE e DRESSLER, 2002 [1981], cap. V, §32)

As inferências são sempre motivadas por necessidades do leitor/ouvinte em obter sentido, criar coerência. Citando Charolles (1987), Koch e Travaglia dizem que

o processo de interpretação e reinterpretação é comandado pelo prin-

cípio da coerência, que leva aquele que interpreta o texto a construir

relações que não estão expressas nos dados do texto: estas relações são

as inferências, que podem ou não ser linguisticamente fundadas. (KOCH

e TRAVAGLIA, 1999 [1989], p. 70).

Nos modelos teóricos que buscam explicar o processo de compreen-são de textos, um problema a ser resolvido é a limitação das inferências apenas àquelas que sejam necessárias ou de alguma forma relevantes à construção da interpretação do texto. Koch e Travaglia (1999 [1989], p. 73) indicam alguns possíveis mecanismos de limitação das inferências:

a) O contexto, que pode ser o contexto lingüístico (ou co-texto) e o

contexto de situação (contexto sócio-cultural, circunstancial) [...];

b) A cooperação retórica, em termos de aceitação de argumentos;

c) A força ilocucionária do enunciado e a tarefa do ouvinte (ou leitor);

A inferência também é trabalhada na disciplina de Semântica. Veja: PIRES, Roberta. Semântica. Florianópolis: UFSC/CCE/LLV, 2009.

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d) A focalização, a que Charolles (1987) se refere como filtragem pelo alto.

É importante destacar que as inferências podem variar drasticamen-te entre interlocutores e são profundamente dependentes das expectativas do leitor/ouvinte. Estas, por sua vez, são guiadas por diversos fatores, que incluem os objetivos e o contexto imediato da interação, o gênero do dis-curso e mesmo questões de intertextualidade. Um bom exemplo de como a intertextualidade pode guiar a inferência está na leitura/audição de Pelos vinte, composição de Paulinho da Viola e Sérgio Natureza (1978):

Texto 5

Pelos Vinte

Você me deixou pelos vinte

No golpe da sorte

Entre a rosa e a preta

Na mesa da vida

Você me deixou sem saída

Sinuca de bico

A preta e a rosa

Na noite perdida

Você me deixou sem escolha

Com bolha no dedo

E o taco mais fraco

Com medo de errar

Você só deixou a tabela

E eu disse comigo

O efeito foi feito

Pra gente tentar

Tentei no capricho e matei sem perdão sua pose

A black e a rose

E a black outra vez

Enfim terminado este jogo

Chamei pelo cara do tempo

E tirei da caçapa o suor que suei

PAULINHO DA VIOLA. Pau-linho da Viola. São Paulo:

EMI/ODEON, 1978. 1 disco: 33 1/3 RPM, estéreo.

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Capítulo 05Coerência

69

O texto descreve um jogo de bilhar tenso, ganho pelo eu-lírico após uma jogada arrojada. Salvo por pistas sutis – como os versos Na mesa da vida e Na noite perdida, que parecem remeter a contextos existenciais mais amplos –, o texto parece definitivamente referir-se a bilhar. Entre-tanto, vários leitores/ouvintes veem no texto a alegoria de uma relação amorosa tensa, da qual o eu-lírico se vê livre.

Finalmente, considerando que, como dizem Beaugrande e Dressler, inferir é suprir conhecimento, leitores/ouvintes que possuem conheci-mentos de mundo mais amplos serão capazes de construir inferências mais amplas, que permitirão outras possibilidades de coerência, leituras mais ricas. Na análise do texto De frente pro crime, por exemplo, mostra-mos como o conhecimento de mundo permitiu elaborar algumas inferên-cias que serviram para integrar em um mundo textual coerente itens que ficariam sem uma explicação plausível, como o verso em vez de rosto uma foto de um gol. Mas, além dessas inferências, muitas outras podem ser feitas, de forma a ampliar a compreensão do texto, atribuindo-lhe outros sentidos. Por exemplo, a partir do fato de que o morto foi coberto com jornal e não com material mais nobre, pode-se inferir que se trata, prova-velmente, de alguém pobre. A partir da informação de que os populares, ao deixar o local do crime, vão pensando em uma mulher ou um time de futebol, é possível inferir que a morte já não os sensibiliza, banalizou-se.

5.4 Focalização

Segundo Koch e Travaglia (1999 [1989]), a focalização está direta-mente ligada com o conhecimento de mundo e o conhecimento com-partilhado. Nas interações, tanto o produtor quanto o interlocutor foca-lizam sua atenção em apenas uma pequena porção do conhecimento de que dispõem a respeito do assunto. Entretanto, para que a compreensão se dê de forma adequada, é necessário que esse recorte do conhecimento seja realizado de forma semelhante pelos participantes. Ou seja, é neces-sário que os mesmos objetos de discurso sejam enfocados. Nas intera-ções conversacionais, isso envolve mecanismos de negociação:

Os falantes agem como se estivessem focalizados semelhantemente,

quer estejam ou não (princípio da cooperação), e tendem a estabelecer

um campo comum. Caso não estejam focados semelhantemente, as di-

Isso possivelmente se dá porque quem conhece outras canções gravadas por Paulinho da Viola sabe que ele não costu-ma trabalhar com temas banais (como seria a mera descrição de um jogo de bilhar) e que muitas de suas músicas têm por tema o amor.

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ferenças de focalização causam problemas de compreensão que só são

detectados se ocorrerem problemas maiores de compatibilidade (KOCH

e TRAVAGLIA, 1999 [1989], p. 82).

Já nas interações mediadas por textos escritos, é bastante comum que o produtor e o leitor não tenham possibilidade de negociar a fo-calização. Daí a necessidade de que o produtor forneça os elementos que permitam ao leitor decidir sobre o que está sendo focalizado num dado momento. Há variadíssimas formas para isso. Observemos, por exemplo, como, no primeiro parágrafo do conto Pinóquio às avessas, reproduzido abaixo, o menininho de carne e osso vai ganhando forma não como um menino específico, mas como uma entidade prototípica de uma infância idealizada. Isso é conseguido, entre outros meios, pelo uso do pretérito imperfeito para falar de ações corriqueiras do menino:

Era uma vez um menininho, de carne e osso, igual a tantos que se de-

leitam nas coisas simples que a vida dá. Ria nos seus mundos de faz de

conta, voava nas asas dos urubus, assustava os peixes, nariz achatado

nos vidros dos aquários, assobiava para os perus, andava na chuva. To-

das estas coisas que as crianças fazem e os adultos desejam fazer e não

fazem, por vergonha. Sua vida escorria feliz por cima do desejo.

Essa focalização do menino como uma espécie de representante genérico de toda a infância é importante para que se realizem os efeitos de sentidos pretendidos por Rubem Alves (entre os quais se inclui cer-tamente uma crítica à educação escolar).

Para a focalização, os conhecimentos compartilhados sobre os gê-neros do discurso também têm grande relevância. No exemplo acima, Rubem Alves abre o texto com Era uma vez, que remete o leitor ao conto de fada. Portanto, um leitor proficiente saberá que a história que lerá é ficcional. Então, focalizará as personagens não como pessoas reais, mas imaginárias. Por outro lado, quando esse leitor proficiente iniciar a leitura de um artigo assinado no jornal, a focalização já iniciará com o próprio suporte do texto, o jornal, passando pela seção em que o artigo é publica-do, por seu título, pelo conhecimento do que é o jornalismo e o gênero ar-tigo assinado etc. Saberá que um artigo de jornal é diferente, por exemplo, de um artigo publicado em revista científica (são dois gêneros distintos) e também bastante diferente de uma matéria publicada em uma revista de fofocas. Além disso, se uma notícia estiver publicada na seção de esportes,

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nosso leitor hipotético construirá sentidos diferentes para a palavra con-fronto do que se essa notícia estiver publicada na seção policial.

Falando sobre as interações conversacionais, Koch e Travaglia (1999 [1989]) destacam que as pistas para focalização podem ser linguísticas ou não-linguísticas, como aquilo que os falantes veem durante a interação. Nas interações mediadas pela escrita, elementos sígnicos não-linguísticos, como desenhos e fotografias, também podem auxiliar a focalização.

As focalizações são fortemente dependentes do contexto e dos obje-tivos da interação. Por exemplo, se um jornalista escrever uma notícia a respeito de um encontro de líderes políticos, escolherá quais aspectos do evento é relevante noticiar, norteado pela situação imediata da interação de seu texto e pelas condições que o gênero lhe permite: onde e quando foi o evento, quem participou, qual o assunto, qual a opinião dos líderes pre-sentes, a que eventos correlatos fará referência, e assim por diante. Se um dos debatedores for um ministro que, nas horas vagas, dedica-se a esportes de risco, tal fato não será, provavelmente, enfocado pelo jornalista – a não ser que, durante o evento, o gosto pela aventura do ministro fique evidente. Poderá, então, servir até para que o jornalista enriqueça seu texto com um detalhe bem-humorado. O leitor, por sua vez, ainda que saiba dos gostos esportivos do ministro, tenderá a não focalizar esse conhecimento para sua construção da coerência do texto, a não ser que o jornalista o explore.

Como mencionado acima, tanto nas interações orais como naquelas mediadas pelo texto escrito, opera-se uma espécie de princípio coopera-tivo segundo o qual os interlocutores realizam a mesma focalização. Ou, mais propriamente falando, realizam focalizações coerentes, uma vez que os objetos discursivos – que não se confundem com os objetos do mundo físico – jamais podem ser exatamente os mesmos. Mas esse princípio coo-perativo não raro é violado, muitas vezes intencionalmente. Às vezes, para instigar a curiosidade do leitor ou para fazer um jogo lúdico, o escritor faz com que ele dirija sua focalização equivocadamente, como ocorre no título da matéria a seguir, publicada no jornal A Notícia:

A ideia de que a conver-sação opera segundo princípios cooperativos é de Grice (1975). Segundo o autor, a comunicação humana baseia-se em regras tácitas de coopera-ção mútua. Uma delas, por exemplo, permite pressu-por que, salvo indicação em contrário, tudo que o interlocutor diz é verda-deiro e deve ser tomado como tal.

Retornaremos a essa dis-cussão na Unidade C deste Livro-texto.

A Notícia, 28 fev. 2009. Disponível em http://www.clicrbs.com.br/ anoticia/jsp/default2.}jsp?uf=2&local=18& source=a2421066.xml&template=4187. dwt&edition=11806& section=888. Acesso em: 6 mai. 2009.

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Texto 6

Ronaldo estreia... a caixa de multasAtacante “esticou” a folga e será punido pelo Corinthians.

A diretoria do Corinthians anunciou ontem que o atacante Ronaldo será

punido pelo clube por não se apresentar no horário marcado na noite

de quinta-feira, em Presidente Prudente (SP).

Depois da folga da tarde, os atletas tinham de voltar ao hotel até as 23

horas – o astro do elenco desobedeceu à determinação e só retornou

de madrugada.

Em nota oficial, o clube não especificou qual será a punição, mas deixou

claro que ele realmente se atrasou, confirmando os boatos de que teria

aproveitado a noite da cidade do interior paulista. A polêmica surge às

vésperas da partida que pode colocar o Corinthians na liderança, contra

o Marília, amanhã, às 19h10.

Durante a manhã de ontem, Ronaldo não participou das atividades com

os outros atletas, no Estádio Eduardo José Farah. Mas, de acordo com o

técnico Mano Menezes e com a nota oficial, a ausência do jogador no

treino já era prevista. Ele realizou treinamento específico com fisiotera-

peutas na concentração.

Quando apresentado oficialmente no Corinthians, em 12 de dezembro

do ano passado, o Fenômeno declarou, ao lado do presidente Andrés

Sanches, que gostaria de ser mais um no elenco e não aceitaria ter pri-

vilégios. Só que o fato de ele não treinar com o restante do grupo na

manhã de ontem indica um benefício após noite mal dormida.

Segundo o técnico Mano Menezes, o tratamento do craque separada-

mente, em sala de fisioterapia montada pelo time num dos quartos do

hotel, já estava programado pela comissão técnica. Mesmo assim, a van

que leva os jogadores ao treinamento esperou pelo atacante até 9h20 –

o treino estava marcado para as 9 horas.

Recém-contratado pelo clube, o jogador Ronaldo ainda não estre-ara em partidas oficiais, havendo grande expectativa com relação a isso. Valendo-se desse fato, o jornalista cria um efeito lúdico com o desvio de focalização. As reticências (e talvez a quebra de linha), sugerindo uma pausa de suspense, servem para indicar ao leitor que não se trata de ca-sualidade, mas de efeito intencional.

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Capítulo 05Coerência

73

Citando Grosz (1981), Koch e Travaglia (1999 [1989], p. 82) des-tacam que a focalização “não só torna a comunicação mais eficiente, como, na verdade, a torna possível”. A focalização constitui, portanto, uma condição necessária para a construção de coerência, ao permitir que o produtor do texto e seu leitor/ouvinte selecionem porções de co-nhecimento para construção do texto e de sua interpretação.

5.5 Relevância

Citando Giora (1985), Koch e Travaglia (1999 [1989], p. 95) afir-mam que “uma das principais condições para o estabelecimento da coe-rência é a de relevância discursiva”. Ou seja, um texto mostra-se coerente quando é possível interpretar as partes que o compõem como tratando todas de um mesmo tópico discursivo.

Como observam Koch e Travaglia (1999 [1989]), a relevância não é percebida linearmente no texto entre pares de sentenças, mas entre um conjunto de sentenças e um tópico discursivo. Assim, é possível que diferentes conjuntos de sentenças tratem de diferentes tópicos discur-sivos, mas, para que a condição de relevância seja atendida, é preciso que um tópico maior os agrupe todos. Como afirmam os autores, “para que diferentes tópicos discursivos possam [...] preencher o requisito de relevância, eles devem ser relacionados por um hipertópico discursivo subjacente em termos de ‘aboutness’ (ser sobre algo)” (KOCH e TRA-VAGLIA, 1999 [1989], p. 95-96).

Em não havendo conexão aparente entre o tópico desenvolvido por um segmento de texto e o tópico principal, é comum que o autor negocie isso com seu interlocutor mediante um marcador de digressão. Na conver-sação, servem a esse propósito expressões como por falar nisso, aliás, entre outras. Mas, muitas vezes, as quebras sequer são sinalizadas na oralidade espontânea, porque o contexto informa ao interlocutor que o segmento de diálogo (a digressão) não tem relação com o tópico em desenvolvimento.

Em contexto escrito, costumam existir marcadores específicos para início e fim da digressão, como no texto a seguir, onde o marcador Inclusive marca o início de uma pequena digressão, enquanto Mas voltando ao assun-to marca a volta ao tópico principal do texto, que é a relação do autor com

Veja, por exemplo, a análi-se da progressão temática do Texto 2.

Trecho de comentário publicado no blog Me-mórias fracas. Disponível em http://memoriasfra-cas.com/2008/10/22/fios-cabos-adaptadores-gadgets/. Acesso em 27 abr. 2009.

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dispositivos eletrônicos. Neste mesmo texto, os travessões também foram usados para marcar uma outra digressão, esta no meio de um período.

Texto 7

Fios, cabos, adaptadores, gadgets

22 DE OUTUBRO DE 2008

Na última semana, fui a São Paulo cobrir o TechEd, evento da Micro-

soft voltado para desenvolvedores. Inclusive, você pode ver alguns de

meus posts sobre o evento no WinAjuda. Mas voltando ao assunto, foi

um cobertura voltada para o mercado de tecnologia e envolvia equi-

pamentos tecnológicos. Numa manhã, enquanto eu, Carlos Cardoso e

Thiago Mobilon tomávamos café no hotel – acho que foi o café da ma-

nhã mais demorado da minha [sic] –, esse último soltou uma pérola.

Mobilon comparou a necessidade de arrumação de uma mulher com

a necessidade que um geek tem de se manter conectado e cheio de

equipamentos. [...]

Koch e Travaglia (1999 [1989]) sugerem que, no texto jornalístico escrito, as digressões podem ser destacadas na forma de quadros com comentários e informações complementares (por exemplo, as informa-ções apresentadas por meio de mapas e infográficos). Segundo os auto-res, se tais informações aparecessem no meio do texto da reportagem ou da notícia, nos pontos em que se lhes faz referência, representariam digressões. Seguindo a mesma linha de raciocínio, podemos considerar que muitas das notas de rodapé em textos científicos também represen-tam digressões, como podemos confirmar no trecho do texto a seguir, de autoria de Matencio (2006):

Texto 8

Na minha exposição, salientei aquelas que considero serem, de uma

perspectiva bakhtiniana, as contribuições mais relevantes dos estudos

dos gêneros para a reflexão sobre os processos de textualização. Antes

de passar às minhas considerações finais, gostaria de dizer que a imensa

popularidade desses estudos parece-me, também, perigosa, na medida

em que pode obscurecer as diferenças nas abordagens12 e, sobretudo,

dar a ilusão de que não há mais nada de novo a dizer.

MATENCIO, M., L. M. Práti-cas discursivas, gêneros do

discurso e textualização. In: Estudos Linguísticos,

São Paulo, v. XXXV, p. 138-145, 2006. Disponível em:

<http://www.gel.org.br/estudoslinguisticos/edicoe-

santeriores/ 4publica-estudos-2006/sis-

tema06/mdlmm.pdf>. Acesso em: 30 abr. 2009.

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Capítulo 05Coerência

75

Notas

[...]

12 A preocupação de “limpar o campo”, de delimitar, de uma vez por todas, a questão, parece ter sido, aliás, a preocupação de muitos dos trabalhos sobre os gêneros que circularam em fins dos anos 90, quando se tentava distinguir tipo textual e gênero; mais recentemente, a preocupação de discussões que procu-ram identificar as distinções entre trabalhos que se dedicam ao estudo dos gê-neros textuais e aqueles que tratam dos gêneros do discurso parece responder ao mesmo tipo de inquietação.

Implicações para o processo de ensino-aprendizagem:

a) Como se pode ver a partir do pequeno exemplo explorado no item

5.1, os elementos linguísticos abrem muitas possibilidades interpre-

tativas, variadíssimas formas de construir a coerência. Portanto, no

ensino-aprendizagem de leitura, o professor precisa estar especial-

mente atento à polissemia dos termos e expressões, especialmente

nos textos em que predomina a função poética da linguagem. Uma

boa idéia pode ser examinar atentamente o léxico antes de apre-

sentar o texto aos alunos e, possivelmente, recorrer ao dicionário à

busca de sentidos menos convencionais. Possíveis exercícios envol-

veriam: leitura de textos poéticos, investigando diferentes possibili-

dades interpretativas; escritura de poemas explorando a polissemia

de termos como forma de criar jogos de sentidos.

E é ainda importante, no ensino-aprendizagem da leitura, que o

aluno leia o texto situado genericamente, ou seja, que ele saiba a

que gênero o texto pertence, pois gêneros distintos arregimentam

diferentes possibilidades de interpretação. Por exemplo, enquanto

os textos dos gêneros da arte buscam a polissemia, ou seja, várias

possibilidades de leitura, os textos legais buscam o fechamento dos

sentidos, logo, uma leitura mais parafrástica.

b) A focalização também é importante para a construção da coe-

rência textual. Assim, no ensino-aprendizagem de produção textu-

al, são importantes os procedimentos destinados a levar os alunos

a focalizarem seu texto. Tradicionalmente, a orientação para que o

aluno ‘delimite o assunto’ ou ‘defina um recorte’ servem para isso.

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Linguística Textual

76

Entretanto, essa delimitação é quase impossível quando não estão

claras as condições de produção, que, em, em grande medida, estão

ligadas aos gêneros do discurso: Em que espaço social de interação

estão escritor e leitor? Que autoria assumirá o aluno-autor? Quem

será seu leitor previsto? Quais são os objetivos do texto, ou seja, o

que o aluno-autor quer enunciar, por que e que reação-resposta

ele espera de seu leitor? Quais conhecimentos de mundo ele pode

esperar que o leitor possua? Como essa reação-resposta e esse co-

nhecimento de mundo previsto podem orientar o processo de tex-

tualização? Onde, quando e como o texto será publicado? Da mes-

ma forma, nos processos de leitura, é importante a focalização, que

pode começar justamente pela exploração do gênero do discurso,

com perguntas semelhantes às que se apresentam anteriormente.

c) A elaboração de inferências é essencial para a compreensão do

texto e para a construção da coerência, permitindo que se lhe atri-

buam outros sentidos. Por isso o ensino-aprendizagem pode prever

questões que levem os alunos a inferir informação não explícita no

texto. Pensando especificamente na polissemia do texto literário, os

alunos podem ser encorajados a expandir sua compreensão bus-

cando inferir as motivações das personagens, a moral da história, e

assim por diante.

d) A percepção da relevância – tomada como a integração da in-

formação ao tópico discursivo – é essencial para a construção da

coerência. No ensino-aprendizagem de leitura, é preciso exercitar

essa percepção. No caso de contos, crônicas, romances, mediante

perguntas bem colocadas, é possível levar os alunos a uma interpre-

tação mais apurada da história. Pode-se, por exemplo, perguntar:

“O que esse fato revela a respeito da personagem X?”, “Qual a re-

levância dessa característica da personagem X no desenvolvimen-

to da história?”, “Por que a personagem X agiu assim?”. No caso de

artigos de opinião, podem-se fazer perguntas que levem os alunos

a perceber como a argumentação se constrói, mormente, median-

te raciocínios lógicos e exemplificações. Na mediação da produção

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Capítulo 05Coerência

77

Na mediação da produção escrita, igualmente, os alunos devem ser

orientados a selecionar informações que sejam pertinentes à cons-

trução de textos coerentes e adequados à situação de interação.

e) Dado o caráter determinante dos conhecimentos de mundo na

construção de coerência, o ensino-aprendizagem de leitura pode

prever estratégias para facilitar a ativação desses conhecimentos.

