Literatura Surda Produção textuaL em LibraS

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Indaial – 2019 LITERATURA SURDA: PRODUÇÃO TEXTUAL EM LIBRAS Prof. a Ana Clarisse Alencar Barbosa Prof. a Janaina Carla da Cruz Prof. a Liliane Vieira Vega Garrão 1 a Edição

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Indaial – 2019

Literatura Surda: Produção textuaL em LibraS

Prof.a Ana Clarisse Alencar BarbosaProf.a Janaina Carla da CruzProf.a Liliane Vieira Vega Garrão

1a Edição

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Copyright © UNIASSELVI 2019

Elaboração:

Prof.ª Ana Clarisse Alencar Barbosa

Prof.ª Janaina Carla da Cruz

Prof.ª Liliane Vieira Vega Garrão

Revisão, Diagramação e Produção:

Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri

UNIASSELVI – Indaial.

Impresso por:

B238l

Barbosa, Ana Clarisse Alencar

Literatura surda: produção textual em libras. / Ana Clarisse Alencar Barbosa; Janaina Carla da Cruz; Liliane Vieira Vega Garrão. – Indaial: UNIASSELVI, 2019.

165 p.; il.

ISBN 978-85-515-0391-1

1. Literatura Surda. - Brasil. I. Barbosa, Ana Clarisse Alencar. II. Cruz, Janaina Carla da. III. Garrão, Liliane Vieira Vega. IV. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.

CDD 370

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aPreSentação

Caro acadêmico, seja muito bem-vindo ao Livro Didático Literatura Surda! Neste material, você encontrará um universo muito rico, recheado de cultura e de olhares muito peculiares. Vamos viajar pela história das pessoas surdas! Você já parou para pensar em como era a vida dessas pessoas em tempos remotos, quando não existiam políticas públicas nem tecnologias? Este livro proporcionará esta reflexão como também trará artefatos da cultura e da comunidade surda.

Não paramos por aí não! Vamos explorar a Literatura Surda no Brasil, falar sobre produções de surdos, sobre a Língua de Sinais, sobre a importância da contação de histórias para crianças surdas e aprender muito sobre Literatura Surda. Convidamos você a entrar nesta aventura com muita empatia e curiosidade. Certamente estes conhecimentos mudarão sua forma de ver e pensar o sujeito surdo, e caso ainda não tenha nenhum conhecimento sobre esta cultura, poderá ampliá-los de forma interessante, pois este livro foi pensado com muito carinho partindo das experiências e vivências das autoras que estão imersas neste mundo. Iniciemos nossa viagem!

Prof.ª Ana Clarisse Alencar BarbosaProf.ª Janaina Carla da CruzProf.ª Liliane Vieira Vega Garrão

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IV

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos!

NOTA

Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos!

UNI

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Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento.

Com o objetivo de enriquecer teu conhecimento, construímos, além do livro que está em tuas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela terás contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementares, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar teu crescimento.

Acesse o QR Code, que te levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para teu estudo.

Conte conosco, estaremos juntos nessa caminhada!

LEMBRETE

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VII

UNIDADE 1 – MARCOS HISTÓRICOS: NOVAS REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DOS SURDOS ...................................................................................1

TÓPICO 1 – MARCOS HISTÓRICOS ..............................................................................................31 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................32 MARCOS HISTÓRICOS...................................................................................................................3

2.1 SURDOS NO BRASIL ....................................................................................................................83 OS SURDOS TÊM CULTURA E IDENTIDADE? .......................................................................104 CONCEITO DE CULTURA SURDA ...............................................................................................12RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................16AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................17

TÓPICO 2 – PECULIARIDADES DA CULTURA SURDA ...........................................................191 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................192 COMO PODEMOS COMPREENDER E ENVOLVER AS PECULIARIDADES

DA CULTURA SURDA? ...................................................................................................................193 CURIOSIDADES SOBRE A CULTURA SURDA .........................................................................25RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................30AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................31

TÓPICO 3 – A CULTURA SURDA E A LITERATURA ..................................................................331 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................332 A REPRESENTAÇÃO IMAGINÁRIA SOBRE A CULTURA SURDA.....................................333 ARTEFATOS CULTURAIS DO POVO SURDO ..........................................................................36

3.1 ARTEFATO CULTURAL: LITERATURA SURDA ....................................................................44LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................47RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................53AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................55

UNIDADE 2 – LITERATURA SURDA NO BRASIL ......................................................................57

TÓPICO 1 – A CONTAÇÃO DE ESTÓRIAS ...................................................................................591 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................592 LITERATURA SURDA NO BRASIL: CONTEXTO HISTÓRICO ...........................................603 A IMPORTÂNCIA DO CONTAR ESTÓRIAS .............................................................................654 O SURDO COMO CONTADOR DE HISTÓRIAS ......................................................................69RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................71AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................72

TÓPICO 2 – A PRODUÇÃO CULTURAL DOS SURDOS1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................732 PRODUÇÃO CULTURAL DE SURDOS EM LÍNGUA DE SINAIS ........................................73

2.1 PRODUÇÕES EDITORIAIS SURDAS ........................................................................................76

Sumário

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VIII

3 SUGESTÕES DE PRODUÇÃO CULTURAL DE SURDOS EM LÍNGUA DE SINAIS ........80RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................83AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................84

TÓPICO 3 – A METÁFORA DO APRENDER A SER SURDO .....................................................871 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................872 LÍNGUA DE SINAIS COMO MARCA SURDA NA LITERATURA .......................................873 LÍNGUA DE SINAIS RESSIGNIFICADA NA INCLUSÃO ......................................................96LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................102RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................109AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................111

UNIDADE 3 – DIFERENTES USOS DA CULTURA SURDA NA LITERATURA: A LÍNGUA DE SINAIS ATRAVESSADA POR MARCAS CULTURAIS .............................113

TÓPICO 1 – LÍNGUA DE SINAIS COMO MARCA SURDA NA LITERATURA ...................1151 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................1152 LITERATURA SURDA: UM OLHAR PARA AS NARRATIVAS ..............................................115

2.1 NARRATIVAS E ESCRITAS .........................................................................................................1212.2 NARRATIVAS SURDAS SOBRE A COMUNIDADE SURDA ................................................121

3 A NARRATIVA EM LÍNGUA DE SINAIS: UM OLHAR SOBRE CLASSIFICADORES ....122RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................128AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................129

TÓPICO 2 – POESIA E LÍNGUA DE SINAIS..................................................................................1311 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................1312 POESIA EM LÍNGUA DE SINAIS: TRAÇOS DA IDENTIDADE SURDA......................................................................................................................1313 LITERATURA EM LÍNGUA GESTUAL ........................................................................................138RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................140AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................141

TÓPICO 3 – LITERATURA SURDA: UM OLHAR SOB DIFERENTES POSSIBILIDADES ...............................................................................1431 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................1432 LITERATURA INFANTIL DO SÉCULO XXI ................................................................................1433 POSSIBILIDADES DE LEITURA DA DIFERENÇA SURDA NO CINEMA .........................1474 DESAFIOS DA TRADUÇÃO E INTERPRETAÇÃO DA LITERATURA OUVINTE PARA A LÍNGUA DE SINAIS .....................................................................................151LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................156RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................158AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................159

REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................161

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UNIDADE 1

MARCOS HISTÓRICOS: NOVAS REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA

DOS SURDOS

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender como surgiu a história dos surdos na antiguidade;

• refletir a trajetória da vida das pessoas surdas com as suas lutas, derrotas e conquistas através da Língua de Sinais;

• discriminar a diferença entre as identidades surda e ouvinte;

• estabelecer relações entre os artefatos da cultura surda;

• apreciar o ser surdo como um sujeito capaz e sem limitações;

• valorizar a comunidade surda presente nos dias atuais.

Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – MARCOS HISTÓRICOS

TÓPICO 2 – PARTICULARIDADES DA CULTURA SURDA

TÓPICO 3 – A CULTURA SURDA E A LITERATURA

Preparado para ampliar teus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverás melhor as informações.

CHAMADA

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TÓPICO 1UNIDADE 1

MARCOS HISTÓRICOS

1 INTRODUÇÃO

Vamos percorrer um pouco sobre esses registros históricos da trajetória das pessoas surdas. Há variadas versões sobre a história. Encontramos registros remotos, como, por exemplo, textos bíblicos e fatos do Egito antigo: “No Egito, pensava-se que os surdos tinham sido escolhidos especialmente pelos deuses” (SERRAS; SANTOS, 2019, s. p.). O que comprova que, desde o início da humanidade, os surdos já se faziam presentes.

Este livro didático fará você refletir um pouco sobre a história dos surdos, contada por uma pessoa surda. Não sei se você já se deu conta, mas muitos dos registros escritos foram feitos por pessoas ouvintes, pessoas que viveram ao lado da pessoa surda, porém não são surdas, ou seja, não vivenciaram a surdez. Neste capítulo, nos atentaremos aos fatos históricos relacionados aos surdos a partir do século XVI.

2 MARCOS HISTÓRICOS

Na história da inclusão, pessoas com qualquer tipo de deficiência eram marginalizadas e deixadas a própria sorte, tinham direito à vida, mas ainda assim, não tinham o direito de viver. Nesta época, antes de 1750, envolvendo pessoas com surdez, trazemos Sacks (1998) para clarear:

A situação das pessoas com surdez pré-linguística antes de 1750 era de fato uma calamidade: incapazes de desenvolver a fala e, portanto, “mudas”, incapazes de comunicar-se livremente até mesmo com seus pais e familiares, restritas a alguns sinais e gestos rudimentares, isoladas, exceto nas grandes cidades, até mesmo da comunidade de pessoas com o mesmo problema, privadas de alfabetização e instrução, de todo o conhecimento do mundo, forçadas a fazer os trabalhos mais desprezíveis, vivendo sozinhas, muitas vezes à beira da miséria, consideradas pela lei e pela sociedade como pouco mais do que imbecis – a sorte dos surdos era evidentemente medonha (SACKS, 1998, p. 27).

Conheceremos melhor, a seguir, a história cultural do povo surdo. Todavia, o que é um povo surdo? Karin Strobel, surda, doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina, em uma de suas obras nos diz que o povo surdo é:

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UNIDADE 1 | MARCOS HISTÓRICOS: NOVAS REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DOS SURDOS

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Um conjunto de sujeitos surdos que não habitam o mesmo local, mas que estão ligados por uma origem, tais como a cultura surda, uso da Língua de Sinais, têm costumes e interesses semelhantes, histórias e tradições comuns e qualquer outro laço compartilhado. Como a referência de povo surdo, como qualquer outro grupo, eles também não constituem um grupo homogêneo. Têm distintas identidades surdas, múltiplas e multifacetadas, construídas também a partir de "marcadores de diferença” (STROBEL, 2008b apud WITKOSKI, 2015, p. 25).

A história dos povos surdos surgiu com os professores ouvintes, que iniciaram os trabalhos com surdos, filhos dos nobres, através da evolução da medicina para a cura da surdez e pelas metodologias utilizadas por ouvintes na educação dos surdos. Strobel (2008) também conta que a história cultural dos surdos é pouco exposta. Seria uma ligação relevante para a legitimação do modelo cultural do ser surdo se existissem registros das próprias pessoas surdas. Ainda assim, o atual estudo sobre a história cultural dos surdos, feito pelos próprios surdos, vem trazendo uma grande mudança e um novo olhar para essa história.

Essa nova perspectiva, trazida agora pelo próprio sujeito surdo, não se

dá através dos padrões tradicionais. A atual visão da história se constitui a partir dos discursos feitos nas associações de comunidades surdas, pelos professores surdos que atuam nos ambientes escolares e perpassam desde a Educação Infantil até o Ensino Superior, nos encontros de pessoas surdas, fortalecidos por líderes surdos, pela luta por uma pedagogia bilíngue, enfim, pelos diversos movimentos políticos do povo. No entanto, os registros históricos são escritos feitos através de metanarrativas ouvintes. Apesar de terem um imenso valor histórico, pois não existiam registros, para o povo surdo esses registros não legitimam sua história, por não fazerem parte deste processo. Profissionais e familiares vivenciaram, lado a lado, os mais variados avanços de toda a ordem, e o que temos hoje são registros de uma visão crítica dos sujeitos ouvintes. Estes nos trazem que ao longo da história o povo surdo foi barbarizado, assim como as demais pessoas com deficiência sofreram processos discriminatórios e estigmatizantes, pois, naquela época, para a sociedade, eram vistos como incapazes e inferiores, por isso, eram castigados.

Metanarrativas: Segundo Silva (2000, p. 78) é “qualquer sistema teórico ou filosófico com pretensões de fornecer descrições ou explicações abrangentes e totalizantes do mundo ou da vida social. A mesma coisa que ‘grande narrativa’ ou ‘narrativa mestra’”.

NOTA

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TÓPICO 1 | MARCOS HISTÓRICOS

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No século XVI, os surdos não eram reconhecidos pela lei como pessoas por não saberem falar e nem ler. E, por serem considerados incapazes ou desprovidos de inteligência não tinham o direito de ter seus nomes incluídos no rol de heranças das famílias nobres. Na medida em que os primogênitos surdos não tinham esse direito, os nobres sentiam-se ameaçados, pois isso colocava em risco a riqueza de toda a família.

Nessa época encontram-se registros de que os nobres, a fim de garantir que suas fortunas estivessem seguras entre si, organizavam casamentos entre os membros das próprias famílias. Foi nesta época que nomes como Pedro Ponce de Léon, os Braidwoods, Amman, Perreire e Deschamps começam a aparecer na sociedade, ouvintes, de diversos lugares, dispostos a ensinar os filhos surdos dos nobres.

FIGURA 1 – ESTÁTUA DE PEDRO PONCE DE LEÓN EM MADRI

FONTE: Witkoski (2015, p. 29)

Pedro Ponce de León ensinou aos surdos o uso dos gestos e do alfabeto datilológico para a soletração manual. O objetivo de Ponce, ao usar o alfabeto manual, era ensinar os surdos a ler e escrever. Conforme a autora surda Strnadová aborda:

A história diz que o alfabeto manual era utilizado na Inglaterra já no século VIII pelos monges que fizeram o voto de silêncio. Estão vendo como é forte a necessidade de comunicação com as pessoas ao redor? Essa necessidade obrigou um servo de Deus a dar um jeito no voto sagrado, em quebrá-lo. Não conversavam entre si em voz alta, porém seus dedos tagarelavam. Eram monges, mas não bobos (STRNADOVÁ, 2000 apud WITKOSKI, 2015, p. 29).

Apesar desses profissionais se empenharem no ensino do sujeito surdo, a intenção ainda era garantir as heranças. Todavia, nesse momento, a comunicação através de sinais também começa a ganhar espaço. A autora Lane (1984 apud SACKS, 1998, p. 28), ressalta que: “muitos desses educadores recorriam a sinais e soletravam com o dedo para ensinar a falar. De fato, até mesmo os mais célebres desses pupilos surdos ensinados a falar conheciam e usavam a Língua de Sinais”.

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UNIDADE 1 | MARCOS HISTÓRICOS: NOVAS REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DOS SURDOS

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Percebe-se, no decorrer da trajetória histórica, que a Língua de Sinais se constitui e se funde à constituição da pessoa surda. Percebe-se, também, o quanto o sujeito surdo sofreu com a destituição íntima do seu ser. Entendia-se que, naquela época, a surdez pré-linguística fazia da pessoa surda um ser em estado deplorável. Essa situação despertou curiosidade e compaixão dos filósofos da época. Foi quando o abade francês Sicard fez a seguinte pergunta:

Por que a pessoa surda sem instrução é isolada na natureza e incapaz de comunicar-se com outros homens? Por que ela está reduzida a esse estado de imbecilidade? Será que sua constituição biológica difere da nossa? Será que ela não possui tudo o que precisa para ter sensações, adquirir ideias e combiná-las para fazer tudo o que fazemos? Será que não recebe impressões sensoriais dos objetos como nós recebemos? Não serão essas, como ocorre conosco, a causa das sensações da mente e das ideias que a mente adquire? Por que então a pessoa surda permanece estúpida enquanto nos tornamos inteligentes? (SACKS, 1998, p. 28).

Segundo o autor, a resposta está no uso dos símbolos. E complementa com a explicação de Sicard sobre a existência de um vácuo absoluto de comunicação entre a pessoa surda e as outras pessoas. Foi a partir do século XVI que os olhares para as pessoas surdas ficaram mais intensos. É neste século, também, que surge o abade De l’Epée, figura que muda a história dos surdos para sempre. A maior motivação de l’Epée, em relação à marginalização dos surdos, era o fato de ele não aceitar que os “surdos-mudos” nasciam e morriam sem serem ouvidos em confissão, privados do Catecismo, das Escrituras e das Palavras de Deus. Abade l’Epée direcionou sua atenção a seus pupilos surdos, e fez o que nenhum outro ouvinte havia feito até o momento:

[...] E então associando sinais a figuras e palavras escritas, o abade ensinou-os a ler; e com isso, de um golpe, deu-lhes o acesso aos conhecimentos e à cultura do mundo. O sistema de sinais “metódicos” De l’Epée – uma combinação da Língua de Sinais nativa com a gramática francesa traduzida em Sinais – permitia aos alunos surdos escrever o que era dito por meio de um intérprete que se comunicava por Sinais, um método tão bem-sucedido que, pela primeira vez, permitiu que alunos surdos comuns lessem e escrevessem em francês e, assim, adquirissem educação (SACKS, 1998, p. 30).

L’Epée fundou uma escola em 1755, que foi a primeira a angariar recursos públicos. Em 1776, seu livro escrito de modo revolucionário foi publicado pela primeira vez, tornando-se uma obra clássica e disponível em muitas línguas. Abade foi um multiplicador de professores para surdos, e quando faleceu, em 1789, já contava com vinte e uma escolas para surdos na França e Europa. Em 1971 a escola de l’Epée se transforma na National Institution for Deaf-Mutes em Paris, dirigida por Sicard. Abade l’Epée transformou a história dos surdos. Em 1779 foi publicado o primeiro livro escrito por um surdo, Pierre Desloges, que perdeu a audição aos sete anos de idade, vítima de varíola. Aprendeu a língua gestual aos vinte anos. E, apesar de ser talentoso, demonstra em seu relato, que não conseguiria participar de um discurso lógico se não fosse através da Língua de Sinais.

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TÓPICO 1 | MARCOS HISTÓRICOS

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No início de minha enfermidade, enquanto vivi separado de outras pessoas surdas [...], não tive conhecimento da Língua de Sinais. Eu usava apenas sinais esparsos, isolados e não relacionados. Desconhecia a arte de combiná-los para formar imagens distintas com as quais podemos representar várias ideias, transmiti-las a nossos iguais e conversar em discurso lógico (LANE, 1984 apud SACKS, 1998, p. 31).

Desde então a história dos surdos passou a tomar um novo rumo e os surdos agora eram vistos. Embora nem mesmo l’Epée acreditasse que a Língua de Sinais fosse completa, capaz de permitir aos seus usuários o discernimento para discussão sobre qualquer assunto, os surdos passaram a sair da escuridão e a emergir na sociedade. Em 1816, Laurent Clerc chega aos Estados Unidos. Pupilo de abade Sicard e do surdo Jean Massieu, Clerc mobilizou professores americanos, que até então desconheciam que um surdo poderia ter tamanha inteligência e notável educação. Ele e Thomas Gallaudet fundaram a American Asylum for the Deaf, em Hartford. É nesse ambiente que o sistema francês de sinais, trazido por Clerc, passa a interagir com a língua nativa, e a American Sign Language - ASL Língua de Sinais Americana - toma forma e espaço. O desenvolvimento dos surdos americanos foi tão eficaz quanto para os surdos da França, difundindo-se rapidamente para outras partes do mundo. Prova disso é a University Gallaudet, fundada em 1864, e que continua até os dias atuais, sendo a única faculdade de ciências humanas do mundo para alunos surdos.

FIGURA 2 – CHARLES-MICHEL L’EPÈE

FONTE: Witkoski (2015, p. 29)

Porém, a história dos surdos passaria por um momento crítico, que duraria um século. Após a morte do grande ativista Clerc (1785 – 1869) houve uma grande virada contra a Língua de Sinais. Durante todo o percurso em que a Língua de Sinais foi crescendo, paralelamente existiam as linhas opostas daqueles que acreditavam ser o oralismo a melhor forma de comunicação. Indignavam-se com o uso de sinais sem o uso da fala, acreditavam estarem os surdos restritos à vida cotidiana. Os professores de surdos viviam verdadeiros dilemas e dividiam-se entre o oralismo e a comunicação por meio dos sinais.

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UNIDADE 1 | MARCOS HISTÓRICOS: NOVAS REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DOS SURDOS

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Havia surgido uma profusão de “reformadores” – Samuel Gridley Howe e Horace Mann foram exemplos notórios – que clamavam pela derrubada dos “obsoletos” asilos que adotavam a Língua de Sinais e pela introdução de escolas oralistas “progressivas” [...]. Mas o mais importante e poderoso dos representantes “oralistas” foi Alexander Graham Bell, que, por um lado, herdou uma tradição familiar de ensinar elocução e corrigir os impedimentos da fala (seu pai e seu avô destacaram-se nessa área), estando preso a uma estranha mistura familiar de surdez (sua mãe e sua esposa eram surdas, mas nunca admitiram isso), e, por outro, naturalmente, foi por si só um gênio tecnológico. Quando Bell jogou todo o peso de sua imensa autoridade e prestígio na defesa do ensino oral para surdos, a balança finalmente pendeu, e no célebre Congresso Internacional de Educadores de Surdos, realizado em 1880 em Milão, no qual os próprios professores surdos foram excluídos da votação, o oralismo saiu vencedor e o uso da Língua de Sinais nas escolas foi “oficialmente” abolido (SACKS, 1998, p. 39).

A partir do Congresso de Milão, os professores ouvintes, que na sua maioria não conheciam a Língua de Sinais, passaram a ensinar alunos surdos ocupando as vagas dos professores surdos, e cada vez mais o inglês foi se tornando a língua de instrução de alunos surdos. O oralismo, sem a Língua de Sinais, foi deteriorando o aproveitamento educacional das crianças surdas e a instrução dos surdos de um modo geral.

FIGURA 3 – IMAGEM DE ALEXANDER GRAHAM BELL E FAMÍLIA

FONTE: Witkoski (2015, p. 29)

2.1 SURDOS NO BRASIL

A história dos surdos no Brasil tem os mais importantes registros a partir da fundação do Colégio Nacional para Surdos-Mudos, no século XIX, ideia trazida pelo francês E. Huet, que apresentou um relatório com sua intenção de fundar uma escola de surdos no Brasil. A seguir, uma breve visita aos momentos mais marcantes da fundação dessa escola, apresentados pela autora Strobel:

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TÓPICO 1 | MARCOS HISTÓRICOS

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1855 - Eduardo Huet, professor surdo com experiência de mestrado e cursos em Paris, chega ao Brasil sob beneplácido do imperador D. Pedro II, com a intenção de abrir uma escola para pessoas surdas. 1857 - Foi fundada a primeira escola para surdos no Rio de Janeiro – Brasil, o “Imperial Instituto dos Surdos-Mudos”, hoje, “Instituto Nacional de Educação de Surdos”– INES, criada pela Lei nº 939 (ou 839?) no dia 26 de setembro. Foi nesta escola que surgiu, da mistura da Língua de Sinais francesa com os sistemas já usados pelos surdos de várias regiões do Brasil, a LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais). Dezembro do mesmo ano, Eduardo Huet apresentou ao grupo de pessoas, na presença do imperador D. Pedro II, os resultados de seu trabalho causando boa impressão. 1861 - Ernest Huet foi embora do Brasil, devido aos seus problemas pessoais, para lecionar aos surdos no México. Neste período, o INES ficou sendo dirigido por Frei do Carmo que logo abandonou o cargo alegando: “Não aguento as confusões” e com isto foi substituído por Ernesto do Prado Seixa. 1862 - Foi contratado para cargo de diretor do INES, Rio de Janeiro, o Dr. Manoel Magalhães Couto, que não tinha experiência de educação com os surdos (STROBEL, 2008, p. 24).

No Brasil, as deliberações do Congresso de Milão afetaram de forma devastadora a educação de surdos. O INES também adotou o oralismo e foram cem anos de regressos irreversíveis na educação de muitos surdos. Contudo, os anos se passaram, e apesar de proibidas, as Línguas de Sinais continuaram vivas e onde existissem surdos reunidos havia também a comunicação através dos sinais de forma escondida. Durante muito tempo, surdos e ouvintes defensores da comunicação gestual buscaram estratégias e recursos para legalizar o uso da Língua de Sinais. No Brasil, a oficialização da Língua de Sinais se dá em 2002 através da Lei 10.436, de 24 de abril. Momento de júbilo para os surdos brasileiros. A partir da sanção da Lei, os surdos não mais precisaram se esconder para se comunicar através daquela que é a sua língua nativa, aquela que traz compreensão, que expressa sentimentos, que permite o discurso lógico.

Como mencionamos anteriormente, é rara a história dos surdos ter registros dos próprios surdos. Os ouvintes sempre estiveram representando o povo surdo. Uma pergunta a se refletir: Onde estão os registros que possuem os atos históricos dos surdos que compartilhavam e lutavam ao lado do povo surdo? Foram deixados de lado esquecidos, tornaram-se invisíveis? Strobel cita:

E assim com esses “esquecimentos estereotipados” a história cultural vem expondo o povo surdo. Transparece a discriminação da cultura surda. Tudo isso fez produzir os movimentos de lutas políticas por consideração, a história surda, as identidades surdas, a Língua de Sinais e a pedagogia surda, fazendo garantir o afastamento da visão de “anormalidade” e aproximação de comunidades surdas, povo surdo, sendo considerados como sujeitos surdos, diferentes (STROBEL, 2008, p. 91).

Durante cem anos, ouvintes leigos, no que diz respeito à subjetividade da pessoa surda, determinaram a forma como eles deveriam se comunicar. Não houve em nenhum momento uma empatia com os sentimentos daqueles que estavam literalmente “mudos”, sendo privados de usar sua língua materna, tendo as mãos e almas acorrentadas em prol de uma cultura majoritária que julgou saber o que era melhor para a educação dos surdos. A lei que legaliza a Língua Brasileira de Sinais é um elixir para a alma daqueles que tiveram duras marcas de uma grande lacuna na sua história. Seus direitos foram capturados e agora são trazidos de volta.

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UNIDADE 1 | MARCOS HISTÓRICOS: NOVAS REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DOS SURDOS

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Art.1o É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais – Libras, além de outros recursos de expressão associados. Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - Libras a forma de comunicação e expressão em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constitui um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil (BRASIL, 2002).

A Lei no 10436/02 libertou o povo surdo brasileiro. Passou a utilizar a sua língua materna sem represálias. Por isso, a legalização da Libras é um marco importante na história dessa gente. E isso só aconteceu no século XX, lembrando que iniciamos nossa narrativa no século XVI. Embora tenha sido um grande e precioso passo, a lei não abrange todas as necessidades do sujeito surdo. Ela traz pontos importantes, como a garantia por parte do poder público, o apoio ao uso e difusão da língua, a garantia ao atendimento de saúde, a obrigatoriedade do ensino da língua nos cursos de magistério e licenciaturas. Porém, não há uma forma detalhada e específica de como isso deva acontecer, e por não estar claro, alguns direitos acabaram ficando em estado latente por três longos anos.

DICAS

Em 2005, a história recebe o Decreto 5626, que vem para regulamentar, complementar e ativar a Lei 10436/05, que trata sobre o uso e difusão da Língua de Sinais e dispõe também sobre a Lei 10.098/00, que estabelece normas e critérios básicos acerca da acessibilidade das pessoas com deficiência e mobilidade reduzida. Há a definição também de quem é o sujeito surdo e quem é a pessoa com deficiência auditiva, contemplando vários aspectos da vida de um cidadão no que diz respeito ao direito à educação, saúde e acesso à informação. Confira a Lei 10.436/02 e o Decreto 5626/05 na íntegra, em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10436.htm.

FONTE: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Decreto/D5626.htm. Acesso em: 17 jun. 2019.

3 OS SURDOS TÊM CULTURA E IDENTIDADE?

Quando você visualiza ou ouve a palavra “cultura”, o que lhe vem à mente? E quando se trata de “Cultura Surda”, qual aferição você faz? Vamos conhecer um pouco sobre uma cultura muito peculiar. O conceito da palavra cultura resulta em muita polêmica, pois existem várias opiniões sobre o conceito, idealizadas por pesquisadores e, até mesmo, por pessoas leigas. Existem variados conceitos e estudos culturais, porém vamos nos ater a um dos significados da palavra e de acordo com o que encontramos no dicionário Aurélio, uma das definições menciona que: “cultura” é um “conjunto dos hábitos sociais e religiosos, das manifestações intelectuais e artísticas, caracteriza uma sociedade, cultura inca, cultura helenística. Normas de comportamento, saberes, hábitos ou crenças que diferenciam um grupo de outro” (DICIO, 2019, s. p.).

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Partindo desses conceitos, ao pensarmos cultura enquanto conjunto de hábitos sociais ou normas de comportamento, subentende-se que as diversidades culturais se dão a partir das diferenças regionais. Normalmente, a palavra cultura remete-nos a uma comida típica, uma forma de se vestir, e lembramo-nos dos hábitos mais diversos e interessantes. Se refletirmos apenas em relação ao nosso país, já encontramos inúmeras manifestações culturais, sendo possível encontrar diferenças até mesmo de uma cidade para outra, em um mesmo estado. Porém, além de toda essa diversidade, ainda falamos de uma cultura majoritária, aquela em que uma grande parte da população faz parte. Dentro da cultura majoritária, nasce, cresce e se constitui o sujeito surdo.

Analisemos o seguinte caso: um bebê surdo nasce em uma cidade do estado do Rio de Janeiro - RJ, em uma família tradicional de ouvintes. O bebê irá crescer em um ambiente cultural carioca, com seus costumes e tradições daquela região. Entretanto, essa criança tem uma particularidade: ela não ouve, é surda. Porém, a maioria dos cariocas é ouvinte. Esse bebê receberá, de forma fragmentada, a cultura majoritária de sua cidade. Durante sua infância, frequentará escolas e espaços que farão parte da sua constituição. Se o sujeito tiver acesso à Língua de Sinais e à comunidade surda, que é a minoria, passará a adquirir também a cultura surda.

Talvez seja fácil definir e localizar, no tempo e no espaço, um grupo de pessoas, mas quando se trata de refletir sobre o fato de que nessa comunidade surgem – ou podem surgir – processos culturais, é comum a rejeição à ideia da "cultura surda", trazendo como argumento a concepção da cultura universal, a cultura monolítica. Não me parece possível compreender ou aceitar o conceito de cultura surda senão através de uma leitura multicultural, ou seja, a partir de um olhar de cada cultura em sua própria lógica, em sua própria historicidade, em seus próprios processos e produções. No contexto, a cultura surda não é uma imagem velada de uma hipotética cultura ouvinte. Não é seu revés. Não é uma cultura patológica (SKLIAR, 1998 apud WITKOSKI, 2015, p. 85).

O cenário no qual o sujeito surdo nasce e habita passa a constituir também a sua identidade. A convivência com seus pares, ou não, será fator determinante para essa constituição. O indivíduo que assume a surdez utiliza a Língua de Sinais como língua materna e exige o direito ao intérprete de Libras, que luta por seus direitos linguísticos e sociais. De acordo com Skliar (1998, p. 63), terá uma identidade surda política.

Se há festas de família, por exemplo, é natural o surdo procurar o semelhante surdo. Se na festa não há um semelhante surdo, a tendência é fugir para ir ao encontro do surdo onde quer que ele esteja. Somos assim. Algo atrai por ser melhor. Juntos é melhor. A maioria surda sempre está junto. Estar com amigos surdos é sentir que se tem este parentesco. É um parentesco virtual. Isto porque chegamos na profundidade de nossas relações de semelhantes. Uma semelhança forte que mantém a gente vivo, unido. Se acontecer visitas entre nós ficamos horas falando de tudo que é possível. Na família o ouvinte intervém, geralmente o pai, a mãe, os irmãos. Ficam ansiosos em relação ao tempo gasto nessa forma de comunicação. Nossa comunicação é uma forma de transmitir fatos, compreendê-los, valorizá-los na semelhança, no descompasso.

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UNIDADE 1 | MARCOS HISTÓRICOS: NOVAS REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DOS SURDOS

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Quando encontramos uma família de ouvintes que deixa de aderir o uso da Língua de Sinais com seu filho surdo, e que busca recursos clínicos ou terapêuticos para se comunicar, este passará a adotar um comportamento espelhado ao que ele vê e vive em seu cotidiano, com hábitos e costumes ouvintes. Essa identidade será uma identidade flutuante, pois este ser, apesar de surdo, irá reproduzir-se dentro de aspectos e características ouvintes.

A identidade é interessante porque permite ver um surdo “consciente” ou não de ser surdo, porém, vítima da ideologia ouvintista que segue determinando seus comportamentos e aprendizados. Existem alguns surdos que querem ser ouvintizados a todo o custo. Desprezam a cultura surda, não têm compromisso com a comunidade surda. Outros são forçados a viver a situação como que conformados (PERLIN, 2005, p. 65).

Para uma criança surda que nasce em uma família de ouvinte, mas que não se identifica com o modo de ser ouvinte, e também não se reconhece como surdo, não utiliza a Língua de Sinais, e também não utiliza leitura labial, a identidade que se constitui é uma identidade incompleta, pois se considerará inferior aos ouvintes. Temos ainda a identidade, que pode ser oriunda de uma identidade inconformada ou flutuante, em que, depois de adulto, descobre-se a cultura surda, se envolve com a comunidade surda e aprende de forma tardia a Língua de Sinais. Será uma identidade de transição. “Transição é o aspecto do momento de passagem do mundo ouvinte com representação da identidade ouvinte para a identidade surda de experiência mais visual” (PERLIN, 2005, p. 64).

Há também um tipo de identidade que pode acometer qualquer ouvinte: a identidade hibrida, que nada mais é que uma pessoa que nasce e se constitui como sujeito ouvinte, mas que em um determinado momento de sua vida, seja por acidente, idade avançada ou por questões clínicas, perde sua audição. A pessoa passará a ter uma identidade que perpassa os dois modos de ser. “Esses surdos conhecem a estrutura do português falado e usam-no como língua” (SKLIAR, 1995, p. 63).

DICAS

A professora surda, doutora em Educação, Gladis Perlin (1998), em seu livro Identidade Surda, traz detalhadamente as definições das identidades surdas por ela pesquisadas. Vale a pena conferir!

4 CONCEITO DE CULTURA SURDA

A cultura surda é um conjunto de costumes daqueles que entendem o mundo de uma forma muito diferente da grande maioria. O mundo, para as pessoas surdas, acontece a partir da visão, tato, olfato e paladar. A ausência de audição faz com que o corpo do sujeito surdo se encarregue em distribuir para os demais órgãos sensoriais as funções designadas ao ouvido.

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TÓPICO 1 | MARCOS HISTÓRICOS

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Reportemo-nos a uma família tradicional, onde pais ouvintes recebem seu bebê também ouvinte. Desde a gestação, os bebês podem ouvir a voz da sua genitora, o que é cientificamente comprovado. Já nas primeiras horas de vida, recebe inúmeros estímulos auditivos e, depois que chega em casa, familiares e amigos que visitam o recém-nascido conversam e direcionam palavras de boas-vindas e desejos dos mais variados. Embora o bebê ainda não compreenda o que significam os sons que recebe, sendo necessário aprender a ouvir, ainda assim, tem acesso a esses estímulos. Esse processo será por toda sua trajetória familiar, escolar e social. Terá acesso a diversas informações e poderá selecionar o que é de seu interesse ou não.

Vamos agora nos situar em uma família também tradicional de pais ouvintes, mas que recebem um bebê surdo. Vamos nos reportar diretamente ao nascimento da criança, uma vez que a surdez pode ser pré-natal (má formação congênita) ou pós-natal (o bebê nasce ouvinte e perde a audição depois). A verbalização dos familiares, amigos e todos os que estão ao redor do bebê não chegará para ele da mesma forma que chega para o bebê ouvinte. O bebê surdo receberá os estímulos visuais do cenário. Desde aí as diferenças de constituição de sujeito passam a distanciar-se umas das outras e inicia-se também a distinção cultural.

Além da distinção, a criança surda que nasce em berço ouvinte terá outro fator determinante na sua formação, que o diferenciará e o afastará muito do desenvolvimento de uma criança ouvinte. Ao ser detectada a surdez, os pais iniciam uma busca desesperada pela reabilitação do seu filho. Compreende-se que, para os pais, a surdez é motivo de angústia e desespero, uma vez que planejaram saúde e perfeição para o ser tão desejado. O que os pais acabam por esquecer é que a ida e a vinda aos clínicos terapêuticos podem implicar na constituição do ser em desenvolvimento. Toda a busca por aparelhos auditivos, implantes cocleares e terapias com o profissional fonoaudiólogo, entre outros recursos pode e deve ser feita pelos pais, desde que estes não esqueçam que, por trás daqueles ouvidos que “não funcionam”, existe um sujeito que compreende o mundo através dos estímulos visuais e que, certamente, para ele, a expressão que vê no rosto dos seus pais deve ser angustiante.

Essa forma de ver e entender o mundo faz com que a cultura majoritária se subdivida. Aí encontramos a cultura surda. Karin Strobel é uma autora surda que escreve de forma comovente o livro As imagens do outro sobre a cultura surda (2008), pela Universidade Federal de Santa Catarina. Nele, ela traz de forma clara e emocionante como se constitui a cultura do sujeito surdo. A autora utiliza o significado de cultura a partir da etimologia da palavra em que cultura é um verbo que significa “ato de plantar e cultivar as plantas”. Para ela:

[...] os elementos mais importantes da cultura podem ser destacados como as habilidades dos sujeitos para construção da sua identidade com o uso da linguagem. Ilustrando mais claramente, na “cultura”, a palavra natureza significa tanto o que está a nossa volta como o que está dentro de nós. Poderíamos usar a metáfora de uma semente que é plantada em solo e cresce uma bela planta, mas isso não ocorre sem a ajuda da natureza, ou seja, do sol, da chuva, do vento, do fertilizante do solo, que faz a semente reagir e desenvolver. A semente que está sozinha sem ademão da natureza não cresceria, uma vez que estaria abandonada e apodrecendo (STROBEL, 2008, p. 18).

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Diante do belo exemplo, podemos ter uma visão mais poética do que é a cultura. Pensando no exemplo da planta, desloquemos nosso pensamento para aquele bebê surdo que nasceu em sua cidade natal, em uma família de ouvintes. Esse bebê estará fazendo parte de uma cultura, estará recebendo carinho, alimentação e saúde. Participará de todos os movimentos sociais com seus familiares. Sendo assim, de acordo com a metáfora citada, receberá água, sol, chuva e vento. Contudo, faltará o fertilizante, se pensarmos na comunicação da criança.

Convidamos você a ler e a refletir a fábula escrita por Emily Perl Kingsley:

Bem-vindo à HolandaFrequentemente sou solicitada a descrever a experiência de criar um filho portador de deficiência para tentar ajudar as pessoas que nunca compartilharam dessa experiência única a entender, a imaginar como deve ser. É mais ou menos assim... Quando você vai ter um bebê, é como planejar uma fabulosa viagem de férias - para a Itália. Você compra uma penca de guias de viagem e faz planos maravilhosos. O Coliseu. Davi, de Michelangelo. As gôndolas de Veneza. Você pode aprender algumas frases convenientes em italiano. É tudo muito empolgante. Após meses de ansiosa expectativa, finalmente chega o dia. Você arruma suas malas e vai embora. Várias horas depois, o avião aterrissa. A comissária de bordo chega e diz: "Bem-vindos à Holanda!". "Holanda?!?” Você diz, "Como assim, Holanda? Eu escolhi a Itália. Toda a minha vida eu tenho sonhado em ir para a Itália". Mas houve uma mudança no plano de voo. Eles aterrissaram na Holanda e é lá que você deve ficar. O mais importante é que eles não te levaram para um lugar horrível, repulsivo, imundo, cheio de pestilências, inanição e doenças. É apenas um lugar diferente. Então, você deve sair e comprar novas guias de viagem. E você deve aprender todo um novo idioma. E você vai conhecer todo um novo grupo de pessoas que você nunca teria conhecido. É apenas um lugar diferente. Tem um ritmo mais lento do que a Itália, é menos vistoso que a Itália. Mas depois de você estar lá por um tempo e respirar fundo, você olha ao redor e começa a perceber que a Holanda tem moinhos de vento, a Holanda tem tulipas, a Holanda tem até Rembrandts. Mas todo mundo que você conhece está ocupado indo e voltando da Itália, e todos se gabam de quão maravilhosos foram os momentos que eles tiveram lá. E toda sua vida você vai dizer "Sim, era para onde eu deveria ter ido. É o que eu tinha planejado". E a dor que isso causa não irá embora nunca, jamais, porque a perda desse sonho é uma perda extremamente significativa. No entanto, se você passar sua vida de luto pelo fato de não ter chegado à Itália, você nunca estará livre para aproveitar as coisas muito especiais e absolutamente fascinantes da Holanda.

FONTE: KINGSLEY, E. P. Bem-vindo à Holanda. 1987. Disponível em: http://www.celsoantunes.com.br/bem-vindo-a-holanda-fabula-escrita-por-emily-pearl-kingsley-em-1987/. Acesso em: 30 out. 2018.

IMPORTANTE

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TÓPICO 1 | MARCOS HISTÓRICOS

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Essa fábula define o que a maioria dos pais ouvintes sente ao receber o laudo de surdez de seu filho. Diferentemente de outras deficiências ou doenças que podem ser detectadas durante a gestação, a surdez somente é descoberta após o nascimento do bebê. Atualmente, já nas primeiras horas de vida, o bebê passa pelo teste da orelhinha e a surdez é detectada precocemente. Muitos surdos são contra o teste da orelhinha, pois a partir do momento em que os pais descobrem a surdez, esquecem-se de olhar para seus filhos e tentar fazer um contato visual que passe segurança.

Pais passam a correr contra o tempo, alguns discutem, tentando descobrir de quem foi a culpa, e apesar que suas vidas giram em torno da surdez do filho, acabam se afastando. O documentário: Sou surda e não sabia, de 2009, retrata muito bem esse momento de distanciamento entre pais ouvintes e filhos surdos. Vale a pena conferir e conhecer melhor o processo de aceitação.

Marcamos essa diferença entre o mundo ouvinte e o mundo surdo e como cada um se constitui a fim de que fique mais claro compreender a existência de uma cultura minoritária dentro de uma cultura majoritária. No Tópico 2 adentraremos nas curiosidades dessa cultura encantadora.

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Neste tópico, você aprendeu que:

• A história dos povos surdos surge com os professores ouvintes que iniciaram os trabalhos com surdos filhos dos nobres através da evolução da medicina para a cura da surdez e pelas metodologias utilizadas por ouvintes na educação dos surdos.

• No século XVI, os surdos não eram reconhecidos pela lei como pessoas, por não saberem falar e ler. Ainda, considerados incapazes, desprovidos de inteligência, não tinham o direito de ter seus nomes incluídos no rol de heranças das famílias nobres.

