Livro 3 de lá pra cá, de cá pra lá 2014

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Abrindo caminhos entre a Pedra Lisa e a Cidade Pra DE LÁ pra de DULCINEIA CATADORA 2013 CÁ

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Relatos de visitas de um grupo de moradores da Pedra Lisa em vários pontos da cidade do Rio de Janeiro, num exercício de cidadania, e uma reflexão crítica do grupo sobre direitos de cidadania.

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Abrindo caminhos entre a Pedra Lisa e a Cidade

cÁ Pra

DE LÁpra

de

DULCINEIA CATADORA2013

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Este livro, o terceiro da série Providências, é um trabalho colaborativo feito com moradores da Pedra Lisa:

Andriele Cruz Cláudia Teixeira Daiana Barbosa Gabriel Antônio da SilvaLarissa Rosa Letícia Barros Mariana Teixeira Maria Aparecida Teixeira Michele Ferreira Felician Vanessa Santos Ribeiro

Capas, montagem dos livros: moradores da Pedra LisaDiagramação: Clarice Soter,Projeto e textos: Ana d’Angelo e Lúcia Rosa, do coletivo Dulcinéia Catadora.

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Nossos agradecimentos a:

Emilia Satori, por nos acompanhar nas oficinasFabio Prestes, pela participação no dia do mutirão

promovido pelo FCPMaristela Pessoa Ramos, pela visita a Santa Teresa

Mônica Braga, por nos acompanhar no passeio ao Corcovado e nas oficinas

Tânia Rêgo, pelas fotos do livro de Paulo FreireTrio Capitu, pela apresentação

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9 Rua Rego Barros, 93, Fundos, Santo Cristo, CEP 20220-750

13 Visita ao Museu de Arte do Rio

15 Passeio ao Corcovado

17 Trio Capitu: Apresentação na quadra da Pedra Lisa

20 Santa Teresa

24 Passado e futuro de ameaças

25 Pedra Lisa pode virar Área de Interesse Social

26 Roda Viva

33 A Primeira palavra: Fa-ve-la

36 Propor-propor numa cidade em disputa

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“O que teríamos de fazer, uma sociedade em transição como a nossa, inserida no processo de democratização

fundamental, com o povo em grande parte emergindo, era tentar uma educação que fosse capaz de colaborar com ele na indispensável organização reflexiva de seu

pensamento.”

Paulo Freire,Educação como Prática da Liberdade

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Rua Rego Barros, 93, Fundos, Santo Cristo, CEP 20220-750

Central do Brasil. Perguntamos aos cariocas se eles conhecem a Pedra Lisa - a maioria não tem ideia de onde fica, mesmo sendo as perguntas feitas na Central do Brasil, a 150 metros de lá:

Flávia, funcionária da banca de jornal na saída da Central do Brasil: “Pedra Lisa? Pedra Lisa? Nossa nunca ouvi falar, melhor perguntar aos camelôs aqui do lado que eles sabem tudo”.

Marcos, camelô na saída da Central na Senador Pompeu: “Pra Pedra Lisa a senhora segue aqui direto nessa rua cheia de ônibus. Se ficar meio perdida lá na frente é só perguntar onde sobe a ladeira”.

Ernesto, policial da região da Central do Brasil: “Pedra Lisa, a senhora tem certeza que é por aqui? Aqui em frente é o Morro da Providência, mas a senhora precisa pegar o transporte até lá. Pedra Lisa, sincera-mente, não sei”.

A Pedra Lisa localiza-se no morro da Providência, centro da cidade do Rio de Janeiro, com vizinhança de antigos bairros portuários na Gam-boa. A Providência é um conjunto complexo, dividida entre Barroso, Cruzeiro, Barão, Pedra Lisa e Buraco Quente. A pedreira localizada na Pedra Lisa foi explorada até 1970, período em que os moradores conviveram com explosões de carga de dinamite. Com as atividades na pedreira originaram-se dois caminhos, o da Formiga, atual Ebroíno Uruguai, e a rua da Providência. O acesso dá-se pela Rua Rego Bar-ros, 93, ao lado da garagem da S. Silvestre, uma empresa de ônibus. O nome “Pedra Lisa” lembra a tragédia ocorrida nos anos 60, com a morte de mais de quarenta pessoas que ficaram soteradas, casas e tudo, sob uma imensa pedra que deslizou da pedreira. As pedras es-tão por toda a parte e as margens da ladeira que serviu de passagem de caminhões para o transporte de brita foram ocupadas por cons-truções após o desativamento da pedreira. Casas foram construídas, contornando essas pedras; há construções onde o teto é uma pedra.

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Esse núcleo com aproximadamente 390 casas tem comunicação apenas com o Morrinho, cuja entrada se faz por uma escadaria que sai da Rego Barros, cerca de cinquenta metros de distância. Nenhuma trilha, nada liga a Pedra Lisa ao restante do morro da Providência, cuja entrada se faz pela ladeira do Barroso. Para ir até lá é preciso descer pela única ladeira que dá acesso à rua Rego Barros, seguir quase 150 metros em direção à Central do Brasil e tomar uma van na Senador Pompeu que vai até o pé da escadaria onde começa a Praça Américo Brum.

Mesmo os carros só podem subir a ladeira até o meio do caminho. Na altura onde mora Maria Aparecida Teixeira, que participa de nossas oficinas, o caminho se estreita, sendo possível continuar apenas a pé ou de moto. Para receberem correspondência do correio os moradores escrevem seu endereço: Rua Rego Barros, 93, Fundos, Santo Cristo, e usam único CEP 20220-750. As correspondências são colocadas numa caixa de correio na cobertura do bar de Antonio Marcos, que fica no campinho, de frente para o paredão de pedras. Há uma caixa de correio na venda de D. Aureni.

