Literatura e leitor na era do hipertexto · 2013-01-24 · hipertexto e em discussões em torno...

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121 Cadernos de Letras da UFF nº 32 - Letras & Infovias LITERATURA E LEITOR NA ERA DO HIPERTEXTO Regina Helena M. A. Corrêa RESUMO A tendência experimental da literatura no século XX aproximou o ciberespaço do tex- to literário, gerando hipertextos construí- dos a partir de programas de computador, como o Storyspace, textos com a participa- ção de vários co-autores gerados em pági- nas de discussão na Internet e hipertextos disponibilizados em páginas na Internet. Este artigo analisa alguns aspectos da re- lação leitor/hipertexto, com base em estu- dos que discutem a resposta do leitor em textos e hipertextos. Palavras-chave: literatura; hipertexto; lei- tor. Introdução As relações autor/texto/leitor sofreram grandes modificações ao lon- go do tempo, como conseqüência de mudanças sociais, históricas e tecnológicas. Muito há de se discutir e descobrir sobre o trinômio autor/tex- to/leitor na era da informática. Os estudos ainda engatinham em busca de teorias que possam embasar, principalmente, as análises inerentes ao hipertexto e em discussões em torno destes três principais elementos do fazer literário. Em ensaios anteriores sobre autoria 1 e hipertexto 2 percebeu-se que ocorreram mais modificações em relação à autoria do que em relação ao 1 CORRÊA, Regina. “Autoria e Virtualidade”. 2005. No prelo para publicação em Nem Fruta Nem Flor. Londrina: Editora Humanidades, 2006. 2 CORRÊA, Regina. “Literatura, Texto e Hipertexto.” 2006. Artigo aceito pela Terra Roxa e Outras Terras – Revista de Estudos Literários, vol.8. (www.uel.br/cch/pos/letras/terraroxa).

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Cadernos de Letras da UFF nº 32 - Letras & Infovias

LITERATURA E LEITOR NA ERA DO HIPERTEXTO

Regina Helena M. A. Corrêa

RESUMO

A tendência experimental da literatura noséculo XX aproximou o ciberespaço do tex-to literário, gerando hipertextos construí-dos a partir de programas de computador,como o Storyspace, textos com a participa-ção de vários co-autores gerados em pági-nas de discussão na Internet e hipertextosdisponibilizados em páginas na Internet.Este artigo analisa alguns aspectos da re-lação leitor/hipertexto, com base em estu-dos que discutem a resposta do leitor emtextos e hipertextos.

Palavras-chave: literatura; hipertexto; lei-tor.

Introdução

As relações autor/texto/leitor sofreram grandes modificações ao lon-go do tempo, como conseqüência de mudanças sociais, históricas etecnológicas. Muito há de se discutir e descobrir sobre o trinômio autor/tex-to/leitor na era da informática. Os estudos ainda engatinham em busca deteorias que possam embasar, principalmente, as análises inerentes aohipertexto e em discussões em torno destes três principais elementos dofazer literário.

Em ensaios anteriores sobre autoria1 e hipertexto2 percebeu-se queocorreram mais modificações em relação à autoria do que em relação ao

1 CORRÊA, Regina. “Autoria e Virtualidade”. 2005. No prelo para publicação em Nem Fruta Nem Flor.Londrina: Editora Humanidades, 2006.

2 CORRÊA, Regina. “Literatura, Texto e Hipertexto.” 2006. Artigo aceito pela Terra Roxa e Outras Terras –Revista de Estudos Literários, vol.8. (www.uel.br/cch/pos/letras/terraroxa).

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texto, na chamada era cibernética. O autor parece ter se tornado uma enti-dade ainda mais abstrata, na medida em que o texto não só é concebido avárias mãos, portanto fruto da leitura e interpretação de vários outros textose da experiência literária e vivencial de vários co-autores, como o autor setornou ainda mais distante do texto, que não mais é um produto concreto,levado a eventos e livrarias para repetidos lançamentos. Ainda, um autorpode assumir várias identidades ou ser autor de vários textos; pode assumira autoria de textos que não são seus ou juntar aos seus textos trechos deoutros textos; ou até mesmo atribuir a outros (inclusive pessoas consagra-das) a autoria de textos dos quais não se sabe a procedência. Na mesmadireção estão os hipertextos em CD-ROM ou em sítios na Internet, que desve-lam um autor cada vez menos em controle dos significados do seu própriotexto, dadas as inúmeras possibilidades de leitura. O leitor estabelece asvárias combinações, na busca de continuidade e de um fim para narrativa.

Existe um certo consenso entre os pesquisadores de que a estruturado hipertexto pouco diferencia do texto impresso. A grande inovação estariamesmo relacionada à liberdade criativa que a hipermídia pôde proporcionar,já que se trata basicamente de um texto marcado por um sistema de remis-sivas, uma estrutura que sempre existiu, ainda de forma mais ou menosintuitiva. Os textos, literários ou não, sempre remeteram a outros textos, ou-tros lugares ou outros assuntos, definidos nas notas de rodapé, de fim decapítulo, de fim de livro, ou através de menções a outros textos que acaba-vam por despertar a curiosidade do leitor, na busca de referências em livros,enciclopédias, bibliotecas e livrarias. A verdade é que a utilização do compu-tador como recurso na literatura fez com que muitas das idéias, considera-das revolucionárias pelos escritores e limitadamente postas em prática napublicação do texto em papel, pudessem ser implementadas de forma maisconcreta. O que antes na literatura dependia exclusivamente da capacidadeimaginativa do leitor, agora pode ser vivenciado na associação hipertexto/hipermídia.

Este ensaio se concentra na discussão do leitor em face do seu papelenquanto elemento participante na construção dos sentidos do texto, da novaambientação física para o ato de leitura e das mudanças no formato de apre-sentação e construção do texto literário. As questões teóricas serão discuti-das tomando-se como base algumas produções literárias em hipertexto dis-poníveis na Internet.

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O leitor na história

A literatura, ao longo dos séculos, assumiu significados diferentes quevariavam de acordo com as mudanças sociais. Conseqüentemente, o autor,o texto e o leitor também desempenharam diferentes papéis sempre atrela-dos à função do texto enquanto elemento capaz de transmitir significados,de manipular, em maior ou menor intensidade, a sua audiência.

Jane P. Tompkins3 faz um excelente apanhado das variações em ter-mos de importância do trinômio autor/texto/leitor, da era clássica à atuali-dade. Para Tompkins, no período clássico, os significados do texto não têmimportância, uma vez que o efeito desejado era atingir imediatamente audiên-cia, sem que houvesse necessidade de interpretação4. Os comentários sobreliteratura, na era clássica, demonstram uma grande preocupação com a res-posta dos expectadores, já que a literatura é feita para ser lida e discutidaem conjunto. Autores como Platão, Aristóteles, Horácio e Longinus enfatizamo efeito da literatura sobre a audiência sob um ponto de vista completamen-te diferente dos críticos atuais. A reação da audiência podia ser percebida deimediato, portanto, a importância do texto era rapidamente detectada. Apreocupação se concentrava muito mais no autor, pois a reação da audiên-cia era um instrumento para o aperfeiçoamento do autor no domínio da arteda palavra.

