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Fala: O espelho (1882) – 30/07/2017

Gabriel Gimenes de Godoy

I – Do título e do subtítulo

Para início de conversa, antes de mais nada, tratando-se de Machado de Assis,

não devemos menosprezar a ajuda que o título e, no caso, o subtítulo podem trazer

enquanto chave de interpretação do conto.

O título de O espelho pode, já de cara, ajudar a entender algo de fundamental na

narrativa. Além de, como veremos, referir-se a um objeto específico – o espelho cujo

herói da história terá sua revelação pessoal – podemos, se não for forçar demais a barra,

termos em mente a ideia de espelhamento e reflexo que os espelhos, em geral, carregam

consigo. Isto é, a ideia de se mirar no espelho e ver o próprio reflexo. Ampliando um

pouco essa atitude básica e cotidiana, está ai a possibilidade ver a si mesmo sem,

contudo, ser o mesmo. O nosso reflexo é e não é nós, pois antes de ser nós é reflexo.

Para os mais avisados, meus alunos, talvez estejam reconhecendo ai a ideia do

duplo que vimos nas aulas de Romantismo. O duplo se define pela possibilidade de nos

desdobrarmos em outro, sendo este outro nós ao mesmo tempo que não. Exemplos

famosos não faltam como a sombra, o médico e o monstro, William Wilson e... o

próprio reflexo. Para o duplo existir é preciso que um dos dois membros que compõe a

equação exista individualmente, enquanto o outro não. Pensem realmente no caso da

sombra, que não é o homem, mas também o é. O homem é um ser animado e individual,

enquanto a sombra não. Tire o homem e a sombra desaparece; saia da frente do espelho

e o reflexo some. Para que haja duplo é preciso que os dois membros existam, sendo

diferentes ao passo que iguais.

Vamos um pouco além nessa ideia de se ver a partir do reflexo de um espelho.

Podemos também pensar, em sentido figurado, que é pelo olhar dos outros que é

possível ver a nós mesmos. É pela ótica das pessoas com quem convivemos que

acabamos por definir nossa individualidade; que acabamos por nos definir enquanto

sujeitos. Em suma, para que nós sejamos nós é preciso um outro – assim como duplo.

Esta ideia não deixa de ser uma espécie de jogo de espelhamentos em que vemos

nosso reflexo na concepção que os outros têm de nós mesmos. Seja como for, imagino

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que nenhuma dessas “teorias” sejam novas para vocês. Tenhamos isto em mente, então,

ao longo de nossa análise: constituímos nossa individualidade a partir do olhar

espelhado do outro. Daí, teremos uma pista da teoria da alma humana explicitada pelo

subtítulo.

Porém, vejam só, trata-se de uma “nova” teoria da alma humana e,

convenhamos, a ideia de olhares espelhados não tem nada de novidade. Muito pelo

contrário, é de uma total banalidade, quase um clichê. Não é o caso de jogarmos todas

nossas observações feitas até agora no lixo, pois o andamento do conto pedirá algo da

ideia de definição da individualidade pelo convívio com terceiros.

A que se refere, então, o “Esboço de uma nova teoria da alma humana” presente

no subtítulo? Para tentar responder precisamos olhar para o corpo do conto, para o

enredo, para o que está nos sendo transmitido. E já aí há algo muito estranha. Quando

lemos um conto esperamos nada mais do que uma história, que uma ação aconteça nem

que seja mínima. No entanto, O espelho não somente pretende nos contar algo (a

história do alferes Jacobina que, abandonado na fazenda de sua tia Marcolina por

parentes e escravos, vê sua identidade pessoal desaparecer), como demonstrar uma

ideia, comprovar uma tese. Cabe a pergunta: é conto ou é tese? É tese ou conto? Pois

bem, para nós será os dois. Portanto, a nossa primeira questão é: qual, de fato, é a tese, a

teoria, a ser comprovada pela história da desventura de Jacobina?