A geografia da Pedra Lisa torna-a um lugar de não passagem. Por essa razão, só entra na Pedra quem mora lá ou parentes que vão fazer visita. O isolamento geográfico parece ser um dos fatores que contribui para uma comunidade fechada. Tida como o local mais pobre do morro da Providência, a Pedra Lisa abriga, no alto, um campinho de futebol que margeia a parede de pedra que restou da pedreira desativada, parcial-mente coberta de vegetação. Ao lado, uma área cimentada abriga uma goiabeira, a única árvore.

De lá do alto não se tem vista da cidade, parece haver um imenso muro que separa a Pedra Lisa da vida pulsante do Rio.

O acesso à comunidade é quase imperceptível para quem passa pela Rego Barros. Não existe lá nenhum atrativo ou nada que atraia alguém para que adentre aquela pequena comunidade composta de casas e que tem como pontos de encontro a venda na entrada, a vendinha da Rosália e o bar no campo. Curioso é encontrar a Igreja Deus é Amor no

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beco do areal.

Ir e vir entre Pedra Lisa e a cidade acontece de uma forma restrita, praticamente limitada às atividades de estudos e trabalho de seus moradores.

Esse isolamento ficou tão claro para nós que achamos fundamental planejar com aqueles que frequentam nossas oficinas semanais pas-seios pela cidade, certos de que isso proporcionaria um alargamento dos horizontes. Queríamos que o grupo assumisse o direito de conhecer sua cidade, de transitar por ela, de participar de sua vida cultural, enfim, que-ríamos demolir os muros erguidos entre a cidade e a Pedra, tão sólido e presente na cabeça de cada um deles.

Propusemos saídas e o primeiro desejo deles era visitar o Corcovado. Afinal, é imagem onipresente, está gravada na memória de todo brasi-leiro, mais ainda dos cariocas. E subir ao Corcovado permite uma vista geral da cidade, dá uma dimensão do que seria a comunidade den-tro desse espaço geográfico, do longe e do perto. A visão de cima se completa com a visão fragmentada que se tem ao ir da Pedra Lisa até Cosme Velho, uma visão mais aleatória, parcial, pessoal, flashes instan-tâneos que, juntos, recompõem o caminho de um ponto ao outro, contri-buindo para a noção de deslocamento pela cidade e da distância, e para a imagem da cidade como um todo. Ver a cidade de cima é se pergun-tar: “O que sou eu dentro desta cidade?” , “como posso usufruir dela?”; “como posso senti-la o meu lugar?”

Isto nos faz lembrar da frase tão usada: “sou nascido e criado aqui.” Mas é nosso desejo que o AQUI seja não só o espaço limitado da Pedra Lisa, da Providência, e sim o espaço mais amplo que acolhe esses lugares, a cidade do Rio de Janeiro.

Depois de programadas as incursões pela cidade nos demos conta de que o processo de idas e vindas já tinha se iniciado quando o grupo foi visitar a exposição O Abrigo e o Terreno, no Museu de Arte do Rio, Praça Mauá.E entre as idas e vindas continuamos as oficinas, as pinturas das

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capas de papelão e dedicamos momentos a conversas e à escrita para registrar sensações e lembranças das saídas, promover diálogos com poemas sobre a cidade, a “reescrita” da declaração de direitos huma-nos do Frei Betto por meio de colagem, enquanto o lento processo de recorte de letras e sílabas possibilitava ao grupo um tempo para refle-xão sobre esses direitos.

Esses encontros não eram marcados por apresentação prévia, mas pela prática da convivência. Então as identidades pré-conformadas e vícios daí derivados, preconceitos, bloqueios e evitamentos desapare-cem. O que surge é fruto da convivência, mais rico, surpreendente, não livre de aparências, que são muito saudáveis. O que se elimina é um julgamento fruto da razão tentadora de entendimentos equivoca-dos.

E, se vimos com clareza que era preciso prosseguir nas saídas pela cidade, também seria fundamental andar na outra direção, levar pes-soas à Pedra Lisa. Por que não usar o espaço ao lado do campo de futebol, que ganhara uma placa, beco do areal, para reunir pessoas, fazer apresentações?

Entra em ação o Trio Capitu. Três musicistas, tocando fagote, flauta e oboé se apresentaram na Pedra Lisa.

A cada apresentação, a expectativa é atrair mais moradores, aproxi-má-los, proporcionar uma experiência inédita na Pedra, mostrar que é possível usar aquele espaço de uma forma enriquecedora para a comunidade.

Essas vivências da cidade, os encontros que estimulam a expressão criativa espontânea na pintura e na escrita deste terceiro livreto, tudo se soma, alargando as possibilidades de acesso, fortalecendo a noção de pertencimento e construindo um processo de crescimento.

Enfim, pretendemos continuar o vai-e-vem, nossas andanças pela cidade, nossas subidas pela Pedra, estimulando a comunidade a se apropriar da cidade, a sair e usufruir de tudo o que ela oferece, a buscar

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conhecimento de uma forma prazerosa. Possibilitar a educação através da vivência. Estimular a reflexão. Dar condição para esse grupo crescer e encontrar o seu lugar na sociedade. Sentir-se parte da cidade, reco-nhecer seus direitos, identificar seu papel como cidadãos.

Visita ao Museu de Arte do Rio

Passado um mês da abertura do museu, voltamos a conversar com eles sobre aquela visita, o que sentiram ao ver seus livros lá, expostos, ao ver outras obras. Surpresa foi ouvir a Letícia, que confessou, sem constrangimento: “Ah, quando vocês disseram que nossos livros iriam para um museu, para fazer parte de uma exposição, eu não acreditei, não.”

