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LÍVIA CRISTINA DE AGUIAR COTRIM MARX POLÍTICA E EMANCIPAÇÃO HUMANA 1848-1871 PUC – São Paulo 2007

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LVIA CRISTINA DE AGUIAR COTRIM

MARX

POLTICA E EMANCIPAO HUMANA

1848-1871

PUC So Paulo

2007

2

LVIA CRISTINA DE AGUIAR COTRIM

MARX

POLTICA E EMANCIPAO HUMANA

1848-1871

Tese apresentada Banca Examinadora do

Programa de Estudos Ps-Graduados em

Cincias Sociais da Pontifcia Universidade

Catlica de So Paulo, como exigncia parcial

para obteno do ttulo de Doutor em Cincias

Sociais, sob orientao do Prof. Dr. Miguel

Wadi Chaia.

PUC So Paulo

2007

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A memria de

J. Chasin

Ao Ivan, Ana e Vera

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AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Miguel Chaia, que acolheu e orientou essa pesquisa, ao longo desses vrios

anos, com grande firmeza intelectual e ainda maior gentileza pessoal.

Ao Programa de Estudos Ps-Graduados em Cincias Sociais da PUC-SP e ao Conselho

Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) que ofereceram as condies

institucionais e auxlio financeiro para o desenvolvimento deste trabalho.

Aos amigos de tantos anos, que desde a Ensaio e a Ad Hominem compartilham a difcil

empreitada de tentar manter a lucidez, e que, por caminhos e com responsabilidades e

participaes distintas, foram fundamentais para a realizao deste trabalho. Em especial, ao

Rago e Goreti, amigos de toda hora.

A J. Chasin (in memorian), pela estatura terico-revolucionria e ainda mais pela

integridade, empenho pessoal e estmulo ao pensamento de rigor e luta pela emancipao

humana, que pautou permanentemente sua vida, e sob cuja inspirao este trabalho foi realizado.

Ana e Vera, pelo carinho e entusiasmo pela vida.

Ao Ivan, novamente e sempre, por tudo.

6

RESUMO

Este trabalho investiga as relaes entre poltica e emancipao humana no pensamento

de Karl Marx, por meio da anlise imanente de um conjunto de obras produzidas entre os anos

de 1848 e 1871, nas quais abordou aqueles temas ao examinar acontecimentos histricos

marcantes: os artigos escritos para o jornal Nova Gazeta Renana, publicado de junho de 1848 a

maio de 1849; As Lutas de Classes na Frana, de 1850, O Dezoito Brumrio de Lus Bonaparte, de 1852,

e A Guerra Civil em Frana, incluindo seus dois Esboos, de 1871. A pesquisa mostrou a

continuidade da determinao ontonegativa da politicidade, descoberta pelo autor nos anos de

formao de seu pensamento prprio, bem como seu desenvolvimento e concretizao pelo

exame das lutas de classes e transformaes polticas ocorridas naquelas ocasies. A primeira

parte aborda, pela anlise dos artigos produzidos para a Nova Gazeta Renana, o processo de

revoluo e contra-revoluo no interior da misria alem, que no superada. A segunda parte

examina a afirmao da revoluo social nas jornadas de junho de 1848, sua derrota e a emerso

do estado bonapartista. Em ambas, foram destacadas as formas de atuao poltica e elementos

da conscincia das diversas classes, as relaes entre a classe e sua representao poltica e os

limites ou potencialidades manifestos por elas. A terceira parte examina os textos acerca da

Comuna de Paris, entendida como anttese do estado, forma no estatal da emancipao social.

Em anexo, so apresentados os artigos da Nova Gazeta Renana escritos por Marx e os de

autoria no identificada, traduzidos do original alemo.

7

ABSTRACT

The purpose of this work is to inquire the relations between politics and human

emancipation in Karl Marxs thought through immanent analysis of texts produced between 1848

and 1871 in which Marx focuses those subjects while examining remarkable historical events:

articles written for New Rhine Gazette, published from June 1848 to May 1849; The Class Struggles in

France, of 1850, The Eighteen Brumaire of Louis Bonaparte, of 1852, and The Civil War in France,

including both of its Drafts, of 1871. This research shows that onto-negative determination of

politics, found out by the author during the years when he constituted his own original thought,

is maintained throughout the writings analyzed. That concepts development and concretization

is also demonstrated through examining Marxs account on class struggles and political changes

then taken place. In the first part of the research revolution and counter-revolution processes are

approached within the never overcome German poverty, through New Rhine Gazette articles. In

the second part, it is examined social revolution assertion in June 1848 insurrections, their defeat

and Bonapartist state arousal. In both, forms of political actions and different classes

consciousness elements were emphasized, as well as the relationships between classes and their

political representations, their limits and potentialities. The third part focuses writings on Paris

Commune understood as antithesis of the state, the non-state form of social emancipation.

All the articles from New Rhine Gazette by Marx and those of unknown authorship were

translated from the German originals and are presented as an appendix.

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NDICE

APRESENTAO 10 PARTE I A ARMA DA CRTICA INTRODUO 1. A misria alem: delineamentos iniciais 38 2. Antes da tormenta 41 3. Marx e a Nova Gazeta Renana 52 CAPTULO I Junho de 1848 A revoluo contra a ordem 60 CAPTULO II Revoluo e contra-revoluo na Alemanha 1. Panorama da contra-revoluo alem 67 2. A misria alem e as revolues de tipo europeu 94 3. Reacionarismo e iluso a conscincia da burguesia alem 105 4. A conscincia do povo iluses politicistas 124 5. 1848: revoluo internacional 143 6. O corpo do estado: direito e foras armadas 152 7. Liberdade de imprensa 169 8. Necessidade e limites histricos do estado 175 PARTE II A REVOLUO DE 1848 E O BONAPARTISMO INTRODUO 193 CAPTULO I A revoluo social: a poesia do futuro 198 CAPTULO II Os sentidos da repblica 216 1. A repblica social 220 2. A constituio da repblica burguesa 226 3. A repblica constituda 235 CAPTULO III Da repblica ao bonapartismo 251 CAPTULO IV O corpo do estado 268

9

CAPTULO V Classes sociais e representao poltica 276 1. O proletariado 276 2. Camponeses 293 3. Pequena Burguesia 308 4. Burguesia 325 5. Lus Bonaparte 347 CAPTULO VI O estado bonapartista 355 PARTE III A CRTICA DAS ARMAS INTRODUO 365 CAPTULO I Da guerra franco-prussiana guerra civil 1. O governo de defesa nacional e o desarmamento de Paris 383 2. Reao e corrupo 387 3. A revoluo de 1848 e a repblica 395 CAPTULO II O imprio bonapartista 402 CAPTULO III A Comuna 1. Poltica e emancipao humana 424 2. Classes mdias e campesinato na Comuna 459 3. Os erros da Comuna 467 CONSIDERAES FINAIS 476 BIBLIOGRAFIA 514

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APRESENTAO

As contradies do capital e seu carter desefetivador do homem indivduo e

sociabilidade talvez nunca tenham se evidenciado com tanta clareza flor mesmo das

aparncias mais imediatas como neste novo momento histrico aberto com a mundializao do

capital. Entretanto, talvez tambm nunca tenha estado to ausente a perspectiva de sua superao

e de constituio de uma sociabilidade fundada na lgica onmoda do trabalho imperativos para

a continuidade da autoconstruo humana. Indicativo da desefetivao aludida, a renncia

autoconstruo se manifesta, entre outras formas, pelo recrudescimento da crena na eficcia da

poltica.

Nesse quadro, recuperar a perspectiva da transformao social impe a necessidade de

proceder anlise crtica das tentativas at hoje empreendidas de superao do capital, bem como

a de enfrentar tambm outra exigncia premente: a redescoberta do pensamento de Marx.

no interior desses parmetros que busca se inserir esta pesquisa, voltada para o

pensamento elaborado por Marx acerca do estado e da poltica, tal como ele se apresenta em um

conjunto de trabalhos nos quais so examinados momentos histricos em que a luta de classes

atingiu elevado nvel de agudizao, quais sejam: o conjunto de artigos escritos para a Nova Gazeta

Renana (1848/1849), e para a Nova Gazeta Renana - Revista (1850) entre os quais As Lutas de

Classes na Frana de 1848 a 1850 , O Dezoito Brumrio de Lus Bonaparte e A Guerra Civil em Frana,

incluindo os dois Esboos preparatrios.

Toda a obra de Marx vem sendo objeto de intenso debate h j mais de um sculo, e no

diferente a situao quando se trata de sua anlise da poltica. A existncia de diversas leituras

e propostas dela derivadas indica, certamente, a riqueza e vitalidade de seu pensamento, mas

tambm uma dificuldade permanente em sua apreenso 1 . Tanto um aspecto quanto outro,

entretanto, no derivam somente da genialidade (inquestionvel) do pensador alemo e da maior

ou menor capacitao de seus vrios intrpretes, mas, considerando que o pensamento

socialmente determinado (outra questo cara a Marx, e tambm objeto de larga discusso),

preciso levar em conta os processos histrico-sociais que permitiram genialidade do primeiro

alcanar determinados resultados, e dificultaram aos segundos a apreenso deles.

Ainda que se trate de dois problemas distintos, sua interligao clara. Pois, embora a

incompreenso de Marx seja motivada por razes mais antigas e essenciais, foroso reconhecer

que, no sculo XX, a inviabilidade da revoluo social e a consolidao de uma sociedade regida

1 . Por esta razo, reserva-se o termo marxiano para referir exclusivamente o pensamento elaborado pelo prprio Marx, tal como pode ser encontrado em seus diversos escritos. Para os herdeiros e seguidores de suas proposies, inclusive Engels, reservamos o termo marxista.

11

pelo capital coletivo/no-social em outros termos, a derrota da perspectiva do trabalho

dificultou aquele entendimento e constrangeu ao predomnio de um pensamento que se move no

crculo limitado da lgica do capital e das categorias a ela correspondentes, entre as quais avulta a

politicidade e a respectiva razo poltica. Tais constrangimentos seriam j suficientes para

condenar desconsiderao os melhores resultados dos esforos de recuperao de Marx

efetivados nos auspiciosos incios do ltimo sculo.

