Livro Abrapso 2013

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Livro composto por diversos trabalhos apresentados e selecionados no ENABRAPSO 2013

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  • Catalogao na fonte pela Biblioteca Universitria da

    Universidade Federal de Santa Catarina

    P912 Prticas e saberes psi [recurso eletrnico]: os

    novos desafios formao do psiclogo / organizadores Ana Mercs Bock...[et al.] ; coordenadoras da coleo Ana Ldia Campos Brizola, Andrea Vieira Zanella. Florianpolis : ABRAPSO Editora : Edies do Bosque CFH/UFSC, 2015. 291 p.; grafs., tabs. - (Coleo Prticas Sociais, Polticas Pblicas e Direitos Humanos; v. 3)

    Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-86472-22-0 1. Psiclogo - Educao (Superior).

    2. Psicologia social. 3. Psicologia. 4. Poltica pblica. I. Bock, Ana Mercs...[et al.]. II. Srie

    CDU: 159.9

  • Diretoria Nacional da ABRAPSO 2014-2015Presidente: Alusio Ferreira de Lima

    Primeiro Secretrio: Marcelo Gustavo Aguilar CalegareSegundo Secretrio: Leandro Roberto Neves

    Primeira Tesoureira: Deborah Chrisina AntunesSegunda Tesoureira: Renata Monteiro Garcia

    Suplente: Carlos Eduardo RamosPrimeira Presidenta: Silvia Taiana Maurer Lane (gesto 1980-1983)

    ABRAPSO EditoraAna Ldia Campos Brizola

    Cleci MaraschinNeuza Maria de Faima Guareschi

    Conselho EditorialAna Maria Jac-Vilela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    Andrea Vieira Zanella - Universidade Federal de Santa CatarinaBenedito Medrado-Dantas - Universidade Federal de Pernambuco

    Conceio Nogueira Universidade do Minho, PortugalFrancisco Portugal Universidade Federal do Rio de Janeiro

    Lupicinio iguez-Rueda Universidad Autonoma de Barcelona, EspaaMaria Lvia do Nascimento - Universidade Federal Fluminense

    Pedrinho Guareschi Universidade Federal do Rio Grande do SulPeter Spink Fundao Getlio Vargas

    Edies do Bosque Gesto 2012-2016Ana Ldia Campos BrizolaPaulo Pinheiro Machado

    Conselho Editorial Arno Wehling - Universidade do Estado do Rio de Janeiro e UNIRIO

    Edgardo Castro - Universidad Nacional de San Marn, ArgeninaFernando dos Santos Sampaio - UNIOESTE - PR

    Jos Luis Alonso Santos - Universidad de Salamanca, EspaaJose Murilo de Carvalho - Universidade Federal do Rio de Janeiro

    Leonor Maria Cantera Espinosa - Universidad Autonoma de Barcelona, EspaaMarc Bessin - cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, France

    Marco Aurlio Mximo Prado - Universidade Federal de Minas Gerais

  • IColeo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    Sumrio

    A Coleo 1

    Apresentao 3

    Origens

    Uma histria sociotcnica do Laboratrio do Insituto de PsicologiaArthur Arruda Leal Ferreira e Luiz Fonseca

    10

    Ressonncias do pensamento de Michel Foucault no Brasil - para alm das categorias sociolgicasHeliana de Barros Conde Rodrigues

    28

    Militncia e mtodoProcessos grupais e ariculaes idenitrias: provocaes para formao em Psicologia Social e prticas em comunidadesMarcos Vieira-Silva

    55

    A dimenso subjeiva da desigualdade social: questes metodolgicas e implicaes pricasMaria da Graa Marchina Gonalves

    65

  • II

    Pricas e saberes psi: os novos desaios formao do psiclogo

    Senido e signiicado de futuro: jovens pretas da regio do Capo Redondo e Jardim ngela (So Paulo)Carlos Eduardo Mendes