Orgulho sente Maria Aparecida, ao pensar que poderá contar essa his-tória toda aos netos, e que teve, um dia, livros feitos por ela expostos em um museu, um lugar tão bonito.

Daiana volta ao museu para visita com a escola e sente a alegria de dizer para os colegas que participou do trabalho.

Letícia nos traz a notícia de que uma professora de sua escola quer ir até a Pedra Lisa para ver como funcionam as oficinas.

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Desde nossas primeiras intervenções no morro, quando chegávamos com sacolas cheias de tintas, papelão e pincéis, explicávamos, ao iniciarmos as oficinas em espaço público, que o papelão que os par-ticipantes iam pintar seria usado como capa de livro e que os livros seriam expostos numa exposição que aconteceria no Museu de Arte do Rio, antigo palacete de D. João que estava sendo restaurado e estaria ligado à Escola do Olhar.Meses se passaram, fizemos muitos livros. Das intervenções em espaços públicos na Providência passamos a dar oficinas mais regu-lares na Pedra Lisa, e assim formou-se um grupo de moradores que se propôs a participar semanalmente das atividades promovidas por integrantes do coletivo Dulcinéia Catadora e colaboradores.

Quando finalmente o museu abriu as portas, com a exposição O Abrigo e o Terreno, era hora de levar o grupo até lá. Avisamos sema-nas antes, insistindo que seria importantíssimo que eles estivessem presentes, pois fizeram os livros que estavam lá - eram os artistas que estavam levando para o museu a voz dos moradores da Providência e da Pedra Lisa.

No dia da abertura foram distribuídos no museu 500 exemplares de Providências, o primeiro livro, que contém depoimentos, entrevis-tas com moradores, representantes de associações de moradores, denunciando a situação aflitiva em que vivem, diante das remoções e ameaças de remoções das moradias. Ainda na abertura duzentos exemplares de Soluções Providenciais também foram distribuídos ao público. Este segundo livreto contém fotos e textos de saídas encon-tradas pelos moradores para solucionar problemas de moradia.

A presença dos participantes das oficinas na abertura da exposição permitiu que o público conversasse com eles e lhes fizesse pergun-tas sobre como foi o processo, como se sentiam por terem realizado um trabalho tão rico. Parte do grupo esteve presente na abertura do museu, deu entrevistas aos veículos de imprensa e conversou com os visitantes da exposição.

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Dessa primeira ida do grupo para a cidade surgem, então, desdobra-mentos, inicia-se uma rede de relações que tende a se ampliar. Cabia a nós assegurar a continuidade desse processo.

Passeio ao Corcovado

10.3.2013Grupo: Maria Aparecida, Daiana, Gabriel, Vívian, Quilinho, Jonathan, Malu, Maki e Ana

No táxi para o Cosme Velho: Daiana e Vívian: “Puxa, o mundo inteiro conhece o Cristo e nós não. Ficava revoltada (risos)”.

Na escola levavam os grandes mas a gente não conseguiu ir, éramos pequenas. Temos vontade também de conhecer o Pão de Açúcar. Tem muitos gringos nesses lugares. A gente devia ir também”. Maria Aparecida se encantou com a iluminação, mas se assustou com o preço do pacote de biscoito recheado na lanchonete do trenzinho: “Sete reais um pacote de biscoito, como pode?”. “Nós queremos visitar os pontos turísticos do Rio e queremos também que as pessoas visi-tem a Pedra Lisa”.

Gabriel tirou muitas fotos com os amigos e pediu pra postar no face-book. As crianças gostaram da subida de trenzinho pela mata.

O terceiro livro será fruto de duas ações: a primeira leva esse grupo a lugares do Rio que eles não conhecem e gostariam de conhecer (como o Corcovado, onde a maioria nunca esteve!) e, a segunda, leva pesso-as e ações artísticas para o Morro, mostrando que lá também é lugar

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de encontro de pessoas e com potêncial cultural!

Então, veio a idéia de levar o TRIO CAPITU para uma dessas ações. O conteúdo do terceiro livro incluirá as reações a essa apresentação e ao bate-papo com eles, onde falaremos um pouco sobre cada instrumento e os compositores do programa, além de responder às perguntas que poderão surgir.

Estamos muito felizes com o convite e super empolgadas para este encontro!

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Conseguimos os ingressos - que hoje custam R$46 para adultos - numa parceria com o Trem do Corcovado. Agradecemos!

No site do passeio turístico, lemos: “É impossível imaginar uma viagem ao Rio de Janeiro sem uma visita ao Cristo Redentor. Localizado no alto do Morro do Corcovado, o monumento é a imagem brasileira mais conhecida no mundo. Todos os anos, mais de 600 mil pessoas são levadas ao Cristo Redentor pela centenária Estrada de Ferro do Corcovado, o passeio turísti-co mais antigo do país”. Cá entre nós, é mais impossível ainda imaginar que aqueles que moram no Rio não têm acesso ao Cristo Redentor...

Trio Capitu: Apresentação na quadra da Pedra Lisa

23.3.2013 – 10 h Grupo: o Trio Capitu: Janaína Perotto (oboé), Débora Nascimento (fago-te) e Sofia Cecatto (flauta). Participação especial: Clarice Maciel (percus-são) Plateia: Maria Aparecida, Gabriel, Vanessa, Andriele, Larissa, Letícia, po-liciais da UPP Providência, Marcos, Lúcia, Carlos, Ana, João, Henrique, Mariana, Daiana, Michele, Zeneide, Fátima e muitas crianças

A expectativa do grupo foi registrada no blog do Trio Capitu: Trio Capitu no Morro da Providência – Coletivo Dulcinéia CatadoraNosso primeiro concerto do ano será no próximo sábado, no Morro da Providência, a convite do Coletivo Dulcineia Catadora.