O ainda recente desaparecimento da URSS e a reconverso de suas unidades nacionais,

bem como dos demais pases que constituam o bloco ps-capitalista, ao capitalismo; o salto

qualitativo no desenvolvimento das foras produtivas nas ltimas dcadas, demonstrando que o

capital continua capaz de o promover, ainda que sob formas cada vez mais contraditrias e

desumanizadoras; a conseqente transfigurao por que passa a classe trabalhadora, envolvendo a

desapario ou, ao menos, a reduo e perda de importncia de categorias profissionais que

encarnavam, desde meados do sculo XIX, a vanguarda do trabalho, o proletariado, sem que as

que passaro a corporific-lo tenham se manifestado como tais em outras palavras, a evidncia

final do fracasso do ps-capitalismo travestido de socialismo, a renovada capacidade do capital de

promover a ampliao das foras produtivas materiais e espirituais, e o eclipse do sujeito

revolucionrio pela extino do velho proletariado perfazem o quadro histrico no qual foram

tambm enterrados os instrumentos prticos e as concepes tericas que caracterizaram as

esquerdas, reais e nominais, ao longo do sculo XX. Se tudo isto deixa o gosto amargo da

derrota, preciso reconhecer que esta ocorreu h mais de seis dcadas (quando a impossibilidade

da transio para alm do capital gerou o capital coletivo/no-social, o complexo prtico e

terico do stalinismo e extinguiu a esquerda)2 e que o desaparecimento de organismos partidrios,

h muito estiolados, e ao menos das verses mais antigas e estreitas do marxismo vulgar formas

de agir e pensar incapazes de opor crtica e resistncia efetivas ao avano do capital nos campos

terico e prtico deixa campo livre posio adequada a repor a crtica do capital na ordem do

dia e a revoluo social no horizonte.

Diante desse quadro, a crtica contempornea ao capital e a recuperao da perspectiva

revolucionria no podem vir desacompanhadas do esforo de repensar as formas pelas quais

essa crtica se materializou e as razes das derrotas que vem sofrendo desde suas primeiras

manifestaes no sculo XIX, uma das faces do complexo de problemas que envolve o

prolongamento da utilidade histrica do capital e a morte da esquerda no plano mundial. Ainda

que interligadas, j que cada uma delas condiciona em alguma medida a outra, no podem,

2 . Ver, a esse respeito, J. CHASIN, A Sucesso na Crise e a Crise na Esquerda, in A Misria Brasileira. 1964-1984: Do Golpe Militar Crise Social, Santo Andr, Ad Hominem, 2000; e Marx Estatuto Ontolgico e Resoluo Metodolgica, in F. TEIXEIRA, Pensando com Marx, So Paulo, Ensaio, 1994.

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entretanto, ser confundidas, guardando cada qual sua especificidade e decorrendo de movimentos

e foras (ou debilidades) prprias. A morte da esquerda certamente conta, entre suas

determinaes, com essa sucesso de derrotas e com o desconhecimento e/ou as diversas

deformaes a que foi submetido o pensamento marxiano3, em especial ao longo do sculo XX.

A recuperao da anlise marxiana de momentos marcantes da prtica da classe

trabalhadora as revolues de 1848 e seus desdobramentos e a Comuna de Paris pode

contribuir para a dupla tarefa de entender o sentido desses movimentos e de seu fracasso, e

redescobrir o pensamento prprio de Marx a respeito dos problemas envolvidos na batalha pela

emancipao humana.

Marx afirmou que A anatomia do homem a chave para a anatomia do macaco,

indicando a necessidade da maturao histrica do objeto para que seja possvel compreend-lo,

bem como que essa apreenso permite, por sua vez, avaliar as manifestaes mais incipientes

daquele objeto. Isso verdadeiro, tambm, mutatis mutandis, para o pensamento marxiano acerca

da poltica: os limites do estado, da atividade e da razo polticas, a estreiteza da revoluo e

emancipao polticas, a identificao destas com a burguesia e a sociabilidade do capital, e, em

contraste, o liame entre a perspectiva de uma sociabilidade centrada na lgica onmoda do

trabalho e a revoluo social e a emancipao humana geral tudo isso ganha relevo diante da

tragdia do sculo XX, sculo que primou pela exaltao terica e prtica da politicidade.

Relevo ampliado ainda pela considerao de que Marx iniciou a elaborao de seu

pensamento prprio pela crtica ontolgica da poltica, a partir da qual atinge a crtica da

especulao e chega da economia poltica, ambas igualmente ontolgicas4.

No Prefcio a Para a Crtica da Economia Poltica, de 1859, Marx refere os pontos de inflexo

significativos daquele perodo, que se inicia em abril de 1842 com a criao da Gazeta Renana,

jornal vinculado a representantes da burguesia liberal renana em luta contra o absolutismo

prussiano, fechado em 1/04/1843 por decreto deste ltimo, no qual Marx participa como

articulista e, desde outubro de 1842, como redator-chefe. No decorrer dessa atividade jornalstica

surgiram as dvidas que o fizeram rever sua concepo anterior e lhe permitiram alcanar uma

posio inteiramente nova em relao a toda a reflexo poltica precedente, filosofia e cincia

de ponta de sua poca. Marx afirma que, como redator da Rheinische Zeitung, encontrei-me pela

3 . O termo marxiano reservado para referir exclusivamente os escritos e o pensamento expressos por Marx,

enquanto marxista remete aos que se identificam com suas idias, includo F. Engels. 4 . A gnese do pensamento marxiano foi amplamente examinada por J. Chasin, que, apoiado na anlise imanente de um conjunto de textos dos artigos publicados na Gazeta Renana Misria da Filosofia atestou a inconsistncia da onipresente teoria do amlgama originrio entre os materiais empricos da economia poltica clssica, o pensamento poltico do socialismo francs e o mtodo filosfico hegeliano, e desvendou o modo especfico como Marx faceou a prtica, a filosofia e a cincia de seu tempo: a crtica ontolgica. As linhas que se seguem valem-se das descobertas chasinianas. Conforme J. CHASIN, Marx Estatuto Ontolgico e Resoluo Metodolgica, in F. TEIXEIRA, Pensando com Marx, So Paulo, Ensaio, 1994.

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primeira vez na obrigao embaraosa de dar a minha opinio sobre o que costume chamar-se

os interesses materiais5, mais precisamente sobre questes decisivas relacionadas objetivao

das relaes capitalistas na Alemanha, cujo carter tardio resumiu depois sob a denominao de

misria alem, quais sejam: As deliberaes do Landtag renano sobre os roubos de lenha e a

diviso da propriedade imobiliria, /.../ a situao dos camponeses do Mosela e, finalmente, os

debates sobre o livre-cmbio e o protecionismo6. necessidade de tratar dessa temtica somou-

se a de abordar o socialismo e o comunismo francs: Por outro lado, nesta poca em que o

desejo de ir para a frente substitua freqentemente a competncia, fez-se ouvir na Rheinische

Zeitung um eco do socialismo e do comunismo francs, ligeiramente eivado de filosofia.

Pronunciei-me contra esse trabalho de aprendiz, mas ao mesmo tempo confessei abertamente

/.../ que os estudos que tinha feito at ento no me permitiam arriscar qualquer juzo sobre o

teor das tendncias francesas7.

Marx revela, pois, que, poca de sua colaborao com a Gazeta Renana, sentiu-se

embaraado para tratar dos interesses materiais, e no conhecia a fundo o socialismo e o

comunismo franceses.

As dificuldades em relao aos interesses materiais decorriam da posio ento assumida

por ele, ainda claramente circunscrita pela democracia e pela determinao ontopositiva da

politicidade, atada a uma filosofia da auto-conscincia, redundando no julgamento de que a

instaurao do estado poltico pleno, ainda inexistente numa Alemanha sequer unificada, seria

necessrio e suficiente para a resoluo dos problemas socioeconmicos em tela8.

A insuficincia dessa posio vai se evidenciando conforme posta prova na discusso

sobre os interesses materiais, isto , conforme vai se tornando claro que o modo como

compreendia o estado, as relaes entre este e o restante da vida, entre conscincia e atividade,

entre filosofia e mundo, no permitia resolver os citados problemas suscitados pelos interesses

materiais. a anlise dessas relaes tal como ocorriam efetivamente, levando s ltimas

conseqncias aquela sua concepo, que a pe em xeque, e obriga o pensador alemo a reavali-

la. As dvidas no foram, pois, suscitadas por questionamentos de ordem metodolgica ou

gnosiolgica, mas sim pela considerao do modo como a prpria realidade se pe e se move,

levando a descartar a centralidade da poltica.

5 . Karl MARX. Contribuio para a Crtica da Economia Poltica (traduo de Maria Helena Barreiro Alves). Lisboa,

Editorial Estampa, 1973, p. 27. 6 . Ib., pp. 27-28. 7 . Ib., p. 28. 8 . Celso EIDT. A Razo como Tribunal da Crtica: Marx e a Gazeta Renana, Ensaios Ad Hominem 1 Tomo IV: Dossi Marx, Santo Andr, Ad Hominem, 2001.

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De sorte que, pouco antes do fechamento da Gazeta Renana, e aproveitando a iluso dos

diretores daquele peridico, preferi deixar a cena pblica e retirar-me para o meu gabinete de

estudos, em Kreuznach. , pois, a partir de meados de 1843 que inicia o processo de

ultrapassagem de sua concepo juvenil, marcada pelo idealismo e pela defesa democrtica-radical

do estado racional e, sempre de acordo com o prprio Marx, a nova posio conquistada posta

a pblico no ano seguinte: O primeiro trabalho que empreendi para esclarecer as dvidas que

me assaltavam foi uma reviso crtica da Filosofia do Direito, de Hegel, trabalho cuja introduo

apareceu nos Deutsch-Franzsische Jahrbcher, publicados em Paris, em 1844. A filosofia hegeliana

do direito era a expresso mais alta da determinao ontopositiva da politicidade, vale dizer, da

afirmao da necessidade do estado, de sua perenidade e de sua condio de lcus da

racionalidade, da liberdade e da comunidade (a Crtica da Filosofia do Direito de Hegel restou

inacabada, como se sabe). De modo que, segundo o testemunho do autor, j neste momento

havia chegado, acerca do estado e da poltica, bem como da especulao, concluso que

caracteriza sua nova posio da em diante: as relaes jurdicas assim como as formas de

estado no podem ser compreendidas por si mesmas, nem pela dita evoluo geral do esprito

humano, inserindo-se pelo contrrio nas relaes materiais de existncia de que Hegel,

semelhana dos ingleses e franceses do sculo XVIII, compreende o conjunto pela designao de

sociedade civil; por seu lado, a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia

poltica9. Trata-se, pois, de uma viragem radical, impulsionada, de acordo com o prprio Marx,

pelo fracasso da tentativa de solucionar politicamente problemas relativos vida material. O

reconhecimento do impasse a que conduz tal abordagem levou Marx a questionar a conformao

do mundo por ela pressuposta, resultando numa revoluo terica efetuada no com, mas contra a

natureza do pensamento poltico contido em seus artigos da Gazeta Renana10.