Isso pode ser conseguido com perguntas dirigidas pelo professor à

turma antes, durante e após a leitura do texto. Por exemplo, antes

da leitura do texto De frente pro crime, poder-se-ia perguntar aos

alunos se a reação das pessoas perante as mortes violentas varia ao

longo do tempo e conforme a classe social da vítima. Também seria

possível pedir aos alunos que pensassem sobre o que acontece no

cenário de um assassinato na rua enquanto a polícia não recolhe o

cadáver. O professor também pode buscar formas de suprir o co-

nhecimento de mundo de que os alunos não disponham. Há várias

estratégias para isso, desde informar diretamente aquilo que os alu-

nos não sabem até pedir-lhes previamente que realizem pesquisas

sobre o tema. Da mesma forma, destaca-se a importância do conhe-

cimento de mundo no processo de produção textual.

Neste Capítulo, examinamos o papel, para a construção da co-erência, dos elementos linguísticos, do conhecimento de mundo, das inferências, da focalização e da relevância. Nos Capítulos seguintes, apresentaremos os fatores informatividade, intertextualidade, situacio-nalidade, intencionalidade e aceitabilidade, que, da mesma forma, têm grande relevância para a coerência.

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Capítulo 06Intencionalidade e aceitabilidade

79

6 Intencionalidade e aceitabilidade

Quando o autor produz um texto, tenciona que este seja entendido como tal, porque tem metas na interação. Existe, via de regra, um ob-jetivo para a enunciação. O autor quer influenciar de alguma forma o interlocutor: informar-lhe algo, fazer-lhe uma promessa, dar-lhe uma ordem, obter dele uma informação etc. Isso não implica, obviamente, que os esforços do autor sempre produzam o efeito desejado. Às vezes, alguma dificuldade do interlocutor em lidar com o texto ou algum pro-blema na textualização pode causar resultados inusitados. Vejamos, a esse respeito, esta fotografia de um aviso pintado na parede externa de um restaurante ou bar:

Texto 9

A intenção do anunciante, aparentemente, era informar a potenciais clientes que ali se vendia guaraná afrodisíaco, para – é claro – melhorar suas vendas. A forma como redigiu o aviso, entretanto, deu margem a leituras e reações bastante diversas. A imagem do anúncio circulou, via internet, por todo o Brasil e foi alvo de pilhérias. Todavia, o professor Sírio Possenti fez uma análise do anúncio, mostrando que o suposto erro é, na verdade, um gol de placa em termos de criatividade frente a um

Disponível em: http://blog-do-rona.blogspot.com/2007/03/zaco-e-sua-flor.html. Acesso em: 4 mai. 2009.

POSSENTI, S. “Quase gols de placa”. Dispo-nível em http://terra-magazine.terra.com.br/interna/0,,OI1575149-EI8425,00.html. Acesso em: 4 mai. 2009.

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Linguística Textual

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problema linguístico. Já o escritor Ronaldo Monte, inspirado pelo anún-cio, escreveu um breve conto, que simula uma narrativa mítica. Como se vê, o autor do aviso – por desconhecimento da palavra afrodisíaco em sua forma escrita – produziu um texto cujos efeitos foram muito além do que ele tencionava.

Esse desejo do autor de produzir um texto que cause algum efeito sobre o interlocutor é chamado de intencionalidade, que é definida por Beaugrande e Dressler (2002 [1981], cap.I, §13) como

[a] atitude do produtor de que o conjunto de ocorrências deva consti-

tuir um texto coeso e coerente, instrumental ao cumprir as intenções do

produtor; por exemplo, distribuir conhecimento ou alcançar uma meta

específica em um plano.

Contudo, como já vimos, a coerência não está no texto, mas é cons-truída pelo leitor/ouvinte na interação. Portanto, o sucesso da intenção do autor é altamente dependente das condições oferecidas por seu inter-locutor, entre as quais sua maior ou menor disposição para aceitar o tex-to como coeso, coerente e relevante para a situação. Essa disposição do leitor/ouvinte constitui a aceitabilidade, assim descrita por Beaugrande e Dressler (2002 [1981], cap. I, §14):

[...] atitude do receptor do texto de que o conjunto de ocorrências deva

constituir um texto coeso e coerente que tenha algum uso e relevância

para o receptor; por exemplo, adquirir conhecimento ou fornecer coo-

peração em um plano. Essa atitude é responsiva a fatores como tipo de

texto, cenário social ou cultural e a busca por metas.

No caso do anúncio do suco de guaraná a flôr de zíaco, por exem-plo, tanto Sírio Possenti quanto Ronaldo Monte mostram-se coopera-tivos como leitores. Para eles, o texto tem grande aceitabilidade. Mas, enquanto Monte constrói uma coerência alternativa para a frase a flôr de zíaco, Possenti a lê como um erro, ainda que inteligente:

Acho que esse é um bom exemplo de erro inteligente. É um erro, claro,

mas é brilhante. Lembra as etimologias populares (aviso breve, assustar

o cheque), tentativas de dar sentido a palavras ou a expressões opacas. É

um erro comparável aos gols perdidos por Pelé. (POSSENTI, 2007).

Koch e Travaglia (1999 [1989]) afirmam que tanto a intencionali-dade quanto a aceitabilidade podem ser tomadas em sentido amplo ou

MONTE, R. Zíaco e sua flor. Disponível em: <http://blog-do-rona.blogspot.

com/2007/03/zaco-e-sua-flor.html>. Acesso em: 4

mai. 2009 .

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Capítulo 06Intencionalidade e aceitabilidade

81

em sentido restrito. Em sentido restrito, a intencionalidade manifesta-se como a intenção do autor de produzir um texto dotado de coesão e coe-rência. Já a aceitabilidade, em sentido restrito, constitui a disposição do interlocutor em aceitar essas intenções do autor, tomando o texto como coeso, coerente e relevante. Portanto, em sentido restrito, o produtor e o leitor/ouvinte “agem como se o texto fosse coerente, numa espécie de atitude cooperativa: Um sempre quer produzir um texto que faça sen-tido e o outro sempre vê a produção do primeiro como algo que ele fez para ter sentido” (KOCH e TRAVAGLIA, 1999 [1989]).

Em sentido amplo, a intencionalidade abrange todas as formas de que o locutor lança mão para realizar os seus propósitos comunicativos. E a aceitabilidade, em sentido amplo, corresponde a uma disposição do leitor/ouvinte em compartilhar com o locutor esse propósito mais geral de estabelecer e manter a comunicação. Portanto, segundo Koch e Tra-vaglia (1999 [1989], p. 80), intencionalidade e aceitabilidade, em sentido amplo, “são as duas faces constitutivas do princípio da cooperação”. Tão forte é esse princípio cooperativo que o leitor/ouvinte tolera eventuais problemas na coesão ou na coerência, a fim de manter a comunicação, como destacado por Beaugrande e Dressler (2002 [1981], Cap. 1, §13):

Em certa medida, a coesão e a coerência podem, por si sós, ser tomadas

como metas operacionais sem cuja consecução outras metas discur-

sivas podem ser bloqueadas. Contudo, os usuários de textos normal-

mente mostram tolerância em relação a produtos cujas condições de

ocorrência tornam difícil manter coesão e coerência juntas [...], especial-

mente na conversação informal.

No texto a seguir, de Luiz Fernando Veríssimo (1982), é possível per-ceber como as personagens do texto buscam interagir cooperativamente. Para isso, as intenções comunicativas de um devem ser aceitas pelo outro, mesmo que seja preciso tolerar eventuais falhas na construção da coerência.

Texto 10

Comunicação

É importante saber o nome das coisas. Ou, pelo menos, saber comuni-

car o que você quer. Imagine-se entrando numa loja para comprar um...

um... como é mesmo o nome?

Esse parece ser o caso do anúncio analisado. Mesmo com os erros linguísti-cos, autor e interlocutor tentam ser cooperativos. Entretanto, nem sempre o interlocutor mostra cooperação. Muitas vezes, os desvios de norma-padrão são motivos para o interlocutor não apenas não aceitar a intenção do autor, como para desqua-lificá-lo.

VERÍSSIMO, L. F. In: NOVA-ES, C. A. et al. Para gostar de ler. v. 7. Crônicas. São Paulo: Ática, 1982. p. 35-37

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“Posso ajudá-lo, cavalheiro?”

“Pode. Eu quero um daqueles, daqueles...”

“Pois não?”

“Um... como é mesmo o nome?”

“Sim?”

“Pomba! Um... um... Que cabeça a minha. A palavra me escapou por

completo. É uma coisa simples, conhecidíssima.”

“Sim senhor.”

“O senhor vai dar risada quando souber.”

“Sim senhor.”

“Olha, é pontuda, certo?”

“O quê, cavalheiro?”

“Isso que eu quero. Tem uma ponta assim, entende?

Depois vem assim, assim, faz uma volta, aí vem reto de novo, e na outra

ponta tem uma espécie de encaixe, entende? Na ponta tem outra volta,

só que esta é mais fechada. E tem um, um... Uma espécie de, como é

que se diz? De sulco. Um sulco onde encaixa a outra ponta, a pontuda,

de sorte que o, a, o negócio, entende, fica fechado. É isso. Uma coisa

pontuda que fecha. Entende?”

“Infelizmente, cavalheiro...”

“Ora, você sabe do que eu estou falando.”

“Estou me esforçando, mas...”

“Escuta. Acho que não podia ser mais claro. Pontudo numa ponta, certo?”

“Se o senhor diz, cavalheiro.”

“Como, se eu digo? Isso já é má vontade. Eu sei que é pontudo numa

ponta. Posso não saber o nome da coisa, isso é um detalhe. Mas sei exa-

tamente o que eu quero.”

“Sim senhor. Pontudo numa ponta.”

“Isso. Eu sabia que você compreenderia. Tem?”

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Capítulo 06Intencionalidade e aceitabilidade

83

“Bom, eu preciso saber mais sobre o, a, essa coisa. Tente descrevê-la ou-

tra vez. Quem sabe o senhor desenha para nós?”

“Não. Eu não sei desenhar nem casinha com fumaça saindo da chaminé.

Sou uma negação em desenho.”

“Sinto muito.”

“Não precisa sentir. Sou técnico em contabilidade, estou muito bem de

vida. Não sou um débil mental. Não sei desenhar, só isso. E hoje, por acaso,

me esqueci do nome desse raio. Mas fora isso, tudo bem. O desenho não

me faz falta. Lido com números. Tenho algum problema com os números

mais complicados, claro. O oito, por exemplo. Tenho que fazer um rascu-

nho antes. Mas não sou um débil mental, como você está pensando.”

“Eu não estou pensando nada, cavalheiro.”

“Chame o gerente.”

“Não será preciso, cavalheiro. Tenho certeza de que chegaremos a um

acordo. Essa coisa que o senhor quer, é feito do quê?”

“É de, sei lá. De metal.”

“Muito bem. De metal. Ela se move?”

“Bem... É mais ou menos assim. Presta atenção nas minhas mãos. É as-

sim, assim, dobra aqui e encaixa na ponta, assim.”

“Tem mais de uma peça? Já vem montado?”

“É inteiriço. Tenho quase certeza de que é inteiriço.”

“Francamente...”

“Mas é simples! Uma coisa simples. Olha: assim, assim, uma volta aqui,

vem vindo, vem vindo, outra volta e clique, encaixa.”

“Ah, tem clique. É elétrico.”

“Não! Clique, que eu digo, é o barulho de encaixar.”

“Já sei!”

“Ótimo!”

“O senhor quer uma antena externa de televisão.”

“Não! Escuta aqui. Vamos tentar de novo...”

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“Tentemos por outro lado. Para o que serve?”

“Serve assim para prender. Entende? Uma coisa pontuda que prende.

Você enfia a ponta pontuda por aqui, encaixa a ponta no sulco e prende

as duas partes de uma coisa.”

“Certo. Esse instrumento que o senhor procura funciona mais ou menos

como um gigantesco alfinete de segurança e...”

“Mas é isso! É isso! Um alfinete de segurança!”

“Mas do jeito que o senhor descrevia parecia uma coisa enorme,

cavalheiro!”

“É que eu sou meio expansivo. Me vê aí um... um... Como é mesmo o nome?”

Visando obter do cliente a informação de que precisa (o produto que o cliente deseja) e diante da hesitação do cliente, o vendedor ins-tiga-o com perguntas gentis, mas cada vez mais curtas: Posso ajudá-lo, cavalheiro?; Pois não?; Sim? É como se houvesse urgência em obter logo a informação para dar sequência à interação comunicativa.

Em vista de sua dificuldade em lembrar o nome do objeto, o cliente fornece outro tipo de informação, a de que esqueceu o nome do objeto que deseja comprar. Sua intencionalidade, neste ponto, desloca-se da meta de nomear o objeto para outra meta: mostrar, nas entrelinhas, que não é alguém mentalmente insano, mas que simplesmente esqueceu o nome de algo. Essa estratégia discursiva é importante para manter alta a aceitabili-dade do vendedor, que precisa acreditar que o cliente realmente está ten-tando ser cooperativo. O vendedor aquiesce com Sim senhor duas vezes, para mostrar que ainda está aberto o canal de comunicação entre eles.

Diante da dificuldade em que se vê, o cliente muda ligeiramente a meta inicial, que era lembrar o nome do objeto e passa a perseguir uma meta alternativa: fazer com que o vendedor lhe dê essa informação. Para isso, a intencionalidade do seu texto agora é, mediante uma descrição da forma do objeto, fazer com que o vendedor o identifique. A princípio, a aceitabilidade desse texto parece ser reduzida, porque o vendedor dá respostas curtas e evasivas: Infelizmente, cavalheiro; Estou me esforçan-do, mas... Se o senhor diz, cavalheiro.

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Capítulo 06Intencionalidade e aceitabilidade

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Essa última resposta irrita o cliente, que percebe que a aceitabilidade de seu texto está se reduzindo. Novamente, ele precisa mudar sua meta na interação, de forma a não deixar que a comunicação se interrompa. Daí a necessidade de convencer o vendedor a aceitar o seu texto. Isso é feito de duas formas: acusar o vendedor de que ele não está se esforçando o suficiente (Isso já é má vontade) e insistir que é alguém capaz de produzir um texto coerente. A intencionalidade do parágrafo em que o cliente diz ser técnico em contabilidade e estar muito bem de vida é basicamente essa.

Vendo que o foco da conversação mudou do objeto para ele pró-prio e que o vendedor continua pouco cooperativo, o cliente muda no-vamente de meta e pede que o vendedor chame o gerente. Isso tem sobre o vendedor o efeito de aumentar sua cooperação – talvez por medo de ser repreendido. E ele passa a perseguir juntamente com o cliente a meta de identificar o objeto. Portanto, sua intencionalidade na interação tam-bém muda: se sua meta anterior era ver-se livre do cliente (daí a opção por frases curtas, evasivas), passa a ser agora identificar o objeto. Para isso, ele confirma que entendeu as informações dadas pelo cliente e faz perguntas para obter novas informações: Muito bem. De metal. Ela se move?; Tem mais de uma peça? Já vem montado?

E a aceitabilidade de discurso do vendedor também aumenta: Perce-bendo a mudança na intencionalidade do vendedor, o cliente não mais o acusa de falta de cooperação, porque aceita as perguntas que ele faz como relevantes para identificar o objeto. Por fim, o objeto é identificado, meio por acidente, enquanto cliente e vendedor agem de forma cooperativa.

O exemplo anterior ilustra como os padrões de aceitabilidade e in-tencionalidade são mobilizados conjuntamente em interações coopera-tivas. Quando o objetivo maior é obter um modelo global da situação, eventuais desentendimentos são ignorados ou negociados, de forma a garantir a comunicação. Mas, especialmente em interações conversacio-nais, a intencionalidade e a aceitabilidade também vão sendo construí-das dinamicamente, conforme a interação progride.

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Implicações para o processo de ensino-aprendizagem:

Como vimos, tanto a intencionalidade quanto a aceitabilidade têm

estreita ligação com a construção de coerência. Por isso, no ensino

de produção escrita ou oral, o professor pode orientar seus alunos

a pensar em qual a intencionalidade de seu texto (que efeitos que-

rem provocar nos interlocutores, como desejam que seu texto seja

entendido), de forma a mobilizar os recursos linguístico-discursivos

nessa direção. Por outro lado, nas atividades de recepção (leituras,

assistir a vídeos), os alunos podem exercitar a aceitabilidade, sendo

orientados pelo professor a procurar determinar as possíveis inten-

ções dos locutores.

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Capítulo 07Informatividade

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7 InformatividadeComo já mencionado brevemente em Capítulo anterior, a infor-

matividade é um dos padrões de textualidade. Ela está relacionada à quantidade de informação nova ou inesperada que um texto traz ao lei-tor/ouvinte. Segundo Beaugrande e Dressler (2002[1981]), ao se ava-liar a informatividade de um texto, costuma-se enfatizar o conteúdo. Isso ocorre porque o fator dominante para a textualidade parece ser a coerência, uma vez que se aloca mais atenção para a sua construção. Entretanto, destacam os autores que os textos podem ser informativos relativamente a qualquer subsistema linguístico (sintaxe, fonética etc.).

Beaugrande e Dressler associam a informatividade à Teoria da In-formação, que se baseia em probabilidade estatística. Segundo essa te-oria, “quanto maior o número de alternativas possíveis em um dado ponto, maior será o valor de informação quando uma dessas alternativas for escolhida” (BEAUGRANDE; DRESSLER, 2002 [1981], cap. VII, §2). Entretanto, como destacam os autores, esse tipo de procedimento estatís-tico não pode ser aplicado à comunicação linguística natural, porque não é possível contar todas as possibilidades. Além disso, as escolhas de itens não dependem apenas do contexto linguístico imediatamente anterior.

Mesmo assim, segundo Beaugrande e Dressler, vale a pena consi-derar a informatividade a partir da noção de probabilidade (presente em noções como ‘expectativa’, ‘padrão’, ‘preferência’, ‘predição’). Assim, os autores substituem a noção de probabilidade estatística pela probabili-dade contextual e propõem três níveis gerais de informatividade:

a) Apresentam informatividade de nível 1 ou de primeira or-dem as ocorrências (palavras, expressões etc.) cuja probabi-lidade em um dado contexto é tão alta que são considerados casos triviais e recebem pouca atenção. Incluem-se aqui as cha-madas palavras funcionais (artigos, preposições etc.) e outras informações evidentes, como as placas indicativas de banheiro masculino ou feminino;

b) Apresentam informatividade de nível 2 ou de segunda ordem as ocorrências cuja probabilidade é menor, mas cuja aparição

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no texto não chega a causar surpresa, sendo interpretadas com relativa facilidade. A comunicação normal envolve majorita-riamente ocorrências com esse nível de informatividade;

c) Apresentam informatividade de nível 3 ou de terceira or-dem as ocorrências muito improváveis, que causam surpresa ou confusão no ato da leitura. Sua interpretação demanda, por parte do interlocutor, grande quantidade de esforço cognitivo. Em contrapartida, são dados que provocam mais interesse. Os autores citam como exemplo desse tipo de ocorrência as des-continuidades (aparente falta de informação no texto) e as dis-crepâncias (quando padrões exibidos pelo texto não se ajustam ao conhecimento armazenado pelo leitor).

Para Beaugrande e Dressler (2002 [1981]), quando ocorrências de terceira ordem, mediante esforço cognitivo, são integradas à continui-dade do texto e aos padrões do conhecimento armazenado pelo leitor, tem-se um processo de rebaixamento da informatividade. Quando isso não é possível, o resultado é uma impressão de falta de sentido.