For Longinus, language is a form of power and the purpose o

studying texts from the past is to acquire the skills that enable

one to wield that power. It follows from Longinus’s instrumental

view of language that he should use Herodotus to illustrate the

efficacy of direct address, ignoring what seem to us much deeper

questions, because in his perspective the ultimate goal in

studying literature is to become master of a technique.5

Desta forma, a diferença fundamental entre a crítica literária moder-na e a clássica está no papel desempenhado pela língua no contexto daescrita: o que antes era ação, atualmente é fundamentalmente significado.A língua exercia uma força superior sobre o comportamento humano e por

3 TOMPKINS, Jane P. “The reader in history: the changing shape of literary response”. In: TOMPKINS, JanP. (Ed.). Reader response criticism. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1994.p. 201-232.

4 Idem, p. 203.

5 Idem, p. 203.

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isso dominar a palavra significava a possibilidade de controle sobre a audi-ência. Para Platão, a resposta do leitor demonstrava “the effect that discoursehas on human behavior. What matters, ultimately, is the behavior, not thediscourse”6.

Para Aristóteles, não era a natureza do impacto que o preocupava,mas o grau deste impacto. Da mesma forma, Longinus concentrava as suasdiscussões em termos de intensidade e força do efeito da poesia sobre aaudiência:

Longinus’s notion of the sublime is equivalent to a conception

of poetry as pure power. His descriptions of the sublime center

on the effect sublime poetry produces in its hearers, but instead

of specifying this or that emotion, Longinus speaks only in terms

of intensity or strength of feeling. The sublime is impact, effect,

raised to the highest power. It is “intensity,” “force,” “irresistible

might.” “Sublimity flashing forth at the right moment scatters

everything before it like a thunderbolt.”7

Segundo Tompkins8, o leitor na Antigüidade era visto como um cida-dão do estado, o autor como um delineador da moralidade cívica e o críticocomo um guardião do interesse público. A literatura, aqueles que a produzi-am e os consumidores eram vistos em relação às necessidades da políticacomo um todo.

Na Renascença, a literatura se caracteriza pela “patronagem”. De acor-do com Tompkins9, acredita-se que a poesia tem uma função social, comona Antigüidade, mas o conteúdo desta função não permanece o mesmo,porque mudaram as estruturas sociais, econômicas e políticas que a defi-nem.

The poet’s dependence on his patrons, the social relations that

subsist between him and his audience, give Renaissance poetry

the power to carry out a host of new functions that might be

summed up in the phrase “public relations.” In addition to being

regarded as an inculcator of civic virtue, poetry becomes, as a

6 Idem, p. 205.

7 TTOMPKINS, Jane P. “The reader in history: the changing shape of literary response”. In: TOMPKINS, JanP. (Ed.). Reader response criticism. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1994.p. 203.

8 Idem, p. 204.

9 Idem, p. 201-232.

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variety of recent studies of the period have suggested, a source

of financial support, a form of social protection, a means of

procuring a comfortable job, an instrument of socialization, a

move in a complicated social game, or even a direct vehicle of

courtship10.

Nessa época, tanto a literatura quanto a crítica eram direcionadas àprodução de determinados efeitos na audiência. A literatura existia muitoem função de sua clientela e a qualidade de um texto podia ser mensuradapelo efeito que produzia nos seus leitores. Para Tompkins, essa é a principaldiferença entre a literatura renascentista e a literatura moderna.

In the modern period, on the other hand, the work is not written

for a known constituency, nor it is intended to have such well-

defined results. Instead of moving the audience and bringing

pressure to bear on the world, the work is thought to present

another separate and more perfect world, which the flawed

reader must labor to appropriate11.

A separação entre literatura e política ocorreu a partir da segundametade do séc. XVIII, basicamente como conseqüência da falência do siste-ma de patronagem, do aumento da impressão comercial e do crescimentodo número de leitores. Conforme os leitores foram se tornando mais inde-pendentes, os autores foram perdendo o poder de controle da reação daaudiência para com os seus textos. A leitura individualizada e silenciosa au-menta a separação espacial e temporal entre autores e leitores, tornando ainterpretação destes textos um exercício solitário e altamente subjetivo. As-sim, surge nessa época a literatura de fundo sentimental, destinada a trazerao leitor experiências emocionais ao invés de moldar o seu caráter ou condu-zir comportamentos12.

A ênfase no sentimentalismo fez com que a critica literária do séc. XIXse direcionasse para o estudo da poesia como possível de unir a humanida-de, apelando para a mais profunda simpatia dos homens13. Apesar da poe-sia ser tratada como capaz de transformar a consciência humana, os poetas

10 Idem, p. 208.

11 TOMPKINS, Jane P. “The reader in history: the changing shape of literary response”. In: TOMPKINS, JanP. (Ed.). Reader response criticism. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1994.p. 210.

12 Idem, p. 214-15.

13 Idem, p. 216.

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passaram a serem descritos como solitários e a poesia como algo sem utili-dade. Essa foi a maior conseqüência do distanciamento entre a atividadeliterária e a vida social e política. O poeta passou a ser visto como superiorporque carregado de sentimentos, mas sem valor porque deixou de estarassociado a homens poderosos. O crescimento da impressão de livros levouos autores a escreverem para um público ilimitado e sem rosto, ao invés deescreverem para uma pequena e influente elite.

A partir do final do séc. XIX, a poesia deixa de ser considerada umagente ou um instrumento, para ser um fim. A crítica formalista não se pre-ocupa com o efeito que o poema possa produzir, mas com a sua naturezaintrínseca. A obra literária é definida como repleta de significados e, portan-to, passível de interpretação. Como para os formalistas a obra literária éformalmente e semanticamente diferente de outros textos, a interpretaçãonão pode ser feita pelo leitor comum, mas por pessoas capazes de desven-dar a poeticidade do texto.

Na segunda metade do séc. XX (anos 60-70), a crítica literária começaa fazer alusão à importância do leitor e da leitura. Surgem os ensaios deHans Robert Jauss, que conduzem a teoria da literatura na direção da estéti-ca da recepção e, um pouco mais tarde, as coletâneas do “Reader-ResponseCriticism” enfatizam o papel do leitor na criação do significado de uma obraliterária14. A teoria de resposta do leitor o reconhece como agente ativo ca-paz de ao ler um texto trazê-lo à existência; o significado surge no momentoem que o leitor aplica ao texto determinados códigos e estratégias.

Numa obra de ficção, personagens, coisas, sentimentos, espaço e atéo tempo aparecem de forma inacabada e descontínua, exigindo necessaria-mente a intervenção do leitor. Ele completa as lacunas colocadas no texto,tornando-se co-participante do ato de criação. Wolfgang Iser sublinha quesão tais indeterminações que permitem ao texto “comunicar-se” com o lei-tor, induzindo-o a tomar parte na produção e compreensão da intenção daobra15.