Alm da referida Introduo, o nmero nico dos Anais Franco-Alemes tambm estampou

Sobre A Questo Judaica, em que o foco igualmente a politicidade e a especulao.

Lembre-se que estas notas sobre seu percurso intelectual visam a oferecer algumas

indicaes sobre a seqncia dos meus prprios estudos da economia poltica11, isto , Marx

expe o caminho que percorreu para chegar crtica desta ltima: foi preciso ultrapassar a

filosofia poltica, em especial, e a filosofia especulativa, em geral, para alcanar a necessidade de

proceder crtica ontolgica da economia poltica, de cujos primeiros passos do testemunho a

redao dos Cadernos de Paris e dos Manuscritos Econmico-Filosficos. Como ficar claro, a crtica

9 . K. MARX, ib., p. 28. 10 . J. CHASIN, op. cit., p. 358. 11 . Ib., p. 27.

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marxiana envolve tanto as expresses intelectuais as teorias especulativas, polticas e

econmicas quanto as realidades que elas expressam e nas quais radicam.

Assim, Marx atesta, no mesmo passo, a importncia crucial da crtica da politicidade na

passagem para sua posio prpria, o momento em que a alcanou, validando, em 1859, os textos

de 1844 como expresses legtimas dela, e o carter ontolgico dessa transio, pois relativo

apreenso de um modo de ser. As relaes jurdicas e as formas de estado no podem ser

compreendidas por si mesmas, nem pela dita evoluo geral do esprito humano, graas no a

qualquer razo de ordem epistmica ou gnoseolgica, mas porque de fato no existem daquele

modo, e sim inseridas nas condies materiais de existncia. o que se confirma em seguida,

quando Marx apresenta a concluso geral a que chegou nos estudos da economia poltica,

iniciados em Paris e continuados em Bruxelas, e na qual se destaca a afirmao de que O modo

de produo da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, poltica e intelectual

em geral. No a conscincia dos homens que determina o seu ser; o seu ser social que,

inversamente, determina a sua conscincia12. Afirmao relativa a problemas concernentes ao

modo de existncia dos homens, ao ser social tal como posto por si mesmo.

A Crtica da Filosofia do Direito de Hegel Introduo, Sobre A Questo Judaica e Glosas Crticas

ao artigo O Rei da Prssia e a Reforma Social expem a ruptura ontolgica de Marx com a

especulao e com a determinao ontopositiva da politicidade, bem como os lineamentos que

vai conquistando acerca dessa esfera, a partir da nova posio conquistada a analtica das coisas,

expresso cunhada por Chasin a partir da afirmao, contida na Crtica de Kreuznach, de que o que

importa a lgica da coisa, e no, como em Hegel, a coisa da lgica13.

Na Crtica da Filosofia do Direito de Hegel Introduo, atestando o vnculo entre a crtica da

poltica e a da especulao, a obra hegeliana reconhecida como expresso mxima da filosofia

poltica alem e recusada junto com o estado moderno, do qual o pensamento abstrato e

exuberante, e pode s-lo porque o prprio estado faz abstrao do homem real, vale dizer,

acolhe os indivduos j despojados das relaes e qualificaes concretas que os especificam,

reduzindo-os ao cogulo supostamente natural, nucleado pela propriedade privada, que os

igualiza. Nesse texto, Marx distingue entre a revoluo parcial, meramente poltica, que alcana a

liberdade de mesmo tipo, e a revoluo radical, que conduz emancipao humana geral. Essa

distino se arrima nas conhecidas afirmaes de que ser radical tomar as coisas pela raiz. Mas

a raiz, para o homem, o prprio homem. E logo adiante: o homem o ser supremo para homem, o

que leva ao imperativo categrico de derrubar todas as relaes nas quais o homem um ser abandonado 12 . Ib., pp. 28-29. Na Parte III deste trabalho, essa concluso geral voltar a ser considerada com mais detalhe. 13 . J. CHASIN, Marx Estatuto Ontolgico e Resoluo Metodolgica, op.cit. As linhas subseqentes so devedoras das mltiplas indicaes nesse sentido de J. Chasin, explicitadas tanto neste quanto nos diversos textos que compem o Tomo III: Poltica, de Ensaios Ad Hominem 1.

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e desprezvel. Pginas antes, Marx j havia estabelecido que o homem o mundo dos homens, o

estado, a sociedade14. A revoluo poltica , ademais, determinada como a emancipao de uma

parte da sociedade civil que instaura sua dominao, e s pode ocorrer se essa parte for

reconhecida como representante geral da sociedade, encarnando em si a potncia da libertao,

em contraposio a outra parcela que concentre todos os defeitos e limites da sociedade.

Assim, a revoluo poltica depende de condies de possibilidade especficas, nem sempre

presentes. Em outras palavras, como resultado de sua recm-conquistada posio, Marx remete a

possibilidade da revoluo poltica para as condies concretas de existncia das classes, ao invs

de entend-la como possibilidade universal porque assentada numa suposta condio inerente aos

indivduos singulares: a razo ou a vontade. E onde ela possvel, restringe-se, na qualidade de

emancipao parcial, a uma mediao para a emancipao humana geral. Ao contrrio, a

revoluo radical, a emancipao humana geral, a verdadeira e ltima finalidade. Diferenciadas

por seus contedos, tambm os modos de realizao se distinguem: a revoluo poltica conserva

as relaes scio-econmicas e altera, de acordo com elas, as formas e relaes polticas, ao passo

que a revoluo radical se vale da liberdade poltica, parcial, como meio para reconfigurar as

condies de existncia dos homens.

Assim, no alvorecer de seu pensamento prprio, Marx estabelece uma escala que

inferioriza o territrio poltico /.../ em face da altitude do humano, deslocando a politicidade para

os contornos de uma entificao transitria a ser ultrapassada, recusando-lhe a altura e a

centralidade que ostenta ao longo de quase toda a histria do pensamento ocidental15. Enquanto

a revoluo poltica no ultrapassa a condio de mediadora, e como tal pode ser dispensada,

emancipao humana geral cabe a condio de objetivo ltimo, imprescindvel e infinito: a

afirmao e construo do ser humano-societrio.

Vale destacar que esse tlos no se pe nem como postulao extrada da suposta

natureza humana de indivduos isolados, nem como dever-ser abstratamente contraposto ao

existente, mas sim como possibilidade objetiva, como potencialidade presente na entificao

social real.

Reconfigurada a revoluo a ser buscada, seu agente tambm se redesenha. Ao invs de

uma classe cujas condies particulares de existncia devem ser generalizadas como eixo da vida

social, o sujeito da revoluo radical identificado como uma categoria social de cadeias

radicais, uma classe da sociedade civil que no uma classe da sociedade civil, isto , que

representa a dissoluo dela, cujas condies de existncia, portanto, no podem ser

14 . K. MARX, Crtica da Filosofia do Direito de Hegel. Introduo, in Temas de Cincias Humanas n 2, So Paulo, Grijalbo, 1977 (traduo de Jos Carlos Bruni e Raul Mateos Castell), respectivamente p. 8 e p. 1. 15 . J. CHASIN, ib., p. 365.

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generalizadas, que , numa palavra, a perda total do homem, j que despojada, no ato mesmo

de as realizar, de todas as coisas e relaes que a tornam humana, e s pode, portanto, recuperar

a si mesma atravs da recuperao total do homem16. Passagem cuja eloqncia evidencia que a

revoluo radical ou emancipao global passa a ser /.../ o complexo entificador /.../ da efetiva e

autntica realizao do homem, e no mais uma forma qualquer de estado ou de prtica

poltica17, alm de desautorizar a impropriedade de tratar o proletariado como classe universal.

O exame de Sobre A Questo Judaica, nucleado pela crtica do carter geral e essencial do

estado, tal como se manifesta em sua forma mais plenamente desenvolvida, confirma e desdobra

os lineamentos encontrados no texto anterior. Marx explicita a natureza da politicidade

examinando a distino entre emancipao poltica e emancipao humana, apontando o carter

limitado, parcial, da emancipao poltica, e em geral de toda soluo poltica: O limite da

emancipao poltica aparece imediatamente no fato de que o estado pode se libertar de um

constrangimento sem que o homem se liberte realmente dele; de o estado conseguir ser um estado

livre sem que o homem seja um homem livre18. Esta parcialidade ou limitao no constitui um

defeito, uma imperfeio da poltica, mas, ao contrrio, sua determinao essencial: o estado

elimina, a sua maneira, as diferenas de nascimento, posio social, educao e profisso, ao declarar

nascimento, posio social, educao e profisso diferenas no polticas; ao proclamar,

desconsiderando tais distines, que todo membro do povo partcipe igualitrio da soberania

popular, ao tratar a todos os integrantes da vida real do povo do ponto de vista prprio do

estado. Ou seja, o estado permite que a propriedade privada, a educao e a profisso atuem a

seu modo, a saber, como propriedade privada, educao e profisso, e faam valer sua natureza

particular. De sorte que, longe de abolir essas diferenas efetivas, o estado descansa sobre essas

premissas, s se apreende como estado poltico e s faz valer sua universalidade em oposio a tais

elementos19. Entendido, assim, o estado poltico como expresso da vida genrica do homem

em oposio sua vida material, e enfatizado que os limites da emancipao poltica no so um

seu defeito, mas sua consumao, Marx reconhece sua importncia delimitando seu alcance:

Sem dvida, a emancipao poltica representa um grande progresso. Porm, no constitui a

forma final da emancipao humana, ainda que seja a ltima forma da emancipao humana

dentro da ordem do mundo atual20. Ou seja, sem negligenciar o significado da emancipao

poltica, Marx a vincula explicitamente (des)ordem humano-societria regida pelo capital, o que

16 . K. MARX, Crtica da Filosofia do Direito de Hegel. Introduo, in Temas de Cincias Humanas n 2, So Paulo, Grijalbo, 1977 (traduo de Lus Carlos Bruni e Raul Mateos Castell), p. 17 . J. CHASIN, ib., p. 366). 18. K. MARX, Sobre La Cuestin Juda, in C. MARX, Escritos de Juventud, Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1987 (traduo de Wenceslao Roces), p. 468. 19. Ib., p. 469. 20. Ib., p. 471.