II – Da teoria

O começo da narrativa, em terceira pessoa, comunica-nos que “Quatro ou cinco

cavalheiros” debatiam, em uma noite calma, tranquila e prosaica questões de “alta

transcendência”.

Quatro ou cinco pessoas, convenhamos, não é um número muito elevado. Não é

difícil distinguir se em determinado ambiente há quatro ou cinco pessoas exatamente.

No entanto, este narrador passa a informação de maneira imprecisa: ora, são quatro ou

cinco pessoas? O que faz um sujeito ser somado ou subtraído de uma conta,

aparentemente, tão simples?

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Nos dirá o próprio narrador, um pouquinho mais adiante, que esta imprecisão

numérica se deve pelo fato de um dos participantes ser mais calado que os demais;

preferir antes ficar escutando do que debatendo as questões metafísicas de alta

transcendência. Este personagem, “casmurro”, sem dúvida será o nosso herói, Jacobina.

Porém, ao fim do conto talvez poderemos dar uma outra explicação para essa contam

imprecisa. Na vida real, quando esquecemos de contar algum amigo de nosso círculo é

uma falta grave. Afinal trata-se, nada mais nada menos, do que subtrair alguém de nossa

estima. Implicitamente dizemos ao esquecido que o esquecemos, como se, de fato, ele

não existisse.

Sem nos adiantarmos muito, vale refletirmos sobre as mencionadas questões de

alta transcendência – ou, como diz o narrador “quatro ou cinco investigadores de coisas

metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.”

Enquanto os debatedores ficam conversando entre si, Jacobina ouve tudo de maneira

quieta, calado diante da acalorada conversa. A respeito desta personagem sisuda, o

narrador nos diz que “Não discutia nunca”. Dizia Jacobina que “a discussão é a forma

polida do instinto batalhador, que jaz no homem como uma herança bestial;”.

Sempre quieto no seu canto, Jacobina diz que os anjos, serafins e querubins,

também eles, nunca discutem. Estas criaturas angelicais, para o herói, são o símbolo da

perfeição espiritual e eterna.

Talvez a manobra do narrador nos tenha passado despercebida, mas de Jacobina

acabamos sabendo que não só não gosta de discutir (para ele uma herança bestial) como

acaba, implicitamente, comparando-o à perfeição dos serafins e querubins. Em outras

palavras, é uma criatura acima do bem e do mal. Alguém que detém toda a verdade da

existência e, por evitar discussões e contendas, mantêm-se sempre na sua.

É este sujeito introspectivo, calmo e quieto que será motivado pelos amigos a

opinar sobre as questões metafísicas de alta transcendência. Diz ele quando convocado

ao assunto:

- Nem conjuntura, nem opinião; uma ou outra pode dar lugar a

dissentimento e, como sabem, eu não discuto. Mas se querem ouvir-me

calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais

clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não

há uma só alma, há duas...

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Dizer que Jacobina, aqui, apresenta um comportamento autoritário e dizer

pouco. “Eu não discuto”, “se querem ouvir-me calados”, dão um pouco a ideia dessa

personagem que foi colocado, implicitamente, na mesma posição que os anjos do céu.

Ora, mas se os seus interlocutores, as demais pessoas que o ouvem, não o

questionarão, nós sim! O leitor, depois de todas essas indicações que repelem o

questionamentos e a réplica deve sim questionar sim. O gesto de Jacobina não deixa de

ser quase uma provocação para o que está por vir. Em uma só palavra, não podemos

aceitar o que ele diz integralmente. Isto é fundamental se quisermos entender o que

realmente está em jogo em O espelho: é preciso contrapor nosso próprio juízo ao do

narrador e ao do próprio herói que, aos poucos, vai assumindo o papel de narrador em

primeira pessoa.