Pode também acontecer que ocorrências de primeira ordem so-fram um processo de alçamento em sua informatividade. Os autores ci-tam como exemplo a frase que inicia um texto em um livro de ciências: O mar é água apenas no sentido de que água é a substância predominan-te. Na verdade, é uma solução de gases e sais, juntamente com um grande número de organismos vivos... A afirmação inicial de que o mar é água parece trivial, mas logo essa informação recebe um alçamento quando se informa que o mar não é exatamente água, mas uma solução de gases e sais, mais organismos vivos.

Vemos, portanto, que as questões relativas à informatividade po-dem ser decisivas para a coerência, uma vez que, na escuta ou na leitura, o ouvinte ou o leitor precisa ajustar a informatividade dos elementos do texto, de forma a:

a) rebaixar a informatividade de algumas ocorrências com in-formatividade de terceira ordem, de forma a integrá-las ao mundo textual;

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Capítulo 07Informatividade

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b) aumentar a informatividade de algumas ocorrências de pri-meira ordem de informatividade, para integrá-las ao mundo textual como informação não trivial.

Por outro lado, na escrita ou na fala, o autor também deve ajustar a informatividade, de forma a prover informação que seja, ao mesmo tempo, interessante e acessível aos leitores. Para fazê-lo, precisa calcular como são seus leitores pretendidos (o quanto já sabem, qual sua capaci-dade de realizar inferências etc.)

A seguir, apresentamos o conto Boi de guia, para uma breve análise que, esperamos, mostrará alguns desses ajustes de informatividade e sua relação com a construção da coerência do texto:

Texto 11

Boi de guia

O menino tinha nascido e se criado em Ituverava, da banda de Minas.

O pai era um carreiro de confiança, muito procurado para serviços de

colheitas. Tinha seu carro antigo, de boa mesa rejuntada, fueirama firme,

esteirado de couro cru, roda maciça de cabiúna ferrada, bem provido o

berrame de azeite e com seu eixo de cotão cantador que a gente ouvia

com distância de légua. Desses que antigamente alegravam o sertão e

que os moradores, ouvindo o rechinado, davam logo a pinta do carreiro.

O pai tinha o carro e tinha suas juntas redobradas em parelhas certas, capri-

chadas, bois erados, retacos, manteúdos, de grandes aspas e pelagem lim-

pa. Era só o que possuía. O canto empastado onde morava, família grande,

meninada se formando e sua ferramenta de trabalho — os bois e o carro.

Trabalhava para os fazendeiros de roda, principalmente na colheita de café e

mantimentos, meses a fio, enchendo tulhas e paióis vazios. Quando acaba-

va o café, era a cana, do canavial para os engenhos, onde as tachas ferviam

noite e dia e purgavam as grandes formas de açúcar, cobertas de barro.

O candeeiro era ele, pirralho franzino, esmirrado, de cinco anos.

Os pais antigos eram duros e criavam os filhos na lei da disciplina. Na

roça, então, criança não tinha infância. Firmava-se nas pernas, entendia

algum mandado, já tinha servicinho esperando.

Aos quatro anos montava em pêlo, cabresteava potranquinha, trazia be-

zerro do pasto, levava leite na cidade e entregava na freguesia.

In: CORALINA, Cora. Es-tórias da casa velha da ponte. São Paulo: Global, 1986.

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Era botado em riba do selote, não alcançava estribo. Se descesse, não

subia mais. Punha o litro nas janelas.

O cavalo em que montava era velho, arrasado, manso e sabido. Subia

nas calçadas, encostava nos alpendres, conhecia as ruas, desviava-se das

buzinas e parava certo nos fregueses.

Quando de volta, recolhendo a garrafada vazia, gritava desesperada-

mente:

— Garrafa do leite.. . garrafa vaziiia!...

Um da casa, atordoado com a gritaria, se apressava logo a entregar o

litro requerido.

Ajudava o pai. Desde que nasceu, contava ele. Nunca se lembra de ter

vadiado como os meninos de agora. Quando começou a entender o

pai, a mãe, os irmãos, o cachorro e o mundo do terreiro, já foi fazendo

servicinho. Catava lenha fina, garrancheira pra o fogão, caçava pela sa-

roba os ninhos das botadeiras, ia atrás dos peruzinhos e já quebrava

xerém às chocas de pinto. Do pasto trazia os bois de serviço. Seu gosto

era vir pendurado no chifre do guia barroso — tão grande, tão forte,

tão manso — sempre remoendo seus bolos de capim, nem percebia o

fanico do menino que se pendurava nele e, se percebia, também não se

importava, não dava mostras.

Acostumou-se com os bois e os bois com ele. Sabia o nome de todos e

os particulares de cada um. Chamava pra mangueira. O pai erguia nos

braços possantes e passava as grandes cangas lustrosas; encorreiava os

canzis debaixo das barbeias, enganchava o cambão, encostava o coice,

prendia a cambota. Passava mão na vara, chamava. As argolinhas reti-

nham e o carro com sua boiada arrancavam a caminho das roças.

Com cinco anos, era mestre-de-guia, com sua varinha argolada.

Às vezes, o serviço era dentro de roças novas, de primeira derrubada,

cheia de tocos, tranqueirada de paulama, mal-encoivaradas, ainda mais

com seus muitos buracos de tatu.

O carreador, mal-amanhado, só dava o tantinho das rodas. Os bois que

agüentassem o repuxado, e o menino, esse, ninguém reparava nele. Aí

era que o carro vinha de caculo. A colheita no meio da roça. Chuvas se

encordoando de norte a sul, ameaçando o ar do tempo mudado e o

fazendeiro arrochando pressa.

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Capítulo 07Informatividade

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A boiada tinha de romper a pulso. O aguilheiro na frente, pequeno, des-

calço, seu chapeuzinho de palha, seu porte franzino, dando o que tinha.

Sentia nas costas o bafo quente do guia. Sentia no pano da camisa a

baba grossa do boi. O pai atrás, gritando os nomes, sacudindo o ferrão.

A boiada, briosa e traquejada, não queria ferrão no couro, a criança atra-

palhava. Aí, o guia barroso dava um meneio de cabeça, baixava a aspa

possante e passava a criança pra um lado.

O menino tornava à frente. Outra vez a baba do boi na camisa, o grito

do carreiro afobado, o tinido das argolinhas e a grande aspa passando a

criança pra um lado.

O pai gritou frenisado:

— Quem já viu aguiero chamá boi de banda… Passa pra frente,

porqueira.

— Nhô pai, é o boi que me arreda…

— Passa pra frente, covarde. Deixa de invenção, inzoneiro…

O menino enfrentou de novo. O homem sacudiu a vara pondo reparo.

A argola retiniu, as juntas arrancaram. O barroso alcançou a criança. Ia

pisar, ia esmagar com sua pata enorme e pesada.

Não pisou, não esmagou. Virou o guampaço num jeito e passou a crian-

ça pra um lado sem magoar. Aí o velho carreiro viu…, viu o boi pela

primeira vez…

Sentiu uma gastura e pela primeira vez uma coisa nova inchando seu

coração no peito e alimpou uma turvação da vista na manga da camisa.

As várias ocorrências do texto que informam que o menino traba-lha desde muito pequeno poderiam entrar em contradição com nosso conceito moderno e urbano de infância como fase da vida em que se brinca e estuda e não se trabalha. Para evitar que essa informação a res-peito do menino – absolutamente necessária para o desenvolvimento da história, mas que não é o tema central da narrativa – assuma o nível 3 de informatividade, tornando-se surpreendente, o narrador informa aos leitores que os pais antigos eram duros e criavam os filhos na lei da disciplina e que na roça, criança não tinha infância, trabalhando desde a mais tenra idade. Temos, portanto, um rebaixamento da informativi-dade das ocorrências textuais que mostram o menino fazendo trabalhos

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de adulto e sendo tratado com severidade pelo pai, apesar de ter apenas cinco anos. Assim, essas informações podem ser integradas facilmente à compreensão que o leitor vai construindo do texto. Da mesma forma, a delicadeza do boi barroso com o menino, ainda que contradiga um tanto nosso conhecimento a respeito de animais de trabalho, também não se torna surpreendente porque o leitor já foi previamente informado de que o menino acostumou-se com os bois e os bois com ele e de que o boi bar-roso, apesar de grande e forte, era também tão manso. Novamente aqui, temos uma ocorrência muito relevante para a construção da história – a delicadeza de um animal enorme –, mas que não pode parecer inusitada demais, para não ganhar centralidade excessiva na atenção do leitor.

Por outro lado, quando a história se encaminha para o seu clímax, seu ponto de maior interesse, o leitor se depara com a informação de que o velho carreiro viu o boi pela primeira vez. Cria-se, então, uma aparente incoerência, uma discrepância que o leitor tem que resolver, porque, já consta do seu conhecimento armazenado, a partir da leitura do texto, que o boi pertencia ao homem. Da mesma forma, o leitor também é sur-preendido com a informação de que o velho carreiro – mostrado como um homem ríspido, calejado pelo trabalho árduo – se emociona, sentin-do uma gastura e uma coisa nova inchando seu coração no peito, e chora. Aqui o leitor não recebe ajuda do narrador para fazer o rebaixamento da informatividade dos itens. Precisa fazê-lo sozinho. Exige-se aqui sua atenção justamente porque esse é o ponto central da história. Mediante inferências diversas, o leitor pode concluir que:

a) o velho carreiro aprende com o boi a delicadeza, aprende que ser forte não implica ser rude;

b) obviamente, o que o carreiro vê pela primeira vez não é o boi; mas, num certo sentido a si próprio, a forma como sua exis-tência bruta transformou-o também num ser bruto. Porém, é o gesto inusitado do boi que desencadeia essa súbita revelação. Por isso, a afirmação de que o homem viu o boi;

c) o resultado dessa revelação é um choque para o homem. Daí as lágrimas, às quais ele está tão pouco afeito que as percebe como uma turvação da vista.

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Capítulo 07Informatividade

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Cora Coralina recria a fala de pessoas do campo, com seu léxico de difícil acesso para um leitor urbano. Isso provoca grande número de ocorrências com informatividade de terceiro nível. É interessante per-ceber que o conto pode ser compreendido sem que se tenha que buscar no dicionário o significado de todos esses itens. Ou seja, o leitor não precisa rebaixar a informatividade de todas as ocorrências, mas somente daquelas que, se não integradas ao mundo textual, impossibilitarão a construção adequada da coerência.

Ao final da leitura, o título do conto – que inicialmente parece tri-vial, servindo apenas para fazer referência a uma personagem da his-tória – pode receber um alçamento na sua informatividade: O boi de guia não guia apenas os outros bois no carreador; guia também o velho carreiro na trilha do autoconhecimento.

O controle da informatividade é também muito importante nos textos de divulgação científica jornalística e naqueles dirigidos a espe-cialistas. A esse respeito, consideremos o texto a seguir:

Texto 12

O que é a Teoria da Relatividade?

Em sua teoria da relatividade especial de 1905, Einstein mostrou que

nossas noções de espaço e tempo como entidades rígidas e imutáveis

são ilusões causadas pelo fato de que os nossos movimentos são muito

lentos, se comparados à velocidade da luz. Se nos movêssemos a velo-

cidades comparáveis, mas menores, veríamos as coisas encolhendo e o

tempo passaria mais devagar para elas. Entre as consequências, Einstein

demonstra a equivalência entre energia e matéria, algo que só é possí-

vel a altíssimas energias. Na relatividade geral, de 1916, Einstein redefine

a gravidade como sendo a curvatura do espaço. A expansão do Univer-

so e os buracos negros são descritos por essa teoria.

Para um especialista, o Texto 12 será muito pouco informativo, por-tanto, não causará grande interesse. Para um leigo, entretanto, espera-se que apresente um nível de informatividade suficientemente elevado para se mostrar interessante. Observemos que a autora do texto regulou a informatividade de forma que o texto possa ser compreendido sem

BRUM, E. O senhor do universo. In: Época, nº 429, 7 ago. 2006, p. 78-88.

Assim, podemos ver como os gêneros do discurso interferem no modo da construção da informativi-dade do texto.

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que se entre em detalhes sobre itens de grande complexidade, como a curvatura do espaço e os buracos negros.

Já o texto a seguir, resumo de uma dissertação na área de ortodon-tia, deve apresentar um nível de informatividade não muito alto para leitores especialistas. Todavia, para o leitor comum, esse nível de infor-matividade é tão elevado que boa parte do resumo se mostra incompre-ensível.

Texto 13

Resumo

O complexo craniofacial contribui como um elemento adicional impor-

tante no processo de diagnóstico ortodôntico e ortopédico funcional

dos maxilares. No presente trabalho realizou-se a avaliação cefalométrica

da posição do osso hióide em relação ao padrão respiratório em 28 indi-

víduos com padrão respiratório predominantemente nasal e de 25, com

padrão respiratório predominantemente bucal. Todos eram do gênero

feminino, leucodermas e com Classe I de Angle, cujas idades médias fo-

ram de aproximadamente 10 anos. As medidas cefalométricas Ar-Pog,

PP-Me, ENP-PM, S-PM, Ângulo Goníaco, BaN.PM, PTM.PM, PO.PM foram

utilizadas como parâmetro de identificação da morfologia mandibular.

As medidas cefalométricas horizontais, verticais e angulares, incluindo o

Triângulo Hióideo (Bibby & Preston, 1981) foram utilizadas com a finali-

dade de determinar a posição do osso hióide. Estabeleceu-se uma com-

paração entre os grupos por meio do teste t de student com nível de

significância de 5%, bem como correlação de Pearson entre as variáveis.

Observou-se que não ocorreram diferenças estatísticas significativas para

a posição mandibular e posição do osso hióide e o tipo do padrão respi-

ratório. O limite ântero-posterior do espaço aéreo superior representado

pelo Atlas-Espinha Nasal Posterior (AA-ENP) também foi constante para o

grupo com respiração predominantemente nasal e bucal, com um valor

médio de 32,87mm ± 3,34 e 32,86mm ± 2,18, respectivamente. No Triân-

gulo Hióideo, o coeficiente de correlação de 0,40 foi significativo entre

AA-ENP e C3-H (distância entre o ponto mais anterior e inferior da terceira

vértebra cervical e o corpo do osso hióide) demonstrando uma relação

positiva entre os limites ósseos do espaço aéreo superior e inferior. Para

as medidas cranianas houve uma correlação significativa de 0,50 e 0,43

entre as medidas Ar-Pog e a distância horizontal do osso hióide e PP-Me

COELHO-FERRAZ, M. J. P. Avaliação cefalométri-ca da posição do osso

hióide em respiradores predominantemente

bucais. 2004. Dissertação (Mestrado em Ortodontia). Faculdade de Odontologia de Piracicaba, Universida-de Estadual de Campinas,

Campinas, SP, 2004.

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Capítulo 07Informatividade

95

e distância vertical do osso hióide, respectivamente, sugerindo uma re-

lação entre a posição do osso hióide com a morfologia mandibular. Os

resultados permitiram concluir que o osso hióide mantém uma posição

estável para garantir as proporções corretas das vias aéreas e não depen-

de do padrão respiratório predominante.

Os exemplos apresentados neste Capítulo mostram como o ajuste da informatividade pelo autor tem grande relevância para permitir que o leitor construa uma interpretação adequada do texto. Como destacam Koch e Travaglia (1999 [1989], p. 81), “a informatividade exerce [...] im-portante papel na seleção e arranjo de alternativas no texto, podendo facilitar ou dificultar o estabelecimento da coerência”.

Implicações para o processo de ensino-aprendizagem:

Nossa discussão sobre o padrão da informatividade comporta va-

riadas implicações para o ensino-aprendizagem, entre as quais po-

deríamos destacar:

a) No ensino-aprendizagem de produção textual, os alunos podem

ser orientados a regular a informatividade em seus textos, de

forma a causar interesse. Se um texto traz apenas itens triviais,

óbvios, sua informatividade é reduzida e, consequentemente, é

também reduzido o interesse que possa ter para os leitores. Por

outro lado, elementos no texto cuja informatividade seja muito

alta tendem a tornar o texto incompreensível caso o leitor não

tenha condições de, mediante inferências, obter um rebaixa-

mento da informatividade;

b) No ensino-aprendizagem de leitura, o professor pode auxiliar os

alunos no ajuste da informatividade dos textos. Pode chamar a

atenção para as pistas que lhes permitirão construir as inferên-

cias necessárias ao rebaixamento da informatividade. Por outro

lado, deve mostrar que certos itens que, à primeira vista, pare-

çam triviais, podem ter alta informatividade, especialmente em

textos literários;

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Linguística Textual

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c) Na seleção de textos literários, a informatividade deve ser levada

em conta. Há textos de fácil leitura, mas de baixa informativida-

de e, consequentemente, pouco indicados para desenvolver nos

alunos uma relação prazerosa com a leitura. Por outro lado, tex-

tos cuja leitura requer a elaboração de inferências para regular a

informatividade são mais difíceis, mas também mais interessan-

tes, porque o leitor consegue assumir uma postura mais ativa na

construção da coerência. Então, vale a pena investir na leitura de

textos literários mais densos, de autores menos óbvios.

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Capítulo 08Situacionalidade

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8 SituacionalidadeSegundo Beaugrande e Dressler (2002 [1981], cap. I, §19), a situa-

cionalidade “diz respeito aos fatores que fazem um texto relevante para uma situação de ocorrência”. Consideremos, por exemplo, o seguinte texto, afixado em um ponto de ônibus e copiado por um dos autores deste livro em 30 abr. 2009:

Texto 14

ROÇO, FAÇO CAPINAS E CORTO GRAMA

ENSINO LER (TIPO REFORÇO PARA CRIANÇAS)

(TAMBÉM INGLÊS BÁSICO)

FAÇO UM PREÇO CAMARADA

[Segue-se um número de telefone móvel e um nome masculino]

O autor do texto afixou-o, estrategicamente, num local de grande circulação de pessoas, inclusive escolares. Em termos de conteúdo, esse anúncio soa estranho, porque o leitor fica a imaginar por que o autor oferece serviços tão díspares como cortar grama e dar aulas de inglês básico. Entretanto, considerando-se a situação de enunciação, o texto se mostra relevante: seu autor, que tem variados serviços a oferecer, faz isso a um público igualmente variado.

É interessante observar-se, conforme já apontado por Beaugrande e Dressler (2002 [1981]), que a situacionalidade afeta também os meios de coesão. As escolhas do autor contribuem para que o anúncio possa ser lido fácil e rapidamente não só pelos usuários do ponto de ônibus, mas também pelos passantes: o texto, escrito em letras relativamente grandes, é econômico e disposto de tal forma que cada bloco de informações ocu-pe uma linha, e são dadas, praticamente, só as informações essenciais. As explicações de que as aulas de leitura são apenas para reforço escolar e que o inglês é básico são antes uma demonstração eloquente da hones-tidade do anunciante do que indício de prolixidade. Já a oferta de um preço camarada também visa a seduzir um público que não deve dispor de muitos recursos, uma vez que são usuários de transporte coletivo.

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Como ocorre com a intertextualidade, a situacionalidade também requer mediação, pois os usuários de texto precisam alimentar seus mo-delos das situações comunicativas com seus próprios conhecimentos, crenças e metas, juntamente com dados oriundos da própria situação. Beaugrande e Dressler (2002 [1981], cap. VIII, §1) sugerem que tais da-dos podem servir para monitoramento da situação – quando a função do-minante do texto é “produzir uma explicação imediata razoável do mo-delo de situação” – ou para gerenciamento – quando a função dominante é “guiar a situação em uma maneira favorável às metas do produtor de texto”. Mas, alertam os leitores de que as fronteiras entre monitoramento e gerenciamento podem ser difusas. Isso é notório no caso dos implíci-tos. Por exemplo, quando alguém comenta que o ambiente está abafado (monitoramento), pode estar tentando convencer o interlocutor a tomar alguma providência a respeito, como abrir uma janela (gerenciamento).

Uma vez que a relevância de um texto é sempre orientada pela si-tuacionalidade, textos considerados incoerentes a partir de uma visão estrita da articulação entre suas frases – ou ainda quando se concebe a coerência como sendo interna ao texto – podem tornar-se coerentes quando se levam em conta as condições de sua enunciação (KOCH e TRAVAGLIA, 1999 [1989]). No Texto 14, por exemplo, a frase (TAM-BÉM INGLÊS BÁSICO) está entre parênteses, que são utilizados, nor-malmente, para marcar a inserção de um item desvinculado da estrutu-ra sintática do restante do período e de ocorrência opcional. Como as aulas de inglês parecem ter o mesmo status dos demais serviços ofere-cidos, gera-se uma certa incoerência, porque não parece que essa infor-mação seja realmente opcional. Uma possível explicação para o uso dos parênteses é uma espécie de paralelismo com a frase anterior, ENSINO LER (TIPO REFORÇO PARA CRIANÇAS), porque as aulas de inglês também seriam oferecidas a crianças.

