Literatura Surda - Produções Culturais de Surdos Em Língua de Sinais

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  • Literatura Surda:

    produes culturais de surdos em Lngua de Sinais

    Cludio Henrique Nunes Mouro

    Porto Alegre

    2011

  • 2

    Capa: Carolina Hessel Silveira

  • 3

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    FACULDADE DE EDUCAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    Cludio Henrique Nunes Mouro

    Literatura Surda:

    produes culturais de surdos

    em Lngua de Sinais

    Porto Alegre

    2011

  • 4

    Cludio Henrique Nunes Mouro

    Literatura Surda:

    produes culturais de surdos

    em Lngua de Sinais

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao da Faculdade de Educao da

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como

    requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre

    em Educao.

    Orientadora:

    Prof. Dra. Lodenir Becker Karnopp

    Linha de Pesquisa: Estudos Culturais em Educao

  • 5

    Cludio Henrique Nunes Mouro

    Literatura Surda:

    a produo cultural de surdos

    em Lngua de Sinais

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao da Faculdade de Educao da

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como

    requisito parcial para obteno do ttulo de mestre

    em Educao.

    Orientadora:

    Prof. Dra. Lodenir Karnopp

    Aprovada em: ___/___/____.

    Prof. Dra. Lodenir Becker Karnopp Orientadora

    Prof. Dra. Adriana Thoma UFRGS

    Prof. Dr. Edgar Roberto Kirchof ULBRA

    Prof. Dra. Madalena Klein UFPel

  • 6

    Dedico Comunidade Surda Brasileira,

    cuja lngua prpria e cultura

    fazem parte da minha vida...

  • 7

    AGRADECIMENTOS NESTE MOMENTO

    Aos meus queridos pais e famlia

    na terra maranhense, e

    Anna Mouro, Wilson e famlia

    na terra So Caetano do Sul/SP.

    Muitssimo obrigado por acreditarem em mim,

    com f e sem dvida,

    longe de mim...

    mas...

    esto dentro e profundamente no...

    meu corao .

    minha mulher, Carolina Hessel

    por apoio total e puro corao com flores coloridas...

    minha sogra Rosa Hessel por fazer parte da minha rvore

    e aumentar mais as folhas para eu crescer...

    minha Tia Lidia Marinho por amizade sincera,

    saudade do bom tempo entre brincadeira e implicncia.

    A Shaula (canina) por apoio Au au...

    - traduzindo carinho.

    Aos meus amigos Nelson Pimenta e Fbio de Mello,

    pelo descobrimento do mundo dos surdos...

    Aos meus amigos e colegas

    que compartilharam comigo durante bom tempo

    na terra maranhense, carioca e gacha,

    principalmente na dana...

    s escolas de surdos,

    que abriram as portas, possibilitando

    as experincias de trabalhos

    e compartilhamento com os alunos, professores, funcionrios e diretorias.

    Aos meus colegas e babs (tutores)

    no Plo UFSM, por tudo, que inesquecvel...

    Ronice Quadros e professores

    do curso de Letras/Libras - 2006 (indito no Brasil)

    pelas aprendizagens e conhecimentos.

  • 8

    Aos meus colegas

    com as professoras Lodenir Karnopp e Adriana Thoma,

    por atividades e energias compartilhadas

    durante as aulas

    na UFRGS/FACED.

    A minha orientadora Dra. Lodenir Karnopp,

    pela amizade crescente com sua presena,

    que me empurrou para engatinhar, deu mamadeira das palavras,

    ajudou na evoluo de conhecimentos,

    pela pacincia, apoio e carinho...

    Aos professores da UFRGS/FACED,

    que meus olhos abriram para a subjetividade refletida,

    com emoo, sentimento, desafio,

    fazendo crescer os conhecimentos...

    As intrpretes de Lngua de Sinais na UFRGS/FACED

    pela presena em aulas e eventos.

    A dra. Adriana Thoma, dr. Edgar Kirchof e dra. Madalena Klein,

    pela guerra de sugestes, idias e apoio,

    que me fizeram brotar as folhas (conhecimentos e reflexo) da rvore.

    Por fim, agradeo a Deus pelos meus passos, protegendo e iluminando

    para o caminho certo...

    Mais uma vez, obrigado Deus, por existir o ser surdo e a Lngua de Sinais!

  • 9

    Meu silncio no como o silncio de vocs.

    Meu silncio verdadeiro seria o de ter

    os olhos fechados, as mos paralisadas,

    o corpo insensvel, a pele inerte.

    Um silncio do corpo.

    Emamnuelle Laborit (1994)

  • 10

    RESUMO

    Com o propsito de investigar a manifestao das produes culturais dos surdos em

    histrias que so contadas em Libras, o foco da pesquisa a anlise da forma como os surdos

    vm apresentando e construindo a Literatura Surda, com foco na lngua de sinais. A partir

    disso, os objetivos so desdobrados na anlise das temticas e do uso da lngua de sinais, ou

    seja: verificar quais histrias os surdos tm contado, como so caracterizadas essas histrias e

    quais so os temas apresentados, e analisar o uso da lngua de sinais e os recursos expressivos

    utilizados. A base terica foi buscada nos Estudos Culturais e Estudos Surdos, em autores

    como Hall (1997), Karnopp (2006, 2010), Quadros (2004), Klein e Lunardi (2006), Sutton-

    Spence (2008), Lopes e Thoma (2004), Perlin (2004), Silveira (2006), Strobel (2008). O

    material emprico que subsidia a investigao foi obtido atravs das atividades desenvolvidas

    por alunos do Curso de Licenciatura em Letras-Libras, ensino distncia, da Universidade

    Federal de Santa Catarina. Optei pela coleta de materiais produzidos (filmados, disponveis

    em DVDs) na disciplina de Literatura Surda e, alm disso, realizei entrevistas que subsidiam a

    anlise dos textos produzidos em Libras, verificando o depoimento dos alunos sobre as

    histrias selecionadas, o uso da lngua de sinais e dos recursos expressivos utilizados. As

    produes analisadas se dividiram em tradues e adaptaes de histrias conhecidas,

    incluindo personagens surdos, procurando marcar uma produo da cultura surda..

    Palavras-chave: Cultura Surda, Estudos Culturais, Estudos Surdos, Libras, Literatura Surda.

  • 11

    ABSTRACT

    Aiming at investigating the manifestation of deaf cultural production in

    stories recounted in Libras, the research focuses on the analysis of how deaf ones manage to

    introduce and construct the Deaf Literature emphasising on the sign language. From this,

    objectives are unfolded when analysing themes and use of the language sign, that is, checking

    which stories deaf ones have recounted, how these stories are characterised and what are the

    themes deaf ones have presented, and analysing the use of the language sign and its

    expressive resources used. The theoretical base comes from the Cultural Studies and Deaf

    Studies in writers such as Hall (1997), Karnopp (2006, 2010), Quadros (2004), Klein

    andLunardi (2006), Sutton-Spence (2008), Lopes and Thoma (2004), Perlin (2004), Silveira

    (2006), Strobel (2008). We have found the empirical material supporting the investigation in

    activities students attended in a Libras Language Programme and in distance education at the

    Federal University of Santa Catarina. I have chosen to collect produced materials (films on

    DVDs) at the discipline of Deaf Literature. Furthermore, I made interviews supporting Libras

    text analysis, checking testimony students gave about selected stories, sign language use and

    its expressive resources used. Productions we have analysed were of two kinds: translations

    and adaptations of known stories, including deaf characters, seeking to highlight a deaf

    culture product.

    Keywords: Deaf culture, Cultural Studies, Deaf Studies, Libras, Deaf literature.

  • 12

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    AVEA Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem

    ASL American Sign Language (Lngua de Sinais Americana)

    EAD Ensino Distncia

    EUA United States of America (Estados Unidos da Amrica)

    FENEIS Federao Nacional de Educao e Integrao de Surdos

    GES Grupo de Estudos Surdos

    INES Instituto Nacional de Educao de Surdos

    IPA Centro Universitrio Metodista

    LIBRAS Lngua Brasileira de Sinais

    LS Lngua de Sinais

    NTD National Theatre of the Deaf EUA (Teatro Nacional do Surdo)

    SSRS Sociedade dos Surdos do Rio Grande do Sul Porto Alegre/RS

    ULBRA Universidade Luterana do Brasil

    UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    UFSC Universidade Federal de Santa Catarina

    UFSM Universidade Federal de Santa Maria

  • 13

    LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1 Folder (15x15) - Espetculo Catirina. Atrs Tapuios e Rajados, em Frente 1 Vaqueiro (2 Vaqueiro com varas, atrs do Chico e Catirina), Amo,

    Chico, Miolo do boi (meio) e Catirina .......................................................................... 26

    Figura 2 Panfleto (20x22) - Espetculo Nordestenamente:Uma viagem pelas danas e festas populares do Nordeste ........................................................................... 26

    Figura 3 Folder: Cia Surda de Teatro, Grupo Lado a Lado. . Folder (15x20). Em 1999, espetculos em Rio de Janeiro/RJ no INES e o V Congresso Latino-Americano

    de Educao Bilnge para Surdos, realizado em Porto Alegre/RS, na UFRGS ........... 28

    Figura 4 Cia Teatro Absurdo. Panfletos (20x20). Espetculos eventos no Rio de Janeiro/RJ ...................................................................................................................... 30

    Figura 5 Espetculo Nelson 6 ao vivo. Folder (12x20): Local: Teatro Calil Haddad, Maring\PR 2005, espetculos em vrias cidades do Brasil ......................... 33

    Figura 6 Espetculo Nelson 6 ao vivo. Panfleto (15x20) local: Teatro GACEMSS, Volta Redonda\RJ 2004 .......................................................................... 34

    Figura 7 Desenhos de Cludio Mouro ...................................................................... 35

    Figura 8 Pierre de Rosard ............................................................................................ 50

    Figura 9 Dorothy Miles ............................................................................................... 51

    Figura 10 Livros com histrias adaptadas ................................................................... 56

    Figura 11 Livros de criao de surdos .......................................................................... 57

    Figura 12 livros de literatura infantil: O Canto de Bento e de A Famlia Sol, L, Si..., ambos da autora Mrcia Honora, 2008 ................................................................ 58

    Figura 13 Variaes em sinais da Libras ..................................................................... 62

    Figura 14 Traduo de Portugus/ Libras ................................................................... 65

    Figura 15 Exemplos de traduo para a Libras ........................................................... 67

    Figura 16 Exemplos de piadas em Libras . .................................................................. 67

    Figura 17 Abertura e usurio / senha ............................................................................ 70

    Figura 18 Disciplina de Literatura Surda .................................................................... 71

    Figura 19 Cenas de O cavalo e as amigas Hienas (Grupo 1) .. ................................. 73

  • 14

    Figura 20 Cenas de Chapeuzinho Vermelho (Grupo 2) .. ......................................... 74

    Figura 21 Cenas de Joo surdo p de feijo (Grupo 3) . ........................................... 76