18

tambm j estava implcito nas citaes anteriores. Examinando a Declarao dos Direitos do

Homem e do Cidado, de 1793, demonstra como liberdade poltica do cidado abstrato,

destitudo de suas condies concretas de vida, corresponde, na sociedade civil, a liberdade do

homem egosta, do homem enquanto mnada isolada e auto-suficiente, retirado para o interior

de si mesmo, do direito do indivduo circunscrito, fechado em si mesmo, do direito do interesse

pessoal. Essa liberdade individual e sua aplicao constituem o fundamento da sociedade civil21.

Na seqncia de sua anlise, afirma que A constituio do estado poltico e a dissoluo da sociedade

civil em indivduos independentes, cujas relaes so regidas pelo direito, so levadas a cabo em um

s e mesmo ato. sobre tal base que pode ser compreendida a observao de que a revoluo

poltica considera a sociedade civil, o mundo das necessidades, o trabalho, os interesses privados

e a lei civil como base de sua prpria existncia, como premissa inquestionvel, que subsiste

inteiramente, portanto como sua base natural, de sorte que o homem real se reconhece apenas

na forma do homem egosta, e o homem verdadeiro, somente na forma do cidado abstrato.

Embora considerando a emancipao poltica um avano irrecusvel, Marx demarca

sua estreiteza mostrando que ela se funda na, e expressa a ciso objetiva, decorrente de relaes

de produo assentadas na diviso social do trabalho e na propriedade privada, de cada indivduo

em homem (burgus) de vida privada e cidado de vida pblica, o primeiro privado de sua

condio genrica, social, e assim naturalizado, o segundo defraudado de suas qualidades

individuais; esse divrcio entre indivduo e gnero, essa cesura entre os indivduos

autoprodutores e as foras sociais, genricas, por eles produzidas transformam-nas em fora

poltica a eles contraposta. Fora poltica , pois, cogulo de foras sociais, genricas, usurpadas

de seus produtores e concentradas. A emancipao humana, ao contrrio, supe a superao

desta ordem societria em seu conjunto, em outros termos, implica a superao do capital, das

condies materiais de vida, fundadas na diviso social do trabalho, que opem os homens uns

aos outros e sua vida genrica, bem como da entificao poltica desta ltima: S quando o real

homem individual reincorpora a si o cidado abstrato; quando, como indivduo, em seu trabalho

individual e em suas relaes individuais se converte em ser genrico; e quando reconhece e

organiza suas prprias foras como foras sociais, de maneira a nunca mais afastar de si fora social

sob a forma de fora poltica, s ento levada a cabo a emancipao humana. Esta

construo da mundaneidade humana a partir da lgica inerente ao humano, ou seja, do ser social,

cuja natureza prpria ou segredo ontolgico a autoconstituio22. O desvelamento deste segredo,

21. Ib., pp. 478 e 479. 22 . J. CHASIN, A Determinao OntoNegativa da Politicidade, in Ensaios Ad Hominem 1 Tomo III: Poltica. Santo Andr, Ad Hominem, 2000, p. 151.

19

frise-se, o pressuposto incontornvel do argumento marxiano, e sua desconsiderao abre

campo para (des)entend-lo como uma antropologia.

evidente o lao entre emancipao humana e revoluo social, ou seja, a revoluo que

supera o conjunto da atual ordem societria regida pelo capital, resultando desta superao o

desaparecimento do estado; enquanto a revoluo poltica e seu resultado, a emancipao poltica,

por mais que representem um progresso importante, mostram seus limites ao deixarem em p

exatamente aquela ordem. A esfera da politicidade um ndice e resultado da limitao do

desenvolvimento humano, da fragmentao dos indivduos, de sua contradio consigo mesmos

e com os demais. Longe, portanto, de ser tratada como esfera resolutiva dos problemas humanos,

a politicidade entendida como parte do problema a ser resolvido.

Acerca das Glosas Crticas de 44, em que Marx polemiza com Arnold Ruge acerca da

insurreio dos teceles da Silsia, de junho de 1844, vale de incio ressalvar, dada a onipresena

das concepes epistemologistas, que, embora presentes neste artigo os mesmos fundamentos

expostos nos dois textos antes comentados, no se trata da aplicao de um referencial terico

a um caso concreto, o que totalmente estranho aos procedimentos analticos marxianos, mas

uma espcie de redescoberta das mesmas determinaes a partir da anlise de uma ocorrncia

histrica23. Coerente com sua nova posio, Marx submete-se regncia do objeto, buscando

extrair deste seus nexos prprios, ao invs de o submeter a um desenho analtico prvio, ainda

que alcanado por ele mesmo. Esse procedimento a analtica das coisas , facilmente

perceptvel nas obras marxianas, permite alcanar novas determinaes acerca de um mesmo

complexo fenomnico. O artigo destaca a incapacidade do estado no s de resolver, como

mesmo de entender o pauperismo, impotncia que no um defeito deste ou daquele estado,

mas sim a lei natural da administrao, ou seja, de sua atividade organizativa, determinada pela

sociedade civil sobre a qual se ergue, de sorte que eliminar essa impotncia exigiria extirpar seu

cho social, portanto suprimir a si prprio. Baste a seguinte passagem: O estado no pode

superar a contradio entre a disposio e a boa vontade da administrao, de um lado, e os seus

meios e poderes, de outro, exceto se abolir a si prprio, j que descansa sobre esta contradio.

Descansa sobre a contradio entre a vida pblica e a vida privada, e sobre a contradio entre os

interesses gerais e os interesses particulares. Por esta razo, a administrao deve limitar-se a uma

atividade formal e negativa, pois sua ao termina no mesmo ponto onde comeam a vida civil e

seu trabalho. De fato, diante das conseqncias que emergem da natureza a-social dessa vida civil,

dessa propriedade privada, desse comrcio, dessa indstria, da mtua pilhagem entre os vrios

grupos na vida civil, fica claro que a lei natural da administrao a impotncia. Com efeito, esta

23 . Ib., p. 154.

20

vileza, esta escravido da sociedade civil o fundamento natural do estado moderno /.../. A existncia

do estado inseparvel da existncia da escravido24.

Marx adensa a crtica da politicidade expondo a determinao e os limites da racionalidade

poltica, oferecendo assim o que podemos chamar de crtica da razo poltica25, demarcando-a

como aquela que pensa dentro dos limites da poltica e, por isso mesmo, incapaz de

compreender a raiz dos males sociais. Vale reproduzir mais uma passagem: Quanto mais

desenvolvido e generalizado se acha o entendimento poltico de um povo, mais o proletariado

desperdia suas energias pelo menos no incio do movimento em revoltas irrefletidas, estreis,

que so afogadas em sangue. Ao pensar sob forma poltica, divisa o fundamento de todos os

males na vontade e os meios para os remediar na fora e na derrubada de uma determinada forma de

governo. Temos a prova disso nas primeiras exploses do proletariado francs. /.../ O

entendimento poltico lhes ocultava as razes da penria social, falsificava a compreenso de sua

verdadeira finalidade; o entendimento poltico enganava, pois, o seu instinto social 26 . Afirmao

contundente, largamente desconsiderada, joga nova luz sobre os objetivos e meios das lutas dos

trabalhadores do ltimo sculo, e empuxa fortemente ultrapassagem do entendimento poltico,

sob pena de prosseguir desperdiando energias.

Estabelecido o fundamento da existncia do estado e sua correspondente impotncia para

alter-lo, Marx repe a distino entre revoluo poltica, limitada e parcial, e revoluo social,

radical e infinita, explicitando aqui o papel desempenhado por ambas na superao da ordem

atual e construo do socialismo, avanando na concreo ao apanhar o elo existente entre os

atos polticos, forma de atuao prpria do mundo do capital, e a revoluo social, que, visando a

suprimir tal mundo, deve agir nele para o ultrapassar: Toda revoluo dissolve a velha sociedade,

assim considerada uma revoluo social. Toda revoluo derruba o antigo poder, neste sentido

uma revoluo poltica. /.../ E sem revoluo no pode o socialismo se realizar. Este necessita do ato

poltico na medida em que tem necessidade de destruir e dissolver. Porm, ali onde comea sua

atividade organizadora, ali onde se manifesta seu fim em si, sua alma, o socialismo despeja seu

invlucro poltico27. H um efetivo lugar e papel, no para uma revoluo poltica, mas para o ato

poltico nos quadros de uma revoluo social: mas este somente o de destruio e dissoluo do

antigo poder. O reordenamento de todo o modo de vida, a construo de uma nova forma de

interatividade entre os indivduos no se efetiva por meio de atos polticos ou pela mediao da

24 . K. MARX, Glosas Crticas al Articulo El Rey de Prusia y La Reforma Social. Por un Prusiano, in C. MARX, Escritos de Juventud, op. cit., p. 513. 25 . J. CHASIN, ib., p. 155. 26 . K. MARX, Glosas Crticas al Articulo El Rey de Prusia y La Reforma Social. Por un Prusiano, in C. MARX, Escritos de Juventud, op. cit., p. 518-519. 27 . Ib., p. 520.

21

esfera da politicidade: o antigo poder deve ter sido dissolvido, de sorte que evidentemente a

finalidade de todo o processo no a constituio de outro poder.

Alm da crtica da razo poltica, as Glosas Crticas de 44 trazem tambm outra

determinao basilar: a de que o estado resulta da fragilidade social, no das melhores qualidades

humanas, como explicita a passagem j citada do texto marxiano: Com efeito, esta vileza, esta

escravido da sociedade civil o fundamento do estado moderno, assim como a sociedade civil

da escravido era o fundamento natural do estado da Antiguidade. A existncia do estado

inseparvel da existncia da escravido. Mais do que reafirmar a sociedade civil como alicerce do

estado, resta iluminado o ncleo dessa determinao: o estado emerge daquilo que esta sociedade

civil tem de mais negativo sua vileza, sua natureza a-social, a escravido que lhe inerente. A

referncia natureza da sociedade civil e do estado como tais, pois este s existe em oposio

quela, e impotente diante dela, ou seja, impotente para corrigir os males sociais, porque s

existe graas presena destes.