Com as integrantes Lúcia Rosa e Ana Cristina D’Angelo, o coletivo vem desenvolvendo um trabalho em parceria com o Museu de Arte do Rio com jovens moradores da Comunidade da Pedra Lisa, que faz parte das regiões marcadas para remoções devido às obras urbanísticas para a Copa e Olimpíadas.Com alguns meses de trabalho em conjunto estes moradores já fizeram uma série de dois livros cartoneros – montados e costurados com capa de papelão, e pintados a mão – que estão em exposição no MAR.

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A ChegadaClarice Maciel e Lúcia Rosa sobem o morro convocando a plateia para a apresentação. Clarice toca pandeiro e Lúcia chama o pessoal para ouvir música! As crianças vão seguindo o cortejo animadas. Débora pinta no papelão a placa indicativa do show: Trio Capitu, siga a seta! Daiana posiciona a placa na entrada da comunidade do lado do bar.

A apresentação começa junto com o som da obra na laje de um mora-dor da quadra. Aos poucos o barulho da ferramenta cede ao som da música.

O DuranteCrianças em silêncio, curiosidade, a música embala mentes e promove viagens. Aos poucos a quadra da Pedra Lisa é tomada por Chiquinha Gonzaga, canções do Sítio do Picapau Amarelo e até Asa Branca, esta a pedido da plateia atenta.

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As meninas fazem explicações sobre cada instrumento e a plateia pode até experimentar um sopro no oboé e no fagote. Gabriel sugere que eles fiquem pra oficina e continuem tocando. A plateia aplaude e pede bis! Policiais da UPP da Providência se aproximam e novos moradores da Pedra Lisa chegam de mansinho. O Depois Nossa, foi maravilhoso! Desde que eu saía com as meninas em Botafo-go nunca mais tinha ouvido chorinho. Morri de saudade! Tinha 23 anos que eu não ouvia música assim. Depois que vim pra Pedra nunca mais, eu nem me lembrava mais.... (Zeneide, moradora da Pedra Lisa)

As crianças ficavam quietinhas, parecia que tinha tomado calmante. Foi muito muito legal. Elas gostaram. Pras crianças e pros adultos. Até pediram Asa Branca, como foram se lembrar? (Fátima, moradora da Pedra Lisa)

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Santa Teresa

Parque das Ruínas

Trajeto Pedra Lisa-Santa Teresa

Descemos até a Central de guarda-chuva. Garoa forte. O grupo se dividiu em dois táxis. No caminho, pedi que fossem anotando palavras que lhe viessem à mente, enquanto percorríamos as ruas da cidade. As palavras podiam ser de nomes de edifícios que são referências da cidade, um detalhe notado nas ruas, lembrança inusitada. As palavras seriam suporte para se vivenciar o tempo do trajeto, a distância entre um ponto e outro, o olhar se voltaria para fora do carro, o caminho todo.E foram anotando e falando em voz alta as palavras que escreviam. Houve os que não se preocuparam com os “pontos principais” da cida-de ficaram atentos a ícones que remetem a uma imagem da cidade.

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Mapa do trajeto com “ruas de palavras”

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Parque das Ruínas No parque encontramos com Maristela Pessoa Ramos, que nos guiou a visita. A residência pertenceu à grande mecenas carioca, Laurinda Santos Lobo, que reunia em seus concorridos saraus artistas como Villa-Lobos e Isadora Duncan. Transformado em centro cultural, o par-que oferece espaço para exposições e espetáculos, além de uma das mais privilegiadas vistas da Baía de Guanabara.

“Mas pra que uma casa tão grande?” “E ela vivia sozinha neste casa-rão? “ “Acho que essa Laurinda não devia ser feliz.” “Laura linda não parece uma pessoa boa.” A foto de Laurinda, em vestido elegante, o rosto de lado, não pareceu para eles uma pessoa receptiva, acessível. Distanciamentos causados pela imagem, pela vestimenta, indicadores de classe social diferente.

Da vista do último andar da casa, a identificação de locais da cidade. Situar a Pedra Lisa. Ver a cidade como um todo, indivisível, uno, feitas

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as divisões pelo homem, pelas condições econômicas, sociais, histó-ricas, políticas. Distanciamentos construídos pela sociedade. Distan-ciamento também sentido na hora do lanche. Levamos lanches, pão, queijo, presunto, manteiga. Sentamo-nos no espaço aberto. O seguran-ça veio nos avisar que não podíamos fazer piquenique. Expliquei que não tínhamos condição de comprar lanches para todos. Compraríamos apenas os refrigerantes. Acabou cedendo, pedindo que fôssemos discretos... O grupo ficou mais calado, ressabiado, mas, enfim, fizemos o lanche. Situação constrangedora a que muitos deles estão”acostuma-dos”, mas que relataram depois, comentaram com um sentimento de profunda indignação e rancor.

Sair da Pedra, quase um esconderijo, um abrigo, e ir para outros pon-tos da cidade, mesmo com nossa companhia (Maristela e eu), o que lhes dá certa segurança, é um exercício que por um lado traz a satis-fação da descoberta, do conhecimento, e, por outro, o confronto com questões não resolvidas, mas que exigem enfrentamento para que um dia esta situação mude. Chácara do Céu

A antiga residência do colecionador Raymundo Castro Maya reúne um rico acervo de oito mil peças de arte moderna. Entre as preciosidades estão trabalhos de Di Cavalcanti, Lygia Clark, Volpi, Taunay, aquarelas de Debret e a série de desenhos Dom Quixote, de Portinari. Projetada pelo arquiteto moderno Wladimir Alves de Souza, a casa de 1957 ofe-rece vista panorâmica da Baía de Guanabara e do Centro da cidade.

