Literaturas do Próximo Oriente Antigo na...

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Literaturas do Próximo Oriente Antigo na Bíblia Origens, Aliança e Sabedoria Joaquim de Jesus Marques Dissertação Mestrado em: História e Cultura das Religiões 2015

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  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE LETRAS

    Literaturas do Prximo Oriente Antigo na Bblia Origens, Aliana e Sabedoria

    Joaquim de Jesus Marques

    Dissertao

    Mestrado em: Histria e Cultura das Religies

    2015

  • 1

    UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE LETRAS

    Literaturas do Prximo Oriente Antigo na Bblia Origens, Aliana e Sabedoria

    Joaquim de Jesus Marques, n 50887

    Dissertao orientada

    pelo Professor Doutor Jos Augusto Martins Ramos

    Mestrado em: Histria e Cultura das Religies

  • 2

    Estela de Hamurabi e Papiro de Nash, dois antigos testemunhos das literaturas em

    apreo.

  • 3

    Agradecimentos

    Para a elaborao do presente trabalho foi de importncia decisiva a orientao do

    Professor Doutor Jos Augusto Martins Ramos que, com o seu imenso saber,

    disponibilidade total e rapidez inusitada na apreciao, correo e sugestes relativas aos

    drafts apresentados, me conduziu durante todo este percurso de iniciao ao posicionamento

    dos textos bblicos no seu contexto histrico, geogrfico, sociolgico e cultural do Prximo

    Oriente Antigo.

    Tambm devo realar a importncia para este trabalho das lies do Professor Doutor

    Lus Manuel de Arajo, que me proporcionaram uma importante abordagem religio

    egpcia, e a excelente abordagem s religies da sia feita pelo Professor Doutor Antnio

    Barrento, bases importantes para aprendizagens necessrias e meios de reintroduo nas

    atividades acadmicas.

    Aos Professores citados, aos restantes Professores e Diretor de Curso, Faculdade de

    Letras, ao Exrcito Portugus (que suportou o valor das propinas) e minha mulher e filhos

    que apoiaram e incentivaram o meu regresso s lides acadmicas, o meu sincero

    reconhecimento.

    Joaquim Marques

  • 4

    Resumo

    Este trabalho tem como objetivo o estudo comparativo e situacional entre alguns temas

    e livros bblicos e temas semelhantes tratados pelas literaturas do Prximo Oriente Antigo,

    nomeadamente as sumrias, acdicas, ugarticas e egpcias.

    Os mitos de origem so o tema do primeiro captulo, sendo tratados, de seguida, temas

    como a aliana entre Yahweh e o povo de Israel, tal como descrita nos livros do xodo e

    Deuteronmio e a respetiva comparao com os tratados de vassalagem hititas. A finalizar,

    abordada a grande rea da literatura sapiencial e a sua base humanista em todas as literaturas

    em apreo.

    Abstract

    The aim of this work is to make a comparative and contextual study between specific

    subjects addressed by biblical books and by Ancient Near Eastern texts - particularly the

    sumerian, akkadian, ugaritic and egyptian.

    The origin myths are discussed in the first chapter. Subsequently, themes such as the

    covenant between Yahweh and the Israel people, as it is described in the books of Exodus and

    Deuteronomy, as well as their respective comparison with the hittite vassal treaties are

    addressed. Finally, the large area of the wisdom literature and its humanistic basis are

    evaluated in the considered texts.

  • 5

    SIGLAS

    De modo a simplificar as citaes, sobretudo dos livros bblicos, pela frequncia das

    suas ocorrncias, sero usadas as seguintes siglas:

    Dt Deuteronmio

    Ecl Eclesiastes ou Qohlet

    Ex xodo

    Gn Gnesis

    Jb Job

    Js Josu

    Jz Juzes

    Lv Levtico

    Ne Neemias

    Nm Nmeros

    2Pe 2. Carta de Pedro

    Pr Provrbios

    1Rs 1. Livro dos Reis

    2Rs 2. Livro dos Reis

    Sb Sabedoria

    Sir Ben Sira

    Sl Salmos

    1Ti 1. Carta a Timteo

    Tit Carta a Tito

    ANET Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament

    Ham Cdigo de Hamurabi

  • 6

    NDICE

    Agradecimentos ............................................................................................................... 3

    Resumo ............................................................................................................................. 4

    SIGLAS ............................................................................................................................ 5

    Introduo ....................................................................................................................... 7

    I ORIGENS ................................................................................................................ 13

    1 - Mito e Mitos .......................................................................................................... 13

    2 Mitos de Origem: A Criao do Universo ............................................................ 18

    3 Mitos de Origem: A criao do Homem ............................................................... 27

    4 Intervenes divinas na histria da Humanidade ................................................. 34

    O Dilvio ................................................................................................................ 34

    A Torre de Babel ..................................................................................................... 41

    II A ALIANA ........................................................................................................... 44

    1 a Aliana nos textos bblicos e os tratados de vassalagem hititas ........................ 44

    2 - Clusulas do tratado .............................................................................................. 50

    3 - Corpo legislativo .................................................................................................. 52

    III - A SABEDORIA ..................................................................................................... 62

    1 - Literatura Sapiencial .............................................................................................. 62

    2 - Hinos e Preces ....................................................................................................... 73

    3 - Sofrimento individual ............................................................................................ 82

    4 - Sofrimento Comunitrio ........................................................................................ 88

    5 - Pecado e sofrimento .............................................................................................. 92

    6 - Incompreenso perante situaes de sofrimento ................................................... 94

    7 - A precaridade da vida humana .............................................................................. 99

    8 Provrbios ........................................................................................................... 101

    IV - CONCLUSO ..................................................................................................... 109

    Bibliografia consultada ............................................................................................... 113

  • 7

    Introduo

    O objeto do presente trabalho consiste numa introduo ao estudo da histria e processo

    de composio dos textos da Bblia hebraica tendo em conta, nomeadamente, as condies

    especficas da vida e histria do povo hebreu, da sua constituio e vicissitudes da sua

    existncia, bem como da sua vivncia num espao, tempo e ambientes culturais bem

    determinados.

    a relao entre a literatura produzida pelo povo hebreu e as literaturas produzidas

    pelos povos do espao comum, que se passar a designar por Prximo Oriente Antigo, em

    especial Sumrios, Acdicos, Hititas, Cananeus (Ugarit) e tambm Egpcios, que se ir

    procurar compreender, a fim de melhor se poderem enquadrar os textos da Bblia hebraica na

    histria e cultura no s do povo que lhe deu origem mas tambm dos povos do espao atrs

    referido, compreendendo assim melhor quer a sua gnese e histria literria quer o processo

    de composio e as influncias recebidas das culturas vizinhas.

    Dada a grande dimenso e os diferentes gneros literrios das literaturas em questo,

    quer as bblicas quer as no bblicas, iro ser abordadas as que dizem respeito s origens, quer

    do mundo quer do homem, dominadas, em todos os casos, pelos mitos de origem, as que

    dizem respeito sabedoria e as que se enquadram no tema da aliana ou alianas, entre

    Yahweh e o povo hebreu no caso da Bblia, entre um rei poderoso e um vassalo, nos casos

    restantes, privilegiando-se, neste caso, a comparao com os tratados de vassalagem hititas.

    Apesar da sua importncia, no sero abordados os orculos e literaturas profticas,

    quer bblicas quer no bblicas, por uma questo de opo e prioridade, dada a dimenso

    pretendida para o presente trabalho.

    Trata-se, contudo, de um estudo mais em extenso do que em profundidade a fim de

    permitir uma compreenso mais alargada dos textos bblicos no meio ambiente histrico,

    geogrfico e socio cultural em que foram produzidos.

    Em termos metodolgicos ir-se- proceder a uma anlise e comparao de contedos e,

    quando relevante, de formas, no se abordando os textos nem de um ponto de vista filolgico

    nem exegtico. A comparao dos temas abordados e a especificidade da respetiva abordagem

    constituiro o ponto central deste percurso.

    Se fcil calcular que qualquer povo influenciado pela cultura e modo de vida dos

    povos vizinhos, o povo hebreu produziu um manancial literrio que, pelo menos para no

    especialistas, parece mais significativo do que o das civilizaes circunvizinhas,

    nomeadamente em quantidade e diversidade, apesar de a dimenso e fora deste povo ser bem

  • 8

    menor. Por outro lado, sendo escritos mais recentes, pelo menos na sua redao final, a

    preservao dos mesmos, devida ao seu contnuo uso quer na liturgia quer na instruo, no

    s por parte do povo hebreu mas tambm, na era crist, pelos prprios cristos, aliada ao facto

    de estarem escritos numa lngua e com um alfabeto conhecidos sem interrupo, fez com que

    os escritos bblicos no tivessem estado subterrados e desaparecidos ao longo de milnios,

    como aconteceu com os dos outros povos do Prximo Oriente Antigo.

    Mesmo para quem aceita o conceito de inspirao divina para a Bblia, esta tida

    como bem diferente de outras revelaes em que quem revela tem, normalmente, um papel

    mais ativo e preponderante do que no caso dos autores bblicos, que escrevem em tempos

    diferentes, com gneros literrios diferentes, de acordo com as necessidades dos tempos

    vividos. a prpria histria do povo que fundamento e parte integrante dessa revelao.

    As descobertas, sobretudo a partir do sculo XIX, do esplio literrio das civilizaes

    que rodearam a Palestina dos tempos bblicos e anteriores, desde Ugarit Babilnia, tm

    vindo a proporcionar aos especialistas um tesouro incontestvel para a compreenso e

    reconstituio histrica das civilizaes a que dizem respeito e, por ricochete, para melhor

    entendimento da literatura, mais bem conservada, da cultura hebraica.

    Talvez hoje se falasse em pelgio (se nos colocssemos no tempo da composio dos

    textos mais recentes), ao serem confrontados alguns relatos bblicos com relatos mais antigos,

    sobre temas idnticos, como por exemplo a criao, o dilvio etc. Parece ser comum entre os

    especialistas que no se trata de influncia direta e imediata mas, mais provavelmente, de

    influncia indireta com base em tradies e relatos que circulavam, preponderantemente pela

    oralidade prpria destas sociedades, embora no seja de excluir, em muitos casos, o contacto

    dos autores bblicos com materiais escritos, particularmente durante a sua estadia na

    Babilnia, durante o exlio ordenado por Nabucodonosor, no sculo VI aC. Efetivamente foi

    durante e aps este perodo, grandemente traumtico para o povo hebreu, que este produziu

    importante literatura, quer nova quer reinterpretativa da sua histria, luz deste

    acontecimento. Foi neste perodo que os autores retomaram os escritos anteriores e lhes deram

    a redao final, retocando esses textos com a nova tica resultante do desastre nacional

    interpretado como resultado da quebra, por parte do povo, da Aliana que Deus havia

    estabelecido com Israel, no Sinai, aquando da grande teofania descrita no livro do xodo,

    onde atribudo a Moiss um contacto direto com Yahweh, facto que, juntamente com a Lei

    que lhe transmitiu, o acontecimento fundante, por excelncia, da identidade de Israel como

    nao.