Alguns críticos acreditam que o significado do texto está na mente doleitor e é influenciado por determinados fatores subjetivos como sua biogra-fia, sua condição física e psicológica. Outros vêem o significado como ine-

14 ZILBERMAN, Regina. Fim do livro, fim dos leitores? São Paulo: Editora Senac. 2001, p. 88.

15 Idem, p. 51.

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rente à condição humana e, portanto, um fato social, não um acontecimentoparticular. Há quem defenda que as interpretações várias de um texto literá-rio estão condicionadas à ideologia e dessa forma é um fato cultural. Nestaúltima linha, há críticos como Jauss que afirmam que o leitor é “responsávelpela atualização dos textos, garante a historicidade das obras literárias. Ahistoricidade, por sua vez, não decorre do ato de uma obra ter sido produzidanuma certa data, e sim da circunstância de ainda ser lida e apreciada”16.

Hipertexto e leitura

O assunto leitor/hipertexto ainda se configura como um desafio, porse tratar de uma bifurcação em dois temas tão recentes no meio literário. Osestudos sobre a importância do leitor na construção dos significados do tex-to têm pouco mais de cinqüenta anos, quando se intensificaram as discus-sões sobre a morte do autor, sobre o enfraquecimento do papel do autor esobre a desconstrução do texto. A partir de então, percebeu-se que os textosassumem novos contextos e novas leituras a partir dos seus leitores. Dessaforma, o texto não é portador de apenas um significado, imposto pelo seuautor, pois, apesar da sua intenção continuar a existir, o autor perde o contro-le sobre a forma como suas palavras serão entendidas e interpretadas.

Os hipertextos literários vieram no bojo da experimentação, tão carac-terística da literatura do séc. XX. A utilização do computador como recursona literatura fez com que muitas das idéias, consideradas revolucionáriaspelos escritores e limitadamente postas em prática na publicação do textoem papel, pudessem ser implementadas de forma mais concreta. O queantes na literatura dependia exclusivamente da capacidade imaginativa doleitor, tornou-se possível de ser vivenciado na associação do hipertexto comos recursos de hipermídia. A partir do hipertexto é mais fácil observar ouprever o comportamento do leitor na construção dos significados do texto,mas na sua essência tanto a leitura quanto o leitor desempenham papéis nohipertexto pouco diferentes daqueles dos textos impressos, conforme com-provado em alguns estudos empíricos nesta área.

Com a intensificação da experimentação literária em torno do hipertextosurgiram estudos no campo da recepção do leitor, direcionados especifica-mente para o novo meio. Dentre estes estudos, escolheram-se dois que se-

16 Idem, p. 58.

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rão aqui abordados. O primeiro a ser discutido é o de David S. Miall, da Uni-versidade de Alberta, no Canadá. No texto “Trivializing the Word - Hypertext,Postmodernism, and Reading”17, cuja primeira versão saiu em 1997, Miallfaz um breve comparativo entre a leitura de textos impressos e de hipertextos,levantando as seguintes questões: a) a iconicidade do texto virtual restringea leitura a formas associativas superficiais de processamento; b) a “surfagem”ou a leitura superficial se concretiza pela estrutura de elos entre as seçõesdo texto; c) os múltiplos caminhos trilháveis no espaço hipertextual dá ape-nas uma ilusão da emancipação do leitor; d) quanto mais o leitor der aten-ção às qualidades espaciais do texto, menos exeqüível se torna qualquercomprometimento do leitor com as dimensões não espaciais da leitura, taiscomo contexto literário, imagética pessoal, sentimentos ou auto-referência.

Miall afirma que os seus estudos empíricos demonstraram que a leitu-ra de textos literários fora da sala de aula parece depender em parte damemória, de sentimentos ou de desejos, tais como a atração pela narrativa.Há ainda detalhes que não estão presentes na leitura do hipertexto, poisestão diretamente relacionados com a presença física do livro, tais comopeso, odor ou o próprio formato da impressão que, segundo Miall, provaramque a leitura literária é predominantemente um processo afetivo.

Literary reading requires a degree of absorption over time if new

understanding is to evolve. The interactive nature of literary

reading requires readers to permeate the text with their own

images, memories, and desires; but the text in turn refashions

these and situates them within a new perspective. The

postmodern or hypertext fiction, however, by drawing attention

to its own fictionality, ironizes the constructive process,

repeatedly decentering the reader and blocking participation in

the fictional world. The text turns out to be worth less than our

wishes to invest in it had suggested18.

Segundo Miall, o processo interativo de leitura literária é sistematica-mente interrompido no meio hipertextual. O sistema de conexão entre umelo textual e outro levam a uma resposta analítica, que não corresponde aoprocesso natural de antecipação que o leitor do texto literário vivencia. A

17 MIALL, David S. “Trivializing the word - hypertext, postmodernism, and reading” (http://www.ualberta.ca/~dmiall/TRIVIAL2.HTM).

18 MIALL, David S. “Trivializing the word - hypertext, postmodernism, and reading” (http://www.ualberta.ca/~dmiall/TRIVIAL2.HTM).

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necessidade de escolha de caminhos torna o processo racional de tal formaque não consegue sustentar o engajamento afetivo do leitor com o texto. Oestudioso arrisca até mesmo afirmar que

the fixed form of the printed text may be more liberating for the

reader than the constrained process of linking imposed by a

hypertext, where the requirement to decide on which link to follow

every few sentences seems likely to prevent the immersion

characteristic of literary reading19.

Miall conclui que o meio eletrônico modifica subjetivamente e geraformações culturais não antecipadamente previstas. Seu argumento contraa retórica do hipertexto se baseia em dois pontos principais: a) o hipertextocomo forma de leitura realmente modifica a natureza do processo de umaforma antipática à resposta literária; b) é falacioso dizer que o hipertextoconcretiza a natureza “real” da leitura ao liberá-la das amarras da linearidade.Ele encerra reconhecendo que o ciberespaço é um meio novo poderoso esignificante com o qual a nossa cultura acadêmica e literária tem que apren-der a aceitar a controlar, mas não é possível negar a resistência às afirma-ções feitas em seu favor e que “[t]he fate of reading is too important to bedecided by hypertext theorists”20.

O segundo estudo a ser aqui abordado é o de J. Yellowlees Douglas,que discute o papel do leitor no hipertexto no artigo “Gaps, maps andperception: what hypertext readers (don’t) do”21, e afirma que

Narratives, in a sense, are about connectedness, sequence, and

order qualities which are inextricably linked to the way we view

the world around us. We might even say that narratives represent

a reflection of our tendency to perceive the world in terms of

intentional or causal states, albeit a reflection which produces

an orderly, predictable, and complete world within a static

structure. But if this mode of perception is part of what makes

narratives so attractive to us and, apparently, so important a

component of our lives (Brooks 21-22), it is also integral to our

being able to read, interpret, and understand narratives at all.