A situacionalidade é especialmente importante ao se decidir qual sen-tido atribuir a uma palavra polissêmica ou a frases que comportam mais de um sentido. Os fatores situacionais (propósitos, lugar e tempo da inte-ração, status dos interlocutores etc.) ajudam a desfazer ambiguidades. Por exemplo, numa conversa entre médico e paciente, durante uma consulta, a queixa sinto um aperto no coração será entendida de forma bastante dife-

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Capítulo 08Situacionalidade

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rente do que seria numa situação em que duas professoras de uma comu-nidade pobre conversassem sobre as carências materiais de seus alunos.

Uma questão importante a ser considerada relativamente à situacio-nalidade é que o contexto, que provê as condições de interpretação do tex-to, é também ele próprio parcialmente criado pelo texto. Como destacam Koch e Travaglia (1999 [1989], p. 78), “[...] se, por um lado, a situação co-municativa interfere na maneira como o texto é constituído, o texto, por sua vez, tem reflexos sobre a situação, já que esta é introduzida no texto via mediação.” Assim, à medida que o texto é lido ou à medida que o di-álogo transcorre, as condições contextuais vão sendo alteradas, de forma mais ou menos intensa. Dessa forma, especialmente nas interações con-versacionais, o contexto não pode ser visto como algo estático, mas como um conjunto de condições mutáveis, em interação dinâmica com o texto.

A esse respeito, é importante destacar ainda que o contexto só se apresentaria como um conjunto de condições objetivas para um obser-vador fora do contexto de interação. Para o participante de uma intera-ção, o contexto para construção da coerência é subjetivamente constru-ído, a partir de dados selecionados, conscientemente ou não, dentre um conjunto bastante amplo de dados sobre o espaço, o tempo e as condi-ções sociais e psicológicas da interação. Essa construção subjetiva, indi-vidual do contexto ajuda a explicar por que duas pessoas podem cons-truir interpretações bastante diversas dos mesmos dados linguísticos.

Implicações para o processo de ensino-aprendizagem:

Dada a relevância do contexto para a leitura do texto, evidencia-se

a importância de dois procedimentos no ensino-aprendizagem de

leitura. Primeiro, é preciso deixar claro quais os objetivos da leitura,

porque este é um importante dado contextual a guiar a interpreta-

ção. Segundo, frequentemente é preciso prover aos alunos as con-

dições em que dado texto foi inicialmente produzido e publicado.

Por exemplo, ao explorar com alunos de ensino médio poemas da

primeira fase da poesia modernista, é necessário explicitar as con-

dições políticas e artísticas daquele momento. Tome-se, como ilus-

tração disso, o poema Amostra da poesia local, de Murilo Mendes:

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Tenho duas rosas na face,

Nenhuma no coração.

No lado esquerdo da face

Costuma também dar alface.

No lado direito não.

Se o contexto de produção dos poemas-piada do Modernismo não

for explicitado, esse texto poderá parecer somente engraçadinho ou

até tolo, em vez de contestador e anárquico.

Da mesma forma, pode ser necessário explicitar o contexto das char-

ges, uma vez que elas estão, quase sempre, fortemente calcadas na

situação de produção. Por exemplo, quem vir a charge que aparece

no Texto 15, no próximo Capítulo, sem conseguir situá-la em relação

ao contexto de produção, terá uma dificuldade em construir uma

interpretação coerente para os vários elementos: o título EPIDEMIA,

os homens com feições de porcos, a menção às perdas das cotas de passagens, o verbo contaminar... Explicitado o contexto de produ-

ção – especificamente, o mundo às voltas com uma possível epide-

mia de gripe suína e um escândalo relativo a mau uso de passagens

aéreas por deputados e senadores – torna-se possível integrar essas

informações em um todo coerente.

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Capítulo 09Intertextualidade

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9 IntertextualidadeO conceito de intertextualidade foi introduzido nos estudos lite-

rários por Júlia Kristeva para se referir à relação que um texto mantém com outros textos: “[...] todo texto se constrói como mosaico de cita-ções, todo texto é absorção e transformação de um outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade.” (KRIS-TEVA, 1974, p. 64, grifos da autora). Segundo Proença Filho (1990), esse conceito foi proposto pela autora como substituto do conceito de dialogismo de Bakhtin.

Na concepção do Círculo de Bakhtin, a linguagem é essencialmen-

te dialógica, pois os nossos discursos nascem de outros discursos

já-ditos e orientam-se para a reação-resposta do interlocutor, que

é já um outro discurso. “A orientação dialógica é naturalmente um

fenômeno próprio a todo discurso. Trata-se da orientação natural de

qualquer discurso vivo.” (BAKHTIN, 1993, p. 88).

Como as relações dialógicas, segundo Bakhtin (1993 [1975]), se re-

alizam não somente com relação a enunciados (textos) já-ditos, mas

também com relação à possível reação-resposta do interlocutor, e

como a noção de dialogismo é condição de existência de qualquer

discurso, salientamos que o conceito de intertextualidade não pode

ser tomado como sinônimo do de dialogismo, uma vez que a inter-

textualidade refere-se a uma relação entre textos já materializados.

Como vimos no Capítulo 3, a intertextualidade é um dos padrões da textualidade. Segundo Beaugrande (2004 [1997]), ela diz respeito aos fatores que fazem a utilização de um texto dependente do conhecimento de um ou mais textos encontrados anteriormente. O autor sugere que o padrão da intertextualidade é mobilizado quando o produtor ou o ouvinte/leitor conecta o evento atual de produção ou recepção de texto com experiências anteriores, especialmente com textos do mesmo tipo textual e mesmo domínio discursivo. Alguém que esteja familiarizado, por exemplo, com a leitura de manuais de instrução encontrará e enten-

Você encontra mais infor-mações acerca da autora em Teoria da Literatura IV. Veja em: KAMITA, S. Teoria da Literatura IV. Florianó-polis: UFSC/CCE/LLV, 2009.

Tradicionalmente, a noção de tipo textual refere-se a conjuntos de textos com características formais assemelhadas ou, ainda, às sequências textuais de que os textos são compos-tos, segundo a teoria de J. M. Adam. Beaugrande e Dressler (2002 [1981], cap. 1, §22), por exemplo, referem-se aos tipos textu-ais como “classes de textos com padrões típicos de características”. Nesta Dis-ciplina e na de Linguística Aplicada, privilegiamos a noção bakhtiniana de gê-nero do discurso, que leva em conta as condições de enunciação. A discussão sobre gêneros do discurso, tipologias textuais e tipos textuais será desenvolvida na disciplina de Linguística Aplicada.

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derá no manual as informações relativas ao funcionamento do seu gra-vador de DVD mais facilmente do que alguém que jamais tenha lido um manual, pois fará a leitura desse manual ancorado na relação intertextu-al que estabelecerá entre esse texto e os outros do mesmo gênero a que já teve acesso. Por outro lado, um servidor que trabalhe há muitos anos no serviço público terá, muito provavelmente, maior facilidade de escrever um ofício do que um servidor jovem, recém-admitido. Enquanto aquele já tem grande familiaridade com esse gênero – quais suas características estilísticas, quais seus usos, quem são os interlocutores –, este talvez te-nha apenas uma noção mais geral sobre a configuração’ textual.

Beaugrande e Dressler (2002 [1981]) afirmam que a mobilização do conhecimento intertextual pode ser descrita como um processo de mediação: o locutor/interlocutor alimenta seu modelo da situação co-municativa com suas próprias crenças e conhecimentos advindos de in-terações anteriores mediadas por textos. Segundo os autores, a extensão dessa mediação é variável:

Um exemplo de mediação extensa é o desenvolvimento e uso de tipos

textuais, que são classes de texto que têm certas características visando

a determinados propósitos. A mediação é bem menor quando as pesso-

as citam trechos de certos textos bem específicos ou a eles se referem,

como discursos ou obras literárias famosas. A mediação é muito peque-

na em atividades tais como a réplica, a refutação, o relato, o resumo ou a

avaliação de outros textos, como se costuma encontrar especialmente

na conversação (BEAUGRANDE e DRESSLER, 2002 [1981], cap. IX, §1).

Os autores destacam que, apesar de a organização da conversação ser bastante influenciada pela intencionalidade e a situacionalidade, ne-nhum desses fatores pode dar conta por completo das escolhas de con-teúdo dos interlocutores:

Um texto deve ser relevante aos outros textos no mesmo discurso e

não apenas para as intenções dos participantes e para o contexto situ-

acional. Tópicos devem ser selecionados, desenvolvidos e mudados. Os

textos podem ser usados para monitorar outros textos ou os papéis e

crenças implicados por esses textos (BEAUGRANDE e DRESSLER, 2002

[1981], cap. IX, §13).

Para Koch e Travaglia (1999 [1989], p. 88), a intertextualidade in-clui “fatores relativos a conteúdo, fatores formais e fatores ligados a tipos

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Capítulo 09Intertextualidade

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textuais”. Segundo os autores, os fatores associados a conteúdo são os mais notórios e estão associados ao conhecimento de mundo. Os auto-res citam o exemplo das matérias jornalísticas relativas a um fato desta-cado, publicadas durante vários dias, e dizem que cada novo texto assu-me que os leitores conheçam os textos anteriores sobre o mesmo tema. Um exemplo disso é a charge a seguir, que só será compreensível por quem tenha acompanhado as notícias recentes (de abril e maio de 2009) sobre: a) o escândalo relativo ao mau uso de verbas para passagens aé-reas por parte de deputados federais; b) a epidemia de gripe suína que atinge vários países.

Texto 15

Opera-se aqui uma relação intertextual característica do gênero discursivo charge. O leitor só construirá adequadamente uma interpre-tação para este texto se teve acesso (em jornais, na TV, em conversas informais etc.) a outros textos nos quais aparecem os temas da febre suína e do escândalo das passagens aéreas. E o efeito cômico e crítico da charge constitui-se justamente pelo atravessamento desses discursos, retomados de forma inusitada.

Outro exemplo bastante interessante de intertextualidade de con-teúdo é uma frase criada por Ivan Lessa. Nos anos 70, o governo da ditadura militar criou o slogan Brasil, ame-o ou deixe-o, num recado direto aos descontentes com a situação política do País. Lessa cunhou uma resposta bemhumorada e corajosa: O último a sair, apague a luz do aeroporto, publicada originalmente no jornal O Pasquim. Reenunciado

Jornal A Notícia, 1 maio 2009. Disponível em: <http://www.clicrbs.com.br/anoticia/jsp/default2.jsp?uf=2&local=18&source=a2494953.xml&template=4188.dwt&edition=12231&section=882>. Acesso em 1 mai. 2009.

Ivan Pinheiro Themudo Lessa (1935) é jornalista e escritor brasileiro.

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hoje, o anti-slogan de Lessa não ofereceria as mesmas possibilidades de interpretação a alguém que desconhecesse o slogan dos militares, assim como o contexto em que foi enunciado. É interessante observar ainda que o leitor pode intertextualizar a frase de Lessa também com o reca-do que usamos comumente: O último a sair apague a luz. Isso ajuda a reforçar o efeito cômico, pelo atravessamento de mais um discurso, esse da esfera do cotidiano.

A intertextualidade formal diz respeito à imitação da forma de tex-tos específicos ou do estilo de um autor. Um exemplo frequente dessa modalidade de intertextualidade é a paródia, que imita as características formais do texto-base, mas viola o seu conteúdo. No exemplo a seguir, José Paulo Paes parodia com elementos mínimos a Canção do exílio, também reproduzida na sequência:

Texto 16

Canção do exílio facilitada

lá?

ah!

sabiá...

papá...

maná...

sofá...

sinhá...

cá?

bah!PAES, J. P. Canção do exílio facilitada. Disponível em <http://www.cce.ufsc.br/~nupill/ensino/exilio/exilio_facil.htm>. Acesso

em 29 de abril de 2009.

Texto 17

Canção do exílio

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá;

As aves que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.

Poeta, ensaísta, crítico literário e tradutor.

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Capítulo 09Intertextualidade

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Nosso céu tem mais estrelas,

Nossas várzeas têm mais flores,

Nossos bosques têm mais vida,

Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,

Que tais não encontro eu cá;

Em cismar – sozinho, à noite –

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,

Sem que eu volte para lá;

Sem que desfrute os primores

Que não encontro por cá;

Sem qu’inda aviste as palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

DIAS, G. Canção do exílio. In: JORDÃO, R.; OLIVEIRA, C. B. Letras &

contextos: língua, literatura e redação. São Paulo: Escala Educa-

cional, 2005. p. 75.

No poema de Paes, o conteúdo do texto-base é retomado na com-paração entre a terra natal (lá) e o país estrangeiro (cá). A saudade do Brasil e o desgosto com o país estrangeiro, tópicos centrais do poema de Dias, são magistralmente sintetizados por Paes nas duas interjeições ah! e bah!. Formalmente, tem-se uma retomada das rimas em a, abundantes em Canção do Exílio (e servindo, segundo algumas interpretações, para dar um tom lamentoso ao poema). É importante observar que, ao pa-rodiar o texto de Dias, Paes não parodia somente a forma e o conteúdo, mas também o próprio contexto discursivo no qual a Canção do Exílio se insere: o do nacionalismo romântico da primeira metade do século XIX. Novamente, se o leitor desconhecer Canção do exílio, suas possi-

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bilidades de interpretação do poema Canção do exílio facilitada serão bastante comprometidas.

Por fim, a intertextualidade por fatores tipológicos, para Koch e Trava-glia (1999 [1989], p. 92), dá-se em termos de retomada da “estrutura que caracteriza cada tipo de texto” ou de “aspectos formais de caráter linguís-tico próprios de cada tipo de texto”. Segundo os autores, “para que um tex-to seja bem compreendido e visto como coerente, é preciso que apresente certas características próprias do tipo de texto do qual ele é apresentado como sendo um exemplar” (KOCH e TRAVAGLIA, 1999 [1989], p. 92).

Entretanto, é ilusória a ideia de que existam tipos textuais com características formais definidas. Mesmo Beaugrande e Dressler (2002 [1981]), que também adotam o conceito de tipo textual, apontam pro-blemas nele:

A questão dos tipos textuais oferece um severo desafio à tipologia lin-

güística, isto é, a sistematização e classificação de amostras de língua/lin-

guagem. Na lingüística mais antiga, foram estabelecidas tipologias para

os sons e formas da língua [...]. Mais recentemente, a lingüística tem-se

preocupado com tipologias de sentenças. Outra abordagem é a constru-

ção de tipologias interculturais para línguas de construção semelhante

[...]. Todas essas tipologias dedicam-se a sistemas virtuais, que são o po-

tencial abstrato das línguas; uma nova tipologia deve lidar com sistemas

reais nos quais as seleções e decisões já foram feitas [...]. A principal difi-

culdade nesse novo domínio é que muitas instâncias reais não manifes-tam características completas ou exatas de um tipo ideal. As exigências

ou expectativas associadas com um tipo textual podem ser modificadas

ou mesmo superadas pelas exigências do contexto de ocorrência [...].

(BEAUGRANDE e DRESSLER, 2002, cap. IX, §3, grifo dos autores).

Portanto, parece mais adequado falar-se, hoje, em intertextualidade de gêneros discursivos, uma vez que esse conceito prevê maior flexibili-dade: “[...] cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativa-mente estáveis de enunciados, sendo isso que denominados gêneros do discurso” (BAKHTIN, 1997 [1952/1953], p. 280, grifos do autor). Como os gêneros são apenas relativamente estáveis, oferecem um contorno ge-ral para a interação. Assim, a situacionalidade, a intencionalidade e a aceitabilidade, entre outros aspectos, podem exercer decisiva influência sobre as escolhas de forma e conteúdo.

Veremos, na disciplina de Linguística Aplicada,

que o conceito de tipo de Bakhtin não se refere ao resultado de uma taxio-

nomia (classificação) dos textos, mas a uma tipifi-cação social dos textos/

enunciados, resultado das atividades humanas.

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Capítulo 09Intertextualidade

107

Muitos gêneros do discurso sequer apresentam características for-mais fixas, definindo-se como tais pela recorrência de outros elementos, que não a forma, como aqueles ligados à dimensão social do texto. So-mente para citar um exemplo, a crônica, tradicionalmente enquadrada pelas tipologias de texto como um tipo textual narrativo, frequentemen-te não tem estrutura narrativa. E, quando a tem, sua distinção em re-lação ao gênero conto frequentemente só se dá pela esfera discursiva e pelo suporte. Enquanto o conto é da esfera da literatura, a crônica é um gênero da esfera jornalística, publicado em jornais e revistas.

Outra razão para preferirmos o conceito de gênero do discurso é que a noção de gênero compreende, para além dos elementos formais do texto, os parâmetros da interação: em que esfera social o texto foi produzido, quem são os interlocutores, qual a relação entre eles, qual a modalidade (oral, escrita, mista) etc. Portanto, quando o autor pro-duz um texto, faz isso situado não apenas nas características formais do gênero de seu texto, mas também com base em seu conhecimento daquela forma de interação. Já o leitor/ouvinte também precisa identifi-car o gênero discursivo para, a partir das condições gerais da interação, interpretar e atribuir sentido aos dados linguísticos. Por exemplo, para a compreensão adequada do poema de Drummond (1967) a seguir, é necessário que o leitor tenha conhecimento dos gêneros do discurso so-neto e carta pessoal:

Texto 18

Carta

Há muito tempo, sim, que não te escrevo.

Ficaram velhas todas as notícias.

Eu mesmo envelheci: Olha, em relevo,

estes sinais em mim, não das carícias

(tão leves) que fazias no meu rosto:

são golpes, são espinhos, são lembranças

da vida a teu menino, que ao sol-posto

perde a sabedoria das crianças.

São exemplos de esferas sociais a escola, a ciência, o jornalismo, a arte etc

ANDRADE, C. D. de. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967. p. 349.

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A falta que me fazes não é tanto

à hora de dormir, quando dizias

“Deus te abençoe”, e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto

a noite acumulada de meus dias,

e sinto que estou vivo, e que não sonho.

O conhecimento do gênero do discurso soneto permite ao leitor identificar o texto como poético e, como tal, dotado de características recorrentes nos gêneros da poesia, como estas:

a) Uso de linguagem figurada;

b) Subjetividade;

c) Lirismo;

d) Criação de realidades alternativas.

Já o conhecimento do gênero do discurso carta pessoal implica sa-ber, entre outras coisas:

a) que a situação de interação mediada por textos desse gênero normalmente envolve pessoas com algum tipo de ligação afeti-va (parentes, amigos, amantes), que se encontram relativamen-te distantes;

b) que o conteúdo dos textos normalmente diz respeito à vida pessoal, a pequenos eventos do cotidiano, a novidades;

c) que é frequente o uso da primeira e da segunda pessoa do singular, para fazer referência, respectivamente, ao autor e ao destinatário.

São os conhecimentos relativos ao gênero soneto – notadamente a possibilidade de se criar mundos alternativos – que permitem que leitor construa a compreensão de que a pessoa a quem o eu-lírico se dirige é, possivelmente, sua mãe, já morta há bastante tempo. Enfim, é a noção acerca da situação social de interação que orienta o leitor a tratar o texto como um soneto e não uma carta pessoal, apesar da relação intertextual entre esses dois gêneros, e o texto em questão apresentar feições de carta.

Segundo Bakhtin (2003 [1979]), teríamos os casos

de gêneros híbridos, gêneros intercalados e

reacentuação de gêneros. No exemplo, ocorre uma reacentuação de gêneros,

pois um texto de um gênero x (soneto) assume

feições de um gênero y (carta).

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Capítulo 09Intertextualidade

109

Em casos como este do exemplo, Marcuschi (2002) sugere que use-mos a expressão intertextualidade intergêneros (FIX, 1997 apud MAR-CUSCHI, 2002), que designa, segundo o autor, o aspecto da hibridiza-ção ou mescla de gêneros em que um gênero assume a forma de outro.

A intertextualidade é uma característica bastante relevante nos tex-tos científicos. A ciência, em nossos dias, é essencialmente uma ativida-de coletiva. Daí a necessidade de os autores fazerem referências frequen-tes a outros textos, entre outras coisas, para mostrar que o seu trabalho encontra amparo no contexto geral da ciência atual. É o que se podemos ver no trecho a seguir, extraído de uma monografia de especialização:

Texto 19

Segundo Faccio (1999), anteriormente ao desenvolvimento do concei-

to de osteointegração, os implantes eram normalmente submetidos à

carga imediata. Entretanto, segundo Rosenlich (apud FACCIO, 1999), a

técnica provocava grande número de complicações e falhas, não sen-

do bem aceita pela comunidade odontológica. Ocorria que, com os

implantes laminados não se obtinha uma boa estabilidade primária e

isso impedia a osteointegração. Segundo Brunski (apud TARNOW et al.,

1997), micromovimentos de amplitude superior a 100µm fazem com

que a ferida óssea sofra um processo de cicatrização fibrosa, ao invés de

se ter uma osteointegração do implante.