Esta é uma lição valiosa e serve tanto para as demais obras de Machado, quanto

para a própria vida. Aceitar a história como está sendo contada é compactuar com o que

quer que seja dito. Se quisermos ver, justamente, o que a autoridade do narrador

esconde, contestar o que está sendo dito com tanto ímpeto e seriedade é o primeiro

passo. Quem tem a palavra não é inquestionável, muito embora, no caso do conto,

queira sê-lo. Tudo isso terá suas consequências, veremos.

Já neste trecho ficamos sabendo do que, realmente, trata-se a teoria expressa no

subtítulo: é da ideia de que o homem tem não uma, mas sim duas almas. “Cada criatura

humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro pra fora, outra que olha de

fora para dentro... Espantem-se à vontade; podem ficar de boca aberta, dar de ombros,

tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir.”

Aqui está outra amostra do comportamento autoritário de nosso herói. Aos

poucos ele vai apresentando sua teoria das duas almas deixando bem claro que não

aceita réplicas. Há, portanto, duas almas: a interior, que olha de dentro para fora, e a

exterior que olha de fora para dentro.

III – Da alma exterior

Esta última, a exterior, pode ser qualquer coisa: um espírito, um homem, muitos

homens, uma operação, um objeto como... um botão de camisa, uma par de botas! Nas

palavras do próprio Jacobina: “Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a

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vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando,

uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e

casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira.”

O que diz a personagem merece atenção, vamos lá. A alma exterior, isto é, o

que, junto com a interior, define a individualidade do homem aqui está reduzida a um

botão e um par de botas. Sendo assim, o homem, dividido pelas duas almas, é, assim

falando, uma laranja. Não podemos levar isso a sério. Não podemos seguir a

recomendação do próprio narrador e aceitar, sem crítica, suas indicações sobre o

comportamento humano.

É aqui que devemos contrapor nossa própria inteligência ao que o texto nos diz.

Participar ativamente da história. Fazendo isso, temos a real medida das questões de alta

transcendência metafísica que estavam sendo discutidas amigavelmente naquela noite: a

alma do homem, partida em dois, faz dele uma laranja. O descompasso entre as sérias

intenções dos participantes (que querem discutir acerca dos destinos da alma humana) e

o que, de fato, estão conversando deixa claro que não se trata de grandes questões coisa

nenhuma. As conversas de alta transcendência são, na realidade, conversa pra boi

dormir, mas que, no entanto, são levadas muito a sério.

É o caso de, também, levarmos a sério o que diz Jacobina... mas, como sabemos,

não tanto. Isso porque, o herói continua explicando as particularidades da alma exterior

que, além de pode ser qualquer coisa (do homem ao par de botas), é mutável. Isto é, em

determinado momento da vida pode ser uma coisa, depois outra e assim sucessivamente.

Como quando se é criança e a alma exterior é o chocalho ou cavalinho de pau e,

depois, já adulto, uma provedoria de irmandade. Há pessoas, inclusive, que mudam de

alma exterior cinco, seis vezes no ano! Como uma senhora, conhecida dos amigos ali,

que na época dos espetáculos tem sua alma exterior nas óperas; depois, terminada a

temporada de espetáculos, substitui a alma por outra: um concerto, um baile do Cassino,

a rua do Ouvidor, Petrópolis... Exemplo conhecido de vocês deve ser o dos professores

que adotam as teorias da moda (da pós-modernidade) como quem muda de roupa, de

maneira a ficar up to date, na crista da onda dos descolados e desconstruídos, quando os

problemas reais (com origem real e material) permanecem sem solução. O movimento

da alma exterior é o movimento do mercado de consumo e qualquer semelhança entre

movimento do mercado capitalista e teorias pós-modernas não é mera coincidência.