  • 9

    De qualquer modo ser sempre necessrio acentuar bem a acomodao operada pelos

    autores bblicos, enquadrando na sua viso teolgica monotesta todos os referenciais que

    foram beber a outras culturas.

    Importa referir aqui, ainda que sumariamente, uma questo relevante para o estudo da

    histria literria dos textos bblicos e da sua redao final, em particular dos primeiros cinco

    livros conhecidos pelo termo grego Pentateuco ou pelo hebraico Torah: trata-se de uma

    hiptese de redao final de alguns livros a partir de textos pr-existentes, conhecida pela

    Teoria das Fontes.

    Quando comearam a ser aplicadas aos textos bblicos as ferramentas hermenuticas

    existentes, nomeadamente o mtodo histrico-crtico e comparativo, ressaltou aos olhos dos

    estudiosos que a redao final de muitos dos livros bblicos representava o trabalho de um

    redator que se havia servido de diferentes textos parciais e de outras tradies que o mesmo

    redator final havia organizado de modo consistente numa obra concluda.

    Uma das primeiras evidncias desta teoria era dada pelos dois relatos da criao

    inseridos no incio do livro do Gnesis os quais no apenas usam diferentes nomes para se

    referir a Deus, mas tambm fazem relatos paralelos da criao com contedos diferentes e

    com finalidades diferentes. Se o captulo primeiro usa o termo Elohim para se referir a Deus,

    os captulos dois e trs usam o nome de Deus Yahweh/Elohim. Para alm desta particularidade

    so tambm evidentes as diferenas de inteno e de mensagem a transmitir aos leitores:

    criao em seis dias com santificao do stimo porque tambm Deus assim procedeu, no

    primeiro captulo; descrio da desobedincia humana aos preceitos divinos e consequente

    castigo e reformulao dos planos divinos relativamente ao homem (sofrimento e morte) nos

    captulos dois e trs.

    Os autores apelidaram de Sacerdotal a tradio ou escola que deu origem ao texto do

    captulo primeiro e de Javista tradio dos captulos dois e trs. Para alm destas foram

    ainda identificadas as tradies Elosta, que usa predominantemente o nome de Elohim para

    se referir a Deus e uma grande tradio Deuteronomista que ser responsvel no s pela

    composio do Deuteronmio, o quinto livro do Pentateuco, mas tambm por uma vasta

    coleo de escritos, ps-exlicos, de reflexo sobre as causas e consequncias sobretudo do

    exlio babilnico, mas tambm da queda do Reino do Norte, Israel.

    Esta teoria, que teve o seu apogeu com J. Wellhausen (1848-1918), sempre teve os seus

    detratores e conheceu os seus principais opositores com a escola escandinava, em especial

  • 10

    Ivan Engnell, em meados do sculo XX1, no considerando os biblistas atuais que tenham

    existido estas fontes escritas separadamente, devendo ter existido muitas mais tradies de

    que os redatores finais se puderam ter servido, mas no escritos completos divididos em

    quatro obras que depois foram desmembradas e reelaboradas2.

    De qualquer modo a tradio Sacerdotal, ligada aos sacerdotes do Templo de

    Jerusalm, estar presente em muitos dos textos que se referem s leis que regulam as

    oferendas e os sacrifcios, unicidade do templo e do culto, s contribuies para o templo.

    De facto, no tendo sido restaurada a monarquia aps o regresso do exlio, o poder da classe

    sacerdotal e a sua imagem como garante da unidade do povo foi sendo estabelecido

    progressivamente.

    A estrutura que foi dada a este estudo tem a seguinte constituio: apresentado um

    captulo inicial onde se pretende caraterizar o conceito de mito no contexto das literaturas do

    Prximo Oriente Antigo. Sendo os trs captulos seguintes dedicados comparao de textos

    relativos aos mitos de origem, mereceu toda a ateno esta caraterizao, uma vez que, at

    tempos recentes, os mitos eram conotados, depreciativamente, com erros de diversa ndole,

    que no deviam merecer a ateno dos sbios ou filsofos, no seu sentido etimolgico,

    porquanto no eram portadores de verdades, pois no possuam estrutura lgica nem usavam

    o mtodo hipottico-dedutivo.

    Os mitos abordados dizem respeito, genericamente, s origens, ocorridas em tempos

    primordiais por interveno de divindades, nomeadamente do universo e do homem. O

    homem, porm, merece um destaque especial porquanto, com maior evidncia nos relatos

    bblicos, no foi criado j completo, isto , com todas as aquisies que a cultura

    proporciona e que o autor conhecia, mas foi sendo alvo de outras intervenes subsequentes,

    quer para a divindade lhe fornecer ensinamentos diversos, como os relativos ao vesturio e ao

    conhecimento, quer para sancionar comportamentos desviados. Assim, depois de se tratarem

    os mitos relativos s cosmogonias e antropogonias sero tambm abordados os que descrevem

    um dilvio castigador bem como a confuso das lnguas.

    1 Cf. C. R. North, Pentateuchal Criticism, pp. 63 ss. 2 Cf. A. De Pury e Th. Rmer, Le Pentateuque en Question, pp. 9-80, onde realam : Ce nest quavec la

    parution des livres de Schmid et de Rendtorff que la crise clata au grand jour et que plus personne ne

    pouvait dsormais chapper au constat que sous sa forme rigide, tout au moins, lhypothse

    documentaire () est intenable p. 55 ; R. RENDTORFF, LHistoire Biblique des Origines pp. 83-94.

    Concretamente, na p. 84 : Je conteste quil soit plausible dadmettre lexistence de sources

    indpendantes crites, qui auraient dabord exist chacune pour elle-mme et qui nauraient t

    agences ensemble quau cours dun stade rdactionnel secondaire. IDEM, Introduction LAncien

    Testament, pp. 267-278.

  • 11

    O tema da Aliana, estabelecida por iniciativa de Yahweh com o seu povo, Israel, que

    aparece de forma recorrente sobretudo nos livros do xodo e Deuteronmio e a sua

    comparao, na sua estrutura geral, com os tratados de vassalagem hititas, ser abordada de

    seguida.

    Finalmente tratado o grande tema da literatura sapiencial, nos seus diferentes gneros,

    que ocupou a mente e a criatividade de inmeros autores que a sistematizaram, quer em Israel

    quer nos restantes povos do Prximo Oriente Antigo, pois muita desta sabedoria, colocada em

    forma escrita por um indivduo era, em muitos casos, nomeadamente nos provrbios, o fruto

    de mltiplas contribuies e do fundo cultural global da sociedade em que estava inserido.

    Outros temas poderiam ser abordados, merecendo especial destaque a literatura

    proftica pela relevncia que ocupa quer na Bblia, quer nas culturas mais prximas de Israel

    como o Egito, a Mesopotmia e Cana. No se pode, no entanto, afirmar que o conceito de

    profetismo seja uma entidade gnosiolgica unvoca. Na realidade ele abrange um vasto

    campo de experincias humanas e de tipologias diferenciadas que vo desde a magia

    mstica, escatologia e, de uma forma bem demarcada quer na Bblia quer no Egito, rea da

    justia social e da proteo dos mais desfavorecidos.

    Esta literatura, pela sua origem muitas vezes ligada adivinhao e pretenso de

    comunicar com o divino, frequentemente conotada com a mera previso do futuro. As

    tcnicas para chegar a este conhecimento antecipado do que vai acontecer so variadas,

    incluindo a adivinhao, a magia, o videntismo, o xtase, o sonho ou o orculo recebido

    diretamente da divindade. No entanto, talvez a maior importncia do profetismo resida na sua

    vertente social, ao fazer a denncia e propostas de correo de erros do presente bem como a

    apontar para um futuro desejvel e promissor, sem contratempos, injustias ou explorao.

    Em vez da previso do futuro, o que faz apontar pistas para a sua concretizao. Esta via

    leva frequentemente a uma perspetiva escatolgica e messinica. Tanto a literatura proftica

    bblica como a egpcia falam de um futuro melhor, onde as aflies dos tempos presentes

    sero solucionadas de uma forma mais ou menos utpica, nomeadamente atravs da ao de

    um messias cujo aparecimento futuro se profetisa. o caso, por exemplo, do captulo 11 do

    livro de Isaas, que fala de um reino messinico onde o lobo habitar com o cordeiro (Is

    11,6). o caso, tambm, das Profecias de Neferti onde, depois da descrio das convulses

    internas ocorridas no primeiro perodo intermedirio e de todo o caos gerado nessa altura

  • 12

    anunciado o aparecimento de um rei salvador, vindo do sul, justo de voz, onde tudo ser

    reparado, porque a maat regressar ao seu lugar e o mal ser atirado fora3.

    A incluso de um captulo sobre esta matria iria, no entanto, alargar em demasia o

    mbito deste trabalho, pelo que se decidiu no o incluir.

    3 Cf. As Profecias de Neferti, em, Telo Ferreira Canho, Doze Textos Egpcios do Imprio Mdio, p.

    165. Na verdade no se trata de uma previso ou de um desejo projetado num tempo futuro. Na poca

    em que foi escrito este texto, Imprio Mdio, estes factos j haviam ocorrido. No entanto o autor

    posiciona-se em tempos mais recuados, predizendo-os.

  • 13

    I ORIGENS

    1 - Mito e Mitos

    O termo mito usado correntemente, mesmo em trabalhos especializados, para

    significar coisas diferentes, pois a palavra foi adquirindo mltiplos sentidos ao longo da

    histria da cultura. Os autores que avanam uma definio de mito so normalmente muito

    cautelosos, comeando por apresentar as dificuldades para a elaborao de uma definio que

    abranja todos os contextos em que o termo foi ou possa vir a ser usado.

    Robert Oden, aps analisar algumas propostas de definio apresentadas por alguns

    autores, entre os quais Mircea Eliade e Paul Ricoeur, conclui que, apesar do desacordo e do

    aparente caos, o material apresentado como mito deve possuir as seguintes caractersticas: ser

    uma histria; pertencer a uma tradio transmitida, por princpio, oralmente; deve lidar com

    um personagem ou personagens que no sejam simples seres humanos; tratar de factos

    passados em tempos primordiais ou muito remotos4. Mircea Eliade apresenta a seguinte

    definio como a menos imperfeita e mais lata: o mito conta uma histria sagrada, relata um

    acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos comeos.5

    O objeto do mito ser uma narrativa dos comeos de algo, de uma criao, da

    maneira como algo teve o seu princpio, como comeou a existir, quer se trate de todo o

    universo quer apenas de algo mais circunscrito. Deve, no entanto, ter-se passado em tempos

    primordiais e com interveno de seres sobrenaturais.

