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LITERATURA E CINEMA: RESSIGNIFICANDO LEITURAS LITERÁRIAS
Amauri de Lima1
Antonio Donizeti da Cruz2 Resumo: Este artigo apresenta os resultados do estudo realizado a partir do uso do cinema como um recurso de estimulo para a leitura de obras literárias na escola, levado à prática durante o desenvolvimento do projeto de intervenção pedagógica do PDE – Programa Desenvolvimento Educacional do Paraná, no Colégio Estadual Euclides da Cunha – Ensino Fundamental e Médio, localizado no município de Matelândia, PR. O projeto teve como público alvo alunos do 1º Ano do Ensino Médio e objetivou a realização de um estudo comparativo entre arte literária e arte cinematográfica; análise de obras cinematográficas adaptadas a partir de obras literárias; e produção de releituras de textos literários em formato de vídeo. Como resultado os alunos desenvolveram pequenos filmes e o estudo permitiu avaliar que o ensino de literatura, a partir de recursos midiáticos em sala de aula, pode contribuir para que o estudante conceba o texto literário como parte integrante de sua cultura e, ao ler, seja capaz de refletir sobre arte e sobre o seu próprio cotidiano. Palavras-chave: literatura, cinema, releitura, ressignificação.
INTRODUÇÃO
Ao discutir o ensino de literatura em texto de 1999, intitulado “O prazer e o
dever”, o poeta português e professor de literatura, Fernando Pinto do Amaral, faz
algumas reflexões sobre o assunto. Ele afirma que,
Quando se discutem os modos (ou até a relevância) do ensino da literatura colocam-se desde logo problemas de transmissão que relevam de uma esfera essencialmente subjetiva, na qual a motivação de cada aluno e a personalidade do professor desempenham um papel provavelmente mais decisivo do que em matérias de conteúdo científico. (...) Nenhum professor de literatura deverá inibir-se de por em prática leituras, comentários ou interpretações que estimulem nos estudantes a sensibilidade, o sentido crítico, a capacidade argumentativa, e sejam assim susceptíveis der lançar alguma luz sobre essa realidade indefinível a que chamamos universo literário. (AMARAL, 1999, p. 92,)
Buscando, portanto, “lançar alguma luz sobre essa realidade indefinível a que
chamamos universo literário” é que se organizou este trabalho. A ideia básica esteve
em torno de pensar e aproveitar o cinema como um recurso de estimulo para a
leitura de obras literárias na escola. Entendemos que o ensino de literatura pode
apontar experiências gratificantes por defrontar o aluno com uma grande quantidade
1 Professor da Rede Estadual de Educação do Estado do Paraná - Matelândia, Paraná.
2 Professor Associado da Unioeste - Campus de Cascavel, Paraná.
de textos, desde os mais simples e motivadores até os mais complexos que
necessitam da intervenção do professor para sensibilização e motivação. Do mesmo
modo entendemos que não há como ensinar literatura sem contato direto com o
texto literário. Entretanto, não podemos considerar o ensino de literatura e a leitura
associados apenas a procedimentos tradicionais que valorizam a figura do leitor
contemplativo, pois há uma multiplicidade de textos, inclusive midiáticos, que fazem
parte da vida do estudante. Por isso avaliamos o cinema como uma possibilidade de
abertura multicultural para contextualizarmos, a partir da escola, a intersecção do
texto literário com as mais diversas e heterogêneas formas de linguagem.
Ao aproximar texto literário e o cinema almejamos ampliar a experiência
estética dos alunos e ao mesmo tempo refletir sobre nossa função como professores
de literatura, pois a tarefa de buscar interesse do estudo do aluno pelo texto literário
continua sendo um grande desafio. Amaral (1999) lembra que um texto literário pode
implicar maior ou menor grau de experiência estética. Para ele, a leitura é “um ato
que envolve a personalidade de quem lê e contribui para lhe provocar algum prazer
ou alguma perturbação” (AMARAL, 1993, p. 93). Existe, pois, a necessidade do
contato com o texto literário. Este contato, como sabemos, é sempre complexo num
ambiente tão plural como o da escola. Ainda de acordo com Amaral (1999), neste
ponto reside “o fulcro da questão, já que – ao contrário do que se verifica noutras
disciplinas mais facilmente transmissíveis – o ensino/aprendizagem da literatura
joga-se sempre na eventual capacidade de partilhar com os outros o prazer de ler, a
fruição individual decorrente do ato da leitura” (AMARAL, 1999, p. 93).