A partir dos estudos de Brånemark e colaboradores, definiram-se os cri-

térios necessários a osteointegração: máximo cuidado para minimizar

dano aos tecidos circundantes por contaminantes ou trauma térmico

ou cirúrgico. Segundo Adell et al. (1981, p. 412),

qualquer divergência em relação ao princípio de menor trauma possível

na instalação dos implantes aumenta o risco de perda de osteointegra-

ção e subseqüente ocorrência de uma estreita zona periimplantar de

tecido conjuntivo de cicatrização. Isto se aplica especialmente aos efei-

tos do trauma térmico.

Observemos que, para que o leitor possa realizar mais facilmente as intertextualizações, o autor apresenta paráfrases de outros textos, Faccio (1999) e Tarnow (1997), cujos autores fizeram eles próprios referências a textos de outros autores (Rosenlich e Brunski, respectivamente). Quando o autor deseja que seu interlocutor faça diretamente a intertextualização, com

Extraído de: FREITAS, C. A. A. Carga imediata em implantes dentários. 2004. Monografia (Espe-cialização Lato Sensu em Implantodontia). Centro de Ciências da Saúde, Uni-versidade Federal de Santa Catarina, 2004. p. 10.

A nosso ver, não é um gê-nero que assume a forma de outro, mas um texto de um dado gênero que se faz passar por outro, ou apresenta características de outro gênero.

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Linguística Textual

110

menos mediação sua, apresenta uma cópia literal de parte do texto visado, como se vê na citação a Adell et al. (1981). Assim, favorecendo a intertex-tualidade, ao mesmo tempo em que facilita ao interlocutor a construção da interpretação do texto, o autor também obtém suporte científico ao seu trabalho, inserindo-o em no contexto discursivo mais amplo da ciência.

Os exemplos oferecidos neste Capítulo mostram que a intertextua-lidade pode ser bastante necessária à construção da coerência. Frequen-temente um texto não pode ser adequadamente compreendido sem acesso a outro. E o conhecimento intertextual é relevante não só para o leitor/ouvinte, mas também para o produtor de texto: Este, ao elaborar seu texto, precisa prever os conhecimentos intertextuais que o seu inter-locutor deverá/poderá mobilizar. Além disso, muitas vezes, a rede inter-textual é uma garantia para o dizer do autor: No caso da monografia, a rede intertextual garante ao autor sua inserção na comunidade científica e, ainda, valida seu dizer; no gênero artigo assinado, da esfera jornalís-tica, essa rede intertextual é um dos lugares da ancoragem discursiva do ponto de vista que o articulista defende em seu texto.

Implicações para o processo de ensino-aprendizagem:

Podemos citar alguns exemplos interessantes de intertextualidade

nos textos apresentados neste livro. Um deles é o seguinte trecho

extraído do texto Pinóquio às avessas, apresentado no capítulo so-

bre coesão: “É só para te cheirar melhor, meu filho...”, na qual ocorre

em jogo intertextual com a fala do Lobo Mau no conto Chapeuzinho Vermelho. Vale destacar que o próprio texto Pinóquio às avessas é

construído a partir de uma relação intertextual com o livro clássico

Pinóquio. Sem a percepção dessa relação intertextual, a construção

de sentidos, no texto de Rubem Alves, seria bastante diversa daquela

que o autor intentou. Outro exemplo de intertextualidade com Pinó-

quio pode ser conferido no sítio do youtube: http://www.youtube.

com/watch?v=DWRfv8jUE7E. Acesso em: 10/6/2009. Nesse vídeo,

podemos verificar a inserção de Pinóquio, assim como diversos per-

sonagens de contos de fada, na história de Shrek. Aliás, a persona-

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Capítulo 09Intertextualidade

111

gem Shrek é um exemplo muito feliz de intertextualidade e de des-

construção da clássica figura de herói, caracterizando a figura do an-

ti-herói. A partir desses exemplos, sugerimos ao professor que o con-

ceito de intertextualidade seja trabalhado inclusive na perspectiva

dos multiletramentos, inserindo textos que circulem em diferentes

portadores de texto (vídeo, livro, internet). Isso porque, como vimos

neste Capítulo, tanto a compreensão quanto a produção de textos

depende do conhecimento de outros textos, tanto em termos de seu

conteúdo, quanto de seus aspectos formais e do gênero do discurso.

Ao término deste capítulo sobre intertextualidade, também finali-zamos a Unidade B. Nesta Unidade, discutimos o que é textualidade e cada um dos padrões de textualidade, mostrando seu papel na tessitura do texto. Juntamente com a apresentação desses padrões, fomos tam-bém contraponto um outro conceito, o de gêneros do discurso.

Resumindo o que apresentamos nesta Unidade acerca dessa con-traposição e complementação, os padrões de textualidade e os gêneros de discurso se interceptam em muitos pontos; podemos dizer que os gêne-ros norteiam e dão acabamento aos padrões de textualidade. Por exem-plo, gêneros literários e gêneros científicos textualizam de modo diverso a relação intertertextual. Se nos textos literários essa relação com o ou-tro texto não precisa ser explicitada, ou seja, o autor não precisa dizer que faz remissão a outro texto e a qual texto, nos textos científicos essa relação precisa ser explicitada. Como podemos ver no Texto 18, o autor da monografia explicita os textos a que se refere, e o faz por ser uma condição dada pelo gênero: marcar as fronteiras entre o seu discurso e o do outro, atribuindo a autoria desse outro discurso citado.

Mesmo entre gêneros de uma mesma esfera, podemos observar os padrões de textualidade agindo de modo diverso. Por exemplo, os recur-sos coesivos se textualizam de modo bem diverso entre os gêneros da poesia e os gêneros romance e conto. Observe, por exemplo, a diferença do uso recursos coesivos no conto Pinóquio às avessas (Texto 1) e no soneto Carta (Texto 18).

Na Unidade a seguir, serão tratados os estudos da referenciação.

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Leia mais!

Para um aprofundamento sobre o conceito de textualidade indicamos a leitura do texto: Texto, textualidade, textualização, de autoria de Maria da Graça Costa Val. In: FERRARO, Maria Luiza et al. (Org.). Experi-ência e prática de redação. Florianópolis: Editora da UFSC, 2008, p. 63-86.

Para uma maior compreensão sobre os princípios de coesão e coerência textual, recomendamos a consulta ao livro: FÁVERO, L. L. Coesão e coerência textuais. São Paulo: Ática. 1991.

Page 113: Linguística Textual UFSC

Unidade CAbordagens atuais

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Ao discutirmos o histórico da Linguística Textual na Unidade A, registramos que, atualmente, os estudos da área estão voltados para dois campos de investigação: o da cognição e o da enunciação. Vimos que, no campo da enunciação, as pesquisas têm abordado temáticas de or-dem interacional, tais como os gêneros do discurso e a relação entre oralidade e escrita, e que, no campo da cognição, abordam-se questões relativas ao processamento sociocognitivo do texto: formas de represen-tação do conhecimento na memória; ativação dos sistemas cognitivos por ocasião do processamento; estratégias sociocognitivas e interacio-nais imbricadas no processamento textual; processos de referenciação e inferenciação. Como algumas das temáticas ligadas ao campo enuncia-tivo da Linguística Textual serão abordadas na disciplina de Linguística Aplicada, nesta Unidade focalizaremos uma das temáticas do campo da cognição: a referenciação.

O objetivo desta Unidade é:

Ӳ desenvolver a prática de análise de textos a partir dos conceitos de referenciação e de fenômenos anafóricos;

Ӳ observar o papel da referenciação na construção dos sentidos do texto.

Para atingir o objetivo proposto, dividimos a Unidade em três Capí-tulos: No primeiro Capítulo da Unidade, apresentaremos o conceito de re-ferenciação; nos dois Capítulos subsequentes, abordaremos a perspectiva sociocognitivista sobre a referenciação e as formas nominais referenciais.

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Capítulo 10Referenciação

115

10 ReferenciaçãoA relação entre língua, mundo e significação caracteriza uma ques-

tão teórica que há muito tem sido foco de interesse dos estudos linguís-ticos. Essa questão tem como principal objetivo saber como a língua refere (ou representa) as coisas do mundo. Sobre isso Blikstein (apud KOCH, 2004, p. 51) questiona: “Até que ponto o universo dos signos linguísticos coincide com a realidade ‘extralinguística’? Como é possível conhecer tal realidade por meio dos signos linguísticos? Qual o alcance da língua sobre o pensamento e a cognição?”.

Nos estudos linguísticos, há, no mínimo, duas perspectivas que enfocam tal problemática. Uma delas é a noção clássica de referência, tal como é tomada por estudiosos racionalistas. A outra é a proposta nomeada referenciação, que, nos últimos anos, vem-se opondo à pri-meira corrente. As teorizações sobre referenciação têm sido desenvolvi-das principalmente por Apothéloz e Reichler-Bégueli (1995); Dubois e Mondada (1995); Koch (2002); e Koch e Marcuschi (1998).

Koch (2002) define essas noções da seguinte forma:

Ӳ Referência – Consiste em considerar que há um mundo extra-mental dado a priori, a ser internalizado. Tal concepção persis-te entre os cognitivistas clássicos e os racionalistas. A referência caracteriza-se por ser um significado linguístico do referente, ou seja, uma representação extensional de referentes do mun-do extramental.

Ӳ Referenciação – Parte do pressuposto de que existe uma realida-de extramental, porém sua apropriação assume implicações so-ciais e culturais, que são chamadas de versões públicas de mundo. A referenciação consiste em uma atividade discursiva em que a realidade é mantida, construída, reconstruída e alterada pela forma como os sujeitos sociocognitivamente interagem com o mundo. Em outros termos, os sujeitos interpretam o mundo através da interação com o entorno físico, social e cultural.

Na perspectiva clássica de referência, as entidades designadas nas situações enunciativas referenciais são os objetos-do-mundo que são re-

Estamos nos referindo à ideia segundo a qual a língua é um sistema de etiquetas que se ajustam mais ou menos bem às coisas, concepção que caracteriza a história do pensamento ocidental (MONDADA; BUBOIS, 2003) e que remete à te-oria do mundo na mente (SMITH, 1980).

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ferenciados, daí a possibilidade de vê-los dentro ou fora do texto. A no-ção de referência está ligada a uma visão referencial (representativa) da língua, ou seja, a língua, de certa forma, representa as coisas do mundo.

Já na perspectiva da referenciação, as entidades passam a ser obje-tos-de-discurso, tendo em vista que o referente não está dado, a priori, para ser representado. Mas, no dizer de Koch (2004, p. 53), que reinter-preta Blinkstein, “a percepção/cognição transforma o ‘real’ em referente, ou seja, a realidade se transforma em referente por meio da percepção/cognição”, ou, ainda, “o referente é fabricado pela prática social”. Segun-do Koch (2004), a referenciação implica uma visão de linguagem não-referencial, o que leva Mondada e Dubois (apud KOCH, 2004) a propor uma instabilidade das relações entre as palavras e as coisas.

Desse modo, nos estudos clássicos sobre referência, o referente são coisas do mundo, que são referenciadas (etiquetadas) pela língua. Já no quadro teórico da referenciação, o referente são as realidades sócio-his-tóricas e culturalmente situadas, que são construídas e categorizadas nas atividades discursivas. Nas palavras de Koch (2004, p. 78), os referentes “são, na verdade, objetos-de-discurso que vão sendo construídos e re-construídos discursivamente durante a interação verbal”.

Sobre essa discussão, vale destacar o que diz Marcuschi (2005, p. 72, grifos do autor):

Se o fato de não podermos dizer que o mundo em si é inevitável, isso

não significa que o mundo conhecido seja simples produto de nossas

atividades cognitivas. Portanto, não há motivo para alvoroço: o mundo

extramental existe. Contudo [...] todos os objetos de nosso conhecimen-

to são produzidos no discurso, embora não se achem confinados ao

discurso e podem ser intersubjetivamente comunicados. Também po-

demos acrescentar que, se por um lado, o mundo é independente de

nossas crenças e sensações, por outro, nossas crenças e sensações não

são totalmente independentes dele. Mas isso não justifica uma teoria

da verdade como correspondência. Significa que não se pode imaginar

que a língua seja um simples, acabado e eficiente instrumento a priori para construir ou retratar o mundo, e que o mundo, tampouco, está aí

pronto, discreto e mobiliado a priori para ser designado. Com isso, nos

afastamos tanto do anti-realismo como do relativismo sem precisar ad-

mitir o realismo externalista pura e simplesmente.

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Capítulo 10Referenciação

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Assim, para Marcuschi (2005, p. 93), os objetos-de-discurso são “[...] ‘objetos constitutivamente discursivos’, isto é, gerados na produção discursiva”. Ou ainda, de acordo com Mondada (apud MARCUSCHI, 2005, p. 93),

[...] é no e pelo discurso que são postos, delimitados, desenvolvidos,

transformados, os objetos de discurso que não lhe preexistem e que

não têm forma fixa, mas ao contrário emergem e se elaboram progres-

sivamente na dinâmica discursiva.

Koch (2004) também compartilha da visão dos autores citados, ao afirmar que os objetos-de-discurso são dinâmicos e, após serem introdu-zidos no discurso, são constantemente ativados, reativados, transforma-dos, desativados e recategorizados.

Ainda sobre a diferenciação entre objeto-do-mundo e objeto-de-dis-curso, Koch (2004, p. 57) diz que, nos estudos da referenciação, quando se menciona o termo referência, este não é compreendido no sentido que lhe é mais tradicional, como representação extensional de referentes do mun-do extramental, mas como aquilo que “[...] designamos, representamos, sugerimos quando usamos um termo ou criamos uma situação discursiva referencial com essa finalidade: as entidades designadas são vistas como objetos-de-discurso e não como objetos-do-mundo” (KOCH, 2004, p. 57).

Assim, podemos observar que a distinção entre objeto-do-mundo e objeto-de-discurso, nos estudos da Linguística Textual, está ligada à investigação sobre como se opera cognitivamente esse processo de ca-tegorização do mundo. Isso nos mostra que há um deslocamento nos estudos sobre referência, uma vez que o conceito de referenciação assu-me a perspectiva de que a linguagem não se constitui em um sistema de etiquetas para referenciar as coisas do mundo, mas, conforme propõem Mondada e Dubois (2003), em uma atividade intersubjetiva em que os sujeitos constroem versões públicas de mundo em suas práticas discur-sivas, sociocognitivas e culturalmente situadas.

Nessa perspectiva, não existe um mundo que se dá a conhecer da mesma forma por todos os sujeitos. O que ocorre é que os sujeitos ca-tegorizam o mundo a partir de suas práticas sociocognitivas e criam versões públicas de mundo.

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Essa perspectiva pode ser demonstrada por meio da análise do ví-deo Chico Bento no Shopping. Chico Bento, como sabemos, é um me-nino da região rural. Nessa história, Chico Bento visita um shopping na companhia de seu primo. Antes mesmo de entrar no shopping, ele acha estranho o fato de as pessoas da cidade ficarem presas dentro de um prédio num dia tão lindo de sol: Vixi como isso é grande sô. He, He, He, mai ocêis da cidade são burro mesmo né! Solzão lá fora! O solzão lá e ocêis inventaram de ponhá esse forro pra deixa escuro e dispois enchê de luz...

Logo no início de sua visita, a personagem tentar subir a escada ro-lante que estava descendo e estranha o fato de não sair do lugar, apesar de seu esforço: Eu devo de tá fraco memo, subo, subo e não saio do lugá.

Depois, ao chegar no piso superior, Chico fala sobre sua impressão do shopping: Arre mas que sem graceira esse treco de shopping. Só tem gen-te e loja, gente e loja... Nesse momento, observa que as palavras que se en-contram nas vitrines das lojas e os próprios nomes das lojas são diferentes da escrita que ele aprendeu na escola, uma vez que há muitos termos em inglês, o que é próprio do ambiente de shopping. Sobre essa observação, Chico Bento tece a seguinte consideração: Acho que fui enganado, a fesso-ra me ensinô tudo errado, num intendu nada que tá escrivinhado por aqui. Outro momento da história que julgamos relevante para se pensar como os sujeitos interagem diferentemente com a realidade é quando Chico Bento é abordado por um vendedor que lhe oferece sapatos:

– Hum, ficou lindo, divino, vai levar?

– Bão, já que o senhô insísti eu levo... Inté, einh...

– Ei, e o dinheiro?

– Dinhero? Eu tô duro.

– Segurança, atrás dele...

Nesse momento, a personagem não entende por que o vendedor lhe oferece os sapatos e depois os pede de volta: – Que coisa feia, dá e despois toma.

Uma das últimas aventuras de Chico Bento é quando ele se banha totalmente nu na fonte de águas do shopping, achando que se trata de um lago. Por fim, quando já havia retornado ao sítio, um amigo lhe per-

Este vídeo encontra-se disponível no sítio do Youtube em: <http://

www.youtube.com/watch?v=ntXCiB0Ehfk>.

Acesso em: 20/6/2009.

A personagem caipira Chico Bento foi criada em 1961. Maurício de Sousa, autor-criador da personagem, teve como inspiração um tio-avô, sobre quem ouvia muitas histórias contadas pela sua avó.

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Capítulo 10Referenciação

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gunta sobre o shopping. Chico Bento faz a seguinte descrição do shop-ping, a partir de sua visita,

– E como que é lá nesse tar de shopping hein?

– Tem umas loja debaixo do forro iluminado, apesar da luz do sor lá fora; uma escada que come butina; e um laguinho mixuruca i sem pêxe.

– Só isso?

– [...] Mas não tem nada não, um dia esse povo da cidade cria juízo e

imita nóis.

Essa história bem-humorada do passeio de Chico Bento no shop-ping ilustra a maneira como os sujeitos constroem a realidade a partir de suas vivências. Assim, no processo de referenciação do objeto-de-dis-curso shopping center, algo que pareça completamente inaceitável para indivíduos que vivem na zona rural pode parecer absolutamente normal para as pessoas que moram na zona urbana e vice-versa, tendo em vista as diferentes vivências com o entorno físico e social desses indivíduos.

Neste Capítulo, discorremos sobre uma importante temática do campo da cognição: a referenciação e, para isso, foi fundamental mos-trar a distinção entre a noção de referência e a de referenciação. No pró-ximo Capítulo, continuaremos a abordar os estudos sobre os processos anafóricos no quadro dos estudos mais recentes da Linguística Textual, fazendo, para isso, um contraponto com os estudos sobre a coesão da década de 80, explanados na Unidade B deste Livro.

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Capítulo 11A noção clássica de anáfora e a perspectiva sociocognitiva sobre os anafóricos

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11 A noção clássica de anáfora e a perspectiva sociocognitiva sobre os anafóricos

O conceito sobre coesão textual apresentado na Unidade B deste Li-vro leva-nos a discutir, de forma mais aprofundada, o fenômeno da aná-fora, abordado de distintas formas pela Linguística Textual. No intuito de sistematizar os diferentes conceitos sobre o tema, é possível estabele-cer dois grupos: um que corresponde à concepção de anáfora ancorada em uma leitura clássica e mais restrita do fenômeno, e outra, ancorada em trabalhos mais recentes de base sociocognitiva, em que o fenômeno é compreendido de forma mais abrangente.

A noção de anáfora tradicionalmente postulada em trabalhos se-minais como de Halliday e Hasan (1976) é de fenômeno linguístico que possibilita o estabelecimento de uma relação semântica entre itens le-xicais de um texto. A anáfora, portanto, constitui um importante ele-mento de coesão e operador de progressão de suma relevância para a tessitura do texto.

Segundo a concepção clássica de referência, ocorre anáfora quan-do um item do texto não pode ser interpretado semanticamente por si mesmo, mas remete a outro(s) item(ns) do texto ou do contexto neces-sários a sua interpretação (KOCH, 1991 [1989]). Nessa concepção mais pontual, a anáfora é essencialmente ligada à coesão textual, sendo um elemento estritamente responsável pelas retomadas de itens já textuali-zados no texto, ou seja, um caso de continuidade tópica.

Além disso, nessa perspectiva, a anáfora precisa ser correferencial e ter um antecedente explícito, como podemos verificar no exemplo a seguir:

O menino de carne e osso aprendeu coisas curiosas: nomes de heróis,

frases que teriam dito, as alturas de montes onde nunca subiria, as funduras

de mares onde nunca desceria, a distância de galáxias, o ‘SE’, partícula apas-

sivadora, o “se”, símbolo de indeterminação do sujeito, nomes de cidades de

países longínquos, suas populações e riquezas, fórmulas e mais fórmulas...

Sabia que tudo aquilo deveria ter um motivo. Só que ele não entendia.

Trecho extraído do Texto 1, apresentado na Unidade B deste Livro.