    Na nossa cultura ocidental, herdeira da cultura grega, cedo foi concedido ao mito um

    sentido pejorativo, em termos intelectuais, uma vez que a forma como um mito transmite a

    sua mensagem no decorre de um raciocnio hipottico-dedutivo. o logos dos gregos,

    identificado com o factual, a esvaziar o mythos como forma errnea de pensamento, no

    histrica, sem atender sua funo simblica e s suas mensagens metafricas. No incio do

    cristianismo era visto at como perigoso para a f crist todo o imaginrio que os mitos

    gregos e romanos transmitiam atravs das respetivas literaturas, considerados mitos pagos. O

    prprio Novo Testamento cristo contribuiu para isso, na medida em que foi usada a palavra

    mythos para se referir a fbulas, engenhosas, de velhas, ou judaicas6.

    4 Robert Oden, Myth and Mythology, p. 949. 5 Mircea Eliade, Aspectos do Mito, p. 12. 6 Cf. Bblia em: Bible Works: 2Pe 1,16: - Fbulas engenhosas; 1Ti 4,7:

    - Fbulas de velhas; Tit 1,14: - Fbulas judaicas.

  • 14

    Ora o mito encerra sempre em si uma atividade criadora no domnio da

    sobrenaturalidade. Explica o atual pelo que se passou em tempos primordiais, nas origens,

    quando as vrias facetas do mundo estavam em construo. pois uma histria sagrada, da

    derivando a sua veracidade7.

    O termo etiologia, apesar de ser mais conhecido no campo da medicina, , no entanto,

    um conceito cujo campo de aplicao muito mais vasto. Aplica-se a qualquer estudo de

    causas, sendo muito importante no estudo do mito. que, muitas vezes, o mito exatamente

    uma explicao etiolgica de determinados fenmenos observados no quotidiano,

    nomeadamente aqueles que so de mais difcil compreenso, como a origem do universo, a

    morte, muitos dos fenmenos naturais, etc.

    O mito encontra-se numa dimenso diferente do pensamento logico-dedutivo, o mito

    a expresso metafrica ou simblica e aproximada duma verdade que no pode ser percebida

    na sua totalidade pela mente humana, mas s intuda vagamente, sem alcanar nunca uma

    expresso adequada e absoluta; por isso, essa expresso permanece aberta e inesgotvel. Est

    convencido (o mitgrafo) de que a verdade das coisas e da vida humana muito mais

    profunda do que aquilo que a linguagem pode exprimir e pe os seus recursos ao servio de

    tal verdade8. Por outro lado, Armindo Vaz tambm coloca nfase no facto de que o mito

    manifesta todo o seu significado na sua globalidade, no nos aspetos parcelares que o

    compem.

    Talvez os mitos mais conhecidos sejam os relacionados com a origem do universo e do

    homem, conhecidos como mitos de origem. Porm para autores como Mircea Eliade o

    mito de origem diz respeito origem de qualquer coisa que se esteja a explicar, relata uma

    situao nova, que no era assim desde o incio. Estes mitos de origem completariam assim os

    mitos cosmognicos, contando as transformaes que se seguiram, quer para melhor quer

    para pior9.

    Existem vrias teorias que tentam explicar o mito de uma forma abrangente. Robert

    Oden10 enumera as sete seguintes: o evemerismo, que explica os mitos como histrias de

    heris humanos e reis que, no decorrer dos tempos, se foram deificando; O mito como

    tentativa de explicao das realidades circundantes, num estdio pr-cientfico; O mito como

    uma expresso de mentalidade mitopoitica, pr-lgica, emocional e expressiva; O mito

    7 Mircea Eliade, op. Cit., p. 13. 8 Armindo Vaz, Pentateuco, p. 78. 9 Mircea Eliade, op. Cit., p. 25. 10 Robert Oden, op. cit., pp 950-955.

  • 15

    como sustentculo do ritual, sendo o seu estudo inseparvel das formas rituais que o

    acompanham; o mito como dimenso social: histrias tradicionais agregadoras de grupos e

    povos, dando-lhes identidade prpria; mito como expresso do inconsciente humano, na

    aceo freudiana e mito na anlise estrutural de Claude Levi-Srauss. Oden, porm, de

    opinio que algumas so para ignorar, enquanto outras contm importantes elementos para o

    estudo e compreenso dos mitos e da sua mensagem. Se uma teoria, s por si, no capaz de

    explicar todos os mitos, no seu conjunto contm elementos que so de importncia decisiva

    para uma compreenso de cada mito no seu contexto prprio.

    Neste estudo ir-se-o abordar as mitologias do Prximo Oriente Antigo, em especial as

    mesopotmicas e egpcias, e identificar as repercusses destas no mito de origem bblico,

    descrito nos onze primeiros captulos do livro do Gnesis. Constituindo estes captulos uma

    forma de introduo histria do povo hebreu, iniciada no captulo doze do mesmo livro, a

    forma mtica das origens a descritas no tem a mesma coerncia e ordenamento das outras

    mitologias, sendo preocupao maior dos autores, para alm da sua interpretao das origens,

    o preenchimento do espao temporal desde as origens, nos tempos primordiais, at poca

    fundante do povo, com Abrao.

    A mitologia egpcia influenciada pela vivncia real do povo do Nilo, com a sua

    organizao faranica, sendo os deuses pensados semelhana do seu representante, o fara.

    A criao obra de uma figura nica e suprema, origem dos deuses e do universo. Apesar da

    existncia de variantes na descrio das origens, atribuindo-as a diferentes deuses que

    utilizaram diferentes mtodos criativos, estas no representariam, propriamente, doutrinas

    diferentes mas sim verses mais elaboradas e atualizadas da mesma realidade. Pode dizer-se

    que a verso seguinte no desdiz a anterior, apenas a interpreta com novos dados.

    No que diz respeito ao caso particular da criao do homem, a mitologia egpcia

    considera que este foi criado por bondade divina, para usufruir dos bens terrenos colocados

    sua disposio, com a obrigao, apenas, de contribuir para a manuteno da ordem e da

    estabilidade do universo contra as foras caticas e destruidoras que ameaam essa

    estabilidade e ordem. Esta viso do homem egpcio representa a verso otimista do homem

    como destinatrio feliz da cosmognese11.

    As mitologias mesopotmicas sofreram as influncias da especificidade da histria e da

    natureza da sua implantao geogrfica. Desde logo os povos que as criaram eram

    heterogneos na sua origem, na sua lngua e na sua cultura. As mudanas polticas

    implicavam um regime diferente do anterior, sendo a relao tcnico-civilizacional com a

    11 Jos Augusto Ramos, Mitos das origens no prximo oriente antigo, p. 83.

  • 16

    natureza uma tarefa sempre inacabada e sujeita a imprevisveis reviravoltas12. Acresce ainda

    que o tempo durante o qual se desenvolveu toda a obra literria mesopotmica durou milnios

    e toda a temtica abordada numa determinada poca foi sendo retomada e desenvolvida em

    pocas posteriores, com novas respostas para velhos problemas. semelhana do Egito, a

    literatura mitolgica mesopotmica define no s a identidade poltica e institucional dos

    povos que as criaram, mas tambm as suas prticas litrgicas e cultuais: poderamos quase

    dizer que a mitologia mesopotmica, para alm de conter uma smula do seu pensamento

    teolgico e simultaneamente humanstico, representa bem o esprito da Mesopotmia em

    orao13.

    Nos mitos de origem mesopotmicos a criao no atribuda a um deus todo poderoso,

    que ocupa o nvel superior do respetivo panteo, mas a um deus intermdio cujas

    caratersticas de engenho e arte lhe conferem essa responsabilidade. No atua, porm, de

    forma autnoma e isolada mas sim no respeito pelo poder institudo pela assembleia dos

    deuses, usando uma competncia delegada. este saber e esta tcnica que so utilizados para

    a criao do homem. Este, na mitologia mesopotmica, no foi criado para usufruir dos bens

    terrenos num paraso terreal, mas sim com a misso de trabalhar para suprir as necessidades

    dos deuses. Esta incumbncia rdua e constante que impende sobre os homens uma das

    caratersticas mais marcantes do pensamento mesopotmico sendo a funo praticamente

    exclusiva dos mesmos. No entanto, esta situao no conduz a uma atitude totalmente

    negativa e ressentida do homem contra os deuses, pelo contrrio, o trabalho do homem

    exprime a conscincia mtica, isto intensa e assegurada, de que disso depende a

    sobrevivncia de todo o universo e at os deuses esto includos dentro deste crculo de

    solidariedade dependente. A tarefa humana considerada rdua mas empolgante14.

    Na mitologia de Cana o tema das origens no tem o desenvolvimento das suas

    congneres egpcia e mesopotmica, talvez por falta de documentao, dado que os materiais

    de escrita utilizados eram mais perecveis que os da Mesopotmia. A grande proximidade

    relativa literatura e mentalidade bblica manifesta-se mais noutras reas, como a descrio

    dos atributos de Deus e na literatura sapiencial.

    Na Bblia constata-se uma situao intermdia e de equilbrio entre a conceo egpcia

    da criao do homem, tipicamente hedonista e a conceo mesopotmica em que o homem foi

    12 Ibidem, p. 73. 13 Ibidem, p. 75. 14 Ibidem, p. 84.

  • 17

    criado para substituir os deuses menores nos trabalhos agrcolas e outros, que j estavam

    cansados desses afazeres e ameaavam com uma total paralisao15.

    Dada a unidade histrico-cultural do Prximo Oriente Antigo com a Bblia normal que

    os mitos de origem transmitidos pelas literaturas a produzidas tenham inspirado alguns

    relatos bblicos afins, o que aconteceu de modo especial com as literaturas mesopotmicas.

    15 Cf. Poema de Atrahass, em, Jean Bottro, Lorsque les dieux faisait lhomme, p.532.

  • 18

    2 Mitos de Origem: A Criao do Universo

    A Bblia hebraica tem, no seu incio, um livro que comea com um captulo no qual se

    descreve a criao do universo material, dos seres vivos e do homem. Trata-se do Livro do

    Gnesis, que foi colocado no incio do conjunto bblico no porque seja o de redao mais

    antiga mas exatamente porque relata o incio de tudo. Este relato foi tomado letra por muitos

    e em diferentes pocas (ainda hoje por algumas comunidades), mas bvio para os estudiosos

    que se trata de um relato mtico, que apenas pretende explicar o mundo como ele se

    apresentava aos autores dos relatos, bem como aos redatores (compiladores) finais do texto.

    O seu tema fundamental, do ponto de vista teolgico, o tema da criao. Tudo o que

    existe obra do Deus nico, Yahweh, que o criou pela palavra, num tempo primordial,

    longnquo, dispondo tudo tal qual como se encontra hoje, atravs de processos de criao e de

    separao dos diversos elementos, at resultar algo ordenado e com sentido, aps o estado

    catico original: a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo e o sopro de Deus

    (ruah elohm) movia-se sobre a superfcie das guas (Gn 1, 2-3).