A obra de Portinari, Grupo de Meninas Brincando, 1940, encantou. Sim, Portinari pintou o povo, o homem descalço, a brincadeira espontânea. Os jovens interpretaram o quadro como uma festa, embora as ex-pressões não sejam de alegria e o tom azul do quadro transmita certa melancolia. Mas as crianças estão livres por um terreno de terra batida. O impulso de tocar nas obras, embora tenha sido refreado, revelava o desejo de se aproximar, de conhecer, um conhecimento que passa pelo toque, pela aproximação, pelo sentir, e não pelo olhar, pelo intelecto.

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A sala de jantar de Castro Maya, com mesa posta, causou espanto. “Credo, como comer com tantos talheres e copos?” Também os livros “Nunca vi tanto livro numa casa.”

Como entender a vida numa residência tão grande? Necessidades criadas, muito distantes dos espaços vividos, da alimentação, da co-modidade, conforto (ou falta deles). Pensar em viver ou em sobreviver. Diferente, não?

E o jardim foi o momento de maior descontração, hora de correr, de rir e falar mais alto, despreocupadamente.

Passado e futuro de ameaças, por Ana d’An-gelo

Numa manhã do início da década de 60, uma pedra gigante rolou de uma altura equivalente a um edifício de dez andares. A pedra soterrou 40 barracos e seus moradores. No local funcionava uma pedreira e dizem que os operários esqueceram dinamite no local, o que provocou a tragé-dia. Muitos morreram. Quantos? Não se sabe, a não ser pela história oral. A pedra não foi retirada, nem os corpos, nem os barracos. Foi contornada por novos barrados e a favela da Pedra Lisa continua por lá; a vida se-guiu naquela comunidade pobre da cidade do Rio de Janeiro, ao lado da Central do Brasil.

Tantos anos se passaram e a Pedra Lisa ganha agora o noticiário. Hoje, cerca de 50 anos depois da obscura tragédia, o poder público quer retirar os moradores alegando risco de desabamento. No entorno da Pedra Lisa andam a todo vapor as obras de um teleférico que leva ao topo do morro. Na região central sobem equipamentos que prome-

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tem revolucionar a cidade para a vinda dos turistas e o batalhão de brasileiros durante a Copa do Mundo em 2014 e Olimpíadas. Outras favelas do centro já receberam as iniciais – SMH – Secretaria Munici-pal de Habitação, um pixo símbolo da remoção daquela casa.

O que aconteceu no passado? Alguém foi indenizado? A área sempre foi de risco ou tornou-se? Descaso, omissão, impunidade? Daqui pra frente, para onde vão estas pessoas? Quem são estas pessoas no conjunto da população carioca?

Neste tecido passado-futuro, encontrei o belíssimo filme do cineasta Leon Hirszman - 5 X Favela – episódio Pedreira de São Diogo, de 1962. Leon cria uma trama em que moradores de uma favela junto a uma pedreira se unem para interromper as atividades da empresa devido ao risco de serem soterrados. O filme foi quase um prenúncio da tragédia da Pedra Lisa, ocorrida pouco tempo depois, segundo relato da filha do cineasta, Maria Hirszman. Quase 50 anos depois, Cacá Diegues, um dos diretores participantes desta primeira versão, recriou o 5 X Favela a partir do olhar de diretores nascidos nas favelas cariocas.

O passado e futuro do Rio de Janeiro estão em xeque nestes tempos. Fazer as pazes com a memória e o presente é retomar alguma digni-dade para os cidadãos que moram nestas regiões e fundamental para se pensar/refletir, projetar seu futuro, parte do caldo diverso e plural que deve estar no tabuleiro da história.

Para conferir o vídeo, acesse: http://www.youtube.com/watch?v=5LE-btr4xU9A

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Pedra Lisa pode virar Área de Interesse SocialCâmara Municipal do Rio de Janeiro

A região da Pedra Lisa, na Gamboa, pode virar Área de Especial In-teresse Social (AEIS). É o que propõe o Projeto de Lei nº 1.261/2012, de autoria do Poder Executivo, em tramitação na Câmara do Rio. A localidade, que de acordo com a nova classificação de favelas produ-zida pelo Instituto Pereira Passos integra o Complexo da Providência, recebeu prioridade por estar localizada na Zona Portuária da Cidade, que vem passando por uma grande reforma urbana, através do projeto Porto Maravilha.

As AEIS são áreas destinadas a programas habitacionais de interesse social, destinados a famílias de renda igual ou inferior a seis salários-mínimos (R$ 3.732, 00). Com a mudança, os moradores de áreas de risco serão reassentados e as áreas de baixa renda, reurbanizadas. A Pedra Lisa faz parte do programa Morar Carioca, programa da Prefei-

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tura que já está sendo executado na Providência, com a construção de novas casas e implantação de infraestrutura, como o teleférico que ligará a Central do Brasil a Gamboa. Como justificativa, o prefeito Edu-ardo Paes cita a proteção ao meio ambiente e a melhora nas condições de vida da população, além de levar cidadania aos moradores. “Assim, buscamos implantar uma efetiva política habitacional, contribuindo para ampliar os direitos de cidadania dessa população”, completa. O projeto segue para apreciação das comissões da Câmara do Rio

Zeneide Maria Barroso, dona de casa que representa o grupo dos moradores, não acredita que esse projeto de lei possa trazer algum benefício aos moradores da Pedra Lisa. “É de interesse especial pra quem?” comenta a moradora. Ela participa das reuniões do Fórum Comunitário, contribuiu muito para que 391 das 394 casas construí-das no local tivessem, finalmente, o documento de posse do terreno. Ouviu dizer que os moradores em breve receberão aviso de que serão removidos e transferidos para Nabuco de Freitas, onde está sendo construído um conjunto habitacional. A espera e a incerteza deixam a voz de Zeneide mais baixa. A tensão é evidente. Apesar da notícia, diz ela não ter ido até lá para ver a construção, que deverá ter mais de 800 moradias.