Na busca desta capacidade de partilhar com os outros o prazer de ler,
objetivamos aproximar literatura e cinema e propomos a realização de estudo
comparado entre arte literária e arte cinematográfica. Esta intervenção pedagógica
fez parte do PDE - Programa de Desenvolvimento Educacional do Estado do Paraná
e foi levada à prática no Colégio Estadual Euclides da Cunha – Ensino Fundamental
e Médio, localizando no município de Matelândia – PR. A partir do eixo temático “O
uso das tecnologias no fomento à leitura literária” o trabalho envolveu análise de
obras cinematográficas adaptadas a partir de obras literárias; criação de material
didático orientando estratégias de leitura, análise e crítica literária e cinematográfica
e, por fim, a produção de releituras de textos literários em formato de vídeo, nas
quais os estudantes do 1º Ano do Ensino Médio, produziram filmes a partir de suas
próprias experiências, ressignificando leituras literárias. Como resultado desta
experiência de ensino/aprendizagem de literatura roteiros de cinema foram escritos
e houve a produção de nove filmes. Alguns com significativa criatividade e
elaboração, outros fugiram das características cinematográficas, contudo o que
houve de mais relevante foi a experiência de muitos alunos se tornarem sujeitos do
ato de ler e ao mesmo tempo apresentarem em vídeo suas releituras literárias ou
suas releituras de temas cotidianos como amor e violência.
O CINEMA COMO OPÇÃO METODOLÓGICA
Entre as diferentes alternativas metodológicas para encaminhar
possibilidades de aprendizagem em sala de aula está o trabalho com cinema.
Napolitano sustenta que o cinema ajuda a escola a “reencontrar a cultura ao mesmo
tempo cotidiana e elevada, pois o cinema é o campo no qual a estética, o lazer, a
ideologia e os valores sociais mais amplos são sistematizados numa mesma obra de
arte” (NAPOLITANO, 2010, p. 12).
Faraco (2002) também faz referência ao cinema como forma de contemplar
textos das diferentes esferas sociais na escola. Para ele,
[...] (as artes visuais, a música, o cinema, a fotografia, a semiologia gráfica, o vídeo, a televisão, o rádio, a publicidade, os quadrinhos, as charges, a multimídia e todas as formas infográficas ou qualquer outro meio linguageiro criado pelo homem), percebendo seu chão comum (são todas práticas sociais, discursivas) e suas especificidades (seus diferentes suportes tecnológicos, seus diferentes modos de composição e de geração de significados). (FARACO, 2002, p.101, apud DCEs, 2009, p. 49).
Entendido como uma prática discursiva presente na escola o cinema, ao se
tornar um dos recursos midiáticos mais acessíveis nos últimos anos, alimenta
caminhos para aproximar os estudantes do texto literário, incentivando o hábito da
leitura, da escrita e da oralidade. No primeiro caso porque os filmes ao fazerem
referência a obras literárias podem suscitar o interesse por obras escritas (mesmo
que o filme ou documentário não seja uma adaptação direta); no segundo caso por
permitir que os estudantes preparem roteiros para criar releituras dos próprios filmes
ou de obras literárias afins à obra assistida; e, por último, a oralidade, pois abre
espaço para que os próprios alunos interpretem e encenem seus textos por ocasião
de um trabalho de montagem das cenas. Segundo Gagnebin (2006) é justamente
porque não estamos mais inseridos em uma tradição de memória viva, oral,
comunitária e coletiva, como dizia Maurice Halbwachs, é que temos o sentimento tão
forte da caducidade das existências e das obras humanas, que precisamos inventar
estratégias de conservação e mecanismos de lembrança (GAGNEBIN, 2006, p. 97).
