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    CINEMA EEDUCAO:A LEI 13.006

    REFLEXES, PERSPECTIVAS E PROPOSTAS

    ORGANIZAO:Adriana FresquetCOLABORAO, EDIO E DISTRIBUIO:Universo Produo

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    CINEMA E

    EDUCAO:A LEI 13.006

    REFLEXES, PERSPECTIVAS E PROPOSTAS

    ORGANIZAO:Adriana FresquetCOLABORAO, EDIO E DISTRIBUIO:Universo Produo

    Prefixo editorial: 65412

    Nmero ISBN: 978-85-65412-08-7

    Ttulo: Cinema e educao: a Lei 13.006Reflexes, perspectivas e propostas

    Tipo de suporte: Internet

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    Que as perguntas que se desdobram hoje possam encontrar suas respostas no enfrentamentodos desafios que se descortinam diante dos olhos e nos impulsionam a trabalhar para criar ascondies de fazer da escola a grande porta de entrada do cinema para as famlias brasileiras.

    Raquel Hallak dAngelo

    Quintino Vargas Neto

    Fernanda Hallak dAngelo

    Diretores da Universo Produo

    Coordenadores da CineOP Mostra de Cinema de Ouro Preto

    Imbudos deste sentimento que tornamos realidade esta publicao.

    A solicitao da Adriana Fresquet, somada participao dos acadmicos e ao compromissoda Universo Produo em atuar para que avanos sejam conquistados para fortalecimento dacultura e da educao, foram os ingredientes que concretizaram este documento, que visacolaborar para a regulamentao da Lei 13.006, que resultou do Projeto de Lei (PL 185/08)proposto por Cristovam Buarque sobre a seguinte redao: A exibio de filmes de produonacional constituir componente curricular complementar integrado proposta pedaggicada escola, sendo a sua exibio obrigatria por, no mnimo, duas horas mensais.

    A seriedade da proposta, o desafio e o compromisso como cidados e profissionais, a oportu-nidade do dilogo, a realizao da CineOP Mostra de Cinema de Ouro Preto como um espao

    singular de encontro entre cineastas, preservadores e educadores fizeram com que a UniversoProduo materializasse esta publicao iniciativa indita de produo e compartilhamen-to de conhecimento traduzido em reflexes que problematizam a Lei, apresentam propostaspara que o governo e a sociedade possam definir polticas pblicas e a sua regulamentao.

    Em duas verses impressa e disponvel para consulta pela internet (www.cineop.com.br), a pu-blicao rene um conjunto de 20 reflexes e propostas terico-metodolgicas sistematizadas por40 profissionais de diferentes grupos de pesquisas das universidades brasileiras, professores deeducao bsica, cineclubistas, que vm trabalhando na interface do cinema e educao.

    Apostamos que este instrumento representa um marco histrico de dilogo direto e contribui-o efetiva na construo de possibilidades e propostas de acesso ao cinema brasileiro em umpas de dimenso continental.

    A UNIO FAZ A FORA

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    da Lei, algumas propostas de formao docente, de experincias desenvolvidas com cinema naescolas e sobre os filmes que vo para a escola. Para a elaborao desses textos diversos pro-fessores foram convidados, os que puderam responder esto presentes aqui. Antecipamos asdesculpas queles professores que podem no ter sido contatados, por falta de conhecimentoou bem de omisso ou engano, mas se trata de uma primeira iniciativa, de aproximao a pro-fessores brasileiros que desenvolvem projetos de pesquisa, ensino e extenso relacionando aeducao com o cinema e outras formas de produo audiovisual no contexto escolar.

    Algo de histria da Lei

    O Projeto de Lei do senador Cristovam Buarque (PL 185/08) inicialmente acrescentava opargrafo 6ao artigo 26 da Lei n 9.394, de 20 de dezembro de 1996, Lei de Diretrizes e Basesda Educao Nacional, propondo que a exibio de filmes de produo nacional constituircomponente curricular complementar integrado proposta pedaggica da escola, sendo a suaexibio obrigatria por no mnimo duas horas mensais.

    O projeto percorreu uma longa estrada, cercado de resistncias que foram desaparecendonos ltimos passos. Um dos debates foi se a exibio de filmes deveria ser parte do currculocomplementar integrado proposta pedaggica da escola ou como contedo programtico dadisciplina Arte, em que a exibio de filmes nacionais seria apenas um indicativo e no umaobrigatoriedade. Em 5 de junho de 2014, um substitutivo relatado pelo senador Cyro Miranda,

    que modificava a matria da Lei nessa direo, rejeitado. Com os cumprimentos ao autor daLei original, Cristovam Buarque, o Projeto 185 de 2008 vai a sano em sua primeira redao:A exibio de filmes de produo nacional constituir componente curricular complementarintegrado proposta pedaggica da escola, sendo a sua exibio obrigatria por no mnimo duashoras mensais. Em 9 de julho de 2014 a presidente Dilma transforma o Projeto na Lei n 13.006,de 2014, sancionada em 26 de junho, conforme o DOU apresentado em anexo.

    Durante o trmite da Lei, o senador a justificou conferindo um lugar especial necessidadede apoiar a indstria cinematogrfica nacional. O parlamentar explica que a nica forma dedar liberdade indstria cinematogrfica criar uma massa de cinfilos que invadam nossoscinemas, dando uma economia de escala. A parte mais pedaggica da justificativa indicaque a ausncia de arte na escola, alm de reduzir a formao dos alunos, impede que eles,na vida adulta, sejam usurios dos bens e servios culturais; tira deles um dos objetivos da

    Uma nova Lei1obriga que todas as escolas de educao bsica exibam duas horas de cinemanacional por ms como componente curricular complementar, integrado proposta pedaggicada escola.

    Nas prximas pginas colocamos muitas questes sobre essa nova Lei. Que filmes? Que formas

    de exibio? Que engajamento dos professores e da comunidade? Que formas de acesso sobras? Como regulamentar a Lei? H filmes com tecnologias assistivas que permitam sua aces-sibilidade a professores e estudantes cegos e surdos? Como engajar outros atores Ancine, Se-cretaria do Audiovisual, secretarias de educao, MEC? Quem custear as aes? E, sobretudo,o que esperar dessa relao do cinema com a educao?

    Decidimos abrir um dilogo com o leitor e com os colegas que tm pensado, desde a universida-de, experincias que aprofundam prticas de cinema em espaos educativos, particularmente,de educao bsica. Para isso, organizamos este artigo em dez consideraes que nos permi-tiro contemplar potncias e fragilidades da obrigatoriedade de filmes brasileiros nas escolas.Alm disso, no final, apresentamos a Lei em anexo e anunciamos reflexes e algo de histria

    1 Lei 13.006, de 26 jun. 2014, que acrescenta o inciso 8ao art. 26 da Lei n 9.394, de 20 dez. 1996.

    Adriana Fresquet

    Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

    Cezar Migliorin

    Universidade Federal Fluminense (UFF)

    DA OBRIGATORIEDADE DO CINEMA NAESCOLA, NOTAS PARA UMA REFLEXOSOBRE A LEI 13.006/14

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    Por mim seria mais de duas horas, mas para ser mais de duas horas teria que ser no horriointegral (...) Agora o modus operandieu confesso que no sei direito. Sabendo que tem que fazerisso, e havendo uma certa simpatia de parte dos professores, a escola encontrar o caminho. OMEC j deveria estar comprando audiovisuais, alm dos livros. A tem que ter um conselho comotem para o livro didtico.

    Finalmente, em relao ao financiamento pblico de filmes nacionais e sua eventual distribui-o nas escolas:

    Todo cineasta que receber recurso pblico dever disponibilizar uma quantidade de filmes paraas escolas. Hoje em dia nem precisa fazer DVDs, basta autorizar um download. (...) Penso quefilmes que esto produzidos e no so distribudos poderiam circular pelas escolas.

    Como ficar claro no decorrer deste artigo, guardamos algumas proximidades e certas dis-tncias com essas justificativas do senador. Entretanto, no temos dvidas de que as boasintenes aqui dependem de uma regulamentao que enfatize as potncias desse encontro docinema com a educao. De outra forma, a nova Lei pode tambm ser apenas mais uma formahegemnica de dizer ao professor e escola o que eles devem fazer, alm de forar o Estado agastar com um cinema que j financiado por ele. Esse um dos riscos possveis quando selegisla sobre a obrigatoriedade de produtos que so, tambm, comerciais, nas escolas.

    A despeito desses e de outros riscos, trata-se de uma iniciativa que parte de uma intuio im-

    portante e com a qual acreditamos poder contribuir.

    Afirmao de trs crenas sobre a relao do cinema com a educao

    Antes de avanarmos pontualmente sobre as dificuldades e possibilidades da Lei, nos parecerelevante explicitarmos algumas ideias de base sobre a importncia do cinema na escola.Faamos isso a partir de trs crenas ligadas a essa relao.

    A primeira crena no cinema e na sua possibilidade de intensificar as invenes de mundos,ou seja, a possibilidade que o cinema tem de tornar comum parte do que entendo como sendoo meu mundo o que no nos pertence, o que est distante, as formas de vida e as formas deocupar os espaos e habitar o tempo. isso que est em jogo no cinema. Para se imaginar que

    educao, que o deslumbramento com as coisas belas. O cinema a arte que mais facilidadeapresenta para ser levada aos alunos nas escolas. O Brasil precisa de sala de cinema comomeio para atender o gosto dos brasileiros pela arte e ao mesmo tempo precisa usar o cinemana escola como instrumento de formao deste gosto. Para ele ainda, os jovens que notm acesso a obras cinematogrficas ficam privados de um dos objetivos fundamentais daeducao: o desenvolvimento do senso crtico. Cabe destacar que o senador no define quefilmes, nem como eles sero escolhidos, tambm no faz referncia a quem dever custearsua aquisio, infraestrutura e dispositivos de execuo da Lei.

    Essas justificativas multiplicaram nossas perguntas e agendamos assim uma entrevista paraouvir as motivaes que de fato deram origem a esse Projeto de Lei. Em 2012, essa entrevista foiapresentada no IV Frum da Rede Kino: Rede Latino-Americana de Educao, Cinema e Audio-visual, ocorrido na 7Mostra de Cinema de Ouro Preto CineOP, onde o debate sobre o Projetode Lei j trazia algumas das questes que aqui expomos.

    Na entrevista, Cristovam Buarque, proponente da Lei, organizou suas motivaes. Uma vez san-cionada, essa motivaes deixam de ser argumentos para sua aprovao e passam a ser reflexessobre sua aplicabilidade, por isso a necessidade agora discutirmos tambm a fala do senador.

    Primeiramente h uma preocupao com a escola no mundo contemporneo. O senador diz:

    A escola uma coisa hoje muito chata. Ns temos que levar alegria, diverso e isso a cultura que leva.

    Cultura simples. Ensino maneira tradicional, sem cultura, fica chato e as crianas no aguentammais. A criana de hoje est muito mais para o audiovisual do que para ao vivo. Ela gosta da tela. Elacresceu, nasceu vendo as coisas na tela. Ento, a tela atraente. Ento vamos colocar cinema. Essa aprimeira coisa, trazer um pouco mais de alegria, de sintonia da escola com as crianas.