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No exemplo apresentado, a anáfora ele retoma o antecedente O me-nino de carne e osso. Essa anáfora refere-se explicitamente ao sintagma nominal (SN) antecedente: assim, a anáfora e o antecedente são correfe-renciais, o que equivale a dizer que há uma identidade referencial entre eles. Essa anáfora é chamada de anáfora pronominal, por ser representa-da por pronome. Além disso, é também considerada uma anáfora dire-ta, pelo fato de retomar um referente previamente introduzido no texto, estabelecendo uma relação correferencial entre anáfora e antecedente. Segundo Marcuschi (2005, p. 55), “a anáfora direta seria uma espécie de substituto do elemento por ela retomado”.

Nessa acepção com que tem sido concebida, a anáfora é conceitu-ada como um elemento que estabelece um continuum e que tem essen-cialmente como tarefa a retomada de elementos, ou, ainda, nos termos de Marcuschi (2005), realiza um processo de reativação de referentes prévios.

A partir, porém, dos estudos sobre referenciação, foi introduzida na Linguística Textual a discussão sobre a complexidade imbricada nos pro-cessos de referenciação textual, uma vez que nem sempre há uma relação biunívoca entre anáfora e antecedente. Ou seja, nem todas as anáforas são diretas, desempenhando o papel de estar em lugar de, como tradicional-mente tem sido tomado esse processo. E nem todas as informações para a interpretação de um texto estão situadas no contexto imediato. Assim, a ativação do conhecimento partilhado entre os interlocutores – a memória discursiva de que tratam Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995) – tornou-se um fator relevante a ser considerado nos processos anafóricos.

Dessa forma, o uso de anafóricos parece extrapolar a função de re-tomada referencial, assumindo um importante papel no processo de re-ferenciação e na construção de sentidos do texto. Trata-se, na verdade, de conceber como processo anafórico o fenômeno que, até então, eviden-temente havia no texto, mas não era assim categorizado. Podemos per-ceber que o conceito de anáfora foi ampliado, passando a ser concebido também como elemento responsável pelas recategorizações de referentes no texto. Os estudos mais recentes sobre o processo anafórico mostram que há casos de anáforas em que não são ativados elementos já textuali-zados. O que se dá é um processo de ativação de referentes novos.

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Capítulo 11A noção clássica de anáfora e a perspectiva sociocognitiva sobre os anafóricos

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Exemplo disso são as formas nominais anafóricas que, segundo Koch (2002), operam na recategorização dos objetos-de-discurso, isto é, na maneira como esses objetos serão reconstituídos, de forma a atender os propósitos comunicativos dos interlocutores. Ao recategorizar, muitas vezes através do uso de metáforas, a forma nominal anafórica assume papel crucial, que, segundo Cavalcante (2003), contribui para evidenciar informações relativas ao ponto de vista do produtor sobre o referente.

Isso se confirma no Texto 1, no qual o referente Pinóquio, que está presente no título do texto e também no final do mesmo, é, no decorrer do texto, retomado através de formas nominais anafóricas (anáforas le-xicais) e também por anáforas gramaticais (uso de pronomes, por exem-plo), como podemos observar no quadro a seguir:

Anáforas lexicais Anáforas gramaticaismenininho de carne e ossoo menino sem nome e sem desejosfilhoextensão do pairealização de desejos não realizadoso menino de carne e ossoo meninoo menino grandeo menino de outroraboneco de madeirainteligência purasem coraçãonovo irmão

elelhe

Quadro 1: Exemplos de anáforas lexicais e gramaticais presentes no Texto 1.

Observamos, a partir do quadro, que o uso de anáforas lexicais e gramaticais implica uma diferença significativa na construção de senti-do. Enquanto as anáforas gramaticais apenas correferenciam o referente Pinóquio às avessas, ou seja, substituem o referente, as anáforas lexicais, por seu turno, ressignificam-no. Ao ser retomado pelas anáforas lexi-cais, o referente é recategorizado, o que extrapola um mero processo de retomada referencial.

No Texto 1, as formas nominais anafóricas são elementos funda-mentais na construção de sentido, tendo em vista que são responsáveis por caracterizar a mudança por que passa a personagem do texto. Ini-cialmente tomada como menino de carne e osso, a personagem passa por

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124

um processo gradual de transformação, até que, ao final do texto, ela é nomeada como Pinóquio – o boneco de madeira. Esse processo ocorre tendo em vista que os objetos-de-discurso são dinâmicos e, após serem introduzidos, são constantemente ativados, reativados, transformados, desativados e recategorizados (KOCH, 2002).

Sobre a maneira como Pinóquio é categorizado e recategorizado, vale destacar o que diz Koch (2004) sobre os processos de construção de referentes textuais. De acordo com a autora, quando um referente é introduzido/ativado no modelo textual, tal ativação pode ser ancorada e não-ancorada.

Conforme Koch (2004, p. 64),

A introdução será não-ancorada quando um objeto-de-discurso total-

mente novo é introduzido no texto, passando a ter um ‘endereço cog-

nitivo’ na memória do interlocutor. [...] Tem-se uma ativação ‘ancorada’

sempre que um novo objeto-de-discurso é introduzido, sob modo do

dado, em virtude de algum tipo de associação com elementos presen-

tes no co-texto ou no contexto sociocognitivo, passível de ser estabele-

cida por associação e/ou inferenciação.

No Texto 1, o objeto-de-discurso Pinóquio às avessas, ao longo do tex-to, vai sofrendo recategorizações de diversas ordens, por meio de formas nominais anafóricas. Logo no início do texto, à medida que o leitor lê o título, Pinóquio às avessas, opera-se uma série de inferências sobre a história clássica de Pinóquio. Já o item lexical às avessas (modificador do SN), a seu turno, produz a mobilização de inferências que possibilitam a ativação de sentidos que remetem o leitor à informação de que, no decorrer do texto, haverá uma recategorização do referente (a figura clássica de Pinóquio).

É possível perceber ainda que, no Texto 1, os elementos coesivos estão intimamente ligados à intertextualidade, haja vista que Pinóquio às avessas remete ao texto clássico, Pinóquio, em que o caminho é o in-verso: tem-se um menino de madeira que almeja tornar-se um menino de carne e osso.

Assim, tendo em vista o relevante papel das formas nominais nos processos de referenciação, a seguir apresentaremos um detalhamento dessas formas.

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Capítulo 12As formas nominais referenciais

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12 As formas nominais referenciais

No Capítulo sobre coesão textual, em que discorremos sobre as for-mas remissivas referenciais, mencionamos o uso das expressões nomi-nais. Nesta Seção, retomaremos o uso dessas expressões, porém, agora, sob o olhar dos estudos da referenciação.

A expressão formas nominais ou expressões nominais referenciais tem sido atribuída às formas linguísticas constituídas, basicamente, de um determinante (definido ou demonstrativo), seguido de nome (KOCH, 2002). Essas formas nominais referenciais são responsáveis por dois grandes processos de construção do texto (e, consequentemente, do estabelecimento de sentidos no texto): retroação e prospecção.

Koch (2006, p. 2) apresenta as formas nominais referenciais como uma categoria maior, que inclui diferentes tipos de anafóricos. De acor-do com a autora, as formas nominais referenciais são “[...] os grupos nominais com função de remissão a elementos presentes no co-texto ou detectáveis a partir de outros elementos nele presentes”. Na acepção da autora, a retomada é vista como uma “[...] atividade de continuida-de de um núcleo referencial, seja numa relação de identidade ou não.” (KOCH, 2004, p. 60). Isso reforça o que mostramos até aqui: a anáfora pode dar-se com ou sem absoluta identidade a referentes anteriormente expressos. Segundo Cavalcante (2003), no primeiro caso, pode haver simplesmente correferência entre a expressão anafórica e seu antece-dente textual, ou ocorrer a recategorização deste. Então, na retomada não referencialmente estrita, essas formas anafóricas operam na recate-gorização dos objetos-de-discurso, isto é, na maneira como esses objetos serão reconstituídos, de forma a atender os propósitos comunicativos dos interlocutores (padrões de intencionalidade e aceitabilidade).

Koch (2005) defende que, além da função de reconstrução dos obje-tosdo-discurso, as formas nominais, de modo geral, têm uma orientação argumentativa. Nas palavras da autora: “[...] uma das funções textual-interativas específicas é a de imprimir aos enunciados em que inserem, bem como ao texto como um todo, orientações argumentativas confor-mes à proposta enunciativa do seu produtor” (KOCH, 2005, p. 35).

Veja como a noção de retroação relaciona-se com a coesão referencial (recorrência) e a noção de prospecção com a ideia de sequenciação, conforme es-tudamos no capítulo sobre coesão textual.

Em Linguística Textual, co-texto significa o entorno verbal do texto, mais espe-cificamente, os segmentos textuais precedentes e subsequentes de uma dada frase ou palavra do texto.

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Linguística Textual

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A seguir, pontuaremos, de modo mais sistemático, a classificação das anáforas na visão de Koch (2006). A primeira grande diferencia-ção proposta pela autora está nas anáforas correferencias e não-corre-ferenciais. As anáforas correferencias são aquelas nas quais ocorre uma retomada de antecedentes textuais. Essas anáforas, que podem ocorrer sem recategorização do referente ou com recategorização do referente, são classificadas da seguinte maneira.

1) Anáforas correferenciais sem recategorização:

Ӳ Por repetição: Durante a conferência, o Professor Doutor José Mendonça pediu a palavra. O professor insinuou que o conferencista estava cometendo um sério engano. Ou: Duran-te a conferência, o Professor Doutor José Mendonça pediu a palavra. Mendoncinha insinuou que o conferencista estava cometendo um sério engano. Ocorre quando o núcleo da forma nominal repete o antecedente que está sendo reto-mado, seja de forma parcial ou na íntegra.

Ӳ Por sinonímia: A polêmica parecia não ter fim. Pelo jeito, aquele bate-boca entraria pela noite adentro, sem perspecti-vas de solução. Nesse caso, a retomada de um antecedente ocorre através de expressões sinônimas ou parassinônimas (quase-sinônimas).

2) Anáforas correferenciais com recategorização:

Ӳ Uso de hiperônimo: A aeronave teve de retornar à pista. O aparelho (aeronave) estava com defeito. Ocorre quando a anáfora por hiperonímia funciona necessariamente por re-corrência a traços lexicais, isto é, o hiperônimo contém, em seu bojo, todos os traços lexicais do hipônimo.

Ӳ Uso de nomes genéricos: trata-se da retomada do referente por meio de nome genérico: coisa, pessoa, negócio, criatura. Exemplo:

Mistério no zôo

A polícia que investiga as mortes dos animais do Zoológico de São Paulo trabalha com duas hipóteses: envenenamento criminoso

Os exemplos de formas nominais anafóricas expos-

tos neste Capítulo foram extraídos de Koch (2006).

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Capítulo 12As formas nominais referenciais

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ou transmissão do veneno via ratos. Na última semana, a polícia apreendeu em uma loja de São Paulo frascos de um veneno cuja fabricação e venda estão proibidos no Brasil. O material apre-endido contém a mesma substância encontrada nas vísceras dos animais mortos, o fluoracetato de sódio. (in: Época, 16 fev. 2004)

Ӳ Uso de descrições nominais (definidas e indefinidas): trata-se de uma escolha dentre as propriedades ou qualidades capazes de caracterizar o referente. Exemplo:

O prefeito é especialmente exigente para liberar novos empreendi-mentos imobiliários, principalmente quando estão localizados na franja da cidade ou em áreas rurais.[...]. “O crescimento urbano tem de ser em direção ao centro, ocupando os vazios urbanos e aprovei-tando a infra-estrutura, não na área rural que deve ser preservada”, repete o urbanista que entrou no PT em 1981 como militante dos movimentos populares por moradia. (Quem matou Toni-nho do PT? In: Caros Amigos nº 78, setembro de 2003, p. 27)

Já as anáforas não-correferenciais são aquelas em que não há iden-tidade estrita com um antecedente textual. Essas, a seu turno, são agru-padas da seguinte forma:

1) Anáforas indiretas - quando um novo objeto-de-discurso é in-troduzido, sob modo do dado, em razão de algum tipo de rela-ção com elementos presentes no co-texto ou no contexto socio-cognitivo. Koch (2006) considera a anáfora associativa como um subtipo da anáfora indireta. No exemplo a seguir, temos um caso de anáfora indireta, em que vagões e bancos são ingredien-tes de trem, nas palavras de Koch (2006):

Uma das mais animadas atrações de Pernambuco é o trem do forró. Com saídas em todos os fins de semana de junho, ele liga o Recife à cidade de Cabo de Santo Agostinho, um percurso de 40 quilômetros. Os vagões, adaptados, transformam-se em verdadeiros arraiais. Bandeirinhas coloridas, fitas e balões dão o tom típico à decoração. Os bancos, colocados nas laterais, deixam o centro livre para as quadrilhas.

2) Anáforas rotuladoras (encapsulamento anafórico) - trata-se de formas híbridas, referenciadoras e predicativas, que consis-tem em uma seleção particular e única dentre uma infinidade

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Linguística Textual

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de possibilidades lexicais para referenciar o objeto. No exem-plo a seguir, temos um caso de anáfora rotuladora, em que um desafio assim funciona como uma paráfrase resumitiva de toda uma setença anterior.

É fácil apontar as razões de sucesso – ou fracasso – de um projeto após sua conclusão. O complicado é antecipá-las. Os executivos da Petro-brás, a maior empresa brasileira, enfrentaram um desafio assim há quatro anos, quando iniciaram a implantação do programa de gestão R/3 da SAP, batizada de projeto Sinergia. (In: Exame, 18 fev. 2004)

Para ilustrar melhor essa discussão sobre os fenômenos anafó-ricos, apresentamos análise dos processos de referenciação em um texto jornalístico.

Texto 20

Só dá Obama

Se a eleição para presidente dos Estados Unidos fosse apenas na Califór-

nia, mais precisamente em San Francisco, o democrata Barack Obama

poderia dormir tranquilo nessa terça-feira, dia quatro de novembro, já

montando sua equipe de governo e delineando suas primeiras medidas.

Por aqui, aonde quer que você vá, praticamente todo mundo diz que vai

votar ou já até votou no candidato democrata. Por sinal, os eleitores

de Obama estão votando em peso antecipadamente. Na seção de vota-

ção aqui de San Francisco, filas enormes estão se formando, avançando

até para fora do prédio. Tem gente que fica até na chuva aguardando sua

hora de votar. E se você começa a perguntar, de dez eleitores nas filas na

última segunda-feira, nove afirmavam que votariam em Barack Obama.

Não é nenhuma surpresa. A Califórnia, governada pelo republicano Arnold

Schwarzenegger, é dada como Estado definido a favor de Barack Obama.

Esse favoritismo do democrata está se repetindo em boa parte dos

Estados Unidos. Tanto favoritismo, porém, tem despertado preocupa-

ção entre os eleitores de Obama. Quase todos falam abertamente que

estão preocupados com alguma surpresa na data final de votação. É

comum ouvir por aqui que muita gente diz uma coisa para pesquisado-

res, mas depois na hora de votar muda de idéia. Fui testemunha de pelo

menos um caso em que o eleitor chegou decidido a votar em Obama,

mas mudou de lado durante o período em que passou na fila esperan-

do seu momento de depositar seu voto.

Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/

folha/pensata/valdocruz/ult4120u463723.shtml.

Acesso em: 20 jan. 2009.

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Capítulo 12As formas nominais referenciais

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Enfim, nessa reta final, os eleitores de Barack Obama simplesmente

não estão acreditando que podem ser testemunhas de um fato históri-

co, como muitos analistas não cansam de repetir por aqui, da eleição de

um afro-americano presidente dos Estados Unidos. Alguns deles,

como um motorista de táxi, me disse que às vezes acha que está so-

nhando com o que pode acontecer nesse ano, com Obama ganhando

a presidência americana. O risco é esse sonho virar pesadelo. Até aqui,

parece improvável. Mas eleição, todos sabem, é como mineração, di-

riam os mineiros. Você só sabe o resultado exato depois da apuração.

Valdo Cruz, 46, é repórter especial da Folha. Foi diretor-executivo da Sucursal de Brasília durante os dois mandatos de FHC e no primeiro de Lula. Ocupou a secretaria de redação da sucursal e atuou como repórter de economia. Escreve às terças.

E-mail: [email protected]

No período de campanha eleitoral para a presidência dos EUA, o candidato Barack Obama foi focalizado como um referente do mundo extramental, cujos atributos foram negociados, via construção de ver-sões públicas de mundo. No processo de referenciação desse objeto-de-discurso em específico, destacamos, para as finalidades deste Capítulo, o uso de formas nominais referenciais de implicação anafórica.

De acordo com Koch (2002), as formas nominais referenciais de-sempenham importantes funções cognitivo-discursivas, dentre elas a de ativação e reativação de um referente na memória discursiva dos interlo-cutores. Elas atuam como forma de remissão a elementos anteriormente apresentados no texto ou sugeridos pelo co-texto precedente, possibili-tando a reativação na memória do interlocutor, ou seja, na alocução ou focalização na memória ativa deste.

Diante disso, podemos dizer que as nomeações atribuídas ao pre-sidente Barack Obama, em primeira instância, constituem-se em estra-tégias de ativação desse referente, veiculando informação nova. Depois de tais formas serem repetidas, reintroduzidas várias vezes no discurso, elas passaram a constituir estratégias de reativação desse referente, veicu-lando atributos a ele no limite do dado.

Centramos o foco de análise nas anáforas lexicais, tendo em vista que, em grande parte das vezes, elas trazem consigo progressão referencial, exi-

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Linguística Textual

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gindo compartilhamento de versões públicas de mundo. Assim, foi possível apreender os novos olhares, sociocognitivamente negociados, sobre esse ob-jeto-de-discurso em particular: o presidente norte-americano Barack Obama.

No Texto 20, podemos observar, na maioria das vezes, o uso de for-mas nominais de implicação anafórica, de natureza correferencial e recate-gorizadora, tendo em vista que remetem ao objeto-discurso já textualiza-do e imprimem ao referente a construção de um novo olhar. No processo de referenciação do objeto-de-discurso Barack Obama, destaca-se o uso de formas nominais, dentre elas o uso de descrições nominais definidas (Determinante + Nome + Modificadores), como em: um afro-americano presidente dos Estados Unidos; o democrata Barack Obama.

Segundo Koch (2002), o uso de uma descrição definida implica sempre uma escolha dentre as propriedades ou qualidades capazes de caracterizar o referente. Tal escolha se dá em virtude do contexto e, so-bretudo, é determinada pelo querer-dizer do autor. Ainda, de acordo com a autora, trata-se da ativação, dentre os conhecimentos pressupos-tos como partilhados com o(s) interlocutor(es), de traços do referente que o autor procura ressaltar (KOCH, 2002).

No caso do objeto-de-discurso Barack Obama, observamos duas ancoragens para o uso de formas nominais de implicação anafóricas, que estão ligadas às intenções que o autor pretende ressaltar no texto:

Ӳ Formas nominais de implicação anafórica que focalizam a ori-gem étnica do objeto-de-discurso:

Enfim, nessa reta final, os eleitores de Barack Obama simplesmente não estão acreditando que podem ser testemunhas de um fato histó-rico, como muitos analistas não cansam de repetir por aqui, da elei-ção de um afro-americano presidente dos Estados Unidos.

Ӳ Formas nominais de implicação anafórica que focalizam a ori-gem política do objeto-de-discurso:

Esse favoritismo do democrata está se repetindo em boa parte dos Estados Unidos.

Assim, ao referenciar o objeto-de-discurso por meio de descrições definidas – candidato democrata; afro-americano presidente dos Estados Unidos –, as formas nominais de implicação anafórica cumprem sua fun-ção de especificar o referente e, além disso, operam, de forma significa-tiva, na introdução do ponto de vista do autor, recategorizando o objeto.

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Capítulo 12As formas nominais referenciais

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O uso de sintagmas com formas definidas cumpre a função de explicitar o compartilhamento de uma determinada visão de mundo entre autor e leitor. Desse modo, a forma definida introduz o já-sabido, o já-comparti-lhado entre os interlocutores, o que supõe uma construção sociocogniti-va da referência, com base em uma memória discursiva compartilhada.

Encerramos aqui a unidade que tratou sobre referenciação. A se-guir, na última unidade deste Livro-texto, faremos uma discussão sobre o lugar do texto na sala de aula, pois os estudos da Linguística Textual aqui explanados constituem-se em ferramentas teóricas que podem me-diar a prática docente na disciplina de Língua Portuguesa.