O cinema é certamente um destes mecanismos, porém, para produzi-lo é
necessário a criação de um projeto, de um roteiro. A preparação de um roteiro
requer, necessariamente, a produção escrita. Assim, a produção escrita neste
projeto de intervenção consistiu na elaboração de textos do gênero roteiro,
produzidos de forma integrada com o cotidiano do aluno a partir das releituras das
obras cinematográficas e literárias, não de forma descritiva e realística, mas sim de
uma forma subjetiva e fictícia. Gagnebin (2006), afirma que escrever algo é um ato
muito mais poético do que próximo da realidade,
Paul Ricoeur defende a respeito da linguagem poética (nós iremos ver que a história esta mais próxima da poiesis, em seu sentido amplo, que da descrição positiva), a possibilidade de uma referência não descritiva ao mundo e sugere que, se temos dificuldade para não sermos vítimas de uma definição empobrecedora da verdade, é que ratificamos de maneira não crítica um certo conceito de verdade, definição pela adequação a um real de objetos e submetido ao critério da verificação e da falsificação empíricos (GAGNEBIN, 2006, p. 42).
Em outras palavras significa dizer que a verdade é produzida socialmente e é
nesta experiência para construir a noção de verdade que o homem produz sua
atividade estética, pois “entre a palavra que anuncia e a realidade que ela quer
apreender, sempre haverá um abismo que ela pode, sim, atravessar, mas nunca
abolir” (GAGNEBIN, 2006, p. 209).
LITERATURA E RESSIGNIFICAÇÃO
Para Vazquez (2010), não se pode afastar o elemento subjetivo da criação
artística, construído, em grande parte, pela concepção do mundo do escritor. Todo
grande artista supera o marco de suas limitações ideológicas e nos fornece uma
verdade sobre a realidade. Este processo de produção estética é significativo para
refletirmos as possibilidades de releituras que o cinema apresenta para uma mesma
realidade. Thompson (2009), ao abordar as mídias de uma forma mais ampla,
compreende que a recepção dos produtos da mídia é um processo mais ativo e
criativo do que o mito do assistente passivo sugere. Para ele o sentido que os
indivíduos dão aos produtos da mídia varia de acordo com a formação e as
condições sociais de cada um, de tal maneira que a mesma mensagem pode ser
entendida de várias maneiras em diferentes contextos (THOMPSON, 2009, p. 42).
Para Stam (2008), podemos questionar até mesmo se a fidelidade estrita é
possível,
Uma adaptação é automaticamente diferente e original devido à mudança do meio de comunicação. A passagem de um meio unicamente verbal, como o romance para um meio multifacetado como o filme, que pode jogar não somente com palavras (escritas e faladas), mas sina com a música, efeitos sonoros e imagens fotográficas animadas, explica a pouca probabilidade de uma fidelidade literal, que eu sugeriria qualificar até mesmo de indesejável (STAM, 2008, p. 20).
Ainda segundo Stam (2008), a teoria da intertextualidade de Julia Kristeva,
com raízes no “dialogismo” de Bakhtin, “enfatizou a interminável permutação de
traços textuais, e não a fidelidade de um texto posterior em relação a um anterior, o
que facilitou uma abordagem menos discriminatória” (STAM, 2008, p. 20).
Isso implica afirmar que podemos produzir novos textos a partir de uma obra
“original”, usando artifícios – poderíamos chamar de estilo – situados historicamente.
Segundo Brait,
As formas possíveis do discurso citado, que têm historicidade e não permanecem idênticas ao longo do tempo e nas diferentes culturas, assumem também a condição de estilo, confirmando a ideia de que o estilo, longe de esgotar na autenticidade de um indivíduo, inscreve-se na língua e nos seus usos historicamente situados (BRAIT, 2012, p. 83).