    Figura 22 Cenas de A festa no cu (Grupo 4) ......................................................... 77

    Figura 23 Cenas de Trs Porquinhos e um Lobo (Grupo 5) . ................................... 78

    Figura 24 Cenas de A Cigarra e as Formigas (Grupo 6) . ......................................... 81

    Figura 25 Cenas de Shrek (Grupo 7) . ...................................................................... 82

    Figura 26 Cenas de Pinquio Surdo (Grupo 8). ....................................................... 83

    Figura 27 Cenas de Paixo dos Gatos (Grupo 9) .. ................................................... 85

    Figura 28 Cenas de Os Sete Cabritinhos e o Lobo (Grupo 10) ............................... 87

    Figura 29 Cenas de Joo e Maria (Grupo 11) .......................................................... 88

    Figura 30 Cenas de Chapeuzinho Vermelho Surda (Grupo 12) ............................. 90

    Figura 31 Site: http://sites.google.com/site/claudiomourao/ ........................................ 92

    Figura 32 Representao Surda em desenho de Cludio Mouro .............................. 111

    Figura 33 Divulgando I Mostra Literatura Surda.................................................... 117

  • 15

    LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 Utilizao de Ilustraes e Recursos Expressivos ...................................... 94

    Quadro 2 Utilizao de Cenrio e tipo de apresentao ............................................... 96

    Quadro 3 Tipos de Produo Literria ....................................................................... 97

    Quadro 4 Sntese de utilizao de diversos recursos de apresentao de histrias ..... 98

    Quadro 5 Analisando Cenrio e forma de apresentao ............................................. 99

    Quadro 6 Analisando o Processo de Produo Literria ........................................... 100

  • 16

    SUMRIO

    1 INTRODUO ........................................................................................................ 17

    1.1 PERTENCIMENTOS E EXPERINCIAS ............................................................. 21

    1.2 CONSTITUIO DA MINHA IDENTIDADE SURDA ...................................... 24

    1.3 TERRITRIO ......................................................................................................... 34

    2 RECONHECER A CULTURA .............................................................................. 40

    2.1 ARTEFATOS CULTURAIS ................................................................................... 44

    2.2 LITERATURA SURDA: UM POUCO DA HISTRIA; ADAPTAO E

    CRIAO DE HISTRIAS ........................................................................................ 49

    2.3 TRADUO APROFUNDANDO O TEMA ...................................................... 61

    3 CAMINHOS TERICO-METODOLGICOS: A LITERATURA SURDA

    PRODUZIDA PELOS ACADMICOS PESQUISADOS ....................................... 69

    3.1 CURSO DE LETRAS-LIBRAS .............................................................................. 69

    3.2 ANLISE DOS MATERIAIS NARRATIVAS PRODUZIDAS PELOS

    ALUNOS ....................................................................................................................... 71

    3.3 DOCUMENTAR AS ENTREVISTAS ................................................................... 91

    3.4 REALIZANDO ANLISES .................................................................................... 93

    3.4.1 Analisando os Materiais (DVDs) ....................................................................... 93

    3.4.2 Anlisando os quadros ...................................................................................... 97

    3.4.3 Anlise das entrevistas .................................................................................... 101

    4 REPRESENTAO DOS SURDOS E LITERATURA SURDA (DA LNGUA

    DE SINAIS) ................................................................................................................ 109

    5 CONSIDERAES FINAIS: AS MOS NO TERMINAM AQUI ............... 113

    REFERNCIAS ......................................................................................................... 119

    ANEXOS ..................................................................................................................... 124

    ANEXO A .................................................................................................................... 125

    ANEXO B ................................................................................................................... 126

    ANEXO C - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ...... 131

  • 17

    1 INTRODUO

    Para comear... uma carta!

    Para comear, trago um texto que escrevi em forma de carta durante as aulas com a

    Prof Dr Adriana da Silva Thoma, atividade em que todos os alunos escreveram uma carta,

    trocando com os colegas na sala de aula, na disciplina A Constituio de Identidades e da

    Diferena Surda no Campo da Educao do curso de Ps-Graduao em Educao da

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS/FACED, durante o 1 semestre de

    2009.

    A carta...

    Bom, escrever a carta? Hum! Interessante que vamos escrever a carta para cada colega ou

    interagir com pessoas durante aulas, vamos conhecer alguns segredos da vida, ou seja, histrias

    individuais... Vou tentar escrever a minha histria! Falarei de mim? Nossa que vergonha! Prepare-se,

    vamos comear: Quem Cacau?

    O Cacau surdo, nome completo Cludio Henrique Nunes Mouro, ex-danarino

    profissional, mas, por enquanto, ele ainda danarino. Pode acreditar? J imaginou como ele ouve a

    msica ou o ritmo, apesar de ser surdo? Ele Formado em Educao Fsica em Licenciatura no

    IPA/2007, em Porto Alegre-RS; professor de teatro e dana; professor de Libras; estudante do curso

    de Letras/Libras, Plo UFSM; e mestrando na rea educao na UFRGS. Nasceu em So Lus-MA,

    terra do boi... Ops! Foi mal, quero dizer que a terra do bumba-meu-boi, conhecida pelas festas

    juninas durante o ms de junho. Nasceu surdo... Opa! Tambm, nasceu para dana... Ento, viveu

    duas vidas em caminhos diferentes: danando e os lendo os lbios oralizado.

    Vamos falar de dana: ele danarino artstico, bailarino profissional, coregrafo. Desde

    criana que ele gostava de danar, quando havia festas ou aniversrios, sempre estava ali para

    danar no meio do povo, das crianas e at mesmo dos adultos, no sei explicar por que ele amava

    dana! Como eu disse antes, ele nasceu para dana, notou? Certa poca, Cacau ganhou uma bolsa de

    estudos para danar jazz: esta foi a primeira experincia de dana, ficava apaixonado por essa

    experincia e acabou ficando durante um bom tempo. Mais tarde, ele ganhou vrias bolsas de estudo

    para dana popular, bal clssico, bal contemporneo, nos melhores companhias de dana do

    Maranho como bailarino profissional. At chegou o dia em que ele fazia parte das melhores

    companhias de dana do Maranho como bailarino profissional. Aos 24 anos de idade, ele recebeu

    convite para morar no Rio de Janeiro e ao mesmo tempo em que ganhou outras bolsas de estudos

    para dana de salo, bal clssico, jazz. Passou na audio (teste) para fazer parte da Cia de Dana

  • 18

    Carlinhos de Jesus e ficou durante 8 anos, fizeram shows em vrios lugares como TVs, teatros,

    empresas, etc., em todos os estados do Brasil e no exterior.

    Agora, vamos falar sobre oralizado, Hum! Essa histria feia. Como todos sabem as

    crianas surdas atrasam no processo de aquisio de linguagem como Cacau, na escola regular, ou

    seja, nas propostas de incluso em que os surdos no tm contato com a lngua de sinais. Se voc

    quiser saber e aprofundar sobre Aquisio da Linguagem, sugiro a leitura de livros e teorias sobre

    aquisio da linguagem (Karnopp 1994, Quadros 1997, Karnopp 1999,...) que tem toda a explicao,

    tambm o que ser oralizado e ser surdo. Ele viveu vida toda nas escolas regulares at ensino mdio.

    Acredita se quiser, ele conheceu o mundo surdo e da Lngua de Sinais quando ele tinha 24

    anos no Rio de Janeiro e descobriu sua lngua prpria surda, ou seja, lngua natural atravs de

    comunicao em Lngua de Sinais. Com o bom tempo, um surdo fazia poemas e ele viu e ficou

    emocionado, caiu um pingo de lgrimas e clareza natural.

    Em 1999, o descobrimento de identidade, navegou em um navio por um bom tempo entre terra

    maranhense e carioca, ele tinha duas identidades: fingir ser ouvinte e o verdadeiro ser surdo.

    Identidade fingir ser ouvinte: ele viveu no meio de crculo ouvinte, algo que tem limite por

    vrios motivos, ele sabe que deficiente auditivo, mas no sabe qual identidade e jamais imaginou o

    que identidade? Mas ele sempre dizia: EU SOU SURDO e na ficha coloca escrito deficiente

    auditivo, mas ele no sabia a diferena e sempre pensou que surdo e deficiente auditivo era o mesmo

    significado.

    Identidade ser surdo: ele descobriu lngua de sinais que tem comunicao natural entre os

    surdos ou povo surdo, que tem cultura surda como piada, poema, Literatura Surda, etc. No s

    objetivo comunicao, mas lngua que tem estrutura de Libras, gramtica, sistema, lingstica,

    competncia e outros, como outra lngua.

    Afinal, qual identidade dele?

    Ele vendeu identidade fingir ser ouvinte e comprou identidade ser surdo, ser surdo

    algo natural e pura comunicao pelo visual atravs da Libras.

    O Cacau surdo: esse sou eu e tenho orgulho de ser surdo!

    -------------------- / / ----------------------

  • 19

    Como me narro? Sou humana, sou Surda,

    usuria de Lngua de Sinais (LS),

    participo na Comunidade Surda

    (no vivo sem Comunidade Surda)...

    (Silveira 2006, p. 9)

    Hum! Literatura Surda? O que representa a Literatura Surda? Ser que a Literatura

    Surda est dentro do crculo da cultura surda? Essas so algumas perguntas que motivaram a

    pesquisa em torno da Literatura Surda. Com essa pesquisa, indico que as identidades surdas e

    os sujeitos surdos esto envolvidos em prticas sociais, adquirindo as subjetividades de

    fbricas culturais e trazendo em forma de discursos as representaes surdas.

    Hum! Interessante conhecermos um pouco da longa histria do povo surdo1, para

    podermos comprovar que atravs de obras de vrios autores e pesquisadores a Literatura

    Surda atravs do povo surdo se faz presente h muitos sculos. Como sabemos, h milhares

    de anos no existiam escritas e as histrias circulavam somente pela oralidade, passando de

    gerao a gerao. No mesmo caminho o povo surdo utiliza a sinalidade2, passando de

    gerao a gerao histrias em lnguas de sinais. No entanto, mesmo existindo obras e

    autores, recente o uso da temtica Literatura Surda, mesmo que os surdos contassem e

    recontassem histrias, narrativas, piadas e vrios gneros literrios atravs da comunidade

    surda. A noo de Literatura Surda comeou a circular em alguns pases da Europa e nos

    Estados Unidos, principalmente onde havia escolas de surdos. Em 1864 foi fundada a

    Universidade Gallaudet (Gallaudet University)3, em Washington D.C.; com o passar do

    tempo, os sujeitos surdos, acadmicos e pesquisadores construram significados em torno da

    Literatura Surda, espalhando para seus prximos, na comunidade surda, como nos encontros

    de surdos, escolas de surdos, associao de surdos etc. Alguns alunos surdos estrangeiros

    formados na Universidade Gallaudet voltaram para sua terra natal, espalhando-os a notcia

    para sua comunidade surda local, como escolas de surdos, associao de surdos, etc. Os

    acadmicos e pesquisadores comearam a divulgar materiais empricos, fazendo distribuio

    de livros, vdeos, etc. de fontes da Literatura Surda, da qual fazem parte a cultura surda e

    identidades surdas.