    Este sopro ou vento de Deus foi traduzido frequentemente por esprito de Deus, como

    princpio criador subjacente aos atos criadores que se seguem. Porm a traduo literal da

    expresso hebraica ruah elohm vento de Deus que pode significar vento forte

    (desempenhando aqui a palavra elohm a funo superlativante)16, vento este que tinha por

    finalidade a secagem das guas primordiais e caticas a fim de permitir o comeo das obras

    subsequentes.

    hoje aceite pelos principais especialistas da exegese e da hermenutica bblicas que

    este relato mtico se prolonga at ao fim do captulo dcimo primeiro do livro do Gnesis,

    sendo que a criao se vai completando, aperfeioando, ganhando progressivamente as

    caractersticas observadas ao tempo, atravs de episdios variados e de recursos diversos, at

    desembocar no tempo histrico dos patriarcas hebreus, no captulo dcimo segundo.

    Efetivamente todos os relatos dos primeiros onze captulos se situam num tempo primordial,

    mtico, sem personagens histricos, sendo esses relatos muitas vezes de cariz etiolgico,

    procurando proporcionar explicaes para o tempo do autor, de difcil compreenso ou

    aceitao, atravs de histrias colocadas nas origens ou tempos muito antigos, elaboradas para

    esse fim.

    Vivendo o povo israelita num determinado contexto cultural, nomeadamente entre os

    egpcios e os povos do Prximo Oriente Antigo, natural que tenha absorvido muito do

    16 Cf. Armindo Vaz, Pentateuco, p. 101.

  • 19

    material mtico prprio desses povos e que o tenha incorporado, adaptando-o sua

    especificidade, nos seus prprios escritos. Assim, com as descobertas arqueolgicas recentes,

    sculos XIX e XX, de textos diversos desses povos, foi possvel aos estudiosos dos textos

    bblicos detetar semelhanas, em muitos relatos, entre as histrias bblicas e as outras,

    relativas a contextos e a problemticas idnticos.

    Podemos dizer que um dos temas mais em relevo o das origens, o correspondente s

    perguntas sobre a origem das coisas, do homem, do universo, da terra e de tudo o que esta

    contm, do porqu de as coisas serem como so. Todas estas questes e outras afins iro ser

    englobadas no que habitualmente se chama mito de origem.

    O livro do Gnesis abre, como foi dito, no com um, mas com dois relatos de criao. O

    primeiro relato corresponde ao texto compreendido entre Gn 1,1 e Gn 2,4a; o segundo relato

    vai de Gn 2,4b a Gn 3,24. Estes dois relatos correspondem a duas tradies diferentes que o

    redator final do livro juntou, como alis frequente neste e em outros livros bblicos. O relato

    inserido em primeiro lugar o mais recente, de data posterior ao exlio do povo hebreu na

    Babilnia (sculo VI aC), apresentando, talvez por isso, maiores pontos de contacto com as

    mitologias mesopotmicas.

    Analisando mais de perto cada um dos relatos podemos verificar vrias semelhanas

    com outras descries da origem do universo e de tudo o que nele se contm, originrias

    maioritariamente da Mesopotmia, descobertas em jazidas arqueolgicas em meados do

    sculo XIX, particularmente com a descoberta da biblioteca de Assurbanpal, em Ninive.

    O primeiro relato bblico da criao apresenta-nos as obras que foram sendo feitas numa

    sequncia de seis dias de criao e um de descanso do criador. Para alm da criao

    propriamente dita, tema maior em todos os mitos de origem, o autor pretende tambm dar

    uma interpretao sagrada instituio vigente na cultura hebraica do shabat, um dia

    dedicado a Deus em que ningum podia fazer qualquer trabalho.

    A descrio segue o seguinte esquema:

    no incio, quando Deus criou os cus e a terra, tudo era informe, apenas existiam

    as guas primordiais e as trevas a cobrir todo o abismo (Gn 1,1-2). Aqui no se

    fala explicitamente do nada antes do incio da criao (criao ex nihilo). Poder

    ver-se no abismo algo pr-existente, mas no dito claramente. De qualquer

    forma o que ressalta deste versculo o aspeto catico inicial e as expresses

    informe e vazia no sugerem seno restos do caos.

    no primeiro dia criada a luz e separada esta das trevas, numa sequncia de

    dia e noite;

  • 20

    no segundo dia criado o firmamento para dividir as guas que esto nos cus

    das que esto na terra;

    no terceiro dia feita a separao das guas e da terra, sendo criados os mares e

    a terra firme bem como as plantas;

    no quarto dia so criados os dois grandes astros (luzeiros), o sol e a lua, o

    primeiro para presidir ao dia (que j existia, separado da noite) e o segundo para

    presidir noite;

    no quinto dia so criados os animais da gua e do ar, peixes e aves;

    o sexto dia foi ocupado com a criao dos animais terrestres e, como cpula de

    toda a criao, foi criado o homem (macho e fmea), imagem e semelhana

    do criador, porquanto tinha por misso tratar e guardar o mundo criado, sobre o

    qual dominaria.

    Pode notar-se um artifcio paralelstico que remete os trs primeiros dias para os trs

    dias seguintes:

    Ao primeiro dia, em que criada a luz, corresponde um quarto dia em que so

    criados os luzeiros, os astros de que procede essa mesma luz;

    Ao segundo dia, em que criado o firmamento que divide as guas superiores

    das inferiores, corresponde um quinto dia em que so criados os animais que

    habitam esses elementos (peixes, monstros marinhos e aves);

    Ao terceiro dia em que feita a separao das guas e da terra firme e criadas as

    plantas corresponde um sexto dia em que so criados todos os animais terrestres,

    incluindo o homem, como cpula de tudo pois foi feito, e formado

    semelhana do criador.

    Tratando-se de um relato mtico, no faz qualquer espcie de confuso ao seu autor

    fazer aparecer primeiro a luz e depois os luzeiros. Miticamente, a luz pode ser

    perfeitamente independentemente dos astros que lhe do origem e ser criada antes daqueles.

    Ao ler este texto somos forosamente levados a compar-lo com textos mesopotmicos

    e egpcios que relatam, igualmente, as origens dos cus e da terra. No apenas por causa

    dos contedos, mas tambm por causa da forma ou das formas usadas, do contexto original,

    da sequncia da narrativa e da prpria forma de escrever. Tanto no Gnesis como nas diversas

    cosmogonias mesopotmicas so os deuses que criam o universo. E criam-no no a partir do

    nada (ex nihilo), mas transformando e dando forma, ordenando, algo previamente existente. J.

    Bottro refere que h, pelo menos, uma dezena de mitos mesopotmicos sobre a origem do

    universo:

  • 21

    Nous avons rcupr au moins une dizaine de mythes diffrents sur lorigine de

    lunivers. Cette origine part toujours de quelque chose transformer. Il ny a pas de

    nant initial, ni de cration ex nihilo. La Bible elle-mme lignore: au commencement,

    Dieu cra le ciel et la terre et lesprit de Dieu planait sur labme. Donc, il y a

    labme, il y a quelque chose17.

    Como foi visto acima, esta opinio no ressalta espontaneamente do texto. O abismo

    pode ter sido o resultado da vinda existncia dos cus e da terra, separados desde o incio. O

    que tpico da viso oriental envolvente a indefinio e desorganizao dos materiais

    iniciais.

    A prpria sucesso numrica de seis dias mais um (6+1) , na opinio de Armindo Vaz,

    inspirada num modelo literrio muito comum no mundo semtico antigo para significar que

    uma obra, que durou um perodo de tempo indeterminado, teve depois um termo18, como,

    por exemplo, na epopeia de Gilgamesh:

    Ao monte Nisir chegou o barco,

    o monte Nisir reteve o barco, no o deixou mover;

    um dia, um segundo dia, o monte Nisir reteve o barco, no o deixou mover;

    um terceiro, um quarto dia, o monte Nisir reteve o barco, no o deixou mover;

    um quinto, um sexto dia, o monte Nisir reteve o barco, no o deixou mover;

    ao chegar o stimo dia fiz sair a pomba, deixei-a ir.19

    Como os autores mais recentes atribuem o primeiro captulo do Gnesis fonte

    sacerdotal da composio da Bblia, , assim, datado de poca ps-exlica (sculo VI ou incio

    do sculo V aC), sendo mais recente que os captulos dois e trs que fazem um segundo relato

    de criao, de caractersticas bem diversas. A instituio do sbado, com a solenidade e os

    preceitos a ele ligados, foi colocada pelo redator final deste livro na prpria prtica de

    Yahweh. Descansando no final da grandiosa obra criadora, Deus manifesta a sua satisfao

    com o trabalho realizado. Este descanso entendido mais como cpula dos seis dias

    anteriores, das obras neles realizados e da vitria sobre a desordem e o caos, do que cessao

    de atividade por cansao de Deus. A metfora do descanso divino frequente nos mitos do

    Prximo Oriente Antigo. Tambm Marduk descansou depois da sua vitria sobre Tiamat20.

    17 Jean Bottro, Babylone et la Bible, p. 141. 18 Armindo Vaz, Pentateuco, p. 97. 19 Epopeia de Gilgamesh, Tab. XI, 141-147, em, Armindo Vaz, Pentateuco, p. 97. 20 Enuma elish, em, Jean Bottro, Lorsque les dieux faisaient lhomme, p. 631.

  • 22

    Sendo a prtica sabtica uma tradio antiga em Israel e povos vizinhos -lhe dada aqui

    uma formatao, a posteriori, da prtica vigente e da importncia que lhe atribuda pela

    classe sacerdotal, dando-lhe uma instituio divina.

    Apesar de existirem vrios mitos mesopotmicos sobre a origem do universo, como

    dito acima, o que apresenta maiores semelhanas com o relato do captulo primeiro do

    Gnesis a epopeia de Enuma elish (Quando l em cima), cuja finalidade primria consistia

    em celebrar a ascenso de Marduk como o principal dos deuses da Babilnia. Esta obra, que

    incorpora outras de menor dimenso anteriores, descreve a eleio de Marduk para combater

    a poderosa Tiamat, que ameaava exterminar os deuses mais jovens porque o marido, Apsu,

    os considerava demasiado tumultuosos. Marduk consegue levar a melhor sobre Tiamat e o

    autor vai narrando, ao longo do texto, uma sequncia de obras criativas: o cu - uma abbada

    slida que sustm as guas celestes, - foi construdo com uma das metades do corpo de

    Tiamat, dividido ao meio aps a vitria: abriu-a como a concha em duas partes. Ergueu

    metade dela e forrou-a como cu21; foram impostos os limites s guas terrestres; foi

    designada a lua para regular os tempos, juntamente com o sol e as estrelas; foram criados

    tambm os cereais e as plantas, o prottipo da humanidade e, por fim, Marduk descansa e

    comemora com um banquete. O prprio incio se assemelha em Gnesis e Enuma elish:

    ambos se colocam no incio de tudo; quando Deus criou o cu e a terra, no Gnesis e

    quando nem o cu no alto nem a terra em baixo ainda tinham nomes, no Enuma elish. O

    caos primordial, constitudo por guas no arrumadas e indistino do universo, marcava

    tambm a realidade em ambos os relatos. Os autores que se debruaram sobre estas

    semelhanas no colocam muita nfase na questo das influncias diretas de um texto sobre o

    outro. Parece mais provvel que se trate de relatos que circulavam oralmente ou mesmo por

    escrito entre os povos daquela regio, conhecidos, portanto, dos povos mesopotmicos,

    particularmente entre os povos semitas e dos israelitas da Palestina. Em qualquer dos casos, a

    haver influncia direta ela seria certamente de Enuma elish sobre o autor bblico, uma vez que

    aquele mais antigo (cerca do sculo XVI aC, as verses mais antigas) que o texto do

    Gnesis (cerca do sculo V aC).