    Em seguida, para alm do entretenimento, o senador coloca:

    Cultura fundamental. Sem cultura a educao fica limitada. Ela no d o sentimento, no d aviso humanista. Por mais que voc coloque filosofia, humanismo s chega atravs da msica,atravs do teatro, atravs do cinema. (...)

    Acerca de como ele imagina esse modus operandida entrada do cinema na escola, sua obrigato-riedade, recursos, procedimentos, ele afirmou:

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    se transforma no cenrio de encontro entre o cinema, professores e estudantes, mas potencial-mente tambm entre o cinema e a comunidade. Reside a uma fora dessa Lei, caso mantenha-mos a porta aberta da escola para que os filmes transitem na comunidade, para que a curadoriae os debates contem com a participao de todos e para que a forma mesmo do cinema dar a vere inventar o mundo seja compartilhada entre alunos, professores e a comunidade.

    O cinema na escola opera imediatamente a transmutao de todos em espectadores. Diante datela acontece uma horizontalizao de nossa condio, at na posturas dos corpos, professor ealunos no esto mais contrapostos em dois lados, mas se viram para juntos para assistir ao

    filme, se colocam no mesmo lugar, com a tela como foco de ateno. Esse lugar do espectador, en-tretanto, no simples. Para Comolli (2008), assistimos hoje a uma luta feroz por duas concepesde espectador: a primeira que quer a alienao e a submisso do mesmo pela dependncia dodivertimento e o controle da subjetividade, e a segunda que postula a promessa de maior liberdadee responsabilidade dos sujeitos-espectadores pela intensificao da experincias subjetivas e pelapossibilidade de desenvolver uma conscincia crtica e criativa. Fica claro que qualquer reduo docinema ao entretenimento ou lgica do espetculo retira o prprio cinema da cena educacional.

    A Lei cria a possibilidade da escola garantir o acesso a toda criana e famlias escolarizadaao cinema, mas, mais do que isso, a possibilidade de acesso a sistemas de expresso e signos,blocos de ideias e estticas marginalizadas pelo mercado e pelo sistema oligopolista de exibio.

    Com a Lei, a escola potencialmente um polo audiovisual na comunidade.

    Pensar a escola como um espao coletivo de contemplao, de intelectualizao e sensibiliza-o com as obras cinematogrficas tambm apostar que, dessas leituras criativas do Brasilassim feito imagem, se cria matria-prima para novas construes do pais em territrio escolar.

    Fundamental ainda para a democratizao do acesso lembrar que hoje ainda so escassosos filmes nacionais que oferecem tecnologias como closed caption ou audiodescrio, quepermitam ampliar o acesso a esses filmes por parte de cidados surdos ou de baixa audioe cegos ou de baixa viso. Essa uma demanda escolar importante, mas ela apenas umreflexo de uma demanda mais ampla, da sociedade como um todo, que continua a excluir dosseus circuitos e programaes culturais uma parte significativa de membros por carecer decondies de acessibilidade: desde rampas e espaos que configurem os movimentos de umacadeira de rodas, at a tecnologia necessria para que haja condies de incluso efetivamente

    o cinema deve estar na escola, podemos partir dessa primeira crena, uma dimenso propria-mente poltica e esttica. No apenas porque os estudantes podem acessar o que h de melhorna cultura, mas tambm porque o cinema na escola tenciona a prpria arte a estar a altura dasexperincias sensveis desses jovens.

    A segunda crena na escola como espao em que o risco dessas invenes de tempo e espao possvel e desejvel. Aceitar que o cinema prope mundos, no traz apenas o belo, o confortoou a harmonia. Ou seja, se desejamos o cinema na escola porque imaginamos que a escola um espao, um dispositivo, em que possvel inventar formas de ver e estar no mundo que

    podem perturbar uma ordem dada, do que est institudo, dos lugares de poder. Assim, apostarno cinema na escola nos parece tambm uma aposta na prpria escola como espao ondeesttica e poltica podem coexistir com toda a perturbao que isso pode significar. Trata-se deum enorme e estimulante desafio para os educadores.

    A terceira crena, necessria para essa relao do cinema com a escola, na prpria criana,nos jovens. Aposta na possibilidade de entrarem em contato com filmes, imagens, sons que notrazem mensagens edificantes, que no so pautadas pela funo social ou pela necessidadede fazer um mundo mais bonito. Trata-se de uma crena na inteligncia intelectual e sensveldos que frequentam a escola. S com ela possvel lidar com a arte, com elementos que no seorganizam pelo discurso, mas que demandam o espectador para se concretizarem.

    Esse princpios podem parecer bvios, mas, sem retornar a eles com frequncia, seria difcil seguir

    trabalhando para a aproximao do cinema com a escola. A presena do cinema na escola traz o prazerque o senador aponta, mas traz tambm desafios para todos os que esto na escola. O cinema nopede nada em troca, mas, quando estamos abertos a ele, talvez precisemos autorizar a desordemque o cinema pode causar nos processos subjetivos e pedaggicos. Se retiramos esses riscos de tero cinema na escola, esvaziamos sua potncia como objeto de arte que representa e inventa mundo.

    Dez consideraes sobre a Lei

    1. Democratizar o acesso

    Se h um ponto forte de concordncia inicial com a nova Lei, trata-se de ela constituir umapossibilidade contundente do cinema brasileiro alcanar todos e todas. A escola desse modo

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    Claro, essas questes esto em disputa, dependem da regulamentao, mas, para ns apenasindicam, mais uma vez, que em si a Lei diz pouco. Muitas vezes tentamos garantir o gesto de-mocrtico da escolha do filme nas turmas de estudantes, por votao, proposio, entre outras.E nos perguntamos acerca dessa liberdade? Mais do que fazer um gesto pretensamente demo-crtico, deixando a escolha para os estudantes e, eventualmente para professores com poucoacesso diversidade do que se produz e produziu no pas, parece ser responsabilidade de todosampliar radicalmente as possibilidades de escolha, sem que as escolas fiquem pautadas peloque est na TV ou organizado pelo mercado nos DVDs.

    Perguntamos a ns mesmos se essa Lei permitir o acesso a essa imensido de filmes que soproduzidos com recursos pblicos, mas em cujos editais no est prevista sua distribuio, nemsua exibio. Um universo de trabalhos de uma qualidade mpar que descansa nas cinematecase nos museus de imagem e som.

    O que colocamos que a Lei precisa ser regulada sem que ela favorea as mesmas estticas epoderes econmicos que dominam um mercado restritivo, fechado diversidade e diferena,sem, tampouco, impor s escolas filmes que no interessam aos estudantes ou aos professores.Nesse sentido, talvez fizesse sentido oferecer s escolas uma pr-seleo de 100 filmes a cadaano, por exemplo, com o devido material que ajude a comunidade escolar a usufruir de cadaobra. Seria uma possibilidade de comearmos uma democratizao, pelo alcance das escolas,mas tambm pela possibilidade de dar a conhecer filmes brasileiros, deixando ainda uma largamargem de escolha comunidade.

    Levar filmes brasileiros s escolas pode criar ainda a curiosidade de conhecer seus autores,diretores, roteiristas, personagens, isto , pode borrar os muros para o encontro com artistase produtores, convid-los a dialogar com eles sobre os filmes, propiciar uma interao entre aescola e o universo do cinema. Bom para a escola, melhor para o cinema. Para isso decisivoque possamos partir de uma curadoria constituda por profissionais responsveis pelas reasem dilogo, ao mesmo tempo, que esteja prxima da comunidade e no apenas em Braslia.

    3. Valorizar as aes existentes e locais

    A nova Lei parece bastante reveladora da compreenso que temos da escola, um espao em que,verticalmente, podemos tornar obrigatrias certas prticas, legislando nos mnimos detalhes.

    para todos. Nos ltimos dois anos o projeto Democratizando2vem disponibilizando filmes brasi-leiros com closed caption ou audiodescrio para escolas, cineclubes, centros culturais etc. Masa ao restrita a menos de 0,5% das escolas do pas e carece ainda de um acompanhamentoque facilite a efetivao de cineclubes, debates e uma efetiva mobilizao em torno dos filmes.Trazemos esse exemplo para tambm para chamar ateno para o fato de que fazer o filmechegar escola, com todas as condies de acessibilidade, apenas o incio do trabalho.

    2. Acesso, diversidade e capilaridade de decises

    Com a Lei, corremos o risco de partir do princpio de que o cinema bom em si. Talvez a sala decinema seja em si um gesto poltico, menos pelos filmes, mas porque se trata de estar em outroambiente e por duas horas ininterruptas com apenas um foco de ateno mesmo que essaafirmao seja duvidosa. Mas, com a Lei, no h salas de cinema programadas, claro. Se con-sideramos que o cinema no bom por princpio, a regulamentao dessa Lei torna-se absolu-tamente decisiva, nos levando a desdobrar a questo inicial: Veremos qualquer filme? Teremosuma comisso de seleo dos filmes? Como estar composta a comisso que selecionar essesfilmes? Como contribuiremos para que os filmes sejam discutidos, pensados e experimentadosesttica e discursivamente? Ser possvel fugir do formato que hoje controla a Ancine? centra-lizada, que d superpoderes ao Estado e enfatiza o cinema como produto comercial?

    Em resumo, nos perguntamos, uma vez feita a imposio do cinema, como tornar mais horizon-

    tal a efetivao dessa prtica? Como trazer a comunidade professores, pais, alunos, cineastas,pesquisadores para a efetivao dessa Lei?

    Descentralizar o processo de seleo de filmes permite ainda aguar o critrio de educativopara essa seleo, evitando que tudo o que se produz no pas gire pelas escolas indiscrimina-damente. No porque a escola no tenha meios para julgar a qualidade ou eleger suas prefe-rncias, apenas porque temos pouco tempo; nesse sentido, por que no pensarmos juntos oque mais pode contribuir para essa relao cinema e educao? De outra maneira, nos pergun-tamos, faz sentido usarmos o tempo da escola para reproduzirmos as mesmas imagens quebombardeiam todas as casas com a televiso?

    2 O Democratizando parte da Mostra de Cinema e Direitos Humanos do Hemisfrio Sul, realizado pela UniversidadeFederal Fluminense e pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica.

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    especial que tenciona o gesto de acreditar e criar com a postura crtica e questionadora dadvida, ao mesmo tempo em que a crena no real e no mundo parte da forma como podemosser tocados no cinema. Dessa tenso emerge o conhecimento.

    Direta ou indiretamente vinculados aos currculos escolares, os filmes ampliam o conhecimentodo mundo, de espaos, tempos histricos, de modos de viver, concepes de mundo, perspecti-vando o prprio ponto de vista em cada filme.

    5. Cinema conhecimento e inveno de mundo

    A escola pblica hoje est submetida a um esvaziamento de sentido, a uma suspeita. Suspeita-se da qualidade de sua oferta, da competncia profissional de seus professores e de sua efici-ncia, da adequao de seus princpios cultura contempornea (SIBILIA, 2012). No outrasuspeita que permite que ela seja julgada como algo chato e anacrnico.