• Foi naquela época que nomes como Pedro Ponce de Léon, os Braidwoods, Amman, Perreire e Deschamps começam a aparecer na sociedade. Ouvintes, de diversos lugares, dispostos a ensinar os filhos surdos dos nobres.

• A partir do Congresso de Milão os professores ouvintes, que na sua maioria não conheciam a Língua de Sinais, passaram a ensinar alunos surdos, ocupando as vagas dos professores surdos e, cada vez mais, o inglês foi se tornando a língua de instrução de alunos surdos.

• A cultura surda é um conjunto de costumes daqueles que entendem o mundo de uma forma muito diferente da grande maioria. O mundo para as pessoas surdas acontece a partir da visão, tato, olfato e paladar.

RESUMO DO TÓPICO 1

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1 Relembrando os fatos históricos das pessoas surdas e a sua cultura, revisite o texto e assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) L’Epée fundou uma escola em 1775 e foi a primeira a angariar recursos públicos. Em 1776 seu livro escrito de modo revolucionário foi publicado pela primeira vez, tornando-se uma obra clássica, disponível em muitas línguas.

b) ( ) A história dos surdos no Brasil tem os mais importantes registros a partir da fundação do Colégio Nacional para Surdos-Mudos no século XX, ideia trazida pelo francês L’Epée, que apresentou um relatório com sua intenção de fundar uma escola de surdos no Brasil.

c) ( ) No Brasil, as deliberações do Congresso de Milão afetaram de forma devastadora a educação de surdos. O INES também não adotou o oralismo.

d) ( ) A cultura surda é um conjunto de costumes daqueles que entendem o mundo de uma forma muito diferente da grande maioria. O mundo para as pessoas surdas acontece a partir do oralismo.

e) ( ) A ausência de audição faz com que o corpo do sujeito surdo se encarregue em distribuir para os demais órgãos sensoriais as funções designadas ao ouvido.

2 De acordo com Skliar (1998, p. 28), “talvez seja fácil definir e localizar, no tempo e no espaço, um grupo de pessoas, mas quando se trata de refletir sobre o fato de que nessa comunidade surgem – ou podem surgir – processos culturais, é comum a rejeição à ideia da "cultura surda [...]". Assinale V (Verdadeiro) ou F (Falso) às ações que dizem respeito aos processos culturais:

( ) Ao pensarmos cultura enquanto conjunto de hábitos sociais ou normas de comportamento, subentende-se que as diversidades culturais se dão a partir das igualdades regionais.

( ) O indivíduo que assume a surdez, utiliza a Língua de Sinais como língua materna, exige o direito ao intérprete de Libras e que luta por seus direitos linguísticos e sociais é o sujeito que assume sua identidade de surdo político.

( ) Há também um tipo de identidade que pode acometer qualquer ouvinte: a identidade dupla, que nada mais é que uma pessoa que nasce e se constitui como sujeito ouvinte, mas que em um determinado momento de sua vida, seja por acidente, idade avançada ou por questões clínicas, perde sua audição.

( ) Toda a busca por aparelhos auditivos, implantes cocleares e terapias com o profissional fonoaudiólogo, entre outros recursos, podem e devem ser feitos pelos pais, desde que não esqueçam que, por trás daqueles ouvidos que “não funcionam”, existe um sujeito que compreende o mundo através dos estímulos visuais e, certamente, para ele, a expressão que vê no rosto dos seus pais deve ser angustiante.

AUTOATIVIDADE

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Agora, assinale a alternativa CORRETA de acordo com o preenchimento anterior:a) ( ) V – V – V – F.b) ( ) F – F – V – F.c) ( ) V – V – F – V.d) ( ) V – F – F – V.

3 Como já visto: “Atualmente, já nas primeiras horas de vida, o bebê passa pelo teste da orelhinha e a surdez é detectada precocemente. Muitos surdos são contra o teste da orelhinha, pois a partir do momento em que os pais descobrem a surdez, esquecem-se de olhar para seus filhos e tentar fazer um contato visual que passe segurança”. Refletindo sobre o fato de muitos surdos serem contra o teste da orelhinha, responda em forma de texto à seguinte pergunta: O surdo está equivocado nesse pensamento? Justifique.

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TÓPICO 2

PECULIARIDADES DA CULTURA SURDA

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃO

Quando falta a oportunidade de conhecer e/ou conviver com pessoas surdas, não compreendemos muitas questões. Não somos capazes de mensurar o que é viver e se constituir em um mundo sem som. É encantador entrar nesse universo cheio de expressões corporais, faciais e cheio de emoções. Após conhecer e conviver com elas, conseguimos ter uma noção de fragmentos da sua vida cotidiana. Incrível é viver em um ambiente cheio de limitações, buscando estratégias criativas para coexistir.

Neste tópico, percorreremos acerca das peculiaridades da cultura surda. Abordagens nos âmbitos escolar, social e na saúde serão pontos para a desconstrução de um olhar que se constituiu do lado de fora da história. Vivemos em uma sociedade capitalista na qual dormimos pouco e trabalhamos muito. Vivemos correndo em uma busca desenfreada e constante em direção ao primeiro lugar. A pergunta que fica é: aonde se quer chegar? Esse campo de batalha que se tornou nossas vidas fez acelerar o ritmo dos relógios e quando menos esperamos se passou o dia, a semana, o mês e o ano.

Ainda, lá vamos nós mais uma vez, dormindo com a sensação de incompletude. Se mesmo neste ritmo louco conseguirmos mudar nossa postura e construir uma nova perspectiva, passaremos a (re) ver nosso tempo e iremos priorizar questões que realmente importam. Reconstruir o olhar acerca das pessoas surdas e assumir nosso papel na história também são compromissos.

Você encontrará, nas próximas linhas, informações que despertarão tristeza, preocupação e indignação. No entanto, também perceberá que, com a evolução das tecnologias, as barreiras estão cada vez mais sendo quebradas e podemos vislumbrar um futuro mais acessível. Dará boas risadas ao conhecer as inúmeras curiosidades que estão por trás dessa forma de viver e concluirá que, apesar de tantas limitações, somos todos iguais.

2 COMO PODEMOS COMPREENDER E ENVOLVER AS PECULIARIDADES DA CULTURA SURDA?

Desde que as pessoas surdas passaram a ocupar seus espaços na sociedade, estabelecer uma comunicação entre surdos e ouvintes tornou-se um grande desafio. As duas formas de comunicação são muito distintas. De um lado

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UNIDADE 1 | MARCOS HISTÓRICOS: NOVAS REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DOS SURDOS

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temos a modalidade gestual-visual e de outro a oral-auditiva. Encontramos aí a primeira e maior barreira a ser superada: a barreira linguística. Há de se convir que a barreira poderia ser desconstruída, uma vez que ouvintes aprendessem a Língua de Sinais. Sacks (1998) mostra que isso é possível quando nos conta que, na Ilha Martha’s Vineyard, de Massachussetts, surdos e ouvintes utilizam a Língua de Sinais. É, por enquanto, utopia para a nossa realidade.

Para que possamos compreender as peculiaridades dessa cultura, precisamos sair um pouco do nosso lugar, deslocar nosso pensamento para fora do conforto auditivo, de onde podemos fechar os olhos e ouvir o som do mar. Podemos sentar com a família e ouvir as histórias contadas pelos avós. Podemos estar sentados em uma sala de aula, ouvindo as explicações de um professor enquanto anotamos os aspectos mais relevantes. Em um lugar onde não temos dificuldades em compreender os processos da nossa língua na modalidade escrita, pois crescemos ouvindo-a e, no momento de transcrevê-la para o papel, podemos utilizar nossa memória auditiva como apoio.

Meus olhos são minha vida, são meu canal primordial, mais intenso, mais completo, mais arguto com a realidade, sendo que a percepção é maior, por exemplo, se alguém me pergunta como ocorreu um fato. Explicarei o que vi, e não ouvi. Se é feita a mesma pergunta para o ouvinte, ele declarará pelo contrário: mais do que ouviu do que viu (WITKOSKI, 2015, p. 87).

Ao sairmos de nossa zona de conforto, torna-se mais fácil compreender o quão diferente é a constituição de um ser humano que nasce sem a audição. Passamos a imaginar como seria viver todos os dias tentando compreender o mundo apenas pelas informações captadas visualmente. Façamos agora um clássico exercício de empatia:

• Baixe o volume de sua televisão e tente entender o que está sendo dito no seu programa favorito. Vale tentar leitura labial, interpretar expressões corporais, imagens etc.

• Agora, utilize o recurso de legenda oculta (Closed Caption – CC).

Como se sentiu? Na verdade, o Closed Caption pode não funcionar em alguns canais, pois ainda não abrangeu todos os programas televisivos. Embora seja uma exigência da lei de acessibilidade, esse recurso ainda deixa muito a desejar. Muitas palavras são escritas de modo errôneo e em alguns momentos a legenda está em desacordo com o tempo de fala.

Acreditamos que se você fez esse exercício, estará mais sensível para compreender as especificidades dessa cultura. Colocando-se no lugar de uma pessoa surda, torna-se possível adentrar num campo novo e perceber o motivo pelo qual há tantos movimentos em busca de escolas bilíngues, de direito ao intérprete de Libras nos locais públicos, de legenda nos filmes. O surdo reivindica direito a cada passo dado em um mundo extremamente ouvinte.

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TÓPICO 2 | PECULIARIDADES DA CULTURA SURDA

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Muitas dúvidas permeiam a mente. A Língua de Sinais é universal? É mímica? O surdo vive no silêncio total? Por que ele não oraliza? Ele sabe falar? Essas e outras perguntas são frequentes aos intérpretes de Libras e aos surdos. Nos cursos e disciplinas de Língua de Sinais, percebe-se que os ouvintes têm inúmeras perguntas ao sujeito surdo, mas se calam por receio de ofender. Contudo, para se envolver com a cultura surda, o primeiro passo é justamente se aproximar, mesmo que seja para fazer uma pergunta que num primeiro momento aparenta ser absurda. Só conhecendo se pode envolver.

Alguns mecanismos são considerados meios de sobrevivência da cultura surda. A própria cultura é um meio de sobrevivência quando concebemos que a comunicação em Língua de Sinais não é utilizada por todos os brasileiros. Ouvintes puxam assunto em qualquer lugar: na fila do banco, na farmácia, ponto de ônibus. Em variadas situações, grupos de ouvintes em um instante se juntam e comentam sobre assuntos diversos. A deficiência auditiva tem por característica física o uso do aparelho auditivo, o que não ocorre com pessoas surdas usuárias da Língua de Sinais, que não utilizam o aparelho amplificador e a surdez não é percebida, sendo invisível aos olhos do outro. Ainda, quando estão circulando na sociedade e são chamadas para uma conversa, sinalizam com o dedo indicador direcionado ao ouvido, fazendo a expressão “Não ouço”. Esse gesto provoca uma reação imediata de distanciamento e a pessoa ouvinte se desculpa e vai em busca de pares para conversar sobre coisas triviais, deixando o surdo de lado. Isso não representa um ato de preconceito, simplesmente comprova que as pessoas ouvintes não conseguem se comunicar com pessoas surdas com a mesma desenvoltura e naturalidade que se comunicam com falantes da mesma língua.

Partindo do pressuposto que pessoas precisam umas das outras para a constituição, a comunidade surda se fomenta a partir de encontros intencionais nas associações de surdos. Há momentos de lazer, esporte, cultura e é onde acontece o compartilhamento de informações, que é uma das características mais importantes da cultura surda, uma vez que há situações difíceis de comunicação durante toda a trajetória de vida. As associações de surdos são compostas por diretores não ouvintes e tudo lá acontece em Língua de Sinais. É o lugar onde familiares e amigos se encontram para debates sobre assuntos sérios e trivialidades do cotidiano e para atualização, pois a Língua de Sinais é uma língua viva que se modifica tanto quanto a Língua Portuguesa. Novas gírias e novos vocabulários surgem.

Outro mecanismo de sobrevivência da cultura surda é o que Karnopp, Klein e Lazzarin (2011, p. 140) chamam de “Arena Educacional”. Embora arena pareça ser uma palavra inadequada, por remeter à ideia de combates, lutas e batalhas, muitas vezes é assim que a pessoa com surdez se sente no ambiente escolar. Conforme estudado no Tópico 1 deste livro, a educação de surdos passou por várias fases. Muitos são os desafios desses alunos no ambiente escolar. No que diz respeito à educação, ainda está muito longe do ideal e infelizmente ainda não se considera a importância da Língua de Sinais nesse espaço. Não se cumpre o (bi) linguismo, ou seja, não existem duas línguas permeando o espaço escolar, elas não coexistem. Existe apenas uma língua dominante que é a língua

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UNIDADE 1 | MARCOS HISTÓRICOS: NOVAS REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DOS SURDOS

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oral e uns poucos usuários da Língua de Sinais. Essa situação torna-se prejudicial para o desenvolvimento do aluno surdo, pois em momentos escolares, devido à dinâmica que na maioria das vezes acontece com todos falando ao mesmo tempo, o aluno perde consideravelmente aspectos importantíssimos para a aquisição de conceitos. Ao olhar o movimento da sala perde a tradução feita pelo intérprete e, ao prestar atenção no intérprete, perde informações visuais.

No processo de aquisição de leitura, um aluno ouvinte, após compreender os sons das letras e a junção das sílabas, torna-se capaz de ler qualquer palavra. Ao ouvir o som, faz uma ligação com a imagem e automaticamente acessa o conceito dela em sua memória. A criança surda faz isso também, porém utilizando os sinais. Ao visualizar um sinal, ela busca em sua memória a imagem, relacionando-a ao seu conceito. Porém, quando chega às questões de escrita, a diferença começa a aparecer no desenvolvimento dessas duas realidades. A Língua de Sinais não traz em sua estrutura pistas que auxiliem na escrita, por ser uma língua visual-gestual e não oral-auditiva. É nesse ponto que a criança surda vai se distanciando da criança ouvinte e, se a escola não der o devido valor e importância, essa lacuna tende a crescer de tal forma a não se dar mais conta de resgatar.

A escola é a instituição responsável pelo ensino/aprendizagem da língua escrita. Envolver a cultura surda nesses espaços pode ser uma forma de despertar leitores surdos, diminuindo o fracasso na leitura e escrita. A grande magia desse processo está no prazer de usufruir de forma autônoma e fluente. Para isso, o professor conta com o apoio do profissional intérprete de Libras, que estará em sala em todos os momentos. Grande parte dos profissionais julga não dar conta de ensinar um aluno surdo pela falta de domínio da sua Língua. Sabemos que seria muito mais rico e eficaz o professor conversar diretamente com o aluno surdo, sem a necessidade de outro profissional, mas sabemos também que a Língua de Sinais, como qualquer outra língua, tem seu tempo de aquisição. Tempo esse que o professor não dispõe. Ainda, tendo garantido por lei o direito ao intérprete de Libras, o professor pode correr contra o tempo para buscar informações e compreender de que forma esse aluno aprende, pois a comunicação acontecerá de qualquer forma.

Atualmente vemos, em sala de aula, intérpretes que se tornam professores do aluno surdo. O profissional, na maioria dos casos e principalmente no que diz respeito aos anos finais do ensino fundamental, não tem formação por área. Por mais boa vontade que possa demonstrar em auxiliar no ensino do aluno surdo, o mesmo não dá conta de assumir esse papel, pois, além de esbarrar nas questões curriculares, acaba exercendo uma função que não lhe cabe.

O intérprete especialista, para atuar na área da educação, deverá ter um perfil para intermediar as relações entre os professores e os alunos e entre os colegas surdos e os colegas ouvintes. No entanto, as competências e responsabilidades desses profissionais não são tão fáceis. Há vários problemas de ordem ética que acabam surgindo em função do tipo de intermediação que acaba acontecendo em sala de aula. Muitas vezes, o papel do intérprete em sala de aula acaba sendo confundido com o papel do professor. Os alunos dirigem questões diretamente ao intérprete, comentam e travam discussões em relação aos tópicos abordados

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com o intérprete e não com o professor. O próprio professor delega ao intérprete a responsabilidade de assumir o ensino dos conteúdos desenvolvidos em aula ao intérprete. Muitas vezes, o professor consulta o intérprete a respeito do desenvolvimento do aluno surdo, como sendo ele a pessoa mais indicada a dar um parecer a respeito. O intérprete, por sua vez, se assumir todos os papéis delegados por parte dos professores e alunos, acaba sendo sobrecarregado e, também, acaba por confundir o seu papel dentro do processo educacional, um papel que está sendo constituído (QUADROS, 2004, p. 60).

Uma vez que o professor regente ou professor da área busque compreender e conhecer o aluno surdo que está sob sua responsabilidade, mais fácil será traçar e atingir objetivos de aprendizagem. Vale ressaltar que todos os profissionais envolvidos são responsáveis pela aquisição da língua escrita desse aluno. Acredita-se que, desconstruindo algumas crenças em relação ao aluno surdo, torna-se possível e muito mais fácil constituir sujeitos surdos leitores, usuários de uma língua escrita. Com isso, diminuiremos a sensação que muitos surdos sentem, como se fossem estrangeiros em seu próprio país.

Já nas escolas bilíngues ou escolas com classes especiais para surdos a realidade é muito diferente. Os conteúdos são ministrados por professores usuários da Língua de Sinais, que oferecem os conteúdos diretamente nessa língua, sem a necessidade de um intérprete de Libras. Os alunos surdos questionam diretamente o professor e conseguem acompanhar os questionamentos dos colegas, pois tudo o que acontece em sala de aula é na Língua de Sinais. Eles convivem como seus pares, participam dos debates, vivenciam diversas situações, reivindicam direitos, cumprem seus deveres, tudo em tempo real. Porém, mesmo sendo um espaço propício para o sujeito surdo, e estar previsto em lei, ainda há uma grande resistência do Ministério da Educação quanto a esse tipo de educação. Por fim, vários movimentos para que essas escolas ou classes sejam fechadas acontecem com frequência.

A relação entre o surdo e a leitura proficiente tem sido conturbada. O que se cultiva é que, exigindo a língua escrita de seu país, está desrespeitando sua cultura e sua identidade. Ledo engano. A aquisição da língua escrita é direito de todo o cidadão, independentemente da sua língua ser oral ou gestual.

Notamos que esse processo é ainda objeto de estudo para pesquisadores, professores e familiares. No que diz respeito à aquisição da leitura e escrita por pessoas privadas da audição, a exposição a esses recursos é fator imprescindível. Porém, a Língua de Sinais é gestual e a língua escrita não aparece nos momentos de sinalização, a não ser em algumas palavras soletradas. Por esse motivo, a escrita é pouco utilizada na comunicação das pessoas surdas.

Outro campo delicado para surdos é o da saúde, embora o Decreto 5626/05 preconize “atendimento às pessoas surdas ou com deficiência auditiva na rede de serviços do SUS e empresas que detêm concessão ou permissão de serviços públicos de assistência à saúde por profissionais capacitados para o uso de Libras ou para sua tradução e interpretação” (BRASIL, 2005). Uma grande

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parcela da população não ouvinte vai a uma consulta médica ou ao plantão acompanhada por um familiar ou amigo, por não conseguir se comunicar de forma plena. Há relatos de surdos que ficam sem saber o que está acontecendo na própria consulta. Acompanhante e médico passam a conversar entre si, fazendo repasses fragmentados e resumidos. Essa experiência é fator determinante para que o paciente surdo busque o auxílio do tradutor intérprete de libras. Há ainda casos em que paciente e médico comunicam-se através da escrita, gerando muitas dúvidas por ambas as partes pelas questões linguísticas já mencionadas anteriormente.

Refletir sobre as questões de saúde para pessoas surdas nas mais variadas situações é também uma forma de se envolver com a cultura. Ouvintes adultos vão ao médico, relatam suas queixas, ouvem o diagnóstico e as orientações de forma autônoma. Todavia, você já parou para pensar como aquela mãe surda faz para se comunicar com o médico no seu pré-natal? E aquele adolescente que tem dúvidas e gostaria de ir a uma consulta sem ninguém saber? Para essas pessoas, ir ao médico é algo que gera dependência, pois é preciso a mediação de outrem. Ainda, por mais que o Decreto 5626/05 ainda traga em seu Artigo 25, no Item 10, o “apoio à capacitação e formação de profissionais da rede do SUS para o uso de Libras e sua tradução e interpretação” (BRASIL, 2005), não encontramos esse profissional nas redes de serviços médicos.

Nesse sentido, nem é incomum para o surdo compartilhar em detalhes suas doenças, os procedimentos envolvidos no tratamento médico e todos os efeitos colaterais para obter um melhor entendimento de sua condição médica. Esse ato de compartilhamento também é feito para dar suporte a outros que tenham o potencial de desenvolver condições semelhantes de saúde. Por exemplo, um surdo que sofre de distúrbio intestinal ou diarreia crônica pode descrever explicitamente para seus amigos a aparência, textura, cheiro e frequência de suas fezes. Além disso, uma descrição vivida da dificuldade de fazer uma coleta de fezes, o embaraço de levar a amostra ao laboratório e os procedimentos envolvidos em uma colonoscopia são, com frequência, recontados, não deixando espaço para a imaginação ou representação equivocada da situação. Essa provisão gráfica de informações é benéfica, pois permite que os outros surdos aprendam com a experiência dessa pessoa e sejam mais eficientes na gestão de sua própria assistência médica (HOLCOMB, 2011, p. 142).

A importância das associações de surdos aparece mais uma vez, quando

emerge a necessidade da relação entre os pares. O envolvimento de ouvintes fluentes em Língua de Sinais nesses espaços pode ser a ponte entre os dois mundos. Muitas experiências podem ser trocadas nesses momentos e uma cultura pode complementar a outra. Há muitas dúvidas, muitas construções irreais e muita coisa para se aprender nas duas. Sendo assim, a cultura oferece acesso à resolução de problemas historicamente criados.

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3 CURIOSIDADES SOBRE A CULTURA SURDA

Embora existam muitas barreiras a serem enfrentadas, a cultura surda tem um aspecto encantador e de valor imensurável. É recheada de curiosidades e peculiaridades que vale a pena conhecer e compreender que há muito mais por trás de uma pessoa surda do que a falta de audição. Antes de entrar nesse assunto tão instigante, vamos verificar como está seu conhecimento acerca dessa cultura. Reflita e responda sobre as seguintes perguntas:

1- O surdo pode ter carteira de habilitação? Se sua resposta for sim, explique como ele fará se alguém buzinar ou se vier uma ambulância.

2- Dependerá sempre de um ouvinte ou pode adquirir autonomia até mesmo para morar sozinho?

3- Uma mãe surda pode morar sozinha com seu filho?

Vejamos agora o que você acertou:

1- Se a sua primeira resposta foi afirmativa, você está bem informado. Sim, o surdo tem o direito de ter sua habilitação. Inclusive o Detran de alguns Estados está cadastrando intérpretes de Libras para atuarem nas aulas teóricas e práticas. Em alguns locais, as provas já estão em formato acessível na Língua de Sinais. De fato, o condutor surdo não ouvirá as buzinas ou mesmo a sirene de ambulâncias e viaturas. Entretanto, pode visualizar através dos espelhos os sinais de luz emitidos. Para que o condutor surdo seja identificado, deve ser colocado no carro, de forma visível, o símbolo nacional de surdez.

FIGURA 4 – SÍMBOLO NACIONAL DE SURDEZ

FONTE: <https://portaldotransito.com.br/wp-content/uploads/2016/09/simbolo_surdez-300x225.jpg>. Acesso em: 16 dez. 2018.

2- Sim, com certeza! Muitos surdos, solteiros ou casados moram sozinhos. Atualmente, a tecnologia facilita muito a comunicação. Quando alguém chega na casa de uma pessoa que não ouve, pode mandar uma mensagem de texto ou via WhatsApp para informar que está aguardando na porta. Mas há também inusitadas adaptações que podem ser utilizadas para a acessibilidade e autonomia na casa dessas pessoas. Campainhas sonoras são uma boa adaptação. Esses tipos de campainhas estão disponíveis para venda, porém, há pessoas que utilizam as habilidades criativas e criam seus próprios sistemas de campainha, instaladas

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até mesmo em prédios e são monitoradas por câmeras. Escolas bilíngues ou com classes especiais para surdos também adotam o mecanismo de sinais luminosos. Nas escolas regulares de ensino, encontram-se alguns projetos objetivando o investimento desses equipamentos para a acessibilidade. Os sinais luminosos são acoplados ao sinal sonoro da escola e quando este emite o som, as luzes instaladas nas salas, banheiros e pátio acendem no mesmo instante.

FIGURA 5 – CAMPAINHA LUMINOSA

FONTE: <https://proincluir.org/wp-content/themes/incluir/assets/modules/surdez/cultura-surda/img/01.jpg>. Acesso em: 16 dez. 2018.

3- Muito bem, acertou se você acredita que uma mãe surda é capaz de cuidar do seu bebê sozinha! E há diversas maneiras de saber se o bebê está chorando, algumas colocam o bebê na cama e ficam com o braço encostado. Entretanto, essa opção não é tão segura, uma vez que a mãe pode dormir profundamente, virando-se para o outro lado e não perceber quando o filho se movimenta ou chora. Outra parte utiliza o aparelho auditivo durante o sono para ampliar o som do bebê chorando, mas isso funciona somente para mães que têm um pouco de resíduo auditivo, o que não é o caso de mães com surdez profunda ou severa. É muito interessante quando o povo surdo usa a sua criatividade em busca de liberdade e autonomia. Alguns até criam engenhocas para captar o som do choro do bebê ou qualquer movimento no berço, cujo aparelho vibra embaixo do travesseiro dos pais. Contudo, graças às tecnologias que aparelhos modernos e eficazes estão sendo produzidos, como é o caso da babá eletrônica com a função “vibrar”.

FIGURA 6 – BABÁ ELETRÔNICA COM VIBRAÇÃO

FONTE: ENAP (2016, p. 18)

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Outras curiosidades fazem parte do cotidiano do não ouvinte:

Para acordar de manhã sem precisar da ajuda de um ouvinte, grande parte dos surdos utiliza o celular embaixo do travesseiro. Porém a função “vibrar” do celular não tem tanta potência, e alguns acabam se perdendo no horário. Mais uma vez a tecnologia está a favor dos surdos e muitos são os recursos para não passar da hora. Além de dispositivos que podem ser colocados embaixo do travesseiro há, também, relógios de pulso que vibram.

FIGURA 7 – DESPERTADOR PARA SURDOS

FONTE: ENAP (2016, p. 19)

FIGURA 8 – LEGENDA PARA QUEM NÃO OUVE

FONTE: <https://meandros.files.wordpress.com/2007/04/novo-1.jpg>. Acesso em: 16 dez. 2018.

Você sabia que a maioria dos filmes brasileiros não possui legenda em português? Há muitos filmes, brasileiros e estrangeiros, apresentados em sessões de cinema que são dublados, sem opção de legenda. Já questionamos uma rede de cinemas sobre o fato e a justificativa foi que os filmes dublados são mais baratos. Se você também ficou indignado, informe-se para participar da campanha “Legenda para quem não ouve, mas se emociona”, que desde 2004

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realiza encontros nos principais festivais de cinema e teatro espalhados pelo Brasil, como o CINE-PE, Festival de Cinema de Gramado, Festival de Teatro de Curitiba, Festival de Cinema do Rio de Janeiro e muitos outros.

FIGURA 9 – CAMPANHA LEGENDA NOS FILMES

FONTE: <http://www.legendanacional.com.br/>. Acesso em: 16 dez. 2018.

Há outras curiosidades interessantes sobre os usuários da Língua de Sinais:

• Pessoas que utilizam a língua gestual podem se comunicar estando uma dentro do ônibus e a outra do lado de fora.

• Podem comer enquanto falam.

Todavia, alguns fatos engraçados também acontecem:

• Em festas precisam estar sempre próximos a uma mesa para apoiar copos e garrafas para liberação das mãos e é comum o usuário derrubar esses objetos ou alguém quando faz um sinal.

• Têm surdos que gostam de ir às baladas pois sentem a vibração e muitos dançam a noite inteira.

FIGURA 10 – CHARGE

FONTE: <http://www.notisurdo.com.br/icones/almococoinversa.jpg>. Acesso em 15 de dezembro de 2018.

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FIGURA 11 – CHARGE

FONTE: <http://www.notisurdo.com.br/beneficiossurdos.html>. Acesso em: 15 dez. 2018.

FIGURA 12 – CAMPANHAS SURDAS

FONTE: <https://www.notisurdo.com.br/escolabilingue.html>. Acesso em: 16 dez. 2018.

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RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• Colocar-se no lugar do surdo torna mais clara a compreensão da sua cultura.

• Existe uma grande diferença entre escolas de inclusão e escolas bilíngues e as duas são uma opção da família.

• Alguns mecanismos são considerados meios de sobrevivência da cultura surda. A própria cultura é um meio de sobrevivência quando concebemos que a comunicação em Língua de Sinais não é utilizada por todos os brasileiros.

• As associações de surdos promovem momentos de lazer, esporte, cultura e é onde acontece o compartilhamento de informações, que é uma das características mais importantes da cultura surda, uma vez que há situações difíceis de comunicação durante toda a trajetória de vida.

• A Língua de Sinais não traz, em sua estrutura, pistas que auxiliem na escrita, por ser uma língua visual/gestual e não oral/auditiva. É nesse ponto que a criança surda vai se distanciando da criança ouvinte e, se a escola não der o devido valor e importância, essa lacuna tende a crescer de tal forma a não se dar mais conta de resgatar.

• Surdos podem dirigir e podem morar sozinhos, constituir família e fazer a maioria das coisas que as pessoas ouvintes fazem.

• Existem muitas curiosidades na cultura visual: podem conversar a distância, frequentam baladas, criam engenhocas para ter maior autonomia etc.

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1 Thomas K. Holcomb (2011) comenta sobre a importância do compartilhamento de informações para que os surdos aprendam uns com os outros. Analise as questões a seguir e preencha o campo com V para verdadeiro e F para falso.

a) ( ) É provável que a maioria dos surdos tenha pais não surdos e familiares que não sinalizam.

b) ( ) Em tais circunstâncias, eles saem da rotina para obter informações e compartilhar com outros que estão passando pela mesma situação.

c) ( ) Esse comportamento ilustra a natureza humana de pessoas que reagem a situações desafiadoras de comunicação ao compartilharem informações entre si.

d) ( ) Nas salas de aula, em escolas regulares, intérpretes de Libras têm o mesmo papel que o professor regente.

e) ( ) Os surdos sabem ler e escrever igual aos ouvintes.f) ( ) Surdos não falam porque não se esforçam para aprender e a Língua de

Sinais os deixa “preguiçosos”.

2 Ainda existem muitas barreiras encontradas nas escolas de ensino regular, na presença de alunos surdos acompanhados por um intérprete de Libras. Quadros (2004, p. 54) aborda que: “muitas vezes, o papel do intérprete em sala de aula acaba sendo confundido com o papel do professor. Os alunos dirigem questões diretamente ao intérprete. Comentam e travam discussões em relação aos tópicos abordados com o intérprete e não com o professor”. Na sua opinião: isso acontece por qual motivo? Assinale a(s) opção(ões) que acredita ser a (s) mais coerente(s) e justifique sua escolha:

a) ( ) O professor pouco se direciona ao aluno surdo, e ele acaba se identificando com o intérprete.

b) ( ) O professor ouvinte não sabe o seu papel diante de um aluno surdo, nem o aluno surdo sabe o papel do professor ouvinte.

c) ( ) O professor está muito ocupado tendo que atender a toda a turma de ouvintes, e o intérprete de libras está na sala para ajudar apenas um aluno.

d) ( ) Todas as alternativas são coerentes.

Justifique sua escolha:

AUTOATIVIDADE

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TÓPICO 3

A CULTURA SURDA E A LITERATURA

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃO

Acadêmico, estamos chegando perto do assunto principal deste livro de estudos: A Literatura Surda. Primeiramente, precisamos conhecer os marcos históricos, entender sobre as diferentes identidades que permeiam a surdez e diferenciar a cultura dos surdos da cultura dos ouvintes. Munidos dessas bagagens, estamos capacitados a explorar esse universo literário. Falando em literatura, o dicionário nos conta que ela é um “conjunto de obras literárias de reconhecido valor estético, pertencentes a um país, época, gênero etc.” (DICIO, 2019). Portanto, já estamos falando sobre literatura desde o início deste livro. No entanto, por que é preciso, mais uma vez, diferenciar literatura ouvinte de literatura surda? No decorrer deste tópico, você compreenderá as diferenças e semelhanças entre essas literaturas.

Na contemporaneidade, a literatura tem sido um instrumento de expressão de ideias, experiências de superação e posicionamentos identitários, principalmente das minorias. Considerando essas produções culturais, descortinam-se o compartilhamento das identidades, as narrativas de si, rastros de histórias e construções de subjetividades que ficaram na memória. Vimos nos marcos históricos que os registros das histórias dos surdos, em sua maioria, foram feitos por ouvintes, narrados por aqueles que não vivem a surdez. Certamente esse fato traz implicações na constituição das narrativas surdas. Então, aconchegue-se e prepare-se: lá vem história!

2 A REPRESENTAÇÃO IMAGINÁRIA SOBRE A CULTURA SURDA

A sociedade é ouvinte, sim! Ela é composta por uma grande maioria de pessoas que ouve perfeitamente. Algumas ouvem mal, outras não ouvem. Mas só algumas, a maioria ouve muito bem. Isso não é problema, é apenas um fato. Por ser a maioria, ocupam também a maioria dos espaços, estão à frente das grandes pesquisas, de grandes inventos, das grandes empresas e até mesmo à frente da maioria das famílias. São diretores da saúde, da educação, do esporte e lazer, são os grandes governantes. Todos ouvintes. E, sim, alguns possuem familiares ou amigos surdos. Mas somente alguns.

A partir desse simples fato, compreende-se a grande dificuldade da sociedade em entender e aceitar a existência de uma cultura diferente. A representação social é ouvinte. Então julga-se que os ouvintes sabem o que é certo. Por isso, ainda

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predomina a ideia de que a pessoa surda precisa se adequar ao mundo ouvinte. Próteses auditivas, implantes cocleares, atendimentos em fonoaudiólogos, tudo em busca de fazer com que o deficiente (aquele que é incompleto, que não é eficiente) tente se adaptar ao mundo ouvinte para obter sucesso.

Na relação com o ouvinte, o surdo foi ensinado a olhar-se e a narrar-se como um deficiente auditivo. A marca da deficiência determinou, durante a história dos surdos e da surdez, a condição de submissão ao normal ouvinte. Dessa história de submissão, criaram-se práticas corretivas derivadas de saberes que informam e classificam os sujeitos dentro das fases de desenvolvimento linguístico, cronológico e de perda auditiva (LOPES; VEIGA-NETO, 2006 apud STROBEL, 2008, p. 80).

Um dos principais fatores que contribui para que a sociedade tenha resistência em aceitar a cultura surda é a não aceitação da própria família. Os pais ouvintes (que também são a maioria) desesperam-se ao receber um filho surdo e acabam seguindo os conselhos e orientações médicas em busca de reabilitação. Então, apegam-se a uma porcentagem mínima de audição existente, tentando fazer desse sujeito um ouvinte. Os pais ouvintes não sabem que é possível ser feliz e ter sucesso sendo surdo e não tem ninguém para contar isso dentro dos centros clínicos, pois centros clínicos são de ouvintes.

Durante o percurso profissional das autoras deste livro, muitos relatos de pais foram recebidos. Eram pais assustados, angustiados, desinformados que traziam no olhar a incerteza e a pressão familiar. Algumas mães queriam muito que seus filhos aprendessem a Língua de Sinais, mas os pais não aceitavam. Em outros casos era o contrário. Recebemos desabafos de pais que diziam não querer seu filho neste mundo surdo ou que a fonoaudióloga disse que se o filho aprender libras vai ficar preguiçoso para falar. Contudo, também existiam as mães destemidas que tinham ciência de que a fila para o implante coclear poderia levar até dois anos de espera e que mesmo com a instrução de não utilização da Língua de Sinais decidiram aderir à língua visual/gestual para comunicação com o filho até a data da cirurgia.

É em casa que se inicia o processo de aceitação ou não da surdez e é de lá que saem sujeitos com maior ou menor potencialidade. “O que significa o mundo normal? Talvez, a mais “sofrida” de todas as representações no decorrer da história dos surdos, é o de “modelar” os sujeitos surdos a partir das representações hegemônicas” (STROBEL, 2008, p. 81).

A representação que os ouvintes fazem sobre a cultura surda é extremamente superficial. Acredita-se que todo o intérprete de Libras já ouviu a seguinte frase: “Ah, eu acho tão lindo esse dom de falar com as mãos, queria ter também!”. A sociedade olha a cultura surda do lado de fora da janela, acha bonito, interessante. Alguns acham esquisito e engraçado. Ouvintes passam pela janela, olham, imaginam, julgam, compadecem-se e seguem seu caminho. Não tentam entender e poucos procuram a porta de entrada. Não levam a sério, na verdade, nem acreditam que esse sujeito é capaz. E assim, nesse clima de: “que bonito,

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que legal, que dom lindo...”, surdos vão finalizando a Educação Básica e vão ingressando nas Universidades, ocupando seus espaços acadêmicos e fazendo os mais variados cursos. Ainda, os professores ouvintes não conhecem suas especificidades e aprovam ou reprovam seus acadêmicos, ainda sem conhecer seu potencial. Já presenciamos, no mundo acadêmico, professores entrarem em sala e começarem a aula sem a presença do intérprete. Já vimos professores passarem filme sem legenda, mesmo depois de terem uma conversa sobre as especificidades de um acadêmico surdo. Esses fatores representam a falta de aceitação da cultura surda. Ela realmente não é levada a sério, fica só no imaginário ouvinte.

[...] quando o surdo diz “Eu tenho orgulho de ser surdo”, ele choca e confunde o ouvinte. O ouvinte não gosta de ouvir isso, porque começa a colocar em questão a certeza que o ouvinte tem sobre o mundo. Ele não pode mais achar que o surdo é um “coitado”, porque um coitado não tem orgulho de si mesmo. O ouvinte fica com medo. O mundo do ouvinte começa a ficar menos seguro, mais complexo. O ouvinte não tem explicação para o orgulho de o surdo ser surdo. Como é possível uma pessoa ter orgulho de ser surdo? Para o ouvinte é um absurdo. É um paradoxo (McCLEARY, 2003 apud STROBEL, 2008, p. 82).

Será realmente necessário se despir de todas as convicções e pré-conceitos. Olhar a partir da vivência e lógica surda, e não ouvinte. Não se trata em adequar o mundo ouvinte para o mundo dos surdos. É conhecer o mundo surdo por ele mesmo, não pelo nosso. Contudo, a regra cabe também aos surdos que não se reconhecem na cultura surda, e acabam planejando suas ações de modo que sejam facilmente aceitas pela sociedade ouvinte. Será preciso abandonar a ideia que cultura surda é uma adaptação da cultura ouvinte. Não é!

É comum encontrarmos grupos de ouvintes que dão tudo de si e ensaiam o ano inteiro para apresentação de uma música daquelas que emocionam os corações ouvintes. Sabe aquela música que toca a alma, que faz a gente voltar no tempo e resgatar memórias marcantes de nossas vidas? Sim, essa mesmo. Adapta-se dali e daqui para transformá-la em lindas sincronias de mãos que sinalizam e emocionam o público ouvinte. Isso é cultura surda? Não! Isso é uma forma linda e emocionante de o ouvinte tentar normalizar a diferença. Surdos não ouvem músicas. Não ficam parados na frente do rádio. Não faz sentido para eles. Apesar de se encherem de alegria em ver tantas mãos ouvintes sinalizando a sua língua materna, e podendo entender o que está sendo cantado, acham muito válido e incentivam, inclusive. Mas não vivenciam a música. Ela não faz parte da sua cultura.

Jovens surdas dançam [...] para homenagear os professores pelo seu dia [...]. Fica evidente um certo descompasso. Quatro das alunas voltam seus olhares para um mesmo local, o que me faz intuir que elas buscam orientação de alguém, provavelmente uma professora ouvinte que não aparece no enquadramento fotográfico, mas que, pela necessidade surda de tê-la junto de si, não ocupa o silêncio da imagem. Ela é quase uma presença diluída o (LOPES, 2014 apud STROBEL, 2008, p. 84/85).

A citação demonstra o quanto a música é artefato cultural ouvinte. Há sim muitos surdos que gostam de dançar, que sentem a vibração da música e são felizes com isso. Se emocionam ao ver apresentações feitas em Libras, apreciam

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um bom intérprete que consegue transmitir a emoção das letras das músicas e suas melodias. O que se quer esclarecer é que a música não tem o mesmo efeito na cultura surda, por não se tratar de um artefato cultural surdo.

Talvez você esteja um pouco assustado e deve estar se perguntando: surdos e ouvintes se odeiam? A resposta é não! De forma alguma! O que acontece é uma tentativa secular dos surdos tentando fazer os ouvintes entenderem que eles existem mesmo sendo surdos. Que o mesmo mundo que foi pensado para ouvintes tem espaço para ser pensado para surdos também. Todos podem crescer e chegar ao topo, cada um da sua forma. E muita coisa já mudou. Há inúmeras conquistas no que diz respeito à Língua de Sinais e aos seus usuários. Políticas públicas foram criadas, pessoas se interessam em conhecer e em se envolver com a comunidade surda.

3 ARTEFATOS CULTURAIS DO POVO SURDO

A partir desse ponto vamos nos aprofundar mais na cultura surda. A autora Strobel traz em seu livro um relato muito interessante de como ela via o mundo na sua infância. Vamos refletir sobre a experiência visual e, a partir desse relato, passaremos a conversar sobre os artefatos culturais da cultura surda. O primeiro artefato apresentado pela autora é o artefato cultural: experiência visual.

Uma vez a empregada doméstica estava lavando o quintal no fundo de casa e eu ficava sentada observando a água suja de lama e sabão correndo até o bueiro. No meio dessa sujeira estava um bicho estranho de mais ou menos uns seis centímetros que estava morto. Assustei-me porque o associava com o bicho que vi na televisão outro dia, jacaré enorme que comia as pessoas e tive muitas noites de insônias com medo da existência desse bicho no nosso quintal e que viria me pegar e me comer. Só agora eu entendo que não era jacaré e sim simplesmente uma lagartixa. Não havia ninguém que me informasse sobre isto (STROBEL, 2008, p. 39).

Através deste relato, percebe-se como é forte a experiência visual vivida

pelo sujeito surdo. Ela teve acesso a cenas reais e de ficção, porém a falta de comunicação fez com que ela percebesse o mundo de uma forma peculiar. Embora uma criança ouvinte também pudesse associar a lagartixa ao jacaré, certamente em algum momento ela falaria do seu medo, ou mesmo que ainda não verbalizasse. Ao chorar os pais ou responsáveis iriam acalmá-la dizendo que era uma lagartixa e que não oferecia riscos. Podemos imaginar quantas cenas descontextualizadas o surdo vivencia diariamente em uma família de ouvintes, que não se comunica através da Língua de Sinais. Nos momentos de refeição em família, em que na maioria das vezes há diálogo, pessoas mais velhas contam suas histórias, os pais deliberam tarefas aos filhos e organizam a semana, comentam sobre o dia e sobre notícias e novidades. Essas informações não chegam ao surdo ou chegam de forma resumida e fragmentada. Nesse sentido a cultura surda “é visual, ela traduz-se de forma visual” (QUADROS, 2004 apud GESSER, 2009, p. 54).