    1 Povo Surdo: conjunto de sujeitos surdos que no habitam no mesmo local, mas que esto ligados por uma

    origem, tais como a cultura surda, costumes e interesses semelhantes, histrias e tradies comuns e qualquer

    outro lao. (Strobel, 2006) 2 Sinalidade o termo que utilizo nesta Dissertao para a produo lingustica em sinais de surdos, assim

    como o termo oralidade tradicionalmente utilizado para o ouvinte. 3 Gallaudet University para saber mais, acesse: http://gallaudet.edu/

  • 20

    No fcil definir a Literatura Surda. Como no h uma definio ou uma nica

    conceituao para literatura em geral, tambm no h uma definio nica para Literatura

    Surda... H vrios anos que se alteram os seus significados de literatura at os dias de hoje.

    Cito Lajolo (2001, p. 25):

    O que literatura? uma pergunta complicada justamente porque tem

    vrias respostas. E no se trata de respostas que vo se aproximando cada

    vez mais de uma grande verdade, da verdade-verdadeira. Cada tempo e,

    dentro de cada tempo, cada grupo social tem sua resposta, sua definio.

    Respostas e definies v-se para uso interno.

    A proposta desta dissertao, assim, investigar a manifestao das produes

    culturais dos surdos em histrias que so contadas em Libras. O foco da pesquisa a anlise

    da forma como os surdos vm apresentando e construindo a Literatura Surda, atravs do uso

    da lngua de sinais. A partir disso, os objetivos so desdobrados na anlise das temticas e do

    uso da lngua de sinais nesta literatura, ou seja, eles so seguintes:

    a) Verificar quais histrias os surdos tm contado, como so caracterizadas essas

    histrias e quais so os temas apresentados;

    b) Analisar o uso da lngua de sinais e os recursos expressivos utilizados.

    Para desenvolver esta pesquisa, divido a dissertao em 5 captulos. Nestes captulos

    da minha dissertao h diferentes maneiras de pensar, experincias vividas, leituras e

    estudos. Naveguei durante um bom tempo para pescar os conhecimentos e comi bastante das

    palavras e significados, compartilhei pedaos de po com outros, ativei o crebro e o motor

    das mos e do visual, que agora podem compartilhar entre as muitas perguntas algumas

    respostas.

    No primeiro captulo, na seo Pertencimentos e Experincias, que esta, apresento

    os meus interesses de pesquisa e o surgimento de meu interesse pelo tema Literatura Surda.

    Busco tambm contextualizar a utilizao da expresso Literatura Surda. Mais

    especificamente, na seo Constituio da minha Identidade Surda apresento minha

    experincia vivida com a dana, apresentaes artsticas e culturais, o encontro com artistas

    surdos, com a comunidade surda e com a lngua de sinais. Na seo Territrio relato

    experincias vividas, aspectos da comunidade surda e conhecimentos adquiridos.

    No captulo Reconhecer a Cultura..., trago inicialmente um breve histrico da

    comunidade surda e comunidade surda brasileira, que fizeram um movimento entre a

    positividade e negatividade; fala tambm sobre artefato atravs da cultura surda.

  • 21

    Na seo Literatura Surda: um pouco da histria; adaptao e criao de histrias

    trago os registros das histrias de surdos, materiais em livros, DVD(s), representaes, assim

    como diferenas entre traduo, adaptao e criao de histrias.

    No terceiro captulo, com o ttulo Caminhos tericos-metodolgicos: a Literatura

    Surda produzida pelos acadmicos pesquisados, falo sobre a situao do curso de

    Letras/Libras e disciplinas, atravs Ensino a Distncia (EAD), sobre a metodologia de coleta

    de materiais de DVD(s) atravs de grupos de alunos no Plo UFSM com resumos de cada

    grupo que foram gravado em DVD(s). Entrevistei cada grupo perguntando sobre como foi

    organizado o grupo, como construram as atividades, como surgiu a idia, como foi expressa

    pelo grupo, como era a atividade. Essas perguntas foram respondidas por email e gravados em

    WEBCAM. Depois analisei o material que foi filmado e produzido em DVDs, buscando

    caractersticas gerais e organizando: tabelas, sobre Ilustraes/Imagens, Cenrio, e Processo

    Produo Literria. Verifiquei tambm as categorias de anlise das entrevistas, que

    representam as experincias em seus grupos.

    Na quarto captulo, denominado Representao dos Surdos e Literatura Surda (da

    Lngua de Sinais), aprofundo a questo da representao dos surdos e Literatura Surda.

    No quinto captulo trago Consideraes finais: as mos no terminam aqui, a partir

    da experincia em que naveguei no barco dos Estudos Culturais em que pesquei entrevistas no

    Plo UFSM e matrias produzidas em DVD(s). Descobri que todas as caractersticas gerais,

    entre entrevistas e materiais em DVD(s) so importantes, so algo que envolve prticas

    discursivas e crescentes atividades da Literatura Surda, integrando a representao surda.

    1.1 PERTECIMENTO E EXPERINCIAS

    Escut-las [as histrias] o incio da aprendizagem para ser um leitor,

    e ser leitor ter um caminho absolutamente infinito

    de descoberta e de compreenso do mundo...

    Abramovich (2002, p. 16)

    A literatura no est em um nico territrio, mas est presente em vrios territrios e

    em fronteiras de diferentes pases. A literatura iniciou pela oralidade, foi passando de gerao

    a gerao, depois surgiu a escrita. Cada pas conta suas narrativas, diferentes histrias atravs

  • 22

    das prprias comunidades. Assim, atravs das narrativas, as histrias so contadas para as

    pessoas e identificadas como pertencendo literatura japonesa, literatura rabe, literatura

    chinesa, literatura grega, literatura brasileira, literatura indgena entre outras. Tribos

    indgenas, na terra brasileira ou em diferentes territrios, trazem a literatura indgena atravs

    da oralidade, passando de gerao a gerao, ainda at os dias de hoje. A Literatura Brasileira

    do sc. XVI, considera-se que foi iniciada com a carta de Pero Vaz de Caminha, sobre o

    Descobrimento do Brasil, explicando detalhes do que havia acontecido na terra brasileira.

    Sobre a Literatura Brasileira, Bosi (1987, p. 15) afirma:

    Os primeiros escritos de nossa vida documentam precisamente a instaurao

    do processo: so informaes que viajantes e missionrios europeus

    colheram sobre a natureza e o homem brasileiro (...). Dos textos de origem

    portuguesa merecem destaque:

    a) A Carta de Pero Vaz de Caminha a El-rei D. Manuel, referindo o descobrimento de uma nova terra e as primeiras impresses da natureza

    e do aborgene. (...)

    No sc. XVII, comeou o Barroco no Brasil por intermdio dos jesutas, ligando a

    literatura arquitetura e escultura. Aps dois sculos, temos outra obra importante com

    Gregrio de Matos (1636-1696), que produziu poesia religiosa, poesia amorosa e poesia

    satrica. Tambm se deve citar o orador sacro Padre Antonio Vieira (1608 - 1697), que deixou

    a famosa obra Sermes. Cada sculo trazia um movimento literrio como o Arcadismo,

    Romantismo, Realismo e outros. H vrias obras, como de Antnio Francisco Lisboa,

    conhecido como Aleijadinho nas artes plsticas; Machado de Assis, Castro Alves, Monteiro

    Lobato, Mario Quintana, Carlos Drummond de Andrade, entre tantos outros autores, os quais

    deixaram registros histricos na Biblioteca Nacional (em obras disponveis). Os leitores

    podem ler vrios textos literrios; assim os textos orais ou escritos vo sendo passados e

    contados s pessoas: (...) para que exista uma literatura preciso certa continuidade, uma

    transmisso de experincias que s o estabelecimento em carter regular da relao

    AUTORES OBRAS PBLICO possibilita. (GONZAGA, 1989, p. 25). Logo, leitores ou

    ouvintes podem ter idia ao ler ouvir textos, possibilitando o surgimento de outros autores e

    outras obras literrias. A literatura inclui o conjunto de contos de fadas, poemas, piadas,

    crnicas, contos, mitos, lendas e outros gneros. Citando Coelho (1987, p. 10):

    A literatura , sem dvida, uma das expresses mais significativas dessa

    nsia permanente de saber e de domnio sobre a vida, que caracteriza o

    homem de todas as pocas. nsia permanente latente nas narrativas

    populares legadas pelo passado remoto. (...) Todas essas formas de narrar

  • 23

    pertencem ao caudal de narrativas nascidas entre os povos da Antiguidade,

    que, fundidas, confundidas, transformadas... se espalharam por toda parte e

    permanecem at hoje como uma rede, cobrindo todas as regies do globo: o

    caudal de literatura folclrica e de velhos textos novelescos que, apesar de

    terem origens comuns, assumem em cada nao um carter diferente.

    Estive refletindo sobre como surgiu a literatura que chegou na Literatura Surda para o

    povo surdo. De que forma esse tema est relacionado s identidades surdas, cultura surda e

    ao ser surdo? Citando Perlin e Miranda (2003, p.217-218):

    Ser surdo [...] olhar a identidade surda dentro dos componentes que

    constituem as identidades essenciais com as quais se agenciam as dinmicas

    de poder. uma experincia na convivncia do ser na diferena.

    [...] ser surdo uma questo de vida. No se trata de uma deficincia, mas de

    uma experincia visual. Experincia visual significa a utilizao da viso,

    (em substituio total a audio), como meio de comunicao. Desta

    experincia visual surge a cultura surda representada pela lngua de sinais,

    pelo modo diferente de ser, de se expressar, de conhecer o mundo, de entrar

    nas artes, no conhecimento cientfico e acadmico.

    Mas como comprovar que os surdos tm uma Literatura Surda? De onde surgiu a

    Literatura Surda? Para responder a essas perguntas, trago a noo de comunidade surda, para

    afirmar que a Literatura Surda surgiu dentro da comunidade surda4, em associaes de surdos,

    em encontros entre os surdos, em bares, colnias de frias, escolas de surdos, etc. Nesses

    lugares, os surdos se encontram para bate-mos5, conversam sobre costumes em vrias

    localidades, sobre suas experincias, contam histrias. Cito a autora Soares (2006, p. 36) A

    literatura vista como cultura regional transmitida, na maioria das vezes, oralmente de forma

    que os detalhes podem variar entre os narradores das histrias.