    Em alguma medida, os professores hoje so tratados como operadores de um sistema que prevdesde o planejamento das aulas, os materiais didticos, at a avaliao. A falta de resultadosbem-sucedidos tem atiado sistemas de medida que acabam dando o tom do cotidiano escolar.Grande parte do que se faz no ensino fundamental e mdio tem a ver com a projeo de resul-tados nas provas para avaliar os ndices de Desenvolvimento da Educao Bsica (Ideb). Quesentido faria, nesse contexto, impor duas horas de cinema por ms? Essas duas horas sero

    submetidas a esse tipo de avaliao que, no lugar de avaliar o que se faz, modula o conhecimen-to e o aprendizado? E nos perguntamos, duas horas de cinema nas escolas contribuem para quea escola seja um espao de criao e circulao de conhecimento? Um lugar para a educaoe no apenas para a obteno de resultados escolares? Temos espao para o cinema chegar escola sem pedir nada em troca e, no limite, perturbando a excessiva funcionalizao para omercado, para o sucesso pessoal que se tornou a escola?

    Desde os primeiros textos que circulam no formato acadmico sobre a aproximao das reasde cinema e educao (DUARTE, 2002; TEIXEIRA & LOPES, 2003; entre outros), encontramosuma crtica ao uso do cinema nas prticas pedaggicas, no sentido de alertar sobre a incon-venincia de subordinar uma rea a outra, de coisificar (o prprio verbo usar j nos leva aisso) uma arte e funcionaliz-la em virtude de sua potencia pedaggica. difcil negar que ocinema nos permite aprender e ensinar, que filmes dialogam articuladamente com projetos

    Poderamos, por exemplo, propor algo na mesma linha, mas que soaria absurdo: por que noestender a Lei educao e no somente escola? A, conforme a LDB, teramos obrigatoria-mente duas horas de cinema brasileiro na vida familiar, na convivncia humana, no trabalho,nas instituies de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizaes da sociedade civile nas manifestaes culturais (BRASIL, 1998). Talvez isso nos parea absurdo fora do espaoescolar. Na escola, entretanto, uma imposio como essa pode acontecer sem que ela nos causegrandes estranhamentos.

    Nesse sentido, h na especificidade dessa Lei o que poderamos chamar de uma ao deses-

    perada. Quando nada mais possvel, preciso vir do alto, tornar obrigatrio, impor. Por umlado, com a Lei h uma hipercrena no cinema, por outro, uma descrena em uma prxis, noprofessor e na possibilidade do cinema fazer parte da escola porque as escolas assim desejam.

    Apesar da obrigatoriedade, no podemos perder de vista que existem polticas locais a partir desecretarias, universidades, escolas livres e pontos de cultura, formando uma grande rede compotencial capilaridade da presena do cinema na educao que pode ser incentivada e estimula-da. Em resumo, diramos que a existncia da Lei no pode substituir tal capilaridade e a efetiva-o da Lei deveria passar pelo estmulo e qualificao dessa rede j existente, ajudando a sanarum dbito geracional com a educao em torno do direito arte e a experincias sensveis. Essaao desesperada deve ser parte de poltica audiovisual para a infncia e a juventude.

    4. O cinema deve ser arriscado

    A aproximao entre a arte e o belo pode colocar a arte e o cinema em um lugar bastantelimitado, reduzindo seu potencial profanador, dissonante e poltico. No nosso entender, no setrata de colocar jovens em contato com coisas belas. O cinema no o lugar de coisas belas,apenas, mas tambm do feio, do insuportvel, do estranhamento, do perturbador. Se essa equi-valncia entre o cinema e as coisas belas se mantm estamos fossilizando e destruindo apotncia disruptiva e inventiva dessa arte.

    Como nos lembra Comolli, o cinema nos coloca na fronteira entre o crer e o duvidar (COMOLLI,2008). Eis a uma dimenso propriamente pedaggica das imagens. Se o cinema nos convida otempo todo a crer sem deixar de duvidar (p. 6) no que estamos vendo, propicia tambm a pos-sibilidade de duvidar sem deixar de crer (ibid). Podemos imaginar a escola como um cenrio

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    7. Tenso na estrutura das escolas

    Imaginemos. A Lei levada muito a srio e, para que isso acontea, toda escola ter condiesde exibir filmes com qualidade de som e imagem, com boa acstica, conforto para os especta-dores, temperatura controlada etc. Sim, uma lei pode no ser nada, mas pode tambm ser umarevoluo no ambiente escolar.

    8. Por que cinema brasileiro?

    Como vimos, o cinema no pode ser parte de uma modelizao subjetiva para garantir consumo.Nesse sentido, mais vale um bom filme norte-americano, italiano ou iraniano do que ttulosnacionais que por vezes nos constrangem apenas com o ttulo. Um pssimo filme brasileiro falamuito de ns, verdade, mas ser que isso que desejamos na escola? Poderamos argumen-tar: Mas desmontar a retrica de filmes ruins ou ideologicamente questionveis pode ser opapel da escola. Ser? Ser que, como assinala Bergala (2002), no mais rico para o processoeducativo um plano ou um filme que implique o estudante em uma experincia singular deritmo, de diversidade esttica e de alteridade? Uma travessia por entre as frestas do filme?

    Nesse sentido, a importncia e os efeitos que o cinema pode ter nos processos subjetivos e nasinvenes de mundo de estudantes no esto restritas ao cinema brasileiro. Entretanto a Lei fazum recorte filmes brasileiros. certo que para conhecer preciso um recorte esse pode ser

    to aleatrio como outro: apenas filmes egpcios, por exemplo, seria um tanto absurdo, mas nodeixaria de ser um recorte. Por proximidade e patriotismo, talvez, escolhemos filmes que decerta forma tencionam os sotaques, as variaes dos tipos e das lnguas, que nos colocam emrelao com o prximo e o distante que por vezes est na esquina. Imaginamos que a aberturado conhecimento para a diferena, potncia fundamental do cinema, tanto mais forte quandoh essa relao de identificao, de percepo da proximidade e da distncia para o que conhe-cemos, para o que parte do que chamamos minha cidade, meu estado, meu pas.

    9. Promover a criao com imagens

    Ver cinema, em alguma medida, nos coloca na disposio de criar. Se no incio criarmos apenasimagens, ideias, sentimentos a partir da projeo, ativarmos a nossa imaginao, em breve

    curriculares que relacionam diferentes reas na produo de conhecimento, e acreditamosque a crtica no pretenda negar essa possibilidade, legtima e potente. A crtica se concentraem minimizar essa forma como nica ou exclusiva de entrada de cinema na escola. A metforado cinema como janela que nos abre para o mundo nas categorias de tempo e espao e, comoespelho, apenas uma das outras possibilidades que ele traz para a experincia de aprendi-zagem para alm do contedo.

    no prprio gesto de se fazer cinema que encontramos fortes vnculos com o gesto de educar.Para fazer cinema sempre preciso fazer escolhas, relacion-las e tomar decises (BERGALA,

    2002). Hoje, que encontramos a informao disponvel e misturada nas redes, preciso comonunca estar junto de quem aprende para aprender a fazer escolhas, estabelecer relaes epoder decidir, como trs atos fundamentalmente pedaggicos. Projetar filmes na escola podesignificar a possibilidade de alargar o conhecimento de si e do mundo, particularmente se in-troduzimos o cinema a partir da pedagogia da criao, que nos prope o mesmo autor. Isto ,se podemos ver os filmes, imaginando como eles foram feitos, situando-nos nas emoes dacriao e imaginando outras, prprias.

    6. A escola no forma consumidores

    Para pensar a regulamentao da Lei, nos parecem importantes alguns cuidados parano cedermos ao discurso do consumo. Embora ela j aparea como justificativa, na hora

    de organizar a Lei no consideramos saudvel para a escola, nem para o prprio cinema,uma justificativa dessa ordem. Ou seja, para justificar a Lei poderamos dizer: precisa-mos formar consumidores para o cinema brasileiro, mas quem forma consumidorespara cinema forma, antes, consumidores para qualquer coisa. A escola seria ento umaextenso da propaganda? Uma busca por cativar futuros consumidores de um produto queprecisa ser vendido?

    Parece-nos que a retrica da indstria no pode ser o fim para o cinema na escola. Aindstria historicamente no Brasil o argumento de muitos poderes para conquistarverbas pblicas esse no pode ser mais um desses projetos. Nesse sentido, filmes querecebem verbas pblicas deveriam, automaticamente, ter seus direitos cedidos s escolaspblicas. No faria sentido pagarmos pela produo e termos que pagar como contri-buintes uma segunda vez para exibir nas escolas.

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    sibilidades de vida, de existncia, novas formas de uma cognio hbridae coletiva (CANCLINI,2013)? Como atravessar a escola, com o cinema, numa prtica pedaggica desse tipo? Quiproduzindo com os estudantes polticas de inveno que nos permitam uma aprendizagem viva(KASTRUPF, 2007), um aprender a aprender ou um permanente e dialtico aprender, desapren-der e reaprender. Apostamos em qualquer forma de ensino que no pressuponha um saberpronto, mas combinaes frescas, como dizia Whitehead (1967).

    Na relao do mestre com o estudante, afirma Rancire (2007), preciso que exista umaterceira coisa, que pode ser um livro, uma experincia, algo que ative a curiosidade da

    busca e da criatividade de quem aprende desvendando o que no conhece, ao relacion-locom o que j conhece, e compartilhar sua aventura intelectual com o outro. Essa terceiracoisa pode ser sim, tambm, um filme, um filme brasileiro. Entre o mundo representa-do e a criao engajada em uma obra, o cinema contribui na emancipao intelectual doprofessor e do estudante, uma emancipao diretamente ligada s possibilidades inventivasdo cinema. O cinema no faz apenas coisas criativas, mas se engaja na criao de formasde vida. dessa criao que a comunidade escolar participa com o cinema. Ela possibilitaimprimir algumas dvidas ao que vemos e nos autoriza a fazer leituras criativas do quenos dado a ver, sem mais, pensando criticamente nas possiblidades de alterar o mundopara alm da crtica ideolgica ou do modo passivo de perceber. Nesse sentido, a presenado cinema na escola torna-se um transformador das prprias prticas educacionais. Umatarefa excessivamente grande para os filmes, mas passvel de ser efetivada se permitirmosa experincia sensvel e intelectual do cinema entre professores e alunos. Uma experin-

    cia que no est pronta nos filmes, mas que depende de trabalho de toda a comunida-de envolvida da educao, do desejo dessas pessoas. De outra maneira, resolvemos a Leiexibindo filmes sem afetar nada nem ningum.