Ao propormos um trabalho que envolva a composição, de forma direta ou
indireta, de textos literários e textos cinematográficos, produzidos por estudantes de
ensino médio, abrimos passagem de construção significativa para as leituras de
tipos culturais em diferentes dimensões da comunicação social que podem ir além
do que chamamos adaptação. Segundo Stam,
A teoria da adaptação dispõe de um rico universo de termos e tropos – tradução, realização, leitura, crítica, dialogização, canibalização, transmutação, transfiguração, encarnação, transmofrificação, transcodificação, desempenho, significação, reescrita, detournement – que trazem à luz uma diferente dimensão de adaptação (STAM, 2008, p. 21).
Da mesma forma que qualquer texto literário pode gerar uma infinidade de
leituras, assim também qualquer texto literário pode gerar uma série de adaptações
ou ressignifcações. Desta forma, ainda segundo Stam, “uma adaptação não é tanto
a ressuscitação de uma palavra original, mas uma volta num processo dialógico em
andamento” (STAM, 2008, p. 21).
No horizonte desta infinidade de possibilidades de criação é que os filmes
produzidos pelos estudantes ajudam a ressignificar leituras literárias e colaboram
para dar nova dinâmica de tratamento ao texto literário em sala de aula, pois é
possível que os estudantes vejam-se como produtores de arte, analisando seus
trabalhos como adaptações fílmicas que “caem no contínuo redemoinho de
transformações e referências intertextuais, de textos que geram outros textos num
interminável processo de reciclagem, transformação e transmutação, sem um poder
de origem visível” (STAM, 2008, 22).
A MÍDIA E A INTERAÇÃO SOCIAL
Para que haja produção de arte a recepção dos filmes deve ser vista como
atividade, não como algo passivo. Thompson (2009) salienta que,
(...) a recepção de produtos da mídia é uma rotina, uma atividade prática que muitos indivíduos já integram como parte de suas vidas cotidianas. Se quisermos entender a natureza da recepção, deveremos nos aproximar dela com uma sensibilidade para os aspectos rotineiros e práticos da atividade receptiva. (...) Mesmo que os indivíduos tenham pequenos ou quase nenhum controle sobre os conteúdos das matérias simbólicas que lhe são oferecidas, eles os podem usar, trabalhar e reelaborar de maneira totalmente alheia às intenções ou aos objetivos dos produtores. (THOMPSON, 2009, p. 42)
Isso pode ocorrer, sobretudo, porque a recepção é uma atividade situada,
marcada historicamente. Segundo Sobral,
A constituição da consciência e a construção do mundo pelas categorias da consciência são processos que se dão situadamente, na sociedade e na história, em vez de no plano essencial do “humano” idealista, dado que só pode ver o mundo, natural ou social, a partir de uma dada posição, o que não implica negar a existência concreta do mundo dado, mas postular que sua apreensão é sempre situada (SOBRAL, 2012, p. 107).
Segundo Thompson (2009), além da atividade de recepção ser situada e de
rotina, também pode ser considerada uma realização especializada, pois depende
de habilidades e competências adquiridas que os indivíduos mostram no processo
de recepção. É neste ponto que a recepção dos produtos da mídia é entendida por
ele como fundamentalmente um processo hermenêutico,
Os indivíduos que recebem os produtos da mídia são geralmente envolvidos num processo de interpretação através do qual esses produtos adquirem sentido. (...) Adquirir é simplesmente tomar posse de, como se adquire outros objetos de consumo: carros, roupas, etc. Mas a recepção de um produto da mídia implica mais do que isso: implica um certo grau de atenção e de atividade interpretativa da parte do receptor. O indivíduo que recebe um produto da mídia deve, até certo ponto, prestar atenção (ler, olhar, escutar, etc.); e ao fazer isto, ele se ocupa inteiramente numa atividade de entendimento do conteúdo simbólico transmitido pelo produto. (THOMPSON, 2009, p. 44)
As mídias colaboram para que o indivíduo vá construindo implicitamente, uma
compreensão de si mesmo, uma consciência daquilo que ele é e de onde ele está
situado no tempo e no espaço. É o que Thompson (2009) chama de processo de
autoformação, no qual as pessoas vão se apropriando de mensagens da mídia para
estabelecer formas de interação social.