19 MIALL, David S. “Trivializing the word - hypertext, postmodernism, and reading” (http://www.ualberta.ca/~dmiall/TRIVIAL2.HTM).

20 Idem.

21 DOUGLAS, J. Yellowlees. “Gaps, maps and perception: what hypertext readers (don’t) do” (http://noel.pd.org/topos/perforations/perf3/douglas_p3.html).

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O crítico cita como exemplo a Composition no. 1, de Marc Saporta, quesimula a estrutura do hipertexto, por se tratar de cerca de 150 páginas sol-tas, não numeradas, que, para serem lidas, precisam ser embaralhadas, comoem um jogo de cartas, de forma a definir o destino do protagonista. Douglascita o comentário de Bolter (Writing Space 141) de que, apesar da narrativade Saporta não ter um roteiro predeterminado, a assunção do autor de que asua obra é fragmentada já pressupõe a existência de um todo e que os frag-mentos anteriormente possuíam uma ordem. O leitor permanece preso atentativas de encontrar elementos que o levem a uma conclusão da história,tais como conexões claras entre capítulos e localização temporal e espacial.

Com o intuito de verificar como o leitor lida com a fragmentação narra-tiva, Douglas cortou um conto em quarenta segmentos que variavam de umapalavra a três parágrafos, embaralhou-os e distribuiu em envelopes para umaturma de “English and English Education” na New York University. Ele desta-ca que quase a totalidade dos alunos se utilizaram de estratégias semelhan-tes para remontar as suas narrativas:

First, they read through the individual fragments and attempted

to articulate from them a global view of what the narrative might

look like as a whole. Next, they attempted to find causal

connections between actions or events from among the

fragments to establish sequences or chronologies for what had

happened. Finally, they tested these between themselves

according to either their own life experience or their knowledge

of other narratives22.

Douglas, a partir deste estudo, pôde observar certos comportamentosdos leitores. Primeiro, as narrativas estão repletas de hiatos e são estes quepermitem que os leitores participem da construção dos significados dos tex-tos. A falta de organização do texto faz com que esses hiatos ameacem acoerência da narrativa. Segundo, todas as narrativas têm múltiplas cone-xões, seqüências e outras ordens diferentes daquela linear, silogística ouseqüencial peculiar a narrativas impressas, que torna a leitura mais fácil emtermos de previsões. Quando a linearidade é quebrada os leitores são con-frontados com uma abundância de conexões possíveis e prováveis que sesomam às previsões de ligações entre personagens e fatos que surgem apartir das tentativas de preenchimento dos espaços narrativos. Terceiro, o

22 DOUGLAS, J. Yellowlees. “Gaps, maps and perception: what hypertext readers (don’t) do” (http://noel.pd.org/topos/perforations/perf3/douglas_p3.html).

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texto fragmentado impediu que os leitores se mantivessem em um únicoscript ou que eles percebessem a narrativa como uma única macroestrutura.Outra observação feita por Douglas foi que quase todos os leitores viammúltiplas conexões entre blocos de texto, mesmo onde não havia nenhumelo. Quando os leitores entraram em contato com a história completa, elescomentaram que o número de conexões havia ficado muito reduzido23.

Douglas conduziu outra experiência com alunos de um curso de escri-ta no Macintosh Writing Lab da New York University. Dessa vez, ele trabalhoucom um hipertexto, o Forking Paths de Stuart Moulthrop. A idéia era queapós lerem o texto os alunos deveriam contar a história em vários parágra-fos. O pesquisador tomou como ponto de partida a própria afirmação deMoulthrop sobre hipertexto:

In conventional narratives, readers are asked to imagine a world

of multiplicity from within an overwhelmingly linear and exclusive

medium. For hypertextual readers, the situation is reversed given

a text that may contain almost any permutation of a given

narrative situation, their task is to elicit a rational reduction of

this field of possibilities that answers to their own engagement

with the24.

A primeira dificuldade encontrada pelos leitores foi a navegação, anecessidade de escolher elos que levassem a uma continuidade da história.A segunda foi a busca de um fechamento que lhes desse a noção demacroestrutura do texto. Um dos alunos afirmou que “after reading about 15cells, I got to closure, but I was not satisfied that it was over, so I continuedreading. I made it to the center, cell 76, and that wasn’t any big revelation,either...”25

O estudo demonstrou que alguns alunos tentaram dar um fechamentoà narrativa através do mapa virtual do programa. No entanto, os que segui-ram esse caminho afirmaram que o dispositivo pouco os auxiliou, já queencontravam múltiplos episódios de continuidade e de fechamento. A tenta-tiva de organização do sentido da narrativa através do mapa virtual, segundoDouglas, foi uma demonstração de que os leitores da narrativa interativa

23 DOUGLAS, J. Yellowlees. “Gaps, maps and perception: what hypertext readers (don’t) do” (http://noel.pd.org/topos/perforations/perf3/douglas_p3.html).

24 Idem.

25 Idem.

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usaram o seu senso de texto enquanto estrutura para aproximar um final emum texto interativo que parecia sem fim.26

Curiosamente, todos os leitores de Forking Paths iniciaram a sua nar-ração da história registrando a falta de sentido da narrativa – as pessoasmorrem em um episódio e no outro estão vivos novamente. No entanto, al-guns leitores conseguiram lidar com a falta de sentido da narrativa organi-zando os episódios de forma que o aparentemente irreal, como um mortoque retorna à vida, se tornasse possível, através de um inexplicável salva-mento. Segundo Douglas, essa estratégia simularia a satisfação do fecha-mento de uma narrativa impressa.

By creating a single, relatively straightforward narrative order

out of a multiplicity of narrative orders, these readers manage

to arrive at readings of the text which roughly correspond to their

readings of conventional print narratives. This effort to bring dis-

parate elements of the narrative into line with their expectations

of print texts is, again, as theorists of reading have noted, an

activity nearly endemic to the act of reading for most readers27.

Alguns leitores confessam que, pelo fato de não estarem satisfeitoscom o fechamento alcançado, continuam a leitura, apesar de parecer teremalcançado vários fechamentos. Ao comparar os resultados deste experimen-to com outro feito a partir de The Garden of Forking Paths de Jose Luis Borges,Douglas destaca que, apesar dos dois romances terem a mesma estruturafragmentada, os leitores de Borges conseguiram chegar a um final da histó-ria, indicando que o meio utilizado para a leitura parece ter tido algumainfluência no resultado.

Perhaps the differences in their readings can be accounted for

by the medium in which each group experiences the narrative.

One group seems frankly bewildered by an environment which

overturns their comfortable assumptions about what narratives

should do and be, while the other is sufficiently well acquainted

with the conventions of printed space28.

Douglas destaca ainda que a experiência comprovou haver dois tiposde leitores – aqueles que estão preparados para a leitura de hipertextos, ou

26 Idem.

27 DOUGLAS, J. Yellowlees. “Gaps, maps and perception: what hypertext readers (don’t) do” (http://noel.pd.org/topos/perforations/perf3/douglas_p3.html).