    Outros elementos de comparao entre os dois relatos, mas tambm presentes noutros

    relatos mticos da antiguidade, no s mesopotmicos mas tambm egpcios, so:

    A ideia de uma inundao primordial22;

    21 Jos Nunes Carreira, Mito, Mundo e Monotesmo, p. 16. 22 Cf. Gn 1,2 e Mito bilingue, em, Jean Bottro, Lorsque les dieux faisaient lhomme, p. 498.

  • 23

    O conceito de separao de diferentes elementos para dar origem realidade

    conhecida23;

    A fora da palavra criadora a criao , em diversas circunstncias, executada

    pela palavra divina do deus criador24;

    A particular criao do ser humano seja para servir os deuses, como em Enuma

    elish, seja sem fins utilitrios, como no Gnesis25;

    O descanso ao stimo dia26.

    Uma imensa matria lquida tida como o elemento primordial no s na cosmologia

    sumria como na acdica27. No Gnesis tambm este elemento que citado logo no incio

    (Gn 1,2), de uma forma que deixa algumas dvidas se tambm foi criado e est implcito em

    cus e terra ou se era um elemento que existia previamente e sobre o qual se movia o

    vento de Deus. Em qualquer dos casos o incio, seja na Bblia seja em textos mesopotmicos,

    sempre apresentado como algo desordenado e catico a que de seguida dada a organizao

    necessria para vir a tornar-se no mundo conhecido, tal como funcionava no tempo do autor.

    No Mito Bilingue da Criao apresentado o incio como negativo principalmente

    porque ainda no havia templos, moradas santas dos deuses, plantas, tijolos, cidades:

    Nulle Demeure sainte, nul Temple, en sa localit sainte,

    Navait encore t construit :

    Nul roseau ntait sorti du sol,

    Nul arbre navait t produit ;

    Nulle brique navait t pose,

    Nul moule--briques navait t fabriqu ;

    Nulle demeure navait t faite ;

    Nulle ville construite28.

    Samuel Kramer refere que segundo os pensadores sumrios, o mar primordial fora o

    primeiro elemento do universo. Dele fizeram uma espcie de causa primeira e de primeiro

    23 Cf. Gn 1, 3-19 e Gilgamesh, Enkidu et lEnfer, em, Jean Bottro, Lorsque les dieux faisaient

    lhomme, p. 478-479. 24 Cf. Gn 1, 3-26 (toda a criao); Enuma elish, em, Jean Bottro, Lorsque les dieux, pp. 625-626 ; no

    Egito, criao por Ptah (pela fora da palavra), Lus Manuel Arajo, Ptah, em, Dicionrio do Antigo

    Egipto, p. 718. 25 Cf. Gn 1,26-27 ; Enuma elish, em, Jean Bottro, Lorsque les dieux, pp. 638-639. 26 Cf. Gn 2,2 ; Enuma elish, em, Lorsque les dieux p. 631. 27 Cf. Jean Bottro, Lorsque les dieux, p. 498 - Mito bilingue da criao; p. 604 - Enuma elish. 28 Mito bilingue da criao, em, Jean Bottro, Lorsque les dieux, pp. 497-498.

  • 24

    motor e nunca se perguntaram o que teria existido antes do mar no tempo e no espao. Foi a

    partir deste mar primordial que se criara o universo, o Cu-Terra29.

    Tambm a viso acdica das origens, em particular na epopeia de Enuma elish,

    consiste na mesma ideia de uma inundao inicial, aqui com dois elementos distintos,

    representando os dois gneros: Apsu, o elemento masculino, que consistia num oceano de

    gua doce, e Tiamat, o elemento feminino, representando o oceano de gua salgada. Estas

    guas misturavam-se:

    Lorsque L-haut

    Le ciel ntait pas encore nomm

    Et que Ici-bas la terre-ferme

    Ntait pas appele dun nom,

    Seuls Aps-le-premier,

    Leur progniteur,

    Et Mre (?) Tiamat,

    Leur gnitrice tous,

    Mlangeaient ensemble

    Leurs eaux.30

    A expresso bblica o sopro de Deus movia-se sobre a superfcie das guas (Gn 1,2)

    retoma claramente o motivo das guas primordiais, juntamente com a terra informe e vazia

    e as trevas para transmitir a ideia de uma certa desordem e caos inicial. Tratando-se, porm,

    de um texto tardio na histria da redao final da Bblia, que os estudiosos atuais colocam em

    poca ps-exlica e atribudo escola sacerdotal, claro um tratamento profundamente

    diferente dos mesmos motivos, influenciado pelo estrito monotesmo, nesta altura

    completamente enraizado na cultura hebraica/judaica. De facto, ao mesmo tempo que vai

    buscar os mesmos elementos indiciadores de caos e indefinio iniciais (terra informe e vazia,

    abismo, guas, trevas), no se apresenta de forma clara se estes elementos eram pr-existentes

    ou se foram trazidos existncia includos nos cus e na terra, no existindo nada antes.

    Pode ver-se que existe sempre a ideia de um caos inicial, incluindo monstros marinhos

    tanto em Gnesis (1,21) como nos textos paralelos, e que a criao se realiza por separao e

    ordenao desse caos. No faz sentido perguntar quem criou esses elementos caticos

    primordiais, no constituindo isso um problema para os diferentes autores. O que lhes importa

    realar que o ato criador, ao separar os diferentes elementos dando-lhes uma ordem e forma

    29 S. Kramer, A Histria comea na Sumria, p. 102. 30 Cf. Enuma elish, em, Jean Bottro, Lorsque les dieux p. 604.

  • 25

    consistentes e capazes de receber a vida, representa um ato s possvel a um deus poderoso

    que conclui uma vitria contra o caos anterior.

    No pode ter sido a mesma divindade que procedeu sua transformao em realidade

    ordenada e funcional, pois tal divindade nunca poderia ter criado um caos. Este s poderia

    ser pr-existente e, sendo uma situao problemtica, a criao representa uma vitria sobre o

    problema.

    Um outro texto paralelo onde as semelhanas so visveis sem necessidade de uma

    anlise muito aprofundada o hino egpcio ao deus R, presente nas Admonies de

    Ipuwer:

    Bem guardada est a humanidade gado de deus.

    Ele fez cu e terra por causa deles,

    subjugou o monstro marinho,

    fez respirar seus narizes para viver.

    Eles so imagens suas, vindas do seu corpo31.

    O poder da palavra na boca das divindades algo que est tambm presente no s no

    primeiro captulo do livro do Gnesis: Deus disse: Faa-se a luz. E a luz foi feita (Gn

    1,3), mas tambm nas outras literaturas, egpcias e mesopotmicas: Dun mot, il comanda, et

    la Constellation disparut; puis il donna un nouvel ordre, et la Constellation fut reforme 32.

    Tambm no Egito, na teologia de Mnfis, a criao por Ptah feita pela palavra: Na

    verdade, toda a palavra divina nasce a partir do conhecimento do corao e do comando da

    lngua. Ele criou os kau e designou as hemsut. [Eles] criaram todo o alimento e todas as

    oferendas, de acordo com a sua palavra33.

    Os autores, mesmo os catlicos mais recentes, fazem diferentes anlises destas

    interdependncias consoante a sua perspetiva e, eventualmente, a sua finalidade. Autores

    como Armindo Vaz colocam a nfase nas semelhanas enquanto outros, como Antnio

    Couto, colocam a nfase nas diferenas, aceitando que apenas por analogia com outras

    cosmogonias se pode designar por caos o estado primordial descrito neste relato da

    criao34. Mas no h dvida que, embora no sendo a Bblia hebraica uma simples variante

    31 Jos Nunes Carreira, Falar de Criao no Egipto e no Antigo Testamento, p. 160. 32 Enuma elish, em, Jean Bottro, Lorsque les dieuxp. 626. 33Cf. Luis Manuel Araujo, Mitos e Lendas do Antigo Egipto, p. 26. No Egito existiram outras teorias

    relativas criao, nomeadamente quanto ao deus criador e ao mtodo de criao, sendo que a seguinte,

    apesar de diferente, no anulava ou contradizia a anterior, apenas lhe acrescentava uma nova viso. 34 A. Couto, O Livro do Gnesis, p. 19.

  • 26

    das literaturas do Prximo Oriente Antigo, ela utiliza os mesmos motivos, apesar de lhes dar

    um sentido prprio e radicalmente diferente.

    Para Jean Bottro este relato da criao apresenta dependncias dos textos

    mesopotmicos enquanto o segundo relato da criao (Gn 2,4b-3,24), sendo muito mais

    antigo (sculo IX), seria independente dos textos mesopotmicos:

    On trouve, au dbut du livre de la Gense deux rcits de la Cration, composs

    quatre sicles dintervalle, et tuils lun sur lautre. Le premier (IXe sicle), en second

    dans la lecture, est indpendant de Babylone. Le second (Ve sicle), qui vient en tte,

    prsente en revanche un contrepoint de chants, pomes et cosmographies mythiques

    babyloniennes, lies lEau originelle et la lutte contre le Dragon primordial. Au

    terme du montage, toutefois, il sen dgage une thologie tout autre que celle des

    Msopotamiens, ne serait-ce que par linsistance des rdacteurs sur lunicit absolue et

    la transcendance du Crateur35.

    Nem sempre a anlise aos textos bblicos a partir de mtodos histrico-crticos foi bem

    aceite por autoridades religiosas que tm a literatura bblica como fundamento do respetivo

    corpo de dogmas ou de princpios morais. Na Igreja Catlica foi sobretudo a partir do Papa

    Pio XII, com a encclica Divino Afflante Spiritu36, publicada em 1943, e sobretudo com o

    impulso maior dado pelo Conclio Ecumnico Vaticano II, com a Constituio Dogmtica

    Dei Verbum37, em finais de 1965, que foram incentivados os estudos bblicos utilizando

    todos os meios e conhecimentos existentes para a anlise dos textos bblicos.