    85

    O futebol como luta por reconhecimento e seus desdobra-mentos na dimenso subjeiva de jovens Daniele Mariano Seda, Carlos Eduardo Senareli Teixeira e Rafa-el Nuernberg Lauer

    100

    A fronteira vivida e os processos de subjeividadeLuiz Felipe Barboza Lacerda, Reginaldo Conceio da Silva, Rosi Mri Bukowitz Jankauskas e Michael Ribeiro de Oliveira

    120

    FormaoNovos desaios para a formao de psiclogos no BrasilJoo Paulo Macedo, Magda Dimenstein e Andressa Veras de Carvalho

    144

    Anlise das pricas desenvolvidas em estgios obrigatrios do curso de psicologia na rea socialRegina Clia do Prado Fiedler e Luiza de Carvalho Vilas Boas

    157

    Pr-sade e o contexto universitrio: achados de uma pesquisa- experinciaCssia Beatriz Baista

    176

    Heranas militantes: perspecivas estudanis sobre os bacharelados interdisciplinares na UFBASamir Prez Mortada

    196

  • III

    Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    Graduandos em Psicologia e preconceito, racionalidade tecnolgica e narcisismoMaria Amlia Gllnitz Zampronha

    225

    Desigualdade educacional: o caso do EAD no BrasilDeise Mancebo, Andra Araujo do Vale, Priscila Meireles e Suellane Freitas Jacintho

    242

    Da epistemologia s ecologias cogniivas: recolocando o problema do conhecer e do conhecimento psiEiane Araldi

    261

    Sobre os autores, organizadores e coordenadoras 280

  • 1Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    A coleo

    Pricas Sociais, Policas Pblicas e Direitos Humanos rene tra-balhos oriundos do XVII Encontro Nacional da Associao Brasileira de Psicologia Social - ABRAPSO, realizado na Universidade Federal de Santa Catarina em outubro de 2013. Comemorando 30 anos, ao realizar esse evento que aliou ensino, pesquisa e atuao proissional em Psicologia Social implicada com o debate atual sobre problemas sociais e policos do nosso pas e sobre o coidiano da nossa sociedade, a ABRAPSO reairmou sua resistncia polica cristalizao das insituies humanas.

    A ABRAPSO nasceu compromeida com processos de democraiza-o do pas, a parir de uma anlise crica sobre a produo de conheci-mento e atuao proissional em Psicologia Social e reas ains. O hori-zonte de seus ailiados a construo de uma sociedade fundamentada em princpios de jusia social e de solidariedade, compromeida com a ampliao da democracia, a luta por direitos e o acolhimento diferena. Nossas pesquisas e aes proissionais visam a crica produo e repro-duo de desigualdades, sejam elas econmica, racial, tnica, de gnero, por orientao sexual, por localizao geogrica ou qualquer outro as-pecto que sirva para oprimir indivduos e grupos. Os princpios que orien-tam as pricas sociais dos ailiados ABRAPSO so, portanto, o respeito vida e diversidade, o acolhimento liberdade de expresso democrica, bem como o repdio a toda e qualquer forma de violncia e discrimina-o. A ABRAPSO, como parte da sociedade civil, tem buscado contribuir para que possamos de fato avanar na explicitao e resoluo de violn-cias de diversas ordens que atentam contra a dignidade das pessoas.

    Os Encontros Nacionais de Psicologia Social promovidos pela ABRAP-SO consistem em uma das estratgias para esse im. Foi um dos primeiros eventos nacionais realizados na rea de Psicologia (em 1980) e se caracte-riza atualmente como o 3 maior encontro brasileiro de Psicologia, em n-mero de paricipantes: nos limos encontros congregou em mdia 3.000 paricipantes e viabilizou a apresentao de mais de 1.500 trabalhos.