    A escola como territrio discursivo carrega o peso de ser tradicionalmente caracterizada pelaafirmao de regras e certezas. O cinema, na escola, poder ocupar o lugar do contraponto, ten-cionando-as com algumas excees e dvidas. Introduzir a pergunta num cenrio de verdadesprontas, o afeto e as sensaes num terreno hegemonicamente cognitivo. E a escola, seja pelasua funo poltica de distribuir democraticamente esse bem cultural chamado conhecimen-to to desigualmente distribudo em nossa sociedade , seja pela sua intencionalidade emestabelecer uma relao com o conhecimento que pressuponha ensino/aprendizagem, seja poroferecer um espao de experincia singular entre os sujeitos e entre eles e o conhecimento,pode contribuir para que a cultura cinematogrfica no olhar produzido sobre o mundo possa

    estaremos sendo tomados pela necessidade de filmarmos. Ver e fazer so frente e verso de umamesma prxis. Primeiro mentalmente, mas em breve, na ao, na escrita com e sobre os filmes.Mesmo com recursos to simples como um celular ou uma cmera fotogrfica, apostamos napotncia dessa arte para promover o ato criativo. Exemplos no nos faltam. A Rede Kino: RedeLatino-Americana de Educao, Cinema e Audiovisual tem mapeado a produo de cinema emescolas em todos os estados do pas, por estudantes de todas as idades, em escolas especiais,EJAs e Centros Socioeducativos.

    As crianas tm o poder de dessacralizar os bens impostos pelo mundo adulto. Com sua irre-

    verncia, se elas puderam subverter o significado de um instrumento de culto, transforman-do-o em chocalho (BENJAMIN, 2005), elas tambm podem vir a profanar os sentidos escolhi-dos pelos filmes, como produtos da cultura adulta. Os professores podem tambm, a partir daexperincia do cinema, vir a revisar a contrapelo seus valores e (pr)conceitos, desaprenden-do posturas pouco flexveis de ver e de estar no mundo. Ver e fazer cinema na escola poderiatambm agir como um gesto de profanao (AGAMBEM, 2007) nos modos de ver. Uma experin-cia outra de tela e sala escura na escola poderia, talvez, permitir alguma forma de emancipa-o e autonomia desse espectador que pode fruir para alm do que esperado dele enquantoconsumidor de servios ou produtos (FREIRE; RANCIRE, 2010).

    Apostamos em um cinema que, no encontro com a escola, venha a produzir aprendizagensvrias, inclusive de contedos, mas como efeito e no como objetivo. Muito mais promovendoaes de emancipao intelectual, de construo de pontos de vista e de escuta do mundo, como

    possibilidade de imagin-lo de um outro modo.

    O gesto de inventar (como espectador ou fazedorde imagens) pode devolver a estudantes e pro-fessores algo de sua capacidade de autoria que, esquecida, ficou presa nas grades curricularese nas burocrticas formas de organizao dos centros educativos.

    10. A experincia com o cinema

    Como possibilitar que esse cinema na escola seja uma experincia esttica e subjetiva e noapenas uma funo social?

    Em outras palavras, como fazer da experincia do cinema na escola uma inveno de novas pos-

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    Outras reflexes

    A seguir, apresentamos grupos de textos em torno de quatro grandes partes: [1] Reflexes e algode histria, [2] Formao de professores; [3] Experincias com cinema em escolas de educaobsica; e [4] Filmes: Quais? Como?

    Nesses grupos, importantes questes so levantadas a partir da intensificao da relao docinema com a educao, apontada pela Lei. Percorremos consideraes sobre direitos autorais,preservao de filmes, formao de plateia, distribuio de filmes e iniciativas de Estado, legisla-

    o, identidade, composio de acervos flmicos, arquitetura e estruturas escolares, linguagemcinematogrfica e anlise flmica, cineclubes, processos subjetivos, produo de filmes nasescolas, relaes com a mdia, relaes com festivais e mostras, anlises de experincias es-pecficas, currculo, curadoria, cultura brasileira, aprendizado, formao de professores, envol-vimento da comunidades etc. Uma enorme gama de questes levantadas pela Lei que apontampara a complexidade do desafio que temos pela frente, mas tambm para a ampla reflexoexistente no pas para que a Lei seja mais um importante passo para uma poltica audiovisualpara a infncia e a juventude e para a possibilidade de uma educao mais democrtica.

    Na primeira parte, iniciamos a reflexo com o texto Novos desafios frente Lei 13.006/14,de Antnio Carlos Amncio, Hadija Chalupe, Eliany Salvatierra, Fabin Rodrigo Magioli Nez,Joo Luiz Leocadio da Nova, Maurcio de Bragana e Rafael de Luna Freire, do Instituto de Artee Comunicao Social da Universidade Federal Fluminense; vem seguido do trabalho luz

    da Lei, de Maria Anglica dos Santos, Maria Carmen Silveira Barbos e Angelene Lazzareti,do Programa de Alfabetizao Audiovisual, iniciativa desenvolvida em Porto Alegre com as Se-cretarias Municipais de Cultura e Educao, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, porintermdio da Faculdade de Educao e do Instituto de Artes e com financiamento do Ministrioda Educao. Inclumos Pra que cinema? O que pode o cinema na educao e a educao nocinema? Fronteiras de encontros, de Csar Donizetti Pereira Leite e Rafael Christofolettido,PPGE Unesp Rio Claro, do Grupo Imago Laboratrio da Imagem, Experincia e Criao. MileneSilveira Gusmo, Raquel Costa Santos e Macelle Khouri Santos,do Bacharelado em Cinema eAudiovisual e do Programa de Ps-Graduao em Memria: Linguagem e Sociedade, da Univer-sidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), escreveram sobre Processos de formao pelocinema, entre trajetrias, planos e redes: em que medida o passado nos impacta ou inspira?. Otrabalho que apresenta Como na Faculdade de Educao da Uerj estamos praticandopensandocinema e o significado da Lei n 13.006/2014 de Maria da Conceio Silva Soares, coordena-

    reverberar e expandir-se para fora das salas de projeo. Na escola, o cinema deixa de serdiverso cultural para passar a ser visto como um espao produtor de sentidos que envolvemmltiplas subjetividades. Ele permite antagonizar, provocar deslocamentos desconstruindoposies dicotmicas e essencialistas caractersticas no contexto discursivo que prprio doespao/tempo escolar (GABRIEL, 2013).

    Concluindo

    Muitos dos pontos colocados pelo senador giram em torno de uma funcionalizao do cinema.Se funcionalizvel, ele pode servir para qualquer coisa... destruir o capitalismo, acabarcom escola, fazer a guerra... No podemos funcionalizar o cinema porque, justamente, nosabemos o que ele pode. As reflexes aqui sugeridas nos permitem relacionar a questo dassubjetividades no processo da construo e distribuio do conhecimento escolar, deslocandoo foco dos sujeitos que ensinam e aprendem para os sujeitos que se constituem no prprioprocesso de aprendizagem e das relaes que estabelecem com o conhecimento.

    Se quisssemos, poderamos ir na cola de Flix Guattari (2011) e dizer que o cinema na educao uma questo ecolgica; trata-se de pensar as formas de estar no tempo e no espao, os modosde subjetivamente habitar e construir o tempo e o espao. Formas de se engajar no presente.No mnimo o cinema pode ser um exemplo para esses processos. Um diretor que sempre omesmo, que nunca incorpora nada, que s se repete, no nos interessa. O prprio cinema feito

    de transformaes incessantes, como a lngua. Mimetize-me, diria o cinema s pessoas, colo-que-se na inquietao de no ser o mesmo muitas vezes. Entre o cinema e os modos de vida,estamos no campo das variaes contnuas.

    No cinema estamos sempre nos esquivando dos poderes que vo dizer o que um filme bom ouque merece ser visto, a inveno est sempre driblando esses poderes, assim como as crianasno cessam de inventar formas de dizer no com choro, rudo, arte, violncia.

    A aposta no cinema est intimamente ligada rasteira que ele pode dar nos nossos prpriosmodos de ser, nesse sentido, to importante para alunos quanto para professores.

    Cinema, cinematgrafo, a escrita do movimento movimento esse que no apenas dos corposno espao, mas tambm dos prprios processos de construo de si e da comunidade.

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    Educao da Universidade Federal de So Carlos; e, para encerrar esse grupo, A escoladiante do cinema nacional: uma narrativa, de Aristteles Berino, da Faculdade de Educaoda Universidade Federal Rural de Rio de Janeiro.

    O quarto grupo tem a ver sobretudo com os filmes, como escolh-los, onde encontr-los, quaislevar para a escolar. Dentro desse grupo temos trs trabalhos, que so: Cinema e infnciana escola: algumas questes sobre a escolha dos filmes para crianas, de Monica Fantin, daUniversidade Federal de Santa Catarina; o da professora Gilka Girardello, tambm da Univer-sidade Federal de Santa Catarina, que apresenta o texto Encontrar, escolher e articular filmes

    brasileiros para crianas: notas a partir de uma curadoria. No final desse grupo, FernandaOmelczuk Walter, do programa de Ps-Graduao em Educao da UFRJ, apresenta 50 curtaspara uma infncia alternativa (e para uma alternativa de infncia).

    Desejamos a todos uma boa leitura e que essas reflexes promovam outras e contribuam parapensar e definir modos de regulamentao da Lei 13.006 com a efetiva participao dos uni-versitrios que vm pesquisando essa rea de encontro e produo de conhecimento entre ocinema e a educao.

    Adriana Fresquet(UFRJ)

    Coordenadora do Laboratrio de Educao, Cinema e Audiovisual da Faculdade de Educao, que nucleia as aes dos

    projetos de pesquisa Currculo e Linguagem Cinematogrfica na Educao Bsica, e Cinema e Velhice a Imaginao

    Atravessando a Memria e do Programa de Extenso Cinead, que desenvolve projetos de iniciao ao cinema em escolas

    de educao bsica educao infantil, ensino fundamental e mdio municipais, estaduais e federais (entre eles, o Ins-

    tituto Nacional de Educao de Surdos e o Instituto Benjamin Constant), no hospital peditrico universitrio e nas casas

    de idosos do Rio de Janeiro. Os projetos tm contado com financiamentos da Faperj e do MC&T/Finep&Sebrae. Coordena

    as colees Cinema e Educao, coedio Booklink/UFRJ) e Alteridade e Criao da Editora Autntica.

    Cezar Migliorin(UFF)

    Pesquisador, professor e ensasta. Coordena o Laboratrio Kum de Pesquisa e Experimentao em Imagem e Som, onde

    desenvolve o projeto Inventar com a Diferena, com atuao em mais de 200 escolas no pas. Participou da criao da pri-

    meira licenciatura de Cinema do Brasil, na UFF, onde membro do Programa de Ps-graduao e do Departamento de

    Cinema e Vdeo. Desenvolve pesquisas sobre questes estticas e polticas ligadas ao cinema brasileiro e sobre as relaes

    do cinema com a educao. Organizador do livro Ensaios no Real: o documentrio brasileiro hoje(2010) e autor do livro de

    ficoAmenina(2014), ambos editados pela Editora Azougue, e do livro Cartassemresposta(2015), pela Editora Autntica.