Este conjunto de textos demonstra a radicalidade da ruptura efetivada por Marx em

relao a seu pensamento anterior, e a natureza de sua nova posio, marcada pela determinao

ontonegativa da politicidade, isto , por entender que a poltica no inerente ao ser social, vale

dizer, no essencial existncia humana do homem, sendo produto de uma necessidade

historicamente delimitada pelo perodo, ainda que longo, da pr-histria da humanidade. A

determinao ontopositiva da politicidade, ao contrrio, atribui poder resolutivo a essa esfera e

entende-a como inerente existncia humano-societria dos homens, tanto que conduz

indissociabilidade entre poltica e sociedade, a ponto de tornar quase impossvel, at para a

simples imaginao, um formato social que independa de qualquer forma de poder poltico28.

Observao fundamental, a indicar um bice, presente tanto ao tempo de Marx como

atualmente, seja para a compreenso da nova posio do filsofo alemo, seja para o

entendimento da realidade e a conseqente identificao das alternativas que permitiriam

prosseguir no caminho da autoconstruo humana.

No mesmo Prefcio j citado, Marx d conta dos anos que transcorreram entre 1844 e

1848, referindo outros textos nos quais foram expostos os desdobramentos de sua nova posio.

Aludindo ao incio da colaborao com Engels, afirma que quando este, na primavera de 1845,

se veio estabelecer tambm em Bruxelas, resolvemos trabalhar em conjunto, a fim de esclarecer o

antagonismo existente entre a nossa maneira de ver e a concepo ideolgica da filosofia alem;

tratava-se, de fato, de um ajuste de contas com a nossa conscincia filosfica anterior. Este

28 . J. CHASIN, Marx Estatuto Ontolgico e Resoluo Metodolgica, op. cit., p. 368.

22

projeto foi realizado sob a forma de uma crtica da filosofia ps-hegeliana29. Impossibilitada sua

publicao, o manuscrito dA Ideologia Alem foi, na frase mais do que clebre, abandonado

crtica roedora dos ratos, sendo publicado somente dcadas depois da morte dos autores

(mesmo destino da Crtica da Filosofia do Direito de Hegel e dos Manuscritos Econmico-Filosficos). No

mesmo ano, publica A Sagrada Famlia. Crtica da Crtica Crtica, escrita em conjunto com Engels, e

redige as Teses ad Feuerbach, que evidenciam a instaurao do novo materialismo. Dos trabalhos

dispersos desta poca menciona o Manifesto do Partido Comunista e o Discurso sobre o livre-cmbio.

Completam o elenco a Misria da Filosofia, de 1847, em que Os pontos decisivos das nossas

concepes foram cientificamente esboados pela primeira vez, ainda que de forma polmica, e

uma dissertao sobre o Trabalho assalariado, cuja impresso foi interrompida pela revoluo de

fevereiro30.

Deste amplo conjunto de textos, sero afloradas pouqussimas passagens de alguns deles,

visando apenas ilustrar a nova posio marxiana acerca da politicidade, bem como, de modo

ainda mais ligeiro, indicar a ruptura com a especulao e com a economia poltica.

Sendo o primeiro passo de sua crtica da poltica o reconhecimento de que o estado

determinado pela sociedade civil, evidente que este tambm um passo na crtica da

especulao. Na mesma Crtica da Filosofia do Direito de Hegel, h inmeras indicaes de que Marx

refuta o fundamento da especulao: a idia como produtora do mundo sensvel. Reconhecida a

prioridade deste, e os homens, com suas idias, como partcipes desse mundo sensvel, Marx

determina o mundo humano objetividade e subjetividade, sujeito e objeto como atividade

sensvel. Essa conquista se estampa nos Manuscritos Econmico-Filosficos, nas Teses ad Feuerbach, em

especial na primeira delas, e nA Ideologia Alem.

Nos Manuscritos Econmico-Filosficos, dizia Marx: Que o homem seja um ser corpreo,

dotado de foras naturais, vivo, efetivo, sensvel, objetivo, significa que tem como objeto de seu

ser, de sua exteriorizao de vida, objetos efetivos, sensveis, ou que s em objetos reais,

sensveis, pode exteriorizar sua vida31. o modo da exteriorizao de sua vida que especifica o

homem como tal, pois a vida produtiva a vida do gnero. a vida engendradora de vida. No

tipo de atividade vital jaz o carter inteiro de uma species, seu carter genrico, e a atividade

consciente livre o carter genrico do homem, atividade designada linhas antes como

trabalho, a atividade vital, a vida produtiva (MEF ? 180). Apreender a atividade sensvel

autoprodutora como o carter genrico do homem apreend-lo como histrico, ou melhor,

apreender aquela atividade como processo histrico: O comportamento efetivo, ativo do homem

29 . K. MARX, Contribuio para a Crtica da Economia Poltica, op. cit., p. 30. 30 . Ib., p. 30. 31 K. MARX, Manuscritos Econmico-Filosficos, So Paulo, Boitempo, 2004 (traduo de Jesus Ranieri), p. 127.

23

para consigo mesmo na condio de ser genrico /.../ somente possvel porque ele

efetivamente expe todas as suas foras genricas o que possvel apenas mediante a ao

conjunta dos homens, somente enquanto resultado da histria32.

A primeira das Teses ad Feuerbach, refutando o idealismo e o velho materialismo, indica

como problema central de ambos a desconsiderao da atividade sensvel: o velho materialismo,

Feuerbach incluso, tem por principal defeito s apreender a sensibilidade sob a forma de objeto

ou de intuio, mas no como atividade humana sensvel, como prxis, no subjetivamente, enquanto

o idealismo, ainda que desenvolva o aspecto ativo, desconhece a atividade real, sensvel, como

tal. A objetividade, o mundo sensvel, , portanto, identificado como atividade sensvel. O

mesmo ocorre com o sujeito, a subjetividade: enquanto no materialismo feuerbachiano e no

idealismo a atividade humana entendida somente como atividade abstrata, terica, como

atividade do pensamento, Marx a afirma como atividade objetiva33. De sorte que tanto sujeito

como objeto so determinados como atividade sensvel: o primeiro, por sua atividade prtica

consciente, capaz de dar aos objetos sensveis forma nova, presente anteriormente em sua

subjetividade 34 ; o segundo, na medida das suas potencialidades, reconfigurado por aquela

atividade, passando, pois, a ser objetivao, corporificao dela.

Arrimadas nesta, a IX e a X Teses tratam da questo que o foco deste trabalho. Diz a IX:

O extremo a que chega o materialismo intuitivo, isto , o materialismo que no apreende a

sensibilidade como atividade prtica, a intuio dos indivduos singulares e da sociedade civil.

E a X: O ponto de vista do velho materialismo a sociedade civil; o ponto de vista do novo a

sociedade humana ou a humanidade social 35 . Em ambos os casos, o velho materialismo,

desconsiderando a atividade prtica, no pode ultrapassar o patamar da sociedade civil, j que

incapaz de apreender a histria, vale dizer, o processo de autoconstituio humana, e, assim,

naturaliza os indivduos singulares (ou apreende sua essncia como generalidade interna, muda

VI Tese) e a sociedade civil. O novo materialismo, ao contrrio, partindo do pressuposto da

atividade prtica sensvel, dos homens como autoprodutores, pode visualizar a extino da

sociedade civil do modo atual de realizao dessa atividade produtora e sua substituio pela

sociedade humana ou humanidade social. Ainda que os termos aqui no sejam utilizados,

evidente que a atividade revolucionria, prtico-crtica, referida ao final da I Tese, ou a

prxis revolucionria, na III Tese, capaz de mudar simultaneamente as circunstncias e os

32 . Ib., p. 123. 33 . K. MARX, Teses ad Feuerbach, in K. MARX e F. ENGELS, A Ideologia Alem (Feuerbach), So Paulo, Hucitec, 1986 (traduo de Jos Carlos Bruni e Marco Aurlio Nogueira), p. 11. 34 . Como componente da atividade vital prpria do homem atividade consciente , ou seja, enquanto predicado de um ser sensvel vivo, portanto ativo, a conscincia tanto receptiva (capaz de apanhar e reproduzir mentalmente as caractersticas objetivas do mundo sensvel, inclusive as dos homens indivduos e sociedade) quanto projetiva. 35 . K. MARX, Teses ad Feuerbach, op.cit., p. 14.

24

homens, remetem a esta transformao radical, em que todo o modo de ser, todo o modo da

atividade transfigurado; remetem portanto revoluo social, pois a revoluo poltica fora j

delimitada como aquela que deixa em p a sociedade civil.

A Ideologia Alem apresenta desdobramentos das crticas ontolgicas da especulao e da

poltica, dos quais, como foi o caso dos outros materiais mencionados, sero destacadas somente

algumas poucas linhas.

A afirmao da prioridade da atividade sensvel na produo do mundo humano

objetiva e subjetivamente tambm se faz presente nA Ideologia Alem, que reafirma, assim, o

reconhecimento pr-teortico, ou seja, no mediado por qualquer forma de arrumao prvia da

subjetividade, e sim ontoprtico da realidade do mundo: o universo da prtica ou da vida vivida

em sua qualidade de confirmao da dupla certeza da existncia do mundo e dos homens36.

Basta remeter passagem seminal: Os pressupostos de que partimos no so arbitrrios, nem

dogmas. So pressupostos reais, de que no se pode fazer abstrao a no ser na imaginao. So

os indivduos reais, sua ao e suas condies materiais de vida, tanto aquelas por eles j

encontradas, como as produzidas por sua prpria ao37. H, pois, pressupostos, certamente,

mas estes so o mundo existente, por sua vez constitudo por indivduos reais, que atuam num

mundo material determinado. Considerando que o primeiro fato a constatar , pois, a

organizao corporal destes indivduos e, por meio disto, sua relao dada com o resto da

natureza, Marx reconhece os homens como seres naturais, que entretanto distinguem-se dos

restantes: Pode-se distinguir os homens dos animais pela conscincia, pela religio ou por tudo

que se queira. Mas eles prprios comeam a se diferenciar dos animais to logo comeam a

produzir seus meios de vida, passo este que condicionado por sua organizao corporal.