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FIGURA 13 – ARTE SURDA

FONTE: <https://ifmyhandscouldspeak.files.wordpress.com/2011/09/asl.jpg>. Acesso em: 15 dez. 2018.

O segundo artefato é o linguístico. No Tópico 1 deste livro você conheceu a trajetória dos surdos e juntamente com essa história acompanhou a evolução da Língua de Sinais. Portanto, é importante compreender que a Língua de Sinais não é universal. Embora a Língua Brasileira de Sinais tenha muitos sinais que tiveram sua origem na língua francesa, por conta da influência de abade L’Epée, ela foi constituída pelo povo surdo brasileiro. Assim como o povo surdo da Espanha, com sua Língua de Sinais espanhola, existe a Língua de Sinais do Canadá e assim em cada país. “A língua dos surdos é transmitida cada vez que uma mãe surda segura seu bebê em seu peito e sinaliza para ele” (LANE, 1984 apud GESSER, 2009, p. 11).

A Língua de Sinais, como qualquer outra, se adquire no convívio dos falantes de uma determinada língua. No caso de bebês surdos que nascem em uma família de pais surdos, a aquisição linguística se dará da mesma forma que um falante da língua oral de seu país. Ao nascer em berço surdo, o bebê terá acesso desde as primeiras horas de vida aos sinais feitos por seus pais, familiares e amigos sinalizantes. Crescerá em um ambiente semelhante ao ambiente ouvinte, recebendo os estímulos visuais necessários para desenvolver sua língua. Já o bebê surdo que nasce em berço ouvinte passa por todo o processo já descrito anteriormente e acaba tendo atrasos significativos em sua aquisição de linguagem e, muitas vezes, adquire a Língua de Sinais somente no ambiente escolar, o que é mais agravante, em muitos casos, somente no contato com o intérprete de Libras.

Faço referência mais uma vez a uma situação ocorrida comigo: em escola de ouvintes, além de muitas outras disciplinas, eu tinha aulas de religião que não entendia muito, as únicas coisas que sabia era que Deus era muito importante e, se morresse, iria falar de frente com Ele, e isto me incomodava, me deixando muito ansiosa. Minha mãe percebeu e me questionou, expliquei a ela através de gestos e vocabulários isolados que, se eu morresse, como Deus iria me entender? Não sabia falar. Minha mãe explicou que Deus entendia qualquer língua (STROBEL, 2008, p. 44).

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Atualmente, com o decreto em vigor, as escolas de ensino regular devem garantir o intérprete de libras em todas as aulas. Só não ocorre em casos em que há a falta do profissional. Na época do relato anteriormente citado, a autora não tinha esse apoio, o que gerou atrasos e confusões linguísticas, uma vez que não possuía uma língua estrutural. Usava gestos, oralizava, escrevia, tentava se comunicar, mesmo que de forma fragmentada. Nos dias de hoje, a Língua de Sinais é reconhecida e possui estrutura gramatical. Muitos adultos surdos que viveram sua infância nos tempos em que a Língua de Sinais era proibida estão hoje resgatando as lacunas deixadas em sua construção linguística.

Ainda sobre o artefato linguístico, encontramos um estudo sobre a escrita de sinais, o SignWriting – SW, que partiu do pressuposto de que a língua do povo surdo não poderia ser legalizada por ser ágrafa. O estudo teve início na Dinamarca, quando pesquisadores de Língua de Sinais desse país conheceram o sistema de escrita da bailarina Valerie Sutton, que utilizava códigos para registrar os passos de suas danças, isso no ano de 1974. Aqui no Brasil, quem nos apresenta essa pesquisa em sua tese é a doutora surda Marianne Stumpf. No Brasil é conhecida como ELS – Escrita de Língua de Sinais. O intuito desse sistema de escrita não é substituir o português escrito, e sim servir como um instrumento de apoio para a aquisição da modalidade escrita da língua do seu país.

O sistema de escrita para línguas de sinais denominado SignWritting foi inventado há cerca de 30 anos por Valerie Sutton, que dirige o DAC – Deaf Action Commitee, uma organização sem fins lucrativos sediada em La Jolla, Califórnia, USA. Trata-se de um sistema para representar línguas de sinais de um modo gráfico esquemático funcionando como um sistema de escrita alfabético. As unidades gráficas fundamentais representam unidades gestuais fundamentais, suas propriedades e relações. O SignWritting pode registrar qualquer Língua de Sinais do mundo sem passar pela tradução da língua falada. Cada Língua de Sinais vai adaptar a sua própria ortografia. Para escrever em SignWritting é preciso saber uma Língua de Sinais (STUMPF, 2004, p. 147).

FIGURA 14 – SISTEMA DE ESCRITA PARA OS PASSOS DE DANÇA

FONTE: <http://www.escritadesinais.com.br/images/Slide15.JPG?113>. Acesso em: 18 dez. 2018.

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A escrita de sinais pode ser encontrada em diversos materiais, como o Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilíngue, de autoria de Fernando Capovilla. Nele encontram-se os verbetes em Língua Portuguesa, Língua Inglesa e Língua de Sinais. A escrita de sinais vem ao lado da ilustração do sinal em Libras.

FIGURA 15 – DICIONÁRIO TRILÍNGUE CAPOVILLA – LBS, LIBRAS (B)

FONTE: <https://pt.scribd.com/document/349496449/Dicionário-Trilingue-Capovilla-LBS-Libras-B>. Acesso em: 12 dez. 2018.

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Ainda, em várias literaturas adaptadas para a Língua de Sinais:

FIGURA 16 – CINDERELA SURDA

FONTE: <https://escritadesinais.files.wordpress.com/2010/08/cinderela-surda.jpg>. Acesso: 17 dez. 2018.

FIGURA 17 – DICIONÁRIO DE ELS

FONTE: <http://www.escritadesinais.com.br/images/Slide35.JPG?825>. Acesso em: 18 dez. 2018

DICAS

Leia a tese de Marianne Stumpf na íntegra e conheça mais sobre esse interessante sistema de escrita em:https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/5429/000515254.pdf?sequence=1&isAllowed=y.

Casa Família Cachorro Chinelo

Papai Papai Papai Menino

Mamãe Mamãe Mamãe Menina

Amigo

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TÓPICO 3 | A CULTURA SURDA E A LITERATURA

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Artefato cultural familiar é “o nascimento de uma criança surda, um acontecimento alegre na existência para a maioria das famílias surdas, pois é uma ocorrência naturalmente benquista pelo povo surdo que não vê a criança como um “problema social” como ocorre com as maiorias das famílias ouvintes” (STROBEL, 2008, p. 49). A sociedade majoritária ouvinte não concebe essa alegria. Profissionais da área clínica não enxergam o sujeito por trás da surdez e aconselham pais, independentemente de serem ouvintes ou surdos, para a não utilização da Língua de Sinais. A família sai do consultório preocupada e angustiada e nem consegue curtir a felicidade de ter recebido um ser divino.

Se os profissionais oferecem tais estranhos conselhos, enxergando a criança surda não como um presente de Deus, mas como um problema, então os pais surdos, que estão seguros de sua identidade cultural, reconhecendo que eles têm mais experiência e conhecimento em criar crianças surdas do que os profissionais que os aconselham, ignoram tais informações. Ressegurados que nada foi encontrado de errado com sua criança, que ela é simplesmente surda, voltam para casa e prosseguem com suas vidas cercados de recursos do “Mundo-Surdo”, que oferece suporte, encorajamento (LANE; HOFFMEISTER; BAHAN, 1996 apud STROBEL, 2008, p. 49).

Esse artefato vem sendo abordado desde o início deste livro, uma vez que a família é a base do ser. Muitos surdos possuem um sentimento de revolta contra seus familiares ouvintes. É uma convivência complexa quando não se utiliza a Língua de Sinais. Strobel (2008, p. 51) deixa muito claro os motivos que fazem gerar o sentimento. Pequenas exclusões acontecem no lar diariamente pela falta de comunicação: “Em muitas ocasiões eu não entendia o que falavam ao redor da mesa durante as refeições”. A base familiar é o alicerce para a formação da subjetividade. Com uma estrutura fraca, tudo pode ruir a qualquer momento. A criança ouvinte vive a tagarelar, questionar, ouve o que deve e o que não deve. A criança surda vive em isolamento nas famílias ouvintes.

Você fica fora da conversa na mesa do jantar. É o que se chama de isolamento mental. Enquanto todos os outros falam e riem, você se mantém tão distante quanto um árabe solitário num deserto que se estende para o horizonte por todos os lados. [...] Sente-se ansioso por um contato. Sufoca por dentro, mas não pode transmitir esse sentimento horrível a ninguém. Não sabe como fazê-lo. Tem a impressão de que ninguém compreende nem se importa. [...] Não lhe é concebida sequer a ilusão de participação (SACKS, 1989 apud Strobel, 2008, p. 51).

DICAS

Outros relatos emocionantes são os da atriz e autora francesa Emmanuelle Laboritt, que nasceu surda. Autora da autobiografia O voo da gaivota (1993). Confira!

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UNIDADE 1 | MARCOS HISTÓRICOS: NOVAS REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DOS SURDOS

Há casos de famílias que aprendem a Língua de Sinais e conseguem manter uma relação saudável e digna com seus filhos. Em Caxias do Sul, no Estado do Rio Grande do Sul, uma família tem feito sucesso. Os irmãos surdos Andrei e Tainá Borges são filhos de pais ouvintes que aprenderam a Língua de Sinais e são fluentes. Eles são youtubers e seu canal tem feito muito sucesso com suas postagens divertidas e informativas. A família já participou de programas televisivos e tem servido de inspiração para muitas famílias. Além desses irmãos que se tornaram famosos, podemos encontrar várias famílias que fazem a diferença na vida dos seus filhos surdos. E isso acontece quando os pais não se deixam levar pelo desespero da falta de audição e simplesmente buscam estratégias para conversar com seus filhos.

FIGURA 18 – FAMÍLIA BORGES

FONTE: <https://observatoriodatelevisao.bol.uol.com.br/wp-content/uploads/2018/06/familia-visurdo-no-the-noite-com-danilo-gentili-696x392.jpg>. Acesso em: 18 dez. 2018.

Artefato cultural vida social e esportiva: Para lidar com o cotidiano social, o surdo não tem o dom de tirar da bolsa um intérprete de Libras para auxiliar na sua comunicação nos lugares em que circula. É preciso buscar estratégias de sobrevivência para enfrentar a sociedade ouvinte que o cerca. Bloquinhos de anotações e canetas não podem faltar no kit de sobrevivência. No mercado, na loja, na farmácia, é preciso se comunicar. Os aplicativos cada vez mais têm garantido a acessibilidade de quem não se comunica através da língua oral, como, por exemplo, ao chamar um táxi ou Uber, pedir uma pizza. As redes sociais também são muito utilizadas para fazer questionamentos e solicitações.

A vida esportiva, na maioria das vezes, acontece através das associações

de surdos, promovendo até intercâmbios de diversos eventos esportivos. A CBDS – Confederação Brasileira de Desportos de Surdos é responsável pelas adaptações desportivas.

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TÓPICO 3 | A CULTURA SURDA E A LITERATURA

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FONTE: <http://observatoriodoesporte.mg.gov.br/wp-content/uploads/2018/08/Capturar-9.png>, < http://cbds.org.br/surdolimpiadas-do-brasil-2019-para-de-minas-mg> e <http://cbds.org.br/> .

Acesso em: 18 dez. 2018.

FIGURA 19 – ANÚNCIOS DE ESPORTE SURDO

Artefato cultural política: Diversos movimentos surdos e dos surdos militantes que estão à frente dessa cultura com afinco para reconhecimento dos seus espaços na sociedade. Ana Regina e Souza Campello, há mais de 30 anos, participou dos movimentos surdos e, com outros líderes, criou a antiga FENEIDA, atualmente conhecida por FENEIS – Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos, que é uma entidade filantrópica, sem fins lucrativos com finalidades social e cultural em favor dos direitos da comunidade surda. A CBDS, citada anteriormente, faz parte desse artefato também. A Língua Brasileira de Sinais é fruto desse artefato. Tudo isso graças às lutas dos povos surdos, que saíram vitoriosos com a conquista da Lei 10.436/02. Outra conquista oriunda de lutas e movimentos surdos é o Dia do Surdo - 26 de setembro - em comemoração ao marco histórico que é a fundação da primeira escola de surdos no Brasil, o INES.

O dia do surdo tem um significado simbólico muito importante. Ele representa o reconhecimento de todo um movimento que teve início há poucos anos no Brasil quando o surdo passou a lutar pelo direito de ter sua língua e sua cultura reconhecidos como uma língua e uma cultura de um grupo minoritário e não de um grupo de “deficientes” (MOURA, 2002 apud STROBEL, 2008, p. 76).

Muitos são os eventos em comemoração ao dia dos surdos. É uma data utilizada para, além da comemoração e dos encontros de velhas e novas lutas, ser também um momento de difusão da Língua de Sinais. São datas recheadas de cultura, identidades e comunidades surdas. Há muita reflexão e ação, não só no dia 26 de setembro, mas em todo o mês, que ficou conhecido como Setembro Azul.

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UNIDADE 1 | MARCOS HISTÓRICOS: NOVAS REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DOS SURDOS

FIGURA 20 – SETEMBRO AZUL

FONTE: <http://www.tre-se.jus.br/imagens/fotos/setembro-azul/@@images/07abe5a0-ebd9-4e40-a74e-077c05f73d1e.jpeg>. Acesso em: 19 dez. 2018.

3.1 ARTEFATO CULTURAL: LITERATURA SURDA

O hábito de contar histórias é tão antigo quanto a própria civilização. Reunir-se para contar histórias, piadas, episódios engraçados e relembrar fatos está presente em todos os tipos de comunidades. A coleta dessas narrativas é fator importante para essas histórias não se perderem no tempo. As comunidades surdas, além das tantas peculiaridades já vistas neste livro, diferenciam-se também de outras comunidades linguísticas.

As pessoas surdas não ocupam o mesmo espaço, não há várias pessoas surdas trabalhando numa mesma empresa ou morando no mesmo bairro. Os encontros surdos são, na maioria das vezes, intencionais, organizados e planejados periodicamente. Essa diferença faz com que os surdos frequentem assiduamente as comunidades surdas através das associações. Ainda, nesses espaços, se constituem narrativas, poesias, histórias e causos dos povos surdos que são contados em Língua de Sinais.

Surdos reúnem-se frequentemente para contar histórias e, entre as preferidas, estão as histórias de vida, as piadas e aquelas que incluem elementos da cultura surda, com personagens surdos. São tramas que, em geral, envolvem as diferenças entre o mundo surdo e o ouvinte (ALVES; KARNOPP, 2003 apud KARNOPP, 2008, p. 7).

A literatura surda diz respeito à tradução de memórias, de vivências surdas que ocorrem de geração em geração entre os povos surdos. Memórias que se multiplicam através de poesias, história de surdos, piadas, literatura infantil, entre outros gêneros. Não se trata de algo produzido por ouvintes e adaptado para o sujeito surdo. São produções feitas pelos próprios surdos.

A literatura surda refere-se às várias experiências pessoais do povo surdo. Este, muitas vezes, expõe as dificuldades e/ou vitórias das opressões ouvintes, de como se sai em diversas situações inesperadas, testemunhando as ações de grandes líderes e militantes surdos e sobre a valorização de suas identidades surdas (STROBEL, 2008, p. 56).

Existe uma diferença entre a literatura surda e a literatura adaptada para surdos. A literatura adaptada parte de obras criadas por ouvintes que foram adequadas através de vídeos em Língua de Sinais, pela representação dos sinais

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TÓPICO 3 | A CULTURA SURDA E A LITERATURA

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abaixo de cada palavra escrita ou mesmo pelo sistema de escrita de sinais. As adaptações também fazem parte da cultura surda, porém não são literaturas surdas. Veja a seguir um exemplo de adaptação para a Língua de Sinais, da obra clássica Branca de Neve e os Sete Anões:

FIGURA 21 – O CLÁSSICO BRANCA DE NEVE EM LÍNGUA DE SINAIS

FONTE: <https://www.youtube.com/watch?v=wSom2qvwWR0>. Acesso em: 18 dez. 2018.

É uma clássica história que se mantém em sua estrutura original e que apenas é traduzida para a Língua de Sinais. Muitas são as adaptações encontradas na internet. O Instituto Nacional de Educação de Surdos e a Editora Arara Azul produzem inúmeros materiais de excelente qualidade. Esses materiais são muito utilizados pela cultura surda.

FIGURA 22 – MATERIAIS BILINGUES DA EDITORA ARARA AZUL

FONTE: <https://editora-arara-azul.com.br/site/fotos/12345999608.jpg>. Acesso em: 26 dez. 2018.

Veja agora um exemplo de adaptação de um clássico da literatura adaptado para a realidade surda, no intuito de marcar a história da criança surda também nos clássicos.

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UNIDADE 1 | MARCOS HISTÓRICOS: NOVAS REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DOS SURDOS

FIGURA 23 – CINDERELA SURDA

FONTE: <https://eventos.set.edu.br/index.php/enfope/article/viewFile/5309/1793>. Disponível em: 17 dez. 2018.

Em Cinderela Surda (HESSEL; ROSA; KARNOPP, 2003) encontra-se uma curiosidade que é uma menção feita para o método de abade L’Epée. Não é o sapatinho de cristal que é perdido e sim a luva, que caracteriza a representação da Língua de Sinais, o que corrobora com a representatividade surda.

A literatura surda ainda tem muitas ramificações que conheceremos no decorrer dos estudos. O que se percebe até aqui é que todos os artefatos culturais apresentados pela autora surda, Karin Strobel (2008), são intrínsecos à construção da cultura surda e, consequentemente, determinam a produção da literatura surda. Ouvintes e surdos constroem histórias completamente diferentes, mas a base dessa construção é a mesma para ambas as culturas. As duas acontecem a partir da interação com o outro, no aconchego do lar, em uma roda de conversa e, principalmente, entre seus pares linguísticos.

Caro estudante, sugerimos a leitura do excerto da tese de doutorado do surdo Cláudio Henrique Nunes Mourão (Cacau) de 2016: Literatura Surda: Experiência das mãos literárias. O trecho que selecionamos para você trata-se da trajetória desta pessoa surda, sua experiência com a pesquisa e com a arte. Acreditamos que a leitura vai ao encontro dos nossos estudos, pois consideramos importante conhecer melhor o sujeito de quem estamos falando em cada linha deste livro. Certamente, você irá se impressionar com a sua trajetória e verá que a única barreira que separa surdos de ouvintes é a da comunicação. Boa leitura!

IMPORTANTE

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TÓPICO 3 | A CULTURA SURDA E A LITERATURA

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LEITURA COMPLEMENTAR

LITERATURA SURDA:EXPERIÊNCIA DAS MÃOS LITERÁRIAS

Cláudio Henrique Nunes Mourão

1 EXPERIÊNCIA E PESQUISA

“A literatura não permite caminhar, mas permite respirar.”Roland Barthes

Experiência meus olhos vivem um processo, sempre em formação de identidade(s); é uma travessia que forma um circuito interpretativo, multiplica as significações. Há sempre um processo em constituição, não é um sistema pronto, mas está em sistematização, o que permite tornar-se experiência. A experiência é um processo das mãos literárias, de seus efeitos expressado nas artes e nas obras dos sujeitos surdos.

Nesta tese, proponho o uso de algumas palavras e expressões novas para tentar traduzir alguns significados que são produzidos em língua de sinais. São neologismos que proponho para o desenvolvimento desta pesquisa, tais como mãos literárias e visualiterária. Utilizo mãos literárias para as mãos (incluindo o corpo e as expressões faciais) que produzem língua de sinais em forma literária. Proponho também visualiterária para referir aos textos literários em línguas de sinais, na modalidade visual dessa língua. Penso que o termo “visualiterária” (Figura 1) valoriza a visualidade do povo surdo e produz significados em sinais, utilizando recursos estéticos e a arte de sinalizar. Nesse sentido, utilizo Barthes: “A literatura não permite caminhar, mas permite respirar”. A Literatura Surda me permite respirar!

FIGURA 1 – SINAL PARA VISUALITERÁRIA*

Fonte: O próprio autor

* Visualiterária: proponho, na Libras, o uso de sinal com três dedos estendidos (polegar, indicador e médio). Para iniciar com essa configuração de mãos, o indicador toca nos olhos e se desloca para frente do corpo em movimento circular.

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UNIDADE 1 | MARCOS HISTÓRICOS: NOVAS REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DOS SURDOS

A experiência das mãos literárias, dessa forma, acarreta os significados. Nos últimos anos, estudei autores na área de Estudos Culturais em Educação e Estudos Surdos, e participei de eventos como seminários, congressos, festivais nacionais e internacionais. Participei do minicurso Literatura em língua de sinais, com o professor Dr. Ben Bahan (surdo americano); do curso de Ensino de língua de sinais como L2, com o professor Dr. Steven D. Collins (surdo americano); do curso de Traduções poéticas em línguas de sinais; do Curso de Literatura Surda, com a professora Dra. Rachel Sutton-Spence (Inglaterra); do Curso sobre poesias em língua de sinais, com Paul Scott (surdo britânico); curso Poesia e narrativa em Língua de Sinais, com Richard Carter (surdo britânico); e o festival de folclore sinalizado Os craques da Libras, ministrado por surdos brasileiros, tais como Nelson Pimenta (Rio de Janeiro), Rimar Segala (São Paulo), Fernanda Machado (Santa Catarina), Sandro Pereira (São Paulo), Bruno Ramos (Rio de Janeiro) e o surdo britânico Richard Carter. Esses eventos fazem parte da área de Literatura Surda e foram realizados na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Também participei de festival internacional, o Festival Clin D’Oeil, realizado na cidade de Reims, na França, em 2011, 2013 e 2015. O foco desse festival está na arte e na língua de sinais, no empoderamento das mãos e artes literárias, como Arte em Mãos.

Antes de iniciar os estudos do doutorado, defendi minha dissertação de mestrado e o tema era “Literatura Surda: produções culturais de surdos em Língua de Sinais”, orientada pela Profa. Dra. Lodenir Karnopp, na UFRGS/FACED, na qual aprendi bastante no campo dos Estudos Culturais em Educação, onde entendo a cultura surda. Comecei subindo as escadas, para transitar nesse espaço, buscando conhecimentos através de autores como, Alfredo Veiga-Neto, Carlos Skliar, Maria Lucia Wortmann, Marisa Costa, Stuart Hall, Tomaz Tadeu, Adriana Thoma, Lodenir Karnopp, Madalena Klein, Márcia Lunardi-Lazzarin, Maura Lopes, Gladis Perlin, Karin Strobel, e outros autores, e percebendo que em cada degrau da escada, existem vários conceitos e teorias. Os degraus em que me fortaleci estão no meio de discursos na área de Estudos Culturais e Estudos Surdos.

Em minha dissertação, investiguei a manifestação da produção cultural surda em histórias contadas em Libras. A pesquisa centrou-se na análise do modo como os surdos introduziam e construíam a Literatura Surda, com ênfase na língua de sinais. O material que analisei foram as narrativas em Libras, disponibilizadas em DVD, a partir das atividades dos alunos do curso de Letras-Libras, realizadas no polo da Universidade Federal de Santa Maria. Analisei o uso da língua de sinais e os recursos expressivos utilizados; também realizei entrevistas com os alunos surdos. Como resultado, indiquei que a maioria das produções era uma adaptação de outros textos e, em segundo lugar, tradução de clássicos (contos, fábulas...) para a LIBRAS. Essas produções mostram a riqueza da cultura surda, a preocupação com seus valores culturais e sua riqueza de linguagem. Relembro as palavras de Karnopp e Machado (2006, p. 3):

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TÓPICO 3 | A CULTURA SURDA E A LITERATURA

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A literatura surda está relacionada com a cultura surda. A literatura da cultura surda, contada em língua de sinais de determinada comunidade linguística, é constituída pelas histórias produzidas em língua de sinais pelas pessoas surdas, pelas histórias de vida que são frequentemente relatadas, pelos contos, pelas lendas, fábulas, piadas, poemas sinalizados, anedotas, jogos de linguagem e muito mais.

Outra experiência importante para a escolha do meu tema desta tese de doutorado foi minha participação como pesquisador do Projeto “Produção, circulação e consumo da cultura surda brasileira” (Programa Pró-Cultura – Capes/MinC), em que mapeamos e analisamos diversos gêneros literários, com crescentes atividades, verificando a produção, a circulação e consumo pela comunidade surda brasileira. Registraram-se as produções culturais de surdos, tais como artes, livros, vídeos, sites, filmes curtos e outros materiais, produzidos em vários estados do Brasil, realizando mapeamento e coleta de dados. A maioria dos pesquisadores da UFRGS, UFSM e UFPel, envolvidos nessa pesquisa, publicou artigos para divulgação desses achados. No mesmo projeto, realizou-se o Festival Brasileiro de Cultura Surda, em novembro de 2011, na UFRGS, com convidados e palestrantes brasileiros e estrangeiros, inclusive com participação e apresentação de trabalhos e minicursos, onde todos os interessados puderam participar através do uso da Língua de Sinais Brasileira (LIBRAS), Sinais Internacionais, português e/ou inglês. Conforme Karnopp, Klein e Lunardi-Lazzarin, (2011, p. 16), os pesquisadores do projeto “Produção, circulação e consumo da cultura surda brasileira” (PróCultura, edital 07/2008) tiveram os seguintes objetivos:

Analisar os processos de significação envolvidos na produção, circulação e consumo dos artefatos pertencentes à cultura surda; entender os aspectos que estão envolvidos na produção, circulação e no consumo da cultura surda; dar visibilidade e contribuir com a divulgação das produções das comunidades surdas. Com ênfase no registro das produções culturais de pessoas surdas, a pesquisa priorizou os registros visuais, como as filmagens, a escrita da língua de sinais, as traduções da Libras para a escrita da língua portuguesa e outras produções artísticas. Tais formas de registro contribuem para a manutenção do leque de possibilidades artísticas e expressões da língua de sinais da comunidade surda.

Além desse projeto, podemos imaginar que existem surdos diariamente contando e recontando histórias em diferentes lugares. Conheci alguns surdos de alguns estados do Brasil, que eram ex-alunos do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) e me contaram sobre vivências e recordações durante o percurso de estudos e sua formação. Fico impressionado e emocionado, pois contam suas trajetórias da vida. Vejo que é como se fossem os pais contando histórias através da literatura, com muita riqueza para contar. Mas infelizmente, são histórias que não foram registradas, mas transmitidas a partir do contato entre surdos, dentro da comunidade surda, jeito que antigamente as histórias eram passadas adiante, na forma de sinalidade.

Em minha dissertação de mestrado (MOURÃO, 2011), apresento a constituição de minha identidade surda, minha experiência de mãos e olhos, a forma como me subjetivei nos espetáculos de mãos e com outras identidades surdas. Em

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UNIDADE 1 | MARCOS HISTÓRICOS: NOVAS REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DOS SURDOS

1999, comecei a participar da companhia de teatro “Lado a Lado”, junto de artistas surdos, e essa foi a primeira experiência com surdos, pois antes já tinha atuado em teatro junto com ouvintes. Quando iniciei, fazia parte da companhia de espetáculos “Arte Poética”, formado por atores surdos e ouvintes, realizando espetáculos abertos ao público. Fizemos espetáculos no Rio de Janeiro, no INES, e no V Congresso Latino-americano de Educação Bilíngue para Surdos, em Porto Alegre, no Salão de Atos da Reitoria da UFRGS, entre os dias 20 a 24 de abril de 1999, que tinha como proposta temática “A educação que nós surdos queremos”. Foi a primeira vez que vi tantos sujeitos surdos brasileiros e estrangeiros, e então, diante dos meus olhos, via as mãos, que produziriam efeitos na constituição de minha identidade surda. Posteriormente, comecei a participar, junto com o ator Nelson Pimenta, do espetáculo Nelson 6 ao vivo.

Na experiência desses dois grupos com atores surdos, pude notar diferenças: um grupo de “inclusão” de atores surdos e ouvintes. A peça foi criada por ouvintes, e nós, atores surdos, fizemos expressão corporal enquanto os atores ouvintes falavam (língua oral) ao público de surdos e ouvintes. Penso: como os surdos entenderiam a peça? Será que a peça mostrou a cultura dos surdos? Já o espetáculo Nelson 6 ao vivo, organizado por um ator surdo, tinha como objetivo mostrar a cultura surda. Participei de ambos e senti a diferença. Foi importante para o público surdo, que podia se identificar com a cultura surda e também para público ouvinte entender o que é cultura surda.

Em outro momento participei da Festa Junina no Instituto Santa Terezinha (ISL), em São Paulo, onde soube também que havia muitos surdos e “mãos”. Para a minha felicidade, quando cheguei na festa junina no Instituto Santa Terezinha, pude ver Ginásio lotado. Estava repleto de mãos e olhos, tanto de crianças surdas quanto de surdos adultos. A estimativa de venda foi de mais de dois mil ingressos. No meio deles, onde fiquei, foi uma experiência que me provocou ainda mais na minha aquisição e constituição identitária.

José Magnani, um ouvinte, integrava um grupo de pesquisas sobre surdos, composto por linguistas e historiadores da Universidade de São Paulo – USP. Ele não tinha conhecimento ou familiaridade com o campo de pesquisas sobre surdos, mas sua pesquisa era na área da antropologia, especialmente com a antropologia urbana. Para ele, sua experiência e vivência na festa junina no Instituto Santa Terezinha foi marcante. Ele nos conta que comprou ingresso de número 1.529, e foi para o meio do povo surdo. Cito Magnani (2007, p. 15):

[...] o ambiente era agitado, as pessoas estavam bastante animadas e realmente havia muita gente. Os ônibus nas imediações atestavam que tinha vindo gente de outras cidades e até de outros estados. Tive a sensação de estar entrando numa “comunidade em festa”, numa aldeia em efervescência: nunca tinha visto tantos surdos juntos, e essa densidade permite percepções vívidas e ricas de suas formas de sociabilidade, de suas particularidades como grupo diferenciado [...]. Num determinado momento subi os degraus da arquibancada que fica diante da quadra onde rolava a festa e, lá de cima, tive acesso a um espetáculo realmente inusitado: uma disparidade entre a multidão e o barulho que deveria estar fazendo, numa festa de ouvintes; em contraste, havia um fervilhar de mãos numa espécie de frenética pantomima, ao menos aos olhos de um leigo.

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TÓPICO 3 | A CULTURA SURDA E A LITERATURA

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Em 2001, fui convidado para atuar como ator e coreógrafo de um novo grupo de teatro, na Companhia Teatro do Absurdo. Em 2005, atuei no Teatro Brasileiro de Surdo (TBS), dirigidos por Nelson Pimenta, Lanuncia Quitanilha, Helena Tojal e Fabio de Mello, como ator e coreógrafo, no espetáculo O marido da Mãe D`água, um conto de encantamento colhido por Câmara Cascudo, no litoral do nordeste brasileiro. Era sobre a cultura popular brasileira, aberto ao público. A lenda narrava a história de um pescador que estava com dificuldade para viver e também de pescar; certo dia, não encontra os peixes, estava desanimado e com muita fome. Em uma noite de lua cheia, encontra a sereia, fica apaixonado e se casa com ela, que havia prometido que o pescador passaria a ter sucesso na pescaria. A peça mescla o uso da língua de sinais no cenário teatral, dança e percussão, na apresentação da cultura brasileira.

Em 2007, realizamos uma apresentação, com o mesmo tema, no XV Congresso da Federação Mundial de Surdos, em Madri, na Espanha, onde concorremos com 31 grupos de teatro de vários países, sendo nosso espetáculo considerado um dos quatro melhores do mundo. Foi a primeira vez que atores surdos brasileiros representaram seu país no exterior.

Muitas foram as vezes em que assisti a peças sobre surdos. Algumas foram organizadas por ouvintes, geralmente em festividades de escolas. Por exemplo, uma peça apresentada com uma história simples, com atores surdos sinalizando e intérprete traduzindo para a língua oral para público ouvinte, restringe as possibilidades de expressão rica da cultura surda.

Harlan Lane (1992), Owen Wrigley (1996) Karin Strobel (2008), Marta Morgado (2011, 2013), Fabiano Rosa e Madelena Klein (2011) e Thomas Holcomb (2011) comentam a existência de limitação ao acesso dos valores culturais e informações, pois não encontram um ambiente linguístico no meio do espaço social. Essa limitação da própria produção cultural dos surdos se relaciona com limitações na vida em geral. Os ouvintes podem ir a peças de teatro e shows, ouvir música, ouvir poesias declamadas, seguir inteiramente alguma propaganda na televisão e tudo mostra sobre a cultura brasileira ou, mesmo, globalizada, mas uma cultura também de ouvintes. Mas onde os surdos podem ver manifestações de cultura surda e/ou cultura brasileira? São poucas oportunidades, geralmente os espetáculos de teatro foram organizados por ouvintes, às vezes os surdos não ficam satisfeitos ao assistir teatro, por exemplo. Lane (1992, p. 128) afirma que os surdos têm as mesmas experiências na convivência social até em escolas tradicionais, quando inseridos num meio ouvinte: “quase todos os informantes descreveram a sua vida social em termos de solidão, rejeição e descriminação social”.

Por outro lado, quando há seminários ou congressos na área de Educação de Surdos ou, enfim, eventos da cultura surda, os sujeitos surdos participam por causa da facilidade de comunicação, e são eventos de artes cênicas, onde existem filmes curtos, crônicas, piadas e outros. Esses são um tipo de lazer com os quais os surdos se satisfazem. Além disso, quando não há eventos ou encontros de surdos, alguns sujeitos surdos ficam em casa, buscando na internet por sites, por exemplo: Youtube ou Facebook, onde procuram sinalização de forma visualiterária em vários gêneros literários que façam o rosto rir, o corpo relaxar e a mente refletir.

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UNIDADE 1 | MARCOS HISTÓRICOS: NOVAS REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DOS SURDOS

Podemos imaginar uma cidade pequena ou uma região, distante da capital, que não tem computador ou internet, mas há circulação dos sujeitos surdos e de mãos literárias, produzindo significação e peculiaridades regionais. Mas possivelmente muitos desses sujeitos desconhecem a expressão Literatura Surda, ou não utilizam esse nome para as histórias que circulam entre eles. Por outro lado, quando se encontram em rodas de bate-mãos, compartilhando as experiências, alguns sujeitos surdos comentam que desconhecem os conceitos da Literatura Surda até mesmo aqueles que haviam estudado em escola de surdos, mas utilizam as mãos literárias sem perceber a significação da Literatura Surda. No entanto, Klein e Rosa (2011, p. 94) destacam o valor da Literatura Surda para surdos:

A literatura surda constitui-se das histórias que têm a Libras, a questão da identidade e da cultura surda presentes nas narrativas [...]. A literatura surda auxilia no conhecimento da língua e cultura para os surdos que ainda não têm acesso a elas. Para crianças surdas, a literatura surda é um meio de referência e também cria uma aproximação com a própria cultura e o aprendizado da sua primeira língua, que facilitará na construção de sua identidade.

Como me identifico como surdo, assim como outros sujeitos surdos, fui subjetivado por práticas discursivas, onde existem narrativas e artes surdas. A experiência visual vai constituindo o sujeito surdo na comunidade surda, subjetivando artistas surdos na produção de narrativas e poesias surdas. Para Perlin e Miranda (2003, p. 218), “[...] Desta experiência visual surge a cultura surda representada pela língua de sinais, pelo modo diferente de ser, de se expressar, de conhecer o mundo, de entrar nas artes, no conhecimento científico e acadêmico”.

Relembro como foi importante minha experiência no curso de Letras/Libras em 2006, na modalidade de Ensino a Distância – EAD, no Polo UFSM. No total, eram quinhentos alunos e alunas, distribuídos em nove polos de universidades do Brasil. Nesse caso, na sala de aula do Polo UFSM, havia 55 alunos surdos; podemos imaginar o compartilhamento dos colegas surdos, o consumo e produção por meio da sua língua de sinais e das experiências visuais. Suas identidades iam se fazendo, entre tantos outros aprendizados. Lá circulavam vários gêneros literários como narrativas, piadas, poesias e outros. Aprendemos na disciplina de Literatura Surda, com a professora Dra. Lodenir Karnopp, a construir, expressar, sinalizar e fazer traduções, adaptações e produção de obras. Divertimo-nos através de atividades de Literatura Surda, produzindo as ideias em grupos. Vimos que interagindo com os colegas é que surgem as ideias, por exemplo, adaptações foram produzidas por meio de apresentação de trabalhos na sala de aula. Assim, com os conhecimentos e práticas que os alunos adquirem, vão se constituindo subjetividades e desenvolvendo conhecimentos para expressão de ideias novas com formas e significados literários.

FONTE: MOURÃO, C. H. N. Literatura Surda: experiências das mãos literárias. 2016. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/151708/001012805.pdf?sequence=1%20P%C3%A1ginas:%20capa%20e%20as%20p%C3%A1ginas%2019%20at%C3%A9%20a%2025. Acesso em: 9 set. 2019.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• Um dos principais fatores que contribui para que a sociedade tenha resistência em aceitar a cultura surda é a não aceitação da própria família. Os pais ouvintes (que também são a maioria) desesperam-se ao receber um filho surdo e acabam seguindo os conselhos e orientações médicas em busca de reabilitação.

• É em casa que inicia o processo de aceitação ou não da surdez e é de lá que saem sujeitos com maior ou menor potencialidade.

• Os professores ouvintes não conhecem suas especificidades e aprovam ou reprovam seus acadêmicos, ainda sem conhecer seu potencial.

• É comum encontrarmos grupos de ouvintes que dão tudo de si e ensaiam o ano inteiro para apresentar uma música daquelas que emocionam os corações ouvintes. Porém, para os surdos não faz sentido. Apesar de se encherem de alegria em ver tantas mãos ouvintes sinalizando a sua língua materna e podendo entender o que está sendo cantado, acham muito válido e, inclusive, incentivam. Todavia, não vivenciam a música. Ela não faz parte da sua cultura.

• O artefato cultural é carregado de experiência visual e você pode imaginar quantas cenas descontextualizadas o surdo vivencia diariamente em uma família de ouvintes que não se comunica através da Língua de Sinais. Nos momentos de refeição em família, em que na maioria das vezes há diálogo, pessoas mais velhas contam suas histórias, os pais deliberam tarefas aos filhos e organizam a semana, comentam sobre o dia e sobre notícias e novidades.

• O artefato cultural linguístico: Língua de Sinais, como qualquer outra língua, se adquire no convívio dos falantes de uma determinada língua. Nos dias de hoje, a Língua de Sinais é reconhecida e possui estrutura gramatical. Muitos adultos surdos, que viveram sua infância nos tempos em que a Língua de Sinais era proibida, estão hoje resgatando as lacunas deixadas em sua construção linguística.

• No artefato linguístico, encontramos um estudo sobre a escrita de sinais, o SignWriting – SW. Aqui no Brasil quem apresenta essa pesquisa em sua tese é a doutora surda Marianne Stumpf. No Brasil é conhecida como ELS – Escrita de Língua de Sinais. O intuito desse sistema de escrita não é substituir o português escrito, e sim servir como um instrumento de apoio.

• No artefato cultural familiar, muitos surdos possuem um sentimento de revolta contra seus familiares ouvintes. É uma convivência complexa quando não se utiliza a Língua de Sinais. Todavia, há casos de famílias que aprendem a Língua de Sinais e conseguem manter uma relação saudável e digna com seus filhos.

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• No artefato cultural vida social e esportiva: os aplicativos cada vez mais têm garantido a acessibilidade de quem não se comunica através da língua oral. Chamar um táxi ou Uber, pedir uma pizza. As redes sociais também são muito utilizadas para questionamentos e solicitações. A vida esportiva, na maioria das vezes, acontece através das associações de surdos. Estas, quando bem estruturadas, promovem intercâmbios de diversos eventos esportivos.

• O artefato cultural política: são diversos movimentos surdos, dos surdos militantes que estão à frente dessa cultura com afinco para reconhecimento dos seus espaços na sociedade.

• A literatura surda diz respeito à tradução de memórias e vivências surdas que ocorrem de geração para geração dos povos surdos, multiplicando-se através de poesias, história de surdos, piadas, literatura infantil, entre outros gêneros. Não se trata de algo produzido por ouvintes e adaptado para o sujeito surdo. São produções feitas pelos próprios surdos. Existe uma diferença entre a literatura surda e a literatura adaptada para surdos.

Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar tua compreensão. Acesse o QR Code, que te levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para teu estudo.

CHAMADA

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1 De acordo com Strobel (2008, p. 81): “o que significa o mundo normal? Talvez, a mais ‘sofrida’ de todas as representações no decorrer da história dos surdos, é o ato de “modelar” os sujeitos surdos a partir das representações hegemônicas”. Nesse caso, “modelar” os sujeitos surdos diz respeito a:

a) ( ) Fazer com que o surdo seja mais feliz dentro dos padrões ouvintes.b) ( ) Buscar estratégias de reabilitação para que ele tenha oportunidade de

progredir.c) ( ) Educá-lo para que se porte bem na vida em sociedade.d) ( ) Acreditar que os padrões hegemônicos da sociedade são o melhor para os

surdos e fazê-lo acreditar nisso também, negando sua cultura e identidade.

2 Em relação aos artefatos culturais, analise cada afirmativa a seguir e associe os itens utilizando os códigos a seguir:

I- Artefato cultural linguístico.II- Artefato cultural experiência visual.III- Artefato cultural literatura surda.

( ) Através do relato de Strobel (2008), que se assustou na infância com uma lagartixa, pensando ser um jacaré, percebe-se como é forte a experiência visual vivida pelo sujeito surdo. Houve o acesso a cenas reais e de ficção, porém a falta de comunicação fez com que percebesse o mundo de uma forma peculiar.

( ) É importante compreender que a Língua de Sinais não é universal, cada país tem a sua. No Brasil, ela foi constituída pelo povo surdo brasileiro.

( ) O estudo sobre a escrita de sinais, SignWriting – SW, partiu do seguinte pressuposto: a língua do povo surdo não poderia ser legalizada por ser ágrafa. O estudo teve início na Dinamarca, quando pesquisadores de Língua de Sinais desse país conheceram o sistema de escrita da bailarina Valerie Sutton, que utilizava códigos para registrar os passos de suas danças.

( ) Existe uma diferença entre a literatura surda e a literatura adaptada para surdos. A literatura adaptada parte de obras criadas por ouvintes, que foram adequadas através de vídeos em Língua de Sinais. As adaptações também fazem parte da cultura surda, porém não são literaturas surdas.

Agora assinale a alternativa que indica a sequência CORRETA:a) ( ) I – II – III – I.b) ( ) III – I – I – II.c) ( ) II – III – III – I.d) ( ) II – I – I – III.