Implicações para o processo de ensino-aprendizagem:

Os estudos sobre referenciação, principalmente, no que se refere

aos processos anafóricos, são conhecimentos relevantes para o pro-

fessor, tendo em vista que a partir de tais conceitos ele poderá com-

preender melhor os textos produzidos pelos alunos e o percurso de

leitura dos mesmos. Tendo uma maior compreensão de alguns pro-

cedimentos de ativação e de recategorização de referentes por meios

de processos anafóricos, o professor poderá orientar melhor os alu-

nos na revisão de textos, bem como na ampliação da construção de

sentidos na prática de leitura. Vejamos o exemplo de uma produção

de texto em situação de vestibular, que exemplifica o que afirmamos:

Proposta de produção textual: Em fevereiro de 2009, o mundo

ficou espantado com a violência sofrida por uma advogada brasilei-

ra em Dübendorf, cidade da Suíça. Ela teria sido agredida e muito

machucada por neonazistas, num ataque brutal de xenofobia (des-

confiança, temor ou antipatia por estrangeiros). A jovem advogada

teria, inclusive, sofrido um aborto de gêmeos, sendo encaminhada

para o hospital em estado de choque. Até o presidente Lula declarou

publicamente seu horror diante do acontecido. Poucos dias depois,

contudo, o mundo inteiro se revoltou, ao descobrir que tudo era

uma grande inverdade. Todos nós, certamente, conhecemos vários

mentirosos. Por que eles existem? O que é, afinal, a mentira: doença,

problema moral, necessidade irresistível, brincadeira? Ou o ato de

mentir é provocado por todas essas razões?

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Linguística Textual

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Produção textual de um candidato:

O fim da mentira

A mentira não pode ser qualificada como uma ação negativa ou po-

sitiva por si só. Para julga-la é necessário analisar o contexto em que

ela ocorre. Há vários motivos que podem levar uma pessoa a mentir,

porém devemos analisar as circunstâncias que levam a tal atitude e

as consequências que dela advêm.

Existem situações em que a mentira se torna necessária e/ou con-

veniente, ganhando um aspecto positivado, seja para evitar o sofri-

mento das pessoas, seja para proteger-se em determinadas ocasi-

ões entre outros casos. Pode-se imaginar um policial, quando fora

de suas funções, abordado por bandidos e questionado sobre sua

profissão. Neste caso é uma questão até de sobrevivência.

Entretanto, sobre um enfoque contrário, muitos males podem surgir

pela prática de mentir. A sociedade e o próprio indivíduo que mente

podem ser prejudicados. Há condutas que pela gravidade são classi-

ficadas e punidas como crimes, dada sua repercussão. O falso teste-

munho, a falsa denúncia, o estelionato são alguns dos exemplos de

condutas que a lei se preocupou em evitar.

Todavia, as relações individuais podem incentivar a mentira ou manter

seu hábito . Pode haver com seu uso uma ingênua brincadeira, apenas

para descontrair, como pode tornar-se compulsória em pessoas acos-

tumadas a aferir vantagens com facilidade, tornando-se uma doença

Logo, a mentira não pode ser classificada sem se analisar cada caso.

Trata-se de um meio, e não um fim em si mesma.

(Disponível em: http://educacao.uol.com.br/bancoderedacoes/reda-

cao/ult4657u426.jhtm. Acesso em: 04 mai. 2009.)

Podemos dizer que o texto escrito pelo candidato é coerente e apre-

senta razoável nível de informatividade. O que poderia ser retomado

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Capítulo 12As formas nominais referenciais

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com o candidato, se fosse uma situação de ensino-aprendizagem

(além de aspectos mais pontuais de concordância, pontuação, acen-

tuação etc.), inicialmente, é o título do texto: O fim da mentira. Isso

porque o título apresenta um duplo sentido, haja vista que o ter-

mo fim remete tanto à ideia de finalidade como à de término. Ao

ler o texto, percebemos que o título tem mais relação com a noção

de finalidade, pois o candidato tece considerações sobre os diver-

sos motivos (finalidades) da prática de mentira. Não descartamos

a hipótese de que o duplo sentido do título possa ter sido criado

intencionalmente pelo autor do texto, porém, se for o caso, ele pre-

cisaria ter sinalizado melhor no texto tal intenção, já que no texto

não é mencionada a questão do término da mentira, mas somente a

questão das finalidades do ato de mentir.

O candidato introduz o objeto-de-discurso mentira já no título do

texto, uma vez que esse objeto-de-discurso já havia sido previa-

mente apresentado no contexto comunicativo por meio da propos-

ta de produção textual. No decorrer do texto, o objeto-de-discurso

é retomado: ato de mentir, atitude, prática de mentir, exemplos de conduta, seu hábito etc. Nesse processo de referenciação, observa-

mos o uso de anáforas correferenciais sem recategorização, mas por

repetição: a mentira; anáforas lexicais: ela, la; e também elementos

responsáveis pela mudança do referente, as anáforas correferenciais

recategorizadoras (aquelas em que não há identidade estrita com

um antecedente textual), como o uso de descrição nominal: seu há-bito, seu uso; uso de nomes genéricos: condutas; uso de encapsu-

lamento anafórico: exemplos de condutas.

Enfim, ao ser retomado pelo candidato, o objeto-de-discurso é reca-

tegorizado e isso constitui o próprio ponto de vista do candidato, que

se propõe a mostrar os diferentes tipos de mentira de acordo com a fi-

nalidade da mesma, conforme podemos observar em: A mentira não pode ser qualificada como uma ação negativa ou positiva por si só.

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Linguística Textual

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Sobre a maneira como o candidato elabora seu texto, do ponto de

vista da referenciação, podemos dizer que, inicialmente, ele apresen-

ta o objeto-de-discurso como é qualificado pelo compartilhamento

sociocognitivo, na ordem do dado, destacando a ação negativa. Ao

passo que retoma e recategoriza, através de sua orientação argu-

mentativa, ele consegue ir apresentando novos olhares para esse

objeto-de-discurso. Contudo, esses novos olhares também têm uma

ancoragem na memória discursiva dos interlocutores daquela situa-

ção comunicativa. Para exemplificar nossa afirmação, tomemos como

exemplo a afirmação de que é possível mentir por questões de sobre-

vivência: Existem situações em que a mentira se torna necessária e/ou conveniente, ganhando um aspecto positivado, seja para evitar o sofrimento das pessoas, seja para proteger-se em determinadas ocasiões entre outros casos. Pode-se imaginar um policial, quando fora de suas funções, abordado por bandidos e questionado sobre sua profissão. Neste caso é uma questão até de sobrevivência.

A partir dessa textualização do candidato, podemos observar o uso

do argumento de que a mentira é utilizada como uma estratégia

de sobrevivência. Esse argumento é compartilhado sociocognitiva-

mente por indivíduos que moram em centros urbanos, onde a vio-

lência leva à autodefesa e, portanto, a mentir por sobrevivência. Em

resumo, podemos dizer que as demais formas de se compreender a

mentira, propostas pelo candidato, são construtos sociocognitivos

e historicamente situados que são introduzidos e ressignificados na

discursivização do candidato. Por fim, observamos também que, ao

final de seu texto, ele retoma coerentemente seu ponto de vista: Logo, a mentira não pode ser classificada sem se analisar cada caso. Trata-se de um meio, e não um fim em si mesma.

Desse modo, ao seguir uma mesma proposta de produção textu-

al, cada candidato textualizou diferentemente o seu texto, fazendo

isso a partir de suas práticas sociocognitivas e historicamente situ-

adas. Para cumprir seus propósitos discursivos, os candidatos inse-

riram em seus textos títulos que estabelecem relação intertextual

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Capítulo 12As formas nominais referenciais

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com outros textos já ancorados na memória discursiva dos interlo-

cutores. Vejamos outros títulos dados a seus textos pelos candida-

tos: Em Mentira tem perna curta, a intertextualidade ocorre com o

dito popular; em Atire a primeira pedra, aquele que nunca mentiu! observamos um intertexto com o texto bíblico; já o título Mentir ou não mentir? pode estar relacionado à famosa fala de Hamlet, per-

sonagem criada por William Shakespeare: Ser ou não ser, eis a ques-tão; por fim, no título As mentiras: mais quatro anos, temos uma

referência à política com enfoque nas discussões ligadas a escânda-

los financeiros, como, por exemplo, a chamada CPI do Mensalão.

Ressaltamos a importância de que o professor, nas práticas de produ-

ção textual escrita, chame a atenção dos alunos em relação ao esta-

belecimento de títulos em seus textos, uma vez que o título não é um

elemento meramente ilustrativo, mas uma forma de materializar os

sentidos que se desejam produzir, pois é a “porta de entrada” do tema

que será tratado no texto. Não raras vezes, percebemos, nos textos de

alunos e tantos outros, que a expectativa que se estabelece a partir de

determinados títulos não se confirma com a leitura integral do texto.

Ao analisar juntamente com seus alunos a produção escrita destes, o

professor também pode chamar a atenção para os efeitos textuais e dis-

cursivos obtidos pela retomada dos objetos-de-discurso mediante aná-

foras correferenciais recategorizadoras. Tradicionalmente visto apenas

como uma forma de ‘enriquecer o texto’, o uso de sinônimos, parassinô-

nimos, nomes genéricos, encapsulamentos anafóricos, na verdade, pro-

move ressignificações dos referentes, além de fazer o texto progredir.

Leia mais!

Para um aprofundamento sobre o conceito de referenciação e de fenôme-nos anafóricos, sugerimos livros mais atuais de Ingedore Koch:

KOCH, I. G. V. Introdução à linguística textual. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

______. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.

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Unidade DO texto na sala de aula

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Page 138: Linguística Textual UFSC

Nas três Unidades anteriores, abordamos a origem da Linguística Textual e seus desdobramentos teóricos, os diferentes conceitos de tex-to, os padrões de textualidade e a referenciação.

Nesta Unidade, vamos ver o lugar e o papel que o texto teve/tem nas aulas da disciplina de Língua Portuguesa e observar que o lugar e o papel do texto na sala são norteados pelas concepções de texto do professor, que balizam diferentes abordagens da disciplina e, logo, dife-rentes abordagens de práticas de leitura/escuta e produção textual. Tudo isso vai acabar se refletindo na concepção de texto que o aluno vai cons-truir durante seu processo de escolarização e que se textualiza em suas produções de texto.

O objetivo desta unidade é, a partir dos estudos que realizamos sobre a Linguística Textual:

Ӳ analisar qual o lugar e o papel do texto nas aulas de Língua Portu-guesa e qual a concepção de texto do aluno da Educação Básica.

Assim sendo, a unidade encontra-se dividida em dois Capítulos, em que discutiremos cada um dos tópicos destacados no objetivo: o lu-gar do texto na sala de aula e as concepcões de texto dos alunos.

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Capítulo 13O texto nas aulas de Língua Portuguesa

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13 O texto nas aulas de Língua Portuguesa

Se tomarmos a definição de texto como unidade da comunicação discursiva, como lugar e meio da interação, a sala de aula é espaço de constituição de textos, pois os processos de ensino-aprendizagem são mediados pela interação professor-aluno, aluno-professor e aluno-aluno. Na aula de História, por exemplo, professor e aluno constroem textos nas interações em sala de aula, interagem com textos didáticos, filmes etc. Em resumo, podemos dizer que toda a mediação dos conte-údos/conhecimentos da disciplina e sua aprendizagem efetuam-se por meio de textos. No dizer de Geraldi (1997, p. 23),

[...] qualquer que seja a disciplina objeto de nosso ensino/aprendizagem,

ele [o texto] está sempre presente. No sentido que atribuímos à sala de

aula como espaço de interação verbal [e, por essa razão, diálogo entre su-

jeitos, professores e alunos, ambos portadores de diferentes saberes] aluno

e professor confrontam-se por meio de seus textos com saberes e conhe-

cimentos. No sentido que atribuímos a sujeito, como herdeiro e produtor

de herança cultural, alunos e professores aprendem e ensinam um ao ou-

tro com textos, para os quais vão construindo novos contextos e situações,

reproduzindo e multiplicando os sentidos em circulação na sociedade.

Relacionando esse conceito de texto às aulas de Língua Portuguesa, hoje o texto assume (ou deveria assumir) ainda outra função, pois, além de ser a unidade mediadora dos processos interacionais e de construção do conhecimento, é também unidade de ensino-aprendizagem, ou seja, cons-titui-se também como conteúdo de ensino-aprendizagem dessa disciplina.

A disciplina de Língua Portuguesa foi introduzida no sistema esco-lar brasileiro no final do século XIX, época de declínio e saída do currí-culo escolar das disciplinas de Gramática (do latim), Retórica e Poética. Soares (2002) salienta que a criação dessa nova disciplina não possi-bilitou a configuração de novos objetivos e conteúdos, pois houve um processo de fusão dos conteúdos das disciplinas de Gramática, Retórica e Poética, que migraram para essa nova disciplina, e com a prevalência dos estudos gramaticais sobre os de leitura e escrita. Desde as origens da disciplina de Língua Portuguesa, a escuta, a leitura e a produção textual

A história da constituição da disciplina de Língua Portuguesa na escola, suas finalidades, seus conteúdos e o texto como unidade de ensino serão aprofundados na disciplina de Linguística Aplicada.

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Linguística Textual

140

(oral e escrita) não se constituíam como a base dos conteúdos de ensi-no-aprendizagem; em decorrência, o texto não era a unidade central de trabalho, uma vez que as práticas de linguagem não eram o foco central e os estudos gramaticais operacionalizavam-se nos limites da frase.

A partir de 1980, começa a se delinear, inicialmente na academia, um movimento de análise da função da disciplina de Língua Portugue-sa, seus conteúdos e metodologias, alicerçado em “uma concepção de linguagem e de ensino alternativa à tradicional” (BRITTO, 1997, p. 99). Como resultado dessa reflexão, consolida-se, pelo menos em nível pro-posicional e oficial, uma nova proposta de ensino-aprendizagem: de um ensino gramatical para um ensino operacional e reflexivo da linguagem (BRITTO, 1997), alavancada pelos estudos de autores como Franchi, Possenti e Geraldi. Nessa proposta, os dois grandes eixos norteadores dos conteúdos da disciplina passam a ser:

1) o uso da linguagem, concretizado por meio das práticas de es-cuta/leitura e produção textual (oral e escrita);

2) a reflexão sobre a linguagem, concretizada por meio das práti-cas de análise linguística (GERALDI, 1984, 1991).

Logo, a unidade de trabalho na sala de aula passa a ser o texto, se, como já dito, tomarmos o texto na concepção de unidade de interação. Por isso, Geraldi (1993 [1991], p. 105) salienta que “se quisermos traçar uma especificidade para o ensino de língua portuguesa, é no trabalho com textos que a encontraremos. Ou seja, o específico da aula de portu-guês é o trabalho com textos”.

Geraldi (1993 [1991]) lembra que, mesmo o texto não tendo a cen-tralidade nas aulas de Língua Portuguesa, nem por isso ele deixou de es-tar presente, embora de modo mais marginal, como já dito, e com uma forma de inserção muito particular, à qual se opõe essa nova proposta de ensino da disciplina de Língua Portuguesa. Vejamos, então, como era essa presença do texto na sala de aula.

Nas aulas de leitura, o texto aparecia como modelo para o aluno, em vários sentidos:

Os livros O texto na sala de aula, organizado por Geral-di (1984), e Portos de Passa-

gem (1991), de autoria de Geraldi, são obras basilares para essa nova concepção de ensino-aprendizagem

da disciplina de Língua Por-tuguesa. O primeiro livro atualmente é reeditado

pela Editora Ática.

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Capítulo 13O texto nas aulas de Língua Portuguesa

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a) Objeto de leitura vozeada (oralização do texto escrito): A re-

comendação era para que o professor lesse o texto em voz alta para

a classe e, em seguida, chamasse aluno por aluno para ler trechos

do texto. A melhor leitura era aquela que se aproximasse mais do

modelo, ou seja, da leitura do professor;

b) Objeto de imitação: O texto era lido como modelo para a produ-

ção dos textos dos alunos ou para falar bem a língua. O objetivo do

texto lido, nesse caso, não era fornecer ao aluno conteúdos para a

produção textual, mas ser modelo de estilo. Os alunos tinham de se

aproximar do estilo dos autores desses textos;

c) Objeto de fixação de um sentido: O significado de um texto era

aquele da leitura privilegiada do professor ou de um crítico literá-

rio por ele escolhido. A leitura não era concebida como produção

de sentidos (no plural) com base nas pistas fornecidas pelo texto e

no estudo dessas pistas, mas como uma leitura do texto. (GERALDI

(1993 [1991]), p.106-108).

A análise dessa prática de leitura de textos (normalmente textos literários ou fragmentos destes) na escola mostra que a concepção de texto que a sustenta é a de modelo ao qual se deve aderir. Ao interlocu-tor atribui-se papel passivo, pois ou o sentido está (somente) no autor, ou no texto produto, ou em um leitor privilegiado (professor ou crítico literário); o conhecimento e as experiências do leitor, fundantes no ato da interação mediada pela leitura, são anuladas em favor de uma leitura modelar: de reconhecimento de significados, de compreensão passiva, e não de produção de sentidos.

No entanto, partindo-se da concepção de linguagem como intera-ção, consideramos que nem o autor é a fonte única do dizer, nem o leitor é a fonte única dos sentidos de sua leitura, e nem o sentido está pron-to e acabado no texto, pronto para ser decodificado. O texto é o lugar onde o encontro do autor e do interlocutor se materializa e onde se dá a negociação dos sentidos. Além disso, textos de diferentes gêneros apre-sentam-se ao leitor como possibilidades de interação diferentes, pois as pessoas escutam/leem para aprender (textos didáticos), para se orientar no espaço (textos de sinalização), para se informar (textos jornalísticos), para se entreter (textos ficcionais), para ter notícias de amigos (cartas, e-mails), para selar acordos (contratos) etc. Essas diferenças, também

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marcadas na textualização, requerem práticas de ensino-aprendizagem de leitura que levem em conta essa diversidade.

A análise das práticas escolares demonstrou que a descontextuali-zação e a falta de sentido das atividades de leitura também norteava as atividades de produção textual, além de ser, muitas vezes, uma atividade bastante periférica em face dos outros conteúdos. Talvez se possa afir-mar que foi nas atividades de escrita que o texto mais se distanciou da concepção de lugar de interação para a compreensão de determinado espaço a ser preenchido com palavras. Ainda nos falta um estudo mais aprofundado para entender todas as razões do distanciamento do texto como atividade de interação nas aulas de produção textual, mas algu-mas hipóteses podem ser levantadas:

a) A prevalência dos estudos gramaticais, que sempre foram vistos como os “verdadeiros conteúdos da disciplina de Lín-gua Portuguesa”: Essa prevalência pôs o ensino da produção de textos como uma atividade menos importante na escola, logo, muito menos focada pelo professor;

b) Os limites dos estudos gramaticais: de modo resumido, po-demos dizer que as unidades de trabalho da gramática são a palavra e a oração. Esse limite imposto pelo objeto fez com que o olhar do professor também se voltasse para o limite da oração no texto do aluno, o que produziu certos modos de orientar e avaliar os textos, com enfoque prevalente para a correção da norma padrão, da concordância, da regência e da ortografia, e com a quase desconsideração dos aspetos ligados à interação e à textualidade, como progressão temática, adequação do estilo e do conteúdo do texto ao interlocutor etc.;

c) A produção e apresentação de modelos de textos: Como fo-mos discutindo ao longo deste livro, as textualizações são bas-tante diversas, resultado das atividades humanas e das condi-ções sociais e interativas, tipificadas historicamente nos gêneros do discurso. Entretanto, na escola, sedimentou-se um processo de produção escrita centrado em torno de uma tipologia textu-al (narração, descrição e dissertação) totalmente desvinculada das atividades efetivas de leitura e escrita fora da esfera escolar.

Não estamos defendo a desconsideração dessas

questões; o que queremos mostrar como equivocada

é a centralização do pro-cesso ensino-aprendiza-

gem de produção textual nesses aspectos.

Embora, muitas vezes, o professor justifique que en-sina categorias gramaticais

para que o aluno aprenda a escrever melhor.

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Capítulo 13O texto nas aulas de Língua Portuguesa

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Essas atividades de redação desconsideram os parâmetros de interação (salvo o aluno escrever esse texto para o professor de Língua Portuguesa), pois o texto é produzido de modo as-séptico: esses parâmetros de interação não têm qualquer efeito sobre o processo de produção do texto. Ainda, todo o processo de ensino-aprendizagem volta-se para o produto e não para o processo de interação e de textualização.