28 Idem.

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Cadernos de Letras da UFF nº 32 - Letras & Infovias

de narrativas que simulem a mesma estrutura fragmentada, e aqueles quenão conseguem se desvencilhar das estruturas narrativas tradicionais.

We appear to be dealing with two different kinds of readers:

what David Riesman would call inner-directed and other-directed

readers (Riesman 259). Inner-directed readers here are

distinguished by their ability to redefine their roles as readers

by either discovering a new way of navigating through narrative

space or by revising the concept of closure. Other-directed

readers, conversely, take their cues for reading from their

knowledge of established reading practices and literary

conventions, leading them to brand examples of narratives wildly

divergent from familiar norms, such as Forking Paths as

frustrating, nonsensical and, even, failures29.

Para Douglas, a falta de fechamento das narrativas convencionais, aindefinição e os sentidos dúbios fazem com que as narrativas interativasconfundam leitores condicionados. Essas narrativas inovadoras parecem re-querer leitores que sejam capazes de imergir nas “teias narrativas de possi-bilidades” e de ao mesmo tempo se libertarem dessas teias, de forma acapturar o significado da narrativa como um todo. Assim, é nessa exigênciade comportamento do leitor que as narrativas interativas diferem das con-vencionais:

This dynamic of reading differs from conventional reading in that

it seems to demand that readers physically engage in a game

of interaction with the text as an author-constructed structure of

links, paths, and yields and, at the same time, rely on their own,

reader-centered judgments about meaning, significance, closure

and, even, connections in the narrative. The demands particular

to interactive narratives and to reading in any new environment

lacking established reading and interpretive strategies seem to

demand that we evolve into inner-directed readers, or readers

who move beyond simply realizing an author’s virtual text and

resist authorial prescription to arrive at readings of our own30.

Alguns hipertextos, algumas leituras

Com base nas questões anteriormente levantadas serão analisadosquatro hipertextos, sendo dois brasileiros e dois americanos (estes desenvol-

29 DOUGLAS, J. Yellowlees. “Gaps, maps and perception: what hypertext readers (don’t) do” (http://noel.pd.org/topos/perforations/perf3/douglas_p3.html).

30 Idem.

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Literatura e Leitor na era do hipertexto

vidos em Storyspace), procurando verificar o formato de construção destestextos e a forma pela qual sua estrutura incentiva a repetição de determina-dos comportamentos no leitor. Os textos escolhidos foram Quatro GargantasCortadas31 de Marcos Palácios, A Dama de Espadas32 de Daniel Pellizzari,Lies33 de Rick Pryll e Projection34 de William Powhida.

• Quatro Gargantas Cortadas

Quatro Gargantas Cortadas começa com um sumário e a indicação deque se é a primeira vez do leitor no site ele deve clicar em “Ajuda” antes decomeçar a navegação, indicando uma tentativa de controle do autor sobreos seus leitores até mesmo maior do que aquele previsto no texto impresso.

Escritores são uma raça engraçada.

Quatro Gargantas Cortadas foi criada por um deles, para dar vazão àssuas idéias mais atípicas, esquizóides e experimentais.

Alguns quilos de ficção científica, uma pitada de sátira, duas colheresde pretensão, um pé de balbúrdia pop e falta de autocrítica a gosto: estessão os ingredientes principais desta minha nova empreitada no divertidomundo dos bytes (que, ainda mais do que o papel, aceitam qualquer coisa -e são mais baratos).

A proposta é a seguinte:

Este é um folhetim nada cartesiano, que será escrito em alguns mesescom a ajuda dos leitores/co-autores.

Aproximadamente a cada dez dias, quatro novos episódios entrarãono ar.

Os leitores são encorajados a dar sugestões, participando assim dagestação das tramas.

31 PALÁCIOS, Marcos. “Quatro gargantas cortadas” (http://www.facom.ufba.br/dama/ intro.htm).

32 PELLIZZARI, Daniel. “A dama de espadas” (http://www.geocities.com/SoHo/Studios/ 1875/indice.html).

33 PRYLL, Rick. “Lies” (http://users.rcn.com/rick.interport/lies/lies.html).

34 POWHIDA, William. “Projection” (http://www.hypertxt.com/sh/hyper98/projection/ projproj1.html).

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Participar é fácil: leia os episódios, depois dê suas sugestões. Esperedez dias e veja o que aconteceu. Não é singelo?

Espero que funcione.

Bueno, é isso.

(Oh, como se já não fosse complicado o bastante conseguir editor epúblico para meus trabalhos principais...)

A narrativa é subdivida em um tópico principal (1. “Mamãe Gansa vaiao Paraíso”) e doze sub-tópicos (“Mascando a Noz”, “Tomé, o Santo”, “Proje-to Secreto Macacos”, “E um Bêbado Trajando Luto me Lembrou Carlitos”,“Amarelinho com Coco no Fundo”, “Sob o Olhar do Rei”, “Isto não é umBigMac”, “Um Milhão de Amigos”, “A Hora e a Vez do Batráquio Acordar”,“Em Si Enquanto Nível”, “Se Papai Me visse Agora” e “A Maldição de TopoGiggio”). A única forma de iniciar a leitura é clicando em um dos sub-tópicosrelacionados no “Sumário”. No entanto, a liberdade do leitor, tão apregoadanas narrativas hipertextuais, não existe nesse caso, uma vez que o autorconduz a história para que seja lida na ordem exata em que aparecem ossub-tópicos. Isto se dá, porque ao final da leitura de cada um dos episódioso leitor só consegue clicar no link que o leva ao episódio seguinte. Se por umacaso o leitor decidisse começar por qualquer outro episódio, que não o pri-meiro, chegaria ao final do último episódio com um link de retorno para apágina inicial.

A estrutura da narrativa, portanto, em nada difere daquela de um textoimpresso, já que não há links que quebrem a seqüência de leitura e nem háopções a serem feitas pelo leitor. A dificuldade de compreensão dos signifi-cados do texto não se dá pelo fato de estar publicado em meio eletrônico,mas sim pela necessidade de atenção do leitor para que sejam feitas asconexões entre personagens e fatos de cada episódio de forma a dar sentidoao texto.