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Seja como for, se com o homem dividido como uma laranja já tínhamos metido

o pé na jaca, com o perdão do trocadilho, aqui atolamos ainda mais. A alma exterior

pode ser das coisas mais fúteis, como os caprichos das senhoras da alta sociedade

fluminense que frequentam a ópera, o cassino, a famosa rua do Ouvidor. Nesse universo

de futilidades e mercadorias ocorre um total esvaziamento da alma interior – isto é, da

individualidade, da subjetividade – em favor da existência somente da exterior. Em

português claro, o que se entende por ser humano, eu, individualidade, etc. deixa de

existir absorvido pelos objetos da vida mundana, mercadorias e coisas da moda.

Sem ser arrogante, em termos marxistas, estamos diante da total precedência do

valor de troca sobre o valor de uso. Explicando melhor, a forma mercadoria comporta

dois valores, o de troca e o de uso; o valor de uso de uma água e da Coca-cola é o

mesmo, pois ambas estão a serviço da aplacar a sede. Se nos pautássemos somente pelo

valor de uso, isto é, pela utilidade dos dois líquidos para o consumo humano, ambos

valeria a mesma coisa, poiss tem função idêntica. Entretanto, na prática, o valor de troca

de uma é maior do que o da outra: todos sabem que pagamos mais na marca Coca-cola

do que em qualquer garrafinha de água Bonafonte. É a vitória do valor de troca sobre o

valor de uso: quando a mercadoria é tomada apenas por seu valor de troca, perdemos a

materialidade real do processo produtivo; o valor de uso desaparece e com ele todo o

trabalho investido na mercadoria.

Guardada as devidas proporções, a mesma coisa se aplica a realidade, a vida:

quando fazemos das aparências, das coisas, objetos e mercadorias, da exterioridade, a

verdade última de nossa existência, colocamos de lado os mecanismos históricos reais

em favor de uma abstração que finge desconhecer o que permite este mundo de faz de

conta. O que fica apagado é, digamos de uma vez, o trabalho empregado na produção

das mercadorias. Todavia, sem o trabalho a mercadoria não existiria. Como feitiço,

porém, o trabalho dos produtores da mercadoria some e a própria mercadoria parece

algo feita por si só. Está ai o que chamamos de fetiche da mercadoria, que, como

estamos vendo, só é possível pela precedência do valor de troca sobre o de uso.

Todavia, não esqueçamos que Jacobina e seus ouvintes estão levando todas as

baboseiras muito a sério. Em outras palavras, o mundo de faz de conta acaba, por fim,

sendo mais tangível do que a própria realidade do trabalho. A alma exterior, por

exemplo, mais real e mais palpável que a interior, como nos diz o narrador, é,

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justamente, expressão desta sociedade de sujeitos esvaziados, totalmente fetichizados,

cuja essência há muito se perdeu e somente resta a casca de humanidade na forma da

mercadoria – ou melhor, no ritmo do mercado consumista que troca uma novidade por

outra, assim como a dama descrita acima que troca de alma conforme a temporada de

ópera começa e acaba.

IV – Dos exemplos

Não podemos negar, a despeito de toda a esculhambação e desabuso da teoria de

de Jacobina que ela tem muito de verdade histórica. Para efeito de comparação, vejamos

como outros escritores do século XIX e XX, ao redor do mundo também captaram a

mesma coisa que Machado em O espelho – ainda que não de forma tão irônica e

desabusada – revelando a marcha global do capitalismo.

O romance Retrato de uma senhora, do norte-americano Henry James, conta a

história da, também, norte-americana Isabel Archer que vai à Europa na busca de uma

vida plena, bem realizada, em que possa cumprir todas suas aspirações pessoais. Em

diálogo com uma velha amiga, Madame Merle, a heroína debate acerca da essência e

das aparências da vida humana.

O romance de James, apesar de escrito por um norte-americano, trata da Europa.

Vamos inverter e ver como um europeu trata dos Estados Unidos. Na peça Santa Joana

dos Matadouros, do alemão Bertolt Brecht, um de seus personagens, o industrial da

cidade de Chicago, Bocarra, tem horror de encarar a rotina de trabalho e as

reivindicações dos operários em greve na sua fábrica. Diante das exigências proletárias

por melhores condições de trabalho, Bocarra não quer ver a realidade degradada e

precária do processo que ele mesmo manipula tão bem, preferindo viver no mundo das

ações e negociatas.