Produzindo seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua prpria vida

material 38 . Novamente o modo especfico da atividade determinante, e esta atividade

produtiva, de fato auto-produtiva. Enquanto determinada forma de atividade dos indivduos, o

modo de produo determinada forma de manifestar sua vida, determinado modo de vida dos

mesmos. Tal como os indivduos manifestam sua vida, assim so eles. O que os indivduos so

coincide, portanto, com sua produo, tanto com o que produzem, como com o modo como

produzem. O que os indivduos so, portanto, depende das condies materiais de sua

produo39. Indivduos atuando praticamente no mundo manifestam sua vida produzindo-a, vale

dizer, produzindo suas capacidades e as condies materiais em que estas se efetivam; produzem

36 . J. CHASIN, apud Ester VAISMAN, Dossi Marx: Itinerrio de um Grupo de Pesquisa, in Ensaios Ad Hominem 1 Tomo IV: Dossi Marx, Santo Andr, Ad Hominem, 2001, p. V. 37 . MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia Alem (Feuerbach), op.cit., p. 26. 38 . Ib., p. 27. 39 . Ib., pp. 27-28.

25

seu modo de vida objetiva e subjetivamente, por sua atividade sensvel. Estes pressupostos,

evidentemente contrrios ao pressuposto especulativo no a conscincia que determina a

vida, mas a vida que determina a conscincia so os que permitem afirmar que A estrutura

social e o estado nascem constantemente do processo de vida de indivduos determinados. A

fim de compreender melhor os desdobramentos acerca do estado que aparecem nesta obra,

preciso ter em mente que, tratando dos pressupostos da histria, Marx afirma como primeiro

ato histrico tanto a produo da prpria vida material quanto a produo de novas

necessidades, j que esta se realiza pela ao e pelo instrumento adquirido para satisfazer aquela.

Vale dizer: produzir a vida material significa tambm produzir os carecimentos que impulsionam

ao, isto , significa produzir a prpria vida em toda a sua extenso. Ao que se deve

acrescentar, como o faz Marx, a produo de outros homens, fsica e socialmente, de sorte que,

como j os Manuscritos de 44 e a Questo Judaica estampavam, o carecimento do outro parte

ineliminvel das necessidades humanas. o que reafirma a constatao de que a produo da

vida tanto relao natural quanto relao social, social no sentido de que se entende por isso a

cooperao de vrios indivduos, quaisquer que sejam as condies, o modo e a finalidade40.

Mediando por essa explicitao das vrias determinaes e resultados do trabalho, Marx

chega ao tratamento da diviso social do trabalho, que se torna realmente diviso apenas a partir

do momento em que surge uma diviso entre o trabalho material e o espiritual, isto , quando

estas atividades passam a caber a indivduos diferentes. Trata-se da ciso da atividade

especificamente humana a separao entre os dois momentos da atividade que d forma aos

objetos, inclusive aos prprios homens: o momento da elaborao e projeo subjetiva dessa

forma, e o de sua efetivao; portanto a ciso dos prprios indivduos, que se manifestar dos

mais diversos modos. E Marx acrescenta: diviso do trabalho e propriedade privada so

expresses idnticas: a primeira enuncia em relao atividade, aquilo que se enuncia na segunda

em relao ao produto da atividade. Com essa diviso social do trabalho, fundamento da

propriedade privada, j que a atividade o fundamento de seu produto, dada ao mesmo tempo

a contradio entre o interesse do indivduo ou da famlia singulares e o interesse coletivo de

todos os indivduos que se relacionam entre si; e, com efeito, este interesse coletivo no existe

apenas na representao, como interesse geral, mas se apresenta, antes de mais nada, na

realidade, como a dependncia recproca de indivduos entre os quais o trabalho est dividido41.

Vale destacar que com a diviso do trabalho, com a ciso entre os dois momentos da atividade

humana, que se d a contradio entre interesse singular e coletivo; esta , pois, expresso

daquela; desse modo, tanto os interesses singulares quanto os coletivos so reais. Com a ciso 40 . Ib., pp. 39 a 42. 41 . Ib., pp. 44 a 47.

26

entre ambos, isto , com a diviso no voluntria, e sim natural, da atividade, a prpria ao do

homem converte-se num poder estranho e a ele oposto, que o subjuga ao invs de ser por ele

dominado. /.../ Esta fixao da atividade social esta consolidao de nosso prprio produto

num poder objetivo superior a ns, que escapa a nosso controle, que contraria nossas

expectativas e reduz a nada nossos clculos um dos momentos capitais do desenvolvimento

histrico que at aqui tivemos42. Mais explicitamente adiante: O poder social, isto , a fora

produtiva multiplicada que nasce da cooperao de vrios indivduos exigida pela diviso do

trabalho, aparece a estes indivduos, porque sua cooperao no voluntria mas natural, no

como seu prprio poder unificado, mas como uma fora estranha situada fora deles43. De sorte

que, cindindo a atividade e o produto dessa atividade, a diviso social do trabalho cinde tambm

interesse singular e coletivo, isto , separa o poder social, produzido pelos indivduos, destes

mesmos indivduos. Esta ciso se manifesta como estado: justamente desta contradio entre

o interesse particular e o interesse coletivo que o interesse coletivo toma, na qualidade de estado,

uma forma autnoma, separada dos reais interesses particulares e gerais e, ao mesmo tempo, na

qualidade de uma coletividade ilusria, mas sempre sobre a base real dos laos existentes em cada

conglomerado familiar e tribal /.../ e sobretudo /.../ baseada nas classes, j condicionadas pela

diviso do trabalho, que se isolam em cada um destes conglomerados humanos e entre as quais

h uma que domina todas as outras 44 . O estado, portanto, origina-se da diviso social do

trabalho, em especial da contradio entre interesse particular e coletivo que dela resulta, e a

encarnao autonomizada desse interesse coletivo; , portanto, a corporificao de interesses dos

indivduos, de seu poder social, previamente extrados, separados deles. Ainda uma ltima

passagem: Justamente porque os indivduos procuram apenas seu interesse particular, que para

eles no coincide com seu interesse coletivo (o geral de fato a forma ilusria da coletividade),

este interesse comum faz-se valer como um interesse estranho aos indivduos, independente

deles, como um interesse geral especial e particular45.

Reconhece-se facilmente a mesma posio assumida em Sobre A Questo Judaica e nas

Glosas Crticas de 44: o estado como expresso da vida pblica, da generidade, da coletividade

(assim tornada ilusria) separadas da vida privada, da individualidade, como corporificao,

separada dos indivduos, de seu poder social, como usurpao de foras sociais.

Se nas Glosas Crticas estava j indicado que o estado se origina da e exprime a fragilidade

societria, aqui este nexo fartamente desdobrado, ao desvelar que a diviso social do trabalho,

fundamento do estado, decorre do baixo desenvolvimento das capacidades produtivas, isto , 42 . Ib., pp. 47-48. 43 . Ib., p. 49. 44 . Ib., p. 48. 45 . Ib., p. 49.

27

daquelas foras sociais. Expondo os pressupostos prticos necessrios para superar a alienao,

Marx destaca a existncia da massa da humanidade como massa totalmente destituda de

propriedade; e que se encontre, ao mesmo tempo, em contradio com um mundo de riquezas e

de cultura existente de fato coisas que pressupem, em ambos os casos, um grande incremento

da fora produtiva, ou seja, um alto grau de seu desenvolvimento; sem este pressuposto,

apenas generalizar-se-ia novamente a escassez e, portanto, com a carncia, recomearia

novamente a luta pelo necessrio e toda a imundcie anterior seria restabelecida46.

De sorte que a diviso social do trabalho responsvel pela alienao, isto , pela ciso e

oposio entre os indivduos e suas foras sociais, de que o estado uma das manifestaes

resulta, por sua vez, da carncia, do baixo desenvolvimento dessas mesmas foras sociais; a

restrio mesma das capacidades humanas que exige a diviso social do trabalho, a ciso entre

essas foras e seus produtores. A forma do capital, e do estado moderno que lhe corresponde,

so as expresses mximas dessa ciso. Mais frente, Marx detalha: Partimos, at aqui, dos

instrumentos de produo e j aqui mostra-se a necessidade da propriedade privada para certas

fases industriais. Na industrie extractive, a propriedade privada ainda coincide inteiramente com o

trabalho; na pequena indstria e em toda a agricultura anterior, a propriedade a conseqncia

necessria dos instrumentos de produo existentes; na grande indstria, a contradio entre o

instrumento de produo e a propriedade privada o produto da grande indstria, que deve estar

j bastante desenvolvida para cri-la. A superao da propriedade privada, portanto, s se torna

possvel com a grande indstria47.

Marx esboa uma histria do estado nas pginas finais dessa primeira parte de A Ideologia

Alem. Afirmando que a primeira forma de propriedade a propriedade tribal, que entre os

povos antigos /.../ aparece como propriedade do estado, menciona o desenvolvimento da

propriedade at chegar ao capital moderno, condicionado pela grande indstria e pela

concorrncia universal, isto , at chegar propriedade privada pura, que se despojou de toda

aparncia de comunidade e que excluiu toda influncia do estado sobre o desenvolvimento da

propriedade. A esta propriedade privada moderna corresponde o estado moderno, determinado

como segue: Atravs da emancipao da propriedade privada em relao comunidade, o

estado adquire uma existncia particular, ao lado e fora da sociedade civil; mas este estado no

mais do que a forma de organizao que os burgueses necessariamente adotam, tanto no interior

como no exterior, para a garantia recproca de sua propriedade e de seus interesses.

A diviso social do trabalho e a propriedade privada que lhe corresponde tm, pois, uma

histria, cujo sentido foi a ampliao da prpria diviso social do trabalho e, conseqentemente, a 46 . Ib., p. 50. 47 . Ib., p. 102.

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ampliao da ciso entre propriedade e comunidade, at o ponto em que, tendo a propriedade

alcanado a forma pura, isto , extinta a comunidade, a sociabilidade toma a forma de estado

separado da sociedade civil. Tambm coerentemente com o exposto em textos anteriores, a

constituio plena tanto da sociedade civil48 quanto do estado decorre da completa separao

entre vida privada e vida pblica, entre indivduo e sociedade, ou entre indivduo e gnero.

Cindidas do conjunto dos indivduos e coaguladas sob a forma de estado, as foras sociais so

apropriadas, evidentemente, por outros homens pela burguesia.

A necessidade da luta poltica e simultaneamente sua limitao tm seu cho social assim

exposto: Como o estado a forma na qual os indivduos de uma classe dominante fazem valer

seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de uma poca, segue-se que

todas as instituies comuns so mediadas pelo estado e adquirem atravs dele uma forma

poltica49. A forma poltica , portanto, demarcada como aquela assumida pelas instituies

sociais no interior da sociedade de classes e na presena da dominao de classe, cuja forma o

estado. Vale dizer, a forma poltica a forma assumida pelas relaes sociais num perodo

histrico bem determinado, de modo que, extinto o estado pela extino da diviso social do

trabalho, propriedade privada, classes e sua dominao, extingue-se com ele a poltica a forma

que o estado imprime s instituies, por conseqncia inexistente sem ele.