    Independentemente de opes de carter religioso, os livros includos nos cnones

    bblicos, judaicos e cristos, so peas literrias situadas no tempo e no espao e, como tal,

    representam um valor em si mesmas nas perspetivas histrica e literria. Compreender o vasto

    campo cultural em que, ao longo de quase trs milnios, foram produzidas todas as obras em

    apreo neste trabalho, a base para qualquer tipo de leitura das mesmas e de qualquer ao

    hermenutica.

    35 Jean Bottro, Initiation lOrient ancien, pp 30-31. 36 Cf. Papa Pio XII, Carta Encclica Divino Afflante Spiritu. 37 Cf. Constituio Dogmtica Dei Verbum em, Conclio Ecumnico Vaticano II, pp. 221-234.

  • 27

    3 Mitos de Origem: A criao do Homem

    Aps o primeiro relato da criao do livro do Gnesis, que vai do incio do primeiro

    captulo at ao versculo 4a do captulo seguinte, comea um segundo relato, proveniente de

    outra fonte ou tradio e que o redator final do livro justaps.

    Apesar de esta tradio ou fonte ser bastante mais antiga que a do captulo anterior,

    apresenta-se no formato de uma explanao mais detalhada de alguns atos criadores apenas

    enunciados laconicamente na primeira verso. certo que a criao do homem aparece como

    o ponto culminante de toda a criao j realizada. precedida, em tom solene, do seguinte

    monlogo: Depois, Deus disse: Faamos o ser humano nossa imagem, nossa

    semelhana, para que eles dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do cu, sobre os

    animais domsticos e sobre todos os rpteis que rastejam pela terra (Gn 1,26). Tal como no

    Egito, com a criao por Ptah, tambm neste relato tardio da criao o ato criador realizado

    pelo poder da palavra divina.

    Quanto ao facto de o homem ter sido criado imagem de Deus, esta ideia encontra-se

    presente em diversos textos acdicos e egpcios, embora reservada ao rei, quando entronizado,

    o qual tinha uma relao especial com a sua divindade. No Egito, apesar de no haver uma

    descrio especfica da criao do ser humano, ela abordada de uma forma que no deixa

    dvidas quanto s intenes que presidiram criao da humanidade nas Instrues para o

    Rei Meri-ka-re:

    Well directed are men, the cattle of the god. He made heaven and earth according to

    their desire, and he repelled the water-monster. He made the breath of life (for) their

    nostrils. They who have issued from his body are his images38.

    O homem no s imagem de deus, mas saiu do seu corpo. O texto continua

    descrevendo tudo o que foi criado para seu benefcio exclusivo, tal como na descrio do

    Gnesis.

    Na cultura hebraica, apesar de o rei tambm ser apelidado filho de Deus, Vou anunciar

    o decreto do Senhor. Ele disse-me: Tu s meu filho, Eu hoje te gerei (Sl 2,7), esta viso do

    homem feito imagem e semelhana de Deus abrange toda a humanidade desde o seu

    comeo. O homem imagem de Deus porque foi destinado a participar, de alguma maneira,

    na obra criadora, enquanto topo da pirmide, com a funo de superintender, dominar e

    governar: Abenoando-os, Deus disse-lhes: Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a

    38 Em, ANET, p. 417.

  • 28

    terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos cus e sobre todos os animais que se

    movem na terra. (Gn 1, 28).

    Nos captulos dois e trs do Gnesis (o segundo relato da criao) aparece Deus a

    moldar no barro as suas criaturas, incluindo o homem, semelhana da verso egpcia da

    criao por Khnum, em Elefantina, que moldou no barro as suas criaturas.

    Antes, porm, descreve uma realidade inicial que apresentada como incapaz de

    acolher qualquer tipo de ser vivente. Faltava tudo aquilo que indispensvel para a vida:

    Quando o Senhor Deus fez a Terra e os cus, e ainda no havia arbusto algum pelos

    campos, nem sequer uma planta germinara ainda, porque o Senhor Deus ainda no tinha

    feito chover sobre a terra, e no havia homem para a cultivar (Gn 2,4-5).

    Esta constatao est presente em muitos outros motivos literrios mesopotmicos,

    como, por exemplo, em Enki e Ninhursag:

    Dilmun, auparavant, ne croissait nul corbeau, ne cacabait nul francolin () Nulle

    eau claire se rpandre en ville!39;

    Ou no mito A competio do cereal contra o gado miudo:

    Lorsque, sur les Montagnes de lunivers, An eut mit les Anunna au monde, il ne mit

    pas, du mme coup, au monde, ni ne fit apparatre Crale, ni ne produisit, dans le pays,

    les fils dUttu, ni ne lui prpara de mtier--tisser( ?)40 ;

    Em Marduk, criador do mundo:

    Nulle Demeure sainte, nul Temple, en sa localit sainte, navait encore t construit :

    Nul roseau ntait sorti du sol, nul arbre navait t produit41 ;

    Em Enuma elish :

    Lorsque L-haut le ciel ntait pas encore nomm, et quIci-bas la terre-ferme ntait

    pas appele dun nom, seuls Apsu-le-premier, leur progniteur, et Mre Tiamat, leur

    gnitrice tous, mlangeaient ensemble leurs eaux : Ni bancs-de-roseaux ny taient

    encore agglomrs, ni cannaies ny taient discernables42

    Todo este conjunto de paralelos e muitos outros, incluindo egpcios, mostram que os

    diferentes autores querem mostrar o grandioso ato de criao divina por comparao negativa

    com o estado deserto e desolador da situao anterior em que no existia nada. E esse nada

    no se refere apenas ao necessrio para sustentao da vida biolgica mas tambm tem em

    conta, por vezes, outros aspetos importantes para o autor, como os templos, cidades e moradas

    39 Cf. Jean Bottro e S. Kramer, Lorsque les dieux, pp. 152-153. 40 Ibidem, p. 511. 41 Ibidem, p. 497. 42 Ibidem, p. 604.

  • 29

    santas. No restam dvidas de que os autores bblicos eram conhecedores deste gnero de

    literatura mtica e que utilizaram idnticos motivos ainda que os seus propsitos possam ter

    motivaes e explicaes diferentes. Para alm da importao dos temas para um cenrio de

    estrito monotesmo, existem outras diferenas quanto s razes invocadas para a criao do

    homem. Enquanto na Mesopotmia tinha um fim utilitrio para os deuses, providenciando-

    lhes alimento, vesturio e os necessrios trabalhos nos templos, em Israel no lhe atribuda

    qualquer finalidade material, tal como no Egito, onde o homem tambm no tinha sido criado

    para interesse dos deuses, antes pelo contrrio, tudo o que foi criado por deus foi-o em

    benefcio da criatura, como se pode ver nas Instrues para o Rei Meri-ka-re, acima citado.

    Por outro lado a criao do homem na Mesopotmia exigira o sacrifcio de um deus,

    para obter o seu sangue, o que iria proporcionar o princpio vital do novo ser.

    Mas o aspeto mais significativo decorrente do relato de criao dos captulos dois e trs

    do livro do Gnesis a busca de um sentido para a vida humana, sobretudo a compreenso do

    sofrimento e da morte e a dissonncia causada por estas realidades em contraste com a

    bondade de Deus criador, atributo essencial que o povo hebreu atribua ao seu Deus. Todo o

    relato parece orientar-se para conciliar a bondade de Deus com a existncia do mal, colocando

    nas mos da criatura a responsabilidade pelo redimensionamento que Deus se viu obrigado a

    fazer em virtude de o homem ter subvertido os princpios orientadores por Ele estabelecidos.

    Deste modo o redator bblico conseguia dois objetivos fundamentais: salvaguardar a bondade

    divina por um lado e no enveredar por uma explicao dualista, presente em cosmogonias

    geograficamente prximas, como o caso do zoroastrismo persa, mantendo o seu estrito

    monotesmo, ponto fundamental da religio do povo israelita ao tempo da redao final do

    Pentateuco em que o Gnesis est integrado.

    Implcito est o conceito de imortalidade que o autor coloca na condio humana

    inicial:

    E o Senhor Deus deu esta ordem ao homem: Podes comer do fruto de todas as rvores

    do jardim; mas no comas o da rvore do conhecimento do bem e do mal, porque, no

    dia em que o comeres, certamente morrers (Gn 2,16-17).

    A satisfao do desejo de imortalidade parece ter estado quase ao alcance dos humanos

    em alguns dos mitos de origem do Prximo Oriente Antigo, incluindo o do Gnesis. Foi o

    homem que o deixou escapar, por um processo ou por outro, mas sempre por causas a si

    imputadas. No Gnesis o homem que, ao desobedecer e procurar obter o conhecimento

    antes do tempo determinado no processo de criao, o compromete, anulando a sua pretensa

    imortalidade original. Igualmente na epopeia de Gilgamesh este heri esteve prestes a

  • 30

    conseguir a imortalidade atravs da planta que, com tanto sacrifcio, tinha conseguido ir

    buscar ao fundo do mar; fora Utnapistim, nico sobrevivente, com a esposa, do dilvio que

    matara toda a restante humanidade que lhe revelara este segredo. Porm acontece sempre

    alguma coisa que impede os humanos de alcanar essa imortalidade que parece estar mesmo

    ali ao seu alcance. Neste caso foi uma serpente que habitava num poo onde Gilgamesh se foi

    banhar que lhe roubou a planta43. Este motivo vegetal faz pensar em idntico motivo no relato

    do Gnesis, consubstanciado na rvore da vida. Num outro mito, conhecido por Adapa, a

    imortalidade tambm escapou ao heri porque, aquando do seu julgamento, no cu, por ter

    quebrado a asa do vento sul, recusou o po e a bebida da vida eterna, temendo que lhe

    estivesse a ser oferecida a comida e bebida da morte44.

    A explicao para todos estes finais dramticos sempre a necessidade que o autor do

    mito tem de explicar o porqu da situao atual. A mortalidade do ser humano um facto, por

    mais que este procure um remdio para esta realidade.

    No jardim do den (ou pomar da vrzea, na traduo/interpretao de Armindo

    Vaz45) onde Deus colocou o homem que acabara de criar (Gn 2, 8-9) esto estrategicamente

    colocadas duas rvores: a rvore do conhecimento do bem e do mal e a rvore da vida.

    Na tradio hermenutica mais habitual, a condio mortal do homem foi determinada pela

    desobedincia que consistiu na comida do fruto da rvore do conhecimento do bem e do

    mal. Porm, se o homem era imortal, pode perguntar-se para que serviria a rvore da vida.