Por essas razões, Geraldi (1993[1991]) estabeleceu dife-rença entre redação e produção textual, que, frise-se, não é uma distinção terminológica, mas conceitual: na redação, o aluno produz um texto para a escola; na produção textual, o aluno produz um texto na escola. O argumento do autor para essa dis-tinção repousa no fundamento de que como sempre se produz um texto para o outro, a partir de um lugar social, para dizer-lhe algo e obter sua resposta, na escola, esse parâmetros devem ser os norteadores do processo de produção textual, cabendo ao professor o papel de mediador e de leitor privilegiado (mas não único) do texto do aluno. Já na redação escolar, como es-ses parâmetros não são norteadores dos textos dos alunos, nor-malmente “há muita escrita e pouco texto (ou discurso)” (1993 [1991, p.137). Nas palavras do autor,

Conceber o texto como unidade de ensino/aprendizagem é entendê-lo

como um lugar de entrada para este diálogo com outros textos, que reme-

tem a textos passados e que farão surgir textos futuros. Conceber o aluno

como produtor de textos é concebê-lo como participante ativo deste di-

álogo contínuo: com textos e com leitores. Substituir “redação” por produ-

ção de textos implica admitir esse conjunto de correlações, que constitui as

condições de produção de cada texto, cuja materialização não se dá sem

“instrumentos de produção”, no caso, os recursos expressivos [recursos lin-

guísticos] mobilizados em sua construção (GERALDI, 1993[1991], p. 22).

d) A escrita como treino: A escrita como treino prévio para o domínio da produção escrita também norteou as atividades de ensino, como uma espécie de estágio ordenado necessário para que o aluno pudesse aprender a escrever: primeiro apren-der e treinar as letras, as sentenças, os parágrafos, como condi-ção prévia necessária, para depois aprender a produção textual.

Essa mesma visão baliza muitos professores de línguas estrangeiras, que afirmam que não podem trabalhar com atividades de escuta, leitura e produ-ção nas fases iniciais, pois seus alunos ainda não têm domínio da gramática da língua, que é necessária, segundo visão deles, para aprender a falar e escrever. No entanto, Bakhtin (2003 [1979]) diz que nós não aprendemos uma língua por meio de palavras e orações isoladas, mas por meio dos enunciados (textos), nos processos interacionais.

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Dessa percepção equivocada temos como decorrência muitos exercícios de aprender a escrever (por exemplo, preencher lacu-nas com dadas palavras, escrever frases ou parágrafos a partir de um dado comando) e poucas atividades de produção de textos.

Essa visão de necessidade de etapas prévias para a aprendizagem da produção escrita reflete-se também na leitura e na alfabetização. Como consequência, apresentam-se ao aluno textos acessíveis (sejam livros de literatura, sejam livros didáticos), o que significa, na maioria das vezes: redução da riqueza lexical dos textos, redução da complexidade sintá-tica, com a prevalência de frases simples, redução da complexidade se-mântica e dos processos de textualização de um modo geral. Todos esses processos de redução da configuração composicional, semântica, sintá-tica e lexical dos textos têm como resultado a apresentação, ao aluno, de textos assépticos e sem relação com os textos efetivamente produzidos nas interações sociais.

A exposição do aluno a esses textos para as atividades de leitura e produção textual faz com que o discente construa uma concepção de texto que não é a de meio, lugar de interação, mas de estruturas textuais vazias a serem preenchidas com palavras, sem relação com a possibi-lidade de interação. Por isso, Geraldi (1993[1991], p.137) afirma que os textos produzidos por alunos expostos a esses modelos de textos têm muita escrita e pouco texto. O autor, nos livros O texto na sala de aula e Portos de passagem, analisa textos de alunos que claramente revelam marcas dessa concepção de texto. Vamos ver um caso semelhante no próximo Capítulo.

Poderíamos dizer, em úl-tima análise, que há uma

redução dos princípios de interação e dos padrões

de textualidade. Por essas razões, são modelos de textos que não servem

para a interação.

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Capítulo 14O que é texto para o aluno?

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14 O que é texto para o aluno?Para demonstrar a situação descrita no capítulo anterior, inicial-

mente, vamos analisar dois textos, retirados do artigo A produção tex-tual do aluno antes e depois do contato com a cartilha: um caminho de volta (2003), de autoria de Noris Eunice Pureza Duarte.

Texto 21

Transcrição do texto:

um dia o rafael viu o amigo que se

cama Pedro Julho o Rafael

comvidou o Pedro Julho para

brimcar no parque de diverçoes

i ai o rafael dise sim vamos

na montainha rusa e depois

eles foram no trem fantasma depois

eles foram para a casa descansar

e depois éra ora de aumosar

e depois éra ora de ir para a

escola e os dois na escola o que

vose aicha de a gente brimcar no

recreio em rafael sim nos vamos

brimcar no recreio i chegou a

hora do recreio e a profefora deichou

eles irem pro recreio i ai eles

brimcaram no recreio e depois

eles foram para a casa!

Inicialmente, levantaremos algumas das condições de produção desse texto, fornecidas pela autora do artigo: ele foi produzido por uma criança de classe média na pré-escola, antes da aprendizagem formal da alfabetização, e é resultado de processos de textualização de relatos de experiências vividas e de histórias, que as crianças eram estimuladas a fazer. No texto o aluno engaja-se em um projeto discursivo, como res-posta à solicitação da professora, e relata aos colegas e à professora como foi o dia de duas crianças, Rafael e Pedro Júlio. A história narrada pelo

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aluno focaliza três momentos do dia das crianças: no período da manhã, no parque de diversões; no período do almoço, em casa; e no período da tarde, na escola. Observamos que a criança produz um texto com uma história com bom grau de informatividade, com progressão temá-tica, com introdução, inclusive, do discurso das personagens. Do ponto de vista formal, falta-lhe ainda domínio da pontuação, da acentuação, da paragrafação, do modo de introdução do discurso relatado no texto escrito e de algumas relações fonema-grafema. Ainda percebemos forte influência da oralidade no texto: Por exemplo, os mecanismos coesivos e aí; e depois são próprios dos textos orais, onde estabelecem a sequen-ciação temporal entre partes narradas de uma história.

Certamente, há ainda um caminho de aprendizagem a ser percor-rido pela criança, que é o domínio dos aspectos ligados à modalidade escrita dos textos. Há, portanto, o papel de mediação do professor, como agente de aprendizagem daqueles aspectos da textualização escrita que o aluno ainda não domina. Entretanto, percebemos que a criança efetiva-mente engajou-se em um projeto discursivo proposto pela professora e produziu um texto com um bom nível de legibilidade; relaciona-se com o texto escrito como meio de interação com o outro e se responsabiliza pelo seu dizer, o que faz emergir uma forte presença autoral no texto.

Comparemos, agora, esse texto com o que se segue:

TEXTO 22

Transcrição do texto:

O rato e o menino

O menino não gosta do rato.

O menino esmagou o rato.

O menino matou o rato.

O menino tropesou no pau e esmagou o rato.

O menino levou o rato pra rua.

O rato ficou triste.

O menino sentiu pena do rato.

O menino ficou amigo do rato.

O menino cuida do rato.

Na disciplina de Psicologia educacional: desenvol-

vimento e aprendizagem será discutido o conceito

de Vygostky de mediação, bem como seu papel nos

processos de ensino-apren-dizagem da criança.

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Capítulo 14O que é texto para o aluno?

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Passemos agora à apresentação das condições de produção do Tex-to 22: Ele foi produzido por uma criança de classe média na primeira série do Ensino Fundamental, na época do aprendizado formal da alfa-betização. Observemos a textualização que o aluno produziu. Seguindo o que reforça Beaugrande (2004 [1997]) a respeito dos padrões de textu-alização, não podemos dizer que o que a criança produziu seja um não-texto, pois esses padrões orientam quaisquer textualizações. No caso do texto em questão, o aluno dá uma resposta ao que lhe foi endereçado: escrever um texto e tenta dar conta dessa demanda.

Apesar disso, há problemas de textualização, que afetam a legibilida-de do texto. Por exemplo, o leitor da história do menino e do rato terá difi-culdades para construir coerência, pois há contradições no que ela conta: primeiramente, a criança apresenta a informação de que o menino não gosta do rato e que esmaga e mata o rato, o que levanta o leitor à inferência de que o menino matou o rato por não gostar dele. Posteriormente, sem qualquer notificação ao leitor, há a informação de que a criança trope-çou no pau e esmagou o rato. Essa informação, por sua vez, pode levar o leitor a inferir que o menino esmagou o rato acidentalmente, o que entra em choque com a hipótese anterior sobre a motivação do menino. Na se-quência, a criança fica amiga do rato e cuida dele, o que leva o leitor a ter de inferir que o rato esteja vivo. Ou seja, a leitura do texto não permite que o leitor construa um mundo textual coerente e o resultado é cômico (ainda que não pareça ter sido essa a intenção do autor).

Segundo Charolles (1988 [1978]), também um estudioso da co-erência, um texto é coerente quando satisfaz a quatro metarregras de coerência:

Ӳ A metarregra de repetição;

Ӳ A metarregra de progressão;

Ӳ A metarregra de não-contradição;

Ӳ A metarregra de relação.

Assim, para que um texto seja coerente para o leitor, é preciso que, no seu desenvolvimento, não se introduza nenhum elemento semântico que contradiga um conteúdo posto ou pressuposto por uma ocorrência

Os dados referem-se ao período em que o Ensino Fundamental era com-posto de quatro ciclos de dois anos, totalizando oito anos de escolaridade.

Como vimos na Unidade B, a inferência é um dos fatores responsáveis pela coerência.

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anterior, ou dedutível desta por inferência (metarregra da não-contra-dição). Se essa contradição não for intencional e não sinalizada para o leitor, ela acarreta problemas de coerência interna no texto, como esta que se apresenta no texto da criança, pois o rato está morto e vivo ao mesmo tempo. Esse problema de contradição afeta o levantamento das inferências no texto, bem como a focalização, que, como vimos na Uni-dade B deste Livro, são elementos importantes para que o interlocutor construa a coerência do texto.

Quanto aos aspectos linguístico-textuais, observamos a repetição da estrutura frasal, extremamente simples, e a retomada dos referentes o menino e o rato pela repetição constante dos termos o rato e o meni-no, que inicia todas as frases do texto, dispostas uma abaixo da outra. Observamos, ainda que a criança aprendeu o uso das letras maiúsculas em início de frases e o uso do ponto para sinalizar o fim da frase. Além disso, apresenta, no que textualizou, um bom domínio das relações fo-nema-grafema (talvez justamente porque haja pouco texto, pouco dis-curso, como diz Geraldi (1993 [1991)). Apesar disso, o texto, como dito, apresenta problemas de legibilidade.

As perguntas que se pode e deve fazer são: A criança vê o texto escri-to como lugar de interação com o outro e de mediação de sentidos? Que concepção de texto escrito essa criança construiu? E, ainda, de onde vem essa concepção de texto? Para responder a essas questões, temos de ana-lisar não apenas a situação imediata do texto, escrever um texto a partir de uma gravura, mas analisar a situação mais ampla: de modo especial, que textos estão mediando a aprendizagem da escrita dessa criança.

Segundo Duarte (2003), o processo de alfabetização desse aluno foi mediado por uma cartilha elaborada pelas professoras da escola, que privilegia:

a) a gradação das dificuldades de aquisição da escrita – “primeiro as vogais e depois as consoantes, distribuídas em 42 graus de dificuldades (dentre eles os dígrafos, os encontros consonan-tais, os sons do X)” (DUARTE, 2003) –;

b) a exploração do aspecto visual, através de propostas para que as crianças desenhem determinadas cenas, ilustrem determi-

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Capítulo 14O que é texto para o aluno?

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nadas frases propostas para leitura ou escrevam palavras a par-tir de gravuras;

c) a segmentação de palavras em sílabas e recomposição dessas sílabas em palavras. De modo geral, a unidade de trabalho para essas atividades é a frase, com a inclusão de alguns textos para leitura, como os que seguem:

Caio viu o cavalo.Ele dá comida ao cavalo.O cavalo come, come.(apud DUARTE, 2003)

A hortaHelena mora no sítio. Lá, ela cuida da sua horta. Helena cultiva legumes e verduras.Sua horta é muito bonita.Helena só come legumes e verduras de sua horta.Como Helena é educada! (apud DUARTE, 2003)

Mesmo uma leitura apressada mostra que esses textos foram cons-truídos para uma finalidade específica, que é o trabalho com a relação entre fonemas e grafemas. São textos fabricados para esse fim; não têm uma proposta interativa que não seja treinar uma dada relação fonema-grafema . Além disso, são norteados pela concepção equivocada de que há necessidade de simplificação das complexidades linguístico-textuais para a criança aprender a escrever. Esses textos não preenchem uma fun-ção interativa e se apresentam absolutamente pobres no que se refere à informatividade, à intertextualidade, à organização textual e frasal, à co-esão e à referenciação, à seleção vocabular etc.

Agora, podemos responder as questões levantadas anteriormente. A criança se apropriou de uma concepção de texto dada pela escola: o texto não como lugar de interação e mediação, mas como espaço em branco para ser preenchido com frases soltas.

Para terminar a discussão desses dois textos, apresentamos a últi-ma informação sobre eles: Os textos 21 e 22 foram escritos pela mesma criança. O Texto 21 foi produzido na fase pré-escolar e o Texto 22 no ano seguinte, na primeira série do Ensino Fundamental. Agora, podemos le-vantar outra pergunta: O que a criança perdeu acerca da noção de texto durante seu curto processo de escolarização formal?

Não negamos a necessida-de e a importância de se trabalhar com as relações fonema-grafema, que são constitutivas do texto escrito; o que questiona-mos é o modo como esse trabalho é conduzido.

Queremos ressaltar que não culpamos o profes-sor em particular pela situação descrita neste Capítulo, mas a concepção vigente de alfabetização e de texto da/na escola, que se encontra reproduzida em seu trabalho. Por isso, por mais que ele tente inovar (no caso, criar uma cartilha apropriada para seus alunos), os resulta-dos não são promissores do ponto de vista de um trabalho de Língua Portu-guesa centrado no texto.

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Objetivando complementar o que discutimos até aqui, apresenta-mos parte dos resultados de pesquisa realizada por Silva (2008) sobre a concepção de texto de alunos do Ensino Fundamental. A pesquisa foi realizada no ano de 2006, com 21 alunos de uma sétima série do Ensino Fundamental de uma instituição de ensino da rede particular de um município do Estado de Santa Catarina. Um dos instrumentos de pes-quisa foi a realização de entrevista escrita com esses alunos, com vistas à apreensão, entre outros, do conceito de texto desses alunos. Uma das sete questões postas para os alunos foi: O que você entende por texto? As respostas, após analisadas, foram agrupadas em três categorias, confor-me quadro a seguir

O que você entende por texto?

G1

“É uma redação. Uma forma de se comunicar e expressar.”

“É uma forma de se expressar em letras, expressar sentimentos, e

outros.

“Texto para mim e uma opinião ou expressão de várias frases juntas

descrita em um papel.

“Texto e aonde eu posso me expressar.

“Explicações onde expresse sentimentos. Exemplo cartas e redações.”

“Uma redação.”

“Redações, onde você pode expressar seus sentimentos.”

“Forma de se expressar em letras.”

G2

“Histo rias, poemas, redações etc... Qualquer coisa que tenha muitas

palavras.”

“Eu entendo que é um monte de letras que se unem e ficam pala-

vras que as palavras fazem um texto para nós lermos.”

“Um conjunto de frases que sempre trazem algo de bom para no s.

“São palavras representando histórias reais ou não.”

“Uma redação... uma coisa que você lê ou escreve.”

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Capítulo 14O que é texto para o aluno?

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G3

“Uma redação, uma história, uma carta.”

“Redação, poesia...”

“Pode ser uma redação, poema, história, lembrete etc...”

“Onde tem uma história, redação, carta ...”

“Uma história que conta alguma coisa que alguém contou ou a

própria história.”

“Histórias e documentarios de jornais e revistas.

Quadro 2: A concepção de texto de alunos de ensino fundamental (SILVA, 2008).

Se nos textos 21 e 22 analisamos a concepção de texto do aluno a partir do texto produzido pelo próprio aluno, agora vamos analisar a concepção de texto por meio do que ele define como sendo texto.

A partir das respostas dos estudantes à questão O que você entende por texto?, primeiramente, é possível perceber a incidência relevante da utilização do termo redação, que reflete a concepção de produção textu-al ainda vigente na escola.

Nas respostas do primeiro grupo (G1), percebemos a concepção de texto como expressão do pensamento, uma vez que há um enfoque na noção de linguagem como forma de expressão, centrando-se na pessoa do produtor, como podemos verificar no segmento: Texto e aonde eu posso me expressar. O segundo grupo (G2), por sua vez, materializa uma perspectiva bastante fragmentada de texto, dividindo-o em unidades como frases, palavras, revelando uma concepção de texto como partes que se somam para formar um todo. A resposta a seguir é ilustrativa dessa perspectiva: Eu entendo que [texto] é um monte de letras que se unem e ficam palavras que as palavras fazem um texto para nos lermos.

Já o terceiro grupo (G3) de alunos revela uma concepção mais in-terativa de texto, uma vez que o texto não é visto como conjunto de palavras e frases, mas como produto cultural que circula socialmente e como meio, lugar de interação com o outro, como podemos perceber nas duas respostas que seguem: Histórias e documentários de jornais e revistas; e Uma história que conta alguma coisa que alguém contou ou

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a própria história. Nesse caso, podemos nos perguntar se essa concep-ção de texto foi construída pelos alunos a partir do ensino operacional e reflexivo da linguagem pautando o trabalho de professores, ou se é resultado das práticas de letramento nas quais se encontram inseridos esses alunos.

Ao contemplar a voz de alunos de Ensino Fundamental sobre a concepção de texto na esfera escolar, consideramos que as concepções (vozes) dos estudantes refletem (e refratam) as concepções de texto que estão inseridas no âmbito da escola, e, mais precisamente, na disciplina de Língua Portuguesa.

O retrato que apresentamos neste Capítulo objetivou mostrar que concepções de texto ainda medeiam as aulas de Língua Portuguesa. Es-peramos que esse Capítulo sirva como ponto de partida e porto de passa-gem para uma reflexão mais apurada sobre as práticas de ensino-apren-dizagem de escuta, leitura e produção textual (oral e escrita) na escola, que será desenvolvida na disciplina de Linguística Aplicada. Fica o con-vite para a construção de um novo caminho em sala de aula, com o texto na sua condição de enunciado e como a unidade efetiva de trabalho do professor, enfim, a disciplina escolar de Língua Portuguesa concebida a partir da proposta do ensino operacional e reflexivo da linguagem, apre-sentada no Capítulo anterior.

Leia mais!

Para aprofundamento desta unidade, indicamos duas obras seminais que tratam das questões do texto nas aulas de Língua Portuguesa, ambas de autoria de João Wanderley Geraldi:

GERALDI, J. W. Portos de passagem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993[1991].

______. (Org.). O texto na sala de aula: leitura e produção. 3. ed. Cas-cavel: Assoeste, 1985 [1984]. (Atenção: como já dito, esta obra hoje é editada pela editora Ática.)

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Considerações Finais

Ao longo deste livro, aprofundamo-nos nos estudos da disciplina de Linguística Textual: Conhecemos o histórico da disciplina, os conceitos de texto que emergiram em suas diferentes fases e vertentes, apropria-mo-nos do conceito de textualidade, correlacionamo-no ao conceito de gêneros do discurso, abordamos cada um dos padrões de textualidade e estudamos as pesquisas recentes sobre textualização. Vimos o funciona-mento de todos esses conceitos por meio da análise de textos, momento em que pudemos observar e apreender o modo de textualização de cada um dos padrões que estudamos. Além disso, pudemos compreender a importância desses conceitos para a formação teórico-metodológica do professor de Língua Portuguesa. A correlação entre conhecimento teó-rico e conhecimento didático foi estabelecida na leitura e discussão das implicações pedagógicas apresentadas ao final dos capítulos.

Discutimos ainda o lugar e o papel do texto nas aulas de Língua Por-tuguesa: como o texto foi visto como (não-)conteúdo de ensino, como se estabeleceram as práticas de leitura/escuta e produção textual na escola, como as concepções de texto com as quais a escola trabalha são apropria-das pelos alunos conceitualmente (saber dizer o que é texto) e procedi-mentalmente (ler e escrever textos). Assim sendo, se a escola trabalha com uma concepção de texto dissociada dos processos interacionais, o aluno não se apropria da escrita e do texto como meio e lugar de interação.

Finalmente, vimos uma nova proposta para a disciplina de Língua Portuguesa, o ensino operacional e reflexivo da linguagem, que toma as práticas de escuta, leitura e produção textual (oral e escrita) como efe-tivos conteúdos de ensino-aprendizagem. E vimos que, nessa proposta, o texto, tomado na sua condição de enunciado, é o ponto de partida e chegada dos processos de ensino-aprendizagem.

Assim, esperamos que, por meio deste livro, tenhamos tido a opor-tunidade de estabelecer uma interação prazerosa e proveitosa e que o diálogo aqui iniciado tenha continuidade em muitos outros momentos.

Os autores

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