3 No que diz respeito à surdez como fator que determina inferioridade, analise as assertivas a seguir e assinale a alternativa CORRETA.

AUTOATIVIDADE

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a) ( ) Na relação com o ouvinte, o surdo está em posição de igualdade.b) ( ) A marca da deficiência determinou, durante a história dos surdos e da

surdez, a condição de submissão ao normal ouvinte.c) ( ) Para o ouvinte é normal o surdo dizer que tem orgulho de ser surdo.d) ( ) O nascimento de uma criança surda é motivo de alegria para a

comunidade ouvinte.

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UNIDADE 2

LITERATURA SURDA NO BRASIL

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• explorar a história da literatura surda no Brasil;

• conhecer a importância de contar estórias para as crianças, jovens ou adultos surdos;

• descobrir as produções dos surdos em Língua de Sinais;

• analisar a inclusão da Língua de Sinais no ambiente escolar;

• despertar o interesse em conhecer a literatura dos surdos.

Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – A CONTAÇÃO DE ESTÓRIAS

TÓPICO 2 – A PRODUÇÃO CULTURAL DOS SURDOS

TÓPICO 3 – A METÁFORA DO APRENDER A SER SURDO

Preparado para ampliar teus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverás melhor as informações.

CHAMADA

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TÓPICO 1

A CONTAÇÃO DE ESTÓRIAS

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

Na segunda unidade deste livro didático, abordaremos a literatura surda no Brasil apresentando o contexto literário de autores surdos, produções culturais, metáforas e a ressignificação da Língua de Sinais na inclusão. Faremos uma trajetória do percurso desse gênero literário do povo surdo desde os tempos remotos até os dias atuais. Como já mencionamos nos tópicos anteriores, a Lei n° 10.436, de 24 de abril de 2002, que oficializa a Língua Brasileira de Sinais, e o Decreto n° 5.626, de 22 de dezembro de 2005, fazem parte dessa trajetória, assim como as famílias, as escolas, as crianças surdas e a comunidade surda em geral.

Com a sanção da lei, os surdos conseguem criar materiais visuais, multimídias em Língua de Sinais como meios de informação As redes sociais e a globalização foram fatores determinantes nessa trajetória, proporcionando contato com surdos do mundo inteiro, ampliando e conhecendo melhor a própria língua e as mais variadas línguas de sinais. Às vezes, os surdos buscam conhecimentos através de livros, todavia, como a sua leitura e escrita na Língua Portuguesa são linguisticamente diferentes da maioria dos leitores, as dificuldades de compreender os textos escritos são muito maiores.

As traduções para CDs, DVDs, redes sociais ou Youtube, atualmente com os variados canais em Língua de Sinais, deixam muito mais claras as histórias, contos e todo esse universo literário, facilitando o acesso a esses materiais que trazem os elementos da cultura surda: a Língua de Sinais, o movimento e as expressões faciais e corporais. A experiência visual faz parte da cultura surda e a Língua de Sinais é um dos pontos mais fortes dessa classe tão rica. A Língua de Sinais é propriedade surda e é fruto da cultura de cada país. Através dela é possível ter acesso a diversos elementos que também fazem parte da cultura como, por exemplo, o contato com seus semelhantes na comunidade surda, as piadas, as histórias, o teatro. A tecnologia é usada como uma forma de adaptação e vem contribuindo cada vez mais para a construção de suas identidades. Assim, as produções da literatura surda estão crescendo com o aumento das histórias traduzidas, adaptadas ou criadas por surdos e ouvintes.

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UNIDADE 2 | LITERATURA SURDA NO BRASIL

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2 LITERATURA SURDA NO BRASIL: CONTEXTO HISTÓRICO

Segundo Mourão (2011, p. 22), a literatura brasileira do séc. XVI “foi iniciada com a carta de Pero Vaz de Caminha, sobre o Descobrimento do Brasil, explicando detalhes do que havia acontecido na terra brasileira”. Uma das características da literatura brasileira é o registro escrito, como bem cita o autor. Muitas são as obras literárias de valor imensurável para o povo brasileiro, com registros históricos que nos proporcionam conhecer a nossa própria história. Já a literatura surda se estabelece a partir das histórias que têm a presença da Língua de Sinais, aquelas histórias contadas de grupos em grupos de forma manual, trazendo a identidade e a cultura surda nas narrativas.

Você, leitor, deve se perguntar: por que precisamos da literatura surda? No decorrer dos estudos, deparamo-nos em vários momentos com a diferença linguística entre a cultura ouvinte e a cultura surda. Muitas pessoas ouvintes e até mesmo surdas não conhecem a Língua de Sinais, sua cultura e suas peculiaridades. Assim, a literatura pode ser uma porta para melhor conhecê-las.

O surdo ouve pela visão, e a Literatura Surda surge, como uma árvore balançada pelo vento e a folha, ao cair, e ser levada pelo vento para outros lugares, finalmente pisa na terra, se transforma, é adubada e brota na terra... é feliz para sempre. A Literatura Surda emociona aqueles que ouvem pela visão, e transforma, brilha, nos arrepiando (MOURÃO, 2011, p. 22).

Para as crianças surdas, essa literatura vem como um meio de referência,

de identificação e de aproximação da sua cultura do aprendizado da língua materna, além de causar efeitos na construção de sua identidade e subjetividade.

A expressão “literatura surda” é utilizada no presente texto para histórias que têm a língua de sinais, a identidade e a cultura surda presentes na narrativa. Literatura surda é a produção de textos literários em sinais, traduzindo a experiência visual, que entende a surdez como presença de algo e não como falta, possibilitando outras representações de surdos e considerando as pessoas surdas como um grupo linguístico e cultural diferente (KARNOPP, 2010 apud GAVA, 2015, p. 62).

A literatura passa a fazer parte da vida do indivíduo desde tenra idade e é essencial para o crescimento da criança. Antes mesmo do surgimento da escrita, as histórias eram contadas oralmente. Nos tempos remotos, era importante guardar na memória as histórias para serem transmitidas às futuras gerações. Por exemplo, às vezes, quando falamos em contação de histórias, é comum imaginarmos pessoas mais velhas sentadas e rodeadas de familiares, amigos e vizinhos para compartilhamento dos “causos”. As pessoas mais velhas eram consideradas mais sábias, experientes e vividas. Até os dias atuais, mesmo sem perceber, o adulto conta histórias aos pequenos, seja em casa, na escola ou em qualquer ambiente social.

Somos rodeados de histórias formais e informais. E isso não é diferente com a cultura surda. Os mais velhos encantam os mais jovens com suas histórias de vida verbalizadas ou sinalizadas. Na própria história da literatura mundial,

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TÓPICO 1 | A CONTAÇÃO DE ESTÓRIAS

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antropologicamente falando, é de conhecimento que os povos antigos narravam suas histórias em rodas de conversa, muitas vezes ao redor de fogueiras. Essa interação e integração eram passadas de geração a geração com as histórias das grandes navegações e das grandes conquistas. Até mesmo de uma simples caçada, que poderia se transformar em um evento de grandes proporções, como são hoje encontrados os relatos nas paredes de muitas cavernas pelo mundo através dos desenhos rupestres. O que dizer das histórias das “mil e uma noites” na Arábia? Os povos indígenas, ainda hoje, utilizam desse manancial. A literatura escrita, tal como a conhecemos, só veio aparecer muito tempo depois, a fim de perpetuar tais histórias contadas nessas rodas. As formas utilizadas nessas rodas de conversa eram as mais variadas: música, gestos, mímicas, teatralização etc.

Os surdos utilizam muitos dos elementos em sua literatura, abusam das expressões faciais para exprimir situações em que não haja um sinal específico, utilizam gestos caricatos para imitar ou satirizar reações e pessoas envolvidas na história etc. e a teatralização, que é o ápice da literatura surda. Por ter um apelo fortemente visual, a Língua de Sinais utiliza todos esses elementos e muitos outros. Muitos surdos poderiam trabalhar como atores profissionais na dramaturgia moderna, devido à facilidade de um pensamento imagético para as mãos e corpo. E não são raros os que se destacam em produções escolares que têm cunho teatral. Nessas produções, sabendo que o grande público é ouvinte, muitos têm a sensibilidade de mesclar Libras com expressões gestuais. Dessa forma, fazem-se entender e, ao mesmo tempo, infundem um pouco de Libras no público e deixam os espectadores maravilhados ante a desenvoltura demonstrada em cena.

No que diz respeito aos aspectos históricos percebe-se que a literatura surda foi surgindo paralelamente à cultura surda, uma vez que nos encontros de surdos as histórias, contos, piadas, anedotas e fábulas se faziam presentes. Acontecia de forma natural (apesar de encontros de surdos serem intencionais, conforme estudamos no artefato cultural família). Contudo, apesar de fazerem parte da história, aqui no Brasil os estudos sobre literatura surda são recentes. De acordo com Mourão (2011, p. 72):

A noção de literatura surda começou a circular em alguns países da Europa e nos Estados Unidos, principalmente onde existiam escolas de surdos. Em 1864 foi fundada a Universidade Gallaudet (Gallaudet University), em Whashington D.C., onde, com o passar do tempo, os sujeitos surdos, acadêmicos e pesquisadores construíram significados em torno da literatura surda, espalhando para seus próximos, na comunidade surda, como nos encontros de surdos, escolas de surdos, associação de surdos etc. Alguns alunos surdos estrangeiros formados na Universidade Gallaudet voltaram para sua terra natal espalhando a notícia para a comunidade surda local. Os acadêmicos e pesquisadores começaram a divulgar materiais empíricos, fazendo distribuição de livros, vídeos, etc. de fontes da literatura surda.

Entretanto, como começaram essas produções culturais através da Língua de Sinais? Vimos que em 1864 foi fundada a Universidade Gallaudet e foi lá que começaram os primeiros registros documentados de produções culturais em Língua de Sinais. As famílias que possuíam filhos surdos, conhecedoras desse

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UNIDADE 2 | LITERATURA SURDA NO BRASIL

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local, enviavam-lhes para lá. Alguns no intuito de proporcionar uma forma de estudo dentro da sua cultura, mas muitos também enviavam seus filhos porque já não tinham mais ideia de como ministrar um ensino de qualidade. Essa universidade ficou tão conhecida que muitos surdos oriundos de outros países vinham ali estudar, como cita Mourão (2011, p. 72):

Alguns alunos surdos estrangeiros formados na Universidade Gallaudet voltaram para sua terra natal espalhando a notícia para a comunidade surda local. Os acadêmicos e pesquisadores começaram a divulgar materiais empíricos, fazendo distribuição de livros, vídeos etc. de fontes da literatura surda.

A literatura de modo formal, na maioria das vezes, acontece na escola. É lá que grande parte das crianças tem contato com os contos, fábulas, histórias, que, em geral, são contados pelos professores ou professoras. Em algumas escolas montam-se belíssimos cenários, com variados objetos e cartazes, os quais complementam a beleza dessas histórias. Assim como já foi abordado neste livro, para as crianças surdas esses momentos podem distanciá-las da literatura se o professor não tiver um olhar atento. Os materiais literários encontram-se na Língua Portuguesa escrita, ou seja, na sua segunda língua. A falta de acesso a esses materiais interfere significativamente no processo de aquisição da escrita, podendo implicar também na criação do jogo simbólico, na imaginação e na criatividade, causando assim uma cascata de prejuízos que podem acarretar na defasagem e insucesso escolar. “A literatura dos livros é fundamental para as crianças surdas, para que elas possam desenvolver a língua portuguesa, necessitam de ter contato com a língua materna, praticá-la, e a literatura é uma fonte rica para desenvolver as competências linguísticas da criança” (KARNOPP; KLEIN; LAZZARIN, 2011, p. 152).

Cientes da dificuldade do surdo em relação à língua portuguesa, esse contato com a literatura, nos primeiros anos da vida escolar da criança, pode ser crucial para abrir a mente ou para criar um trauma psicológico. Ambas as situações acompanharão por todo o processo educacional. Quando a criança surda frequenta o ensino regular inclusivo, é neste momento que se torna importante a presença de um ótimo intérprete de Libras ou do instrutor.

O intérprete é um profissional ouvinte e o instrutor é um professor surdo (geralmente este profissional está presente do 1º ao 3º ano do Ensino Fundamental e nos Atendimentos Educacionais Especializados). Tais profissionais terão a missão de transmitir a emoção e os nuances da literatura narrada pelo professor durante as aulas. Mesmo que o professor referência domine perfeitamente a Língua de Sinais, não conseguirá narrar a história verbalmente ao mesmo tempo em que narra em Libras. Por serem modalidades diferentes, uma predominará em detrimento da outra.

Havendo uma junção, a criança surda terá todos os materiais para compreender as literaturas e fazer suas próprias criações imaginativas. Ainda, estará igualmente qualificada para, junto de seus colegas ouvintes, produzir, ensaiar e encenar tais histórias, criando sua própria forma de atuação. Diferentemente, nas escolas de ensino bilíngue ou classes especiais, o professor regente da turma, sendo surdo ou ouvinte, domina a Língua de Sinais e todo o ensino acontece na primeira língua do surdo, facilitando a aproximação da literatura.

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TÓPICO 1 | A CONTAÇÃO DE ESTÓRIAS

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Com a tecnologia avançada e com o acesso fácil às filmadoras e a possibilidade de impressão de textos e imagens, assim como as pesquisas em escrita de sinais, a literatura surda se expande na contemporaneidade. As histórias ganham cores, formas e são contadas pelas mãos. A poesia chega aos olhos e mãos dos surdos, os livros recebem sinais em Libras e a criatividade torna-se uma variável cada vez mais presente. Os clássicos infantis recebem adaptações na Língua Brasileira de Sinais, que passam a ter mudanças nos seus roteiros, em que personagens centrais tradicionais tornam-se personagens centrais surdos. Autores surdos surgem em vários pontos do país.

A partir da década de 90 do século XX, grupos de instrutores surdos e professores de surdos iniciaram a produção de materiais filmados, com a finalidade de utilização em atividades, principalmente nos espaços escolares. A princípio as filmagens eram de contação de histórias clássicas traduzidas em suas aulas com alunos surdos (KARNOPP; KLEIN; LAZZARIN, 2011, p. 94).

Os materiais impressos foram uma das formas utilizadas para adaptar as literaturas quando os recursos tecnológicos ainda não eram tão avançados. Esses materiais impressos geralmente se davam em forma de desenhos do sinal que vinha logo abaixo de cada palavra escrita no livro. Esse tipo de adaptação não representa uma literatura surda em si. Era uma tentativa de adequar um texto escrito e pensado para o leitor ouvinte, com a intenção de torná-lo acessível ao usuário surdo. Essa tentativa não deixa de ser uma forma de aproximar a literatura ouvinte das crianças surdas, e também de aproximar a Língua de Sinais das crianças ouvintes. Atualmente, os materiais visuais através de vídeos têm se expandido, trazendo maior qualidade e clareza aos sinais e a escrita de sinais substitui os desenhos.

Há a identificação de um conjunto de materiais que realiza exclusivamente a tradução dos textos da língua portuguesa para a língua de sinais. Através de uma pesquisa realizada na internet, é possível encontrar os livros “Branca de Neve”, “Os Três Porquinhos” e “Chapeuzinho Vermelho” em que, na tradução para a LIBRAS, há a utilização do desenho do sinal como forma de narrar a história. O material utiliza, então, nas publicações dos clássicos, o recurso do desenho do sinal com o objetivo de proporcionar a ampliação do vocabulário (KARNOPP; HESSEL, 2009, p. 4).

AUTOATIVIDADE

Acadêmico! A seguir, apresentamos imagens de alguns tipos de literatura ouvinte adaptadas para surdos em vídeo. Em todas podemos perceber a preocupação em estarem acessíveis. Você encontrará também imagens de programas apresentados na TV INES. São programas de ótima qualidade e seriedade com profissionais surdos qualificados. Com base nisso, faça uma pesquisa e analise as próximas imagens (entre nos sites dispostos nas fontes para acompanhar na íntegra os materiais) e reflita sobre o que vê. Compartilhe com os colegas qual a forma de adaptação apresentada que você acredita ser mais adequada. Explique o motivo da sua escolha.

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UNIDADE 2 | LITERATURA SURDA NO BRASIL

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FIGURA – LITERATURA EM CORDEL COM JANELA EM LIBRAS

FONTE: <https://acessibilidadeemmaos.files.wordpress.com/2017/01/maxresdefault.jpg>. Acesso em: 29 dez. 2018.

FIGURA – MATERIAIS EM LIBRAS DO INES

FONTE: <http://tvines.org.br/?p=5760>. Acesso em: 31 maio 2019.

FIGURA – LITERATUAS IMPRESSAS COM LIBRAS

FONTE: <https://www.brinquelibras.com.br/site_novo/fotos/4fd9e9cbb6e6e.jpg>, <https://www.brinquelibras.com.br/site_novo/fotos/4fd9e9ded3f55.jpg> e <https://www.

brinquelibras.com.br/site_novo/fotos/4fd9e9efccaaa.jpg>. Acesso em: 19 jul. 2019.

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TÓPICO 1 | A CONTAÇÃO DE ESTÓRIAS

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FIGURA – PROGRAMA DA TV INES

FONTE: <http://tvines.org.br/?p=17019>. Acesso em: 30 dez. 2018.

3 A IMPORTÂNCIA DO CONTAR ESTÓRIAS

Antes de iniciar os estudos deste subtópico, esclarecemos aqui a escolha das autoras na utilização do termo “estória” e não “história”. De acordo com o dicionário on-line: “significado de estória: Texto popular; narrativa tradicional: estória infantil. [Gramática] Palavra preferencialmente usada para designar uma narrativa de ficção: a estória da vovó” (DICIO, 2019, s. p.).

Significado de História: reunião e análise das informações ou dos conhecimentos sobre o passado e sobre o desenvolvimento da humanidade, de um povo, de uma ciência ou arte, de uma cultura, região ou de um indivíduo determinado: história da matemática; história do Brasil. A disciplina escolar ou ciência que contempla essa análise. Sucessão dos acontecimentos ou fatos que caracterizam uma ação. Narrativa: narração de aventura individual e própria. Reunião das informações acerca de um indivíduo ou coisa. O futuro definido como julgador das ações individuais: a história o condenará [...] (DICIO, 2019).

Ao pesquisar a diferença entre os termos, percebemos que ambas têm o mesmo significado. O termo “estória” nada mais é que a forma antiga da palavra “história” e, hoje em dia, já caiu em desuso. Porém, optamos por utilizá-la, pois o primeiro significado que encontramos diz: “Texto popular”. Ao conhecermos a história das pessoas surdas, sua cultura e sua literatura, deparamo-nos com esse significado nas entrelinhas quando falamos dos textos populares “surdos” sem registros, histórias que passaram de mão em mão e que não se encontram nos livros, mas sabe-se que existiram.

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UNIDADE 2 | LITERATURA SURDA NO BRASIL

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Vamos refletir um pouco sobre a importância da transmissão dessas estórias, que começam no seio familiar. Acompanhemos o relato de uma mãe americana ao descobrir a surdez da filha e a forma que a Língua de Sinais Americana foi entrando em suas vidas. O relato encontra-se no livro Vendo Vozes (SACKS, 1988). Fique atento, pois no relato encontraremos o termo “Linguagem Americana de Sinais”. Vale lembrar que no Brasil o uso correto é Língua Brasileira de Sinais e não Linguagem Brasileira de Sinais.

[...] Ouvimos o diagnóstico da surdez profunda de nossa filha Charlotte quando ela estava com dez meses de vida. Durante esses três últimos anos, vivenciamos uma série de emoções: descrença, pânico e ansiedade, raiva, depressão e tristeza e, finalmente, aceitação e apreciação. À medida que nosso pânico inicial se esvaiu, ficou claro que precisávamos usar uma língua de sinais com nossa filha enquanto ela era bem nova. Começamos as aulas estudando em casa o Inglês Exato em Sinais [Signed Exact English, SEE], uma réplica precisa em sinais do inglês falado, que a nosso ver nos ajudaria a transmitir nossa língua, literatura e cultura inglesas para a nossa filha. Sendo pais ouvintes, sentíamo-nos esmagados pela tarefa de aprender nós mesmos uma nova língua e simultaneamente ter de ensiná-la a Charlotte, por isso a familiaridade com a sintaxe inglesa fazia com que essa língua de sinais nos parecesse acessível [...]. Queríamos desesperadamente acreditar que Charlotte era semelhante a nós. Depois de um ano, decidimos passar da rigidez do SEE para o Inglês em Sinais [Signed English], uma língua franca que mistura o vocabulário da Linguagem Americana de Sinais, mais visualmente descritiva, com a sintaxe do inglês, que é familiar [...]. Contudo, as complexas estruturas lineares do inglês falado não se traduzem para uma língua de sinais interessante, e por isso tivemos de reorientar o modo como pensávamos a fim de produzir sentenças visuais. Fomos iniciados nos aspectos mais vividos e excitantes da língua: expressões idiomáticas, humor, mímica, sinais totalmente conceituais e expressão facial [...]. Agora estamos passando para a Linguagem Americana de Sinais, estudando-a e como uma mulher surda que é usuária nativa dessa linguagem consegue comunicar-se por sinais sem hesitação e é capaz de codificar essa linguagem para nós, ouvintes. Estamos animados e estimulados com o processo de aprender uma linguagem engenhosa e sensível, que possui imensa beleza e imaginação. É uma grande alegria perceber que a comunicação por sinais de Charlotte reflete padrões visuais de pensamento. Surpreendemo-nos pensando de modo diferente a respeito de objetos físicos e de seu lugar e movimento graças às expressões de Charlotte [...] (SACKS, 1988, p. 37).

Emocionante, certo? O relato dessa mãe demonstra que a Língua de Sinais não é uma mera cópia gestual da língua oral. A forma de pensar ouvinte não é a mesma forma de pensar surda. Reorientar o modo de pensar é ser capaz de produzir sentenças visuais utilizando as mãos, o corpo e o espaço para trazer aos olhos aquilo que os ouvidos não escutam. A estruturação do pensamento ouvinte se faz de forma totalmente diferente da estruturação do pensamento surdo. Ao ouvirmos um grito de pavor, por exemplo, buscaremos nos resguardar do perigo eminente. Uma pessoa surda não mensura uma situação de risco, a menos que esteja enxergando a cena. Dependendo do grau da surdez, o perigo pode estar muito perto se a pessoa surda não perceber. Por essas diferenças relevantes é que a literatura surda se torna necessária. Não se trata apenas de representatividade surda, trata-se também do direito de compreensão, de pertencer e de poder ouvir através dos olhos.

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TÓPICO 1 | A CONTAÇÃO DE ESTÓRIAS

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No que diz respeito às questões biológicas e fisiológicas, quando um indivíduo é suprimido de algum de seus sentidos o cérebro pratica o que na ciência se denomina “plasticidade do cérebro”. O potencial que seria dirigido àquele sentido suprimido é organizado e distribuído a um ou mais sentidos. Dessa forma é que percebemos, por exemplo, que o sentido do tato, da audição e do olfato é mais potencializado no indivíduo cedo. Principalmente o sentido do tato, pois tais indivíduos percebem com clareza as formas do código braile e, mais difícil ainda, a estrutura de um pisco tátil. Nos surdos, o sentido que fica mais latente é o da visão e o olfato se torna mais aguçado, por isso, é o sentido da visão que é amplamente potencializado. Os surdos percebem emoções e detalhes que passam imperceptíveis aos olhos de um ouvinte. Seu campo periférico é ampliado, podendo perceber movimentações pelos cantos dos olhos. Por vezes, tem-se a impressão que os surdos têm parentesco com aqueles camaleões que movem seus olhos independentes um do outro.

O relato da mãe de Charlotte faz reportar a um dos lugares onde a literatura formal acontece: o ambiente escolar. Nos dias atuais, a literatura tem se tornado um espaço importante na vida escolar. Já encontramos professores contando histórias para os bebês nas creches (fábulas, contos, parlendas, rimas). Professores e alunos cantam e brincam com as palavras e as crianças ouvintes já começam desde cedo a familiarizar-se com as histórias contadas com ênfase e entusiasmo. Muito importante foi a conscientização da mãe de Charlotte ao perceber a necessidade de aprimorar a utilização da Língua de Sinais Americana, visto que a forma literal da língua oral para a língua gestual não foi o suficiente. Essa oportunidade de acesso às literaturas, de forma plena, com direito à ênfase, entusiasmo e emoção, é o que a literatura surda traz em sua proposta.

Enquanto professores e alunos ouvintes nas escolas de ensino regular cantam e travam batalhas brincando com as palavras num movimento natural e prazeroso, o intérprete de Libras e a criança surda estão ali neste contexto, buscando uma forma de adentrar nessa brincadeira e utilizando a Língua de Sinais para que a criança surda viva a cultura e literatura ouvintes. Se esse intérprete consegue transmitir a emoção de tais histórias, a criança surda poderá receber tais emoções, compreender e ter prazer em literatura. Contudo, se o intérprete somente interpretar, sem utilizar expressões e demonstrar emoções, a criança surda possivelmente não compreenderá essa literatura e pode até desenvolver certa rejeição ao perceber que as demais crianças sentem prazer, enquanto que para tal criança não surte nenhum tipo de emoção e, algumas vezes, até mesmo o que resulta é falta de compreensão do que foi relatado. Todavia, ao pensar em escolas para surdos e literatura surda, podemos visualizar um grupo de crianças surdas em volta de um professor surdo, contando suas estórias e histórias em Língua de Sinais, utilizando expressões faciais que fazem rir emocionar. É preciso conhecer a literatura ouvinte e a literatura surda, condições de crescer e pensar em se tornar um poeta, um contador de histórias, um artista, pois esse sujeito encontrará em seu professor um modelo adulto.

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UNIDADE 2 | LITERATURA SURDA NO BRASIL

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FIGURA 1 – EDUCAÇÃO INFANTIL PARA SURDOS

FONTE: <https://www.youtube.com/watch?v=uSr7PhoZfK0>. Acesso em: 30 dez. 2018.

FIGURA 2 – EDUCAÇÃO INFANTIL PARA SURDOS

FONTE: <http://www.campogrande.ms.gov.br/cgnoticias/wp-content/uploads/sites/3/2018/11/libras-reme-768x432.jpg>. Acesso em: 31 maio 2018.

A inclusão é um imperativo necessário, é ela quem impulsiona avanços importantes na educação de pessoas surdas. Não há neste livro didático, uma campanha contra esta modalidade de ensino. A inclusão foi e é muito importante em relação ao movimento de trazer os surdos de volta às escolas. No momento da história da humanidade, em que os surdos estavam relegados ao abandono, surgiu a integração e, posteriormente, a inclusão, que foi uma consequente evolução da primeira. Devemos pensar, agora, na consequente evolução da inclusão. Há uma intenção nestas linhas de esclarecer a importância de se contar estórias com qualidade, respeitando as características linguísticas desse público não ouvinte. As imagens falam por si e através delas há de se refletir sobre a diferença entre inclusão e escola bilíngue.

Ensino bilíngue tem, como eixo de sustentação, a Libras como língua de instrução para o surdo, e a oral oficial do país como segundo idioma. Somente num ambiente linguístico naturalmente bilíngue é que este aluno terá, de fato, a possibilidade de construir-se enquanto sujeito usuário da Língua de Sinais como primeira língua, promovendo a aprendizagem da linguagem oral por meio da metodologia de segunda língua. Desse modo, é reforçada a obviedade de que tal possibilidade não se realiza numa escola ouvinte, em que a língua de instrução é a oral e todo o ensino é organizado a partir da perspectiva de quem ouve (WITKOSKI, 2015, p. 96).

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TÓPICO 1 | A CONTAÇÃO DE ESTÓRIAS

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As autoras deste livro didático, uma surda e uma ouvinte, atuaram juntas por sete anos no Atendimento Educacional Especializado (AEE). Durante esses anos, muitas foram as tentativas de implantar a literatura surda nas escolas públicas municipais. Visitas itinerantes periódicas tinham como objetivo a difusão da Língua de Sinais e esclarecimento de dúvidas acerca do aluno surdo (o que, na maioria das escolas, era apenas um na sala de aula) através dos materiais disponibilizados pelo MEC ou mesmo produzidos por nós. Contudo, as escolas de ensino regular possuem um currículo engessado e alguns professores acabam não encontrando espaço para tal mudança. Ainda, no decorrer do ano, o professor surdo ou o intérprete de Libras e o aluno surdo acabam sendo os únicos usuários da Língua de Sinais nesses espaços.

A situação fica mais complicada e evidente nas escolas regulares inclusivas no Ensino Fundamental (anos finais, 6º ao 9º ano). Nos anos iniciais (1º ao 5º ano) há um professor referência que ministra as aulas de Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, Geografia e História. Há troca de professores nas disciplinas de Educação Física, Ensino Religioso, Artes e Inglês. Nesse caso, esse professor referência tem um tempo bem maior dentro do convívio em sala de aula com os alunos do que os professores das outras áreas. Dependendo do professor, passa a conhecer melhor os alunos e as suas particularidades. Pode trabalhar alguns projetos diferenciados e específicos, até mesmo projetos envolvendo aulas de Libras para essa turma. Já nos anos finais não há mais um professor referência, pois os professores trocam a cada aula. São nove ou dez professores diferentes, com suas particularidades, pensamentos e didáticas distintas. E, por conta do cumprimento do currículo, mal há tempo sequer de conhecer os alunos. Imaginem um professor de Ensino Religioso, por exemplo, que tem uma aula semanal com cada turma. Para fechar sua carga horária precisa trabalhar em várias escolas e com várias turmas, elevando seu montantes e alunos a 500 ou 600 indivíduos diferentes. Dessa forma, torna-se muito difícil encontrar brechas para um trabalho diferenciado. Sabemos que há professores que se destacam realizando trabalhos fantásticos, que, no caso, são luzes no fim do túnel.

4 O SURDO COMO CONTADOR DE HISTÓRIAS

Nos dias atuais, o povo surdo brasileiro tem um vasto leque de escritores surdos que contribuíram e contribuem muito para a expansão da literatura surda brasileira. Vale lembrar que esses escritos são publicados em um padrão de escrita formal, todos passam por uma revisão ouvinte para adequação às normas da ABNT. Torna-se importante o leitor deste livro didático ter essa ciência para não haver dúvidas, uma vez que abordamos nos tópicos anteriores que o sujeito surdo escreve de forma diferente do ouvinte e ao ler um livro de pessoas surdas encontrará um português dentro dos padrões ouvintes. Porém, o livro é sim escrito por autores surdos, são suas ideias que aqui estão.

O surdo como contador de história vem para quebrar paradigmas da cultura ouvinte. Pode ocorrer de uma pessoa ouvinte, fluente em Língua de Sinais, fazer toda uma interpretação cheia de expressões para traduzir uma piada ou anedota de cunho ouvinte. E, ao final, o surdo não compreender ou não achar graça. Há

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UNIDADE 2 | LITERATURA SURDA NO BRASIL

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DICAS

Carolina Hessel é uma autora que vem crescendo na literatura surda. Ela criou o canal de histórias infantis em Libras: Mãos aventureiras. Confira! Disponível no link: https://lunetas.com.br/site-historias-infantis-libras/.

possibilidade de acontecer o contrário, um surdo sinalizar uma piada ou anedota da cultura surda e um intérprete fazer a voz, com entonação, mas ao final o ouvinte não compreender ou não achar engraçado. Para Strobel (2008, p. 59), “isso ocorre porque os sujeitos surdos usam nas piadas os artefatos culturais do povo surdo, enquanto para o povo ouvinte a temática da língua portuguesa e versões sonoras são mais importantes”. Isso pode ocorrer em várias situações em que haja choque de culturas, até mesmo entre ouvintes de locais diferentes. Uma piada contada no Nordeste com suas expressões características, gírias e entonações pode não ser compreendida no Sul do país, onde as gírias e características são diferentes.

Quando encontramos contadores de histórias que são surdos, mesmo

que não se tenha fluência em Língua de Sinais, podemos visualizar nitidamente a riqueza de cultura que ali se instala. O pensamento e a estrutura linguística são surdos. Ouvintes, por mais habilidosos que sejam, jamais terão habilidade da pessoa que se constitui surda. Assim como jamais encontraremos um surdo tão bem oralizado que não se deixe perceber que há uma diferença em sua fala. Essa diferença linguística e cultural causa efeitos na criança surda que receberá a notícia.

A literatura surda, quando produzida por um surdo, torna-se diferente da produzida por pessoas ouvintes. Isso se dá porque o surdo é aquele que vivencia as experiências surdas, sua cultura e a Libras. Por mais que o ouvinte seja fluente na Libras, tenha conhecimento sobre a cultura surda e participe ativamente da comunidade, ele vai ter experiências diferentes das que os surdos têm. Por isso o surdo geralmente tem capacidade de produzir histórias que serão mais facilmente absorvidas e compreendidas por outros surdos, e experiências com as quais outros surdos facilmente vão se identificar (KARNOPP; KLEIN; LAZZARIN, 2011, p. 91).

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RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico, você aprendeu que:

• A literatura surda se estabelece a partir das histórias que têm a Língua de Sinais, o que consequentemente faz com que identidade e cultura surda estejam presentes nas narrativas.

• Para as crianças surdas, a literatura surda vem como um meio de referência, de identificação e aproximação da sua cultura e aprendizado da língua materna, além de causar efeitos na construção de sua identidade.

• Somos rodeados de histórias, formais e informais. Não é diferente na cultura surda! Os mais velhos encantam os mais jovens com suas histórias de vida.

• A literatura de modo formal tem início na vida escolar. Na maioria das vezes, é na escola que as crianças têm contato com contos, fábulas, histórias em geral.

• Nos dias de hoje, o povo surdo brasileiro tem um vasto leque de escritores surdos que contribuíram e contribuem muito para a expansão da literatura surda brasileira.

• Quando encontramos contadores de histórias que são surdos, mesmo que não se tenha fluência em Língua de Sinais, podemos visualizar nitidamente a riqueza de cultura que ali se instala.

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AUTOATIVIDADE

1 “O surdo ouve pela visão e a literatura surge como uma árvore que balança pelo vento e, a folha, ao cair e ser levada pelo vento para outros lugares, finalmente pisa na terra, se transforma, é adubada e brota na terra... é feliz para sempre [...]” (MOURÃO, 2011, p. 22). A partir da citação de Mourão, escreva o que você entendeu nas seguintes frases:

a) O surdo ouve pela visão: b) [...] finalmente pisa na terra, se transforma, é adubada e brota na terra:

2 Os materiais que dizem respeito à literatura que circula nas escolas encontram-se na segunda língua do sujeito surdo, ou seja, a língua portuguesa escrita. Considerando que essa modalidade é também muito importante para a pessoa surda, não estaria a Língua de Sinais (ao ser supervalorizada na literatura surda) prejudicando a aquisição da escrita? Justifique sua resposta.

3 Observe a ilustração da piada “Árvore Surda”, muito utilizada pela cultura surda:

FONTE: Silveira (2015, p. 69)

Agora responda: a piada faz parte da literatura surda e é muito utilizada nos encontros das associações de surdos, divertindo a todos. De acordo com o que você estudou até o momento, o que caracteriza essa piada como uma piada da cultura surda?

MAS ÉIMPOSSÍVEL

VAMOSTENTARGRITARJUNTOS...

NÃO ESTOU A

PERCEBER!

EI, NÃO VALE A PENAGRITAR!

DEIXE-ME TENTAR.

QUE FÁCIL!MAS

COMOCONSEGUIU?

BAH,SIMPLES, DISSE"MADEIRA" EM

LÍNGUA GESTUAL...

ERA UMAÁRVORE SURDA!

Daí a expressão: "Surdo como uma porta."

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TÓPICO 2

A PRODUÇÃO CULTURAL DOS SURDOS

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

A produção cultural dos surdos vem para abalar algumas estruturas e pensamentos estáticos. Fomos acostumados desde pequenos a seguir padrões, basta analisarmos os clássicos da literatura, os concursos de beleza, os comerciais, entre outras situações a que somos expostos para ver os padrões de beleza, de comportamento e de opiniões. Somos induzidos já no seio familiar à adoção de posturas que serão aceitas pela sociedade. Nos tempos atuais, com os inúmeros movimentos militantes que vêm acontecendo na sociedade, esses padrões passam a ser questionados. Vitrines e propagandas começam a incluir diferenças estéticas e culturais. Os leitores mais antigos lembrarão que não existiam pessoas negras nos comerciais, por exemplo. Aliás, essa figura, quando aparecia, geralmente se apresentava na condição de servir (empregados e serviçais). Atualmente, os comerciais trazem pessoas negras ocupando lugares de brancos, ou seja, um lugar que é de seu direito também, assim como pessoas obesas mostrando sensualidade e famílias formadas por dois pais ou duas mães.

No meio de tanta diversidade cultural, podemos contemplar também inúmeros comerciais em que a Língua de Sinais circula. A produção cultural dos surdos, nesse sentido, ganha maior espaço nos tempos atuais quando a sociedade está mais aberta a aceitar as diferenças culturais e linguísticas. Mais uma vez, a tecnologia mostra para que veio quando consegue impulsionar estudos e pesquisas na área, tornando materiais riquíssimos disponíveis aos povos de todos os cantos. Essa circulação faz com que os surdos e os ouvintes conheçam o que há de melhor na literatura surda e contribui para a sua difusão.

2 PRODUÇÃO CULTURAL DE SURDOS EM LÍNGUA DE SINAIS

Anteriormente, quando abordamos sobre a história dos indivíduos surdos, vimos que ela ocorre desde tempos imemoriais. Todavia, quando falamos na produção cultural desses indivíduos, é uma história muito recente em comparação à história mundial. Principalmente quando as Línguas de Sinais passaram a ser adotadas pela comunidade surda. Até então não existiam registros de tais produções. Porém, isso é de fácil compreensão, pois sendo as Línguas de Sinais de forte apelo visual, esses registros praticamente nem existiam.

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UNIDADE 2 | LITERATURA SURDA NO BRASIL

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A tecnologia para tais fins só veio em auxílio à comunidade surda de forma efetiva a partir dos anos 1990 e não era em qualquer lugar como hoje, pois os surdos produziam seus materiais culturais. Tais produções só começaram a ser registradas em locais onde existiam escolas próprias para surdos.

Quando os surdos começaram a utilizar efetivamente as Línguas de Sinais, suas produções deram saltos qualitativo e quantitativo. Percebemos, através das nossas leituras, que a Língua de Sinais proporciona ao surdo liberdades imaginativa e exploratória, algo que denominamos “letramento ou leitura de mundo”. Mas o que vem a ser isso?

[...] a leitura da palavra é sempre precedida da leitura de mundo. E aprender a ler, a escrever, alfabetizar-se é, antes de mais nada, aprender a ler o mundo, compreender o seu contexto, não numa manipulação mecânica de palavras, mas numa relação dinâmica que vincula linguagem e realidade (SEVERINO, 1982 apud MOREIRA; SOUZA, 2015, p. 5).

Diante dessa definição, notamos que a leitura de mundo é o que aprendemos e apreendemos antes ou durante a compreensão das palavras. São os sentidos trabalhando para absorver do mundo seus aromas, gostos, texturas, sons e cores. A partir dessa leitura de mundo, tiramos nossas conclusões, realizamos nossas investigações, formamos ideologias, idealizamos situações e percebemos que aprendemos e formamos nossas próprias opiniões. Quando conhecemos as palavras, já possuímos um conhecimento implícito do mundo que nos orienta e facilita a aprendizagem. Entretanto, a leitura de mundo precede a leitura das palavras, como diz Paulo Freire:

O ato de aprender a ler e escrever deve começar a partir de uma compreensão muito abrangente do ato de ler o mundo. Até mesmo historicamente, os seres humanos primeiro mudaram o mundo, depois revelaram o mundo e, a seguir, escreveram as palavras. Os seres humanos não começaram por nomear A! F! N! Começaram por libertar a mão e apossar-se do mundo (FREIRE, 2011 apud MOREIRA; SOUZA, 2015, p. 4).

Todos os indivíduos têm a sua forma de perceber o mundo ao seu redor

e todos têm sua forma de expressão, de explicar o que compreendem. A grande maioria das pessoas fala ou escreve para interagir com outras pessoas. Os ouvintes, desde a barriga da mãe, ouvem o som da voz de seus pais e vão se familiarizando com essa melodia. Quando são bebês, sentem um cheiro ou um gosto e seus pais ou outras pessoas dizem o nome daquele objeto, planta, animal ou substância. Eles ouvem o nome e associam com aquele material, isso é a leitura de mundo começando. Então, vão crescendo e aprendem as palavras, mas já possuem uma boa base, principalmente auditiva do mundo. Existe a tarefa de escrever o nome de algum material sem ter escrito antes, e torna-se mais fácil por causa dessa base auditiva, dessa associação do som com a letra ou a palavra.

Os surdos utilizam as mãos para a interação através da Língua de Sinais. São suas mãos que proporcionam a leitura de mundo, através delas que interagimos com os outros indivíduos, conhecedores ou não da Língua de Sinais. Enquanto o indivíduo ouvinte faz a sua leitura de mundo através da visão e principalmente

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TÓPICO 2 | A PRODUÇÃO CULTURAL DOS SURDOS

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da audição, o indivíduo surdo faz a sua leitura através da visão. Primeiro faz as suas próprias observações e tira suas conclusões. Depois, ao interagir com outros indivíduos através da Língua de Sinais, tem a oportunidade de rever suas conclusões, apreender novos conceitos e conhecimentos, realizar novas observações etc.

A produção cultural em Línguas de Sinais começou na Universidade Gallaudet, porém, naquele tempo, a tecnologia estava engatinhando, mal existiam câmeras para realização de filmagens, de modo que as produções realizadas em Línguas de Sinais eram documentadas por escrito ou deveriam ser visualizadas ao vivo. Com a evolução das tecnologias, as universidades puderam documentar visualmente tais produções e divulgá-las. Mourão (2011, p. 89) cita um exemplo:

No curso de Letras/Libras, disciplina de Literatura Surda, produzimos momentos importantes de aprendizagem da forma discursiva literária. Esses discursos atravessam diversas fronteiras, levando ao reconhecimento e à valorização da cultura surda. Lembro que a forma de representação surda sempre ocorre “coletivamente” ou “face a face” (duas pessoas), em que são produzidos significados partilhados, que entram em circulação e consumo. Subjetividades são fabricadas nesse círculo de práticas sociais ou práticas discursivas, isso é, formas de representação surda através de uma bandeira “literatura surda”, em cidades ou estados, pois cada região sempre conta e reconta as suas narrativas em várias formas literárias.

A cultura surda tem essa peculiaridade: aprender coletivamente. Os surdos, invariavelmente, necessitam ter um ou mais interlocutores em suas explanações. Esse contato leva a discussões em que todos aprendem e ensinam ao mesmo tempo. Muitos sinais novos são criados e compartilhados, além de significados de muitas palavras e expressões. Esses ambientes são riquíssimos de aprendizagens. Nas universidades que têm surdos em seu corpo docente e discente, possuem ambientes fomentados e estimulados, pois há muitos surdos formados e pós-graduados que participam de tais debates, alavancando as pesquisas e incitando os demais surdos à prática da pesquisa e discussões. Os surdos já possuem essa característica de reunião em confraternizações ou reuniões, principalmente em associações. Nessas situações, também estão aprendendo e ensinando, mesmo inconscientemente. Mas em um ambiente próprio para esses debates o foco é diferenciado.