James e Brecht, todavia, não possuem a mesma ironia de Machado. Já tivemos

mostra dessa ironia no descompasso das intenções de se discutir seriamente questões

que não podem ser levadas a sério – a laranja, os botões, o par de botas, a alma instável

e mutante, etc. É de se supor que essa ironia esconde algo de profundo e sombrio que

nada tem a ver com alta transcendência metafísica. Dizendo melhor, desvendar o

fundamento da ironia no conto é tentar descobrir o que permite, na sociedade brasileira,

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viver em uma eterna abstração. A pergunta, então, deve ser: o que, exatamente, a ironia

esconde?

V – Das razões da ironia e processo social

No caso da Europa e dos Estados Unidos, sabemos, a precedência do valor de

troca sobre o valor de uso tem por fim esconder a exploração do trabalho industrial.

Entretanto, não poderíamos estar mais distantes da realidade industrializante

estrangeira, já que o Brasil do século XIX, país agrário e escravista, não estava no

mesmo patamar de desenvolvimento dos países centrais do capitalismo.

Como este país, rústico e atrasado em relação ao desenvolvimento econômico e

político europeu, encontra-se n’O espelho? Retomemos a narrativa.

Para demonstrar na prática a teoria das duas almas, Jacobina relatará um

acontecimento que se passou com ele, quando tinha vinte e cinco anos, por ocasião de

sua nomeação ao cargo de alferes da Guarda Nacional. Ainda que seja um posto militar

pequeno, a nomeação causou certo rebuliço na pequena vila onde morava, despertando

inveja e admiração dos amigos. Com efeito, Jacobina, agora, era alferes de uma

instituição civil-militar criada durante a época da Regência e intimamente ligada ao

Segundo Reinado, mas já em decadência na época em que sai o conto, às vésperas da

República. Trata-se, por tanto, de um cargo em uma instituição, já naquela época, um

tanto atrasada, mas que tinha sim algum prestígio. Senão, o que despertaria a inveja dos

inimigos e o sentimento genuíno por parte dos mais próximos? Assim sendo, a

afirmação de Jacobina de que era pobre deve ser levada com desconfiança.

O rebuliço com a nomeação foi tão grande que mãe, amigos e parentes só lhe

chamam, a partir de agora, de “seu alferes”. Deixaram de lado o apelido carinhoso de

Joãozinho, para ostentar a posição que ocupa dentro da Guarda Nacional. Tia

Marcolina, orgulhosa do posto que agora ocupa o sobrinho, convoca-o para passar um

mês na sua fazenda – não sem antes, claro, mimá-lo e fazer com que todos, em sua

propriedade, chamassem o herói pelo alcunha de alferes. Diz Jacobina:

E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda

hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a

cabeça, bradando que não, que era o “senhor alferes”. Um cunhado dela,

irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira.

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Era o “senhor alferes”, não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos,

que naturalmente foram pelo mesmo caminho.

Jacobina, Joãozinho ou senhor alferes? Qual dos três é de fato o nosso herói e

narrador, ou são os três a mesma pessoa? Em um primeiro momento, quem ganha é o

último, o senhor alferes. Isso porque a alcunha pegou tanto que “o alferes eliminou o

homem”, nas palavras do próprio. O cargo, a posição social que ocupava, a alma

exterior encarnada metonimicamente na farda militar, vem ao primeiro plano e passa a

ser a real identidade do senhor Alferes – não mais Jacobina e nem Joãozinho.

Nosso herói passou da alma interior à pura exterioridade. “Aconteceu então que

a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de

natureza, e passou a ser a cortesia os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto,

nada do que me falava do homem.”

