Livrando a mulher de jó do banco dos réus

5
A r t i g o T e o l ó g i c o | L i v r a n d o a M u l h e r d e J ó d o B a n c o d o s R é u s 1 | Página ARTIGO TEOLÓGICO Livrando a Mulher de Jó do Banco dos Réus por Carlos Augusto Vailatti RESUMO Este sucinto artigo busca reavaliar a situação da mulher de Jó, personagem bíblica esta que é conhecida pela tradição como Sitis, a qual, segundo o relato bíblico, teria incentivado o seu marido, Jó, a amaldiçoar a Deus. Através de uma releitura do verbo hebraico Bärak (que aparece em Jó 2.9) lançar-se-á um novo olhar sobre a reputação desta personagem feminina da Bíblia. Palavras-Chave: Mulher de Jó, Sitis, Jó, Bärak, Abençoar, Amaldiçoar. RESUMEN Este breve artículo pretende reevaluar la situación de la mujer de Job, el personaje bíblico que se conoce por la tradición como Sitis, que, según el relato bíblico, habría animado a su marido, Job, a maldecir a Dios. A través de una reinterpretación de lo verbo hebreo Bärak (que aparece en Job 2,9) será el lanzamiento de una nueva mirada a la reputación de este personaje femenino en la Biblia. Palabras Clave: Mujer de Job, Sitis, Job, Bärak, Bendecir, Maldecir. ABSTRACT This short article seeks to reassess the status of women of Job, this biblical personage who is known by tradition as Sitis, which, according to the biblical account, would have encouraged her husband, Job, to curse God. Through a reinterpretation of the Hebrew verb Bärak (which appears in Job 2.9) will be launching a new look at the reputation of this female personage in the Bible. Keywords: Job’s Woman, Sitis, Job, Bärak, Bless, Curse.

Transcript of Livrando a mulher de jó do banco dos réus

Page 1: Livrando a mulher de jó do banco dos réus

A r t i g o T e o l ó g i c o | L i v r a n d o a M u l h e r d e J ó d o B a n c o d o s R é u s

1 | P á g i n a

ARTIGO TEOLÓGICO

Livrando a Mulher de Jó do Banco dos Réus

por

Carlos Augusto Vailatti

RESUMO

Este sucinto artigo busca reavaliar a situação da mulher de Jó, personagem

bíblica esta que é conhecida pela tradição como Sitis, a qual, segundo o relato bíblico,

teria incentivado o seu marido, Jó, a amaldiçoar a Deus. Através de uma releitura do

verbo hebraico Bärak (que aparece em Jó 2.9) lançar-se-á um novo olhar sobre a

reputação desta personagem feminina da Bíblia.

Palavras-Chave: Mulher de Jó, Sitis, Jó, Bärak, Abençoar, Amaldiçoar.

RESUMEN

Este breve artículo pretende reevaluar la situación de la mujer de Job, el

personaje bíblico que se conoce por la tradición como Sitis, que, según el relato bíblico,

habría animado a su marido, Job, a maldecir a Dios. A través de una reinterpretación de

lo verbo hebreo Bärak (que aparece en Job 2,9) será el lanzamiento de una nueva mirada

a la reputación de este personaje femenino en la Biblia.

Palabras Clave: Mujer de Job, Sitis, Job, Bärak, Bendecir, Maldecir.

ABSTRACT

This short article seeks to reassess the status of women of Job, this biblical

personage who is known by tradition as Sitis, which, according to the biblical account,

would have encouraged her husband, Job, to curse God. Through a reinterpretation of

the Hebrew verb Bärak (which appears in Job 2.9) will be launching a new look at the

reputation of this female personage in the Bible.

Keywords: Job’s Woman, Sitis, Job, Bärak, Bless, Curse.

Page 2: Livrando a mulher de jó do banco dos réus

A r t i g o T e o l ó g i c o | L i v r a n d o a M u l h e r d e J ó d o B a n c o d o s R é u s

2 | P á g i n a

“Então sua mulher [de Jó] lhe disse: Ainda reténs a tua sinceridade? Amaldiçoa a Deus, e morre”.1 (Jó 2.9)

Sem dúvida alguma, uma das mulheres mais detestadas de toda a Bíblia

(senão a mais detestada) é a mulher de Jó. Embora a Bíblia não forneça detalhes

sobre a sua identidade, a tradição conferiu-lhe o nome de Sitis.2 Todo este

sentimento de aversão a ela se deve ao verso citado acima. Apenas para termos

uma pequena ideia sobre como a mulher de Jó foi compreendida pela

cristandade, cito Francis Andersen, que faz um curioso comentário a seu respeito:

Os cristãos de modo geral têm sido mais severos com ela [a mulher de Jó] do

que os judeus e os muçulmanos. Ela era a aliada de Satanás. Agostinho chamou-

a de diaboli adjutrix [assistente do diabo]; Crisóstomo: ‘o melhor flagelo de

Satanás’; Calvino: organum Satani [órgão de Satanás]. Segundo este ponto de

vista, ela tentou seu marido a auto-condenar-se (sic!) ao conclamá-lo a fazer

exatamente aquilo que Satanás predissera que faria.3

Já o teólogo Russell Norman Champlin, citando Samuel Terrien,

menciona o ponto de vista favorável deste autor francês para com a atitude da

esposa de Jó. Eis as suas palavras:

Samuel Terrien (...) interpreta que a esposa de Jó só estava tentando vê-lo morto

e livre de sofrimentos, supondo que uma maldição tivesse o poder de eliminar os

sofrimentos dele. Em outras palavras, ela era uma antiga advogada da eutanásia.