Os recursos tecnológicos atuais proporcionam que esse legado não se perca. Entre os ouvintes, a prática da fotografia para registrar os momentos tornou-se clichê. Com os surdos não é diferente, mas a prática da filmagem é mais presente. Em todas as discussões sempre há alguém que registre o que foi debatido, seja com filmagens dos momentos de discussão ou após os debates, realizando novas filmagens para explicação de conceitos, significados de palavras, explicações etc. Muitos aplicativos de celular são utilizados para tal fim. E são amplamente divulgados, chegando com facilidade a outras regiões e até em outros países. Acontece, então, o que ocorre muitas vezes com a própria língua portuguesa: o regionalismo.

Com a língua portuguesa ocorre o fenômeno do regionalismo. Cada região ou até estados do país possuem características próprias de gírias, sotaques e particularidades inerentes àquela região. Sabemos reconhecer pessoas oriundas

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UNIDADE 2 | LITERATURA SURDA NO BRASIL

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de outras partes do país somente pela forma de falar ou pelo sotaque. Mas será que o mesmo ocorre com a Língua de Sinais? A Libras pode ter sotaque ou gírias? Aprendemos em tópicos anteriores que a Língua de Sinais não é universal. Cada país tem a sua, com suas variações e regionalismos. Sendo uma língua, a Libras possui sua gramática. Tem gírias e sinais diferentes dependendo da região do país e o sotaque pode ser verificado pela velocidade dos movimentos de cada região. Alguns surdos de determinadas partes do país parecem optar por usar mais a datilologia (soletração) para algumas palavras, enquanto em outras regiões os surdos se reúnem para criar sinais para essas palavras. Todavia, mesmo com a criação desses sinais, a comunidade surda de uma região pode optar por usá-los ou não. Isso também é uma característica do regionalismo.

2.1 PRODUÇÕES EDITORIAIS SURDAS

Bem provável que os surdos já estivessem envolvidos de várias outras maneiras com suas produções culturais sem se dar conta que estavam fazendo isso, seja em circos ou em pequenas apresentações teatrais, mas dificilmente junto com seus pares. Pois, como vimos em tópicos anteriores, os surdos estão presentes na história da humanidade desde sempre. Todavia, passaram por muitos momentos distintos: de veneração em algumas culturas; de obscuridade em outras; e, até mais recentemente, de isolamento. Isolamento das pessoas e dos seus pares. Esse isolamento é o que causou esta lacuna na história das produções culturais dos surdos. Uma pessoa que vive sozinha pode criar estórias, escrever livros, desde que saiba bem a gramática para tal fim. Porém, uma pessoa que não conheça bem a gramática, não produzirá escrita. E, como vimos, o surdo tem uma relação muito peculiar com a língua escrita. Só recentemente que temos surdos que produzem materiais escritos.

As produções editoriais das pessoas surdas se dão a partir das suas vivências e dos seus relatos de vida. Existem várias obras surdas, algumas caíram no esquecimento ou não receberam o devido valor. Algumas valorizadas e eternizadas, registradas em livros escritos ou em Língua de Sinais, gravadas em CDs, DVDs, pen drives, nuvens etc. Isso graças à tecnologia atual, que proporcionou essa gama de variedades e formas.

Como o mercado editorial abriu portas para textos de caráter autobiográfico, essas produções podem ser entendidas como literárias. Caracterizada como um conjunto de obras, sendo ressignificada ao longo dos tempos, a literatura é marcada pelas pluralidades linguística e temática, circulando em diferentes culturas e através de variados suportes textuais (MÜLLER; KARNOPP, 2017, p. 126).

Essa porta aberta pelo mercado editorial para os textos de caráter autobiográfico é também a porta pela qual a literatura surda tem passagem. As experiências pessoais expressas pelos povos surdos falam das dificuldades, conquistas e opressões, com isso, muitos compartilharam suas histórias através da escrita. Há poucos relatos autobiográficos produzidos em Língua de Sinais. É

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TÓPICO 2 | A PRODUÇÃO CULTURAL DOS SURDOS

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interessante essa constatação, pois os surdos têm consciência que se produzissem seus relatos autobiográficos somente em Língua de Sinais, o público que assistiria ficaria restrito somente aos próprios surdos e às pessoas conhecedoras da Língua de Sinais, pois através da escrita seu público aumenta consideravelmente. E, o mais interessante: grande parte do público ouvinte é atingido, fazendo com que conheçam a trajetória e luta desse povo. É preciso lembrar que muitos surdos têm uma relação peculiar com a Língua Portuguesa, mas também há muitos surdos que não utilizam a Língua de Sinais. Então, a maior abrangência de público para esse tipo de material é através da língua portuguesa. Talvez os surdos que utilizaram essa forma de comunicação (escrita) tenham sido orientados.

Na década de 60, o carioca surdo Jorge Sérgio Lopes Guimarães escrevia crônicas sobre o cotidiano surdo para três jornais que circulavam no Rio de Janeiro. Guimarães nasceu em 1933, foi educado através do método oralista e nunca aceitou a língua gestual. Por esse motivo, também não foi e não é aceito pela comunidade surda. Segundo Madeira (2015), “a memória social da comunidade surda é constituída por questões tanto culturais quanto linguísticas que se estabelecem no contexto histórico. Guimarães, infelizmente, mesmo com o passar de geração em geração, em nenhum momento é mencionado de alguma forma, seja acadêmica ou literária”. Suas crônicas foram reunidas e publicadas no livro Até onde vai o surdo.

FIGURA 3 – LIVRO: ATÉ ONDE VAI O SURDO

FONTE: <https://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/article/viewFile/6130/pdf_44>. Acesso em: 18 jan. 2019.

AUTOATIVIDADE

Em 1993 a atriz e autora surda francesa Emmanuelle Laborit escreveu sua autobiografia O voo da gaivota, obra que emocionou os leitores através de seus amargos relatos que trazem sua trajetória desde a infância até o sucesso da vida adulta. Emanuelle trouxe à tona, em seu livro escrito em 1994, vários momentos de reflexão e, nesta década, a Língua de Sinais ainda não era oficializada no

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UNIDADE 2 | LITERATURA SURDA NO BRASIL

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Brasil. Leia a citação a seguir voltando seu pensamento para a década de 90. Depois volte para o ano atual e reflita: será que, atualmente, com a legalização da Língua de Sinais, esse relato ainda se repete?

Os adultos ouvintes que privam seus filhos da língua de sinais nunca compreenderão o que passa na cabeça de uma criança surda. Há a solidão, e a resistência, a sede de se comunicar e, algumas vezes, o ódio. A exclusão da família, da casa onde todos falam sem se preocupar com você. Porque é preciso sempre pedir, puxar alguém pela manga ou pelo vestido para saber, um pouco, um pouquinho, daquilo que se passa em sua volta. Caso contrário, a vida é um filme mudo, sem legendas (LABORITT, 1994 apud STROBEL, 2008, p. 51).

Os poemas e poesias também fazem parte das produções editoriais surdas e estão carregados de autobiografias. Uma característica dos escritos surdos é a marca ouvintista que o surdo carrega em si. Analisaremos o poema escrito pela poetisa surda Ronise Oliveira, que em seu livro Meus sentimentos em folha.

O SILÊNCIO (POESIA DO SURDO)Cresce ali um silêncio profundoE no berço a balançar uma canção de ninarE os juízos cantam a sua canção;Mas o silêncio é cantado por umChoro desesperado por querer ouvir os guizos e não há um som no ouvido a escutar uma linda canção.É ali que se encontra um surdo que procura ouvir você e não percebe que o grande dia virá em que a Linguagem de Sinais a ele pertencerá.Pois nas tristezas e amigos confortando e ali vive uma criança que ao som nunca ouvirá e que mostrará o quanto é feliz por ser nascido [...].O surdo vive e viverá no mais completo e simples silêncio que do seu interior há de valorizar você.Pois é você que viverá neste silêncio (KARNOPP; KLEIN; LAZZARIN, 2011, p. 63).

No ano em que esse poema foi escrito o Decreto n° 5626/05 foi sancionado. A

Lei de Libras já completava três anos, mas ainda eram fortes as marcas do oralismo predominante. O poema demonstra tristeza tanto no surdo quanto na infância surda. Associa a surdez com a deficiência e a falta de audição como uma anormalidade. Parece refletir sobre a dor da mãe que teme por seu filho que não ouvirá os sons que ela ouve e a esperança da criança que encontrará alegria nas “linguagens” de sinais que estão por vir. Muitos ouvintes têm um sentimento de piedade pelos surdos pelo fato de não ouvirem. Comentam que parece que o surdo quer “falar”, mas não consegue, pois emite sons. Mas se esquecem que o surdo fala, e fala muito com as mãos.

Vanessa Vidal, autora do livro A verdadeira beleza: uma história de superação traz em suas páginas relatos de sua trajetória de miss e modelo, cheias de lágrimas e lições de vida. “Assim, ela busca mostrar que sua verdadeira beleza está relacionada à superação de barreiras comunicativas e sociais, expressando sentimentos que ela considera nobres: amor, amizade e solidariedade [...]” (KARNOPP; KLEIN; LAZZARIN, 2011, p. 63). Em seu livro, a autora fala dos conflitos que enfrentou quando conheceu a comunidade surda e os desafios de assumir a identidade surda.

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Cresci em ambientes ouvintes, e quando descobri a comunidade surda passei a viver um conflito cultural. Cresci oralizada. Era perceptível a lentidão do meu desenvolvimento. Ligo este fato ao não acesso às informações, ao não entendimento de notícias diárias, que, para mim, nunca eram bem explicadas [...]. Quando aprendi Libras, descobri um mundo novo, passei a entender coisas simples. [...] Senti a vida fluir de forma mais prazerosa. O contato com a Libras foi a chave para o meu desenvolvimento, o caminho para a construção da minha identidade (VIDAL, 2008 apud KARNOPP; KLEIN; LAZZARIN, 2011, p. 66).

O relato da sua trajetória, tanto pessoal como profissional, é um importante documento para a literatura surda. É um livro que aborda questões de superação, de medos e de inseguranças que a modelo teve que quebrar as barreiras comunicacionais para atingir suas metas. Percebam como a própria autora define que seu desenvolvimento era lento, que não compreendia fatos cotidianos. E a Libras veio para libertar e mostrar um novo mundo. Seu desenvolvimento deu um salto, pois, até então ela flutuava em sua identidade surda sem saber se deveria se comportar como uma surda ou como uma ouvinte deficiente. Todavia, a partir do contato com a Libras, sua identidade foi definida.

Carol Padden e Tom Humphries são importantes escritores americanos. Paddy Ladd é um escritor surdo inglês. Gladis Perlin é uma brasileira surda. Esses autores escreveram textos significativos para a Literatura Surda. Perlin publicou um importante artigo sobre as identidades surdas, no final dos anos 90, que é utilizado em pesquisas e estudos surdos até os dias atuais. A autora surda Karin Strobel menciona alguns autores surdos brasileiros em sua obra literária As imagens do outro sobre a cultura surda (STROBEL, 2008, p. 57):

• Carolina Hessel: “Por um currículo em língua de Sinais” (2006).• Celso Baldin: “A juventude – o Rio de Janeiro e o carnaval” (2001).• Fabiano Souto Rosa: “Literatura Surda: criação e produção de

imagens e textos” (2006).• Flaviane Reis: “Professor surdo: a política e a poética da transgressão

pedagógica” (2006).• Gisele Rangel: “História do povo surdo em Porto Alegre: imagens e

sinais de uma trajetória cultural” (2004).• Jorge Sérgio L. Guimarães: “Até onde vai o surdo” (crônicas/1961).• Marianne Stumpf: “ Sistema SignWriting: por uma escrita funcional

para o surdo” (2005).• Olindina Coelho Possídio: “No meu silêncio: Ouvi e Vivi”

(autobiografia, 2005).• Patrícia Luiza Ferreira Pinto “Identidade cultural surda na

diversidade brasileira” (2001).• Ronice de Oliveira “Meus sentimentos em folhas” (livro de poemas,

2005).• Shirley Vilhalva: “Recortes de uma vida: Descobrindo o Amanhã”

(autobiografia, 2001), “ Por uma pedagogia surda” (2004).• Wilson Miranda: “Comunidade dos surdos: olhares sobre os

contatos culturais”, (2001).

Considerando que a citação anterior é de 2008 e que de lá para cá houve um grande avanço nos estudos culturais dos surdos e na Língua de Sinais, a comunidade surda agora recebe informações em tempo real e pode ampliar seus

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UNIDADE 2 | LITERATURA SURDA NO BRASIL

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conhecimentos com maior dignidade. Alguns dos nomes citados por Strobel já escreveram muitas outras obras e outros inúmeros autores surdos vêm surgindo. As obras literárias surdas vão se ampliando e as autobiografias dão cada vez mais espaço aos escritos culturais.

FIGURA 4 – LIVRO: ÍNDIOS SURDOS FIGURA 5 – DESPERTAR DO SILÊNCIO

FONTE: <http://www.libras.com.br/images/livros/indios-surdos.png>. Acesso em: 31 maio 2019

FONTE: <http://twixar.me/8pR1>. Acesso em: 31 maio 2019.

Shirley Vilhalva é surda, nasceu em 1964 em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, tem descendência indígena e uma bela história. Sempre quis ser professora e, em 1984, tornou-se a primeira professora de surdos no Mato Grosso do Sul. Formada em Pedagogia, Pós-Graduada em Metodologia de Ensino e Mestre em Linguística. No ano 2000 Shirley recebeu o prêmio O mestre que marcou minha vida por conta do seu projeto intitulado: A Língua de Sinais na Educação de Surdos. De acordo com o programa Manuário da TV INES, Shirley trabalhou no mapeamento da Língua de Sinais de comunidades e reservas indígenas. Visitou aldeias em terras indígenas no Mato Grosso do Sul, dando aulas e palestras sobre a língua indígena.

3 SUGESTÕES DE PRODUÇÃO CULTURAL DE SURDOS EM LÍNGUA DE SINAIS

Ao pesquisarmos a palavra Libras na internet, na opção vídeo, encontraremos infinitos materiais em Língua de Sinais. Alguns amadores, alguns feitos por alunos de cursos de Libras, muitos produzidos por surdos bem conhecidos, materiais informativos, piadas e materiais de todo o tipo. Desses materiais encontrados, vamos analisar alguns que apresentam características da literatura surda e que são produções surdas:

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TÓPICO 2 | A PRODUÇÃO CULTURAL DOS SURDOS

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FIGURA 6 – CURTA EM LIBRAS

FONTE: <https://www.youtube.com/watch?v=PbuDruXe6BI>. Acesso em: 31 maio 2019.

Essa série é um programa da TV Campus produzido pela Universidade Federal de Santa Maria no Rio Grande do Sul. As Universidades Federais, por serem polos dos Cursos de Letras /Libras, possuem uma estrutura diferenciada para o público surdo. Você encontrará na internet materiais de alta qualidade nessas plataformas. A série tem por protagonistas o casal de surdos Franciele Cantarelli e Fabiano Souto, ela é psicóloga e ele professor. Clique na fonte e assista a esse capítulo da série que falará sobre o parto da Fiorella, filha do casal. Eles contarão suas experiências de serem pais.

FIGURA 7 – DIÁRIO DE FIORELLA

FONTE: <https://www.youtube.com/watch?v=IjOwG9HhJiY>. Acesso em: 11 jan. 2019.

O casal Franciele Cantarelle e Fabiano Couto fazem um trabalho muito importante que será um grande registro histórico para sua filha surda e para muitos pais e mães surdos ou ouvintes. O casal alimenta um canal no Youtube intitulado: “O Diário de Fiorella”, com vídeos periódicos que você pode acompanhar. Todos os vídeos são legendados e você irá se divertir e se emocionar com as situações vivenciadas pela Fiorella. Perceberá também o processo de desenvolvimento linguístico na Língua de Sinais. Falaremos do canal também nas autoatividades. Fique ligado!

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FIGURA 8 – MÃOS AVENTUREIRAS

FONTE: <https://lunetas.com.br/site-historias-infantis-libras>. Acesso em: 11 jan. 2019.

Carolina Hessel é surda. Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ela criou o projeto “Mãos Aventureiras” que pode ser encontrado no site e canal do Youtube. Hessel conta histórias da literatura infantil em Língua de Sinais. Segundo ela: “A internet é uma maneira barata e fácil de dar acesso para todos. Quero preencher essa lacuna para as crianças surdas e também enriquecer o acervo de histórias sinalizadas na internet” (HESSEL, 2008). Com base nisso, pesquise na internet e encontre muitas publicações de produções culturais de surdos em Língua de Sinais!

IMPORTANTE

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RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• A história da produção cultural dos surdos é muito recente em comparação com a história mundial, principalmente quando as Línguas de Sinais passaram a ser adotadas pela comunidade surda.

• A Língua de Sinais proporciona ao surdo a “leitura de mundo”, que é o que aprendemos e apreendemos antes ou durante a leitura das palavras, através dos aromas, odores, sons, gostos e cores.

• Enquanto o indivíduo ouvinte faz sua leitura de mundo através da visão e, principalmente da audição, o indivíduo surdo faz sua leitura, primordialmente, através da visão.

• A produção cultural em Língua de Sinais começou na Universidade Gallaudet. Contudo, naquele tempo, a tecnologia estava engatinhando. Mal existiam câmeras para realização de filmagens, de modo que as produções realizadas em Língua de Sinais eram documentadas por escrito ou deveriam ser visualizadas ao vivo.

• Os recursos tecnológicos atuais proporcionam que o legado dos surdos não se perca. Em todas as discussões, sempre há alguém que registre o que foi debatido, seja com filmagens dos momentos de discussão ou após os debates, realizando novas filmagens para explicação dos conceitos, significados de palavras, explicações etc.

• As produções editoriais das pessoas surdas se dão a partir das suas vivências e dos seus relatos de vida.

• As experiências pessoais expressas pelos povos surdos falam das dificuldades, conquistas e opressões e muitos compartilharam suas histórias através da escrita.

• Ao pesquisarmos a palavra Libras na internet, na opção vídeo, encontraremos infinitos materiais em Língua de Sinais. Alguns amadores, alguns feitos por alunos de cursos de Libras, materiais informativos, piadas e materiais de todo o tipo. É um dos veículos em que mais circula a literatura surda.

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AUTOATIVIDADE

1 Preencha as colunas a seguir, utilizando a seguinte legenda: (1) Produções Culturais em Língua de Sinais e (2) Produções Editoriais Surdas:

( ) Tais produções só começaram a ser registradas em locais onde existiam escolas próprias para surdos.

( ) Experiências pessoais expressas pelos povos surdos falam das dificuldades, conquistas e opressões.

( ) Começou na Universidade Gallaudet. ( ) Muitos sinais novos são criados e compartilhados. ( ) Possuem autobiografias.( ) São amplamente divulgados, chegando com facilidade a outras regiões e

até a outros países.

Assinale a alternativa que representa a sequência CORRETA:a) ( ) 1, 2, 2, 1, 1, 2.b) ( ) 2, 1, 1, 2, 1, 2.c) ( ) 1, 2, 1, 1, 2, 1.d) ( ) 1, 2, 1, 2, 1, 2.

2 Assista ao Diário de Fiorella em: https://www.youtube.com/watch?v= IjOwG9HhJiY. Fiorella é surda e filha de pais surdos. Seu desenvolvimento linguístico se encontra no mesmo nível de desenvolvimento linguístico de uma criança ouvinte da mesma idade. A partir do vídeo responda:

a) Se os pais de Fiorella fossem ouvintes, ela teria o mesmo desenvolvimento? Justifique.

b) Se Fiorella fosse ouvinte, filha de pais surdos, ela aprenderia a Língua de Sinais ou a Língua oral?

c) Fiorella terá maior facilidade em adquirir a língua escrita? Justifique.

3 Releia o poema da surda Oliveira, retirado da obra de Karnopp, Klein e Lazzarin (2011), e faça o que se pede:

O SILÊNCIO (POESIA DO SURDO)Cresce ali um silêncio profundoE no berço a balançar uma canção de ninarE os juízos cantam a sua canção;Mas o silêncio é cantado por umChoro desesperado por querer ouvir os guizos e não há um som no ouvido a escutar uma linda canção.É ali que se encontra um surdo que procura ouvir você e não percebe que o grande dia virá em que a Linguagem de Sinais a ele pertencerá.

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Pois nas tristezas e amigos confortando e ali vive uma criança que nunca ouvirá e que mostrará o quanto é feliz por ser nascido. [...]O surdo vive e viverá no mais completo e simples silêncio que do seu interior há de valorizar você.Pois é você que viverá neste silêncio.

a) Analise o trecho: “Mas o silêncio é cantado por um choro desesperado por querer ouvir os guizos e não há um som no ouvido a escutar uma linda canção”. Na sua opinião, Fiorella se enquadra neste trecho? Justifique.

b) “É ali que se encontra um surdo que procura ouvir você e não percebe que o grande dia virá em que a Linguagem de Sinais a ele pertencerá”. O poema foi escrito três anos após a sanção da Lei n° 10.436/02 da Língua de Sinais Brasileira e no mesmo ano da criação do Decreto n° 5626/05. Partindo desse pressuposto, assinale a (s) alternativa (s) que traduzem esse trecho:

I- O surdo que está no berço não percebe que a Língua de Sinais está chegando e será a sua própria língua.

II- Que a criança surda poderá compreender o adulto através das “Linguagens” de Sinais.

III- Que a Língua de Sinais um dia teria seu lugar.

Assinale a alternativa CORRETA:a) ( ) Somente a alternativa III está correta.b) ( ) As alternativas I e III estão corretas.c) ( ) Somente a alternativa II está correta.d) ( ) As alternativas I, II e III estão corretas.

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TÓPICO 3

A METÁFORA DO APRENDER A SER SURDO

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

Embora este tópico tenha como título a metáfora, você, estudante, encontrará uma discussão acerca de vários aspectos que estão em torno do ser surdo no processo educativo. Falaremos de assuntos mais teóricos, tais como a aquisição da linguagem. A Língua de Sinais como marca surda na literatura discorrerá sobre questões mais teóricas, pois é um assunto complexo que exige atenção e seriedade por envolver uma língua que nem sempre é respeitada como tal.

Perceberemos o quanto a família é determinante, principalmente na tenra idade da criança surda. Aqui poderemos comparar como se desenvolve a criança surda e a criança ouvinte, e constatar mais uma vez a importância da Língua de Sinais nesse processo. Conversaremos sobre os princípios éticos do profissional Intérprete de Libras, que é também um elemento muito importante durante a vida escolar do surdo. Após percorrer aspectos tão relevantes desde a infância, teremos elementos para pensar sobre a ressignificação da inclusão escolar. Esperamos que este tópico seja esclarecedor, que você se sinta capaz de compreender melhor a metáfora do Aprender a Ser Surdo, e que tenha subsídios para difundir essas informações àqueles que ainda não conhecem a cultura surda e que acabam criando conceitos equívocos sobre esses sujeitos.

A Língua de Sinais está em alta em nosso país, está tomando um lugar na mídia nunca antes visto. Embora seja um grande avanço, ainda há muito que se progredir, principalmente porque, enquanto se discute (há anos) sobre qual a melhor forma de ensinar uma criança surda, quando menos se percebe esta criança já se tornou adulta. Mas, você, caro estudante, é um importante aliado da comunidade surda só pelo fato de estar estudando este livro, pesquisando nossas dicas de leitura, buscando conhecer melhor esse mundo visual, com isso já está ajudando a diminuir os (pré) conceitos que giram em torno da cultura surda.

2 LÍNGUA DE SINAIS COMO MARCA SURDA NA LITERATURA

As práticas de leitura e escrita entre os surdos esbarram nos aspectos relacionados à estrutura e funcionamento da língua escrita. Os adultos surdos dos tempos atuais são aquelas crianças que cresceram sem ter o contato adequado com a língua portuguesa escrita, motivo pelo qual tais produções sofrem prejuízos.

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UNIDADE 2 | LITERATURA SURDA NO BRASIL

Entretanto, conforme vimos no tópico anterior, a tecnologia auxiliou muito na produção cultural dos surdos. A internet é uma vitrine para todas as pessoas e, para os surdos, essa tecnologia proporciona ainda mais oportunidades. Eles estão sempre pesquisando e utilizando as ferramentas tecnológicas disponíveis. “Os surdos têm ocupado a internet desde o seu aparecimento, no início dos anos 90. Desde pequenos fóruns, salas de bate-papo, documentações históricas da vida passada das comunidades surdas até hoje em dia, quando quase a totalidade dos programas disponíveis é utilizada pelos surdos” (KARNOPP; KLEIN; LAZZARIN, 2011, p. 114).

Temos aí um novo paradigma: a Língua de Sinais sendo difundida mundialmente. Toda uma cultura sendo exposta de uma forma que todos podem acessar. Todas as pessoas, surdas ou não, têm acesso a essas produções. A Língua de Sinais é ensinada através de vídeos em que uma pessoa sozinha demonstra os sinais dentro de algum contexto ou através de conversas entre dois ou mais interlocutores. Nesse sentido, cabe ressaltar que há prioridade das pessoas surdas no ensino da Língua Brasileira de Sinais. Por isso, há uma grande resistência por parte dos surdos sobre cursos de Libras ministrados por ouvintes. Muitos vídeos dessas aulas são produzidos por próprios surdos. Mas há muitos ouvintes intérpretes (ou não) que produzem materiais nesse formato. Novamente Karnopp, Klein e Lazzarin (2011, p. 117) citam:

[...] o aprendizado da língua e o aprendizado da cultura e seus valores estão intimamente ligados. Muitos surdos que não possuem instrução formal são instruídos em relação à cultura surda, portando metáforas e imagens que expressam a complexidade da língua de sinais. Chego à conclusão de que não importa o fato de o sinalizador ser ouvinte ou surdo, importa o quanto os surdos irão sentir de proximidade em relação à sinalização. Existem casos (como o do Deaf Ninja) em que o sinalizador ouvinte é julgado pelos próprios surdos como uma pessoa surda, tamanha sua fluência e harmonia no ritmo da sinalização.

Alguns dados relevantes são demonstrados nessa fala de Schallenberger.

Entre os ouvintes que se aventuram a ensinar Libras, encontram-se pessoas comprometidas e fluentes, que chegam a causar dúvida se quem sinaliza é ouvinte ou surdo. Bem como há pessoas que procuram apenas exercitar sinais aprendidos. As produções em vídeo, lançadas na internet, sempre gerarão dúvidas se o sinalizante é surdo ou ouvinte, a menos que este se identifique. E, para os surdos isso não é um fator preocupante, desde que a sinalização seja coerente e não deixe dúvidas. Porém, essa pessoa certamente será reconhecida na comunidade surda por fazer um bom ou mau trabalho e pode ficar “rotulada”. Consequentemente, uma má interpretação ou sinalização pode denegrir sua imagem e até mesmo a de muitos bons intérpretes que atuam nesses moldes, prestando um trabalho maravilhoso na difusão da Língua de Sinais. Enfim, há variados vídeos, com conteúdos diversos, que devem ser analisados criteriosamente antes de serem compartilhados e utilizados.

Outro fator interessante é que muitos surdos que ainda não têm instrução formal, ao assistirem tais materiais, descobrem um mundo novo. Uma cortina se descerra ante seus olhos e percebem que a Língua de Sinais é mais do que aquele seu “mundinho” fechado, no qual somente se relacionam com seus familiares e amigos próximos. Vários surdos, ao assistirem esses materiais, começaram a

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TÓPICO 3 | A METÁFORA DO APRENDER A SER SURDO

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produzir seus próprios vídeos e assombraram seus amigos e familiares diante da desenvoltura em relação à Língua de Sinais, habilidade nunca antes demonstrada. Produzem encenações teatrais, diálogos bem produzidos, necessitando, para isso, convidar um ou mais amigos surdos para participar, tanto na produção quanto na execução do vídeo. E saem vídeos maravilhosos, nos quais demonstram toda sua sensibilidade, assim como nuances da Língua de Sinais.

Nota-se que a Língua de Sinais é fator determinante e é a verdadeira marca na literatura surda. Somente ela proporciona aos surdos o elixir da comunicação, do aprendizado, da autonomia e da liberdade de expressão. Até os dias de hoje, a escrita implica na subjetividade do sujeito surdo. É um assunto mal resolvido. Há uma contradição até mesmo na Lei de Libras, que, ao mesmo tempo em que dá a liberdade de comunicar-se através da Língua de Sinais, algema a liberdade de expressão quando diz que a Língua de Sinais não substitui o português escrito. Essas algemas são impostas pela própria sociedade, que não sabe ensinar as pessoas surdas a ler e escrever, mas exige que sua escrita esteja em nível padrão.

No que diz respeito à construção da linguagem, vejamos rapidamente o que dizem os principais estudiosos da Teoria Interacionista da Aprendizagem. Não iremos aqui nos aprofundar em tais teorias. Entretanto, vamos conceituá-las para que possamos entrar nas questões linguísticas da Língua de Sinais com maior clareza. Falaremos de Jean Piaget, Lev Vygotsky e Henri Wallon, que são os nomes mais pesquisados nos assuntos relacionados ao desenvolvimento cognitivo. Lembrando que antes de ser surdo, o sujeito é um ser com as mesmas condições orgânicas de qualquer outra pessoa. Os teóricos que veremos agora não mencionam em seus estudos as fases do desenvolvimento infantil de uma criança surda, porém trazem as fases do desenvolvimento infantil. Então, como será que ocorre o desenvolvimento desse ser privado de audição? Vamos tentar compreender ao longo do texto.

Jean Piaget nasceu em 1896 na Suíça, formou-se em Ciências Naturais no ano de 1915 e conseguiu uma conexão entre a biologia e a filosofia a partir dos estudos da Psicologia do Desenvolvimento. Faleceu aos 84 anos, já na década de 80. Piaget defendeu a epistemologia genética, que traz como principal questão a passagem de um estado de menor conhecimento para maior conhecimento. Para ele, a aprendizagem é construída internamente e está ligada ao nível de desenvolvimento do sujeito. Ele acompanhou os processos de formação do pensamento de crianças e concluiu que tal formação ocorre de acordo com a ação do sujeito com o meio (HUMANAMENTE, 2019).

Biólogo, Piaget definiu a inteligência como uma das manifestações da vida, isto é, uma forma de adaptação, sendo a ação o modo de interação do homem com o meio. Isso significa que, em todos os níveis do desenvolvimento, uma conduta cognitiva é uma ação (concreta ou interiorizada), cuja função é a adaptação do sujeito ao seu meio pela interação. Esse desenvolvimento é contínuo, sua continuidade encontra-se, por um lado, na noção de ação e, por outro, na de função: através de processos de assimilação e acomodação, o sujeito vai, pouco a pouco, coordenando suas ações num nível de complexidade estrutural cada vez mais alto. O aspecto descontínuo da evolução estaria ligado, portanto, ao conteúdo e às estruturas das ações (SOARES, 2009, p. 3).

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UNIDADE 2 | LITERATURA SURDA NO BRASIL

Essas interações com o meio estruturam-se internamente no sujeito através dos processos nomeados por Piaget de “assimilação e acomodação”. Na assimilação, o meio é que sofre alteração para ser incorporado a partir do que o sujeito já conhece. Na acomodação, o que sofre alteração é o organismo. Vejamos um exemplo para ficar mais claro: um bebê tenta pegar um objeto, porém, devido à posição, ele não consegue. Entende-se que o meio resiste ao fato de “ser pego”, e essa resistência do meio faz com que o sujeito crie um esquema mental que proporcione uma nova estratégia para pegar o objeto. Vemos então que o processo de desenvolvimento depende tanto de fatores internos, que seriam esses processos mentais, como dependem da maturação e das experiências do sujeito a partir dos conflitos cognitivos vividos com o meio.

FIGURA 9 – JEAN PIAGET

FONTE: <https://nova-escola-producao.s3.amazonaws.om/8AHENheKXfqmTKHB9tY6vPztT2wxyx E3MjErgTdae43g6guhFAaGgwqdu3GJ/gettyimages-51396666.jpg>. Acesso em: 3 jun. 2019.

Piaget ainda defendeu que o conhecimento acontece por meio de quatro estágios, os quais utilizou para compreender as diferentes maneiras da criança pensar nas suas diversas faixas etárias. Tais estágios foram caracterizados por ele de: Sensório-Motor (ocorre entre 0 a 2 anos); Pré-Operacional (2 a 7 anos); Operatório-Concreto (7 a 11 ou 12 anos) e Operatório-Formal (a partir dos 11 ou 12 anos) (HUMANAMENTE, 2019).

DICAS

Saiba mais sobre os estágios do conhecimento acessando: https://www.youtube.com/watch?v=EnRlAQDN2go.

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TÓPICO 3 | A METÁFORA DO APRENDER A SER SURDO

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Lev Vygotsky nasceu em 1896 na Bielorrússia e faleceu muito jovem, aos 37 ou 38 anos de idade (alguns referenciais diferem na data de falecimento), no ano de 1934. Formou-se em Direito e Filosofia e, depois, em Medicina. Também foi defensor da Teoria Interacionista. Entretanto, seu olhar difere-se um pouco do de Piaget. Para ele, as funções psicológicas superiores, tais como a linguagem, memória e pensamento, são formas que diferem o homem dos demais animais. “Segundo ele, as funções psicológicas nascem da atividade cerebral, mas desenvolvem-se graças às relações que o sujeito mantém com os membros de sua cultura ao longo da vida” (SOARES, 2009, p. 9).

Vygotsky posiciona-se a partir da abordagem histórico-cultural ou sociointeracionista, ou seja, o pensamento de Vygotsky gira em torno do papel fundamental da interação social no contato com os membros de um grupo cultural e social. Porém, acredita que a interação acontece de forma indireta e menciona o instrumento como mediador dessa interação. Vejamos o seguinte exemplo para melhor compreender:

É o caso, por exemplo, da criança que puxa um pano para obter o objeto que está em cima. A utilização de um instrumento caracteriza, assim, a forma inicial do desenvolvimento cognitivo, a inteligência prática atrelada à solução de um problema pontual que não envolve nenhuma previsão e que define uma fase pré-verbal do pensamento. Ao mesmo tempo, esta aparece nesse período sob forma de emissão de sons, gestos e expressões faciais que têm por função o alívio emocional ou a comunicação difusa, constituindo sua fase pré-intelectual (SOARES, 2009, p. 10)

Um dos principais conceitos trazidos por Vygotsky é conhecido por Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), que seria a capacidade de se alcançar resultados com a ajuda de outrem. No caso, os processos de elaboração do pensamento é que são compartilhados. Então, a aprendizagem é que provoca o desenvolvimento.

Ele diferencia as funções psicológicas em: Funções Psicológicas Superiores, que seriam tipicamente humanas e que podemos exemplificar como a capacidade de planejamento, a memória voluntária e a imaginação, que são ações conscientes e mecanismos da interação. Ainda, as Funções Psicológicas Elementares, que estão presentes tanto nos homens quanto nos animais, que podem ser compreendidas como as reações mais instintivas, automáticas e reflexas. Porém, Vygotsky dedica seu curto período de vida nas investigações das funções psicológicas superiores.

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UNIDADE 2 | LITERATURA SURDA NO BRASIL

FIGURA 10 – LEV VYGOTSKY

FONTE: <https://nova-escola-producao.s3.amazonaws.com/bEfDZ4fKF4EzWjTxYm CfnAQj65PpJ7hSXxgTaVrJRyGwg4tK6W2ScKdxX2yM/lev-vygotsky.jpg>. Acesso em: 3 jun. 2019.

Ainda sobre o interacionismo, vamos conhecer um pouco de Henri Wallon, que nasceu na França em 1879 e faleceu em 1962. Sua formação foi em Medicina, Filosofia e Psicologia. Wallon estudou a Psicologia Genética, a qual acaba sendo confundida com a Epistemologia Genética de Piaget. Fique ligado para não se confundir! Seu objeto de estudo foi buscar compreender a origem dos processos psicológicos humanos, e seu objeto de estudo era a criança. Para isso, utilizou os estudos antropológicos, psicopatológicos, além da neurologia, o que fez com que concebesse que os processos psicológicos se originam nas questões orgânicas (biológicas) e sociais, que teriam influência sobre o desenvolvimento psíquico (HUMANAMENTE, 2019).

Para Wallon, desde o momento em que nasce, o bebê, por sua incompletude, sua incapacidade de sobrevivência sem a ajuda de um membro mais experiente da cultura, define-se como um ser social, sendo, portanto, impossível conceber a vida psíquica sem as relações de reciprocidade entre o biológico e o social. Uma vez que é esse movimento que marcará todo o desenvolvimento cognitivo do sujeito, o entorno humano representa um lugar de significação das suas ações desde seu nascimento: seus primeiros comportamentos exprimem já o reflexo das relações, e a palavra e o dom de imaginar as coisas servem de instrumento indispensável nas relações humanas (WALLON, 1942 apud SOARES, 2009, p. 6).

Então, o exercício do pensamento ocorre através das crises e conflitos que fazem parte do desenvolvimento infantil, época em que o pensamento é descontínuo. E essa descontinuidade resulta no amadurecimento do sistema nervoso. Seus estudos consideram, sobretudo, as questões orgânicas e sociais. Para ele, a estrutura biológica é a primeira condição para que ocorram atividades psíquicas, o que significa, na sua visão, que não há psiquismo sem o componente orgânico (biológico), ou seja, a nossa mente não tem função sem estímulos recebidos a partir do meio externo. Há uma interdependência entre as questões biológicas e orgânicas para que o desenvolvimento humano ocorra.

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FIGURA 11 – HENRI WALLON

FONTE: <https://escolaeducacao.com.br/wp-content/uploads/2018/07/Henri-Wallon.png>. Acesso em: 3 jun. 2019.

A partir dos estudos feitos sobre a teoria interacionista, vejamos o estudo feito por Maria Cristina da Cunha Pereira, que analisou quatro crianças surdas durante três anos. Elas eram filhas de pais ouvintes e tinham entre 0 a 7 anos. A autora analisou gravações em vídeos em que as mães falavam oralmente com seus filhos e percebeu que todas elas utilizavam gestos, mesmo que as orientações da escola na época eram de se comunicar apenas oralmente. Analise dois exemplos que a autora traz sobre as observações feitas ao longo dos três anos:

[...] Vanessa (3;9.14) e mãe brincam com blocos de construção. Vanessa faz uma igreja com blocos de construção. Chama a mãe, sacudindo a mão em sua direção. Mãe olha.V. — aponta a igreja que fez (faz o sinal da cruz) (aponta a igreja) Mãe — Ah! A igreja? É assim (faz o sinal da cruz) Pai, Filho, Espírito Santo. V. — (meneio afirmativo com a cabeça) No exemplo, Vanessa faz gesto para se referir à igreja que construiu e a mãe interpreta os seus gestos através de uma "tradução oral" (FERNANDES, 2010, p. 125)

Perceba que a mãe estimulou a fala, mas não deixou de dar pistas visuais para a filha, o que fez com que a conversa fluísse. A criança interage com a mãe e com o meio, e, mesmo sem ouvir, consegue desenvolver o pensamento e obter avanços. A princípio, mesmo sem nos aprofundar em cada teórico, parece que encontramos um pouco de cada estudo no exemplo citado: encontramos a epistemologia genética de Piaget, que traz como principal questão a passagem de um estado de menor conhecimento para maior conhecimento, no momento em que percebemos a evolução na conversa da criança com a mãe. Percebemos a visão de Vygotsky, que diz que as funções psicológicas nascem da atividade cerebral e nas relações que o sujeito mantém com os membros de sua cultura, quando a criança faz o jogo simbólico. E, por fim, vemos uma das definições de Wallon, a nossa mente não tem função sem estímulos recebidos a partir do meio externo, quando percebemos os investimentos da mãe servindo como modelo. As abordagens interacionistas:

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Partem justamente da constatação de que a fala da criança [...] é tanto material quanto formalmente dependente da fala do outro, pode-se dizer que, mais especificamente, do Outro Materno. Em suas teorizações, há proveito [...] do fato de que a criança cita o outro (LIMA, 2014, p. 8).

Apesar de Piaget, Vygotsky e Wallon divergirem nos seus estudos, todos acreditaram na interação, ou melhor, nas interações. Ao longo dos estudos vimos que as Línguas de Sinais se difundem também nessas relações com os membros da sua própria cultura. As línguas são assim. No exemplo citado pela autora Pereira (1990), a mãe (ouvinte) teve um papel importante no desempenho da criança (surda) na conversa. Entretanto, se compararmos a criança do exemplo com a Fiorela (filha de pais surdos), podemos perceber que a interação entre eles é muito maior e constante, o que faz com que Fiorela se desenvolva linguisticamente da mesma forma que uma criança ouvinte.

A linguagem humana é muito complexa, muitos estudos são feitos acerca desse assunto. No que diz respeito à aquisição de linguagem de uma criança surda, o processo é parecido com o das demais crianças e apresentam os mesmos estágios. Segundo estudos, os estágios de aquisição de linguagem subdividem-se em períodos pré-linguístico e linguístico.

O período pré-linguístico acontece nos primeiros meses de vida, quando o bebê emite sons sem significados, os chamados “balbucios”. Porém, a partir dos três dias de nascimento esse bebê já consegue diferenciar os sons, o que influencia no seu balbucio, que passa a ter uma organização progressiva. Em torno dos dez meses, esses balbucios passam a diferenciar-se pelo fato de o bebê começar a selecionar os sons do ambiente em que está, e, gradativamente, utiliza os sons da língua a que está exposto e passa a produzir diálogos (mesmo que ininteligíveis), mas que representam os modelos das conversas sociais.

Veja como a Língua de Sinais é extremamente importante desde a tenra idade. O balbucio manual silábico é a estruturação da língua, pois quando o bebê para de balbuciar (oralmente) passa a adquirir a língua materna. Se esse bebê não tiver acesso a usuários da Língua de Sinais por perto, irá demorar muito tempo para compreender os estímulos orais. A seguir, apresentamos o estudo feito por Quadros (2008), que trata sobre os estágios da aquisição de linguagem em crianças ouvintes e surdas com a mesma idade. Apresenta três períodos linguísticos: o período pré-linguístico, o período linguístico e o período crítico. o período pré-linguístico é caracterizado pelo balbucio:

Petitto e Marentette (1991) realizaram um estudo sobre o balbucio em bebês surdos e bebês ouvintes, no mesmo período de desenvolvimento (desde o nascimento até por volta dos 14 meses de idade), e verificaram que o balbucio é um fenômeno que ocorre em todos os bebês, sejam eles surdos ou ouvintes, como fruto da capacidade inata para a linguagem. As autoras constataram que tal capacidade inata é manifestada não só através de sons, mas também por meio de gestos [...]. Nos bebês surdos, foram detectadas duas formas de balbucio manual: o silábico e a gesticulação. O balbucio silábico apresenta combinações que fazem parte do sistema fonético das línguas de sinais, e a gesticulação não apresenta

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organização interna. Os dados apresentam um desenvolvimento paralelo do balbucio oral e do balbucio manual. As autoras afirmam que os bebês surdos e os ouvintes apresentam os dois tipos até o balbucio da sua modalidade de língua [...]. As vocalizações são interrompidas nos bebês surdos assim como as produções manuais são interrompidas nos bebês ouvintes, pois o input favorece o desenvolvimento de um dos modos de balbuciar (QUADROS, 2008, p. 67).