    Tradicionalmente, a literatura vista com participando de culturas regionais em que o

    sujeito ouvinte conta histrias e uma das possibilidades que todos podem ouvir as histrias,

    se emocionar com o que ouvem, refletir e criar mil maneiras de pensar. Podem surgir formas

    de se expressar a si mesmo, atravs de piadas e poemas, por exemplo. O mesmo pode

    acontecer com o sujeito surdo ao trazer as narrativas da comunidade surda, mostrando

    histrias interessantes, que usam as mos e a viso. Tais histrias em geral emocionam e

    4 Strobel (2006, p. 32), cita os surdos americanos, Padden e Humphries (2000, p. 5) para afirma: Uma

    comunidade surda um grupo de pessoas que vivem num determinado local, partilham os sujeitos comuns dos

    seus membros, e que por diversos meios trabalham no sentido de alcanarem estes objetivos. Uma comunidade

    surda pode incluir pessoas que no so elas prprias Surdas, mas que apiam ativamente os objetivos da

    comunidade e trabalham em conjunto com as pessoas Surdas para os alcanar. 5 Bate-mos o termo correspondente a bate-papo ou conversa ou comunicao pela Lngua de Sinais.

  • 24

    exploram o que visualmente produzido na lngua de sinais, que atravs do olhar podemos

    sentir e entender. algo que faz rir pela piada, emocionar pelo poema, etc. O surdo ouve pela

    viso, e a Literatura Surda surge: como uma rvore balanada pelo vento e a folha, ao cair e

    ser levada pelo vento para outros lugares, finalmente pisa na terra, se transforma, adubada e

    brota na terra... feliz para sempre. A Literatura Surda emociona aqueles que ouvem pela

    viso e transforma, brilha, nos arrepiando. Ento, destacando a viso, reflito que h mil

    maneiras de pensar, citando Lebedeff (2005, p. 181):

    De acordo com Carter, Carter e Fleischer (2005), os surdos se renem em

    associaes e eventos sociais possuindo sua prprias instituies e tradies.

    Segundo os autores: os surdos se unem e se aproximam em funo da lngua

    de sinais e, a partir dela, desenvolvem sua prpria cultura.

    Os surdos, ao contar em histrias dentro da comunidade surda, transmitem para outros

    sujeitos surdos, para outras comunidades surdas, a cultura surda, que se espalha pelo pas,

    possibilitando tambm a visibilidade da cultura surda atravs da traduo para outros pases.

    No somente h traduo para povo surdo, tambm para povo ouvinte, atravs da traduo

    para as lnguas faladas.

    Mas o que Literatura Surda? Perguntas eternas, permanentes, respostas imprecisas,

    vagas, provisrias! Mais do que responder a essa pergunta, talvez o contato com as narrativas,

    com os poemas e as histrias que circulam nas comunidades surdas nos tragam evidncias da

    forma como os surdos vm apresentando e construindo a Literatura Surda.

    1.2 CONSTITUIO DA MINHA IDENTIDADE SURDA

    Farei um memorial explicando como surgiu o meu interesse pelo tema da Literatura

    Surda, de onde veio e como foi parar em minha mente atravs dos sinais visuais e das mos,

    com a lngua de sinais. Tenho muito interesse de entrar com mais profundidade na cultura do

    povo surdo, e isso est ligado minha experincia de teatro, dana e expresso corporal,

    atravs de vrios espetculos no Brasil e exterior, principalmente com a Literatura Surda e

    teatro surdo.

    Antes de mais nada, destaco que trabalhei em vrios espetculos de dana e teatro em

    So Luis, Maranho, onde nasci. uma longa histria, em que pude me certificar que tenho

  • 25

    mais facilidade de me expressar corporalmente. Quando eu era jovem, passava um bom

    tempo me relacionando com os meus amigos artistas, por exemplo, quando me encontrava

    com eles em bares, em casa ou na praia. A gente aproveitava para brincar com expresso nos

    rostos, identificando o que marcava o rosto como triste, amor, mulher, etc. claro que desde

    pequeno eu gostava de dana, ia a muitas festas como aniversrios, festas juninas, etc. Toda

    minha famlia (todos so ouvintes e sou o nico surdo da famlia) e colegas me motivaram

    positivamente para que eu continuasse a gostar de dana. Gostava tambm de filmes, brincava

    com meu irmo mais velho, Luis Henrique, no quintal de casa, fazia como ndios contra

    soldados, Zorro, etc., imitando os personagens dos filmes. Finalmente, j quase adulto,

    frequentava baladas, festas juninas, festa popular, etc. Certa vez, conheci um professor de

    dana Jazz, Henrique Serra, que frequentava balada e, assim, ele me ensinou alguns passos

    dos movimentos e at brincamos com personagens. Um ano depois, ele me repassou uma

    bolsa de estudo para curso de dana jazz; logo integrei um grupo de jazz para me apresentar

    em vrios eventos, que foram sucessos. Depois de um ano de dana jazz, conheci artistas,

    recebi convites e ganhei bolsa de estudos para cursos de dana popular, bal clssico, bal

    contemporneo, performances, nas melhores academias de dana em So Luis/MA.

    Finalmente, passei num teste de dana popular e bal clssico que fazia parte da pera Brasil,

    dirigida por Fernando Bicudo (era diretor do Teatro Municipal do Rio de Janeiro) no Teatro

    Arthur Azevedo e apresentamos vrios espetculos como Catirina6 (Fig. 1) espetculo de

    bumba-meu-boi, misturando dana e teatro; Nordestenamente7 (Fig. 2) e outros. Alm disso,

    continuava a danar em sala de aula e me identificava com a expresso corporal.

    6 Espetculo Catirina, dirigido por Fernando Bicudo, de 1996 a 1998. Catirina - baseada no Auto do Bumba-

    meu-boi do Maranho. O cenrio uma fazenda; Catirina e Pai Francisco (Chico) so casados e os principais

    personagens. Catirina est grvida, deseja comer a lngua do boi; Pai Francisco rouba o boi para satisfazer a sua

    mulher. O Amo, dono da fazenda, soube e manda perseguir culpado pelos vaqueiros e pelos ndios. O Chico encontrado e levado presena de todos. Catirina, comovida, acaba confessando a culpa. Perdoados, encontram

    boizinho que salvo pelos doutores e pajs, reanimando-se e urrando em meio a alegria de todos. 7 Espetculo Nordestenamente, dirigido por Fernando Bicudo, de 1996 a 1998. Nordestenamente um

    espetculo de danas e festas populares do Nordeste, em trs ciclos: O grupo junino como a Quadrilha, Xaxado,

    Forr, Cco e Ciranda; O grupo afro como Lundu, Maculel, Orixs e Maracatu; e o grupo carnavalesco como o

    Frevo e dana do Caboclinho.

  • 26

    Chiquinho, Fauno e Catirininha.

    Figura 1: Folder (15x15) - Espetculo Catirina. Atrs Tapuios e Rajados, em frente 1 Vaqueiro (2 Vaqueiro com varas,

    atrs do Chico e Catirina), Amo, Chico, Miolo do boi (meio) e Catirina.

    Figura 2: Panfleto (20x22) - Espetculo Nordestenamente: Uma viagem pelas danas e festas populares do Nordeste

  • 27

    Naquela poca, antes de entrar no mundo artstico, eu experienciava duas

    possibilidades identitrias. Uma delas era a experincia de fingir ser ouvinte: eu vivia no

    meio do territrio falante, onde se encontrava o povo majoritrio e eu precisava fingir ser

    como eles para me sentir pertencente quela comunidade. Se eu demonstrasse ser deficiente

    auditivo, estaria excludo do territrio falante. Mas, eu entendia como sinnima a relao

    entre surdo e deficiente auditivo, era a mesma relao, os dois significavam o mesmo; eu

    desconhecia a diferena entre o surdo e deficiente auditivo. Logo que eu entrei no mundo

    artstico e artes, me identificava como surdo, sentia que tinha habilidade artstica e era um ser

    humano como os outros, mas no sabia que existia cultura surda ou lngua de sinais, que

    uma lngua prpria para surdo como primeira lngua, tudo isso era desconhecido para mim.

    Quadros e Karnopp (2004) afirmam que a Libras a lngua usada pela comunidade surda no

    Brasil e que h estudos que demonstram os diferentes nveis lingsticos (fonologia,

    morfologia, sintaxe...) do uso e do funcionamento desta lngua. Apresenta uma gramtica,

    sendo utilizada de forma visoespacial. Portanto, no se trata de mmica ou gestos

    improvisados, como certos ouvintes s vezes pensam.

    Em 1997, recebi convite de Fbio de Mello, um ex-coregrafo da Cia de Dana

    Carlinhos de Jesus, para trabalhar no Rio de Janeiro, e l ganhei duas bolsas de estudos:

    dana/teatro e teatro surdo. Ele era amigo de Nelson Pimenta8, ator, ex-professor no Centro

    Educacional Pilar Velsquez, da escola de surdos, Professor de Libras e Teatro e trabalhavam

    juntos num grande espetculo de teatro.

    Em 1998, quando eu tinha 24 anos, mudei para Rio de Janeiro, comecei a estudar

    lngua de sinais e teatro atravs da comunidade surda e dana/teatro na Casa de Dana

    Carlinhos de Jesus. Nessa idade, pela primeira vez entrei em contato com a comunicao pela

    lngua de sinais, atravs de Nelson Pimenta. No foi a primeira vez que vi a lngua de sinais,

    antes j havia visto na minha terra maranhense, via os surdos na praia ou em pblico.

    Lembro-me que eu malhava em uma academia de musculao, tinha um surdo que se

    comunicava com um ouvinte atravs da lngua de sinais. Estava fazendo musculao, o

    professor me apresentou a eles, eu no tinha idia de como me comunicar. Ao mesmo tempo,

    fiquei impressionado que um surdo e um ouvinte estavam se comunicando pela lngua de

    sinais. Ento, conversamos bastante pela oralizao, enquanto o ouvinte interpretava com a

    lngua de sinais para o surdo, mas jamais imaginei que a lngua de sinais era uma lngua!

    8 Nelson Pimenta nasceu em Braslia em 1963, reside no Rio de Janeiro, e foi a primeiro ator surdo a se

    profissionalizar no Brasil.

  • 28

    Voltemos ao assunto anterior Rio de Janeiro, para continuao. Depois de um ano

    de estudo de dana, passei no teste de audio (tipo de seleo) para fazer parte da Cia de

    Dana Carlinhos de Jesus. Na Companhia, apresentamos em vrios eventos como em teatros,

    novelas, filmes, desfile na comisso de frente da escola de samba da Mangueira, TV, etc.

    Viajamos para o interior do Brasil e exterior como Lisboa-Portugal, Peru, Bolvia e outros.

    Algumas vezes, pude passar minha experincia de expresso corporal e facial para meus

    colegas ouvintes danarinos na Companhia. L tambm fortaleci senso de disciplina, alma,

    leveza, representao de personagem, sensibilidade para relacionar sentimentos (alegria,

    tristeza) com dana, etc.