    Atualmente desenvolve pesquisa de ps-doutorado na Universidade de Roehampton, na Inglaterra, com bolsa da Capes.

    dora do grupo de pesquisa Currculos, Narrativas Audiovisuais e Diferena, Mailsa Carla PintoPassos, coordenadora do grupo de pesquisa Culturas e Identidades no Cotidiano; Nilda Alvescoordena o GRPESQ Currculos, Redes Educativas e Imagens e Rita Ribes Pereira coordena-dora do grupo de pesquisa Infncia e Cultura Contempornea, da Faculdade de Educao daUniversidade Estadual do Rio de Janeiro. Para finalizar, E se eu assistir a duas horas de filmebrasileiro por ms na escola?, de Jane Pinheiro, professora do Colgio de Aplicao da Univer-sidade Federal de Pernambuco.

    Um segundo grupo de trabalhos aborda de um modo mais especfico a formao dos professo-

    res. Entre eles encontramos o de Ins Assuno de Castro Teixeira, M. Jaqueline Grammont eAna Lucia Azevedo, com o texto O cinema pela escola: aproximaes Lei 13.006/2014; MariaTeresa de Assuno Freitas, da Universidade Federal de Juiz de Fora e da Universidade FederalSo Joo dos Reis, escreveu sobre O cinema na formao de professores: uma discusso. Namesma direo, h o texto A professora disse que hoje no vai ter aula e que filme a obri-gatoriedade de ver filmes e o cineclube como acesso formativo aos filmes: um desafio a partirda legislao, de Adriana Hoffmann Fernandes, do Programa de Ps-Graduao da Universi-dade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Unirio; e no final desse grupo, o trabalho Rudos natela... o cinema e a obrigatoriedade nas escolas, de autoria de Fabiane Raquel Canton, IndiaraRech, Maristela Silveira Pujol e Valeska Fortes de Oliveira, do Grupo de Estudos e Pesquisas emEducao e Imaginrio Social Gepeis/CE/UFSM, da Universidade Federal de Santa Maria.

    O terceiro grupo est constitudo por seis textos que tm a ver com experincias mais

    prximas da vida escolar, reflexes e propostas de ao. Uma educao e um cinema noterreno? O espacial e as imagens verdadeiras em Fernand Deligny e Cao Guimares, deWenceslao Machado de Oliveira Jr; Fronteiras do imaginrio, cinema-poesia nas escolasde educao bsica o trabalho produzido por Ana Lucia Soutto Mayor e Cristina Miranda,ambas professoras com experincias de cinema no Colgio de Aplicao da UFRJ; nasequncia, encontramos o texto Cinema na escola: muitos desafios no horizonte, deSolange Straube Stecz,professora e pesquisadora de cinema da Faculdade de Artes da Uni-versidade Estadual do Paran. Do Laboratrio de Estudos Audiovisuais Olho, da Faculdadede Educao da Universidade Estadual de Campinas, recebemos a contribuio de CarlosEduardo Albuquerque Miranda e Luis Gustavo Guimares, com o trabalho Cinema naescola: da formao de professores para prtica escolar, que poderia, tambm, perfeita-mente ser includo no grupo anterior; segue-se Geraes em dilogo: cinema e produoaudiovisual no ensino mdio,de Maria Carla Corrochano e Paulo Pistilli,da Faculdade de

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    ANEXO

    Lei n 13.006,de 26 de junho de 2014

    Acrescenta pargrafo 8 ao art. 26 da Lei n 9.394, de 20 de dezembro de 199 6,que estabelece as diretrizes e bases da educao nacional,para obrigar a exibio de filmes nas escolas de educao bsica

    REFERNCIAS

    AGAMBEM, Giorgio. Profanaes. So Paulo: Boitempo, 2007.

    BENJAMIN, Walter. Reflexes sobre a criana, o brinquedo e a educao .

    So Paulo: Duas Cidades/34, 2005.

    BERGALA, Alain. Lhypothse cinma. Petit trait de transmission du cinma

    lcole et ailleurs. Paris: Petit Bibliothque des Cahiers du Cinma, 2002.

    BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educao : Lei n 9.394/96 24 dez. 1996. Estabelece as diretrizes e bases da

    educao nacional. Braslia, 1998.

    CANCLINI, Nstor Garcia. Culturas hbridas. Estratgias para entrar e sair da modernidade. So Paulo: Editora da Uni-

    versidade de So Paulo, 2013.

    CARRIRE, Jean-Claude.A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

    COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder. A inocncia perdida: cinema, televiso, fico, documentrio. Belo Horizonte: UFMG/

    Humanitas, 2008.

    DUARTE, Roslia. Cinema e educao. Belo Horizonte: Autntica, 2002.

    GABRIEL, Carmen. Currculo e cinema na educao bsica: reflexes sobre uma articulao discursiva possvel. In:

    FRESQUET, Adriana. Currculo de cinema para escolas de educao b sica. Rio de Janeiro: 2013.FREIRE, Paulo.Pedagogia

    da autonomia. So Paulo: Paz e Terra, 2002.

    GUATTARI, Flix.As trs ecologias. Campinas: Papirus, 1990.

    KASTRUPF, Virgnia.A inveno de si e do mundo. Uma introduo do tempo e do coletivo no estudo da cognio. Belo

    Horizonte: Autntica, 2007.

    MALRAUX, Andr. Museu imaginrio. So Paulo: Edies 70, 2011.

    RANCIRE, J. O mestre ignorante. Cinco lies sobre a emancipao intelectual. Belo Horizonte: Autntica, 2007.

    RANCIRE, J. El espectador emancipado. Buenos Aires: Manantial, 2010.

    TEIXEIRA, I. A. de C.; LOPES, J. de S. M. (Orgs.).A escola vai ao cinema. Belo Horizonte: Autntica, 2003.

    WHITEHEAD, Alfred North.Aims of education. New York: Simon and Schuster, 1967.

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    Sesso Cine-Escola | 9 Mostra de Cinema de Ouro Preto | 2014

    Foto:BielM

    achado|AcervoUniversoProduo

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    Vemos que essa legislao retoma uma importante determinao, ainda carente de regu-lamentao, prevista no art. 27, do marco regulatrio do setor, a MP 2.228-1/01, em que asobras realizadas com recursos pblicos, ou renncia fiscal (aps dez anos de sua primeiraexibio comercial) podero ser exibidas em estabelecimentos pblicos de ensino. Aindaque essa cota de tela no seja uma reserva de mercado (no sentido estrito do termo), ela uma tentativa de dar conta de espectadores ainda pouco contemplados pela cinematografianacional, o pblico infantil e juvenil.

    No entanto, ela tambm coloca algumas questes que precisam ser mais bem dimensiona-

    das. Essa diretriz legal, ao indicar exibio de filmes, reduz as possibilidades de atuao,com isso perdemos a possibilidade de atingir um pblico variado, pois formula uma resoluoatrelada exibio de um tipo de obra exclusiva, a flmica. Essa restrio exclui importantesmanifestaes audiovisuais, por exemplo, as sries e os games, tipos de produes que fazemparte da vivncia dos jovens de hoje. Esse um aspecto do universo que os estudantes trazempara a escola, marcado por seu contnuo processo de formao (normalmente extraclasse).Sob o risco de prender-se a um conhecimento estabelecido, perder-se-ia a oportunidade detrazer, para essa reserva mensal de tempo de contato e discusso com/do cinema brasilei-ro, uma dinmica efetivamente criadora. Sobretudo se pensarmos no quanto esta medida inovadora para se tentar engajar os estudantes num imaginrio nacional mais complexo,mediado pelas artes e pelo audiovisual contemporneo.

    Tradicionalmente, a classe cinematogrfica brasileira volta suas armas apenas para a luta por

    polticas pblicas no setor da produo. O pesquisador e professor Jean-Claude Bernardet jdissertou em vrios textos esse fenmeno, por ele cognominado de sndrome da produo.Portanto, um dos grandes mritos da Lei n 13.006/14 enfrentar a difuso. Obviamente, oponto chave muito mais profundo e complexo. A exibio compulsria de filmes nacionaisnas escolas de educao bsica visa preencher uma lacuna fundamental na formao doeducando: o autorreconhecimento em sua cultura local. Por outro lado, importante ressal-tarmos que ver filmes no se resume somente a uma complicada questo de acesso, massobretudo de hbitos culturais. Segundo uma pesquisa encomendada pela Fecomrcio RJ,apenas 28% dos entrevistados foram ao cinema em 2013. Em 2007, esse dado correspondiaa alarmantes 17%. Entre os entrevistados que no foram ao cinema, 55% responderam queno tinham o hbito, ou no gostavam. No discutiremos as interpretaes, algumas bastanteelitistas, que circularam com essas informaes, sendo que o alentador que, conformeessas pesquisas, o brasileiro tem aumentado seus hbitos culturais nos ltimos anos.

    Antonio Carlos AmncioHadija Chalupe

    Eliany Salvatierra

    Fabin Rodrigo Magioli Nez

    Joo Luiz Leocadio da Nova

    Maurcio de Bragana

    Rafael de Luna Freire

    Instituto de Arte e Comunicao Social

    Universidade Federal Fluminense (UFF)

    A Lei 13.006/14 representa uma louvvel investida no esforo de se formular uma PolticaPblica Cinematogrfica de forma mais articulada e integrativa. Isso porque esta determina-

    o legal passa a expandir os horizontes da regulamentao do setor para alm dos agentesconstituintes da cadeia produtiva (produtordistribuidorexibidor).

    Podemos compreender essa reserva de ateno ao cinema brasileiro nos pontos de educaobsica como um importante espao de disputa pelo pblico. Somos um dos pases que maisconsome produo musical nacional, 70% do que ouvimos brasileiro, j no mercado decinema no conseguimos ultrapassar a mdia de market share de 14%. Esse fato nos fazpensar na necessidade incontestvel de prticas voltadas para o acesso a essas obras.

    Estabelecer a obrigatoriedade da exibio de filmes brasileiros identificar a importnciae a necessidade da formao de pblico de base. Ela proporciona a abertura de uma visosistmica do campo, pois coloca em evidncia o pblico jovem como fora motriz para susten-tabilidade do setor.

    NOVOS DESAFIOSFRENTE LEI 13.006/14

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    at os nossos dias. E mesmo dos filmes que resistiram ao descaso, aos incndios ou destrui-o deliberada e hoje representam registros histricos preciosos , poucos tm cpias facil-mente acessveis aos professores para o uso em sala de aula.