O período linguístico aparece em três estágios, são eles:

1- Estágio de uma palavra: inicia-se aproximadamente no primeiro ano de idade, momento em que as crianças começam a produzir as primeiras palavras. Sabemos que nesta idade a criança pode utilizar uma palavra que, para ela, represente uma sentença inteira. “A palavra ‘água’ pode, portanto, significar: ‘quero água, quero tomar banho, está chovendo’” (QUADROS, 2007, p. 39). Estudos feitos por Petitto e Bellugi (1998 apud QUADROS; FINGER, 2007, p. 41) apontam que as crianças surdas com menos de dois anos, usuárias da Língua Americana de Sinais, não fazem uso de apontação, o que difere das crianças da mesma idade que adquirem a língua falada. Petitto, Bellugi (1987) e Klima (1990 apud QUADROS; FINGER, 2007, p. 41) observaram que as crianças surdas com menos de um ano, assim como as crianças ouvintes, frequentemente apontam para indicar objetos e pessoas. Mas quando elas entram no estágio de um sinal, o uso da apontação desaparece.

2- Estágio de duas palavras: ocorre por volta do segundo ano de vida. As palavras passam a ter pequenas combinações. É o momento também em que a criança começa a perceber a diferença entre o sim e o não, e o sentido das frases interrogativas.

3- Estágio das múltiplas combinações: é quando a criança dá início à classificação das palavras e utiliza-as de forma mais apropriada. E, por volta dos quatro anos, é capaz de produzir sentenças. Com a criança surda, esse estágio aparece de forma análoga. Segundo Quadros (1997 apud QUADROS, 2007, p. 42): “surgem as primeiras combinações de sinais por volta dos dois anos em crianças surdas”.

O período crítico é proposto por Lennenberg (1967 apud QUADROS, 2007). Para ele, esse período tem início por volta dos dois anos e finaliza na puberdade.

Esse período é chamado de crítico porque seria aquele mais sensível à aquisição da linguagem. O autor analisa biologicamente esse período, concluindo que o cérebro humano inicialmente tem representação bilateral das funções da linguagem e, mediante o processo de aquisição na puberdade, apenas um hemisfério se torna mais dominante, completando o período de aquisição. Caso a criança não adquira a linguagem nesse período, seu desenvolvimento linguístico será prejudicado (LENNENBERG, 1967 apud QUADROS, 2007, p. 46).

No entanto, Lennenberg não quer dizer que após esse período não seja possível adquirir a linguagem, apenas que esse é o momento em que tal aquisição estaria mais propensa a ocorrer. Inclusive, muitas crianças surdas filhas de pais surdos adquirem a Língua de Sinais tardiamente. Mas o que se percebe é que há certa lacuna em relação a algumas construções. Adquirir uma língua (nativa ou estrangeira) depende de um processo de aquisição que é natural à criança. E esse processo, em muitos casos, não acontece de forma natural naquelas famílias ouvintes que recebem um bebê surdo.

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Esperamos que, após visitar rapidamente os processos de aquisição da linguagem que ocorrem nas crianças surdas e ouvintes, você possa perceber o quão complexo é a questão da leitura e escrita para a pessoa surda. E, a partir disto, perceber o quanto a Língua de Sinais é fator determinante na literatura surda e o quanto é rica essa marca. Como percebemos, os sujeitos surdos desenvolvem-se organicamente da mesma forma que os sujeitos ouvintes desde a tenra idade. Porém, dependendo do meio em que vivem, se desenvolvem mais ou menos. A literatura que as crianças surdas recebem nas escolas de inclusão muitas vezes são literaturas fragmentadas e sem sentido, a menos que existam profissionais fluentes ou surdos adultos que façam essa mediação.

Quando uma pessoa surda se interessa pela literatura surda e começa a ver as coisas de um modo mais poético, certamente toda a estruturação do que pensa em ilustrar com suas mãos acontece de modo visual em sua mente, e, quando expõe, parece simbolicamente todo o seu sentimento através do corpo inteiro. E assim, pouco a pouco, vemos artistas surdos se sobressaindo, criando materiais para que a literatura surda vá passando de mão em mão, se estendendo pelas escolas e formando novos admiradores das literaturas de todo o gênero.

3 LÍNGUA DE SINAIS RESSIGNIFICADA NA INCLUSÃO

A Língua de Sinais proporciona a “leitura de mundo” aos surdos. Eles têm uma forma muito peculiar de entender as informações. As gírias e as metáforas, por exemplo, são entendidas de modo diferente ao nosso. Não é raro vermos situações nas quais os surdos sentem dificuldades em contextualizar a interpretação, por existirem metáforas. Nessas situações, há intérpretes que têm maior sensibilidade para utilização de estratégias de interpretação que facilitem a compreensão de tais metáforas. No quesito vida escolar, de modo especial no ambiente escolar de inclusão, a proposta pedagógica é pautada no oralismo, por ser a grande maioria ouvinte e usuária da língua portuguesa escrita. Aqui, mais uma vez, podemos refletir sobre todo o processo de aquisição de linguagem que vimos anteriormente e analisar como acontece o aprendizado desses indivíduos numa sala de aula de inclusão. O ensino da Língua Portuguesa nas escolas de inclusão acontece como ensino da primeira língua e os alunos surdos adquirem a sua segunda língua acompanhados por intérpretes de Libras. Para entrar um pouco nesse universo da sala de aula do ensino regular de inclusão, vejamos o relato de um intérprete de Libras que atuou no ensino regular inclusivo, com dois alunos surdos que cursavam a 8ª série (atual 9º ano) do Ensino Fundamental:

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“Eu cheguei para trabalhar naquele ano em uma turma de 8ª série. Era o último ano em que haveria 8ª série nas escolas municipais desta cidade. A partir do próximo ano, entraria em vigor o ensino fundamental de nove anos. Eu iria trabalhar com dois adolescentes surdos na mesma sala. Estava naturalmente nervoso. Já havia trabalhado como intérprete nos anos anteriores, em diversas séries, inclusive na 8ª série. Mas, com dois alunos ao mesmo tempo e sendo dois alunos que eu não conhecia... Soube, de antemão, que eles tiveram a mesma intérprete nos sete anos anteriores em que frequentaram esta escola. Esta intérprete saiu, com muita tristeza, porque foi chamada para outra área através de concurso. Não é de se espantar sua tristeza, pois ela gostaria de participar da formatura de 8ª série deles.

Os alunos eram um rapaz e uma moça. Ambos na faixa dos 13 e 14 anos. Ambos muito bonitos e receptivos. Percebi, aos poucos, que eles praticavam bem a Libras, mas possuíam muitas fragilidades, assim como eu. Eu sempre tive um pouco mais de dificuldade em relação à datilologia, mas tenho raciocínio rápido e me saía bem para interpretar tudo na sala de aula. Tudo mesmo. Tenho a característica de tentar interpretar tudo que acontece ao redor, todas as conversas. Acho que o surdo não deve ficar alheio ao que acontece à volta. Os professores notaram que eu, por vezes, estava interpretando mesmo quando eles não estavam explicando, ou quando algum aluno fazia alguma pergunta. Eu explicava que era para os alunos saberem o que estavam falando dentro de sala. Os alunos surdos no início estranharam isso. Estavam acostumados com a interpretação somente do que o professor falava. Mas, aos poucos, foram entrando no contexto.

Em uma dessas interpretações do que os alunos estavam falando, algumas alunas vieram conversar comigo para aprender alguns sinais. Durante a conversa, comentaram como o aluno surdo era “gatinho”. Eu interpretei isso para ele, fazendo o sinal de gato. Percebi que ele ficou com uma cara de quem não havia entendido e esperei as meninas saírem de perto. Depois perguntei se ele havia entendido o que elas queriam dizer. Ele perguntou: “Gato? Animal?” Percebi que eles não compreendiam o que era metáfora. Fiz algumas perguntas e não tive dúvidas. Conversei com a professora de língua portuguesa sobre o acontecido. Ela estava justamente começando a ensinar sobre as figuras de linguagem. São muitas figuras de linguagem. Combinamos de trabalhar com eles somente três ou quatro, focando principalmente na metáfora.

Tivemos de explicar sobre as gírias, principalmente dos adolescentes. Trabalhamos os ditos populares. Mas, maravilhoso era introduzir eles nas conversas com os demais adolescentes da turma. Ao final do ano, ambos já utilizavam metáforas: “gatinho”, “gostosa” e muitas outras. Foi um trabalho enriquecedor para todos nós, tanto que mantive contato com eles nos anos seguintes, quando eles já estavam no ensino médio. Aprendemos muito juntos”.

FONTE: Relato fornecido por Glaucio Porto da Silva, na cidade de Santa Cruz do Sul – RS, em janeiro de 2019.

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Esse intérprete narra a dificuldade encontrada junto aos alunos surdos em uma escola regular inclusiva. Os alunos já conheciam a Libras e se comunicavam satisfatoriamente, mas não possuíam uma “leitura de mundo” tão acurada. Isso acarretou em um atraso na decodificação das situações metafóricas que enfrentamos cotidianamente. Situações simples, como o elogio “gatinho”, são interpretadas erroneamente, levando a situações que beiram o tragicômico.

No depoimento, o intérprete comenta que descobriu que as famílias de ambos os alunos não mantinham conversação em Libras em suas casas, utilizavam gestos e oralidade. E ambos também não mantinham contato com outros surdos. Sua única fonte de aprendizado e contato era na escola com o intérprete. Na época, os avanços tecnológicos estavam engatinhando, portanto não teriam como manter conversações através de videochamadas ou assistir a vídeos em Libras na internet. Esse exemplo ilustra a diferença cultural entre surdos e ouvintes.

O uso da Língua Brasileira de Sinais nas escolas exige que a inclusão seja ressignificada. Ter um aluno surdo na escola vai além da simples contratação de um intérprete de Libras. Veja que, no exemplo citado, o intérprete dirigiu-se à professora para sugerir que fosse feito um trabalho diferenciado em sala, quando o olhar diferenciado deveria partir do professor. Obviamente, o interprete de Libras, por estar a todo instante com o aluno surdo, terá mais elementos e oportunidades de diagnosticar as necessidades de aprendizado desse aluno. Porém, a inclusão, para que seja eficaz, necessita instrumentalizar os professores para que possam conhecer seus alunos.

O profissional intérprete de Libras na área educacional também é um profissional em construção. E isso faz com que tanto o professor como o próprio aluno surdo não saibam com clareza qual o seu verdadeiro papel. O próprio profissional muitas vezes não sabe o que fazer em determinadas situações. Quando falamos em inclusão, falamos de uma modalidade que perpassa desde a educação infantil até o nível superior, o que nos mostra que a construção do profissional intérprete de Libras está em por todos esses caminhos, e que um dos maiores desafios desse profissional é conciliar sua atuação aos preceitos éticos. A Feneis (Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos), em 1995, quando a Língua de Sinais ainda não estava legalizada, nem mesmo a lei que regulamenta a profissão do intérprete de Libras, lançou uma obra informativa sobre o exercício da interpretação. Nessa obra encontra-se uma lista de alguns requisitos básicos para a atuação. A seguir a lista de acordo com Souza (2011, p. 173):

• Ter competência na Língua Portuguesa e na Língua Brasileira de Sinais.• Possuir pelo menos o segundo grau completo.• Ser ouvinte.• Ser membro ativo da Associação de Surdos local.• Possuir certificado expedido pela FENEIS.• Possuir alguma noção de idioma estrangeiro.• Ter noções suficientes de Linguística, comunicação e técnicas de

tradução e interpretação.• Ter contato com surdos adultos com frequência comprovada.

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• Ter disponibilidade de tempo para estar presente onde se fizer necessário.

• Ser flexível.• Ser objetivo.• Ter autodisciplina.• Profissionalismo.

Souza (2011) também apresenta o código de ética que é parte integrante do regimento Interno do Departamento Nacional de Intérpretes da FENEIS. O código possui quatro capítulos que discorrem sobre os princípios fundamentais, sobre as relações com o contratante do serviço, sobre a responsabilidade profissional e sobre as relações com os colegas. Vamos nos ater somente aos artigos 2º, 3º e 4º e ao parágrafo único, que trazem informações que pretendemos analisar mais à frente:

2º- O intérprete deve manter uma atitude imparcial durante o transcurso da interpretação, evitando interferências e opiniões próprias, a menos que seja requerido pelo grupo.

3º- O intérprete deve interpretar fielmente e com o melhor da sua habilidade, sempre transmitindo o pensamento, a interação e o espírito do palestrante. Ele deve lembrar-se dos limites da sua função e não ir além da responsabilidade.

4º- O intérprete deve reconhecer seu próprio nível de competência e ser prudente em aceitar tarefas, procurando assistência de outros intérpretes e/ou profissionais, quando necessário, especialmente em palestras técnicas.

Parágrafo único. O intérprete deve esclarecer o público no que diz respeito ao surdo sempre que possível, reconhecendo que muitos equívocos (má informação) têm surgido devido à falta de conhecimento do público sobre a área da surdez e a comunicação com o surdo (QUADROS, 2004 apud SOUZA, 2011, p. 180).

Vamos encontrar também os preceitos éticos, no ano de 2010, quando a profissão do intérprete de Libras foi regulamentada. Vamos encontrar as questões éticas:

Art.7º- O intérprete deve exercer sua profissão com rigor técnico, zelando pelos valores éticos, pelo respeito à pessoa humana e à cultura do surdo e, em especial:I- Pela honestidade e discrição, protegendo o direito de sigilo da

informação recebida.II- Pela atuação livre de preconceito de origem, raça, credo religioso,

idade, sexo ou orientação sexual ou gênero.III- Pela imparcialidade e fidelidade aos conteúdos que traduzir.IV- Pelas postura e conduta adequadas aos ambientes que frequentar

por causa do exercício profissional.V- Pela solidariedade e consciência de que o direito de expressão é um

direito social, independentemente da condição social e econômica daqueles que necessitem.

VI- Pelo conhecimento das especificidades da comunidade surda (SOUZA, 2011, p. 207).

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Perceba que nos princípios éticos a imparcialidade está presente. Porém, muitas vezes, numa sala de aula de ensino regular ou mesmo no ensino superior, o intérprete acaba não conseguindo manter a imparcialidade, pois presencia situações em que necessita de intervenção. No código de ética, o parágrafo único parece abrir brechas para que o intérprete possa intermediar essas relações.

Há uma grande diferença entre interpretar uma palestra e interpretar em sala de aula. Então, a imparcialidade quando se interpreta uma palestra é realmente necessária, pois o profissional deve ser fiel ao que o palestrante fala. Em sala de aula, essa imparcialidade vai até um determinado momento. Será fielmente interpretado o que o professor fala ao aluno ou vice-versa, porém caso o intérprete perceba que não haja compreensão em uma das partes ou que está havendo uma compreensão errônea do que se está em pauta, esse profissional acabará interferindo para que a aprendizagem não seja prejudicada.

A inclusão desejada passa necessariamente pela visão de que o aluno é um sujeito-educando, ao invés de paciente-reabilitável. Isso significa refletir e agir para além da inserção física das crianças consideradas com necessidades especiais em escolas comuns. Significa buscar entender a problemática que envolve a educação para poder inserir fundamentos filosóficos, ideológicos e pedagógicos no fazer educacional através de uma reorganização das escolas (especial e/ou regular), transformando-as em verdadeiras instituições de ensino (DORZIAT, 2009, p. 81).

Ressignificar a Língua de Sinais na inclusão significa que o sujeito surdo é compreendido e que a educação se envolve com as suas peculiaridades, para que possa se sentir parte da escola. Que a Língua de Sinais coexista e não seja somente uma língua utilizada pelo aluno surdo e o intérprete. Uma das resistências dos surdos em aceitar a inclusão é que a pessoa surda não consegue se constituir por inteiro nesses espaços por não haver falante de sua língua. “Tratar sobre a educação dos surdos sem um olhar atento sobre suas possibilidades de desenvolvimento real é continuar deixando-os à margem do processo, excluindo-os” (DORZIAT, 2009, p. 82).

FIGURA 12 – INTÉRPRETE DE LIBRAS NA ESCOLA DE INCLUSÃO

FONTE: <https://tix.life/wp-content/uploads/2018/05/Inclusao-crianca-surda.jpeg>. Acesso em: 3 jun. 2019.

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FIGURA 13 – PROFESSOR BILÍNGUE EM CLASSE ESPECIAL PARA SURDOS

FONTE: <https://www.sjc.sp.gov.br/media/30854/img_4267.jpg?anchor=center&mode= crop&width=940&height=626&rnd=131806386290000000>. Acesso em: 3 jun. 2019.

ESTUDOS FUTUROS

Caro estudante, convidamos você a ler a análise de produções escritas dos alunos surdos do ensino fundamental em uma escola de São Paulo. A pesquisadora Maria Cristina da Cunha Pereira tem vários artigos de extrema relevância para a educação dos surdos. Esperamos que a leitura desperte ainda mais seu interesse pelo tema!

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LEITURA COMPLEMENTAR

AQUISIÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA ESCRITA POR CRIANÇAS SURDAS

Maria Cristina da Cunha Pereira (DERDIC-PUCSP)

Resumo

Este trabalho tem como objetivo discutir a aquisição da Língua Portuguesa escrita por crianças surdas. Para fazer isso, a autora analisou produções escritas dos primeiros anos do ensino fundamental de uma escola para surdos em São Paulo, Brasil. Estas produções evidenciam que as crianças surdas elaboram suas hipóteses sobre a escrita num processo semelhante ao observado em crianças ouvintes. No entanto, o percurso é mais lento e nele se observam tanto estratégias semelhantes como diferentes das usadas pelas crianças ouvintes. [...]

Introdução

Por muito tempo, e até hoje para muitas pessoas, a surdez tem sido considerada a responsável pelas dificuldades que a maior parte dos Surdos apresenta no uso da língua portuguesa escrita.

É sabido que, por não terem acesso à linguagem oral, a quase totalidade das crianças surdas chega à escola com, no máximo, fragmentos da língua portuguesa. Se forem filhas de pais ouvintes, é quase certo que chegarão também sem a língua brasileira de sinais.

Visando ao aprendizado da língua portuguesa, até recentemente as escolas insistiam na oralidade, ou seja, no uso, pelos alunos, da leitura orofacial e da fala. Para isso, muito tempo era despendido em treinamento auditivo e de fala. Embora alguns alunos conseguissem atingir um nível satisfatório de recepção e de produção na comunicação, isto não era a realidade para a maioria. Outro fator que deve ser considerado ao se discutir a aquisição e uso da língua portuguesa escrita pelos alunos surdos diz respeito à concepção de língua que era adotada na escola, tanto no ensino dos ouvintes como dos surdos. Com base na concepção de linguagem como instrumento de comunicação, a língua era ensinada como um código, ou seja, um conjunto de regras que os alunos deveriam aprender como pré-requisito para usar a língua.

Visando ao aprendizado das regras da língua portuguesa, o professor iniciava a exposição dos alunos surdos a palavras e prosseguia com a utilização destas palavras em estruturas frasais, primeiramente simples e depois cada vez mais longas e morfossintaticamente mais complexas. Por meio de exercícios de substituição e de repetição, esperava-se que os alunos memorizassem as estruturas frasais trabalhadas e as usassem.

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Se, no caso dos alunos ouvintes, que chegam à escola usando a língua portuguesa oral, esta concepção produziu alunos que apresentavam muitas dificuldades na compreensão e na produção de textos, no caso dos alunos surdos, os resultados foram desanimadores. Ainda que conseguissem decodificar e codificar os símbolos gráficos, poucos eram os que conseguiam atribuir sentido ao que liam e produzir sentido na escrita.

A preocupação dos professores em ensinar a língua portuguesa aos alunos surdos levou-os a trabalharem intensivamente o vocabulário com seus alunos. Antes mesmo de verificarem o que os alunos entenderam do texto, geralmente pediam que eles sublinhassem as palavras desconhecidas, procurassem o significado delas no dicionário, após o que muitas vezes deveriam fazer frases com as palavras pesquisadas.

Com pouco conhecimento da língua portuguesa, o que se observava era o uso de frases estereotipadas, usadas de forma mecânica, nas quais se observava desorganização morfossintática acentuada, frases desestruturadas, sem elementos de ligação, flexões, entre outros elementos. Era como se os alunos aprendessem mecanicamente a língua, de fora para dentro, sem conseguirem fazer uma reflexão sobre o seu funcionamento. As dificuldades eram tão gerais que passaram a ser atribuídas à surdez. Assim, os alunos surdos foram representados como incapazes de atribuir sentido à leitura e de produzir sentido na escrita.

Além do pouco conhecimento da língua portuguesa, há que se destacar

o fato de grande parte dos alunos surdos virem de famílias ouvintes, que não usam a língua de sinais. Mesmo que eles possam compreender uma palavra ou outra, geralmente são excluídos das conversas e das situações que envolvem o uso da escrita. Como resultado, apresentam prejuízo significativo também no conhecimento de mundo.

Sabe-se que, para se tornarem leitores e escritores competentes, é fundamental que os alunos surdos, assim como os ouvintes, disponham de conhecimento de mundo e de língua, os quais vão constituir seu conhecimento prévio.

A importância do conhecimento prévio para atribuição de sentido na leitura e para a produção de sentido na escrita é defendida tanto por autores que se dedicam à leitura e à escrita por alunos ouvintes, como Kleiman (2004); Fulgêncio e Liberato (2001; 2003), entre outros, como por surdos (LANE; HOFFMEISTER; BAHAN, 1996; PEREIRA, 2005).

Lane, Hoffmeister e Bahan (1996) destacam que o conhecimento prévio de uma língua, que eles chamam de conhecimento de fundo, ajuda os alunos a criarem expectativas e a formularem hipóteses sobre os significados dos textos, a abstraírem significado de passagens de textos e não apenas de vocábulos isolados. Seguindo este princípio, para que leiam e escrevam na língua majoritária, as crianças surdas, assim como todas as outras, necessitam ter conhecimento de mundo de forma que possam recontextualizar a escrita e daí derivar sentido.

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Necessitam de conhecimento sobre a língua majoritária escrita para que possam encontrar as palavras, as estruturas das orações, assim como para criar estratégias que lhes permitam compreender os textos lidos e produzir textos.

Considerando que, de modo geral, as crianças surdas, de pais ouvintes, chegam à escola sem uma língua, cabe aos profissionais lhes propiciar a aquisição da língua brasileira de sinais, o que vai se dar na interação com surdos adultos, fluentes na língua.

A língua brasileira de sinais vai possibilitar às crianças surdas participarem de práticas discursivas e, assim, ampliarem seu conhecimento de mundo e da língua de sinais. Relativamente à aquisição da língua portuguesa, o conhecimento de mundo e de língua, elaborado na língua de sinais, vai permitir que as crianças surdas vivenciem práticas sociais que envolvem a escrita e, deste modo, constituam o conhecimento da língua.

A importância da língua de sinais para a aquisição da língua majoritária

por crianças surdas é apontada por Svartholm (1998), para quem traduzir textos e mensagens escritas na língua de sinais é uma base importante para a aprendizagem da escrita. A mesma autora (SVARTHOLM, 2003) defende a leitura como ferramenta fundamental para a constituição do conhecimento da língua majoritária. Os alunos devem ser apresentados ao maior número possível de textos e o professor deverá ser capaz não somente de “traduzi-los” para a língua de sinais e vice-versa, como também de explicar e explicitar características dos textos para as crianças. Tais explicações deveriam ser dadas em uma perspectiva construtiva, na qual as diferenças e as semelhanças entre a língua de sinais e a língua majoritária escrita seriam esclarecidas. A ideia subjacente é explicar o conteúdo dos textos e mostrar como o significado é expresso nas duas línguas. Neste ponto, chamo a atenção para a necessidade de os alunos surdos terem acesso ao material escrito, uma vez que é pela visão que eles constituirão seu conhecimento sobre a língua portuguesa.

Como para os alunos ouvintes, o objetivo do ensino da língua portuguesa escrita para os surdos deve ser promover a compreensão e a produção de textos e não de palavras e frases isoladas, daí a importância de se trabalhar muito bem o texto, inicialmente na língua brasileira de sinais. Esta prática serve como base para que os alunos formulem suas hipóteses sobre como funciona a língua portuguesa. A tarefa do professor é viabilizar o acesso do aluno surdo ao universo dos textos que circulam socialmente e ensinar a produzi-los. Desta forma, o aluno surdo poderá aprender o sistema da língua como também ampliar seu conhecimento letrado.

A ênfase no texto é compatível com a concepção de língua como atividade discursiva. Nesta concepção, o texto é visto como lugar de interação, e os interlocutores, como sujeitos ativos, que, dialogicamente, nele se constroem e são construídos (KOCH, 2001).

[...]

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TÓPICO 3 | A METÁFORA DO APRENDER A SER SURDO

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Metodologia

Para proceder à discussão, foram analisadas, neste trabalho, produções escritas de uma aluna, do ensino fundamental de uma escola para surdos em São Paulo.

A aluna, autora das produções escritas aqui apresentadas, é filha de pais ouvintes e entrou na escola, na educação infantil, com alguma linguagem, adquirida na relação com a família, mas sem a língua de sinais e sem a língua portuguesa.

Fundamentada numa abordagem bilíngue de educação de surdos, a escola para surdos onde o trabalho foi realizado tem como meta a aquisição da língua brasileira de sinais, bem como o aprendizado da língua portuguesa na modalidade escrita pelos seus alunos.

Visando à aquisição da língua brasileira de sinais, as crianças são inseridas em atividades dialógicas, na interação com adultos surdos e ouvintes, e, desta forma, adquirem-na em um processo semelhante ao observado em crianças surdas, filhas de pais surdos (PEREIRA; NAKASATO, 2002).

Toda escrita que permeia o mundo escolar da criança (bilhetes e avisos para as mães, listas de alunos, cartazes etc.) é valorizada e interpretada pelo professor na língua brasileira de sinais. Desta forma as crianças têm acesso ao conteúdo escrito na língua portuguesa por meio da língua brasileira de sinais.

Além das atividades que envolvem a leitura, as crianças são inseridas, desde o início do processo escolar, em atividades de escrita dos seus nomes, da professora e dos familiares, de rotinas diárias, do calendário e de pequenas produções com base em relatos e narrativas produzidos pelas crianças na língua brasileira de sinais e escritos na língua portuguesa pela professora, na lousa. A professora faz, assim, o papel de escriba, escrevendo em língua portuguesa o que as crianças contam na língua brasileira de sinais.

Os textos produzidos coletivamente são lidos silenciosamente e interpretados na língua brasileira de sinais, após o que as professoras propõem que as crianças elaborem uma produção escrita, sozinhas ou em dupla. Depois que escrevem, é solicitado que elas interpretem, na língua brasileira de sinais, o que escreveram e a professora registra, em língua portuguesa, a leitura na própria folha em que foi escrita a produção da criança. Esta postura permite conhecer as hipóteses elaboradas pelas crianças.

À medida em que as crianças vão se familiarizando com a língua escrita, a professora passa a promover situações em que elas escrevam sem a elaboração de um texto coletivo anterior.

Desde o início da escolaridade, os alunos são inseridos em textos de diferentes gêneros e tipos textuais nas duas línguas, a de sinais e a portuguesa e, na medida em que manifestem interesse, a professora explica diferenças e semelhanças entre as duas línguas.

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UNIDADE 2 | LITERATURA SURDA NO BRASIL

Para este trabalho foram selecionadas amostras que ilustram diferentes momentos da aquisição da língua portuguesa por uma aluna surda, filha de pais ouvintes, que entrou na escola onde está hoje, aos 3 anos de idade, na educação infantil, sem a língua brasileira de sinais e sem a língua portuguesa.

Na interação com adultos, surdos e ouvintes, usuários fluentes, ela adquiriu a língua brasileira de sinais. Como todos os alunos da escola, foi inserida, desde o início da escolarização, em práticas sociais que envolvem escrita. Atualmente está na 5ª série (6º ano) e se comunica por meio da língua de sinais e da escrita.

Análise dos dados

Exemplo 1 – 12/6/2007

Os alunos foram à cozinha da escola. Na volta, a professora solicitou que uma das crianças relatasse, na língua brasileira de sinais, o que fez na cozinha e escreveu, na lousa, o relato na língua portuguesa. Este texto foi lido, depois do que a professora solicitou que cada aluno elaborasse o seu texto sobre o texto da colega. Acabada a tarefa, cada aluno foi convidado a ler a sua produção.

Leitura da aluna

Camila foi na cozinha colhe. Camila colocou colher ela. Colher dentro da xícara.

Na produção da sua escrita, a aluna revela já ter elaborado várias hipóteses sobre a escrita. Vale lembrar que ela foi exposta a textos escritos, como rotinas, relatos de finais de semana, e de passeios e livros de histórias, ao longo de toda a educação infantil.

Em sua escrita, ela combina letras, muitas vezes obedecendo à ordem consoante-vogal e as palavras estão organizadas como num texto, uma ao lado da outra e com espaço entre elas. Algumas destas palavras aparecem na forma

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TÓPICO 3 | A METÁFORA DO APRENDER A SER SURDO

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convencional da língua portuguesa, revelando que a aluna já aprendeu a sua escrita. Trata-se, provavelmente, de fragmentos do texto coletivo que retornam no texto da aluna, às vezes na forma convencional e em outras com todas as letras, mas não na ordem esperada, como foi, que é grafada como fio. Outras palavras, no entanto, não apresentam nenhuma semelhança com a forma convencional, caracterizando-se como pseudo-palavras. Na leitura, no entanto, estas palavras ganham sentido. Cabe lembrar que a leitura para esta aluna é feita na língua brasileira de sinais.

Na escrita, a substituição da letra d por p, em dentro, escrito como pentro,

e da letra d por b, em da, escrito como ba, são marcas que evidenciam o uso da visão na elaboração, pela aluna, das hipóteses sobre a escrita.

[...]

Conclusão

Concluindo, a análise das produções escritas apresentadas neste trabalho teve como objetivo mostrar que, expostas a textos na língua portuguesa, os alunos surdos são inseridos no funcionamento linguístico-discursivo da língua, e a adquirem num processo que apresenta semelhanças e diferenças quando comparado ao de crianças ouvintes.

Relativamente às semelhanças, assim como relatado por pesquisadores que analisaram o processo de aquisição da escrita por crianças ouvintes (BORGES, 2006), a aluna, sujeito deste trabalho, combinou, nas suas primeiras produções escritas, pseudo-palavras com outras que se assemelhavam à forma convencional da língua portuguesa. Tais palavras podem ser consideradas fragmentos de textos que circulam na sala de aula. Na medida em que a aluna vai se familiarizando mais com a língua portuguesa escrita, observa-se a presença de muitos dos elementos da língua portuguesa, como flexões verbais, preposições, artigos e dos sinais de pontuação, que parecem ter resultado do contato da aluna com materiais escritos de diferentes gêneros e tipos textuais.

Quanto às diferenças, o material analisado neste trabalho permitiu constatar que, na elaboração de suas hipóteses sobre a escrita, a aluna fez uso da pista visual, o que se pode notar tanto nas substituições de letras, quanto no uso de sinais de pontuação. Além disso, há que se considerar que, diferentemente dos alunos ouvintes, que adquirem a língua portuguesa na interação com a família, os surdos, filhos de pais ouvintes, chegam à escola sem a língua brasileira de sinais e sem a língua portuguesa. Este fato ocasiona demora no processo de aquisição da escrita, resultando geralmente em produções escritas mais simples, tanto no vocabulário, quanto nas estruturas sintáticas, quando comparadas com as de alunos ouvintes de mesmo nível de escolaridade.

Como se procurou mostrar neste trabalho, a língua brasileira de sinais tem papel fundamental na aquisição da língua portuguesa escrita, uma vez que é por meio dela que as crianças surdas terão acesso ao conteúdo dos textos. No entanto,

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UNIDADE 2 | LITERATURA SURDA NO BRASIL

só a língua de sinais não basta. É imprescindível que as crianças surdas sejam expostas a textos escritos, pois é assim que serão inseridas no funcionamento linguístico-discursivo da língua portuguesa. Devido às dificuldades de acesso à linguagem oral, é pela visão que os Surdos vão adquirir a língua portuguesa, razão pela qual se deve possibilitar às crianças surdas, desde cedo, situações de leitura. É por meio da leitura que os surdos poderão adquirir a língua portuguesa.

FONTE: PEREIRA, M. C. C. da. Aquisição da Língua Portuguesa escrita por crianças surdas. In: VI SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA, 1., 2011, São Paulo. Anais... São Paulo: EDUFU, 2011. 8 p. Disponível em: http://www.ileel.ufu.br/anaisdosielp/wp-content/uploads/2014/06/volume_1_artigo_066.pdf. Acesso em: 19 jul. 2019.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• Os adultos surdos dos tempos atuais são aquelas crianças que cresceram sem ter o contato adequado com a língua portuguesa escrita, motivo pelo qual tais produções sofrem prejuízos.

• Antes de ser surdo, o sujeito é um ser com as mesmas condições orgânicas de qualquer outra pessoa.

• Para Jean Piaget, a aprendizagem é construída internamente e está ligada ao nível de desenvolvimento do sujeito. Ele acompanhou os processos de formação do pensamento de crianças e concluiu que tal formação ocorre de acordo com a ação do sujeito com o meio.

• Essas interações com o meio estruturam-se internamente no sujeito através dos processos nomeados por Piaget de “assimilação e acomodação”. Na assimilação, o meio é que sofre alteração para ser incorporado a partir do que o sujeito já conhece. Na acomodação, o que sofre alteração é o organismo.

• Piaget diz que o conhecimento acontece por meio de quatro estágios caracterizados por ele de: Sensório-Motor (ocorre entre 0 a 2 anos); Pré-Operacional (2 a 7 anos); Operatório-Concreto (7 a 11 ou 12 anos) e Operatório-Formal (a partir dos 11 ou 12 anos).

• Para Vygotsky, as funções psicológicas superiores, como a linguagem, memória e pensamento, são formas que diferem o homem dos demais animais. Utiliza uma abordagem histórico-cultural ou sociointeracionista.

• Um dos principais conceitos trazidos por Vygotsky é conhecido por Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), que seria a capacidade de se alcançar resultados com a ajuda de outrem. No caso, os processos de elaboração do pensamento são compartilhados. Então, a aprendizagem provoca o desenvolvimento.

• Wallon estudou a Psicologia Genética, a qual acaba sendo confundida com a Epistemologia Genética de Piaget. Fique ligado para não se confundir! Seu objeto de estudo foi buscar compreender a origem dos processos psicológicos humanos e seu objeto de estudo era a criança. Para isso, utilizou os estudos antropológicos, psicopatológicos, além da neurologia, o que fez com que concebesse que os processos psicológicos se originam nas questões orgânicas (biológicas) e sociais.

• A linguagem humana é muito complexa. Muitos estudos são feitos acerca desse assunto. No que diz respeito à aquisição de linguagem de uma criança surda, o processo é parecido com o das demais crianças e apresentam os mesmos estágios.

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• O uso da Língua Brasileira de Sinais nas escolas exige que a inclusão seja ressignificada. Ter um aluno surdo na escola vai além da simples contratação de um intérprete de Libras.

• A inclusão é uma modalidade que perpassa desde a educação infantil até o nível superior, o que nos mostra que a construção do profissional intérprete de Libras está por todos esses caminhos e que um dos maiores desafios desse profissional é conciliar sua atuação aos preceitos éticos.

Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar tua compreensão. Acesse o QR Code, que te levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para teu estudo.

CHAMADA

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1 “O aprendizado da língua e o aprendizado da cultura e seus valores estão intimamente ligados. Muitos surdos que não possuem instrução formal são instruídos em relação à cultura surda, portando metáforas e imagens que expressam a complexidade da língua de sinais. Chego à conclusão de que não importa o fato de o sinalizador ser ouvinte ou surdo, importa o quanto os surdos irão sentir de proximidade em relação à sinalização” (KARNOPP; KLEIN; LAZZARIN, 2011, p. 117). Partindo do pressuposto de que a Língua de Sinais deve ser ensinada por um sujeito surdo e analisando a citação, escreva a sua opinião sobre o assunto e justifique-a.

2 No que diz respeito à escrita da língua portuguesa para as pessoas surdas, você viu que ela implica significativamente na Literatura Surda, mesmo sendo marcada pela Língua de Sinais. Nesse sentido, vimos que a Língua Brasileira de Sinais (Libras) não poderá substituir a modalidade escrita da Língua Portuguesa. Em qual documento encontramos essa orientação?

a) ( ) Lei n° 10436/02.b) ( ) Decreto n° 5626/05.c) ( ) Lei n° 12.319/10.d) ( ) Código de ética – FENEIS.

3 Sobre a teoria interacionista, Jean Piaget acompanhou os processos de formação do pensamento de crianças e concluiu que tal formação ocorre de acordo com a ação do sujeito com o meio. Essas interações foram nomeadas por Piaget como processos de:

a) ( ) Assimilação e interação.b) ( ) Compreensão e interação.c) ( ) Acomodação e estruturação.d) ( ) Assimilação e Acomodação.

4 Um dos conceitos trazidos por Vygotsky é conhecido por Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP). Assinale a alternativa CORRETA que nomeia as funções psicológicas definidas por ele:

a) ( ) Funções Psicológicas Superiores e Elementares.b) ( ) Funções Psicológicas Inferiores e Superiores.c) ( ) Funções Psicológicas Elementares e Funcionais.d) ( ) Funções Psicológicas Superiores e de Desenvolvimento.

AUTOATIVIDADE

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5 Henri Wallon estudou a Psicologia Genética. Para ele, a estrutura biológica é a primeira condição para que ocorram atividades psíquicas, o que significa, na sua visão, que não há psiquismo sem o componente orgânico (biológico), ou seja, a nossa mente não tem função sem estímulos recebidos a partir do meio externo. O estudo de Wallon acaba sendo confundido com os estudos de Piaget que são sobre:

a) ( ) Psicopedagogia Genética.b) ( ) Pedagogia Genética.c) ( ) Epistemologia Genética.d) ( ) Etimologia Genética.

6 De acordo com o que você leu referente à inclusão do aluno surdo, observe as seguintes expressões:

Professores Bilíngues – Surdos e ouvintes na mesma sala – Língua portuguesa adaptada – Surdos e ouvintes em salas separadas – Língua portuguesa como segunda língua – Literatura adaptada – Intérprete de Libras – Literatura Surda.

Agora, organize as expressões nas colunas correspondentes:

Escola de ensino regular (Inclusão) Escolas especiais para surdos

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UNIDADE 3

DIFERENTES USOS DA CULTURA SURDA NA LITERATURA: A LÍNGUA DE SINAIS

ATRAVESSADA POR MARCAS CULTURAIS

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• reconhecer a cultura surda em que busca “um outro lugar e uma outra coisa”, imprimindo outras imagens e outros sentidos existentes ou determinados pela cultura ouvinte;

• saber a importância dos registros na Língua de Sinais presentes na Literatura Surda;

• referir às histórias que têm a língua de sinais, a identidade e a cultura surda incluída nas narrativas.

Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – LÍNGUA DE SINAIS COMO MARCA SURDA NA LITERATURA

TÓPICO 2 – POESIA E LÍNGUA DE SINAIS

TÓPICO 3 – LITERATURA SURDA: UM OLHAR SOB DIFERENTES POSSIBILIDADES

Preparado para ampliar teus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverás melhor as informações.

CHAMADA

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TÓPICO 1

LÍNGUA DE SINAIS COMO MARCA SURDA NA LITERATURA

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

Acadêmico, seja bem-vindo à última unidade! Certamente, ao chegar aqui, seus conhecimentos em relação à Literatura Surda se modificaram. Todavia, temos muito caminho ainda pela frente!

Nesta unidade, vamos abordar assuntos ainda mais intrigantes e complexos, que serão de extrema importância para a sua compreensão e aprofundamento nos estudos. Ao começar pelo Tópico 1, em que falaremos sobre os diferentes usos da cultura surda na literatura, esta que vem com a Língua de Sinais atravessada por marcas culturais. Veremos o quanto as narrativas surdas carregam em si a cultura e a comunidade surda, conheceremos um pouco sobre os classificadores e a sua importância no processo. As marcas impressas na alma do sujeito surdo, tanto aquelas que demonstram superação e conquistas, quanto aquelas que lembram as lutas e sofrimentos do passado, estão sempre presentes. Ainda, as pessoas que fazem parte do meio, que estão ligadas e envolvidas de alguma forma, independentemente de serem surdas ou não, também trazem experiências e vivências em prol de conquistas por espaços bilíngues e respeito a essa especificidade e entram nas narrativas por um outro viés e aparecem ora como apoiadores, ora como profissionais. Assim, convidamos você a continuar a jornada e a fazer novas descobertas ou mesmo algumas constatações acerca do assunto.

Bons estudos!

2 LITERATURA SURDA: UM OLHAR PARA AS NARRATIVAS

Um dos principais objetivos de narrar histórias é poder relembrá-las, vivenciá-las e compartilhá-las. Narrativas são representações de si que exprimem valores, qualidades e cultura, revelando a identidade de quem narra. Elas oportunizam a reinvenção da vida, é como se pudéssemos produzir novos sentimentos a partir daquilo que está impresso em nossas memórias. Vimos, ao longo dos estudos, que Literatura Surda é muito diferente de Literatura Ouvinte, alguns aspectos podem até ser comparados, entretanto, alguns diferem significativamente, como é o caso das narrativas.

Quando falamos em narrativas surdas, falamos mais especificamente da tradição de contar histórias baseadas na própria experiência surda, de relatos que foram contados em Língua de Sinais e que muitos se perderam ao longo da história,

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UNIDADE 3 | DIFERENTES USOS DA CULTURA SURDA NA LITERATURA: A LÍNGUA DE SINAIS ATRAVESSADA POR MARCAS CULTURAIS

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outros foram registrados na língua escrita e outros ainda registrados em escrita de sinais. Já quando falamos em narrativas de um modo geral, que, como já vimos no início dos estudos, não contemplamas narrativas surdas, percebemos que:

Nossa cultura reserva um largo espaço às narrativas dos mitos e lendas, a todas as narrativas cotidianas da vida familiar, passando pelas narrativas da imprensa ou dos romances literários. Além disso, existe um grande número de teorias, muito diferentes, para compreender e interpretar essas narrativas múltiplas e proteiformes. Algumas teorias devolvem-nas, outras tratam de abordá-las de um ponto de vista sociológico ou psicanalítico, outras ainda estudam as formas e as funções da gênese das narrativas pela criança etc. Algumas se interessam essencialmente pelas suas condições de recepção, outras veem essas narrativas em si mesmas. Na impossibilidade de aprender todos esses aspectos, o que enfatizar para um público de estudantes? (REUTER, 2011, p. 9).