A história começa com uma introdução sobre as propriedades alucinó-genas da noz moscada e com um homem urinando em um banheiro públicoenquanto um anão o observa. No segundo episódio, o personagem resolvetomar iogurte com noz moscada (uma lembrança do gosto do vômito do seusonho no banheiro) e começa a ter alucinações, que o levam a não dar suasaulas e sair de casa de pijama e pantufas em forma de sapo. O terceiroepisódio fala da rotina de Baiano, um atendente noturno de conveniência de

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Literatura e Leitor na era do hipertexto

posto de gasolina. Baiano lê uma reportagem de jornal sobre ratos de labo-ratório injetados com genes de uma medusa fluorescente. Um homem queentra na conveniência diz que aquilo é obra de marcianos. O quarto episódioé uma conversa entre Adriana, Alberto, Leopoldo e Geraldo sobre as músicasdo “The Doors” e do Jimmy Hendrix. O quinto episódio trata do velório demonsenhor Isaías, que em seus sermões dizia odiar quindins. Seu substitutofoi encarregado de catalogar os pertences do morto para fazer um pequenomuseu. O padre Mateus começa pelo diário retirado de uma pequena urnaque o monsenhor havia pedido que fosse enterrada junto com ele. No diário,o monsenhor narra um encontro demoníaco, na sua igreja, com um homemque blasfemava contra a Igreja e falava de quindins, vestindo pijamas epantufas em forma de sapo. Enquanto o monsenhor se dirigia ao homem depantufas de sapo um pênis luminoso passa sobre seus pés. Assustado, omonsenhor pega o relicário para sorver uma hóstia, mas encontra no lugarum quindim. O sexto episódio fala de Norival e a sua idéia de salvar o planetaatravés do suicídio, enquanto o sétimo episódio fala de Baiano que está co-mendo quindim em uma espelunca, quando ouve um cara de pijamas epantufa pedir uma pizza. O mesmo homem que havia lhe falado de marcia-nos senta-se ao seu lado e diz que é o Diabo. Os quatro amigos voltam aconversa, no oitavo episódio, sobre o Norival, que é vizinho de Leopoldo eacredita que Roberto Carlos participa de uma conspiração para acabar como mundo. O episódio termina com Norival tirando o pano que cobre umagaiola e perguntando se os ratos fluorescentes estão com frio. No episódioseguinte, o homem das pantufas de sapo lembra da morte da mãe e do paie que teria sido trazido para casa por um velho que o encontrou na rua,caído. A seguir, Leopoldo está na casa dele com Adriana, que costuma satis-fazer as fantasias sexuais do amigo vestindo-se com roupas de menina. Nodécimo primeiro episódio, Baiano está ouvindo Jimmy Hendrix e o vê chegarem uma névoa púrpura. Hendrix diz que ele deve ouvir o que o Diabo tem alhe dizer e deve fazer o que ele mandar. O último episódio ainda está emconstrução. Há apenas os dizeres: “1997. Setembro. Noite. Um bar. Maco-nha e chuva forte. GERALDO: Porra, ninguém apareceu.”

• A Dama de Espadas

A segunda narrativa literária escolhida para análise, A Dama de Espa-das, apresenta uma estrutura hipertextual mais complexa do que a de Qua-tro Gargantas Cortadas. O site abre com a opção entre começar pelo “Modode Usar” ou ir direto para “Partida”, apesar da tentativa de controle do autorsobre o leitor estar implícita tanto pela presença do mapa, como elemento

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obrigatório para a navegação, quanto pela existência de uma bula de utiliza-ção do site:

A D@m@ de Espadas é um experimento em Hiperficção.

A história é navegável a partir de um Mapa.

Todos os elementos do Mapa são clicáveis e são links para textos ousites.

Todos os gráficos, fotos e ilustrações nos textos são também clicáveis.

Palavras em destaque nos textos são links para outros textos.

Para voltar ao Mapa ou à tela anterior clique no Labirinto

Não há uma ordem de navegação pré-estabelecida,cada leitor estabelece sua rota.

Em caso de pâne ou pânico use o Retorno de seuBrowser.

Inicie Aqui sua Jornada...

Ao clicar em “Inicie Aqui sua Jornada...”, o leitor entrará em um textoque já indica um sentimento de arrependimento do narrador por algo queteria acontecido naquela cidade por onde passa o trem. A partir deste textohá duas opções para o leitor: a) ir direto ao mapa; ou b) seguir pelo link“coreto”, que o leva a outro texto.

Caso o leitor inicie a sua jornada em “Partida”, o início da história sedá de modo diferente. Não mais com um ar de mistério e subjetivismo, decerto arrependimento nostálgico, mas de uma forma objetiva e mais prática.Trata-se de um homem aposentado que declara não ter o que fazer, ter umaboa pensão e por isso faz viagens com alguma freqüência. Os links presen-tes no texto conduzem o leitor ao site da Caixa Econômica Federal ou ao“Mapa” que dará continuidade à história.

O elo para a “Caixa” quebra a continuidade da história e parece seruma das “formas associativas superficiais de processamento” mencionadas

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Literatura e Leitor na era do hipertexto

por Miall35. O desvio da história para o site da CEF tem a função de esclareci-mento, como o link para a explicação do significado de “guaxinim”, do textosobre a estação. No entanto, o leitor de um hipertexto literário espera muitomais do que simples explicações, que o fazem sair do ambiente ficcional,penetrar na realidade e imediatamente trilhar o caminho de volta ao tempoe espaço ficcionais, quebrando assim a sua relação afetiva com o texto, tam-bém mencionada por Miall.

Em A Dama de Espadas, o leitor precisa tomar decisões em busca deconexões que permitam o preenchimento dos espaços narrativos, mencio-nados por Douglas36. À exceção de quando o leitor embarca no táxi e o íconeque o levaria ao “mapa” o conduz obrigatoriamente ao Magestic Plaza Hotel,os outros textos sempre retornam ao mapa de navegação para que o leitorfaça as suas escolhas. Independente do caminho seguido pelo leitor, o enre-do trata de um encontro entre o protagonista, Otávio Camargo, e uma mu-lher misteriosa, Ana Lívia Cordeiro. Os dois se conhecem no hotel e ambosestão à procura de um restaurante para jantar. O recepcionista diz que aúnica possibilidade de encontrar alguma coisa aberta seria na orla. Os doisresolvem ir juntos para compartilhar um táxi.

A partir daí, a história se caracteriza pela intertextualidade. Após ojantar, o casal vai para um Motel. Ana sai do banheiro com uma toalha em-bebida em éter e faz Otávio desmaiar. Ele acorda sozinho no quarto comuma sutura no abdome. É levado para o hospital e descobre que o seu rimdireito havia sido retirado. Essa é uma história que correu em listas de e-mailpor todo o país, teoricamente denunciando um golpe de uma quadrilha en-volvida em tráfico de órgãos. Outro lugar comum, característico de filmeshollywoodianos, é que ninguém na cidade lembra de tê-lo visto acompanha-do – nem o recepcionista do hotel, nem do motel e nem mesmo o garçomque os atendeu no restaurante. Caso o leitor escolha entrar no ícone “crash”do mapa, verá que o narrador menciona um amigo dele, Michael Joyce, quepassou um dia de horror ao ver um acidente e acreditar que era o filho dele ea ex-mulher que estavam ali mortos.

35 MIALL, David S. “Trivializing the word - hypertext, postmodernism, and reading” (http://www.ualberta.ca/~dmiall/TRIVIAL2.HTM).

36 DOUGLAS, J. Yellowlees. “Gaps, maps and perception: what hypertext readers (don’t) do” (http://noel.pd.org/topos/perforations/perf3/douglas_p3.html).