  • 2Pricas e saberes psi: os novos desaios formao do psiclogo

    O XVII Encontro Nacional da Associao Brasileira de Psicologia Social foi concebido a parir da compreenso de que convivemos com violncias de diversas ordens, com o aviltamento de direitos humanos e o recrudescimento de pricas de sujeio. Ao mesmo tempo, assisimos presena cada vez maior de psiclogos(as) atuando junto a policas de governo. Ter como foco do Encontro Nacional da ABRAPSO a temica Pricas Sociais, Policas Pblicas e Direitos Humanos possibilitou o debate desses acontecimentos e pricas, das lgicas privaistas e individualizantes que geralmente os caracterizam e os processos de subjeivao da decorrentes. Ao mesmo tempo, oportunizou dar visibilidade s pricas de resistncia que insituem issuras nesse cenrio e contribuem para a reinveno do polico.

    Neste XVII Encontro, alm da conferncia de abertura, simpsios, minicursos, oicinas e diversas aividades culturais, foram realizados 39 Grupos de Trabalho, todos coordenados por pesquisadores/doutores de diferentes insituies e estados brasileiros. Estes coordenadores selecio-naram at cinco trabalhos, entre os apresentados em seus GTs, para com-por a presente coletnea e responsabilizaram-se pelo processo editorial que envolveu desde o convite para apresentao dos trabalhos comple-tos, avaliao por pares, decises editorias e documentao perinente. Como resultado, chegou-se seleo dos textos inais. Organizados, en-to, por ainidades temicas, passaram a compor os oito volumes desta Coleo. Para introduzir as edies temicas, foram convidados pesquisa-dores que esiveram envolvidos na coordenao de GTs e organizao do evento, com reconhecida produo acadmica nas temicas ains.

    Agradecemos a todos os envolvidos neste projeto de divulgao dos trabalhos completos dos paricipantes do XVII Encontro Nacional da ABRAPSO: trata-se de um esforo conjunto no apenas para a divulgao das experincias e do conhecimento que vem sendo produzido na Psico-logia Social brasileira, em paricular no mbito da ABRAPSO, mas para a ampliicao do debate e provocao de ideias e aes transformadoras da realidade social em que vivemos e da qual aivamente paricipamos.

    Ana Ldia BrizolaAndra Vieira Zanella

  • 3Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    Apresentao

    Pricas e saberes psi: os novos desaios formao do psiclogo

    Samir Prez Mortada

    Em 2001 acontecia o XI Encontro da ABRAPSO. Seu tema, Psicolo-gia Social e transformao da realidade brasileira: desaios e perspecivas para a ABRAPSO 21 anos depois j indicava a inteno da Associao de reavaliar-se, releir sobre si e seu papel a parir de sua histria e da con-juntura social.

    Doze anos depois, novamente Floripa. E haja transformao da re-alidade brasileira desde ento para se pensar. Pricas Sociais, Policas Pblicas e Direitos Humanos indica outro contexto, um foco deinido e prico enquanto alvo de relexo. O to propalado compromisso social da psicologia sedimentou-se, ganhou campo e corpo nos nossos novos espa-os de atuao. Ganhou novos olhares, novas fundamentaes tericas, instrumentos e tcnicas de interveno.

    Se em 2001 atravessvamos um perodo de relaiva estabilidade, no penlimo ano do governo Fernando Henrique Cardoso, o contexto mu-dou em 2013. Nova conjuntura, polarizaes e poucas certezas no campo polico e social. No de se estranhar que o encontro de uma associao como ABRAPSO trouxesse tal esprito. No o fez de forma direta, mas em seus GTs. Com rigor acadmico, abordou rica e variada temica militante, condizente com sua histria.