À medida que os indivíduos tiveram acesso aos produtos da mídia, eles puderam também manter um certo distanciamento do conteúdo simbólico das interações face a face e das formas de autoridade que prevalecem em seus contextos sociais (THOMPSON, 2009, p. 160).
Com a mídia o “processo de autoformação tornou-se mais reflexivo e aberto”,
isso significa dizer que os indivíduos recorrem a conteúdos simbólicos transmitidos
pela mídia para construir suas próprias identidades libertando-se de certo modo da
autoridade prevalecida nas relações face a face (THOMPSON, 2009, p. 160).
Ao ressignificar as leituras literárias, portanto, os estudantes praticaram
autoformação, pois ao mesmo tempo que criaram arte, estiveram refletindo sobre a
sociedade que os cerca e sobre a sua própria identidade como indivíduos.
METODOLOGIA
Objetivando uma prática investigativa historicamente situada e construída sob
um fenômeno educativo determinado, o presente estudo desenvolveu reflexões
sobre a experiência o uso das tecnologias no fomento à leitura literária. Para tanto
desenvolvemos estratégias de aproximação entre texto literário e cinema buscando
incentivar a leitura de textos literários e a escrita de roteiros de cinema em duas
turmas de 1º Ano do Ensino Médio, do Colégio Estadual Euclides da Cunha,
localizado no município de Matelândia – PR, totalizando 64 alunos, com faixa etária
entre 13 e 15 anos (em sua maioria).
Aplicamos uma metodologia de pesquisa participante, na qual houve
considerável nível de reflexão sobre nossa própria prática docente. Consideramos
esta prática como práxis num processo dialético que, a cada momento, sintetiza as
contradições da realidade social em que se insere, e assim, diferencia-se de uma
prática que se organiza de forma a-histórica.
Para a realização das atividades inicialmente foram selecionados algumas
produções literárias e cinematográficas:
1) Narradores de Javé, filme de Eliane Caffe (2004); 2) A troca e a tarefa, conto de Lygia Bojunga Nunes (1985); 3) Antes que o mundo acabe, livro de Marcelo Carneiro da Cunha (2000); 4) Antes que o mundo acabe, filme de Ana Luiza de Azevedo (2009); 5) A hora da estrela, romance de Clarice Lispector (1977); 6) A hora da estrela, filme de Suzana do Amaral (1985).
Todas as obras selecionadas têm, entre outros motes, a representação de
experiências de escrita, memória e imaginário em seu roteiro. Estas características
aparecem de forma direta, como é o caso de Narradores de Javé; A troca e a tarefa;
ou de forma indireta, como em Antes que o mundo acabe e A hora da estrela. Em
meio a textos simples e complexos as análises buscaram, além de trazer uma
demanda reflexiva sobre o imperativo da escrita sobre a vida dos autores e sobre o
desenvolvimento da própria ficção, atender a uma certa expectativa de leitura dos
estudantes desta faixa etária, pois como observa Tamaru (2006), o espectador pode
vivenciar a multiplicidade de sentidos dos textos e imagens,
A linguagem que o cinema adota em suas cenas é composta por signos imagéticos. Ao atingir o teor poético, o cinema pode recuperar os movimentos e expressões esquecidos pela arte da palavra. (...) O cinema traduziu palavras em imagens. O espectador atual pode ver o filme e pode ler a obra em que este foi inspirado. Mas terá ele duas obras distintas: enquanto uma é feita de palavras, encerrando em si a arte poética dos símbolos da escrita, a outra é composta de homens e objetos filmados analogicamente à realidade. Cabe ao espectador viver a multiplicidade de sentidos que são apresentados a ele, seja pela literatura, seja pelo cinema (TAMAURU, 2006, p. 148).