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A história só tem uma possibilidade de fechamento, o aeroporto: “pe-guei um avião para São Paulo. Se eu soubesse que aquela era a sua cidade,teria olhado melhor, prestado mais atenção... Foi só um quadro na janela dotrem, um quase nada na parada....” Não há nenhuma indicação que leve oleitor a optar por este ícone no mapa e, caso clique em sua cidade, chegaráao texto introdutório da história quando o leitor entra pelo “Modo de Usar”.Por outro lado, caso o leitor decida ir até o fim do texto e clicar no ícone domapa, acreditando ter um final para a história, apenas voltará ao “Mapa”,ficando com a opção de continuar por ícones que ainda não tenha clicado,mas que não o levarão a um fechamento. Observam-se aqui, portanto, os“múltiplos episódios de continuidade e de fechamento”, registrado pelos lei-tores nos experimentos de Douglas37.

• Lies

Em Lies, assim como os dois hipertextos brasileiros, há na página deabertura as opções de escolha entre iniciar a narrativa (“Begin”) ou visitaruma parte introdutória (“About ‘Lies’”). É interessante destacar que, diferen-temente das outras narrativas observadas, não há uma tentativa de condu-ção do leitor, mas sim algumas informações sobre a construção do texto ediscussões sobre a hiperficção:

Lies was originally finished in May, 1992 for a class that I was

taking at MIT called “Interactive and Non-linear Fiction” (the

course description, despite my total ignorance of the fact, was a

play on the fact that MIT takes itself way too seriously...) The

professor, Dr. Janet Murray, told us it was the first class ever of

its sort. It was a strange mix of people from the entire spectrum

of life at MIT from people who have practically no business being

there (me) to people who were ready to write their own “story-

spaces” in Scheme or C++. It was fun.

Lies was originally done in HyperCard 2.0 on a Mac. It has been

(painfully) adapted for the Web. I am sure there was a less ma-

nual way to do it, unfortunately, I did not bump into it.

My ideas about HyperFiction:

I like HyperFiction that puts form before function, despite the

lure of the technology. I hate scroll bars, because they are

37 DOUGLAS, J. Yellowlees. “Gaps, maps and perception: what hypertext readers (don’t) do” (http://noel.pd.org/topos/perforations/perf3/douglas_p3.html).

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Literatura e Leitor na era do hipertexto

intrusive to my reading experience. I need to state very clearly

that I am not completely satisfied with Lies, and that I see more

potential than real substance, but that is a disclaimer, and

belongs someplace else. HyperFiction provides an excellent

means of expressing stories that have many levels, plots within

plots, motives within motives, and I think writers are just

beginning to figure out how to plumb those types of depths.

In HyperFiction speak, Lies is a fixed-content, single point of view

story. The Hyper-ness comes from the fact that I give you choices.

Your choices only affect your perception, not the content, of the

story. Note that the use of pronouns lets me re-use nodes, the

re-definition of words gives me a device that I have probably

abused, and that my flimsy use of dreams vs. reality in one of

the endings bothers me more than it could bother you38.

O início da narrativa por qualquer um dos caminhos conduz ao mesmotexto de abertura: “Lies tell you more about a person than the truth does. Liestell you what a person wants to be, rather than what they are. Lies are dreams,lies are fantasy. Who wants to live the truth, when you can live a lie?”. Apossibilidade de escolha entre verdade (“Truth”) ou mentira (“Lies”) está pre-sente em todas as páginas do site. Qualquer que seja a escolha do leitor,mesmo que varie entre verdades e mentiras, o fluxo da narrativa em ne-nhum momento é interrompido e as conexões se encaixam perfeitamentepara continuidade da história. É curiosa a forma como o narrador insiste napresença da mentira, mesmo quando se fala a verdade, como que instigan-do o leitor a optar pela mentira:

She and I have been seeing each other for a whole year, as of

yesterday. We celebrated by dancing and drinking rums and

cokes. We live together now, and things are getting serious. We

live with our lies, we dance with our lies and sometimes they

make us cry. Kind of funny, really. To have journals in our

apartment full of lies, to have these separate lives within our life

together.

O final existe de fato, tanto para os que optam por verdades quantopara os que optam por mentiras. No entanto, para o leitor que opta pelaverdade permanece a insistência de que a mentira existe e talvez valesse àpena tentar de novo e conseguir um final mais climático:

38 PRYLL, Rick. “Lies” (http://users.rcn.com/rick.interport/lies/lies.html).

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Cadernos de Letras da UFF nº 32 - Letras & Infovias

Truth

This is the way the story ends: The simple truth is that the two

main characters find that they can be happy together despite

the mistakes they both made over the summer. They decide to

move in together. They argue occasionally.

This ending is a bit too anti-climactic, I want to try again

Lies

‘’I awoke and turned over to try and determine where I was. An

unfamiliar bed, against an unfamiliar gray wall. The bed was

quite large. I was lying on the left side of the bed, and the right

side of the bed radiated warmth. The right top corner of the

blanket was turned down, as if someone has just climbed out. I

heard someone humming in the next room. I imagined a red-

headed woman. On the night table, was a familiar sight, my

journal. The door opened slowly. Beautiful long black hair. ‘We

had quite a night. This morning you just completely passed out

on me.’ ‘’

As I wrote my idea for the last scene in my journal, I wondered if

the end left too many questions unanswered.

The End

Go back to the Beginning

Através do próprio narrador percebe-se a falta de fechamento comen-tada por Douglas39 quando os seus alunos chegavam a um final e continua-vam com uma sensação de que a narrativa não havia encerrado. Fica a dúvi-da se este sabor de coisa infinda é provocado pelo hipertexto em si ou pelasvárias possibilidades conectivas do texto, que provocam em demasia a curio-sidade do leitor. Ele tem conhecimento da existência de outros caminhos,facilmente trilháveis através dos links, mas é forçado a fazer opções. Istonão significa, no entanto, que conseguirá facilmente esquecê-los.

• Projection

A página de Projection tem uma estrutura divida em três segmentos,com a instrução de que é necessário clicar no link que aparece no primeiro

39 DOUGLAS, J. Yellowlees. “Gaps, maps and perception: what hypertext readers (don’t) do” (http://noel.pd.org/topos/perforations/perf3/douglas_p3.html).

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Literatura e Leitor na era do hipertexto

segmento para abrir a interface. Ao clicar abre uma tela menor, em pop up,com vinte e oito gravuras. A tela de gravuras funciona como um mapa denavegação com links para textos. O leitor tem a opção de escolher as gravu-ras aleatoriamente, já que as histórias têm alguma relação entre si, mas nãosão caracterizadas por uma organização cronológica.

A primeira gravura, por exemplo, abre no terceiro segmento da tela e éum texto, sobre Ben falando de sua dúvida sobre enviar ou não um e-mailpara Julie dizendo que a ama. A segunda gravura leva um e-mail de Julie,que abre também no terceiro segmento, dizendo ao Ben que se divertiu sain-do com ele, mas que eles não deveriam sair novamente, porque ela estariamuito sem tempo. A continuidade da história, que é a resposta de Ben aJulie, abre no primeiro segmento da tela, ao clicar no link ao final do e-mailde Julie para Ben. Ao todo são 16 textos, acessíveis através das gravuras,além de vários outros acessíveis por meio dos links ao longo dos textos.