Veja que, na citação anterior, o autor usa o termo “nossa cultura”. Perguntamo-nos: qual seria a nossa cultura? Certamente, trata-se da cultura majoritária ouvinte. Observe também que existe uma grande preocupação em quais aspectos enfatizar ao público de estudantes, por ser a narrativa um assunto muito complexo e cheio de desdobramentos. Imagine, então, abordar esses aspectos tão peculiares ao público de estudantes surdos. Felizmente, os estudantes surdos dos dias atuais já gozam das tecnologias e podem ter acesso a uma narrativa que os represente. Narrativas são narrativas, sendo surdas ou ouvintes, não vamos nos alterar nas questões gramaticais, pois apesar de a Língua Portuguesa ser a segunda língua do surdo, as inúmeras abordagens das narrativas ouvintes não se aplicam em nossos estudos.

Embora a narração tenha origem de uma experiência particular, ela torna-se parte do outro no momento em que é transmitida. Ela se reelabora e se ressignifica no momento em que é interpretada por quem a recebe. Veja que interessante: narrativas são experiências vividas por quem narra, mas quem narra, muitas vezes, menciona a experiência com o outro, incorporando experiências de outrem na sua própria história. Dessa forma, temos narrativas que são reinventadas a cada vez que são retransmitidas. Visto que a forma de interpretar uma narrativa é peculiar e diferente de indivíduo para indivíduo, assim como a forma de narrar. Há indivíduos que transmitem uma narrativa como se estivessem simplesmente transmitindo uma informação. Outros utilizam a narrativa como uma poesia ou um filme, utilizando floreios e emoções.

As narrativas fazem parte do processo de constituição dos sujeitos, que trazem em seus relatos, na maioria das vezes, as experiências relacionadas à família, à escola, as suas experiências na comunidade e sociedade. De acordo com Klein e Rosa (2011 apud MOURÃO, 2016, p. 25):

A literatura surda constitui-se das histórias que têm a Libras, as questões da identidade e da cultura surda presentes nas narrativas [...]. A literatura surda auxilia no conhecimento da língua e cultura para os surdos que ainda não têm acesso a elas. Para crianças surdas, a literatura surda é um meio de referência e também cria uma aproximação com a própria cultura e o aprendizado da sua primeira língua, facilitando na construção de sua identidade.

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TÓPICO 1 | LÍNGUA DE SINAIS COMO MARCA SURDA NA LITERATURA

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Vimos, em tópicos anteriores, o significado de leitura de mundo. As narrativas influenciam profundamente o aspecto. A narração das experiências vividas permite ao narrador perceber o mundo em sua volta e se perceber no mundo. A interação com as pessoas, com a sociedade, com a família ou até com seu animal de estimação passa por um momento de reflexão durante a narrativa. Essa reflexão, se for feita mais profundamente, pode direcionar o significado dessas experiências, determinando uma releitura dos seus atos dentro da experiência vivida na narrativa. Essa reflexão geralmente ocorre devido ao fato de que narramos para outra ou outras pessoas. Esse(s) interlocutor (es) interage (em) ou não no momento da narrativa, seja durante ou após o término. Podem ser simplesmente ouvintes ou realmente interagir. Ainda, a interação pode ser um aspecto positivo ou negativo que leva à reflexão por parte do narrador.

História de luta, de sacrifícios, vitórias. Na humilde autobiografia, quero deixar o meu registro de que tudo é possível quando se tem vontade, quando se acredita nas próprias forças, quando aceitamos a ideia materializada de que, se Deus nos “fecha uma janela”, abre-nos tantas outras portas. É seguir o caminho do bem e trilhá-lo com determinação (VIDAL, 2009, p.15).

Hoje em dia, a literatura está se expandindo por causa das produções que provocam a cultura para as pessoas. Os sujeitos que criaram as produções literárias mostram as suas experiências de vida cotidiana, histórias, relatos de superação ou dificuldades e seus sentimentos.

Os sujeitos surdos estão inseridos nas narrativas de vida bem-sucedidas. São mais referentes por causa de suas experiências vividas sentindo na sua própria pele, tendo um próprio olhar do seu mundo surdo, com as experiências dos ouvintes que convivem com eles na inclusão, que têm as suas opiniões próprias, a superação de suas dificuldades, lutam pela valorização da Língua de Sinais, da cultura surda e evitam o fechamento das escolas de surdos e outros relatos que despertam o interesse, principalmente na área de Educação, objetivando normalizar os demais. Esses sujeitos surdos produzem os livros como autoajuda para a sociedade por causa da inclusão emostram a superação dos limites.

As narrativas de crianças são muito interessantes, pois elas vão recontando suas histórias de acordo com a ampliação do seu vocabulário. Às vezes, arriscam-se utilizando novas palavras para ver se compreenderam bem seu contexto, e assim vão aperfeiçoando, revivendo e compreendendo suas próprias narrativas.

Conforme a criança surda vai adquirindo novos sinais e compreendendo seu conceito, busca, na memória, a história para recontá-la a partir do novo vocabulário. Em muitas situações, a criança buscauma narrativa vivida e já contadahá muitos anos, em uma tentativa de se fazer compreender melhor ou de mostrar que está evoluindo no processo de aprendizagem e contextualização da própria língua.

Trazemos uma pequena experiência, vivida pelas autoras, quando uma delas adota uma criança surda de nove anos, filha de pais ouvintes e com um vocabulário muito restrito. Chegou na nova família sem compreender inúmeros

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UNIDADE 3 | DIFERENTES USOS DA CULTURA SURDA NA LITERATURA: A LÍNGUA DE SINAIS ATRAVESSADA POR MARCAS CULTURAIS

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conceitos, nem os mais simples, tais como: hoje, amanhã, depois. Não tinha a menor ideia de conceitos familiares como: avó, primo, tia. Seu principal sinal utilizado na época era o sinal de “porque”. Praticamente não tinha oralização. Uma das únicas palavras que conseguia pronunciar com clareza era “mamãe”, porém não se dava conta de que pronunciava a palavra, nem mesmo o significado dela, pois chamava tudo e todos de “mamãe”. Até as galinhas que tinham na propriedade eram assim chamadas.

Aos poucos, com a nova família de pais ouvintes, porém usuários da Língua de Sinais, a criança foi desenvolvendo suas narrativas e trazendo fatos novos a cada dia, como em uma avalanche de descobertas. No início, discriminava somente o pai e a mãe, os demais personagens de suas narrativas eram todos amigos. Quando compreendeu o conceito de família, passou a narrar suas vivências, falando da avó, dos primos, vizinhos e até hoje relembra fatos, ressignificando-os.

Foi um período muito importante na vida da criança, de seus pais adotivos e da professora surda, autora deste livro que foi sua professora no Atendimento Educacional Especializado. Lembramos até hoje da menina tímida com olhar curioso, com sede de conhecimento. Para que compreendesse os advérbios de tempo foi preciso um trabalho diário, e ao deitar seus pais davam boa noite e mencionavam: “hoje você vai dormir e amanhã vai acordar e ir à escola”. No dia seguinte era trabalhado o ontem: “Bom dia, ontem você foi dormir e hoje acordou e vai para a escola”. Quando já estava escovando os dentes a frase era: “Antes eu acordei você, agora está escovando os dentes e depois vai tomar café”. Assim, sucessivamente, todos os dias.

Para os assuntos familiares, inúmeras árvores genealógicas foram desenhadas, mas o que mais fazia sentido eram as representações. Colocávamos as irmãs da família ao lado da mãe e mostrávamos: “essa é minha mãe, eu e minhas irmãs nascemos da barriga dela, por isso somos irmãs. Esse é o filho da minha irmã, nasceu da barriga dela. Ele é neto da vovó, meu sobrinho e seu primo”. Inicialmente, foi muito difícil para ela compreender como uma só pessoa podia ser tantas coisas: neto, sobrinho, primo.

Esse foi o trabalho mais árduo e até hoje às vezes causa um pouco de confusão. Houve um dia em que imaginamos estar tudo compreendido sobre as questões familiares, quando ela viu os primos (irmão e irmã) se abraçarem e perguntou se eles eram namorados. Explicamos que irmãos nem podem namorar e ela ficou surpresa com a informação.

Imagine o mundo sendo vivido somente no modo visual, sem nenhum input conceitual, foi o que essa criança viveu por nove anos de sua vida, o que interferiu relevantemente na sua constituição. A falta de comunicação poderia ter ocasionado uma deficiência intelectual adquirida na criança, uma vez que não recebia informações nem estímulos. A Língua de Sinais chegou em sua vida de modo tardio, mas mesmo assim proporcionou a ela a ressignificação de sua história e a oportunidade de aprender uma língua gestual e escrita

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TÓPICO 1 | LÍNGUA DE SINAIS COMO MARCA SURDA NA LITERATURA

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(em processo de aquisição). A importância das narrativas na vida da criança (hoje uma adolescente) vai além de um simples narrar, trata-se, sobretudo, de autoconhecimento. “As narrativas dão visibilidade para percebermos como as identidades vão se constituindo. Ao narrarmos, reforçamos nossa cultura e interpretamos quem somos, e assim podemos criar um mundo possível para pertencermos” (BRUNER, 2003 apud SANTOS, 2005, p. 32).

No sentido de busca de seus pares, acompanhe a narrativa de um intérprete que trabalhou com os dois alunos surdos, o qual já foi mencionado em tópicos anteriores. A narrativa aconteceu em uma escola municipal.

“Naquele ano, trabalhei em uma escola em que existiam três surdos nos anos iniciais do ensino fundamental, no período matutino: um no primeiro ano e dois no quarto ano. A aluna do primeiro ano era assistida por uma professora surda, que fazia um trabalho magnífico na escola. Além de trabalhar na turma de primeiro ano, ela ministrava aulas de Libras para as demais turmas, uma vez por semana, exceto na turma de quarto ano. Nesta era eu quem ensinava Libras.

Nos horários de intervalo, ficávamos eu e a professora surda, na sala de professores, junto aos demais colegas. Eu tentava interpretar para a professora as conversas ocorridas, quando achava pertinente.

Em certa ocasião, recebemos a visita de outros professores surdos, enviados pela prefeitura, para uma visitação e observação do trabalho na escola. Era um dia de reunião pedagógica, portanto não havia aula. Eram três e passaram aquela manhã toda na escola. No horário do intervalo, todos os professores foram confraternizar na sala de professores, mas nós preferimos ficar do lado de fora da sala conversando entre nós. Logicamente, em Língua de Sinais. Em certa altura, a coordenadora veio me interpelar porque não participávamos com eles na sala de professores. Porque estávamos isolados? Interpretei a queixa para os surdos. Um dos professores falou que ia fazer um teste. Foi sozinho para a sala dos professores e sentou lá. Ficou observando. Em certa altura, cutucou a coordenadora e perguntou a ela, através de gestos, sobre o que estavam falando. A coordenadora, que não tinha domínio de Libras, não soube o que fazer.

O professor voltou para o nosso círculo e continuamos a nossa conversa. A reflexão que faço é que procuramos inconscientemente nossos pares. Os professores, quando podem, querem ficar perto de outros professores e criam seus vínculos e afinidades. Os alunos também. Dentro do grupo dos alunos, são formados outros grupos: o dos excluídos, dos surdos, dos bagunceiros, dos nerds. Sempre buscamos uma afinidade sem nos darmos conta que, muitas vezes, pré-conceituamos outras pessoas sem darmos oportunidade de conhecê-las”.

FONTE: Glaucio Porto da Silva – Intérprete de Libras educacional.

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De fato, as narrativas mostram identidades formadas, bem como ajudam a construí-las. A Literatura Surda terá sempre esse olhar para as narrativas, pois a própria vem se constituindo a partir delas criando um mundo possível para pertencermos. Todos têm a necessidade de pertencer, e isso não depende da nossa vontade, é involuntário, e quando não nos sentimos pertencentes, buscamos, inconscientemente, nossos pares. A Literatura Surda é buscar pertencer, é poder “ouvir” uma história e se imaginar nela, se reconhecer, achar graça, se emocionar, sentir medo, se colocar no lugar, entender do que se está falando. Literatura é vida!

Segundo Laborit (1994, p. 9):

Um livro vai em todo lugar, passa de mão em mão, de espírito em espírito, para deixar sempre uma marca. Um livro é um meio de comunicação raramente dado aos surdos [...]. Vai me permitir dizer aquilo que sempre silenciei, tanto aos surdos como aos ouvintes.

Os livros produzidos com autores surdos podem ser considerados como testemunhos essenciais de sua vida, demonstrando as suas identidades surdas e a resistência política.

Deu para perceber a relação das temáticas com o período de publicação: os trabalhos mais antigos abordavam temas relacionados às histórias de vida, diferenças, identidades, comunidades e cultura, enquanto os mais atuais trazem temáticas como práticas pedagógicas, escrita de sinais, produções culturais com humor e literatura surda.

Outra forma de Literatura Surda é a tirinha, que “é uma das formas literárias preferidas pela comunidade surda, sobretudo devido ao seu caráter visual e menor recurso diante da língua escrita” (MORGADO, 2011, p. 22). Também temos os livros infantis para surdos, as narrativas autobiográficas de surdos e alguns clássicos adaptados e traduzidos para o sistema de escrita SignWriting.

IMPORTANTE

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TÓPICO 1 | LÍNGUA DE SINAIS COMO MARCA SURDA NA LITERATURA

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2.1 NARRATIVAS E ESCRITAS

A escrita, ou a arte, para ser mais abrangente, cumpre funções que mais nenhuma área consegue cumprir [...]. Sinto que há poucas experiências tão interessantes como quando se lê um livro e se percebe "já senti isso, mas nunca o tinha visto escrito", procurar isso, ou procurar escrever textos que façam sentir isso. Trata-se de ordenar, de esquematizar, não só sentimentos como ideias que temos de uma forma vaga, mas que entendemos melhor quando vemos em palavras. Trata-se também de construir empatia: através da leitura, ter a oportunidade de estar na pele de outras pessoas e de sentir coisas que não fazem parte da nossa vida, mas que no momento em que lemos conseguimos perceber. Na leitura e na escrita encontramo-nos todos naquilo que temos de mais humano (PEIXOTO, 2003, s. p.).

O escritor José Peixoto mostrou a importância da escrita e da narrativa para que a sociedade de hoje em dia sinta mais empatia, mais valorização do espírito empreendedor dos sujeitos, as experiências das pessoas vencedoras e a superação das pessoas com deficiência que tiveram êxitos de suas metas.

Impossível não falar em narrativas sem falar em escrita. As narrativas surdas escritas ganharam espaço, de modo significativo, nos artigos, dissertações e teses, quando esses sujeitos passaram a ingressar nos espaços acadêmicos. As conquistas acadêmicas foram frutos de muitas lutas da comunidade surda, que obteve êxito com a sanção da Lei n° 10.436/02. Muitos surdos fizeram história e são hoje grandes referências nos estudos de professores e intérpretes de Libras. Um fato recorrente em tais escritas é, muitas vezes, observado em trabalhos que são escritos no português como segunda língua, e que acabam apresentando ideias um tanto confusas para quem lê, ou que demonstram pouca coesão entre as ideias, além de um vocabulário mais simplificado.

Tratamos, no início deste livro didático, sobre a Produção Cultural de Surdos, e vimos algumas produções escritas por surdos. Você deve lembrar, e caso não lembre, visite novamente a Unidade 2, no Tópico 2. Há muitos materiais escritos por surdos e, mesmo que falem dos mais diversos assuntos, todos abordam narrativas de si e narrativas da sua construção de sujeito.

As narrativas dos sujeitos surdos publicam suas obras contando as histórias de sua vida, suas dificuldades e como foram sendo superadas, as suas lutas e sua persistência, a acessibilidade com suas possibilidades e seus recursos, a inclusão e a sua força de vontade que tornaram pessoas bem-sucedidas.

2.2 NARRATIVAS SURDAS SOBRE A COMUNIDADE SURDA

Da mesma forma que a vivência de cada indivíduo surdo aparece na narrativa, o convívio com a comunidade surda é parte também. Entende-se que as pessoas surdas, familiares ou amigos de pessoas surdas constituem a comunidade. Pessoas que estão ligadas ao sujeito surdo pelos mais variados laços e que se envolvem de alguma forma.

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UNIDADE 3 | DIFERENTES USOS DA CULTURA SURDA NA LITERATURA: A LÍNGUA DE SINAIS ATRAVESSADA POR MARCAS CULTURAIS

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Há uma grande variedade nas comunidades surdas, sendo cada grupo organizado de acordo com seus interesses: espaço geográfico, credo, raça, religião, profissãoe também as questões culturais. Para entender melhor o conceito de comunidade surda, veja o que dizem os autores americanos Paden e Humphries (2000 apud STROBEL, 2005, p. 30):

Uma comunidade surda é um grupo de pessoas que vivenum determinado local, partilha os objetivos comuns dos seus membros, e que, por diversos meios, trabalha no sentido de alcançar esses objetivos. Uma comunidade surda pode incluir pessoas que não são elas próprias surdas, mas que apoiam ativamente os objetivos da comunidade e trabalham em conjunto com pessoas surdas.

Por esse viés, torna-se possível entender o porquê de a comunidade surda estar presente nessas narrativas. Toda a narrativa envolve outrem, e os que estão em torno do sujeito surdo aparecem nela por fazerem parte da sua memória.

Muitos sujeitos vinculados às comunidades surdas notaram que essa abertura de espaço poderia ser usada para subverter a lógica normalizadora do imperativo da inclusão. O mercado consumidor incentivou o consumo e a circulação de obras da cultura e comunidade surda.

Com o processo, o objetivo é homogeneizar as diferenças, que aproveitam para mostrar o direito às diferenças, histórias de vida, poesias ou romances, políticas, identidades e culturas surdas, assim ampliaram as produções culturais de surdos que circulam em língua de sinais e em português escrito, potencializando as narrativas e escritas.

As escritas demonstram como os sujeitos surdos agem ou pensam, abordam como a comunidade surda deve conduzir as políticas, lutas, reivindicação das línguas de sinais.

[...] A intenção é instigar que o sujeito pense sobre si, que este tenha uma escrita sobre si que não seja de reprodução como ensina a escola, mas que seja uma escrita de invenção inquieta de si mesmo. “Escrita” não se refere aqui a uma escrita em português ou em qualquer outra língua, mas significa uma escrita de si, que permita o ser olhar-se em sua singularidade dentro de um coletivo, com destaque o coletivo surdo (LOPES, 2010, p. 27).

3 A NARRATIVA EM LÍNGUA DE SINAIS: UM OLHAR SOBRE CLASSIFICADORES

Analisamos o novo olhar com o uso de classificadores, citamos que o discurso narrativo é muito importante para o processo da aquisição da linguagem, que é a subjetividade do sujeito surdo. Ao narrar, a criança organiza o pensamento, os fatos que teve.

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TÓPICO 1 | LÍNGUA DE SINAIS COMO MARCA SURDA NA LITERATURA

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[...] o discurso narrativo apresenta, como tipologia, os relatos, as narrativas de ficção e os casos. Os casos são vistos como narrativas de ficção e narrativas de experiência pessoal, não havendo um compromisso com a verdade, nem tampouco com o enredo fixo (QUADROS; STUMP, 2009, p. 112).

Geraldi (1993) considera a atividade linguística como o conjunto de atividades que toma uma das características da linguagem como seu objeto: o fato de que ela pode remeter a si própria, ou seja, com a linguagem não só falamos sobre o mundo ou sobre nossa relação com as coisas, mas também falamos sobre como falamos. Como citamos anteriormente, o classificador não é um recurso da gramática de Língua de Sinais e sim a parte integrante do uso e do funcionamento dessa língua.

Os professores surdos têm o seu ponto de vista de que o classificador apresenta a importância da gramática de Língua de Sinais que o sujeito surdo fala, com quem fala e sobre o que se vê.

Segundo Felipe (2006), o classificador não pode ser confundido com características descritivas do objeto, mas podemos estar utilizando um tipo de classificação e não necessariamente um classificador na concepção linguística do termo. Os classificadores são configurações de mãos que, relacionadas à coisa, pessoa e animal, funcionam como marcadores da concordância verbal.

Narrativas surdas são feitas de muita Língua de Sinais, muitas expressões, gestos, movimentos. Imagine narrar uma história com muitos detalhes e surpresas. Quando nós (ouvintes) narramos um texto, damos vida para a nossa voz. Sussurramos, falamos alto, com agressividade, com carinho, com emoção, com manha, com mágoa, com medo. Narrativas ouvintes detalham e classificam cenas, ambientes, formas, cores e até cheiros. Com as narrativas em Língua de Sinais não é diferente, detalhes minuciosos podem ser representados através das mãos e do corpo inteiro. Expressões corporais e faciais entram em ação, assim como os classificadores, que dão vida e clareza ao que se quer expressar.

Classificadores são formas deestabelecer concordância em uma determinada língua. Quando atribuímos uma qualidade a algo, como quando queremos descrever uma forma arredondada ou quadrada, com listras ou flores, estamos utilizando um tipo de classificação porque é uma adjetivação descritiva. Existem diversos tipos de classificadores nas línguas faladas, e estudos linguísticos apontam que a Língua de Sinais possui uma classificação semelhante.

[...] Algumas partes do corpo do sinalizante vão se integrar conceitualmente com participantes do espaço do evento, representando seus atos, seus pensamentos e suas vozes. Por meio da integração conceitual, o corpo do sinalizador, ou uma parte dele, se torna, então, um sub-rogado de alguém ou de alguma coisa do espaço do evento. Sub-rogados podem ser visíveis, manifestados por parte do corpo do sinalizante, ou podem ser invisíveis. No caso, sabe-se da sua existência conceitual pelo fato de que certos sinais podem ser direcionados. Na

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condição de sub-rogado, o sinalizante pode usar expressões faciais e gestos, e pode fazer demonstrações mímicas para representar um determinado evento. É importante observar que essas demonstrações não são uma cópia direta das ações dos personagens de uma história, mas a maneira como foram conceitualizadas (e reconstruídas) pelo narrador (MCCLEARY; VIOTTI, 2011 apud CARNEIRO, 2016, p. 121).

Sub-rogado refere-se a um espaço de sinalização. Embora a citação apresente um conceito complexo, os classificadores são comumente usados por usuários da Língua de Sinais. Os autores atentam que tais demonstrações não são uma cópia direta das ações, ou seja, não são meramente mímicas. Trata-se de uma reconstrução a partir do que foi conceituado pelo narrador. Vamos ilustrar o uso de alguns classificadores para que fique mais claro. A seguir, você verá a imagem do sinal de touro, em seguida, o sinal de pessoa. Analise com atenção para passarmos ao próximo passo.

FIGURA 1 – SINAL DE TOURO EM LÍNGUA DE SINAIS BRASILEIRA

FONTE: <https://www.youtube.com/watch?v=ueAFY6C6NV0>. Acesso em: 9 mar. 2019.

FIGURA 2 – SINAL DE PESSOA EM LIBRAS

FONTE: <https://www.youtube.com/watch?v=lJZJva6eKI>. Acesso em: 9 mar. 2019.

Agora, veja a cena a seguir em que o narrador sinaliza o momento em que um touro avança em direção ao toureiro (pessoa):

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TÓPICO 1 | LÍNGUA DE SINAIS COMO MARCA SURDA NA LITERATURA

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FIGURA 3 – SINAL DE TOURO E TOUREIRO

FONTE: <https://www.youtube.com/watch?v=697SwM6U-9I>. Acesso em: 9 mar. 2019.

Perceba que o sinalizante utilizou representações de como seria o confronto entre o touro e o toureiro (no caso, pelo sinal de pessoa). Não utilizou o sinal de pessoa e touro e sim fez uma classificação do momento em que o touro avança em direção ao toureiro, utilizando seu corpo, espaço e expressão facial para detalhar a cena.

As narrativas surdas são recheadas de classificadores e é importante ter esse olhar de que a Língua de Sinais possui tal recurso. Muitos classificadores não têm como ser nomeados, tal como é o sinal propriamente dito. Podemos visualizar um sinal em Libras e nomeá-lo como fizemos antes, com os sinais de touro e pessoa. Porém, a partir do momento que o sinalizante utiliza um classificador, ele passará a ser uma representação que pode ser nomeada de acordo com o contexto narrado. A descrição da cena poderia ser: “o touro avança na direção do toureiro”, ou seja, descrevemos a representação da cena e não nomeamos apenas os sinais feitos com cada mão.

A seguir, veremos outro exemplo, o sinal do objeto “bola” e o classificador do objeto:

FIGURA 4 – SINAL DE BOLA

FONTE: Pimenta e Quadros (2006, s. p.)

FIGURA 5 – CLASSIFICADOR DE BOLA

FONTE: Pimenta e Quadros (2006, s. p.)

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UNIDADE 3 | DIFERENTES USOS DA CULTURA SURDA NA LITERATURA: A LÍNGUA DE SINAIS ATRAVESSADA POR MARCAS CULTURAIS

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Acadêmico, a seguir, apresentaremos ideias e dicas de contação de histórias para crianças surdas e ouvintes bilíngues. Para contar histórias aos alunos surdos e ouvintes bilíngues, na sala de aula, utilize recursos visuais e, ao longo da narrativa, observe se as crianças usam as suas expressões de admiração, medo, riso etc. Utilize objetos: bonecos, bichos, carrinhos, casinhas e outros materiais de sua ideia. Ao terminar, peça aos alunos que desenhem a história e, então, procure perceber, no desenho da criança surda, os detalhes das cores, dos tamanhos e, sobretudo, dos sentimentos que se evidenciam no texto: medo, maldade, alegre etc.,apresentando para seus colegas. Podemos utilizar os kits de contação de histórias: avental de histórias, saco e caixa de histórias... usando a sua criatividade. No YouTube, há vários vídeos que contam histórias em Libras, que podem auxiliar em vários momentos, vejamos os vídeos das Mãos Aventureiras e do Portal da TV INES Contação de Histórias:

DICAS

Os exemplos mostram que podemos adaptar as histórias existentes das literaturas brasileira e mundial e adaptá-las para a cultura surda. Em 1843, o dinamarquês Hans Christian Andersen publicou um panfleto de contos, um deles O Patinho Feio, tradução de Den Grimme Aelling. No ano de 2005, Karnopp e Rosa publicaram o conto Patinho Surdo, todo ilustrado em preto e branco.

O conto narra a história de um casal surdo que fazia parte de um bando de patos que migrou para a Lagoa dos Patos, onde o casal preparou o ninho para a pata botar os ovos, protegendo dos predadores. Em certa época ela foi passear, quando sentiu cólicas e ali mesmo botou um ovo em outro ninho. Para a surpresa da pata, o ninho era de um cisne ouvinte e ficava gritando em sinais que havia perdido um ovo.

Olívia não quer ser princesa de Ian Falconer (São Paulo: Editora Globo, 2014)

A casa assombrada de Kazuno Kohara (São Paulo: Cosac Naify, 2010)

Conheça a história escrita por Ana Maria Machado sobre um porquinho muito esperto e guloso Camilão, o Comião

O livro escrito por Karolina Cordeiro e ilustrado por Jótah trata sobre o poder da imaginação e da criatividade aos olhos de Pedroca. Um menino muito especial que encara, de uma maneira nada convencional, a forma como enxerga o mundo a sua volta: Pedroca, o menino que sabia voar.

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TÓPICO 1 | LÍNGUA DE SINAIS COMO MARCA SURDA NA LITERATURA

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Com o passar do tempo, os outros ovos que ali estavam foram se quebrando e o cisne estava fazendo a guarda do ninho. Os cisnes foram nascendo e dizendo “oi”, porém, ainda faltava o último ovo. Depois nasceu o patinho surdo no meio dos pequenos cisnes, sendo cumprimentado pela mamãe cisne e ele não respondeu. De repente, o patinho sinalizou um “oi” para a mamãe e o papai.

Com o passar dos dias, os outros filhotes eram ensinados pelos pais a cantar. Por não conseguir fazer o mesmo, o patinho surdo foi passear pela lagoa e questionava por que era tão diferente dos seus irmãos, dando conta de que não pertencia ao espaço. Daí prosseguiu a jornada, quando ele encontrou uma família de patos surdos conversando em sinais, quando começou a se comunicar com o grupo na Língua de Sinais da Lagoa.

Ao voltar para seu primeiro lar, ficou em dúvida se pertencia ao grupo de cisnes ou de patos. No outro dia, foi novamente encontrar os novos amigos acolhedores. Para mediar a conversa entre as duas famílias (patos e cisnes), foi sendo interpretada a fala para a mãe cisne, e assim, tudo ficou esclarecido e todos seguiram felizes em seu trajeto (ROSA; KARNOPP, 2005).

FIGURA 6 – CAPA DO LIVRO PATINHO SURDO

FONTE: <https://3.bp.blogspot.com/-qJ4g4x72Eh8/V2GRwsJC-TI/AAAAAAAAAMM/oJxJPCQtN1EJpFiI9bXu3AFjccm2MBaxwCLcB/s1600/Patinho-Surdo-frente.jpg>.

Acesso em: 29 out. 2019.

Como percebemos, há distinções entre a versão clássica e o conto do Patinho Surdo:

1- Na história tradicional fica a diferença física (“patinho”, “feio”) e no conto adaptado há a vivência dos surdos e as diferenças linguísticas (“patinho”, “surdo”).

2- Como o “Patinho Feio” sofreu muitas humilhações e dificuldades, percebeu seu real valor. Já na versão da história do Patinho Surdo a criança surda assegura que sua identidade surda seja preservada e respeitada.

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RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico, você aprendeu que:

• As narrativas são representações de si que exprimem valores, qualidades e culturas, revelando, assim, a identidade de quem narra. Elas oportunizam a reinvenção da vida, é como se pudéssemos produzir novos sentimentos a partir daquilo que está impresso em nossas memórias.

• Felizmente, os estudantes surdos dos dias atuais já gozam das tecnologias e podem ter acesso às narrativas que os representam.

• As narrativas fazem parte do processo de constituição dos sujeitos, que trazem, em seus relatos, na maioria das vezes, as experiências relacionadas à família, à escola, as suas experiências na comunidade e sociedade.

• As conquistas acadêmicas foram frutos de muitas lutas da comunidade surda, que obteve êxito com a sanção da Lei n° 10.436/02. Muitos surdos fizeram história e são, hoje, grandes referências nos estudos de professores e intérpretes de Libras.

• Aspessoas surdas, familiares ou amigos de pessoas surdas são os que constituem a comunidade surda. Pessoas que estão ligadas ao sujeito surdo pelos mais variados laços e que se envolvem de alguma forma.

• Classificadores são formas de ser estabelecida concordância em uma determinada língua. Quando atribuímos uma qualidade a algo, como quando queremos descrever uma forma arredondada ou quadrada, com listras ou flores. Estamos utilizando um tipo de classificação porque é uma adjetivação descritiva.

• Os professores surdos têm, em seu ponto de vista, que o classificador apresenta a importância da gramática da Língua de Sinais.

• As narrativas surdas são recheadas de classificadores e é importante ter esse olhar de que a Língua de Sinais possui tal recurso.

• Os livros produzidos com autores surdos podem ser considerados como testemunhos essenciais de sua vida, demonstrando as suas identidades surdas e a resistência política.

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1 De acordo com Reuter (2011, s. p.), “nossa cultura reserva um largo espaço às narrativas dos mitos e lendas – antigos e modernos –, a todas as narrativas cotidianas da vida familiar, passando pelas narrativas da imprensa ou dos romances literários”. Analisando a realidade do sujeito surdo no que diz respeito à literatura majoritária, responda:

a) A Cultura Surda está inserida na “Nossa Cultura” a que se refere o autor? Justifique.

b) As narrativas surdas passam pelas narrativas da imprensa ou dos romances literários? Explique sua resposta.

2 As narrativas surdas escritas ganharam espaço, de modo significativo, nos artigos, dissertações e teses, quando esses sujeitos passaram a ingressar nos espaços acadêmicos. Retomando o que você já leu sobre a escrita do sujeito surdo, assinale de que forma esses trabalhos acadêmicos são escritos:

a) ( ) Pelo próprio surdo sem necessidade de transcrição para o Português formal.b) ( ) Pelo próprio surdo, com a devida revisão e transcrição para o Português

formal.c) ( ) Pelo intérprete de Libras.d) ( ) Por um familiar ou amigo ouvinte.

3 Você viu que há uma grande variedade nas comunidades surdas, sendo cada grupo organizado de acordo com seus interesses, espaço geográfico, credo, raça, religião, profissão. Sobre Comunidade Surda, é correto afirmar que:

a) ( ) Comunidades surdas são constituídas somente por pessoas surdas.b) ( ) Comunidades surdas são constituídas apenas pelos surdos e seus

familiares.c) ( ) Pessoas surdas, familiares ou amigos de pessoas surdas constituem a

Comunidade surda.d) ( ) Pessoas ouvintes, familiares ou amigos de pessoas ouvintes que constituem

a Comunidade Surda.

AUTOATIVIDADE

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TÓPICO 2

POESIA E LÍNGUA DE SINAIS

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

Acadêmico, chegamos ao Tópico 2! Estamos evoluindo e quase chegando ao final dos nossos estudos! Neste tópico, vamos apresentar os assuntos que são essenciais para os seus conhecimentos. A poesia em Língua de Sinais criada por pessoas surdas e a Literatura Gestual, como os sujeitos surdos de outros países produzem a sua língua através da literatura. Ainda, as pessoas surdas que vivem em um ambiente bilíngue e multicultural, que possuem uma identidade e cultura muito complexas por viverem no seu mundo de uma maneira muito peculiar. O povo surdo também partilha as suas experiências vividas com um sentimento que sai de dentro para fora, poetizando pelo mundo afora!

Ainda neste tópico, você verá, na prática, um pouco da escrita dos surdos, pois eu mesma, autora surda, arrisco-me aqui a escrever sozinha, sem o auxílio da intérprete de libras, que escreve este livro didático comigo. Perceba que, em alguns momentos, minha escrita não segue os padrões da norma culta, por se tratar da minha segunda língua. Os demais tópicos foram ajustados às regras gramaticais.

Aproveitem a preciosa leitura!

2 POESIA EM LÍNGUA DE SINAIS: TRAÇOS DA IDENTIDADE SURDA

Relembrando um pouco de tudo que já vimos, a literatura surda trouxe as vivências através de gerações dos povos surdos, que provaram entre si as suas experiências sentindo na própria pele suas batalhas, lutas, dificuldades ou vitórias. Das opressões ouvintes, dos fracassos, da valorização de sua Língua de Sinais à construção das identidades e cultura surda.

A literatura surda é estabelecida em diversos gêneros: fábulas, contos, piadas, história dos surdos, romance, lendas, poesias etc. Vamos abordar, neste tópico, o gênero “poesia da literatura surda”. Meu caro leitor, vamos mergulhar no assunto?

Segundo o americano surdo Dr. Glenn Andersson (1992 apud JUSTUS, 2019, p. 68 grifo nosso), as “[...] pessoas surdas de talento já tentaram criar poesia ou humor em língua de sinais. Essas inovações culturais aconteceram em muitos países. O recente Deaf Way Festival, na Universidade Gallaudet, provou claramente

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UNIDADE 3 | DIFERENTES USOS DA CULTURA SURDA NA LITERATURA: A LÍNGUA DE SINAIS ATRAVESSADA POR MARCAS CULTURAIS

que a língua de sinais funciona como um enriquecimento cultural ideal”. O povo surdo tem perfeitas condições em ser poeta e possui talento. Eles expressam o seu mundo por meios visuais, e através de experiências que trazem de dentro de si.

Sugerimos que você assista aos poemas a seguir:

Bandeira Brasileira

Poema Meus Ouvidos Não Podem Ouvir - Setembro Azul

O pintor de A a Z (História com o alfabeto sinalizado)

Árvore de Natal com Fernanda Machado

Poemas na ASL (A – Z)

Videoclipe Cow and Rooster (O boi e o galo) by Annalee Laird em ASL (Língua de Sinais Americana)

Videoclipe Tears of life (Lágrimas da Vida) by Clayton Valli

A poesia em Língua de Sinais explora os recursos linguísticos da língua para efeitos estéticos. Os poemas fazem uma quebra, fogem do padrão da linguagem utilizada no cotidiano. Os poemas geralmente podem estar mais próximos ou mais distantes do uso da Língua de Sinais no dia a dia, tornando as formas linguísticas mais criativas. Há o uso criativo de configurações de mão, movimentos, locações e expressões não manuais.

Aproveitamos para mostrar um trecho da entrevista com a poeta surda Fernanda Machado:

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TÓPICO 2 | POESIA E LÍNGUA DE SINAIS

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Qual a importância da cultura para a Comunidade Surda?O desenvolvimento da Cultura Surda é importante, pois através da expressão temos o desenvolvimento da identidade surda, que é a forma como os surdos se enxergam socialmente, têm sua experiência visual, e apreendem o mundo através da sua identidade, expressando-se através da Libras – Língua Brasileira de Sinais, tendo esta como sua língua materna e possibilitando a inserção social do surdo.

Como é o sentimento que a poesia surda traz?As experiências do surdo são através de sua perspectiva visual, explorando, assim, sua expressividade, corporalidade. Os surdos, por exemplo, podem explorar toda essa expressividade através de seu ritmo, repetição, simetria ou assimetria, metáforas, tudo isso respeitando a estrutura sintática da Libras, compondo as estrofes através das expressões faciais presentes na Libras.

Como esse tipo de poesia é divulgado?Diversas empresas já trabalham com a publicação de poesias surdas, por exemplo, a LSB Vídeo, que publica as poesias em formato de DVD. São publicadas também em palcos de festivais de Cultura Surda, Congressos e em ferramentas tecnológicas como o Youtube, que hoje já tem algumas das poesias publicadas.

Quais os grandes nomes da poesia em Libras?Temos alguns poetas famosos como Nelson Pimenta, que foi um dos precursores na questão teatral, produção de poesias, narrativas e outros materiais produzidos por ele. O próprio já teve oportunidade de levar nossas produções para vários eventos mundiais. Outra grande influência vem da poeta Ella Mae Lentz, dos Estados Unidos, e de Ben Bahan, em questões mais literárias. Essas são as principais referências mundiais e o Nelson é a referência nacional.

Uma poesia traduzida para Libras pode ser considerada uma poesia em Libras?O principal fator que marca uma Poesia Surda é ela ser formulada diretamente em Libras, não passando pelo processo tradutório, pois quando a poesia é produzida diretamente em Libras ela tem os elementos que citamos na primeira resposta e que são inerentes aos surdos. Os intérpretes ouvintes não partilham dessas percepções.

FONTE: <http://cotidiano.sites.ufsc.br/cultura-surda-conheca-a-poesia-em-libras/>. Acesso em: 25 jul. 2019.

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UNIDADE 3 | DIFERENTES USOS DA CULTURA SURDA NA LITERATURA: A LÍNGUA DE SINAIS ATRAVESSADA POR MARCAS CULTURAIS

DICAS

Acadêmico, assista ao vídeo da poeta surda Fernanda Machado, Poesia Surda, na íntegra em: https://www.youtube.com/watch?v=dDw2WSqIS8k.

A seguir, apresentamos a tradução da poesia, feita por Marilyn Mafra Klamt e Valdemir Klant:

Voo sobre Rio de Fernanda Machado

O astro distante: terra.I(gotícula de terra viaja na ponta do dedo)O planeta de percorrer com as mãos: terra.(o tamanho da terra quando polegar e dedosse encontram grávidos no espaço)O chão coberto de terra(mãos de embalar um ser frágil)e a névoa anuncia o dia.O corpaço da ave voa.Voa no espaço ao longe.Sobrevoa o Corcovado,em envergaduraIIO de corpaço busca.A de corpóreo sorri, se enfeita.Ela espia, gira o corpo de vergonha.Ele não compreende.Põe-se esbelto, ele dirige a vista e investe.Ela não nota, não se vira.Ele fala no dorso; ela não vira as costas.Nada sucede, apenas a dúvida.Nova tentativa; nova falha.O de corpaço conclui com assombro:— É surda! Como eu! É surda! Como eu!O toque e ela vira sem demora.Os olhares são de pressa.Ela gira o corpo de vergonha e sorri.O corpaço e a corpóreo se entendem.— Você é surdo?— Sim. Sim.Olhares namoram.IIIA ave e a ave se beijam; sorriem os olhos.Ele dá mimo de migalha: ela refestela.Ele abocanha o naco, aprecia: presente dela.Ela esvai, assim envaidecida.

Tocam-se, se enroscam.Beijam-se em movimento de gangorra.Se enroscam em retrato de quase um.Mas as cabeças se chocam.Ela sente dor; há mais carinho.Mais beijos de gangorra.Mas é hora da partida.Ela contempla o horizonte.Ele tem receio: desacredita.Um último olhar, o encarar.É tempo de partir.IVVoa ao longe.Voa a ave corpórea.Voa ao longe.Sobrevoa os andarilhosno calçadão de ondas negras e brancas.Voa ao longe.O corpaço da ave voa.Voa no espaço ao longe.Sobrevoa o Pão de Açúcar.Voa no espaço ao longe.O corpaço da ave voa.Voa ao longe.Voa de asas abertascomo os braços do Redentor em cruz,sobrevoa a cidade.Sobrevoa, a ave, o Corcovado.Voa ao longe.Voa a ave corcovada.A névoa anuncia o diasobre o chão coberto de terra.É planeta incorpóreode percorrer com as mãos: terra.O astro distante: terra e umaVia-Láctea pra correr.(adeus).

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TÓPICO 2 | POESIA E LÍNGUA DE SINAIS

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A poesia em Língua de Sinais é constituída de elementos da identidade surda, de conhecimentos e poder tanto do povo surdo como do povo ouvinte, dos movimentos de resistência surda, ideologias e discursos hegemônicos, que transparecem em vários poemas sinalizados. O espaço escolar, na maioria das vezes, é o primeiro local onde a criança terá contato com a poesia. Por isso, a educação bilíngue, educação pensada para surdos é o espaço ideal para que sejam vinculados os elementos essenciais e para que o sujeito surdo possa ter um ambiente inspirador, que lhe permita assistir e apresentar poesias sinalizadas, espaço de lazer e estudo linguístico onde seja desenvolvida a paixão, além das emoções, ideias mais complexas e as metáforas que são sempre um tabu para os surdos.

A poesia sinalizada abre a mente das crianças ou estudantes surdos para o letramento, poisaprendem a associar através da escrita ou sinalização, produzindo suas próprias poesias sinalizadas, expressando as suas emoções, adquirindo confiança através das interações sociais e linguísticas, vindo da própria expressão, ampliando seus conhecimentos e habilidades em língua de sinais. Esse processo permite o empoderamento dos povos surdos, pois os poemas retratam a experiência das pessoas surdasque têm o prazer e o entretenimento proporcionados através da poesia. O prazer é algo essencial que a poesia em língua de sinais proporciona e que precisa ser considerado nos estudos linguísticos. Esse empoderamento pode acontecer pelo uso da língua ou da expressão de várias ideias e significados que se inspiram pela instrução, pela celebração ou pela inspiração.