Ao trabalhar as obras buscamos discutir as representações de escrita na
literatura e no cinema, sem deixar de lado outros temas perenes apresentados,
como violência, morte e a transição entre adolescência e vida adulta ou transição
entre espaços geográficos. Para conduzir a realização dos estudos foi criado
material didático que orientou estratégias de leitura, análise e crítica das obras e
propuseram aproximar texto literário e cinema, num processo que conduzisse os
estudantes a refletir sobre como se dá o processo de produção artística não apenas
escrita, mas também em vídeo.
O material didático, construído como Unidade Didática teve 5 partes, nas
quais foram destacados temas como o trabalho de escrita do escritor (literatura) e do
roteirista (cinema); como escrever roteiros, realizar filmagens e também como são
construídas releituras, ressignificando diferentes obras de arte. Após realizar
leituras, debates e discussões sobre as obras literárias e assistir aos filmes, bem
como analisá-los e debatê-los em grupo, foram realizados estudos comparativos
entre arte literária e arte cinematográfica, especialmente as obras literárias
selecionadas para este trabalho e que foram alvo de adaptação para o cinema (A
hora da estrela e Antes que o mundo acabe).
A etapa seguinte consistiu na organização e produção escrita de roteiros de
cinema que estivessem pautados em releituras de textos literários (contos, poemas,
capítulos de romances) que os estudantes tivessem lido ou estivem lendo durante a
aplicação do projeto. Para este momento do trabalho o tema foi de livre escolha dos
estudantes e o roteiro elaborado poderia ser de forma hibrida ou hipertextual,
envolvendo diferentes gêneros textuais, desde que os mesmos fossem filmáveis, ou
seja, pudessem ser transformados em vídeos (filmes) produzidos, filmados e
montados pelos próprios estudantes.
Após a elaboração dos roteiros os estudantes receberam orientações básicas
de filmagem e montagem de filmes, com a utilização de softwares de acesso livre
para tratamento das imagens.
O passo seguinte foi a elaboração dos filmes. Para tanto os estudantes foram
divididos em grupos e escolheram o melhor roteiro para a montagem do trabalho
final. Deste processo resultaram nove pequenos filmes, com duração entre dois e
quinze minutos. Alguns com significativa criatividade e organização das cenas,
outros acabaram não atingindo o que havia sido sugerido, mas todos contaram com
envolvimento e comprometimento da maioria dos estudantes para a realização da
atividade proposta.
Por fim, os trabalhos “Coração comido”; “O preço de uma traição”; “Uma nova
versão de Chapeuzinho Verde”; “As três porquinhas”; “A orelha de Van Gogh”; “A
receita de bolo”; “Highway to hell (Clip)”; “Dia de Lazer”; e “Grace: um poema para a
vida”, foram apresentados no Festival de Literatura, Mídia e Cinema com o intuito de
divulgar textos literários, filmes e releituras para a comunidade escolar.
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Esta experiência educacional nos conduz diretamente sobre a realidade da
escola e da sala de aula e, ao mesmo tempo, nos convida a estarmos motivados
para discutir nossa própria ação como professores. Abordar literatura e cinema,
fazendo referência a como escritores e cineastas buscam transmitir mensagens
sobre a realidade que nos cerca é fundamental, pois embora a partir de métodos
diferentes, ambos (escritores e cineastas) utilizam a linguagem como estratégia.
Tamaru (2006) assegura que, “o escritor recorta de seu objeto aquilo que interessa à
sua descrição, elegendo-o segundo a utilidade ou emoção que suscita” e, da mesma
forma, o “diretor de cinema, também terá que eleger os detalhes que melhor contêm
a expressão buscada na imagem” (TAMARU, 2006, p. 132-133).