(...) Ela raciocinava que, se Jó amaldiçoasse a Deus, uma retaliação divina

mataria o homem, pondo fim aos seus sofrimentos. (...) Terrien chegou a supor

que o ato da mulher de Jó tenha sido inspirado pelo amor, por mais ignorante

que tenha parecido ser.4

1 ALMEIDA, João Ferreira de. (Trad.). Bíblia Sagrada. (Edição Revista e Corrigida). Rio de Janeiro, Imprensa Bíblica Brasileira, 1991. Os acréscimos entre colchetes são meus. 2 BERGANT, Dianne & KARRIS, Robert J. (Orgs.). Comentário Bíblico. Vol.II. São Paulo, Edições Loyola, 1999, p.215. 3 ANDERSEN, Francis I. Jó, Introdução e Comentário. São Paulo, Vida Nova/Mundo Cristão, 1989, pp.89,90. Os acréscimos entre colchetes são meus. 4 CHAMPLIN, R. N. O Antigo Testamento Interpretado: versículo por versículo. Vol.3. São Paulo, Hagnos, 2001, p.1871.

© C

arlo

s A

ugus

to V

aila

tti ●

Liv

rand

o a

Mul

her

de J

ó do

Ban

co d

os R

éus

● 2

011

Page 3: Livrando a mulher de jó do banco dos réus

A r t i g o T e o l ó g i c o | L i v r a n d o a M u l h e r d e J ó d o B a n c o d o s R é u s

3 | P á g i n a

Esses comentários, longe de esclarecerem qual era a verdadeira intenção

da esposa de Jó ao dizer aquelas palavras ao seu marido, acabam promovendo

mais polêmica do que uma possível solução em torno do assunto. Mas, afinal,

que sentimentos levaram a esposa de Jó a proferir palavras tão duras ao seu

marido num dos momentos mais difíceis da sua vida (pois ele já havia perdido

seus filhos e seus animais, bem como, na presente situação do texto, até mesmo a

própria saúde)? Ora, acredito que pesquisar o que o original diz nesse texto pode

nos ajudar a tentar solucionar essa questão. Eis o que diz o texto hebraico de

forma literal:

E disse a esposa dele a ele: [você] ainda se mantém firme em sua integridade?

Abençoe a Deus e morra.5

Talvez, ao ler este verso, você tenha se perguntado: “Espere aí, você

traduziu errado! A tradução correta não é: ‘amaldiçoe a Deus e morra’?”. Bem,

quando lemos o original, a palavra que aparece no verso 9 é o verbo hebraico

Bärak, cujos significados básicos são: “ajoelhar, abençoar, louvar, saudar e

amaldiçoar (usado de forma eufemística)”.6 Perceba que quatro dos cinco

significados básicos deste termo estão associados a aspectos positivos (“ajoelhar,

abençoar, louvar, saudar”), enquanto que apenas um significado, e ainda assim

usado de maneira eufemística, está relacionado a algo negativo (“amaldiçoar”).

Se pesquisarmos a Septuaginta (a tradução grega do Antigo Testamento

Hebraico, que é datada entre o III e o I séculos a.C.) veremos que ela não nos

ajuda a decifrar o dilema lingüístico que há no hebraico, pois ela apresenta assim

Jó 2.9 (de forma bem ampliada):

Passado muito tempo disse-lhe sua mulher: ‘até quando perseverarás dizendo,

[1] vede, espero ansiosamente ainda por um pouco de tempo, aguardando a

esperança da minha salvação’, [2] mas eis que é apagada tua memória da terra, 5 Esta é a minha tradução pessoal do texto. 6 HARRIS, R. Laird. (Org.). Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo, Vida Nova, 1998, p.220.

© C

arlo

s A

ugus

to V

aila

tti ●

Liv

rand

o a

Mul

her

de J

ó do

Ban

co d

os R

éus

● 2

011

Page 4: Livrando a mulher de jó do banco dos réus

A r t i g o T e o l ó g i c o | L i v r a n d o a M u l h e r d e J ó d o B a n c o d o s R é u s

4 | P á g i n a

os filhos e filhas do meu ventre; dores de parto e aflição em vão - esgotei-me

pelo labor! [3] tu mesmo em podridão de vermes permaneces, passas a noite ao

ar livre; [4] e eu, tenho andado errante e pedinte de um lugar a outro, e de casa

em casa; tenho esperado o sol - quando ele se porá, para que amenize os labores

e aflições que agora me cercam? [5] mas diga uma palavra ao Senhor, e

morra! 7

Mas então, como podemos entender Jó 2.9 à luz de seu contexto imediato?