    Em relao s obras audiovisuais que ainda no esto em domnio pblico, a mesma Lei afirmaque qualquer reproduo, parcial ou integral, depende de autorizao prvia e expressa doautor. Obviamente que isso inviabilizaria, na prtica, a exibio mensal de filmes em todasas escolas do Brasil. Com a Lei 13.006, no entanto, h o entendimento pelo Estado brasilei-ro de que os filmes representam uma importante ferramenta pedaggica sendo, portanto,

    tornada obrigatria sua exibio para os estudantes. Essa iniciativa corrobora ainda mais arelevncia da exibio audiovisual sem fins lucrativos, como o fazem os cineclubes. Algumasiniciativas voltadas aos cineclubes, portanto, podem fornecer algumas propostas para odesafio lanado pela Lei 13.006. A hoje finada Programadora Brasil um exemplo. A partirde 2007 o programa comeou a lanar em DVD conjuntos de filmes licenciados para sessessem fins lucrativos em pontos de exibio audiovisual a ela associados (incluindo escolas).Sua criao era uma necessidade bvia das medidas do governo de estmulo aos pontos decultura. Embora definida como uma central de acesso a filmes brasileiros para espaos deexibio no comercial, a Programadora Brasil funcionava basicamente como uma distri-buidora, intermediando a relao entre os proprietrios das obras e aqueles que desejavamexibi-las, mas no eram exibidores convencionais.

    Portanto, persiste a questo de como regular e tornar vivel o acesso das escolas ao enorme

    acervo de filmes brasileiros j realizados e aos demais que viro. Novamente, a questo : comointermediar os que fazem filmes e j fizeram e continuaram fazendo com os professores eestudantes que desejam exibi-los e v-los? Nesse caso, tambm as iniciativas voltadas parao aspecto cultural e educativo do cinema precisam ser conjugadas e sistmicas, pensando daproduo exibio, da preservao difuso.

    Um outro aspecto importante da Lei em tela, para alm da j mencionadas discusses perti-nentes ao cinema brasileiro observado pelo dispositivo jurdico como pea fundamental noprocesso de constituio da memria de nossos coletivos o reconhecimento da importnciade uma aproximao dos nossos alunos a um repertrio constitudo por imagens. Um dos gestossubsidirios que parecem motivar a promulgao da Lei 13.006/14 refere-se a uma conscinciada preponderncia de uma prtica de leitura do mundo que conjugue os tradicionais processosde letramento a uma interpretao crtica dos discursos propostos pelos textos audiovisuais.

    Uma palavra de ordem que se associa promulgao da Lei n 13.006/14 formao deplateia. Hbitos culturais so prticas adquiridas por vrios fatores sociais e ideolgicos, mas evidente que, quanto mais cedo so estimulados na formao de uma pessoa, mais entra-nhados permanecem, tornando-se multiplicadores. No entanto, muitas vezes a relao entrecineastas e educadores se configura em um dilogo de surdos, no qual cada um v o outrocomo o salvador de sua rea. Por parte dos educadores, o audiovisual no ambiente escolar encarado como uma lufada de ar fresco em uma instituio to antiga, defasada e posta emxeque hoje em dia, como a escola. Por sua vez, os cineastas aplaudem a iniciativa de exibio defilmes nacionais nas escolas, pois tal prtica formaria um pblico simptico ao cinema brasilei-

    ro, tornando-o um aliado forte e fundamental na luta contra os distribuidores internacionais eseus aliados locais, os exibidores, historicamente considerados culpados pela invaso culturalestrangeira em nossas telas. Em suma, a presena do cinema nacional no ambiente escolarpode se converter numa grande panaceia, que supostamente resolveria graves problemas tantoda escola quanto do cinema brasileiro.

    Porm, devemos estar conscientes de que uma lei no o avano em sua totalidade, massomente um pequeno passo, a questo chave a relao educadoreducandofilme nacional. a partir dessa trade que, de fato, possvel fomentar e incentivar hbitos culturais. E forte-mente vinculado a tais prticas, o debate no pode somente se estabelecer em torno da culturanacional, mas tambm de sua preservao, pois cultura e memria andam sempre juntas.Assim, se a sociedade civil brasileira, incluindo a sua prpria classe cinematogrfica, geral-mente no tem maiores preocupaes em relao preservao, a escola deve ser um local

    de vanguarda nesse debate. Mas, devemos nos lembrar que ela no a nica trincheira, casocontrrio, cairemos na iluso salvacionista.

    Neste sentido, uma pergunta torna-se inevitvel a partir da sano da Lei 13.006: que filmes asescolas podero exibir em cumprimento legislao? Para que essa medida possa funcionar, preciso obviamente garantir a acessibilidade de cpias de obras audiovisuais que os professorespossam exibir, legalmente, a seus alunos. E isso toca em dois problemas histricos no Brasil: apreservao de filmes e o acesso a eles, regulado pela lei de direitos autorais.

    A Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, determina que as obras audiovisuais entram em domniopblico depois de setenta anos aps sua divulgao. Em teoria, os professores podem, ento,exibir livremente quaisquer filmes brasileiros lanados at 1945. Infelizmente, uma parcelamuito pequena da produo audiovisual brasileira da primeira metade do sculo XX sobreviveu

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    mltiplas experincias. No h apenas uma forma de se fazer ou pensar o cinema nacional. Todoesse cuidado, resultado de uma formao continuada, deve fazer parte das preocupaes doeducador audiovisual, sensibilizado a pensar propostas de cinema e/na educao para os seusfuturos parceiros: diretores, coordenadores e professores das redes educacionais. Dessa forma,a Lei 13.006/14 representa um esforo de normatizao; o educador audiovisual se apresentacomo o processo, a mediao cultural fundamental para uma educao transformadora.

    A constituio de acervos e suas formas de exibio e utilizao devero orientar essa discussopela compreenso de que cinema deve-se levar s crianas e jovens, ainda na faixa de ensino

    fundamental e mdio, e, com mais ateno ainda, para os menores da educao infantil. Somenteassim ser possvel avanar para alm da exibio de filmes, uma vez que a escola j os utiliza,pelo menos desde a primeira metade do sculo passado, e os alunos j assistem em suas casas,seja na TV, no computador ou em celulares, ou ainda em salas de exibio comercial. A valoriza-o do cinema como bem cultural tambm pode nos ajudar a encontrar um caminho para essaprtica que se deseja inovar no ambiente escolar e proporcionar para os alunos outra relaocom as imagens e sons do cinema como valor cultural.

    Como uma imposio da sociedade, pela Lei criada pelo Estado, deve-se ter a inteno de for-talecer o valor de bem coletivo, sobrepondo-se s escolhas individuais. O que do cinema podeinteressar coletivamente para ser levado para as escolas?

    Lidar com o cinema como arte, como expresso de linguagem e como matriz cultural tambm

    exige valorizar as suas formas de espectatorialidade. To importante como discutir quais filmesexibir, imprescindvel prover boas condies de projeo de imagem e som. Essas condiesno devem ser subestimadas. preciso buscar meios para que se percebam em sua plenitudeos rudos e sons, as cores e texturas, os enquadramentos e planos, a penumbra e exposio,reforando as caractersticas estticas idealizadas pelos realizadores.

    Precisamos preparar a escola para organizar novos ambientes de encontro da sua comunidadee o cinema pode ser o disparador dessas mudanas. O cinema tem avanado para fora das salasde exibio comercial em busca de novos espaos de visualizao e fruio, e a escola umdesses lugares. O cinema expandido tem encontrado nos centros culturais outras possibilidadesnos modos de interao com o espectador, assim como diferentes experimentaes artsticastm buscado as ruas e praas para dialogar com o pblico em geral. Esse movimento logochegar s escolas tambm, o que esperamos!

    Reconhecemos a cada vez maior centralidade da cultura visual na vida contempornea e a neces-sidade premente de uma sensibilizao do olhar que se constri nessa paisagem marcada pelaubiquidade das telas e dos registros audiovisuais. Isso confirma a ideia de que o acesso s novastecnologias nos aproximou dos processos de realizao de textos audiovisuais, mas tambm nosaponta a necessidade de lidar com novas prticas de leitura, articuladoras de mecanismos demediao dos quais somos agentes ativos. Esse trnsito entre imagens exige uma nova educaocapaz de promover o enfrentamento aos textos flmicos no de forma ingnua ou neutra, masconscientes de que os textos audiovisuais so carregados de proposies estticas e polticas.Para isso preciso que o profissional da educao tenha mais do que boas intenes na utilizao

    do cinema e do audiovisual em sala de aula. Corremos o risco de, ao desconsiderarmos a especi-ficidade terica ligada ao universo das imagens e do cinema, despolitizarmos o texto audiovisuale pensarmos esses registros apenas como reflexo de contedos a serem tratados.

    Neste sentido, a Lei vem afetar no apenas o contedo relacionado aos componentes curricu-lares complementares integrados proposta pedaggica das nossas escolas, mas sobretudoa prpria formao dos nossos professores, que precisam lidar de maneira produtiva com opotencial criativo que esse repertrio flmico proporciona, a fim de que o cinema brasileiro noseja domesticado atravs de prticas pedaggicas inapropriadas ou meramente normatizado-ras, subtraindo-lhe sua potncia inventiva e de comunicao com o mundo.

    A Lei 13.006/14 vem ao encontro do processo de criao de polticas pblicas que normatizamas prticas do cinema na escola, seja de leitura e anlise de produes flmicas nacionais, seja

    da produo expandida, alternativa, independente da comunidade escolar e do seu entorno. ALei representa, ento, para o campo emergente do cinema na educao, mais do que um merodispositivo legal, um desejo de polticas pblicas que regulamentem as atividades pedaggicasrelacionadas ao uso do audiovisual na escola em todo o territrio nacional.

    A Lei 13.006/14 um passo, entre muitos, que pode operar mudanas e transformaes nocenrio educacional. Porm, essa iniciativa sozinha no resultar em mudanas de hbitos ouformao cultural, se no for cuidadosamente implementada. Devemos estar atentos prticade exibio de filmes nacionais em sala de aula que, sem a devida problematizao, perdempotncia poltica. O repertrio deve ser expansivo, a fim de contemplar tambm toda umaproduo comunitria, popular e alternativa. Novas prticas devem ser incorporadas ao espaoescolar visando ao compromisso com a formao humana e, nessa perspectiva, a filmografiaproduzida nacionalmente deve ser constantemente revisitada e pesquisada a fim de abarcar

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    uma identidade nacional correlacionada com a cincia e o desenvolvimento in-dustrial do pas. Foi o primeiro rgo estatal brasileiro voltado para o cinema,tendo se transformado tambm em um dos pilares de um projeto mais amplo,que buscava organizar a produo cinematogrfica nacional, assim comoo mercado exibidor e o importador. O incentivo do Governo Vargas ao cinemaeducativo buscava, alm de levar a educao aos lugares mais remotos do pas,o estabelecimento de um veculo de comunicao a servio do Estado e de seuspropsitos polticos e ideolgicos. Ao longo de sua existncia, entre 1936 e 1966,h registro de mais de 400 filmes produzidos pelo Ince, entre curtas e mdias,

    dos quais a direo de cerca de 350 atribuda ao cineasta Humberto Mauro. Boaparte da produo voltava-se ao apoio s disciplinas das instituies de ensino, divulgao de aplicaes da cincia e da tecnologia, s pesquisas cientficasnacionais e ao trabalho de instituies nacionais1.