Roda Viva

De Lá pra Cá, de Cá pra Lá, o terceiro livro feito no Rio, é fundalmentelmente um registro de experiências do grupo pela cidade, o que remete diretamente ao direito de ir e vir. Ao longo de dois meses, as conversas com o grupo tornaram claro para todos que era preciso refletir e discutir não só sobre esse direito básico do cidadão, mas sobre todos os demais. Ao relermos a transcrição de uma conversa, iniciada a partir de um saco de palavras, do qual cada participante tirava uma ou mais palavras e escolhia uma para comentar, percebemos que todas as falas levavam para o mesmo tema: direitos

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e cidadania. Sim, evidentemente, era um momento em que as idas e vindas despertaram reflexões no grupo sobre sua situação como moradores em um lugar ameaçado de deixar de existir, literalmente “sumir do mapa”, suas chances de ter emprego, de estudar, sua liberdade de se manifestar, sua indignação contra qualquer ação discriminatória, o direito à saúde, a uma vida digna. Dessa “roda viva”, da qual participaram Andriele, Letícia, Gabriel,

Zeneide Maria BarrosoFoto: Lúcia Rosa

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Cartaz feito por Fabio Prestes, que participa das atividades desenvol-vidas desde agosto de 2012 pelo coletivo Dulcinéia Catadora no morro da Providência, em colaboração com crianças que moram na Pedra Lisa.

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Andressa, Larissa, Maria Aparecida, Daiana, Vanessa e Mariana, e as participantes do Dulcineia Catadora, Ana e Mônica, extraímos as falas ou comentários dos jovens, estabelecendo uma correspondência direta com a declaração popular dos direitos, escrita por Frei Beto.

Todos temos liberdade de pensar, de nos manifestar, de nos reunir e de crer.

Mutirão dia 23 de abril no Campo da Pedra LisaContra a forma como a prefeitura vem se relacionando com os morado-res do morro na implementação do programa Morar Carioca na região.

Somos contra as remoções e defendemos a implantação de pro-jetos de urbanização com a participação popular, conforme está previsto nas leis federal, municipal e estadual.

Iniciado em janeiro de 2011 o Morar Carioca na comunidade previa a construção de 639 moradias, enquanto a mídia divulgava 832 remo-ções por conta das obras.O programa faz parte do pacote de obras da cidade para as Olimpíadas de 2016 e é fruto de parcerias do município com o Governo Federal e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Apesar de ser um programa de urbanização de favelas, o Morar Cario-ca também recebe recurso do Programa Minha Casa Minha Vida. Con-tudo, não se trata de incremento do estoque de moradias, deficitário no Rio de Janeiro, mas sim de um programa que está sendo utilizado como “braço federal” para os processos de remoção. Dos seis locais destinados a construção de apartamentos pelo MCMV para as famílias que por diferentes motivos – área de risco ou rota de obras – foram ou serão removidas, apenas em um deles há unidades habitacionais em construção. Com previsão de 131 apartamentos, este habitacio-nal – que fica na Nabuco de Freitas – será inaugurado com apenas 24 unidades finalizadas. Nenhum dos mais de 100 moradores removidos

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até agora para a realização de obras deste programa recebeu qualquer esclarecimento formal sobre seu futuro local de sua moradia.

Em dezembro de 2012 foi expedida pela juíza Maria Teresa Pontes Gazineu da 2ª Vara de Fazenda Pública da Capital (Rio) a decisão pela suspensão das obras do programa “Morar Carioca” na Providência, e pela abstenção do município em praticar qualquer ato tendente à demolição ou turbação da posse dos imóveis ocupados pelos moradores até que sejam sanadas as seguintes omissões:elaboração dos Estudos de Impactos Ambiental/Relatório e de Vizinhança; realização de Audiência Pública nos moldes legais e a prestação eficiente do direito à informação - andamento da obra, reclamações de moradores atingidos, cronograma de desocu-pação de imóveis (com a prévia notificação de seus moradores), entre outras.

Além do teleférico o projeto divulgado pelo programa Morar Carioca para a Providência previa a construção de: 639 habitacionais, obras de saneamento, uma motovia, um museu a céu aberto, um centro esportivo, um plano inclinado e um teleférico. Somente o último está pronto. É importante frisar que todas os demais terrenos do entorno da Providência, previstos para reassentamento e produção habitacional, não foram demarcados como áreas de especial interesse social, nem mesmo há qualquer comprovação de que tais terrenos estão em poder do município para produção de habitação de interesse social.

Objetivo do mutirão

Mobilizar os moradores da comunidade e da cidade do Rio de Janei-ro – os ativistas, lideranças, colaboradores, militantes, e todos que queiram se somar nessa caminhada – para produção de cartazes e faixas que serão distribuídas pela região para dar visibilidade a luta. Lá poderemos nos unir e trocar mais informações sobre outras lutas que ocorrem na cidade do Rio de Janeiro, de comunidades que reivindicam e que vivem o mesmo problema.

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O Fórum Comunitário do Porto – que é produto de uma articulação da Comissão de Moradores do Morro da Providência com diferentes colaboradores – professores, profissionais liberais, estudantes, ONG nacionais e internacionais, pesquisadores.