Segundo o autor Ladd (2003 apud QUADROS; SUTTON-SPENCE, 2006, p. 114), “[...] utilizando a língua de sinais criativamente e como uma forma de arte, é um ato de empoderamento em si mesmo para um grupo linguístico minoritário oprimido”. Por isso, as pessoas surdas se defenderam pelo oralismo com as línguas faladas, tais como o inglês ou o português, línguas usadas para padrões da sociedade como um status. Ainda, “a sinalização surda” era inferior e era usada apenas para a conversação social.

Portanto, as pessoas ouvintes e surdas consideram a poesia como um gênero que deveria ser usado na língua falada, por causa do seu status.

Nas décadas de 60 e 70, nos Estados Unidos, ocorreram mudanças sociais que geraram registros poéticos, chamando a atenção para a realidade, com a criação do “orgulho surdo” e o reconhecimento das línguas de sinais e do trabalho dos poetas pioneiros das línguas de sinais, espalhando-se por outros países. As pessoas surdas aprenderam umas com as outras e começaram a explorar o potencial de suas próprias línguas de sinais como um meio de produção artística e o orgulho da sua própria língua.

A ausência do som faz com que as pessoas surdas vivenciem outras experiências sensoriais, as quais estão presentes nos poemas em língua de sinais. Segundo as autoras Quadros e Sutton-Spence (2006, s. p.):

[...] tem lugar muito pequeno nessas poesias e é raro encontrar um poema na língua de sinais que foque em qualquer sentido. Portanto, a visão mais importante das pessoas surdas é o sentido da vida, pelas experiências próprias e a existência visual delas.

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UNIDADE 3 | DIFERENTES USOS DA CULTURA SURDA NA LITERATURA: A LÍNGUA DE SINAIS ATRAVESSADA POR MARCAS CULTURAIS

A seguir, veremos o livro e a poesia da autora surda Emiliana Faria Rosa:

FIGURA 7 – BORBOLETAS POÉTICAS

FONTE: <https://letrasdeoficina.files.wordpress.com/2017/08/img_20170817_200458.jpg>. Acesso em: 25 jul. 2019.

Eu queria tanto te escrever,Mas as palavras fogem...Lá vai um E correndo, segurem-no!Não adiantou, a pequena letra se atirouNo vazio do espaço entre a mesa e o chão.Espatifou-se??Não.Havia um alfabeto inteiro à espera (ROSA, 2017, p. 74).

A autora escreveu no prefácio do livro:

Sobre ser surda? Sim, sou surda. Bilíngue, ou seja, tenho duas línguas: a Libras (Língua Brasileira de Sinais) e o português. Sortuda, eu... Duas línguas para ser, viver, criar. O português é minha língua de escrita, a Libras é minha língua de liberdade.E borboletas? Também. Eu aprendi a gostar quando percebi que sou, somos borboletas. Ficamos nos casulos da vida até estarmos prontos para voar... As poesias me acompanharam a cada lugar que fui. Lugares, pessoas, vivências, tudo isso passava do sentir para o papel. As poesias, que neste livro estão, são eu. Há um pedacinho de mim em cada uma delas. E, talvez, de você. Quem sabe. Agora vá, leitor, siga as borboletas. Voe! (ROSA, 2017, s. p.).

A poesia em Língua de Sinais possui uma forte ligação com o poeta surdo, já que ela reflete sua identidade e espelha seus sentimentos (MORGADO, 2011). No contexto da poesia, slam é um termo primeiramente usado nos Estados Unidos para designar uma competição em que poetas apresentam trabalhos originais perante o público.Além de usarem apenas material próprio, os participantes não podem usar objetos de cena nem ter acompanhamento musical.

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TÓPICO 2 | POESIA E LÍNGUA DE SINAIS

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No Brasil, há alguns anos acontecem os chamados “slams do corpo”, competições de poesia realizadas em Libras. Em 2014, o coletivo corpo sinalizante, que três anos antes havia começado a estudar as relações entre a Língua Brasileira de Sinais e a poesia, promoveu um evento em São Paulo. Em 27 de maio de 2018, acontece o primeiro “slam de surdos e ouvintes” do país. O encontro juntou participantes que se comunicam em Libras e em Língua Portuguesa. “O principal fator que marca uma poesia surda é ela ser formulada diretamente em Libras, não passando pelo processo tradutório”, explicou a professora Fernanda de Araújo Machado, do Departamento de Libras e Artes da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), em entrevista ao site da instituição. De acordo com a professora, é assim que ela carrega elementos inerentes aos surdos, relacionados à perspectiva visual e não ao “grafocentrismo” de quem não é surdo.

A expressividade e a corporalidade são aspectos fundamentais em determinado tipo de poesia. Para Machado (apud ROCHA 2018, s. p.), esses aspectos podem ser explorados “através de seu ritmo, repetição, simetria ou assimetria, metáforas, tudo isso respeitando a estrutura sintática da Libras, compondo as estrofes através das expressões faciais presentes na Libras”. Muitos poetas surdos preferem que não se traduza seu trabalho para uma língua falada. “A beleza se perde”, explicou Douglas Ridloff, apresentador do ASL Slam, ao Huffington Post. “Pense em música. Se uma canção tivesse suas letras removidas, mas a melodia ficasse, o clima ainda estia lá, mas algo se perdeu. Ou se a melodia é removida, mas as letras permanecem, às vezes, a canção perde o sentido”.

Acadêmicos, caso tenham interesse, este é o link com a matéria completa:https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/05/21/Como-s%C3%A3o-os-encontros-de-poesia-em-l%C3%ADnguas-de-sinais.

DICAS

DICAS

FONTE: <https://www.youtube.com/watch?v=qsugxMw51cM>. Acesso em: 26 jul. 2019.

Aproveitamos para sugerir também que você conheça o slam dos surdos:

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UNIDADE 3 | DIFERENTES USOS DA CULTURA SURDA NA LITERATURA: A LÍNGUA DE SINAIS ATRAVESSADA POR MARCAS CULTURAIS

3 LITERATURA EM LÍNGUA GESTUAL

Diferentemente da literatura majoritária, cuja preocupação estética está em combinar palavras e vocábulos que enfeitam e decoram a poesia através de rimas e combinações, para os surdos, os gestos artísticos é que compõem essaestética. As palavras do texto são substituídas por enunciados gestuais. A literatura escrita dos livros é muito importante para a criança surda, por se tratar da sua segunda língua e é através do estímulo daprimeira língua que se pode dar sentido à segunda. Assim, a criança surda conseguirá desenvolver através da escrita e sinalização. “[...] A literatura é uma fonte rica para desenvolver as competências linguísticas da criança” (MORGADO, 2011, p. 160).

Vamos conhecer um pouquinho do trabalho de Marta Morgado, autora portuguesa, ilustradora e escritora surda da literatura surda infantil. Em sua produção bibliográfica existem outros livros, mas Morgado é uma autora surda que se destaca em seu país por serautora de suas próprias histórias.

FIGURA 8 – LIVROS DE LITERATURA SURDA DA MARTA MORGADO

<https://www.editorarealize.com.br/revistas/enlije/trabalhos/TRABALHO_EV063_MD1_SA16_ID1277_10082016113031.pdf>. Acesso em: 29 out. 2019.

Karnopp (2010, p. 161) cita que “a literatura surda faz parte das histórias que têm a língua de sinais, a identidade e a cultura surda presentes na narrativa”. Segundo Karnopp (2006), a literatura surda é a produção de textos literários em sinais. Traduz a experiência visual, entende a surdez como presença de algo e não como falta, possibilitando outras representações de surdos, considerando as pessoas surdas como um grupo linguístico e cultural diferente.

Morgado (2011, p. 21) afirma que “a Literatura Surda não tem que ser contada exclusivamente em língua de sinais, pode ser escrita, desde que o tema seja sobre surdos”. Nesse ponto de vista, o livro Luanda Lua se insere numa proposta bilíngue, porque disponibiliza duas versões, sendo uma em língua portuguesa escrita e a outra em Língua Gestual Portuguesa (LGP), no DVD que acompanha o livro impresso. O DVD em língua de sinais segue uma proposta baseada na educação dos surdos porque viabiliza o acesso da criança surda a sua língua materna, sendo, de preferência, a vivência e a aprendizagem estimuladas pelo contato com a comunidade surda. Seu desenvolvimento na sua primeira língua (L1) é considerado fundamental para o aprendizado da segunda língua (L2).

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TÓPICO 2 | POESIA E LÍNGUA DE SINAIS

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Os adultos surdos fluentes em Língua de Sinais são os modelos essenciais na vida da criança, esta que desenvolverá a sua competência, qualificando a sua língua e sendo estimulada a pensar, a refletir, a ter autonomia e a ser independente para expressar os sentimentos.

O contador de histórias é, preferencialmente, um adulto surdo, por ter a sua visão mais ampla e diferente dos ouvintes, por ter a sua identidade surda e a experiência de ser surdo. O humor e a poesia são as produções próprias dos surdos. Mostram as experiências que tiveram, as barreiras que passaram com o tempo, o jeito deperceber as coisas e a questão visual muito ampliada.

A autora deste livro tem com experiência ser mãe de uma criança surda de 11 anos e comprova que apresentou os livros desde pequena à criança. Ela contava a história do Patinho Feio e quando terminava de contar pedia para a criança narrar com as imagens do livro, foi contando aos poucos e hoje a criança tem habilidade de narrar as histórias, de aumentar o vocabulário da Língua Portuguesa, de ter autoestima, de conseguir refletir, de sentir suas emoções e ter autonomia.

IMPORTANTE

De acordo com o autor Azevedo (2006 apud MORGADO, 2013, p. 329), há a importância da qualidade na literatura, da forma como é contada, como é transmitida e estruturada, além da estética, que expressa uma história, um conto, um poema ou um relato. Sem essa arte, a literatura fica empobrecida e o desenvolvimento da criança pode ficar prejudicado.

Por isso, para qualificar a literatura, seria essencial que os adultos surdos estivessem preparados para transmitir as histórias para as crianças surdas. Assim, ajudam as crianças a terem interação social, estimulando o raciocínio, a participação escolar, o mercado de trabalho, a comunidade e a cidadania, construindo o seu ser e seu caráter visual.

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RESUMO DO TÓPICO 2

,

• A literatura surda trouxe as vivências através de gerações do povo surdo.

• O povo surdo tem suas vantagens de ser poeta por talento. Este expressa o seu mundo por meios visuais, experiências e dentro dele possui a cultura surda completamente forte e ao mesmo tempo permanece valorizada.

• A poesia para se referir a qualquer poesia em língua de sinais – seja traduzida ou escrita em língua de sinais.

• A poesia sinalizada abre a mente das crianças ou estudantes para o letramento, de uma forma que eles aprendem a associar através da escrita ou sinalização.

• O empoderamento dos povos surdos acontece a partir do momento em que os poemas retratam a experiência das pessoas surdas e têm o prazer e o entretenimento proporcionados pela poesia.

• A experiência sensorial das pessoas surdas, sem a presença do som, é muito usada nos poemas em língua de sinais.

• A Literatura Surda não tem que ser contada em língua de sinais, pode ser escrita, desde que o tema seja sobre surdos.

• Os adultos surdos fluentes em língua de sinais, para narração da literatura, são os modelos essenciais na vida da criança.

• A literatura surda ajuda as crianças a terem interação social, estimula o raciocínio, a participação escolar, o mercado de trabalho, a comunidade e a cidadania, construindo o seu ser caráter visual.

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AUTOATIVIDADE

1 Por que os sujeitos surdos produzem poesias em língua de sinais?

2 O que é empoderamento surdo?

3 A Literatura Surda ajuda as crianças surdas? Explique.

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TÓPICO 3

LITERATURA SURDA: UM OLHAR SOB DIFERENTES POSSIBILIDADES

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

Vamos refletir um pouco sobre a literatura infantil, uma concepção de infância que precisa ter atenção, formação e educação responsáveis pelos adultos. A importância de entender as representações sobre os surdos presentes em todos os artefatos culturais contemporâneos como os filmes. A seguir, vamos entender como são narrados os filmes para os surdos e a educação de surdos no cinema e, também, os desafios da tradução e interpretação da literatura ouvinte. Desafio? Veremos adiante! Você, nosso leitor, finalmente está concluindo a Unidade 3 com muitos conhecimentos adquiridos.

Bons estudos!

2 LITERATURA INFANTIL DO SÉCULO XXI

“A literatura diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mundo por nós mesmos e isso se dá porque a literatura é uma experiência a ser realizada, pois uma leitura literária nunca será a mesma: o leitor sempre terá algo a ressignificar” (SILVA; SILVEIRA, 2013, p. 95). A literatura nos determina e por ela somos incentivados a expressar sobre o mundo que nos cerca. Há, também, a dificuldade de conceituar literatura, uma arte de palavras e seus sentidos a serem sentidos e silêncios da vida.

Chamaremos de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático, em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos de folclore, lenda, até as formas mais complexas e difíceis de produção das grandes civilizações (CANDIDO, 2004, p. 174). Como os autores citam que a literatura é algo que tem várias produções literárias, incluindo as culturas de um povo, é importante incluir principalmente o povo surdo, pois as produções são minorias.

Sobre a literatura para crianças e as práticas pedagógicas, Silveira, Silveira e Bonin (2011) comprovam que a escola tem o papel e a responsabilidade de introduzir as crianças no mundo letrado, proporcionando as experiências de leitura e acesso aos livros. Colomer (1999) salienta que a literatura tem a função de estabelecer o acesso ao imaginário compartilhado por uma sociedade, ampliando o domínio da linguagem através das formas narrativas, poéticas e dramáticas.

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UNIDADE 3 | DIFERENTES USOS DA CULTURA SURDA NA LITERATURA: A LÍNGUA DE SINAIS ATRAVESSADA POR MARCAS CULTURAIS

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Vinculamos a educação literária na área dos surdos, além de uma prática de decodificação de textos literários, que é um recurso para o ensino de conteúdos escolares ou para ensino de apenas palavras e frases. Sobre a questão linguística, é relevante articularmos a educação literária ao contexto em que ela está inserida, considerando a cultura do aluno. Importante mencionar o conceito de cultura surda, segundo Perlin (2004, p. 76): “conhece-se e compreende-se a cultura surda como uma questão de diferença, um espaço que exige posições que dão uma visão do lugar, da diferença, da alteridade, da identidade”. Ao considerar a prática pedagógica na educação dos surdos, o professor necessita reconhecer as crianças surdas, a sua cultura e identidade surda, seu histórico, desenvolvimento social e outras dimensões para que, assim, possam ser encaixados os conhecimentos.

Na sociedade contemporânea, a escola se responsabiliza por incentivas as crianças com experiências de leitura, gosto pelas leituras, acesso a vários livros de literatura. Por isso, as escolas se tornaram uma espécie de indicação de títulos dos livros, discursos pedagógicos e sociais ampliados sobre a diversidade e a diferença, produzidos em políticas educacionais. É preciso falar, debater sobre a diversidade, com temas que compõem as diferenças étnicas, etárias, de classe social ou deficiências, por isso, a escola é como um campo que difunde a informação em geral.

Magnani (2001, p. 104) afirma que a literatura é “levar em conta que se lida com o todo de um texto: o que, como, quando, quem, onde, por que, para que, para quem se diz. É nessa unidade que o leitor se movimenta quando lê”. Portanto, a literatura é essencial para a nossa vida, com o estímulo de leitura e escrita e também de socializar com os demais com seus conhecimentos adquiridos.

Morgado (2011) afirma que a literatura não serve só para desenvolver a leitura e a escrita, mas serve para desenvolver competências sociais, o raciocínio crítico e a percepção de mundo. Além disso, “a literatura constitui um processo ativo, cognitivo e afetivo de construção de significados a partir de um texto que envolva raciocínios complexos” (MORGADO, 2011, p. 155).

É através da leitura que “se conhecem e aprendem os conteúdos de ensino.É pela leitura que se conhece e aprende, portanto, também a literatura” (MAGNANI, 2001, p.104). Vamos compreender a literatura como um artefato artístico e não podemos reduzi-la a um objeto restrito ao desenvolvimento de conteúdos das grades curriculares, pois ela amplia as possibilidades de aprendizagem.

Em geral, na escola, a escolha de um texto para ser contado tem quase sempre o poder de determinar o conteúdo a ser estudado. Todavia, quando a história é contada em função de instaurar um espaço lúdico, ela pode gerar um outro tipo de expectativa: não mais a da cobrança, mas a do encantamento (SISTO, 2018). A história contada pode chamar a atenção das crianças, que é uma arte que diverte, educa e desperta a criança para o lado ético e há possibilidades de criar um espaço lúdico e o encantamento pela leitura.

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TÓPICO 3 | LITERATURA SURDA: UM OLHAR SOB DIFERENTES POSSIBILIDADES

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Referimos que o ensino da literatura é como uma prática cultural, vamos ao cenário da educação de surdos:

A literatura é porta para variados mundos que nascem das várias leituras que dela se fazem. Os mundos que ela cria não se desfazem na última página do livro, na última frase da canção, na última fala da representação nem na última tela do hipertexto. Permanecem no leitor, incorporados como vivência, marcos da história de leitura de cada um (LAJOLO, 2001, p. 450).

Assim, como afirma Silva (2008, p. 44), “cabe ao professor despertar, na criança, o poder que a leitura e a escrita têm, ensinar que, por meio delas, podemos alargar o conhecimento sobre nós mesmos e sobre o mundo em que vivemos”. Essa literatura se desenvolve como uma prática cultural, uma experiência a ser vivida. Esse conceito se associa à experiência, de conhecimento de si, do outro e da própria língua. “[...] No exercício da literatura, podemos ser outros, podemos viver como os outros, podemos romper os limites do tempo e do espaço de nossa experiência e, ainda assim, podemos ser nós mesmos” (COSSON, 2007, p. 17).

Ressaltamos o que o autor Machado (2002) comenta: que as lembranças infantis ficam nítidas em nossas mentes e que elas perduram. Ele chama a atenção do contato que tivemos com a literatura na infância e na adolescência, formando uma parte maisligada das nossas bagagens cultural e afetiva.

Na educação de surdos, a educação literária destina e media com a educação em geral, porque a literatura infantil é como um artefato artístico e estético e apropriado o olhar crítico e atento que poderão ser adaptados ou traduzidos para os surdos. O autor José (2007) assegura que, pela palavra falada e pelo poder da narrativa, estimulamos a educação dialógica, lírica, poética e lúdica. Essas características que são tão necessárias para a formação humana.

Há estudos que investigaram as representações de surdo e surdez nas literaturas infantil e juvenil no Brasil, buscando os livros que se referem ao tema de surdez ou protagonistas surdos. As obras que existem mostram as preocupações que existem, como a visão clínica da surdez, como os aparelhos de surdez, implantes cocleares, que os surdos são vistos como “deficientes”, corrigidos através de médicos que normalizam estimulando a oralização, a leitura labial e a adaptação ao mundo dos ouvintes.

A abordagem da comunidade surda mostra uma cultura surda espalhando-se em toda a comunidade, ampliando o seu sentido e definindo que a cultura dos surdos é o uso de Língua de Sinais, pois essas pessoas surdas têm a sua experiência de mundo mais visual, independente de sons. Ao entrar na cultura surda, como Perlin (2004, p. 73) afirma, “deve haver conhecimento da experiência do ser surdo com toda a transformação que o acompanha. As transformações são acompanhadas por situações vivenciadas e partilhadas, mas desconhecidas pelas comunidades ouvintes”.

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UNIDADE 3 | DIFERENTES USOS DA CULTURA SURDA NA LITERATURA: A LÍNGUA DE SINAIS ATRAVESSADA POR MARCAS CULTURAIS

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Vamos mostrar um exemplo do livro O Feijãozinho Surdo, da autora Liège Kuchenbecker. Com 32 páginas coloridas, relata a história de um feijãozinho que nasce surdo, os pais dele são ouvintes. O livro contém um pequeno texto em Língua Portuguesa e em SignWriting, que é um sistema de escrita para escrever as línguas de sinais. Essa escrita pode ser registrada em qualquer língua de sinais do mundo, sem passar pela tradução da língua falada e as tradutoras para a escrita SignWriting são surdas.

O livro é conectado com a experiência profissional da autora, cultivado em sala de aula, regado por sinais, textos e imagens, disponível na mesa de crianças brasileiras. Dessa mistura, professora e alunos, surgiu O Feijãozinho Surdo, livro que contribui na formação de uma biblioteca que registra o cotidiano de crianças surdas: seus desafios, suas conquistas e perplexidades. Liège cria a história de surdos brasileiros, embalados em um produto tipicamente nacional. Um livro tão fecundo quanto as experiências escolares de professoras e alunos surdos. Erika e Ana Paula traduzem a história para a escrita da língua de sinais. Por se caracterizar como um material bilíngue, Erika produz a história em Libras.

O Feijãozinho Surdo, em várias linguagens, alimenta, sinaliza, germina e cresce em nosso cotidiano. Feijão para ser lido! (KARNOPP, 2009 apud KUCHENBECKER, 2009, s. p.).

FIGURA 9 – O FEIJÃOZINHO SURDO

FONTE: <https://images-na.ssl-images-amazon.com/images/I/51M4UjaJaIL._SY354_BO1,204,203,200_.jpg>. Acesso em: 26 jul. 2019.

Esse livro mostra que é que os pais ouvintes colocariam o Feijãozinho em uma escola inclusiva (ouvintes e intérpretes) ou em uma escola para surdos (surdos e professores com domínio de Língua de Sinais) para o melhor desenvolvimento do seu filho. Mostra, ainda, a valorização e o reconhecimento da Língua de Sinais, a inexistência de compor como surdinho, surdo-mudo, deficiente auditivo, sobre as escolas que a família escolhe para o bem do seu filho, os espaços para a discussão sobre a área de Educação dos Surdos e as lutas que o povo surdo está realizando para o reconhecimento de sua cultura.

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TÓPICO 3 | LITERATURA SURDA: UM OLHAR SOB DIFERENTES POSSIBILIDADES

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Acreditamos que a literatura nos mostra a visão da criança que precisa ser ajudada para tirar das dúvidas, incertezas, dos sofrimentos, das ambiguidades e dos dilemas que serão convertidos em harmonia, sorrisos, sonhos, autonomia, independência e muita alegria com a descoberta do mundo literário.

3 POSSIBILIDADES DE LEITURA DA DIFERENÇA SURDA NO CINEMA

Como são narradas as pessoas surdas e a educação de surdos no cinema? Em relação à constituição das identidades surdas, como se representam? O cinema nunca foi silencioso, apesar de ser mudo. Este é muito importante para a comunidade surda pois, em uma época, permitiu o registro da língua de sinais. O oralismo era dominante e sua criação está muito ligada à terapia da fala pelos oralistas no século XIX.

Na educação dos surdos, a principal resistência é por causa do oralismo e devido à proibição de língua de sinais, à prevenção. As crianças surdas se escondiam no banheiro da escola oralista para sinalizarem.Assim, surgiu o cinema, que assumiu o registro da Língua de Sinais. Por exemplo, a Associação Nacional dos Surdos nos Estados Unidos (National Association of theDeaf – NAD) patrocinou um projeto para filmar e também preservar a língua de sinais para as futuras gerações.

Nos anos 1910 e 1921 foram produzidos doze filmes com registros de poemas, palestras e memórias com a participação de homens e mulheres surdos considerados grandes contadores de histórias. Na França, em 1875, León Vaisse, que era diretor do Instituto de Surdos de Paris, soube do trabalho do médico Étienne-Jules Marey, que apresentou uma série de equipamentos para registrar a imagem em movimento. Uma parceria foi criada, e Marey e seu assistente Demeny desenvolveram vários experimentos, incluindo o método que foi utilizado na oralização de alunos surdos do instituto para captação dos movimentos da fala.

Bem, as exibições do cinema mudo não eram nada silenciosas. Os exibidores acrescentavam apresentadores ao vivo, música e até efeitos sonoros. A partir do ano de 1907, atores ficavam atrás da tela nos grandes cinemas americanos e interpretavam todas as vozes dos filmes. Em 1909, os diretores modificaram os intertítulos para aproximá-los dos diálogos, chamando-os de “títulos falados”. Até mesmo os espectadores ficavam automaticamente buscando uma linguagem verbal nos filmes, lendo os lábios dos atores e até percebendo palavras em inglês vindas de personagens que deveriam ser estrangeiros (NORNES, 2007, s. p.).

Portanto, o cinema mudo era muito popular entre os surdos, pois era uma forma de entretenimento. Eles podiam participar como os ouvintes, não por causa da falta de som, e sim pela presença dos intertítulos que os filmes mudos tinham.Orientações visuaisque os atores usavam eram as expressões corporal e facial. Os surdos não ficavam como espectadores, mas muitos eram atores de cinema.

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UNIDADE 3 | DIFERENTES USOS DA CULTURA SURDA NA LITERATURA: A LÍNGUA DE SINAIS ATRAVESSADA POR MARCAS CULTURAIS

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Um dos atores surdos do Cinema Mudo que tiveram o melhor destaque foram o pintor impressionista surdo Granville Redmond, que trabalhou em sete filmes com Charles Chaplin, foi assim que se tornou ator. A amizade entre eles perdurou a vida toda. Chaplin construiu um ateliê no estúdio para que Redmond pintasse entre as gravações e contavam que ele se refugiava nesse espaço em procura de silêncio e ficava horas vendo o amigo pintar. Ele teria dito sobre Redmond em uma entrevista: “Redmond pinta a solidão, e ainda por algum estranho paradoxo a solidão nunca é isolamento. Às vezes, eu acho que o silêncio em que vive desenvolveu nele uma grande capacidade de felicidade que nos falta” (LANG; MEATH-LANG, 1995, s. p.).

Chaplin aprendeu técnicas de mímica e língua de sinais com o amigo pintor. Em 1927, a chegada do som no cinema teve um grande impacto na comunidade surda, pois os filmes foram ficando cada vez mais centrados na voz e, com o fim dos intertítulos, infelizmente o público surdo acabou se afastando das exibições. Para os atores surdos, as consequências foram ainda mais devastadoras.As pessoas importantes consideravam o cinema mudo um espaço em que sua arte era tão ou mais valorizada que a dos ouvintes.

Durante toda a década de 30, Chaplin fazia cinema mudo e acreditava que o cinema era uma arte pantomímica. Seus filmes dessa época não continham diálogos (vozes), mas apresentavam trilha musical e alguns efeitos sonoros.

Bauman (2008, s. p.) afirma que “não há outro meio linguístico que fala ao mesmo tempo com a vivacidade da pintura e com a mobilidade dos sons do que as línguas de sinais, que funcionam muito como um filme”. É um meio de descrever as línguas de sinais através de fonologia, morfologia, sintaxe, é claro, também de ver oscineastas sinalizadores como fluentes, que é uma habilidade incentivada nos literários e dramáticos da Língua de Sinais. Então, na última década, o cinema surdo teve uma explosão de festivais e produções. Alguns afirmam ser filmes que retratam fielmente a cultura surda, outros que são filmes realizados por artistas surdos e outros, ainda, os definem pela exclusividade da Língua de Sinais (CHRISTIE; DURR; WILKENS, 2006). Estes autores concordavam que a existência de um cinema surdo ajudaria muito para transformação de como o sujeito surdo é visto pelos ouvintes para evitar o audismo.

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IMPORTANTE

Vamos citar o nome dos filmes em debate:

FIGURA – AMY: UMA VIDA PELAS CRIANÇAS FIGURA – TIN MAN: VOZES DO SILÊNCIO

FONTE: <http://twixar.me/p0fT>. Acesso em: 29 out. 2019.

FONTE: <http://twixar.me/t0fT>. Acesso em: 29 out. 2019.

FIGURA – FILHOS DO SILÊNCIO FIGURA – LÁGRIMAS DO SILÊNCIO

FONTE: <http://twixar.me/gDfT>. Acesso em: 29 out. 2019

FONTE: <http://redutovhs.blogspot.com/2013/05/>. Acesso em: 29 out. 2019.

FIGURA – GESTOS DE AMOR FIGURA – MR. HOLLAND: ADORÁVEL PROFESSOR

FONTE: <http://twixar.me/NDfT>. Acesso em: 29 out. 2019.

FONTE: <http://twixar.me/CDfT>. Acesso em: 29 out. 2019.

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FIGURA – A MÚSICA E O SILÊNCIO FIGURA – SOM E FÚRIA

FONTE: <http://twixar.me/KFfT>. Acesso em: 29 out. 2019.

FONTE: <https://www.imdb.com/title/tt0240912/>. Acesso em: 29 out. 2019.

Acadêmico! Neste momento, vamos conhecer algumas iniciativas de produções para atendimento da comunidade surda.A primeira iniciativa, considerada pioneira, leva uma programação diferenciada para o cinema em nossa capital nacional, Brasília:

IMPORTANTE

Na ausência do som, reside a importância específica do fator visual na construção de linguagem de um grupo por trás da organização da 1ª Mostra Surdo Cinema, exibida a partir de hoje, com entrada franca, no Cine Brasília (EQS 106/107). Em oficinas, desde agosto passado, com exames de roteiro, direção, figurinos, direção de arte, alunos surdos tomaram as rédeas do fazer artístico. Quatro curtas compõem a mostra.

FONTE:<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2019/03/30/interna_cidadesdf,746307/com-producao-feita-por-surdos-mostra-estreia-no-cine-brasilia.shtml>. Acesso em: 26 jul. 2019.

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TÓPICO 3 | LITERATURA SURDA: UM OLHAR SOB DIFERENTES POSSIBILIDADES

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Criado em 2017, o cineclube vem construindo um acervo de filmes em línguas de sinais inglesa, francesa e em libras, que é a língua de sinais brasileira, sempre com tradução ou legendagem para o português.

FONTE:<https://seculodiario.com.br/public/jornal/materia/projeto-promove-cinema-e-poesia-para-a-comunidade-surda>. Acesso em: 26 jul. 2019.

O longa retrata a trajetória da escritora que trabalhou como doceira durante quase toda sua vida, publicando seu primeiro livro aos 75 anos de idade e se consagrando como um dos maiores nomes da literatura brasileira de sua geração. O filme venceu o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro 2018 na categoria Melhor Documentário pelo voto popular.

FONTE:<https://flaviochaves.com.br/2018/10/13/cine-surdo-exibe-documentario-sobre-cora-coralina/>. Acesso em: 26 jul. 2019.

4 DESAFIOS DA TRADUÇÃO E INTERPRETAÇÃO DA LITERATURA OUVINTE PARA A LÍNGUA DE SINAIS

A função do profissional tradutor/intérprete de Libras é se ocupar com contextos diferentes. O seu trabalho é amplo, pois é a comunicação dos surdos. As instituições de ensino apresentam umas das áreas que os tradutores/intérpretes mais atuam no exercício da profissão e também a presença deles em conferências, seminários, na realização de traduções escritas e acompanhamento dos surdos.

Quadros (2007, p. 7) salienta que o conceito de tradutor/intérprete de Libras é “a pessoa que interpreta de uma dada língua de sinais para outra língua, ou desta outra língua para uma determinada língua de sinais”. Em todo o processo, o profissional deve envolver sua prática,sua interpretação de língua de sinais para língua oral e vice-versa, apresentando as suas modalidades, competências e habilidades.

O profissional que domina as línguas envolvidas e compreende as ideias nos discursos além das palavras que em uma atividade de tradução/interpretação, dentro dela tem a gramática das línguas está a cultura, os aspectos sociais e emocionais presentes no contexto a ser interpretado.

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[…] o trabalho de interpretação não pode ser visto, apenas, como um trabalho linguístico. É necessário que sejam consideradas as esferas cultural e social nas quais o discurso está sendo enunciado, sendo, portanto, fundamental, mais do que conhecer a gramática da língua, conhecer o funcionamento dos diferentes usos da linguagem nas diferentes esferas da atividade humana. Interpretar envolve conhecimento de mundo, este que, mobilizado pela cadeia enunciativa, contribui para a compreensão do que foi dito. Além disso, como dizer na língua-alvo, saber perceber os sentidos (múltiplos) expressos nos discursos (LACERDA, 2009, p. 21).

O profissional que envolve técnicas, procedimentos e conhecimentos específicos e as competências comunicativa e tradutória. Afirma Neves (1998 apud SOUZA, 2011, s. p.):

A competência gramatical ou linguística se atém ao código linguístico das estruturas e regras de pronúncia. O objetivo é o da acuidade na expressão e na compreensão. A competência sociolinguística considera o papel dos falantes no contexto da situação e a sua escolha de registro e estilo. A competência discursiva considera as questões da coesão e da coerência relevantes no determinado contexto. Ainda, a competência estratégica considera que não há falantes e ouvintes ideais, sendo necessário, portanto, que se faça o uso de estratégias de comunicações verbais ou não verbais para que sejam compensadas as quebras de comunicação.

A interpretação simultânea é uma clássica nas interpretações das línguas de sinais. Quadros (2007) complementa que o processo que o intérprete se submete é complexo e que está diante de um processamento de informação simultânea. A sugestão que a autora vai apresentar são as propostas de modelos no ato da tradução e interpretação: cognitivo, interativo, interpretativo, comunicativo, sociolinguístico, o processo de interpretação e o bilíngue/bicultural, condensados da seguinte maneira:

• Ênfase no significado e não nas palavras.• Cultura e contexto são os papéis muito importantes em qualquer mensagem.• Tempo é considerado o problema crítico como o exemplo quando alguém exerce

uma atividade em tempo real que tem processos mentais de curto e longo prazos.• Interpretação adequada é definida em termos de como a mensagem original é

retida e passada para o alvo da língua e também examinando a reação da audiência.

As atribuições do tradutor/intérprete e da sua presença em sala de aula serão garantidas o surdo com o direito de acesso aos conteúdos curriculares em língua de sinais, este profissional é mediador dos discursos pelo professor regente através dos conteúdos das disciplinas e também de outras coisas referentes ao tema discutido. O profissional tradutor/intérprete deve possuir as habilidades e competências para que possa ter uma tradução bem coerente e contextualizada. Conteúdos de disciplinas, como Ciências, Biologia, Física e Química, que possuem as palavras específicas, algumas delas não possuem o sinal em Libras pois dependendo do nível de vocabulário de acordo com os textos traduzidos/interpretados em sala de aula sobre temas diversos. Então, na sala de aula, o

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tradutor/intérprete de Libras acerta alguns sinais com os alunos surdos, combinando os sinais que tem a cada palavra para que possam facilitar a interpretação sem desvantagem e também usa a datilologia como um empréstimo da língua portuguesa usando as imagens para representar as palavras sem sinais.

Assim ajuda o profissional tradutor/intérprete para um melhor desempenho e também para a autonomia do surdo nos momentos de pesquisa. Os profissionais adotam o glossário em Libras como uma ferramenta fundamental, lembrando que para a sua produção colocando os sinais próprios de sua variação regional respeitando a comunidade surda. Ao criar os novos sinais tem que ser de preferencialmente alunos surdos, tradutores/intérpretes de Libras e profissionais das áreas específicas, para desenvolver a ampliação do léxico na língua.

Acadêmico, é importante termos o conhecimento da Lei n° 12.319, de 2010. A seguir, faremos a leitura:

LEI Nº 12.319, DE 1º DE SETEMBRO DE 2010.

Regulamenta a profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1° Esta Lei regulamenta o exercício da profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS.

Art. 2° O tradutor e intérprete terá competência para realizar interpretação das 2 (duas) línguas de maneira simultânea ou consecutiva e proficiência em tradução e interpretação da Libras e da Língua Portuguesa.

Art. 3° (VETADO)

Art. 4° A formação profissional do tradutor e intérprete de Libras - Língua Portuguesa, em nível médio, deve ser realizada por meio de:

I- cursos de educação profissional reconhecidos pelo Sistema que os credenciou;

II- cursos de extensão universitária; e III- cursos de formação continuada promovidos por instituições de ensino

superior e instituições credenciadas por Secretarias de Educação. Parágrafo único. A formação de tradutor e intérprete de Libras pode

ser realizada por organizações da sociedade civil representativas da comunidade surda, desde que o certificado seja convalidado por uma das instituições referidas no inciso III.

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UNIDADE 3 | DIFERENTES USOS DA CULTURA SURDA NA LITERATURA: A LÍNGUA DE SINAIS ATRAVESSADA POR MARCAS CULTURAIS

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Art. 5° Até o dia 22 de dezembro de 2015, a União, diretamente ou por intermédio de credenciadas, promoverá, anualmente, exame nacional de proficiência em Tradução e Interpretação de Libras - Língua Portuguesa.

Parágrafo único. O exame de proficiência em Tradução e Interpretação de Libras - Língua Portuguesa deve ser realizado por banca examinadora de amplo conhecimento dessa função, constituída por docentes surdos, linguistas e tradutores e intérpretes de Libras de instituições de educação superior.

Art. 6° São atribuições do tradutor e intérprete, no exercício de suas competências:

I- efetuar comunicação entre surdos e ouvintes, surdos e surdos, surdos e surdos-cegos, surdos-cegos e ouvintes, por meio da Libras para a língua oral e vice-versa;

II- interpretar, em Língua Brasileira de Sinais - Língua Portuguesa, as atividades didático-pedagógicas e culturais desenvolvidas nas instituições de ensino nos níveis fundamental, médio e superior, de forma a viabilizar o acesso aos conteúdos curriculares;

III- atuar nos processos seletivos para cursos na instituição de ensino e nos concursos públicos;

IV- atuar no apoio à acessibilidade aos serviços e às atividades-fim das instituições de ensino e repartições públicas; e

V- prestar seus serviços em depoimentos em juízo, em órgãos administrativos ou policiais.

Art. 7° O intérprete deve exercer sua profissão com rigor técnico, zelando pelos valores éticos a ela inerentes, pelo respeito à pessoa humana e à cultura do surdo e, em especial:

I- pela honestidade e discrição, protegendo o direito de sigilo da informação recebida;

II- pela atuação livre de preconceito de origem, raça, credo religioso, idade, sexo ou orientação sexual ou gênero;

III- pela imparcialidade e fidelidade aos conteúdos que lhe couber traduzir; IV- pelas postura e conduta adequadas aos ambientes que frequentar por

causa do exercício profissional; V- pela solidariedade e consciência de que o direito de expressão é um direito

social, independentemente da condição social e econômica daqueles que dele necessitem;

VI- pelo conhecimento das especificidades da comunidade surda.

Art. 8° (VETADO) Art. 9° (VETADO) Art. 10. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

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TÓPICO 3 | LITERATURA SURDA: UM OLHAR SOB DIFERENTES POSSIBILIDADES

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Brasília, 1º de setembro de 2010; 189° da Independência e 122° da República. LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto Fernando Haddad Carlos Lupi Paulo de Tarso Vanucchi

FONTE: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12319.htm>. Acesso em: 26 jul. 2019.

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UNIDADE 3 | DIFERENTES USOS DA CULTURA SURDA NA LITERATURA: A LÍNGUA DE SINAIS ATRAVESSADA POR MARCAS CULTURAIS

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LEITURA COMPLEMENTAR

SOBRE A ATUAÇÃO DO TRADUTOR E INTÉRPRETE DE LIBRAS E LÍNGUA PORTUGUESA EM PRODUÇÕES AUDIOVISUAIS

TELEVISIVAS OU VIRTUAIS

A Norma Brasileira (NBR) 15.2901 aprovada e publicada pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) apresenta orientações sobre atuação do tradutor e do intérprete de Libras e do uso da “janela de Libras” no que tange à captação, edição e exibição. De acordo com esta norma, existem procedimentos que devem ser respeitados e executados para a qualidade da apresentação do texto em Libras e para a garantia da acessibilidade das pessoas surdas que fazem uso deste recurso.

Em relação à captação da imagem do tradutor ou do intérprete de Libras em estúdio, a norma prevê no item 7.1.1:

a) espaço suficiente para que o intérprete não fique colado ao fundo, evitando desta forma o aparecimento de sombras;

b) iluminação suficiente e adequada para que a câmera de vídeo possa captar, com qualidade, o intérprete e o fundo;

c) câmera de vídeo apoiada ou fixada sobre tripé fixo; d) marcação no solo para delimitar o espaço de movimentação do intérprete.

Ainda sobre à captação do tradutor ou do intérprete de Libras, a norma orienta em 7.1.2 que:

a) os contrastes devem ser nítidos, quer em cores, quer em preto e branco; b) deve haver contraste entre o pano de fundo e os elementos do intérprete; c) o foco deve abranger toda a movimentação e gesticulação do intérprete; d) a iluminação adequada deve evitar o aparecimento de sombras nos olhos e/ou

seu ofuscamento.

No que diz respeito à edição da janela, a norma orienta, no item 7.1.3 que o recorte ou o wipe deve respeitar os seguintes parâmetros:

a) a altura da janela deve ser no mínimo metade da altura da tela do televisor; b) a largura da janela deve ocupar no mínimo a quarta parte da largura da tela do

televisor; c) sempre que possível, o recorte deve estar localizado de modo a não ser

encoberto pela tarja preta da legenda oculta; d) quando houver necessidade de deslocamento do recorte na tela do televisor,

deve haver continuidade na imagem da janela.

E, por fim, em relação à exibição, circulação e boa visualização de vídeos que contenham a janela de Libras, a norma descreve, em 7.1.4, as seguintes orientações:

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TÓPICO 3 | LITERATURA SURDA: UM OLHAR SOB DIFERENTES POSSIBILIDADES

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a) a vestimenta, a pele e o cabelo do intérprete devem ser contrastantes entre si e entre o fundo. Devem ser evitados fundo e vestimenta em tons próximos ao tom da pele do intérprete;

b) na transmissão de telejornais e outros programas, com o intérprete da LIBRAS em cena, devem ser tomadas medidas para a boa visualização da LIBRAS;

c) no recorte não devem ser incluídas ou sobrepostas quaisquer outras imagens.

Essas são recomendações aprovadas pela comissão técnica de acessibilidade da ABNT e são fundamentais para a apresentação de uma tradução ou interpretação adequada e que garanta, ao público surdo usuário da Libras, real acessibilidade linguística e cultural.

FONTE: <http://febrapils.org.br/wp-content/uploads/2017/07/nota-tcnica-febrapils-feneis-materiais-audiovisuais.pdf>. Acesso em: 29 out. 2019.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• A literatura diz o que somos e incentiva a desejar e a expressar o mundo por nós mesmos.

• Na escola, são assumidos o papel e a responsabilidade de introduzir as crianças no mundo letrado, proporcionando as experiências de leitura e acesso aos livros.

• Os professores necessitam reconhecer as crianças surdas, a sua cultura e identidade surda, seu histórico, desenvolvimento social e outras dimensões, para que possam ser encaixados os conhecimentos.

• O cinema mudo é popular entre os surdos, sendo uma forma de entretenimento.Eles podem participar em igualdade com relação aos ouvintes.

Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar tua compreensão. Acesse o QR Code, que te levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para teu estudo.

CHAMADA

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AUTOATIVIDADE

1 Reflita e escreva sobre a responsabilidade do tradutor/intérprete de Libras?

2 Em grupos, pensem em temáticas com uma produção artística de até 8 minutos de gravação e façam uma sessão de cinema com o que foi produzido, totalmente em Libras. A ideia é fazer um CINESURDO. Não esqueçam de enviar os vídeos para a coordenação de curso, por meio de portfólio. Tutor, aproveite a atividade e faça um dia diferente no polo, convidando outras turmas para participar.

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REFERÊNCIAS

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