Esta possibilidade de revelar aos estudantes que, independentemente do
processo, das estratégias e do suporte utilizado, o artista busca o que o que há de
melhor, segundo sua escolha, para criar determinada obra, ressignificando o que lhe
é apresentado socialmente, esteve na essência desta atividade. Se ensino de
literatura passa pela leitura, o trabalho com o cinema em sala de aula pode contribuir
para que o estudante conceba o texto literário como parte integrante de sua cultura
e, ao ler, seja capaz de refletir sobre arte e sobre o seu próprio cotidiano. Vázquez
(2010), considera que a arte é, pois, uma das formas pelas quais o mundo, a
realidade, revela-se ao homem. Essa realidade, em princípio, encontra-se em
constante processo de mudança; daí a necessidade de que variem os meios de
expressão. A historicidade da realidade objetiva impõe, ao mesmo tempo, uma
historicidade dos meios expressivos, e com isso, determina o próprio movimento da
arte. (VÁZQUES, 2010, p. 36).
O trabalho por nós desenvolvido partiu da perspectiva apontada pelas
Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa do Estado do Paraná, indicando que “é
tarefa da escola possibilitar que seus alunos participem de diferentes práticas sociais
que utilizem a leitura, a escrita e a oralidade, com a finalidade de inseri-los nas
diversas esferas de interação” (SEED, 2009, p. 48). Ao elaborar filmes como
atividade pedagógica os estudantes vivenciaram estas práticas sociais que
possibilitam exercícios de leitura, escrita e oralidade, utilizando recursos midiáticos.
As atividades propostas buscaram valorizar as múltiplas linguagens presentes na
escola, pois acreditamos que há condições do professor se aproveitar desta
variedade de interferências externas, como a influência das mídias, para propor
alternativas de reflexão do processo ensino aprendizagem e implantação de novos
mecanismos de aprimoramento de suas práticas de ensino.
O uso do cinema como fator motivador para o ensino de literatura sempre é
bem recebido, como ficou evidente na participação de professores da rede estadual
de ensino no GTR (Grupo de Trabalho em Rede), onde discutimos a implementação
deste projeto. Da mesma forma percebemos que o público alvo da pesquisa (alunos
do 1º Ano do Ensino Médio) foram estimulados, talvez persuadidos, a participar das
atividades, exatamente por envolver trabalho com imagem em movimento, já que
este recurso se estabelece como um dos mais utilizados expedientes tecnológicos
apresentados à sociedade contemporânea para envolver, abordar e discutir a
própria sociedade. Sobre a questão da persuasão, Paro (2010, p. 55), afirma que
“suposta uma educação democrática, a única maneira de exercício do poder
envolvida no processo pedagógico é a persuasão. A persuasão, na perspectiva do
diálogo”. Com este ponto de vista nossa ação buscou o desenvolvimento de uma
proposta dialógica que envolvesse a participação ativa dos estudantes de forma que
os mesmos admitissem a possibilidade de executar releituras literárias como uma
dinâmica de releituras do próprio cotidiano e de suas próprias realidades, como ficou
explicito na temática dos filmes produzidos.
A EXPERIÊNCIA DO GTR
Fazendo parte das atividades do PDE, o GTR – Grupo de Trabalho em Rede,
foi fundamental para a reflexão sobre as possibilidades e limitações da
implementação do projeto. O GTR contou com a participação de um grupo
experiente e dinâmico, com pessoas dedicadas ao trabalho e, sobretudo, com
significativas trocas de experiência para o aprimoramento do trabalho docente. Da
capital Curitiba a Foz do Iguaçu, atravessamos o Paraná com a participação de
colegas de Curitiba (quatro); Cascavel (dois); Maringá, Umuarama, Foz do Iguaçu,
Paranavaí, São José dos Pinhais, Catanduvas, Cornélio Procópio, Rolândia e
Matelândia, totalizando quinze professores. A seguir apontamos algumas
contribuições apresentadas sobre a implementação do projeto “Literatura e cinema:
ressignificando leituras literárias”. As considerações foram feitas quando
buscávamos saber se o projeto tinha possibilidades de implantação na escola de
atuação dos participantes do GTR, bem como se eles haviam desenvolvido iniciativa
semelhante. Praticamente todos os participantes mencionaram ter desenvolvido
algum tipo de trabalho voltado ao uso do cinema e das mídias em sala de aula. Uma
das participantes, inclusive, atua no Curso Técnico de Nível Médio, em Produção de
Áudio e Vídeo, no Colégio Estadual do Paraná, em Curitiba e já desenvolveu
análises de obras, como Memórias Póstumas de Brás Cubas, A Hora da
Estrela, Benjamin, Dom Casmurro, o conto A Cartomante; O Nome da Rosa e suas
respectivas adaptações para o cinema. Temas como preconceito, cultura,
regionalismo, intertextualidade, violências, escolas literárias, entre outros foram
citados pelos participantes como práticas desenvolvidas.