    Foi nessa poca que aconteceu uma grande surpresa pra mim: a descoberta da lngua

    de sinais! Comecei a pesquisar o mundo surdo, ou seja, a cultura surda. Busquei informaes,

    aprofundei mais detalhes, de onde vieram, etc. At mesmo no teatro, onde eu no esperava

    tanto assim, tinha viso identidade surda: na minha viso, podia identificar expresso

    corporal at nas mos, a lngua de sinais. Tudo era comunicao para mim.

    Ento, fui convidado para fazer parte de teatro surdo, no espetculo de Nelson

    Pimenta, Nelson 6 ao Vivo; na Cia Surda de Teatro, no Grupo Lado a Lado (Fig. 3) e na

    Cia Teatro Absurdo (Fig. 4) no Instituto Nacional de Educao de Surdos INES. Fiquei

    fascinado com o meio dos surdos artistas e povo surdo, at mesmo com o bate-mos.

  • 29

    Figura 3: Cia Surda de Teatro, Grupo Lado a Lado. Folder (15x20). Em 1999, espetculos em Rio de Janeiro/RJ

    no INES e o V Congresso Latino-Americano de Educao Bilnge para Surdos, realizado em Porto Alegre/RS,

    na UFRGS.

  • 30

  • 31

    Figura 4: Cia Teatro Absurdo. Panfletos (20x20). Espetculos eventos no Rio de Janeiro/RJ.

    Lembro-me que houve um encontro em um restaurante-pizzaria em So Paulo, numa

    mesa comprida, onde eu estava com os surdos para um bate-mos. De repente, uma pessoa,

    Sandro Pereira9, surdo, levantou o brao e ficou em p, todos viram que ele disse: Vou fazer

    poema para vocs! Eu estava sentado no meio da mesa e pensei assim: Odeio poema! (eu

    tinha trauma da escola regular, quando lia poemas, e eu no entendia seu significado,

    enquanto outros ouvintes ficavam com lgrimas e emocionados ao ler poemas). Ento, eu

    disse, educado e sorrindo: Por favor, comece! Assim, ele fez poema atravs da lngua de

    sinais... De repente, fiquei emocionado, cheio de rvores na pele e fiquei com lgrimas nos

    olhos brilhantes, pois eu nem esperava tanto assim. Poema surdo me fez descobrir que a

    9 Sandro Pereira Surdo, profissional ator e professor, conhecido na comunidade surda da grande So

    Paulo/SP. Saiu na revista Sentido, em 06/07/2002: ..."Se examinarem meu sangue encontraro em todas as

    clulas TEATRO, teatro. minha vida. Mas no quero que aparea eu, o Sandro, e sim a cultura surda".

    Disponvel site: http://sentidos.uol.com.br/canais/materia.asp?codpag=2203&cod_canal=3. Acesso em 13 de

    junho de 2009.

    Depois sucesso do

    espetculo A LIO, em

    2002, convidamos os alunos

    do INES para fazer parte da

    Companhia de Teatro

    Absurdo, promovido

    pelo INES. Direo de Alexandre Luiz (surdo) e

    Breno Moroni. Coreografia

    de Cacau Mouro.

  • 32

    Lngua de Sinais se tornou minha primeira lngua, a minha lngua prpria, e o portugus

    minha segunda lngua. Isso faz parte da cultura surda e me identifica como surdo.

    Em 2001, consegui entrar na Faculdade Estcio de S, curso de Educao Fsica em

    licenciatura plena; a maior dificuldade que no tinha intrprete de lngua de sinais na sala de

    aula. A maior parte do meu estudo era feita com a leitura dos livros, para conseguir

    acompanhar as matrias, mas apenas uma porcentagem (mais ou menos 60%, dependendo da

    linguagem dos livros) eu conseguia entender nessas leituras, e perdia muitas informaes na

    prpria sala de aula. Na faculdade, tinha uma professora de Psicologia que comentou ao meu

    respeito com a colega dela, coordenadora da Vila Olmpica Carlos Castilhos10

    . A professora

    me pediu que eu levasse meu currculo para a coordenadora. No dia seguinte, fui l para

    conhec-la e apresentei meu currculo; uma semana depois, recebi email com convite para

    trabalhar como estagirio e professor de dana de salo para alunos que moravam prximo da

    favela ou bairro, e como professor de Libras para professores de Educao Fsica; fiquei l de

    2003 a 2005. No primeiro dia do trabalho, tinha uma nica aluna para dar aula de dana de

    salo; ela ficou surpresa que eu era surdo, mas me comunicava pela oralidade (no quer dizer

    que sei falar oralmente com perfeio - apenas minha segunda lngua portuguesa); no outro

    dia e nos dias seguintes, veio mais gente, porque essa primeira aluna espalhou na favela onde

    era conhecida. Ento expliquei para meus alunos e alunas sobre minha lngua de sinais e

    cultura surda. Assim, sempre tive mais de 30 alunos na sala de aula naquele lugar.

    Quando eu estava no 3 semestre da faculdade, eu soube, atravs da comunidade surda,

    que havia intrprete de lngua de sinais na Faculdade Universo, em Niteri-RJ. Por mim, na

    hora, me transferi para l, fiquei aliviado que podia entender tudo na sala de aula sem maiores

    dificuldades. Notei que, com as novas condies, durante as provas, sempre terminava mais

    cedo. Assim, antes na faculdade sem intrprete, eu no tinha bom rendimento notas baixas,

    recuperao e reprovao. Depois, na outra faculdade com intrprete, tirava notas boas, nunca

    mais fiquei em recuperao e sempre tive bons resultados, simplesmente porque tinha

    intrprete de lngua de sinais na sala de aula. nica diferena uma lngua. Essa minha lngua

    lngua de sinais como primeira lngua e segunda lngua lngua portuguesa.

    Durante bom tempo com Nelson Pimenta, aprendi a observar o jeito de utilizar a

    lngua de sinais em alguns poemas surdos, at como contar histrias, fbulas, e cada vez me

    fascinava mais a Literatura Surda. Ele morou um ano no EUA, estudou teatro surdo, passou

    maior parte do tempo pesquisando na comunidade surda no teatro e poesia. Sutton-Spence &

    10

    A Vila Olmpica Carlos Castilhos tem ginsio, quadra de esportes, campo de futebol, pista de atletismo e

    piscinas para todos os esportes, e um local mantido pela Prefeitura na favela do Morro do Alemo.

  • 33

    Quadros (2006, p. 112) afirmam: Nelson Pimenta tambm foi influenciado pela escola

    potica americana, crescendo com o trabalho do NTD11

    atravs do seu contato com poetas

    surdos americanos contemporneos na Universidade Gallaudet12

    .

    Nelson Pimenta trouxe esses conhecimentos ao Brasil, para espalhar e contribuir com

    o grupo de teatro surdo e escolas surdas. Eu fazia parte do espetculo de Nelson Pimenta,

    Nelson 6 ao Vivo (Fig. 5 e 6) e outros trabalhos como oficinas e espetculos diferentes em

    vrias partes do Brasil; felizmente eu estava por perto dele na maior parte de tempo. Todas as

    vezes que fizemos trabalhos, no momento do intervalo ele me contava algumas histrias,

    fbulas, at expressava poemas. Durante esse espetculo de Nelson Pimenta, quando eu

    estava fora do palco, escondido na cortina, em que as platias no podiam me ver, e ele estava

    no meio do palco e interpretava alguns poemas, eu no perdia ele de vista para poder assistir

    ao espetculo. Jamais me cansei de v-lo repetir poemas surdos, at viajamos juntos para

    fazer espetculos em vrios lugares do Brasil. claro que eu tambm fazia teatro com Nelson

    Pimenta, alm de danar; fazamos teatro juntos ou sozinho, enquanto ele trocava roupas ou

    vice-versa durante espetculos.

    Figura 5: Espetculo Nelson 6 ao vivo. Folder (12x20): Local: Teatro Calil Haddad, Maring, PR 2005, espetculos em vrias cidades do Brasil.

    11

    NTD - National Theatre of the Deaf (Teatro Nacional de Surdos), Fundada em 1967, por David Hays, no

    E.U.A. Disponvel em: http://www.ntd.org/. Acesso em 13 de junho de 2009. 12

    Universidade Gallaudet (Gallaudet University) a nica universidade do mundo cujos programas so desenvolvidos para pessoas surdas. Est localizada em Washington, DC, a capital dos Estados Unidos da

    Amrica. Acesso em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Universidade_Gallaudet. Disponvel em: 13 de junho de 2009.

  • 34

    Figura 6: Espetculo Nelson 6 ao vivo. Panfleto (15x20) local: Teatro GACEMSS, Volta Redonda\RJ - 2004

    Essa experincia me mostrou como, com poema surdo, tambm teatro surdo, posso

    transmitir e expressar a viso do povo surdo para reforar seu poder e identidade. Com base

    em Finnegan (1977), Sutton-Spence & Quadros (2006, p. 113) afirmam: Como todas as

    lnguas de sinais tradicionalmente no apresentam um sistema escrito, o conhecimento

    cultural das comunidades surdas, que passado por meio da lngua de sinais, transmitido

    visualmente.

    1.3 TERRITRIO...

    "Os outros ouvem, eu no. Mas tenho olhos,

    que forosamente observam melhor do que os eles.

    Tenho as minhas mos que falam..."

    "Os que ouvem tm tudo a aprender

    com aqueles que falam com o corpo.

    A riqueza da sua lngua gestual

    um dos tesouros da humanidade."

    (Laborit, 1994)

    Na infncia e adolescncia das pessoas, no territrio local, existem mltiplas

    manifestaes culturais ou diferenas culturais. Manter algumas convivncias e participar de

    alguns ambientes, interagir com as pessoas pela comunicao, respeitar um ao outro, enfim,

    isso o que costumeiramente fazemos na escola, onde aprendemos a construir a vida. Cada

  • 35

    aluno adquire informaes durante as aulas, principalmente na lngua do territrio nacional,

    que no somente uma manifestao de lngua, tambm uma prtica de conversao em

    diferentes locais, onde encontramos diferenas como as variaes regionais. Costumamos ver

    em novelas ou filmes brasileiros que a fala manifesta diferenas locais e pela fala se adquire a

    linguagem e se constroem significados.

    J no meio da famlia acontecem almoos, jantares, atividades de lazer, e outras

    atividades que integram as crianas ou os jovens. Eles sentem prazer de participar de uma

    conversao, as palavras voam pelo ar, pela boca, com velocidade, desembarcam nos ouvidos

    um do(s) outro(s), que logo vo buscar as malas na esteira e dentro dessas malas existem

    milhes de palavras, que habitam na casa do crebro, escolhendo uma das duas estradas:

    direita ou esquerda. A direita move o motor para manter o corpo em ordem, enquanto a

    esquerda constri as palavras, os significados. Elas sempre mantm contato entre as linhas,

    so conectores da transversalidade, os conectores do crebro e do corpo, que envolvem as

    prticas sociais, atribuindo valores s palavras e ao mesmo tempo adquirindo mltiplas

    formas culturais.