    Do ponto de vista da produo cinematogrfica, a formao de pblico a partir das escolassempre foi um objetivo perseguido por realizadores. A escola, especialmente a escola pblica,ainda que tardiamente, descobre e reafirma a possibilidade da linguagem audiovisual comomais um caminho real e democrtico para a relao dos alunos e da sociedade. A revoluodigital trouxe no seu bojo uma importante mudana de comportamentos e alterou radicalmen-te as relaes de consumo e produo de peas audiovisuais, o que democratizou o acesso efacilitou enormemente a realizao de pequenos e grandes filmes.

    A sano da Lei 13.006/14 busca, em sua econmica formulao, traar um quantitativo deduas horas mensais e obrigatrias de exibio de filmes nacionais para alunos do ensinobsico, como componente curricular complementar. inegvel a importante conquista queos agentes que pesquisam e realizam a insero e, principalmente, a qualificao, do cinemae do audiovisual nas escolas veem expressos nessa Lei. So disposies legais que, certa-mente, produziram o efeito de alavancar a aquisio de equipamentos para as escolas e, emparalelo, reposicionar o cinema infanto-juvenil na pauta de produes nacionais. So notciasalmejadas e muito bem-vindas. Por sua prpria implantao, essas disposies tendem aacelerar certas aes que j vinham sendo experimentadas de forma menos sistemtica enacionalmente abrangente.

    1 Revista Virtual Brasiliana: http://www.museudavida.fiocruz.br/brasiliana/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=418&sid=3.

    LUZ DA LEI

    Maria Anglica dos SantosMaria Carmen Silveira Barbosa

    Angelene Lazzareti

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

    O convite para participar desta publicao que analisa a criao e a implantao da Lei13.006/14, sancionada pela Presidncia da Repblica em 26 de junho de 2014, nos chega porintermdio da Rede Kino Rede Latino-Americana de Educao, Cinema e Audiovisual e nosproporciona a oportunidade de refletir sobre uma conquista importantssima de professo-res, cineastas, pesquisadores, e governantes interessados em explorar a interseo entre ocinema e a escola e, mais amplamente, os laos entre a cultura e a educao.

    Nossa abordagem ao tema se apropriar da experincia acumulada pelo Programa de Alfabe-tizao Audiovisual, iniciativa desenvolvida em Porto Alegre com as Secretarias Municipais deCultura e Educao, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por meio da Faculdade deEducao e do Instituto de Artes e com financiamento do Ministrio da Educao. Esta reflexobusca inicialmente demarcar e comentar as potencialidades dispostas na nova Lei, voltando-se, em um segundo momento, para certas controvrsias criadas por ela, tais quais a exignciade contedo nacional e a questo da obrigatoriedade de exibio.

    A apropriao do cinema pela escola teve um marco histrico com a criao do Ince InstitutoNacional de Cinema Educativo.

    O Ince nasceu de um projeto articulado no governo de Getlio Vargas, quevalorizou os instrumentos de difuso cultural dentro da perspectiva de construir

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    ciao, interpretao, identificao, imaginao e afeio, essenciais reflexo sobre osmodos de recepo e fruio estticas e ticas da arte. O caso que essa reflexo depurada,ainda que no conscientizada ou discutida em sala de aula, no invalida os processos jacionados pela experincia.

    Outro fator essencial aplicabilidade da Lei corresponde formao de professores que, aose aproximarem do audiovisual, sentem necessidade de se assenhorar tanto de questestcnicas, necessrias para qualificar as sesses e seus desdobramentos, quanto e, princi-palmente, do que inerente ao trabalho sobre as experincias com os filmes. Sua discusso

    e seu desvelamento produzem a educao dos olhares singulares e coletivos e colocam-nosa todos como apreciadores ticos e estticos dos filmes. Durante o Seminrio, o repert-rio cinematogrfico do professor foi debatido, pois se refere tambm ambiguidade entre opreparo de base da escola e o correr atrs do tempo perdido para integrar a escola comas demandas e caractersticas atuais. O que ocorre uma vez mais que os estudantes estomais consonantes com essas caractersticas e demandas que a escola e o prprio educador,que necessita localizar-se e incorporar aptides que j reconheceu serem primordiais para aeducao escolar. Essas aptides vo alm de primores tcnicos sobre as mdias, englobandoantes uma reviso e muitas vezes a criao de repertrios cinematogrficos que qualifiquemos contedos e aprofundem o conhecimento flmico to pautado nas produes hollywoodia-nas. O professor que se depara com contedos audiovisuais de qualidade que fazem aflorar,assomar e afetar o seu olhar, abrem janelas de mundos e promovem o exerccio de alteridadecompreende a importncia de um trabalho com os seus estudantes que ultrapasse as viasinstrumentais, chegando produo, recepo e a anlise aprimorada. A reflexo sobre essevalioso processo ser parte dos prximos passos que o educador se sentir apto a enfrentar,entretanto, que requer antes, o reconhecimento da linguagem, a manipulao tcnica, oacesso e a reviso de repertrio cinematogrfico, a criao de estratgias de trabalhos noambiente escolar, o apoio estrutural necessrio, a observao sobre as atividades bem-suce-didas, os retrocessos e insucessos, a reflexo sobre os porqus e os comos do trabalhocom cinema que venham antes da crena (legtima e experiencial) sobre essa necessidadedo que do dever sobre a sua obrigatoriedade. Isso porque a obrigatoriedade existe primeirocomo direito, j que se considera a necessidade valorada de sua execuo para o desenvolvi-mento pleno das capacidades (das mais distintas instncias) dos estudantes. Antes de a Leisimbolizar uma imposio de prtica, representa uma via de mo dupla que garante o direitoqualificado, e a exigncia sobre esse direito antes do cidado (do estudante, do educador) doque do rgo fiscalizador da prpria Lei.

    Entre essas aes destaca-se o II Seminrio Internacional de Cinema e Educao: Dentro eFora da Lei, promovido pelo Programa de Alfabetizao Audiovisual em outubro de 2014 como objetivo de discutir as questes relacionadas Lei 13.006/14. O evento reuniu educado-res, estudantes, cineastas, produtores culturais e o pblico interessado que compartilha odesafio da insero qualificada do audiovisual nas esferas da escola. Os grupos de trabalhodo Seminrio questionaram, recorrentemente, sobre o lugar possvel do audiovisual dentroda proposta pedaggica da escola e a necessidade de uma reestruturao de currculoque garanta o espao e o tempo para o trabalho sobre uma linguagem que extrapole osmtodos convencionais de ensino e avaliao que privilegiam as linguagens verbais escritas

    e orais como predominantes. E ainda, se h um trabalho anterior de preparo a ser realizadodentro da escola e do currculo, tanto no que concerne aos processos quanto as avaliaes,para aprimorar o trabalho com o audiovisual que j existente, independentemente de seuobjetivo ou metodologia, ou se, ao contrrio, o caso de correr atrs do tempo perdido aoagregar a escola, assim como seja possvel, com elementos que a colocam em consonnciacom o seu tempo que, no caso dos contedos audiovisuais, representam caractersticascontemporneas to expressivas. As estratgias de entrelaamentos entre o audiovisual eas distintas disciplinas como possibilidade de trabalho foram questionadas a partir de doispontos de vista. O primeiro em sua potencialidade, j que o audiovisual agrega em si diferen-tes reas do conhecimento, o que promove o trabalho interdisciplinar almejado pelas instn-cias pedaggicas que enfatizam a importncia da concepo da escola e de seus contedosenquanto lugares relacionais de experincias. Tal fator tambm promove a discusso dotrabalho de produo e recepo com o audiovisual como disparador de processos de identi-ficao individual e coletiva, tanto social, quanto tica e cultural. Isso coloca o estudante emcontato de relao tangvel com seu entorno, tempo e espao, promovendo a integrao e osentimento de pertencimento e responsabilidade, ao almejar o desenvolvimento das capaci-dades tpicas de uma postura ativa e consciente de indivduo. O receio, predominante nestetrabalho, refere-se ao uso do audiovisual como ferramenta paradidtica, em que o educadorno centraliza a atividade sobre as potencialidades estticas e ticas da fruio artstica, esim sobre os contedos representados pelo audiovisual compreendido como veculo parae no objeto de conhecimento em si. Destaca-se, entretanto, que, ainda que o educadorno articule de forma proposital o trabalho perceptivo da linguagem ao abordar as suas pos-sibilidades inatas, esse processo ocorre mesmo que indiretamente. A atividade perceptivado estudante praticada independentemente do objetivo com o qual o contedo audiovisualseja inserido, ainda que de forma instrumental com adaptaes literrias: por exemplo, ocontato promovido de imediato com o filme j recorre s capacidades de percepo, asso-

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    A questo da exibio de contedo nacional um ponto de discusso que nos interessa sobre-maneira. Pensar que os alunos que ingressam na escola pblica brasileira atravessam seusanos de formao, muitas vezes, sem ter contato com obras fundamentais para o entendi-mento da cultura brasileira. De outra parte, tomam contato com uma quantidade acachapan-te de ttulos estrangeiros, especialmente os produzidos e distribudos pelo cinema/indstriaholliwoodiano, que ocupam maciamente as salas de exibio e grades de emissoras de TV,impondo um conjunto de exigncias que deixa quase nenhum espao para produes decontedo nacional com anseios de realizar um cinema pensante. Entretanto, a fora da Lei jregulamenta sem, expressivos resultados, outras faixas de exibio de cinema. Por exemplo,a Cota de Tela de cinema nacional, disposta pela Ancine.

    A Cota de Tela um mecanismo regulatrio, com previso legal no artigo 55 da Medida Pro-visria n 2228-1/20012, que visa assegurar uma reserva de mercado para o produto nacionalfrente macia presena do produto estrangeiro nas salas de cinema. Ao permitir um e scoa-mento mnimo da produo brasileira, ela amplia o acesso ao pblico e promove a diversidadedos ttulos em cartaz. Trata-se de uma ferramenta adotada em diversos pases para promovero aumento da competitividade e a sustentabilidade da indstria cinematogrfica nacional. NoBrasil, a reserva de dias foi empregada pela primeira vez na dcada de 1930.

    A Cota de Tela3, mecanismo de proteo de mercado e que, consequentemente, garante aveiculao mnima da produo cinematogrfica nacional, vem sofrendo alteraes anuais,buscando a fixao de limites que se venham se adequar realidade brasileira tanto deproduo quanto de fiscalizao. A criao de um mecanismo anlogo para os acervos audio-visuais nacionais pode significar um incio metodolgico importante. H que se lembrar aindaque a observncia do contedo nacional de duas horas no inviabiliza a exibio da totalidadeou fragmentos de filmes estrangeiros que, igualmente aos nacionais, so constitutivos daidentidade cultural de jovens alunos e de professores.

    Aqui ganha relevncia o trabalho da pesquisadora Anita Simis4, tratando da relao entre a

    2 Portal da Ancine: http://ancine.gov.br/legislacao/medidas-provisorias/medida-provis-ria-n-2228-1-de-6-de-setem-bro-de-2001.

    3 Boletim da Ancine de 5 jan. 201 5: ttp://www.informanet.com.br/Prodinfo/leisgerais/impresso/boletim/2015/01/legis-lacao.pdf

    4 SIMIS, Anita. A produo independente e o processo de institucionalizao da TV a cabo: uma comparao entre oBrasil e a Argentina. XX Encontro Anual da Anpocs, GT25 Usos da Imagem, Caxambu (So Paulo), out. 1996.