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Todos temos direito de não sofrer nenhum tipo de discriminação.

Daiane – Eu tenho orgulho de ser negra. Porque se eu nasci assim eu tenho que aceitar do jeito que eu sou. Larissa – É uma raça que vem de muitos anos. Gabriel – Mas não tem branco branco e preto preto. Todo mundo é misturadoAndressa – Hoje a gente vê um preto juiz, um preto delegado. Vanessa – Mas também tem os pretos que quando sobe de vida es-quece da origem. Fica rico, sobe na cabeça, acha que agora é melhor do que o resto.Gabriel – (A cidade ) É um lugar. É um lugar de todo mundo. Vanessa – Mas a gente quer ir num lugar não pode porque não tem dinheiro. É pra poucos. Tem lugar que a gente quer ir e não pode entrar porque tá mal vestido. Deveria ser pra todos, mas não é.

Todos temos direito à instrução, à escola, à arte e à cultura.

Andressa – Eu acho que a gente tem é que estudar e trabalhar pra ci-dade ser da gente também. Porque tem muito pobre que não quer nem saber de estudo, fica jogando o tempo fora. Daiana – Meu sonho é ser desenhista porque eu sei desenhar. Mas as vezes eu faço uns desenhos muito feios. Vou ter que estudar.Vanessa – Eu parei de estudar porque todo ano eu ficava grávida. Andriele – Aqui é todo mundo sem cultura.

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Todos temos direito de ir e vir, mudar de cidade, de Estado ou país.

Gabriel – É ter passe livre. Poder ir em todo lugar. Andressa – É poder entrar e sair de onde bem entender. Aqui, por exemplo, quando tinha os bandidos outra pessoa de outra área que não fosse do Comando não podia entrar. Se entrava era capaz de não sair nunca mais. Hoje em dia não. Todo mundo pode entrar e sair. Me-lhorou mas num certo ponto. Porque entra quem quer e muitas vezes dá briga. Antes eles não deixavam virar bagunça. Larissa – Eu quando passeio na cidade acho que sou carioca mesmo.

Todos temos direito à saúde e assistência médica e hospitalar.

Mariana – Eles tão focando muito nesse negócio da Copa e tão es-quecendo dos hospitais, sabia? Vai num hospital pra você ver. Além de ficar quatro horas pra ser atendida, depois fica mais oito lá. Estão esquecendo literalmente dos hospitais. Aí os turista que vem e passa mal quem vai ficar ferrado são eles. Mas depois vai voltar tudo como era antes. Só os gringos que têm dinheiro é que pode ir.

Todos temos direito de resguardar a casa, a fa-mília e a honra.

Maria Aparecida – Meu maior sonho é ter uma casa. Pra viver bem com meus filhos. Porque hoje eu to naquela casa ali e amanhã eu posso estar num lugar que não tem nada a ver comigo. Eles estão querendo demolir as casas e eu não sei qual o meu destino. Meu des-tino só a Deus pertence.

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Todos temos o dever de respeitar e proteger os direitos da comunidade.

Maria Aparecida – Aqui na Pedra Lisa o pessoal não tem organiza-ção. Se a gente tivesse organização a gente tinha uma associação dos moradores. Quando acontece de uma pessoa ser líder e começa a receber algum benefício para melhorias na comunidade algumas pessoas têm olho grande, aqueles pessoas que não pensam no outro e quer vencer sozinho, começa a falar que o presidente (da associação) tá roubando, tá fazendo a casa dele. Mas ele não sabe que o presi-dente tá ali na associação mas tem um trabalho digno. Nós temos que unir porque o povo unido... Eu não fico de boca fechada, eu vou até a reunião no Morro da Providência e falo. As pessoas não têm coragem de falar abertamente. Eu falei com o Eduardo Paes, perguntei pra ele qual o melhoramento que ele vai fazer pra nós.

Todos temos direito ao trabalho digno e bem remunerado

Andressa – É um lugar pobre com pessoas humildes. Mas que querem ser alguém na vida. Ser alguém na vida é trabalhar, batalhar pra ser quem você quiser. Eu sonhava em ser policial. Eu desisti desse sonho porque os policiais prenderam meu pai. Meu pai mereceu ser preso, mas fiquei com raiva, não gostei. Daí desisti desse sonho. Agora vou fazer curso do Senai e administração de empresas para ver se consigo ser alguém na vida. Gosto do Rio de Janeiro porque é lindo, tem várias praias, consigo passear em vários lugares, saio pra curtir. Na praia a gente vai se tem passagem de ônibus. Passo o dia na praia, vejo Ma-lhação e vou dormir.

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A cidade do espetáculo

Larissa - Vai ter Copa de 2014. Estão fazendo um monte de coisas na cidade porque todo mundo vai vir pra cá. Estão fazendo uma maquiagem pra Olimpíada, pra Copa. Pro povo de fora ver como é o Rio de Janeiro.

Políticas públicasAndressa - O dinheiro que tão investindo aí em obra, em Mara-canã, por que não investe no pessoal da favela?Gabriel - Tem muita gente que critica, mas não participa.Andressa – Chega um político aqui oferece isso e isso e aquilo, nada disso vai acontecer, toda vez é assim. O povo daqui concor-da, acredita em gente que não vai fazer nada pela gente. Se eu tiver condição de fazer alguma coisa pelo pessoal daqui eu faço. Mariana – A gente elege eles porque eles falam que vão fazer e acontecer. Depois acontece totalmente o contrário. Quem tem culpa disso? Porque a gente tá acreditando na palavra deles. O prefeito quer deixar o Rio de Janeiro bonito, só isso que ele sabe fazer. Ana – Mas o prefeito quem elege é a gente né? A gente vai lá, co-brar, fiscalizar, ver o que tá fazendo? A gente não tem esse hábito, né, de se organizar. Vanessa – O pessoal tá querendo tirar a gente daqui, ir lá pra Sepetiba, esses lugares, a gente vai fazer o que lá? Eu não tenho dinheiro pra pagar passagem todo dia pra cidade. Andressa – Eles falam do aluguel social. R$ 500 por Mês, , onde vai arranjar um lugar bom, uma casa boa com dois quartos, sala cozinha e banheiro com esse dinheiro hoje em dia? Onde uma pessoa pobre pode alugar uma casa boa no asfalto?