    Os captulos deste livro no perfazem uma unidade; no foram es-critos para isso; mas apesentados em um congresso mliplo, heterog-neo, em grupos de trabalho independentes uns dos outros unidos pela

  • 4Pricas e saberes psi: os novos desaios formao do psiclogo

    temica e escopo do evento. A publicao deles aqui no tampouco aleatria. Em comum os textos nos remetem formao do psiclogo, em espaos formais e informais. Formao esta confrontada com novos cam-pos, outros lugares e agentes, com nossas pricas e saberes em tempos singulares para o pas e a proisso. Diante disso, em comum para os auto-res, foi necessrio parar e pensar sobre seus instrumentos e conceitos. Foi imprescindvel retomar a histria, reconigurar mtodos, rever tcnicas, reconhecer limites tericos e epistemolgicos. Revisitar, portanto, frente s experincias empricas e tericas atuais, nosso percurso formaivo e reconhecer criicamente suas limitaes.

    Em seu primeiro conjunto de textos, o livro inicia com o passado, a memria de nossas pricas e pensamentos em Psicologia Social. O pri-meiro captulo dirige seu olhar a um importante lugar de referncia para a psicologia e para nossa formao. Uma histria sociotcnica do Labora-trio do Insituto de Psicologia enfoca o laboratrio do Insituto de Psico-logia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Esse espao, de 1920 a 1990, testemunha privilegiada e agente aivo, cujo percurso nos permite releir sobre a insitucionalizao da psicologia no Brasil, de suas pricas e saberes.

    O segundo captulo tem sua origem no Grupo de Trabalho dedicado Histria da produo de conhecimento em Psicologia Social no Brasil. Em Ressonncias do pensamento de Michel Foucault no Brasil - para alm das categorias sociolgicas, Heliana Conde retorna um autor que tem sido talvez, desde sua vinda ao Brasil na dcada de 1970, uma das principais referncias nas cincias humanas. Em paricular na psicologia social, em suas diversas e variadas intervenes insitucionais e produes acadmi-cas, Foucault interlocuo obrigatria. A relexo proposta pela autora enfrenta o desaio acadmico necessrio para que tal apropriao no seja mimica, provinciana, mas poliicamente contextualizada, coerente com a realidade em que vivemos.

    O segundo bloco de textos tem origem principal no primeiro Grupo de Trabalho do congresso: A dimenso subjeiva da desigualdade social: um velho problema e um novo tema para a psicologia social. No sem moivos que comeamos por a. a Psicologia Social, na expresso ben-jaminiana, procurando escovar-se a contrapelo de sua tradio em dois senidos. Se hegemonicamente nos preocupamos com o sofrimento na

  • 5Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    clnica individual, com o sujeito liberal burgus, desde os anos 1960 so notveis iniciaivas para compreender o sofrimento, a angsia proletria e suas tentaivas de emancipao. O psiclogo vai a campo, testa seus saberes e mtodos. Volta, relete teoricamente sobre o que viu, enfrenta suas contradies.

    Em Processos grupais e ariculaes idenitrias, terceiro captulo do livro, o Laboratrio de Pesquisa e Interveno Psicossocial da Universida-de Federal de So Joo Del-Rei procura invesigar ariculaes tericas e pricas de nossas intervenes e pesquisas a parir de categorias centrais da Psicologia Social: idenidade, processos grupais e paricipao social. Os autores enfrentam esse desaio a parir de experincias de interveno bastante variadas e engajadas: Associao dos Portadores de Diabetes; Grupo de Afrodescendentes; corporaes musicais; grupos de idosos ins-itucionalizados e comunitrios. Fazem isso muito bem acompanhados, terica e tecnicamente, a parir, entre outras inspiraes, da concepo de idenidade emancipatria, de Ciampa.