O que podemos perceber, de forma geral, é que há sensibilidade para novos
desafios e inquietação pela busca de estratégias que contribuam para a melhoria do
processo ensino-aprendizagem. Reconhecemos, por fim, que temos limitadores
diversos no nosso trabalho, como falta de tempo, espaço físico apropriado e
equipamentos adequados para este tipo de atividade, mas o GTR reuniu exemplos e
ideias de trabalhos desenvolvidos a partir de pelo menos vinte obras
cinematográficas e outras dezenas de obras literárias que possibilitam interação
entre as duas artes. A discussão foi riquíssima apontando uma visão de mundo e de
linguagem contextualizada com os desafios da educação pública paranaense.
Enfim, a mensagem condensada no GTR é que uma prática pedagógica,
concentrando cinema e literatura pode ser uma maneira de unir linguagens
diferentes e tornar o ensino de literatura mais atrativo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A oportunidade de reunir atividades de integração teórico-práticas, abrindo
espaços para aperfeiçoamento e reflexão por meio do regresso dos professores da
Rede Estadual de Ensino às IES (Instituição de Ensino Superior) por si só já seria
um grande mérito do PDE, mas o programa ganha outras vicissitudes porque
transfere ao professor a responsabilidade de criar alternativas metodológicas que
contribuam para o enriquecimento de sua própria prática e para a melhoria da
qualidade ensino. O docente que geralmente é acostumado a aplicar experiências
pensadas e elaboradas por outros, de forma ampla e descontextualizada, é
convidado a ser produtor da sua própria prática e ao mesmo tempo reeditar esta
produção por meio da troca de experiências com outros colegas educadores em
ambiente virtual, onde pode atuar como professor-tutor. Isso tudo faz desta ação
metodológica um rico caminho dialógico e hibrido que vai sendo formado e
transformado simultaneamente.
Assim como todo escritor, seja ele amador ou profissional, em algum
momento de sua vida, já se questionou sobre as razões de se escrever, certamente
cada educador já deve ter se questionado sobre as razões de ensinar. Se na
literatura a escrita é tema recorrente, em educação, o ensino deve também ser
recorrente, ou seja, devemos sempre estar questionando sobre porque ensinamos e,
principalmente, como ensinamos, o que ensinamos e para quem ensinamos. Ao
tentar responder estas questões provavelmente não teremos respostas definitivas e
abriremos novos caminhos e novos desafios para repensar nossas práticas.
Aproximar cinema e literatura como estratégia metodológica para o ensino de
literatura não é nenhuma novidade, mas ao mesmo tempo é uma possibilidade que
se renova, sobretudo pelo maior acesso a equipamentos midiáticos por estudantes e
professores. Utilizar estes recursos pode não resolver o desafio do ensino de
literatura na escola, mas contribui para solidificar conhecimentos, ampliar a
percepção de mundo e expandir a sensibilidade estética, diversificando o contato
com as múltiplas linguagens que interferem sobre a formação do indivíduo e
ressignificando sua condição de aprendiz.
REFERÊNCIAS
AMARAL, Fernando Pinto do. O prazer e o dever. In: Ensino da literatura. Reflexões e propostas a contracorrente. Org. Maria Isabel Rocheta e Margarida Brada Neves. Edições Cosmos: Universidade de Lisboa, 1999. AMARAL, Suzana do. A hora da estrela, 96 min. Embrafilmes, Rio de Janeiro, 1985.
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