Forma nascida da limitao do desenvolvimento humano, pode ser superada quando esta

limitao deixada para trs, a partir, pois, da grande indstria. Quando esta se pe, isto , sob a

regncia do capital, as foras produtivas aparecem como inteiramente independentes e separadas

dos indivduos, como um mundo prprio ao lado destes, o que tem seu fundamento no fato de

que os indivduos, que so as foras daquele mundo, existem fragmentados e em oposio mtua,

ao passo que, por outro lado, essas foras s so foras reais no intercmbio e na relao desses

indivduos. Atente-se para a afirmao de Marx de que o fundamento da situao a

fragmentao dos indivduos, que de fato dupla: cada qual fragmentado e se ope aos demais;

a diviso social do trabalho, que atribui a cada indivduo somente um dos momentos que

constituem a atividade humana, tanto cinde internamente cada um quanto os ope. De um lado,

portanto, temos uma totalidade de foras produtivas que adquiriram como que uma forma

objetiva e que, para os prprios indivduos, no so mais suas prprias foras, mas as da

propriedade privada e, por isso, so apenas as foras dos indivduos enquanto proprietrios

privados. Em nenhum perodo precedente as foras produtivas tinham adquirido esta forma

indiferente para o intercmbio entre os indivduos enquanto indivduos, porque seu prprio 48 . A expresso sociedade civil aparece no sculo XVIII, quando as relaes de propriedade j se tinham desprendido da comunidade antiga e medieval. A sociedade civil, como tal, desenvolve-se apenas com a burguesia. Ib., p. 53. 49 . Ib., p. 98.

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intercmbio era ainda limitado. De outro lado, enfrenta-se com estas foras produtivas a maioria

dos indivduos, dos quais estas foras se destacaram e que, portanto, despojados de todo

contedo real da vida, tornaram-se indivduos abstratos; mas que, por isso mesmo, s ento so

colocados em condies de relacionar-se uns com os outros enquanto indivduos50. A abstrao que

caracteriza os indivduos pela perda do contedo de sua vida de suas foras produtivas

permite que se relacionem enquanto indivduos medida que destri a identificao de cada um

com uma nica atividade, com uma nica capacidade. concretude limitada que caracterizava os

homens em perodos histricos anteriores, sucede a infinitude abstrata: a possibilidade, posta sob

forma extremamente contraditria e no realizada, de cada um, enquanto indivduo, ser

genrico51 .

Acrescentando que A nica relao que os indivduos ainda mantm com as foras

produtivas e com sua prpria existncia o trabalho perdeu para eles toda aparncia de auto-

atividade e s conserva sua vida atrofiando-a, Marx conclui: As coisas, portanto, foram to

longe que os indivduos devem apropriar-se da totalidade existente de foras produtivas, no s

para alcanar a auto-atividade, mas to-somente para assegurar sua existncia, apropriao

triplamente condicionada: pelo objeto a ser apropriado /.../ deve necessariamente apresentar

um carter universal correspondente s foras produtivas e ao intercmbio; pelos indivduos

apropriadores. Apenas os proletrios da poca atual, inteiramente excludos de toda auto-

atividade, esto em condies de impor sua auto-atividade completa; e pelo modo como deve

ser realizada: atravs de uma unio universal, e atravs de uma revoluo que, de um lado,

derrube o poder do modo de produo e de intercmbio anterior e da estrutura social, e que

desenvolva, de outro lado, o carter universal e a energia do proletariado necessria para a

realizao da apropriao; e na qual, alm disso, o proletariado despoja-se de tudo o que nele

ainda resta de sua anterior posio na sociedade passagem que desdobra a afirmao sinttica

da III Tese ad Feuerbach, relativa transformao simultnea das circunstncias e dos homens, e

aponta para a auto-supresso da classe trabalhadora.

Posta a necessidade de apropriao pelos indivduos das foras produtivas e seus

condicionantes, possvel entender o sentido dela: A apropriao destas foras nada mais do

que o desenvolvimento das capacidades individuais correspondentes aos instrumentos materiais

de produo. A apropriao de uma totalidade de instrumentos de produo , exatamente por

isso, o desenvolvimento de uma totalidade de capacidades nos prprios indivduos. E mais

adiante: na apropriao por parte dos proletrios, uma massa de instrumentos de produo deve 50 . Ib., p. 104. 51 . De forma um pouco menos ligeira, essa questo ser retomada na Parte III deste trabalho. Aqui importa destacar a presena dessa argumentao, bastante prxima, ainda que menos desenvolvida, da que Marx apresentar mais de uma dcada depois nos Grundrisse.

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ser subsumida a cada indivduo, e a propriedade a todos. E, finalmente: Apenas nesta fase a

auto-atividade coincide com a vida material, o que corresponde transformao dos indivduos

em indivduos totais e ao despojamento de todo seu carter natural. A transformao do trabalho

em auto-atividade corresponde transformao do limitado intercmbio anterior em intercmbio

entre indivduos enquanto tais. Com a apropriao das foras produtivas totais pelos indivduos

unidos, termina a propriedade privada52.

O conjunto dessas passagens clarssimo, e expe a radicalidade da revoluo social, o

sentido do comunismo ou da emancipao humana geral. Evidentemente, suprimida a

propriedade privada pela supresso da diviso social do trabalho que a gerou, o estado deixa de

ter qualquer sustentao, e muito menos funo.

Atente-se para o fato de que, ao longo de toda a Ideologia Alem, bem como nos anteriores

textos marxianos citados, o ponto de partida e o ponto de chegada so os indivduos; so os

indivduos que atuam, que produzem sua vida, que estabelecem relaes entre si, de sorte que as

capacidades produtivas e as relaes sociais so suas capacidades e relaes, que s se separam

deles justamente pelo modo com que os indivduos as produzem e estabelecem, e que portanto

podem ser reapropriadas pelos indivduos, e devem s-lo, se se tem em vista a continuidade da

autoconstruo humana. O quadro que Marx esboa na ltima passagem citada corresponde ao

fim da pr-histria da humanidade pelo alcance da autodeterminao de indivduos sociais, ou de

indivduos livres voluntariamente associados. Autodeterminao agora posta plenamente como

autoproduo de capacidades e relaes.

A Ideologia Alem traz ainda observaes acerca da relao entre indivduo e classe de que

preciso tratar53. Ainda que o proletariado tambm seja mencionado, essa questo abordada

principalmente no mbito da constituio da burguesia como classe, no interior das cidades a

partir da Idade Mdia, j em franca oposio ao campo. Para no alongar demais esta Introduo,

sero apenas alinhavados os momentos mais significativos.

A diviso em classes, diz Marx repousa diretamente na diviso do trabalho e nos

instrumentos de produo. Marx expe, com detalhes, a formao das cidades novas a partir dos 52 . Ib., pp. 104 a 107. Diga-se de passagem que este o sentido efetivo de uma passagem anterior da mesma obra: Com efeito, desde o instante em que o trabalho comea a ser distribudo, cada um dispe de uma esfera de atividade exclusiva e determinada, que lhe imposta e da qual no pode sair; o homem caador, pescador, pastor ou crtico crtico, e a deve permanecer se no quiser perder seus meios de vida ao passo que na sociedade comunista, onde cada um no tem uma esfera de atividade exclusiva, mas pode aperfeioar-se no ramo que lhe apraz, a sociedade regula a produo geral, dando-me assim a possibilidade de hoje fazer tal coisa, amanh outra, caar pela manh, pescar tarde, criar animais ao anoitecer, criticar aps o jantar, segundo meu desejo, sem jamais tornar-se caador, pescador, pastor ou crtico (p. 47). 53 . Assim como ocorre a respeito da sociedade civil e do estado, tambm o termo classe cobra em Marx dois sentidos. O mais geral remete aos grupos constitudos pela diviso social do trabalho (atividade, meios e produtos do trabalho) em qualquer sociedade que a apresente. O segundo, mais especfico, remete apenas configurao assumida por tais grupos na sociedade moderna, determinada pelo aprofundamento da diviso social do trabalho, de que resultou a propriedade privada pura e o estado moderno.

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servos libertos, a estabilizao do artesanato ligado ao comrcio, a organizao corporativa e

militar, e a transformao operada com a separao entre produo e comrcio, os contatos

estabelecidos entre as cidades e a formao da classe burguesa a partir das burguesias locais. Aqui

se quer destacar a seguinte observao marxiana: As condies de vida dos diferentes burgueses,

em decorrncia da oposio s relaes sociais existentes e do tipo de trabalho que isso impunha,

tornaram-se simultaneamente condies comuns a todos eles e independentes de cada indivduo.

Os burgueses criaram essas condies na medida em que se destacavam da associao feudal, e

foram criados por essas condies na medida em que estavam determinados por sua oposio

feudalidade existente. O texto marxiano mostra, pois, como indivduos inseridos em

determinadas relaes de classe, ao transformar sua atividade, geram outras capacidades

produtivas e outras relaes de produo, alterando, pois, suas condies gerais de vida, e assim

produzindo outra classe, qual, entretanto, os indivduos passam em seguida a subsumir-se. Diz

Marx: A prpria burguesia s se desenvolve paulatinamente dentro de suas condies; ramifica-

se, por sua vez, em diferentes fraes, de acordo com a diviso do trabalho, e acaba por absorver

em si todas as classes possuidoras preexistentes (ao mesmo tempo em que transforma numa nova

classe o proletariado a maioria da classe no-possuidora que existia anteriormente e uma parte

das classes at ento possuidoras), na medida em que toda propriedade transformada em capital

comercial ou industrial. A classe, pois, como qualquer outra relao social, gerada pela ao

dos indivduos ao relacionarem-se entre si e com a natureza de um determinado modo, para

produzir sua prpria vida material: Os indivduos isolados apenas formam uma classe na medida

em que tm que manter uma luta comum contra outra classe; no restante eles mesmos

defrontam-se uns com outros na concorrncia. evidente que tanto a necessidade de manter

uma luta comum contra outra classe quanto a concorrncia em que se defrontam so produtos de

um modo determinado de produzir sua vida, modo este cuja gerao pelas aes humanas Marx

buscou alinhavar nas pginas anteriores. Entretanto, tambm como as demais relaes sociais

fundadas na diviso social do trabalho, especialmente quando esta assume a forma moderna,

como aqui o caso, a classe autonomiza-se em face dos indivduos, de sorte que estes ltimos

encontram suas condies de vida preestabelecidas e tm, assim, sua posio na vida e seu

desenvolvimento pessoal determinados pela classe; tornam-se subsumidos a ela. Trata-se do

mesmo fenmeno que o da subsuno dos indivduos isolados diviso do trabalho, e tal

fenmeno no pode ser suprimido se no se supera a propriedade privada e o prprio

trabalho54.