    Figura 7: Desenhos de Cludio Mouro

  • 36

    J imaginou como seria um surdo no meio do territrio da infncia e da adolescncia?

    Relembro da minha infncia e adolescncia em que convivia em um territrio desconhecido,

    estava no meio das pessoas, sempre estava l com os outros, via que eles brincavam, jogavam

    futebol, enfim. Mas sentia falta de algo em minha vida; no estou fazendo crtica, algo

    que no sei explicar, mas como se nada acontecesse. Os outros podiam ficar ali, aqui e l

    enquanto eu permanecia parado sem saber o porqu. Mas continuava sorrindo, sem motivo,

    buscava algumas coisas para entender o que era aquilo ali, mas continuava entendendo pouco.

    Eu olhava meu corpo e crebro: era como eles, o que havia de errado? Eles abriam a boca

    dirigindo-se aos outros e vice-versa, enquanto eu tentava imit-los, ser como eles, outras

    bocas no respondiam. A diferena para mim estava na boca/fala e brincar, a boca que tentava

    imitar o outro. Enquanto isso, eu brincava no meio do territrio da diferena e com o maior

    prazer eu participava de natao, futebol de campo, ping-pong, sinuca, dana popular

    (quadrilha, forr e outros) e outros tipos de jogos, sem maiores dificuldades. Esse tipo de

    jogos fui desenvolvendo nas prticas sociais. Na infncia ficava a maior parte da vida

    brincando e assim, fui descobrindo significados dos jogos enquanto a boca era desconhecida.

    No quer dizer que nenhum som saa da boca, sabia emitir alguns, com a voz formando

    palavras como Mame, Papai, gua, Cachorro, Coc, Casa, Parar, No,

    Sim com o mnimo de palavras e sem contexto das palavras. No que fui desenvolvendo

    as palavras no meio dos jogos, mas apenas pelo olhar, pois este visual mostrava as regras

    dos jogos, sabia exatamente aquilo que podia e no podia, etc..., esse olhar que ensina e

    captura os significados, mas isso no veio das palavras. Citando, Laborit (1994, p. 17), sobre

    sua experincia de surda com a me ouvinte:

    Aprendi a oralizar o -b-c. As letras eram representadas para mim por

    movimentos da boca e gestos da mo. (...) Era uma ocupao me-filha. Foi

    pela identificao com essa mulher que minha me reaprendeu a falar

    comigo. Mas nossa maneira de nos comunicarmos era instintiva, animal,

    chamo-a de umbilical. Tratava-se de coisas simples, como comer, beber, dormir. Minha me no me impedia de gesticular, como lhe haviam

    recomendado. No tinha coragem de me proibir. Tnhamos signos nossos,

    completamente inventados.

    Fig. 7: Desenho feito em um momento que eu no agentava e me irritava, por no

    entender a aula, onde no tinha intrprete de Lngua de Sinais. Logo senti que precisava de

    alguma coisa para me acalmar. Peguei um pedao de papel, desenhei para me expressar.

    Na disciplina de Futebol, no ms de maio de 2006, curso de Educao Fsica no Centro

    Universitrio Metodista IPA, em Porto Alegre/RS.

  • 37

    Na escola o mesmo acontece entre a boca e o brincar; todas as crianas e adolescentes

    tm direito de escrever, aprender e brincar, enquanto o indivduo surdo continua escrevendo

    como imitao/cpia, pouco aprende e permanece muitas horas sem interagir. Em minha

    viso fui descobrindo as palavras que saiam da minha voz pela boca, via as palavras voando

    (daquelas que sabia significados). Indivduo surdo, eu sabia que a voz produzia as palavras

    e significados, sabia tambm que algo faltava para completar as palavras, as frases, enquanto

    que o sujeito ouvinte tem voz completa das palavras. Mas tenho identidade como eles e estou

    assujeitado na cultura, sei exatamente como eles so e assim percebo a minha identidade.

    Mas, por que no tenho identidade como eles, Voz e boca? Percebia que minha voz era a

    grande desconhecida, sem cura para a identidade da voz das palavras.

    Mais tarde, logo que naveguei de barco no meio das tempestades, chuvas e cheio de

    troves e raios, finalmente o sol apareceu entre as nuvens, brilhou na direo do barco, a

    neblina foi abaixando e percebi que no cu era lindo o dia. De repente, vi unicamente duas

    mos sem corpo que apareceram voando no cu, como se fossem pssaros, voando

    suavemente e me olhando com sorriso, deu sinal de arco-ris. Neste momento, meus olhos

    brilharam, logo que arco-ris tocou o cho, vi que a terra vista era chamada Lngua de Sinais.

    As rvores se formaram nas mos, uma mo dizia COMUNICAR, outra mo dizia:

    ENSINAR, SABER, CONHECIMENTO, ESCRITA, POLITICA, AMOR e

    outros. Cito Laborit (1994, p. 69), sobre uma experincia semelhante minha:

    Com a descoberta de minha lngua, encontrei a grande chave que abre a

    porta que me separava do mundo, posso compreender o mundo dos surdos e

    tambm o mundo dos ouvintes. (...) Tinha construdo uma reflexo prpria.

    Necessidade de falar, de dizer tudo, de contar tudo, de compreender tudo.

    Vi que os sujeitos surdos se comunicam pelas mos que era ento a grande

    desconhecida para mim. Desembarquei na terra Lngua de Sinais, os meus ps criaram razes

    e descobri que esse meu mundo surdo. Como se uma semente estivesse saindo, formando

    rvore de mo, ou seja, nasci em terra surda. Eles so como eu, com o mesmo territrio

    visual, cultura e comunicao. Cito Perlin (2004, p.75):

    Segundo Hall, (1997, p. 20): A cultura que temos determina uma forma de ver, de interpelar, de ser, de explicar, de compreender o mundo. Ento a cultura agora uma das ferramentas de mudana, de percepo de forma

    nova, no mais homogeneidade, mas de vida pessoal, constitutiva de jeitos

    de ser, de fazer, de compreender, de explicar.

  • 38

    Este territrio surdo algo que completa a vida para o surdo, no focalizando

    somente o surdo, mas algo que acontece pela comunicao, aquilo que provoca em cada

    um e no outro que recebe a informao, as palavras completas, os significados. Nosso corpo

    age sob efeito de emoo, de compreenso, de entendimento, de conhecimento, enfim age

    como Lngua. Isto acontece comigo, o ser surdo, que est no territrio surdo e com uma

    prpria lngua como a lngua de sinais; e com o ser ouvinte, que est no territrio ouvinte,

    com uma lngua prpria como a lngua falada (portugus, ingls, espanhol, etc.). Entre as

    crianas ou adolescentes surdos h algo como sensao de prazer enorme que estar na

    mesma cultura entre visualidade/gestos, no compartilhando somente o sistema lingstico,

    tambm a identidade e ambientes, principalmente na escola com a presena de professor

    surdo. No importa se o professor ouvinte ou surdo, importante que saiba fluentemente a

    lngua de sinais, que entendam de cultura surda, hbitos, adquirindo a lngua e participando da

    comunidade surda. A significao das palavras algo importante de saber e entender, nosso

    direito na escola.

    As mos, na lngua de sinais, produzem as palavras, voam como a velocidade da luz,

    atravessam a viso do outro, desembarcam no aeroporto dos olhos, automaticamente as malas

    vo parar no crebro, explodindo os maiores parques do mundo, onde podem brincar de roda

    gigante, carrossel, montanha russa. Com as palavras gritando, entre uns e outros, so

    produzidas linguagens que se conectam alm do significante/significado, se tornam signos, e

    logo nasce o compreender e entender das palavras. Os alpinistas sanguneos (grupos

    sanguneos), que carregam os signos, atravessam os braos, em meio rea montanhosa,

    vo at o fim, chegando s mos, entregando s mos as palavras/significados que voam para

    outra viso, que as recebe, com maior prazer de entendimento. Cito Laborit (1994, p. 67):

    (...) me haviam dado uma lngua que me permitia faz-lo. Compreendia que

    meus pais tinham sua lngua, seu meio de comunicao, e que eu tinha o

    meu. Pertencia a uma comunidade, tinha uma verdadeira identidade. Tinha

    compatriotas.

    No significa que fechamos as fronteiras na terra surda, mas que somos diferentes

    nas culturas e identidades, e interagimos com fronteiras e globalizao - onde se envolvem

    prticas, ao e tudo se torna poltica social. A diferena est tambm na lngua, no somos

    deficientes, somos minoria lingustica.

    Portanto, se eu estivesse na escola de surdos durante a minha infncia, tendo a lngua

    de sinais como a primeira lngua e a lngua portuguesa como segunda lngua na modalidade

  • 39

    escrita, estariam completas as palavras, significados e informaes. Poderia escrever cedo

    com mais detalhes, teria mais histrias, mais leituras, mais poesias, enfim, principalmente

    jogos e lazer com os surdos e ouvintes. Se no tivesse descoberto a terra surda, eu nem estaria

    formado na faculdade muito menos como mestrando...

  • 40

    2 RECONHECER A CULTURA...

    Os surdos so diferentes das pessoas que ouvem.

    Eles podem fazer qualquer coisa que

    os que ouvem fazem, menos ouvir.

    (Wrigley, 1996, p. 81)

    Recusamo-nos a ser o que vocs querem. Somos o que somos, e assim que vai ser.

    Bob Marley

    Surdez? Surdo? J pensou nisso ou j ouviu falar qual diferena entre eles?

    comum em cursos superiores de formao, que a maioria dos profissionais conclua a

    faculdade e aprenda, atravs dos textos, sobre a Surdez com base cientfica, com nfase no

    conhecimento comprovado pela rea da sade, como medicina, fonoaudiologia,

    otorrinolaringologia, educao especial. Tais reas enfatizam prioritariamente (ou

    exclusivamente) a relao do surdo com o deficiente, enfim, sem ao mnimo fornecer

    informaes sobre cultura, identidade, diferena e lngua. Neste sentido, quais representaes

    os profissionais adquirem sobre os surdos? Na rea da sade, temos uma longa histria que

    dominava o territrio surdo com o objetivo de transform-lo, a partir de prticas ouvintistas13

    .

    J se passaram sculos de muita batalha, de prticas colonialistas, mas os surdos continuam

    mantendo em p rvores de sinais, visuais no ar, borboletas na mo, chuvas de lgrimas e

    terremotos de emoo e sentimento. Compartilho com Skliar (1998, p. 7):

    Foram mais de cem anos de prticas enceguecidas pela tentativa de correo,

    normalizao e pela violncia institucional; instituies especiais que foram

    reguladas tanto pela caridade e pela beneficncia, quanto pela cultura social

    vigente que requeria uma capacidade para controlar, separar e negar a

    existncia da comunidade surda, da lngua de sinais, das identidades surdas e

    das experincias visuais, que determinam o conjunto de diferenas dos

    surdos em relao a qualquer outro grupo de sujeitos.