É quando a identidade do herói está reduzida à sua alma exterior que ocorre o

único momento propriamente de ação do conto. Uma série de circunstâncias faz com

que tia Marcolina se ausente da fazenda, às pressas, para visitar a filha gravemente

doente, deixando o sobrinho completamente sozinho, somente com os escravos. Estes

aproveitam a ocasião propícia e, durante a noite, fogem, agravando a solidão do senhor

alferes.

Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro

deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a

senzala, tudo, nada, ninguém, um molequinho que fosse. [...] Os mesmos

cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhe que isto

era melhor do que ter morrido? Era pior.

O herói vira, então, um morto vivo, ou, nas suas próprias palavras, um autômato.

A ponto de, quando resolve, passado dias, mirar-se no espelho da época colonial

colocado pela tia em seu quarto, nada vê, apenas fumaças a e sombras.

[...] porque no fim de oito dias, deu-me na veneta olhar para o espelho, com o

fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia

conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira,

mas vaga, esfumaçada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas

não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os

mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha

sensação.

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Aqui não temos nem senhor alferes, nem Joãozinho e muito menos Jacobina. O

herói é nada, é ninguém. Se antes Joãozinho, isto é, a alma interior, havia cedido espaço

a exterior (o cargo de alferes), quando resolve olhar o reflexo no espelho, a personagem

nada vê, é pura sombra e contorno indefinido. Por quê?

Bom, caso seguíssemos as indicações de Jacobina, poderíamos alegar que a

solidão que sentiu na fazenda, abandonado pela tia e pelos escravos, acabou fazendo

com que perdesse a individualidade; as duas almas. Se, como dissemos no início, a

individualidade é constituída pelo olhar do outro, conforme o outro se retira de cena a

individualidade se esfumaça. Neste sentido, o espelho em que o narrador se mira revela

que na ausência de terceiros, das pessoas com quem travamos contato diariamente, não

há porque se manter as aparências do mundo social.

No caso de Jacobina, contudo, é de se perguntar se houve alguma vez, de fato,

uma alma interior. Isso porque, desolado pela perda das almas, diz:

O sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava

atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me, orgulhosamente, no meio da

família e dos amigos, qie me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes;

vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de

capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver.

Mesmo quando julga, através do sono, acessar sua alma interior, o sonho sonha

com a exterior. Em resumo, sua alma interior é a exterior; Jacobina é pura e unicamente

o senhor alferes. Somente alma exterior. Por isso, uma vez desaparecida as pessoas que

o chamavam pelo que realmente era, de senhor alferes, não há sequer porque existir.

Algo disso talvez possa explicar o porque, no começo do conto, o narrador em

terceira pessoa hesita entre quatro ou cinco pessoas. Com efeito, uma dessas pessoas, ao

que parece, nunca foi, de fato, uma pessoa. Era só mera casca e aparência, não podendo

ser possível afirmar se era real ou não.

VI – Conclusões

Tudo isso são explicações possíveis. Contudo, vocês hão de convir comigo que

são um tanto inespecíficas. Afinal, ela parte do pressuposto de universalidade. Isto é, de

que todos vivemos em um mundo de aparências e, uma vez desfeito este mundo, não há

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nenhuma humanidade por debaixo do véu. Como na imagem romântica da máscara que,

por de baixo, não esconde rosto nenhum, apenas o vazio. Em resumo, não há nenhum

euzinho que possamos abraçar a noite antes de dormir; somente a casca da vida social.

Uma teoria que se aplica a todo mundo sem restrições, assim como também a

teoria das duas almas. Porém, devemos sempre lembrar que se os ouvintes de Jacobina

não podem questioná-lo, com risco de ver o narrador interromper o relato, nós podemos

e vamos. Sem desmentir totalmente a teoria elaborada pelo herói, vamos, ao invés disso,

dar mais especificidade, tentar desfazer essa noção de universalidade que se aplica a

todos os homens. Até porque, Jacobina não é qualquer um: é um alferes da Guarda

Nacional, cuja alma exterior é a farda.