Ou melhor, como deveríamos interpretar Jó 2.10 (a partir da tradução que demos

a Jó 2.9), por exemplo, quando Jó diz à sua esposa: “Como fala qualquer doida,

assim falas tu; receberemos o bem de Deus, e não receberíamos o mal?”. Bem, se

a nossa tradução estiver correta em 2.9 e, portanto, “Sitis” abençoou a Jó em vez

de amaldiçoá-lo, logo, segue-se que no verso 10 Jó não condena a sua esposa por

tê-lo instigado a “amaldiçoar” a Deus, mas sim chama a sua atenção por ela dar

a entender com as suas palavras que não acreditava que ele sobreviveria àquela

doença e a toda aquela situação (a perda dos animais, dos filhos, da saúde etc).

Neste sentido, então, Jó a adverte quanto ao fato de que eles ainda receberiam a

bênção de Deus no futuro (ele diz: “receberemos o bem de Deus”).

A favor de nosso ponto de vista podemos argumentar ainda que as

palavras da esposa de Jó sugerem “um desejo sincero de ver Jó livre dos seus

tormentos (pela morte)”, uma vez que ela não parece ver “a possibilidade de

recuperação da saúde [dele] e da restauração dos bens”.8 Essa hipótese parece ser

bem razoável e também parece coadunar mais com a realidade, pois, quando

passamos por momentos muito difíceis em nossas vidas (assim como Jó e a sua

esposa passaram), é natural que um dos cônjuges, ou até mesmo os dois, façam

um balanço negativo da realidade que estão enfrentando, chegando, inclusive, a

desenhar um futuro sombrio pela frente. De qualquer forma, como deveríamos

ver a esposa de Jó nesta passagem: como “bandida” ou como “mocinha”? Quem

sabe, algum dia ainda saberemos a verdade...

7 O texto sem negrito aparece apenas na Septuaginta. Já os textos em negrito são aqueles que têm o seu

correspondente em hebraico. Essa tradução em português da Septuaginta encontra-se disponível em: http://doaldofb.sites.uol.com.br/septuaginta.html. Acessado em: 11/03/2009. 8 ANDERSEN, Francis I. Jó, Introdução e Comentário, p.90.

© C

arlo

s A

ugus

to V

aila

tti ●

Liv

rand

o a

Mul

her

de J

ó do

Ban

co d

os R

éus

● 2

011

Page 5: Livrando a mulher de jó do banco dos réus

A r t i g o T e o l ó g i c o | L i v r a n d o a M u l h e r d e J ó d o B a n c o d o s R é u s

5 | P á g i n a

BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, João Ferreira de. (Trad.). Bíblia Sagrada. (Edição Revista e Corrigida). Rio de Janeiro, Imprensa Bíblica Brasileira, 1991. ANDERSEN, Francis I. Jó, Introdução e Comentário. São Paulo, Vida Nova/Mundo Cristão, 1989. BERGANT, Dianne & KARRIS, Robert J. (Orgs.). Comentário Bíblico. Vol.II. São Paulo, Edições Loyola, 1999. CHAMPLIN, R. N. O Antigo Testamento Interpretado: versículo por versículo. Vol.3. São Paulo, Hagnos, 2001. HARRIS, R. Laird. (Org.). Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo, Vida Nova, 1998. Septuaginta. In: http://doaldofb.sites.uol.com.br/septuaginta.html. Acesso em: 11/03/2009. © É permitida a reprodução parcial deste artigo desde que citada a sua fonte.

Citação Bibliográfica: VAILATTI, Carlos Augusto. Livrando a Mulher de Jó do

Banco dos Réus. [Artigo]. São Paulo, Publicação do Autor, 2011.

Carlos Augusto Vailatti possui Graduação em Teologia pela Faculdade Betel /

Instituto Betel de Ensino Superior (IBES, 1999), Mestrado em Teologia (Master of Arts

in Biblical Theology), com especialização em Teologia Bíblica, pelo Seminário

Teológico Servo de Cristo (STSC, 2009) e Mestrado em Língua Hebraica, Literatura e

Cultura Judaica (em andamento) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas (FFLCH) - Departamento de Letras Orientais (DLO) - da Universidade de São

Paulo (USP). Atualmente leciona diversas disciplinas bíblico-teológicas na Faculdade

Betel / Instituto Betel de Ensino Superior (IBES) e também no Seminário Teológico

Evangélico do Betel Brasileiro (STEBB). Contato: [email protected].

© C

arlo

s A

ugus

to V

aila

tti ●

Liv

rand

o a

Mul

her

de J

ó do

Ban

co d

os R

éus

● 2

011