54 . Ib., pp. 83-84.

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Frise-se, pois, que, sendo produto da ao prtica dos homens ao produzirem sua

existncia, as classes, ainda que se autonomizem, tal como o estado e o prprio capital, em face

de seus produtores, no se torna jamais em Marx uma entidade existente por si, capaz de atuar

independente dos indivduos que a constituem. Ainda que subordinados s suas condies de

vida determinadas, s suas relaes sociais, so sempre os indivduos que agem. Alm disso, vale

tambm frisar quer a subordinao classe posta por Marx como uma limitao ao

desenvolvimento individual, limitao que deve ser rompida. Por isso, como j foi visto, o

proletariado pode ser o sujeito da revoluo radical: porque suas condies determinadas de vida,

que o constituem como classe diante da burguesia, permitem-lhe no apenas lutar em favor de

sua sobrevivncia como classe (como a prpria burguesia fez, desde o nascedouro), mas

fundamentalmente porque lhe possibilitam romper com sua subordinao classe, suprimindo a

prpria classe ao suprimir a diviso social do trabalho. Nos termos de Chasin, porque permitem-

lhe lutar como a negao da negao55, perspectivando aquela condio de indivduos livres

voluntariamente associados, subsumindo a cada um a totalidade de suas capacidades genricas.

De sorte que, tambm por esse ngulo, a revoluo comunista ultrapassa os limites da revoluo

poltica.

Vale encerrar com uma passagem da Misria da Filosofia. Logo depois de afirmar que a

luta de classe contra classe uma luta poltica, diz Marx: A existncia de uma classe oprimida

a condio vital de toda a sociedade fundada no antagonismo de classes. A emancipao da classe

oprimida implica, pois, necessariamente, na criao de uma sociedade nova. /.../ Isso quer dizer

que, aps a derrocada da velha sociedade, sobrevir nova dominao de classe, traduzida em

novo poder poltico? No. A condio de emancipao da classe operria a abolio de todas as

classes, do mesmo modo que a condio da emancipao do terceiro estado, da ordem burguesa,

foi a abolio de todos os estados e de todas as ordens. No transcurso de seu desenvolvimento, a

classe operria substituir a antiga sociedade civil por uma associao que exclua as classes e seu

antagonismo; e no existir j um poder poltico propriamente dito, pois o poder poltico ,

precisamente, a expresso oficial do antagonismo de classe, dentro da sociedade civil56.

Em sntese, Marx comea a constituir sua nova posio em 1843, enfrentando os modos

de ser e pensar ento dominantes de modo singular: pela realizao de crticas de cunho

ontolgico politicidade, especulao e economia poltica. Crticas ontolgicas porque tratam

de esclarecer prioritariamente a respeito de modos de ser, e no de formas de pensar; estas so

aceitas ou recusadas conforme reproduzam ou no o objeto tal como existe. E crticas radicais no

55 . J. CHASIN, Ad Hominem Rota e Prospectiva de um Projeto Marxista, op. cit. 56. K. MARX, Misria da Filosofia, So Paulo, Grijalbo, 1976, pp. 164-165.

33

sentido marxiano do termo, que envolve apreender a gnese, a necessidade, o desenvolvimento e

a desapario de algo existente, ao invs de apenas recus-lo, no todo ou em parte.

No desdobramento de sua crtica ontolgica politicidade, Marx comea por recusar ao

estado enquanto tal, ainda que plenamente posto, o estatuto de mxima encarnao da

racionalidade, passa pela descoberta de sua determinao pela sociedade civil, mais exatamente

pelas contradies que a cindem, e sua complementaridade com esta, e se ala percepo de que

a necessidade do estado e da poltica em geral histrica, no perene, tanto quanto a das relaes

sociais materiais que os geram indo da mais evidente para a mais fundamental: as classes sociais,

a diviso social do trabalho e o baixo desenvolvimento das foras produtivas, vale dizer, das

capacidades do indivduo social.

A determinao ontonegativa da politicidade a reproduo intelectual desta condio

real das instituies e relaes polticas, e a conseqente identificao, enquanto alternativa real,

gestada pela ampliao das capacidades produtivas sob a regncia do capital, de uma revoluo

que liquide a politicidade ao suprimir todo o modo de vida atual. Nesse sentido, salta vista que a

determinao ontonegativa da politicidade no significa a recusa liminar de qualquer atuao, de

qualquer pugna em torno do estado de qualquer luta poltica , mas sim uma tambm radical

alterao nos modos, meios e objetivos dessa luta. Uma vez que se dirige abolio da

politicidade, no pode restringir-se esfera ou lgica da prpria poltica, que tende

reproduo de si mesma e da sociedade da qual brota e se alimenta. A atuao, ainda que referida

s instituies polticas ou as tendo como foco, deve buscar suas razes sociais, e transform-las:

deve ser metapoltica. Nesse sentido, nem a anlise da realidade, nem as propostas, nem as

formas de organizao ou de luta, e muito menos os objetivos dela, podem se restringir esfera,

lgica ou aos instrumentos polticos.

Os escritos aqui enfocados tm caractersticas distintivas, que preciso ter em mente j de

incio. Neles, Marx se debrua sobre revolues burguesas e proletrias, contra-revolues

feudais e burguesas, implicadas em significativas alteraes na esfera da politicidade, envolvendo

as formas e o papel do estado, o tipo de ao poltica das classes sociais, as representaes

parlamentares, os partidos etc. Esquematicamente:

- de fevereiro a junho de 1848, na Frana, o proletariado se apresenta como classe

independente, especialmente nas jornadas de junho, pondo praticamente em pauta a superao da

ordem do capital; encerra-se o perodo de ascenso revolucionria da burguesia, que passa a se

apresentar como classe conservadora, transfigurao que trar conseqncias s formas de sua

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dominao. Nesse quadro, afloram as razes sociais, caractersticas e limitaes do estado

republicano democrtico;

- de maro a dezembro de 1848, na Alemanha, frustra-se a perspectiva de uma revoluo

burguesa, consolida-se, dando um novo passo, a misria alem, forma particular de objetivao

do capitalismo; expem-se os problemas da posio e das tarefas do proletariado e do

campesinato em pas com tal configurao; a burguesia, contra-revolucionria, renuncia a seu

domnio poltico direto;

- de 1848 a 1851, na Frana, o conservadorismo burgus adquire seus contornos,

repercutindo na esfera poltica: com a renncia da burguesia ao exerccio direto do domnio

poltico, desenvolve-se a ltima forma do estado burgus, o bonapartismo;

- 1871, na Frana, a ecloso de uma revoluo proletria, brevemente vitoriosa, esboa

pela primeira vez uma nova forma de organizao social, desmontando o estado;

So momentos em que se produziram viragens histricas fundamentais, envolvendo

configuraes e reconfiguraes de classes sociais burguesia, proletariado, campesinato , novas

formas de estado, expanso do capitalismo industrial e simultnea emergncia da perspectiva de

sua abolio. Reconhecendo-os como tais, Marx exps seu significado nas obras que aqui

tratadas.

A politicidade examinada nesses momentos crticos, em que, nas palavras de Marx, a

luta de classes se desenvolveu sob formas gigantescas; nessas condies, a maturao histrica

alcanada e o tensionamento prprio dos perodos de crise iluminam e ressaltam os relevos,

tramas e conexes que a conformam (assim como fora um momento tambm de agudizao de

lutas de classes a insurreio dos teceles da Silsia que o levara anos antes a apreender os

modos de ser do estado e da poltica, embasando a ruptura ontolgica j mencionada). Marx,

alis, reconhece essa condio, e a explicita, afirmando que a Nova Gazeta Renana prefere estudar

as lutas de classes e a repblica democrtica onde elas so levadas at o fim, e no onde esto

recuadas, latentes.

Ao iniciar a elaborao dos mais recuados dos textos aqui sob anlise, Marx j atingira,

conforme ser mostrado adiante, sua fisionomia adulta, isto , j desenvolvera as trs crticas

ontolgicas que constituem o processo de emerso de seu pensamento prprio: as crticas da

politicidade, da especulao e da economia poltica. Contra Hegel, afirmara a busca da lgica da

coisa, ao invs da coisa da lgica, bem como apreendera os homens, suas relaes e sua

conscincia como produtos da atividade prtica social dos indivduos mesmos.

A crtica da poltica (assim como a da especulao e da economia poltica) abrange a um

tempo uma teoria uma dada maneira de apreender a realidade e a prpria realidade

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apreendida; trata-se, pois, no apenas da crtica da concepo que tem em Hegel seu expoente

mximo, como da crtica politicidade mesma; de fato, esta ltima que possibilita a primeira.

Por essa razo, no deu nem poderia dar lugar a uma nova teoria poltica, sob cuja tica fossem

observadas as situaes concretas, ou com cujas pinas fossem estas agarradas, seja porque o

objetivo apreender a lgica da coisa, isto , o objeto tal como existe por si mesmo, seja porque

aquela crtica envolve a percepo dos limites da razo poltica. Ao invs de uma teoria poltica,

divisamos um exame que busca descortinar e reproduzir mentalmente as determinaes,

conexes, processos etc. constitutivos do existente. Apanhadas as categorias e suas inter-relaes,

trabalho possibilitado pela mencionada maturao e tensionamento do prprio objeto, resultar

igualmente iluminado o nvel e a forma da generalizao de cada uma delas, isto , ser possvel

identificar sua presena, sob forma determinada, em outros lugares e pocas, ou, ao contrrio, em

uma nica regio ou perodo. Em outras palavras, os diferentes nveis de generalizao presentes

nas obras em foco so reprodues intelectuais de categorias reais, no criaes apriorsticas do

autor.

Nas obras aqui destacadas, encontramos a crtica da poltica na dupla acepo referida:

Marx mostrar a gnese, necessidade e transformaes da politicidade mesma e das concepes a

respeito dela, principalmente sob a forma das iluses alimentadas pelos expoentes das vrias

classes em luta.

Visando a explicao de acontecime