Já comentamos rapidamente que a Guarda Nacional era uma instituição antiga,

dos tempos da Regência, que esteve muito ligada ao funcionamento do Segundo

Império, mas que, na época do conto, 1882, vésperas da Proclamação da República, já

estava um tanto antiga e obsoleta – tanto que, em 1922, acaba por ser incorporada pelo

exército. Ora, se esta instituição civil-militar esteve a serviço da ordem no governo de

Pedro II, devemos nos perguntar qual era o risco que deveria conter para a manutenção

do Império.

Acertou quem respondeu a escravidão. Não os escravos propriamente, mas sim o

risco de rebelião que poderia por abaixo toda ordem econômica e política do Brasil

Império. A Guarda Nacional, por este ângulo, esteve intimamente relacionada com a

escravidão que, como sabemos, seria abolida no fim do Império e início da República -

sem que isso garantisse a integração social do negro. Ora, daí o caráter atrasado desta

instituição a que Jacobina, entretanto, está ligado enquanto alferes.

Neste sentido, é curioso que o herói só sinta o esvaziamento de sua alma exterior

quando, justamente, os escravos fogem. Não quando tia Marcolina se vai, mas sim

quando aqueles cujo estatuto de escravos afirma a condição de existência da alma

exterior (a farda de alferes).

Não à toa, como já disse a vocês, o escravo é e não é humano, é e não é

mercadoria. Este estatuto de ser e não ser é o que garante que Jacobina, no caso o

senhor alferes, possa ser. Para que a personagem seja alguém, ainda que esse alguém

seja somente a farda do cargo que ocupa, revelando um total esvaziamento de

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interioridade, é preciso que se anule a individualidade daqueles cuja Guarda Nacional

reprime.

Em termos marxistas, o que fica de fora do conto, mas é fundamental para

compreender porque Jacobina ao se mirar no espelho não enxerga nada é a escravidão,

enquanto principal instituição do Segundo Império. É ela que o que justifica a existência

da Guarda Nacional. Portanto, Jacobina, o alferes, deve o cargo à escravidão e, na

ausência dos escravos, ele não é e não pode ser nada.

Para concluir, os escravos fugidos de O espelho são o duplo de Jacobina. Um

não existe sem o outro, o outro não existe sem o um. Tanto é assim que, desesperado

por não ter visto nada no espelho, o herói tem a ideia de vestir a farda e tentar a sorte de

novo em frente ao objeto. E aí sim, vê seus contornos devolvidos. Sua individualidade,

se é que podemos chama-la assim, restituída. Uma individualidade feita de nada mais do

que a aparência do mundo social, da casca e da exterioridade, mas que, agora, sabemos

o que permite a existência deste mundo de faz de conta: os horrores da escravidão que

ficam escondidos; tal como o valor de troca permite apagar os rastros de trabalho

investido na produção das mercadorias.

Creio que assim demos especificidade à generalidade da teoria do conto. Não se

trata de aplicar universalmente as ideias de Jacobina; acreditar que todo homem têm

duas almas e que, destituído de uma delas, não se pode viver. A alma exterior em

questão é a farda de alferes da Guarda Nacional e, sendo íntima da escravidão, em sua

ausência, não pode existir. O olhar dos outros que mencionamos no início desta fala não

é o olhar de qualquer um, do cotidiano das relações. É o olhar mortificado do escravo

para o seu senhor; é somente quando este nega a individualidade daquele que pode-se

dizer, de fato, senhor. De “esboço de uma nova teoria da alma humana”, O espelho é, na

verdade, uma grande lição do funcionamento social brasileiro que, por mais que queira

esconder tudo aquilo que lhe envergonha diante dos olhos do mundo civilizando,

criando um mundo de ilusões mais real do que a realidade, acaba por revelar a

brutalidade que comanda a marcha do progresso capitalista.