    Temos uma longa histria, de avanos e retrocessos, sculos de opresso e resistncia,

    mas gostaria de registrar o que chamo de Terremoto Surdo, a partir de alguns registros que

    so contados como a histria dos surdos, entre milhares de histrias que so narradas,

    13

    Ouvintismo Trata-se de um conjunto de representaes dos ouvintes, a partir do qual o surdo est obrigado a olhar-se, e nesse narrar-se que acontecem as percepes do ser deficiente, do no ser ouvinte; percepes que

    legitimam as prticas teraputicas habituais. (Skliar, 1998, p. 15)

  • 41

    admiradas, interessantes, enfim como positividade ou como um Terremoto Surdo. Um

    Terremoto Surdo aconteceu em 1880, em uma Conferncia Internacional, em Milo, Itlia,

    em que foram banidas as Lnguas de Sinais, obrigando-se que os surdos fossem oralizados,

    obrigando-se a ter identidade auditiva. Houve, com isso, um grande impacto, como se um

    cometa tivesse cado no Territrio Surdo, explodindo como a bomba atmica. Por pouco que

    no foram extintos, mas os surdos sobreviveram e assim recomearam a reconstruir a vida de

    surdo. Citando Mouro (2007, p. 11):

    Existia o ensino como educao para surdos, at tiveram professores surdos

    que ensinaram Lngua de Sinais naquela poca.

    No ano de 1880, foi realizada uma conferncia internacional em Milo com

    o objetivo de discutir o futuro da educao para os surdos. Foi questionado

    se o ensino deveria se dar em Lngua de Sinais ou atravs do Oralismo. O

    mtodo oralismo venceu por vrios motivos, dentre eles, devido idia de

    que sem fala no existe pensamento, filosofia de Aristteles, etc. Isto

    demitiu professores surdos aps Congresso.

    Outro autor, Carvalho (2007, p. 90) relembra:

    Apesar das decises do Congresso de Milo de 1880 que proibiam a

    utilizao da Lngua Gestual nas escolas, os surdos continuaram a agrupar-

    se. A Lngua Gestual continuou a transmitir-se de gerao em gerao graas

    aos jovens surdos, principalmente os internos das escolas residenciais, que

    continuavam a exprimir-se em Lngua Gestual s escondidas, evitando os

    castigos dos educadores ouvintes.

    Conseqentemente, as escolas proibiram o uso da lngua de sinais, impondo somente

    oralismo; se algum usasse a lngua de sinais, era castigado ou batiam nas mos; alm

    disso, foram demitidos os professores surdos. Fao duas citaes sobre o oralismo:

    Oralismo: (...) A concepo do sujeito surdo ali presente refere

    exclusivamente um dimenso clnica a surdez como deficincia, os surdos como sujeitos patolgicos em uma perspectiva teraputica. A conjuno de idias clnicas e teraputicas levou em primeiro lugar a uma transformao

    histrica do espao escolar e de suas discusses e enunciados em contextos

    mdicos-hospitalares para surdos. (PERLIN 1998, p. 59).

    E, citando Moura (2000, p. 52):

    O oralismo se baseou em muitas tcnicas, que foram se desenvolvendo com

    o avano da tecnologia (eletroacstica: aparelhos de ampliao sonora

    individual e coletivo, para um maior aproveitamento dos restos auditivos),

    das investigaes na reabilitao da afasia e dos trabalhos na clnica

  • 42

    fonitrica (Snchez,1990). Todos se baseavam na necessidade de oralizar o

    Surdo, no permitindo a utilizao de sinais.

    Atravs do livro Os Surdos, os Ouvintes e a Escola: narrativas, tradues e histrias

    capixabas (Vieira-Machado, 2010) e do DVD Narrativas surdas capixabas (Vieira

    Machado, 2008), podemos comprovar como so comuns as narrativas de surdos mais velhos,

    que comentam como batiam mos e relatam suas experincias escolares, na comunidade

    surda. A autora, Vieira-Machado, filha ouvinte com pais surdos e era uma criana que

    frequentava com os surdos a associao de surdos. Destaca a experincia de surdos com a

    escola:

    (...) Nessas interpretaes, eu prestava muita ateno s falas indignadas

    recorrentes. Lembro-me bem delas: Os professores batem nas mos, Eles obrigam a falar, Inimigos dos sinais, etc. E eu perguntava aos meus pais: Mas como bate as mos? errado... Pai, por que no pode usar sinais? Claro que pode usar sinais. Eu sei que errado o que os ouvintes falam. Eles dizem que os sinais so dos macacos. Mas no so dos macacos. So

    dos surdos. Por um acaso, os surdos so macacos? (VIEIRA-MACHADO 2010, p. 23)

    Na escola de surdos, somente professores ouvintes trabalhavam para que os alunos se

    desenvolvessem e praticassem a oralizao. Durante a sala de aula, como de costume, um

    professor ouvinte ficava escrevendo no quadro negro, enquanto alunos surdos ficavam atrs,

    em bate-mos com maior silncio (ainda existe at dia de hoje). Alm disso, alguns alunos

    surdos moravam na escola (internato), conheciam as regras da escola, ento, acontecia na hora

    de dormir, que todos deitavam na cama enquanto funcionrio da escola verificava se estava

    tudo em ordem. Mas alguns minutos ou horas depois, todos iam ao banheiro como de

    costume, mas qual era o motivo? Fazer pipi ou xixi? Negativo! Era para bate-mos, pode?!

    Eles combinavam fazer encontros em outros locais, fora da escola ou ficavam no meio de

    parques ou escondidos no centro da cidade, etc. Segundo Moura (2000, p. 52):

    A lngua de sinais continuava a ser utilizada pelos Surdos tanto nas escolas

    como onde os Surdos adultos se encontrassem. Ela era proibida, mas como

    aconteceu no decorrer dos sculos, continuou viva onde quer que os surdos

    se encontrassem. Nas escolas, a metodologia poderia ser oral, mas nos

    dormitrios (no caso de escolas residenciais), no recreio, em qualquer

    momento em que os Surdos se encontrassem fora do domnio de seus

    professores e determinadores de seus comportamentos, a sua comunicao se

    dava atravs da lngua que lhes pertencia.

  • 43

    Em casa de famlia ouvinte com filho surdo, surdo ficava impaciente sem

    comunicao, por isso, fugia ou fingia que ia fazer passeio ou, por exemplo, ia jogar futebol e

    ficavam desviando para ir ao encontro de outros surdos. Como afirmei acima, citando Mouro

    (2007, p.11):

    A comunicao de surdos, atravs da Lngua de Sinais, se dava em

    ambientes escondidos, como por exemplo, no banheiro, no ptio das escolas,

    nos quartos de internatos, antes de dormir, e nos pontos de encontros de

    surdos. Devido a esse fato, a Lngua de Sinais nunca se extinguiu,

    permanecendo como lngua na vida dos surdos.

    At os dias de hoje, a maioria dos profissionais que atuam na rea de sade, educao,

    cincias desconhecem histria dos surdos. Podemos ver que a rea da sade, como a

    Medicina, obedece a certas regras, centradas no corpo humano. Para eles, desse ponto de

    vista, h a preocupao com o ouvir e com o som, objetivando que o ouvido seja curado

    para poder transformar o surdo da orelha (sem som) em milagre da orelha (cura), ou seja,

    sujeito surdo deveria se transformar em ouvinte, inserindo-se principalmente no oralismo,

    sem considerar o direito que o sujeito surdo tem de opinar e escolher o territrio surdo.

    Mouro (2007, p. 1) afirma:

    Ao longo da histria, existem relatos negativos sobre surdos desde a

    Antiguidade, mas ainda hoje as pessoas desconhecem o que ser uma pessoa

    surda, geralmente a consideram como doente ou portadora de um defeito. O

    desconhecimento do mundo surdo: seu dia-a-dia, sua lngua, seus costumes,

    sua cultura... pode prejudicar na educao de surdo, transformando-a num

    ensino clnico. O ensino clnico quer normalizar os surdos para tornarem-se iguais aos ouvintes. comum pessoas falarem que os surdos no sabem,

    tm falta de conhecimentos; alm de j serem rotulados deficientes, doentes at incapacitados.

    Notamos que foram anos de contato com a comunidade surda, transmitindo um ao

    outro e seguindo em frente, acreditando em nossos valores, na lngua de sinais para

    comunicao e na visibilidade da diferena/identidade. Como sabemos, os surdos ou

    membros da comunidade surda foram construindo processos sociais, prticas discursivas,

    polticas educacionais, foram produzindo significados, se envolvendo entre o conhecimento e

    o poder, constituindo a cultura surda e identidades surdas. Eles atravessaram a fronteira do

    territrio ouvinte, buscaram informaes, estudaram para construir conhecimentos prprios,

    buscaram a rea acadmica, escolas e curso de graduao. Alguns surdos compartilharam com

    os/as colegas ouvintes, participaram de grupos de pesquisas, tornaram-se professores, fizeram

  • 44

    doutorados, dando visibilidade e empoderamento ao povo surdo, cultura das comunidades

    surdas, principalmente nossa lngua de sinais.

    Muitos deles so considerados heris, surdos ou ouvintes, pois continuam at os dias

    de hoje estudando o campo. Temos registros da histria de surdo, como os americanos

    Willian Stokoe (1965), surda Carol Padden e Tom Humphries (1988); surda francesa

    Emmanuelle Laborit (1994); britnico Oliver Sacks (1998), surda portuguesa Marta Morgano

    (2009) e os brasileiros tal como Ronice Quadros (2006, 2007), Lodenir Karnopp (2004,

    2006), Carlos Skliar (1998), Adriana Thoma (2004), Mrcia Lunardi (2006), Madalena Klein

    (2006), surda Karin Strobel (2008), surda Gladis Perlin (1998, 2003, 2006), surda Carolina

    Hessel Silveira (2007), surda Shirley Vilhava (2009), surda Emiliana Rosa (2009), surdo

    Nelson Pimenta (2006), entre outros, que contam histrias para que ns surdos possamos

    reconhecer nossa ptria de sinais.

    Surdez um termo recorrente na rea clnica, que se preocupa em focalizar o ouvido

    para propor a cura. Nesse caso, a abordagem clnica produz prticas consideradas ouvintistas,

    cujo objetivo fazer o deficiente auditivo14

    ser ou parecer um ouvinte. Como Bianca Ribeiro

    Pontin, surda, fez frase para pensar15

    : Todos os Surdos so deficientes auditivos, mas nem

    todos deficientes auditivos so Surdos. Citando Wrigley (1996, p. 94):

    Assim a surdez vista como uma diferena que deveria ser por fim abolida, seja atravs de tticas a curto prazo polticas de assimilao e prticas de amplificao acstica ou atravs de consertos neurocirrgicos permanentes e os sonhos finais de geneticamente produzir um pool de gens

    purificados.

    2.1 ARTEFATOS CULTURAIS

    Estando nos espaos da cultura surda pode-se dizer

    que muito bom ser surdo hoje. A vida surda

    hospedeira com seu espao de comunidade.