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A Primeira palavra: Fa-ve-la

O direito à escola está previsto na Constituição brasileira, mas, como tantos outros direitos aqui incluídos, não é respeitado. A questão se amplia se nos perguntarmos que escola queremos ou o que importa realmente na formação de um indivíduo. O que significa “instrução”? Educação como Prática da Liberdade é lembrado aqui num momento em que estamos trabalhando com um grupo de jovens na Pedra Lisa, que faz parte da Providência, a primeira favela do Brasil, situada em Gamboa, região central do Rio de Janeiro.Os diálogos, o convívio com o grupo da Pedra lisa, a produção de con-teúdos, os momentos de criação coletiva das capas e da montagem dos livros, as idas e vindas, tudo foi impulsionado pelo nosso desejo de abrir espaço para que que esses moradores da Pedra Lisa se tornem, de fato, protagonistas de suas próprias histórias. É hora de retomar o pensamen-to de Paulo Freire como norteador de uma política educacional séria que permita, de fato, a formação de cidadãos, o que se inicia formalmente com a alfabetização. Torná-la um processo que, em paralelo às descobertas proporcionadas pela escrita, estimule reflexões e discussões acerca da realidade vivida. É perfeita e contundente a sugestão de Paulo Freire, no apêndice desse livro, de tomar favela como palavra chave desencadeadora de um processo de alfabetização que, para além do trabalho estrutural da língua, instigue a reflexão, estimule discussões sobre a realidade. Sim, por-que a leitura, como porta aberta para a aquisição de conhecimento, pede também uma postura crítica, um cidadão consciente de seus direitos e de suas possibilidades de atuação na sociedade. Pela lucidez e pertinência com que apresenta suas propostas na área da educação, incluímos aqui o início do referido apêndice, documento de proposta feita ao próprio Estado do Rio de Janeiro onde, mais de 40 anos depois, estamos desenvolvendo atividades diretamente ligadas à leitura: uma forma de confeccionar livros usando papelão reciclado. Sim, a edu-cação como um direito fundamental do cidadão brasileiro continua sendo pauta para discussões, infelizmente alcancando ainda um saldo muito aquém do que deveria atingir e na maioria das vezes sendo trabalhada de forma dissociada da capacidade de reflexão crítica que deveria instigar.

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Propor-propor numa cidade em disputa

A cidade é como um rio que, cheio de afluentes, parte prum mar único e polifônico. O Rio de Janeiro é rio e mar – uma construção fundada na exploração e na generosidade. Ser cidade-carioca é encarar afluen-tes em total discordância com um projeto justo de cidade. No entanto, transpor os limites visíveis e circular humanidades é propor outra cida-de e se reconhecer como cidadão-carioca.

As barreiras impostas pelo preconceito histórico e pela construção de muros imaginários e segregadores numa cidade cheia de morros fizeram com que uma população negra não se reconhecesse nos ou-tdoors das avenidas. As favelas tão cheias de vida, cultura, memória e diversidade ficaram marginais ao asfalto cosmopolita e, ao mesmo tempo, provinciano. Mas uma cidade democrática não pode estar referenciada em padrões hierárquicos e dissimulados. A cidade deve ser a expressão viva da diversidade e da diferença cultural, imaginária, afetiva e exis-tencial; e só é possível conceber a ideia plena de pluralidade quando afirmamos a troca legítima entre indivíduos.

Nesse sentido, o coletivo Dulcineia Catadora é importantíssimo ele-mento na cidade que transborda multiplicidade. Quando se propõe à troca efetiva, o coletivo ascende na construção real de políticas para uma cidade mais justa. As investidas em discussões acerca dos direitos culturais do povo trazem à tona os maus tratos oficiais e a pulsão por uma revolução pelo direito à cidade.

As visitas a um Rio desconhecido (como o Corcovado e a Chácara do Céu) despertam a dúvida da falta e da omissão, assim como engran-decem o poder de colaboração e expansão cultural – ainda que isso implique numa série de fatores. A comunidade da Pedra Lisa, frequen-tada somente por “quem mora lá ou parentes que vão fazer visitas”, começa a se entender como espaço de troca numa cidade em disputa. Os cartoneiros (artistas-experimentadores de um fazer-significado) reconhecem sua potencialidade simbólica e seu direito estético quando manipulam e expõem seu trabalho.

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De lá pra cá, de cá pra lá, independentemente dos sentidos ou ter-ritórios, é ação efetiva de construção e trocas simbólicas. É pro-por-propor, como fez o artista seminal da vanguarda brasileira que reconheceu na favela o terreiro do devir. Assim como Hélio Oiticica, os cartoneiros de São Paulo, da zona sul carioca ou da Pedra Lisa são os convidados ilustres de uma cidade, que em disputa diária, corre para o mar das vozes dissonantes – e por isso encantadoras.

Gilberto Vieira PRODUTOR CULTURAL, PESQUISADOR E COLABORADOR DO

OBSERVATÓRIO DE FAVELAS.