    Igualmente deve coexistir com a implantao da Lei uma dinamizao das produes nacionaispara crianas e jovens. Se, por um lado, correto pensar que nossos jovens alunos, sendoconsumidores vorazes de audiovisual no seu conceito amplo (clips, games, sries etc.), muitasvezes acessam obras de contedo distinto e no exclusivamente os recomendados para suafaixa etria. O prprio Programa de Alfabetizao Audiovisual, no contexto do Festival Escolarde Cinema, garante na sua programao um arco variado de peas, passando por clssicos docinema silencioso, como fragmentos de filmes contemporneos que permitem se aproximarde incontveis gneros, estilos, autores que no seu conjunto garantem a diversidade cultural.

    A criao de mecanismos de incentivo produo e distribuio de filmes e peas audiovisu-ais dever certamente acompanhar a implantao da Lei, bem como a qualificao das pos-sibilidades de exibio nas escolas. A poltica federal que garante a aquisio de livros paraas redes de ensino do Brasil dever, com aprimoramentos, ser pensada analogamente paraa oferta de acervo audiovisual. Neste sentido, reforamos a j unnime reivindicao paraa reativao e dinamizao da Programadora Brasil, iniciativa do Ministrio da Cultura quepromoveu o acesso a quase mil filmes nacionais com dados tcnicos e crtica de cada obra.

    A garantia de uma sala escura, bem sabemos, de fundamental importncia para a imersona experincia do audiovisual. As condies do som e algum conforto para os espectadoresconcorrem diretamente para a efetiva magia do cinema e no devero ser desprezadas nointento de implantao da referida Lei.

    A quantificao de duas horas mensais de exibio pode ser uma quantidade razovel, desdeque pensemos em um tempo voltado para a exibio e reflexo que permita a construo de umato almejada educao do olhar. Ainda que soe uma quantidade muito pequena, se pensarmosno tempo que nossas crianas e adolescentes esto expostos ao audiovisual veiculado pelasgrandes redes de televiso, notadamente nas grandes cidades, assume um contorno de umatarefa gigantesca, se relativizarmos para o quantitativo expresso pelo ensino bsico brasileiro.H de se ponderar ainda que a Lei indica um ponto de partida no sentido da alfabetizao au-diovisual e no exprime ainda o ponto de chegada. Mais uma vez, h necessria tenso entrea misso que se empreende e a grandeza dela. A implantao do acesso ao cinema nacionalpelo conjunto de estudantes e professores do ensino bsico do Brasil uma ao de dimenseshercleas, que deve tanto ser saudada como uma vitria institucional quanto merecer cuidadosaestratgia de implantao, para que sejam garantidos avanos significativos tanto na apreciaoda arte quanto na qualificao da produo cinematogrfica nacional.

    M i A li d S tr d i d d t r TV g l gi l r ci r c rtilh d r

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    Maria Anglica dos Santos

    Graduada em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Projetos Sociais e Culturais

    pela mesma universidade e especialista em Alfabetizao em Classes Populares pelo Geempa (1989). Trabalha na Co-

    ordenao de Cinema, Vdeo e Fotografia da Secretaria Municipal da Cultura, onde desenvolveu o projeto Olho da Rua,

    aproximando o cinema de adolescentes com alto grau de vulnerabilidade social. Atualmente desenvolve o Programa

    de Alfabetizao Audiovisual junto UFRGS, Smed e Seduc. membro da Associao Brasileira de Preservao

    Audiovisual e da coordenao da Rede Kino Rede Latino-Americana de Cinema, Educao e Audiovisual.

    Maria Carmem Silveira Barbosa

    Professora associada da Faculdade de Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e coordenadora geral

    do Programa de Alfabetizao Audiovisual. Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    (1983), especialista em Alfabetizao em Classes Populares pelo Geempa (1984) e em Problemas no Desenvolvimen-

    to Infantil pelo Centro Lidia Coriat (1995), mestre em Planejamento em Educao pela Universidade Federal do Rio

    Grande do Sul (1987), doutora em Educao pela Universidade Estadual de Campinas (2000) e ps-doutora pela Uni-

    versitat de Vic, Catalunya, Espanha (2013).

    Angelene Lazzareti

    Produtora do Programa de Alfabetizao Audiovisual, mestre em Artes Cnicas pela Universidade Federal do Rio

    Grande do Sul e graduada em Artes pela Universidade Regional de Blumenau, tendo atuado na rea da produo

    cultural em congressos, seminrios e simpsios realizados pela Associao Brasileira de Pesquisa e Ps-Graduao

    em Artes Cnicas. Comps a equipe do Departamento de Cultura do Servio Social do Comrcio Sesc Blumenau,

    SC, na produo local dos projetos Programadora Brasil, Escola Vai ao Cinema, M ostras Temticas de Cinema, Palco

    Giratrio, Aldeia Sesc e Sonora Brasil. Na rea acadmica desenvolve pesquisas na linha de processos de criao

    artstica, e na rea docente possui experincia como professora de artes, teatro e cultura brasileira.

    produo independente e a presena na TV paga: a legislao precisa ser compartilhada portodos aqueles que procuram garantir a pluralidade dos produtos culturais veiculados, ou portodos aqueles que sabem, como assinalou Solanas, que o futuro das democracias e das iden-tidades culturais depende da defesa do direito de relacionar-se com todas as culturas e degozar de uma comunicao que avance em direo a uma ordem democrtica universal quepromova a interao permanente entre as culturas, no apenas de norte a sul, seno tambmde sul a norte e de sul a sul.

    De fato, quantas vezes no nos perguntamos como garantir uma comunicao que expressemltiplas vozes e olhares, que preserve as identidades tnicas e culturais, a memria e adiversidade gestual e lingustica? Ou como efetivar uma liberdade de expresso que no sejareduzida liberdade de livre comrcio, dependncia de ndices de audincia ou de rendado pblico? Quais seriam as instituies capazes de fiscalizar e regular os espaos paraque entidades autnomas e plurais representem a diversidade de setores sociais, polticose culturais de nossas sociedades? Seria a Cota de Tela a forma mais eficaz de garantir aproduo e a expresso nacional e complement-la com a de nossos irmos latino-ameri-canos em um espao ameaado pela aculturao imposta pelo predomnio excludente dosoligoplios internacionais?

    Ainda analisando os aspectos controversos da Lei, cabe trabalhar com o sentido da obrigato-riedade l expresso:

    - At que ponto a experincia do cinema, como forja do senso tico e esttico de alunos eprofessores, pode ser tratada como obrigatria?

    - O quanto da fruio, da reflexo e do prazer essencial da mgica experincia de som eimagens na sala escura podem ficar comprometidos com o senso de obrigatoriedade e,jogados na escala macro do ensino bsico brasileiro, tendem a ser empobrecidos?

    Resta-nos acreditar na busca consensual, construda pelo trabalho constante de formaodocente, aliada a uma busca constante de melhoria nas condies de exibio e apoiada numamplo e rico repertrio de cinema nacional de fcil acesso s escolas, para professores ealunos. Resta-nos acreditar no pacto social que possa, cada vez mais, emergir da obrigatorie-dade o prazer e o interesse, e da pluralidade de experincias audiovisuais a construo de umpblico exigente e interativo.

    de produo de imagens por crianas de educao infantil e do ensino fundamental junta-

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    de produo de imagens por crianas de educao infantil e do ensino fundamental, juntamente com produo de imagens realizadas por professores dessas crianas e trabalhosde formao dos mesmos na rede municipal de ensino na cidade de Rio Claro, SP) e comoessas relaes nos convocam a experimentar pensamentos e sensaes como possibilidadespara pensar a potncia do cinema na escola, na formao de crianas e professores nessesespaos e, aquilo que nos parece central nesta discusso, a educao do olhar.

    Assim como o processo cinematogrfico, este ensaio-flmico est organizado em trsmomentos pr-produo, produo e ps-produo. Aqui, a produo fruto de uma com-posio de cenas construdas a partir de fragmentos de textos e experincias que temos tidose que objetivam produzir sentidos a partir de uma perspectiva transversal e de subverso delgicas postas, impostas, marcadas, demarcadas no que muitas vezes encontramos no campoda educao e suas relaes com o cinema.

    PR-PRODUO

    O que as imagens nos provocam a ler

    Em 1895, na primeira exibio da histria do cinema, dizem que um grupo de pessoas entrou empnico e, desesperadamente, correu para o fundo da sala com medo do trem que, imaginavam,sairia da tela. ComA Chegada do Trem Estao Ciotat eA Sada da Fbrica, os irmos Lumireapresentavam ao mundo os primeiros atos cinematogrficos. Tinham um carter documental,mostrando cenas do cotidiano, o que, contudo, no retirou sua potncia em afetar as pessoas,pelo contrrio, se transformou em marco do nascimento da assim chamada stima arte.

    Rapidamente o cinema se alastrou pela Europa, Estados Unidos e Amrica Latina, desencade-ando uma revoluo tecnolgica na rea. Com a era digital, a disseminao de novas cmerasfotogrficas e filmadoras a preos mais acessveis tem popularizado uma nova relao com aimagem, que a da produo propriamente dita. Com os celulares multifuncionais, por exemplo,qualquer um tem a condio de deixar de ser espectador para produzir suas prprias imagens.

    Com a emergncia de um mercado cinematogrfico que se mostrou cada vez mais lucrativo,instaurou-se no mbito do fazer cinematogrfico um processo de diviso social da produo semelhana do processo fabril com a diviso social do trabalho com consequente especia-

    PRA QUE CINEMA?O QUE PODE O CINEMA NA EDUCAOE A EDUCAO NO CINEMA?FRONTEIRAS DE ENCONTROS

    Csar Donizetti Pereira Leite

    Rafael Christofoletti

    Unesp Rio Claro

    Sinopse

    O presente texto se apresenta como um ensaio-flmico e est dividido em trs partes (pr-pro-duo, produo e ps-produo), sendo a segunda uma montagem de cenas, composta portextos produzidos a partir de trabalhos e pesquisas que realizamos no Grupo Imago Unesp RioClaro. Neste texto-ensaio-flmico nos propomos a problematizar, a partir da Lei Federal n 13.006,sancionada em 26 de junho de 2014, temticas do cinema e da educao nos perguntando: Praque cinema? O que pode o cinema na educao e a educao no cinema? Fronteiras de encontros.

    Argumento

    O presente texto pretende se apresentar como um ensaio-flmico. Esta proposta surge deencontros entre alguns trabalhos desenvolvidos por ns no campo do cinema, da educaoe da produo de imagens por crianas e professores em escolas pblicas no estado de SoPaulo, onde procuramos indicar possibilidades de montagens de sentidos na interface entreesses diferentes campos.

    A ideia desse ensaio-flmico surge em funo dos modos como temos trabalhado nasconexes dessas relaes supracitadas (sobretudo naquilo que desenvolvemos nas