    (PERLIN; MIRANDA 2003, p. 222)

    14

    O Deficiente auditivo o sujeito nico, centrado e homogeneizado, constitudo a partir de um discurso cientfico, mdico e teraputico, tem sido considerado como o problema a ser solucionado pela instituio escola e clnica atravs de prticas e metodologias reabilitadoras da audio e da fala. (Lunardi, 1998, p. 162) 15

    Frase de Bianca Ribeiro Pontin no blog Palavra ao Vento: O MUNDO DOS SURDOS: Saiba como vivem os surdos e aprenda sobre a sua cultura. De Jerusa Campani e Sayuri Kubo. Disponvel site:

    http://sazinhaaa.blogspot.com/2010/03/o-mundo-dos-surdos-saiba-como-vivem-os_6923.html. Acesso em maro

    de 2010.

  • 45

    Os artefatos culturais criam representaes sobre como o surdo. A cultura que

    caracteriza um local, onde convivem os sujeitos, construda nos processos sociais e prticas

    discursivas, atravs dos artefatos culturais. As manifestaes das tradies culturais, dos

    valores e das artes de diferentes grupos correm o risco de desaparecer com o tempo, mas para

    que no desapaream, essas manifestaes so frequentemente modificadas, hibridizadas,

    tendo a possibilidade de circular em muitos locais.

    Costumamos assistir a produes culturais de territrios locais, por exemplo: dana do

    frevo tpica do estado de Pernambuco; dana de Bumba-meu-boi do estado do Maranho;

    Samba tpico do estado do Rio de Janeiro; dana de CTG - Centro de Tradies Gachas

    do estado do Rio Grande do Sul entre outros. Assim percebemos as manifestaes culturais

    no jeito de falar, na comida tpica, (como comida baiana, maranhense etc.), nas roupas tpicas

    (o jeito brasileiro, italiano ou japons etc.). Mas essas no so formas puras ou com um jeito

    nico de se manifestar. Tais produes culturais tambm so frequentemente hibridizadas,

    modificadas. Dessa forma, podemos comer churrasco na Bahia, acaraj no Rio de Janeiro,

    sambar no Rio Grande do Sul e danar ax no Maranho.

    As comunidades surdas manifestam traos de sua cultura no territrio local, onde

    habitam ou se encontram os surdos, no convvio dos sujeitos surdos e atravs de processos

    sociais e discursivos da cultura surda. Os adultos surdos contam as narrativas para as crianas

    surdas como poemas surdos, piadas surdas, narrativas surdas, e outros.

    Acredito que importante trazer a temtica cultura e cultura surda. Em geral, costuma-

    se dizer que cultura faz parte do povo e de seus costumes compreendendo seu modo de vestir,

    sua comida, sua lngua, sua crena, lendas e mitos, enfim so manifestaes de suas prticas

    sociais. Utilizo o conceito de cultura segundo Hall (1997, p. 33):

    O que aqui se argumenta, de fato, no que tudo cultura, mas que toda prtica social depende e tem relao com o significado: conseqentemente,

    que a cultura uma das condies constitutivas de existncia dessa prtica,

    que toda prtica social tem uma dimenso cultural. No que no haja nada

    alm do discurso, mas que toda prtica social tem o seu carter discursivo.

    Ento, como entendemos cultura surda? Os modos de vida de surdos em seus

    territrios ou em cada regio, suas prticas sociais e os discursos produzidos em sua prpria

    lngua ou em outras, isso circula, produz e se consome. O mesmo acontece em comunidades

    surdas, que compartilham as experincias e as diferenas entre as fronteiras. Para Karnopp

  • 46

    (2010, p. 04), a nfase na dimenso centralizadora de uma cultura universal tem

    impossibilitado o aparecimento de processos culturais existentes em comunidades de surdos.

    Portanto, cultura surda se manifesta em formas e discursos; isto , forma de sinalizar

    como lngua de sinais e experincias visuais, compreendendo o mesmo mundo, formas de

    contar, narrativas, piadas, poemas. Os surdos tambm frequentam ambientes como associao

    de surdos e eventos como olimpada surda, encontro de jovens surdos, colnias de frias, etc.

    todos em modalidade visual e prticas sociais. Cito Perlin e Miranda (2003, p. 218):

    Experincia visual significa a utilizao da viso, (em substituio total a

    audio), como meio de comunicao. Desta experincia visual surge a

    cultura surda representada pela lngua de sinais, pelo modo diferente de ser,

    de se expressar, de conhecer o mundo, de entrar nas artes, no conhecimento

    cientfico e acadmico. (...)

    Como podemos relacionar cultura surda com Literatura Surda? Como podemos

    encontrar o material de Literatura? Uma parcela do povo brasileiro costuma ler livros ou ver

    os CD-ROM de Literatura (clssicos, conto de fadas, crnicas, contos e outros), nas escolas

    ou faculdades, casas e outros lares, para que os leitores sintam prazer de leitura! No somente

    so os leitores que possuem materiais, pois tambm existe literatura disponvel em sites

    (gratuitamente), at leitura de livros de imagem, que mostram somente figuras. interessante

    porque que os leitores aumentam vocabulrio, seus conhecimentos gerais, exercitam a

    imaginao, reflexo.

    Como se apresenta a Literatura Surda? Antes eu nem imaginava, nem nunca pensei

    nisso! Depois que convivi com a comunidade surda, eles comentaram que existiam materiais,

    achei interessante. Resolvi procurar e encontrei materiais em CD-ROM como As aventuras de

    Pinquio (Carlo Lorenzini); Iracema (Jos de Alencar); O alienista (Machado de Assis);

    Alice no pas das maravilhas (Lewis Carroll) e outros, em Libras/Portugus e alguns livros de

    Literatura Surda como Cinderela Surda (SILVEIRA; ROSA; KARNOPP, 2003); Rapunzel

    Surda (SILVEIRA; ROSA; KARNOPP, 2003); Patinho Surdo (ROSA; KARNOPP, 2005);

    Ado e Eva (ROSA; KARNOPP, 2005); Tibi e Joca, (BISOL, 2001); e outros. Todos esses

    CDs e livros de certas maneiras fazem parte da cultura surda. Segundo Strobel (2008, p. 56):

    A literatura se multiplica em diferentes gneros: poesia, histria de surdos,

    piadas, literatura infantil, clssicos, fbulas, contos, romances, lendas e

    outras manifestaes culturais. Karnopp faz referncia a respeito desse

    artefato cultural: [...] utilizamos a expresso literatura surda para histrias que tm a lngua de sinais, a questo da identidade e da cultura surda

    presentes na narrativa [...].

  • 47

    Todos esses artefatos trazem informaes e sensaes que entram na minha mente,

    sinto que se espalham como se corressem no meu sangue, me emocionam e me inspiram, pois

    posso transmitir aos outros, para que os surdos obtenham empoderamento e sua diferena

    cultural seja visibilizada.

    Em 2006, mudei para Porto Alegre e me transferi para o Centro Universitrio

    Metodista IPA, continuando o curso de Educao Fsica, claro que com intrprete de lngua

    de sinais. Mais tarde, consegui ingressar na Universidade Federal de Santa Maria, no curso de

    Letras/Libras, na modalidade de Ensino a Distncia (EAD), no qual cursei uma disciplina de

    Introduo aos Estudos da Literatura (1 semestre). Naquela disciplina, houve uma

    distribuio de tarefas e cada um tinha que elaborar e apresentar poemas. Ento, fui o

    primeiro, e apresentei o poema Deusa Ronice & Virgem Santa Maria (na aula presencial do

    Plo UFSM, 2007 anexo A CD ROM) e, no outro dia, a partir da temtica Romantismo -

    Uma mo com 5 dedos (presencial, na aula no Plo UFSM, anexo A CD ROM).

    Sucessivamente, compartilhamos experincias com colegas durante aulas, sobre como fazer

    poemas, como se expressar e quase houve encontro do Sarau Poesia Surda; s no foi

    possvel por vrios motivos, como excesso de trabalhos, ou falta de tempo, etc.

    Alm disso, na mesma poca eu trabalhava no Centro Social Marista Mario Quintana,

    em Gravata-RS, como professor de teatro e dana para alunos surdos, e tambm de Libras.

    Um dia fizemos ensaio geral com alunos surdos para se apresentarem, com o espetculo

    Amazonas e Paz (algumas partes continham poemas). Assim, houve sucessivamente

    apresentao em alguns eventos at numa apresentao na pr-festa da Sociedade dos Surdos

    do Rio Grande do Sul, em comemorao aos 45 anos da SSRS16

    , em 2007.

    Em 2009, no mesmo Plo da UFSM17

    , finalmente cursei a disciplina de Literatura

    Surda, com Prof Lodenir Karnopp. Houve uma distribuio de tarefas e cada grupo tinha que

    elaborar e apresentar trabalhos para os colegas. Ento, reunimos um grupo na casa do nosso

    colega e fizemos a traduo do conto A Mulher e sua Galinha e a adaptao do conto

    infantil Trs porquinhos (presencial, na aula no Plo UFSM, anexo A CD ROM).

    Posteriormente na sala de aula, demos muitas risadas, discutimos, refletimos sobre a

    atividade. E aproveitamos a idia para usar em outras escolas, oficinas e outros, atravs do

    nosso grupo, pois somos professores de Libras.

    16

    SSRS Sociedade dos Surdos do Rio Grande do Sul Porto Alegre/RS. 17

    Plo UFSM: EAD Ensino Distncia do Plo Universidade Federal de Santa Maria, curso de Letras/Libras 2006.

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    Com essas experincias, das quais eu nem esperava tanto, percebi a possibilidade de

    mostrar e desenvolver com alunos surdos, na escola, a arte surda e a Literatura Surda.

    Podemos ver que temos cultura surda e estamos vivendo um momento de seu

    reconhecimento, de querer aprofundar mais e buscar ativamente conhecer e explorar o tema

    Literatura Surda. Creio que podemos ver os livros com histrias clssicas de literatura,

    escritas por ouvintes, pesquisar e adaptar, fazendo uma releitura da histria a partir da cultura

    surda ou mesmo podemos buscar inspirao para criar outros textos, tais como poemas

    surdos. Citando Perlin e Strobel (2006, p. 34):

    (...) cultura surda constituda de significantes e significados, tal como

    contada nas narrativas surdas. Vejamos alguns aspectos da cultura surda

    contidos nas narrativas surdas. Primeiramente temos narrativas pedaggicas

    onde enfatiza o jeito surdo de ensinar, onde apela por estratgias de ensino

    visuais, transmisso de conhecimentos em lngua de sinais, com presena de

    professores surdos; (...)

    Podemos tomar como ponto de anlise o estudo feito por Sutton-Spence e Quadros,

    que escreveram um artigo que analisa como os temas e a linguagem usada na poesia em

    lngua de sinais se constituem para criar e traduzir a cultura surda e a identidade das pessoas

    surdas (2006, p. 1