A continuidade das narrativas varia entre as três telas e todas têm umfinal, ainda que seja aberto. O último link leva à mesma gravura do mapa,em tamanho maior, com a indicação “Please close this window when finishedviewing image” ou simplesmente a um final da narrativa. Há momentos emque os três segmentos da tela estão ocupados com histórias que chegarama um fechamento, obrigando o leitor a recorrer ao mapa caso queira conti-nuar a sua leitura. A narrativa é muito bem construída e a estrutura dohipertexto é inovadora, mas as variações dos textos entre os segmentos datela, bem como os momentos em que o texto começa a se completar auto-maticamente em um segmento diferente daquele onde concentrava-se a lei-tura, levam o leitor a se preocupar em demasiado com o formato da narrati-va em detrimento do texto em si. Vale lembrar, assim, a afirmação de Miall40

de que “quanto mais o leitor der atenção às qualidades espaciais do texto,menos exeqüível se torna qualquer comprometimento do leitor com as di-mensões não espaciais da leitura, tais como contexto literário, imagéticapessoal, sentimentos ou auto-referência”.

Considerações Finais

O uso do hipertexto na literatura trouxe uma nova possibilidade de ex-perimentação no campo da criação literária. Principalmente nos Estados

40 MIALL, David S. “Trivializing the word - hypertext, postmodernism, and reading” (http://www.ualberta.ca/~dmiall/TRIVIAL2.HTM).

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Unidos, o hipertexto tem sido de grande valia para aulas tanto de criaçãoquanto de escrita nas Universidades. É fácil encontrar registro desses proje-tos na Internet. Vários estão em páginas isoladas, mas há alguns que seencontram agrupados em portais. Neste caso, talvez um dos mais comple-tos seja o “Eastgate: Hypertext on the Web”41, onde é possível encontrar vári-os hipertextos independentes e outros que foram desenvolvidos como proje-tos universitários. Alguns deles já não estão mais on-line por terem sido pu-blicados na forma impressa, por ter mudado de endereço ou pelo uso dodomínio ter sido descontinuado.

Muito dessa criatividade e desse experimentalismo literário se deveao uso do Storyspace, um programa de computador que se constitui em umambiente de escrita especialmente desenhado para o desenvolvimento dehipertextos grandes e complexos. A vantagem da disseminação dessas dis-ciplinas de escrita literária não estaria somente no uso da hipermídia ou naexperimentação com hipertextos, mas principalmente no desenvolvimentodo processo criativo.

No Brasil pouco se encontra de prático nessa área. Há alguns projetosisolados, como os aqui analisados, feitos ainda de forma manual, e umaspoucas iniciativas ligadas a projetos de pesquisa ou de ensino nas Universi-dades. Ainda há um longo caminho a ser trilhado. É necessário o incentivoimediato a autores, leitores e estudiosos dispostos a utilizar a hipermídia noensino.

Na comparação dos dois hipertextos brasileiros com os dois america-nos percebe-se a diferença de qualidade destes últimos na construção doambiente virtual e da própria narrativa. O ambiente é muito mais complexo,certamente pelo uso do Storyspace. A narrativa também é mais bemconstruída em termos literários (não há tantos lugares comuns como nasduas brasileiras) e lingüísticos – quem sabe por serem trabalhos monitorados,resultados de disciplinas de criação literária.

Em termos de leitura, parece não haver disparidade em relação aoque se esperava de um hipertexto. Todos os hipertextos observados têm amesma falta de fechamento, a indefinição dos caminhos a percorrer e ossentidos dúbios levantados por Douglas42. Provavelmente, as duas narrati-

41 (http://www.eastgate.com/hypertext/ WebHypertext.html#Workshop)

42 DOUGLAS, J. Yellowlees. “Gaps, maps and perception: what hypertext readers (don’t) do” (http://noel.pd.org/topos/perforations/perf3/douglas_p3.html).

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Literatura e Leitor na era do hipertexto

vas que lidam com o mapa de navegação, A Dama de Espadas e Project,ofereçam uma dificuldade maior porque as escolhas se dão sem o estabele-cimento de parâmetros que possam embasar as decisões do leitor. Há de sefrisar ainda que em A Dama de Espadas a narrativa, por ser curta e poucoelaborada, é fácil de ser compreendida, mas é necessário que o leitor expe-rimente os vários ícones do mapa ou faça uma escolha lógica (o protagonis-ta deve sair da cidade em algum meio de transporte) para que ele consigaalcançar um fechamento. Já em Project, há várias narrativas, cujas continui-dades se dão através de links nos próprios textos, que, apesar de terem liga-ções lógicas, não necessariamente dependem umas das outras para que oleitor chegue a um fechamento.

Há falta de sentido lógico da narrativa, também mencionada porDouglas43. Seus alunos percebiam em Forking Paths que personagens jámortos apareciam vivos e voltavam a estar mortos logo a seguir. O mesmocaso é possível de ser registrado em A Dama de Espadas, dependendo dasescolhas do leitor. A dama misteriosa pode tanto ainda estar em cena, comojá ter desaparecido, de acordo com o item escolhido no mapa.

O sentimento de que outras escolhas poderiam ter levado a um fecha-mento mais satisfatório é característica de Lies, mesmo sendo o hipertextode narrativa mais fluente e de fechamento mais completo dos estudados.No entanto, o conhecimento do leitor de que existem outras possibilidadesde leitura instigam outras tentativas, mesmo depois de ter chegado ao finalda história.

Por último, vale destacar a afirmação de Miall44 de que “o hipertextocomo forma de leitura realmente modifica a natureza do processo”. A rela-ção do leitor com o texto é muito menos confortável, pois a leitura está con-dicionada ao uso de um computador. É também menos afetiva, visto que ocontato do leitor com o hipertexto não é concreto (não se sente o peso dolivro nem se pode folhear as páginas), tem uma outra relação visual (não seadmiram os detalhes de uma bela edição), não é palpável (não se sente atextura das folhas), nem mesmo olfativo (não se pode sentir o cheiro de livronovo ou do mofo que lembra a passagem dos anos).

43 Idem.

44 MIALL, David S. “Trivializing the word - hypertext, postmodernism, and reading” (http://www.ualberta.ca/~dmiall/TRIVIAL2.HTM).

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ABSTRACT

The experimental tendency of literatureduring the 20th century brought togetherciberspace and literary text. As conse-quence there were several texts built usinghypertext writing environments, such asStoryspace, texts written with theparticipation of several co-authors as resultof discussions on the Internet, as well ashypertexts specially built to be available onthe Web. This essay focus on the analysisof aspects of the relationship reader/hypertext, based on reader responsestudies directed either to text orhypertexts..

Key-words: literature; hypertext; reader.