    Tambm aqui a proximidade de motivos relativamente a outros mitos mesopotmicos

    evidente. A condio humana implica ser-se mortal. A imortalidade reservada aos deuses

    ou, por exceo, a algum humano a quem estes a tenham concedido, como a Utnapistim, na

    epopeia de Gilgamesh, preservado do dilvio46. No mito de Adapa dito, logo no incio,

    Tinha-lhe dado conhecimento; vida eterna no lhe tinha dado47. No Gnesis a guarda,

    por Querubins, da rvore da vida que impede o homem de se apoderar do seu fruto: Depois

    de ter expulsado o homem, colocou, a oriente do jardim do den, os querubins com a espada

    flamejante, para guardar o caminho da rvore da Vida (Gn 3,24).

    Com a linguagem simblica do mito, os diferentes autores conseguiram colocar num

    tempo primordial, fora do tempo histrico, a explicao para o que existe no tempo atual. O

    43 Cf. Armindo Vaz, Em vez de histria de Ado e Eva, pp. 294-295 44 O Mito de Adapa, transcrito por Armindo Vaz, em, Pentateuco, pp. 135-138. 45 Armindo Vaz, Em vez de histria de Ado e Eva, p. 119 ss. 46 Jean Bottro, Lorsque les dieux faisaient lhomme, p. 575: Alors Enlil monta sur le bateau / Me prit la

    main et me fit monter avec lui / Et fit monter et sagenouiller avec moi ma femme / Il nous toucha le

    front / Et, debout entre nous, nous bnit en ces termes: / Uta-napist, jusquici, ntait quun tre

    humain: / Dsormais, lui et sa femme / Seront semblables nous, les dieux. 47 Cf. Armindo Vaz, Pentateuco, p. 135.

  • 31

    contraste com a situao anterior de desordem ou ausncia acentuado e valorizada a situao

    atual.

    Para alm da situao fsica, material, o mito bblico continua para outros contextos

    relativos origem do conhecimento e da civilizao. A desobedincia do homem acabado de

    criar, que foi at tempos recentes tido como explicao avassaladora para a origem de todos

    os males fsicos e morais do homem e do mundo, contm, afinal, uma abordagem muito mais

    alargada da condio humana na sua globalidade: a aquisio do conhecimento e o progresso

    do homem na direo da evoluo civilizacional da sua espcie. O vesturio um distintivo

    do homem civilizado, ao contrrio do mais primitivo que andava nu ou com vestes

    inapropriadas ou reduzidas. Era o que constatava o autor do relato mtico, na sua poca.

    Assim, coloca o primeiro homem a evoluir do estado de nudez para o uso de vestes, primeiro

    mais precrias, Ento, abriram-se os olhos aos dois e, reconhecendo que estavam nus,

    coseram folhas de figueira umas s outras e colocaram-nas, como se fossem cinturas, volta

    dos rins (Gn 3,7) e depois mais elaboradas, porque feitas pelo prprio Deus: O Senhor

    Deus fez a Ado e sua mulher tnicas de peles e vestiu-os (Gn 3,21).

    Tambm na epopeia de Gilgamesh a cortes, enviada para socializar Enkidu, que

    divide as suas vestes com ele, que vivia nu no meio dos animais selvagens. O paralelo entre

    estes dois textos profundo, embora a forma como ambos se apresentam difiram

    substancialmente. Em ambos a funo central desempenhada pela mulher que fora a

    passagem de ambos de uma vida ingnua, em harmonia com a natureza, para o conhecimento

    e para a civilizao. O comer da rvore mediado pela mulher desempenha literariamente

    funo anloga iniciao de Enkidu pela cortes. Tanto num relato como no outro a

    mulher que toma a iniciativa. Enkidu perdeu parte das suas capacidades fsicas, j no podia

    correr a par dos animais selvagens que, alis, fugiam dele; tornara-se fraco relativamente

    sua situao anterior mas isso foi porque a sabedoria estava com ele e pensamentos de

    homem habitavam o seu corao. Ento regressou, sentou-se aos ps da mulher e escutou

    atentamente o que ela disse: Tu s sbio, Enkidu, e agora tornaste-te semelhante a um

    deus48. O que se passa neste quadro desta obra extraordinria pode traduzir-se pela

    passagem rpida do estado selvagem ao civilizado, por interveno de uma mulher, que o

    integra numa sociedade de costumes transformados pela cultura. Tu s sbio e tornaste-te

    semelhante a um deus o equivalente descrio bblica da aquisio do conhecimento do

    bem e do mal, o que tornou os seus protagonistas como deuses: O Senhor Deus disse:

    Eis que o homem, quanto ao conhecimento do bem e do mal, se tornou como um de ns.

    48 Pedro Tamen (Trad.), Gilgamesh, p. 16.

  • 32

    Agora preciso que ele no estenda a mo para se apoderar tambm do fruto da rvore da

    Vida e, comendo dele, viva para sempre (Gn 3,22).

    Com a aquisio do conhecimento tambm o homem primordial bblico se torna como

    um deus, apenas a vida eterna lhes escapa, porque essa reservada aos deuses. E para que no

    haja qualquer veleidade de tentar o impossvel, o autor coloca os Querubins, com espadas

    flamejantes, a vedar toda a possibilidade de acesso imortalidade, rvore da vida.

    O tema do trabalho humano algo que est tambm presente em todo o espao e tempo

    a que se reporta o presente estudo. Desde as primeiras cpias conhecidas do mito de Atrahasis

    at s ltimas do Enuma elish sempre esteve presente a ideia da criao do homem para o

    trabalho. Se no Gnesis o autor coloca o primeiro homem num pomar, previamente preparado

    para ele pelo criador, para que este o cultivasse e guardasse, no sendo referida a

    penosidade do trabalho, isto serve apenas de reverso da medalha para explicar que a

    penosidade do trabalho humano, que real, o resultado de um castigo por falta atribuda ao

    homem e da sua inteira responsabilidade. De qualquer modo uma constatao genrica que

    s os deuses esto isentos desta atribuio e, mesmo assim, na Mesopotmia isto s acontece

    aps a criao do homem, na sequncia da rebelio ou greve dos deuses menores49. que,

    na viso do homem mesopotmico, os deuses tinham necessidades semelhantes s dos

    humanos: habitao (Templos), vesturio e alimentao (sacrifcios). Estas eram inicialmente

    supridas pelos deuses menores ( Lorsque les dieux (faisaient) lhomme, ils taient de corve

    et besognaient 50); mas estes cansaram-se e acharam esta situao indigna da sua condio

    divina. A sua revolta e recusa em continuar a suportar o duro trabalho de cada dia que

    culminou na ideia da criao do homem que, sendo mortal, no estaria nunca em condies de

    se revoltar como fizeram os Igigu, os deuses subalternos: Deux mille et cinq cents ans, et

    davantage, quils avaient, jour et nuit, support cette lourde corve! Ils se mirent alors

    dblatrer et rcriminer, se complaignant de leur fouissage: allons trouver le prfet, notre

    chef, afin quil nous dcharge de notre lourde corve !51. J foi referida a forma como o

    homem foi formado, na verso do Enuma elish; tambm em Atrahass pela mistura da

    carne e sangue de um deus com argila que a deusa Mammi cria o prottipo de homem para

    que este se encarregue do trabalho antes atribudo aos deuses menores: Puis Mammi ouvrit

    la bouche et sadressa aux grands-dieux: le travail que vous maviez command, je lai

    49 A criao dos homens para suprir as necessidades dos deuses descrita em diferentes mitos

    mesopotmicos: Veja-se, por exemplo o mito de Atrahasis Lorsque les dieux pp. 535ss; Enuma

    elish ibidem, pp. 637ss. 50 Mito de Atahasis, em, Jean Bottro, Lorsque les dieux pp. 527-564. 51 Ibidem, p. 531.

  • 33

    accompli! Vous avez immol ce dieu avec son esprit, et je vous ai dbarrasss de votre lourde

    corve, en imposant votre besogne lHomme52.

    O trabalho pois inerente condio humana e tem sempre origem no tempo mtico,

    primordial, quando o homem estava em processo de formao, faz parte do ordenamento

    divino e da civilizao que foi tornando o gnero humano naquilo que ele era realmente no

    tempo histrico em que foi elaborada a literatura que agora podemos analisar.

    52 Ibidem, p. 538.

  • 34

    4 Intervenes divinas na histria da Humanidade

    A criao como vitria contra o caos primordial contm, implcita, uma permanente

    ameaa: o regresso desse mesmo caos. Os textos mticos das origens do conta dessa

    possibilidade. Embora movimentando-se em terreno mtico, as concees relativas ao avano

    da histria da humanidade apresentam episdios dramticos em que esteve iminente a

    aniquilao ou o regresso do caos, como o caso do dilvio relatado em Gnesis 6-9 e nos

    diversos relatos babilnicos, sobressaindo a epopeia de Atrahasis. No contexto bblico do

    processo criativo os episdios de interveno divina so uma forma de organizar e elaborar

    um sentido para a histria, no seu progresso inexorvel, com xitos e ameaas, mas

    avanando em direo ao progresso da humanidade. Destas ameaas iro ser tratadas duas: o

    dilvio e a confuso das lnguas ou Torre de Babel, no imaginrio bblico.

    O Dilvio

    Talvez o tema bblico onde mais notria a influncia da cultura envolvente seja o

    relato de um dilvio, no captulo stimo e seguintes do livro do Gnesis. Existem descries

    semelhantes em diversos textos mesopotmicos, nomeadamente os seguintes: mito de

    Atrahasis53, epopeia de Gilgamesh54, a narrao do dilvio segundo o sacerdote

    mesopotmico Beroso55, o texto sumrio de Nipur56.

    Foi, alis, com este tema que pela primeira vez veio a pblico a existncia de relatos

    paralelos em textos mesopotmicos e na Bblia. A decifrao dos textos cuneiformes, iniciada

    no princpio da segunda metade do sculo XIX a partir do esplio assiro-babilnico do museu

    Britnico, trouxe s luzes da ribalta um texto com cerca de trs milnios e meio de

    antiguidade, o texto sumrio de Nipur, o qual faz um relato de dilvio que se assemelha ao

    descrito no captulo stimo do livro do Gnesis e bem mais antigo do que este.

    Com esta descoberta e todas as que lhe sucederam, a Bblia perdeu a prerrogativa de ser

    o livro mais antigo conhecido e passou a ser englobada num conjunto literrio mais largo e

    mais antigo do que o do povo de Israel. O tema retomado repetidamente noutros escritos

    mesopotmicos, como se viu acima. Alis a primeira traduo do tema do dilvio,

    apresentada publicamente perante a Society of Biblical Archaeology, em Londres, em

    53 Cf. Jean Bottro, Lorsque les dieux, pp. 548-564. 54 Ibidem, pp. 568-575. 55 Ibidem, pp. 576-577. 56 Ibidem, pp. 564-567.

  • 35

    1872, foi feita a partir da tabuinha XI da epopeia de Gilgamesh, posterior ao texto sumrio e

    que s acessoriamente aborda o tema do dilvio57.

    As semelhanas entre a narrativa bblica e as narrativas mesopotmicas esto patentes

    no apenas nos motivos que as integram mas tambm na prpria sucesso dos

    acontecimentos, semelhana, alis, mas de modo muito mais pormenorizado, do que aquilo

    que se viu para o tema da criao.

    O paralelo seguinte feito com a epopeia de Gilgamesh:

    Yahweh decide destruir a humanidade por causa da maldade dos homens.

    Os deuses decidem destruir a humanidade por causa do barulho desta que

    os impede de descansar.

    Yahweh avisa No e ordena-lhe que construa uma arca.

    Ea avisa Utnapishtim e diz-lhe para construir um barco.

    No deve guardar na arca casais de animais para repovoamento.

    Utnapishtim deve levar no barco a semente de todas as criaturas vivas.

    O dilvio tem por fim a destruio de todos os seres vivos sobre a terra.

    Com o dilvio toda a humanidade reduzida a lama.

    No solta um corvo e depois uma pomba.

    Utnapishtim solta uma andorinha e depois um corvo.

    A arca de No encalha no monte Ararat, situado na Anatlia turca, prximo das

    fronteiras com o Iro e Armnia.

    Barco de Utnapishtim pousa sobre o monte Nisir, que se supe situar-se no

    Curdisto Iraquiano.

    Ao sair da arca No constri um altar e oferece um holocausto a Yahweh, que

    sente o seu agradvel odor.

    Utnapishtim, ao sair do barco, oferece um sacrifcio aos deuses, que

    aspiram o seu odor.

    Yahweh no mais amaldioar a terra por causa dos homens.

    Enlil reconcilia-se com Utnapishtim.

    Yahweh abenoa No e os filhos.

    Enlil abenoa Utnapishtim e a sua mulher.58

    57 Ibidem, p. 569. 58 Cf. Jos Nunes Carreira, Mito, Mundo e Monotesmo, p. 55.

  • 36

    s semelhanas bvias contrapem-se, porm, diferenas significativas na atitude e na

    relao da divindade com este resto da humanidade. No relato bblico notria a maior

    amplido dos destinatrios da bno divina. Ao grupo de No foi dada a misso de crescer,

    multiplicar-se e encher a terra (Gn 9,1), que no mais voltaria a ser amaldioada por causa

    dos homens. No relato mesopotmico, pelo contrrio, as medidas tomadas foram no sentido

    de limitar a proliferao dos homens.

    Mas na epopeia de Gilgamesh o dilvio relatado como histria intercalar, para dar

    resposta grande questo que atormenta o heri Gilgamesh, isto , a condio mortal do

    homem. Conforme foi referido no captulo anterior a soluo para este heri obter a

    imortalidade falhou. Porm Gilgamesh ficou a conhecer a forma como esta foi obtida por

    Utnapishtim, atravs do relato do dilvio a que este sobreviveu graas ao seu deus protetor

    Ea. Este, para no quebrar o juramento que fizera com os outros deuses quando decidiram o

    dilvio, no falou diretamente com Utnapishtim mas indiretamente, atravs da sua paliada.

    Ordenou-lhe que destrusse a sua casa e construsse um barco. Talvez por a finalidade

    principal deste mito no ser a descrio do dilvio, no so referidas as razes que o

    determinaram. Parece ter sido mero capricho de Enlil, uma vez que no final todos os deuses

    esto contra ele:

    Ea ouvrit donc la bouche, pris la parole et sadressa Enlil-le-preux : mais toi, le plus

    sage des dieux, le plus vaillant, comment donc as-tu pu, aussi inconsidrment, dcider le

    Dluge ? Fais porter sa coulpe au seul coupable, et son pch au seul pcheur ! 59.

    no poema de Atrahasis, mais antigo, que so aduzidas as razes que levaram o deus

    soberano Enlil a decidir dizimar a humanidade: os homens haviam-se multiplicado e o

    barulho que faziam impediam-no de ter um bom repouso:

    Douze cents ans [ne staient pas couls] [que le territoire se trouva largi] et la

    population multiplie. [Comme un taur]eau, le pa[ys] tant donna de la voix que le dieu-

    souverain fut incommod [par le tapage]. [Lorsque Enlil eut ou] leur rumeur, [Il sadressa

    a]ux grands-dieux : La rumeur des humains [est devenue trop forte] : Je narrive plus

    dormir, [avec ce tapa]ge !60.

    Mas no decretou de imediato a extino pelo dilvio; primeiro experimentou reduzir o

    nmero de humanos pela epidemia, depois pela fome, e depois pela seca. A todas resiste uma

    59 Cf. Epopeia de Gilgamesh, em, Jean Bottro, Lorsque les dieux, pp. 574-5. 60 Cf. Poema de Atahasis, em, Jean Bottro, Lorsque les dieux, p. 541.

  • 37

    parte da humanidade devido interveno de Atrahasis, o Supersbio, perante o seu deus

    amigo Enki, de quem era particular devoto. Este transmitiu-lhe sempre uma soluo para o

    problema e a humanidade diminua em nmero e em barulho, mas no foi extinta e

    rapidamente se reproduzia. Enlil decide finalmente o ltimo recurso, o dilvio. Atrahasis

    recorre mais uma vez ao seu deus protetor que, numa soluo de compromisso entre as ordens

    de Enlil e a necessria ajuda ao seu devoto, informa-o do que tem que fazer, mas em sonhos.

    A soluo para sobreviver s guas revoltas de um dilvio sempre a mesma: construir um

    barco ou algo com a mesma serventia. Neste aspeto todos os relatos coincidem. No final do

    dilvio o sobrevivente tem, como primeira ao, a oferta de um sacrifcio aos deuses. Nos

    relatos mesopotmicos estes, provavelmente j esfomeados pela ausncia de sacrifcios

    durante todo o tempo do dilvio, acorrem como moscas a aspirar o odor das oferendas. S

    que isto denuncia a presena dos sobreviventes a Enlil, que fica furioso com a traio. Porm

    parece que acaba por aceitar a justificao de Enki e decidido tomar medidas diferentes para

    que os humanos no se multipliquem do mesmo modo que antes e prevenir assim a algazarra

    incomodativa. A primeira dessas medidas tornar os humanos mortais; outras medidas

    preventivas so: esterilidade de algumas mulheres; mortalidade infantil; algumas mulheres

    consagradas, a quem ser interdita a maternidade:

    [Enki] ouvrit alors la [bou]che [et sadr]essa Nintu,-la-Matrice : divine [Mat]trice,

    [toi] qui arrtes les destins, impose donc aux hommes la mort En sus, triple ( ?) loi

    appliquer aux hommes : Chez eux, outre les femmes fcondes, Il y aura des infcondes ; Chez

    eux svira la Dmone-taigneuse, pour ravir les bbs aux genoux de leurs mres. Institue-

    leur pareillement des femmes-consacres : Ugbatu, entu et igistu, avec leur interdit particulier

    pour leur dfendre dtre mres !.61

    Parece evidente que esta curiosa lista de medidas para evitar o superpovoamento da

    terra mesopotmica representa uma justificao de caracter etiolgico para a incomodativa

    realidade que as mesmas descrevem: morte em geral, morte das crianas, sobretudo recm-

    nascidas, infertilidade de algumas mulheres, interdio da maternidade s mulheres

    consagradas. Sendo esta a realidade observada e no encontrando o homem justificao lgica

    para ela, projeta para tempos primordiais e para deciso dos deuses a sua instituio.

    Parece no haver dvida de que a tradio bblica dependente da tradio

    mesopotmica, apesar de algumas diferenas bem patentes: o dilvio decidido pelo Deus

    nico, sem conselhos nem oposies; ele que escolhe No para sobrevivente e lhe diz o que

    tem que fazer; ele que o informa que j pode sair da arca com os familiares e os animais;

    61 Cf. Atrahasis, em, Jean Bottro, Lorsque les dieux, p. 554.

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    tambm acolhe o perfume do holocausto que No lhe oferece ao descer em terra e, em vez de

    instituir limitaes proliferao humana, ordena que sejam fecundos, se multipliquem e que

    encham a terra (Gn 9,1).

    A esta diferena relativamente multiplicao da humanidade no alheia, certamente,

    a situao demogrfica dos dois espaos geogrficos: muito povoada a Mesopotmia, fraca

    densidade populacional em Cana.

    Se no se pode excluir a possibilidade de o redator deste episdio bblico ter tido

    conhecimento direto dos textos mesopotmicos, parece mais provvel que deles tenha tido

    conhecimento atravs dos outros povos semitas com quem coabitava na Palestina, que por sua

    vez eram participantes da cultura dos povos irmos da mesopotmia e conhecedores do seu

    patrimnio literrio.

    Armindo Vaz refere que a semelhana entre os dois relatos no , de modo nenhum,

    superficial. Praticamente todos os motivos ou temas usados na narrao bblica encontram-se

    j na tradio cuneiforme mesopotmica, com a mesma sequncia narrativa. De resto, a

    descrio de um dilvio mtico como expediente com que a divindade redimensiona a

    humanidade primordial que estava a criar comum na literatura da antiguidade62.

    Tambm a questo de recomear a multiplicao dos homens a partir de um grupo

    selecionado , uma vez que o conjunto dos existentes tinha degenerado visivelmente do projeto

    inicial, est presente quer no relato bblico quer nos mesopotmicos: Atrahasis; Gilgamesh e

    no relato sumrio. No caso bblico, No era agradvel aos olhos do Senhor (Gn 6,8);

    Atrahasis era devoto de Enki e este tomava-o, frequentemente, como confidente: Or, il y

    ava[it un certain Supersage], dvot dEnki, et for[t habile], qui pouvait sentretenir av[ec son

    dieu], lequel le prenait volontiers [pour interlocuteur] !63.

    Na epopeia de Gilgamesh Ea d as instrues de salvamento a Utnapishtim porque este

    era seu servidor: Alors a ouvrit la bouche, prit la parole et sadressa moi, son serviteur

    (Tabuinha XI, linha 37); no relato sumrio do dilvio Ziusudra, o rei, era devoto de Enki:

    Or, en ce temps-la, Ziusudra, le roit dvot et qui avait difi humblement et en ces

    termes choisis [implorait Enki], [devant lequel] il se tenait, longueur de journe (Relato

    sumrio do dilvio)64. Interessante notar que todos os heris mesopotmicos foram

    agraciados pelos deuses com a vida eterna mas no No, apesar de j ter sido descrita no livro

    do Gnesis uma situao que se pode assemelhar: trata-se de Henoc que foi arrebatado por

    Deus: Henoc andou na presena de Deus, e desapareceu, pois Deus arrebatou-o (Gn 5,24).

    62 Armindo Vaz, Pentateuco, p. 190. 63 Cf. Jean Bottro, Lorsque les dieux, p. 541. 64 Cf. Jean Bottro, Lorsque les dieux, nos captulos respeitantes a cada um dos relatos.

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    Uma questo que se pode colocar por que razo os autores dos mitos em que se

    descreve um dilvio univ