    Em A dimenso subjeiva da desigualdade social: questes meto-dolgicas e implicaes pricas, pesquisadores da Ponicia Universida-de Catlica de So Paulo procuram compreender a dimenso subjeiva do fenmeno social da desigualdade. O mtodo aqui colocado como elemento indissocivel das prticas e intervenes propostas, visto e re-visto frente a esse novo objeto. Denota-se aqui quanto ainda incipiente o desenvolvimento de instrumentos e tcnicas de interveno diferentes daquelas que aprendemos nos cursos de graduao, mais adequadas e adaptadas clnica individual. O grupo atento e cuidadoso para que o enfoque subjeividade proletria se d em uma perspeciva crica, e no adaptaiva; que reconhea tanto mecanismos de reproduo como de resistncia e superao uilizados pelos oprimidos.

    Ento vamos periferia. Capo Redondo e Jardim ngela, So Pau-lo. Senido e signiicado de futuro: jovens pretas da regio do Capo Redondo e Jardim ngela (So Paulo). Poucos lugares so mais signii-caivos em relao luta e resistncia jovem proletria desde os anos 1990. Jovens pretas no corao do RAP paulista, com vez e voz, apoiadas pelos pesquisadores, seus companheiros e interlocutores. Airmam a pesquisa como encontro de seres humanos que dialogam. A aparen-temente simples e horizontal aliana entre a academia e a periferia no

  • 6Pricas e saberes psi: os novos desaios formao do psiclogo

    to simples assim, e sabemos, em psicologia social, o quanto a rea precisou e precisa caminhar para que pesquisadores se comprometam com isso.

    Entramos em campo. Em O futebol como luta por reconhecimento e seus desdobramentos na dimenso subjeiva de jovens, os autores partem da teoria crica da sociedade para a anlise de ilmes, livros, reportagens, mostrando a atualidade da abordagem frankfuriana. Haxel Honneth e Guy Debord so referncias nesse percurso. So entrevistados jovens jogadores da Vila Olmpica da Mangueira. Na sociedade do espetculo, ideniicam no esporte e em seu presgio o reconhecimento e a visibilida-de pblica que negada sua classe social. A distoro de uma cidadania vendida como status, sucesso midiico e econmico, no tema indife-rente psicologia social.

    Em A fronteira vivida e os processos de subjeividade, os autores re-letem sobre a vida na trplice fronteira Brasil, Colmbia, Peru, no Alto Solimes. Atravs de quesionrios analisados quanitaiva e qualitaiva-mente, a psicologia social aproxima-se dos estudos culturais e de geogra-ia humana. Com referncias interdisciplinares, procura reconhecer como se enuncia a fronteira vivida (por aqueles que a habitam); a Fronteira vi-giada (pelos rgos de segurana) e a Fronteira percebida (por aqueles que no vivem neste territrio). Trata-se de pesquisa de flego, que em trs anos procurou compreender a vida em um singular entrecruzamento espacial, cultural e tnico em intensa transformao, em contexto em que se intensiicam os confrontos entre as sociedades tradicionais e os luxos comerciais cada vez mais intensos e cruis decorrentes da globalizao.

    O terceiro conjunto de captulos tem como origem principal o GT Educao Superior. reforado por outros trabalhos que reletem direta-mente sobre o tema. Enfoca especiicamente as rpidas transformaes nesse campo: aumento avassalador de cursos de graduao, novas ins-ituies, novos espaos e relaes de trabalho, novas tecnologias e mo-dalidades de ensino, interiorizao da psicologia, so alguns dos assuntos que tratamos, e que aparecem na ordem do dia. No podem ser ignorados em seus impactos na profisso e em seu compromisso com a sociedade.

    Em Novos desaios para a formao de psiclogos no Brasil, temos um quadro dos cursos de psicologia no Brasil. Seguindo movimento de ex-panso da educao superior no Brasil, os cursos de psicologia prolifera-

  • 7Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    ram-se. No estudo, com base em documentos e sites oiciais, foram conta-bilizados 510 cursos no pas. Se antes os psiclogos eram em sua maioria formados em cursos diurnos, em insituies pblicas de ensino sediadas nas capitais e grandes cidades; hoje so predominantemente estudantes da rede privada, no raro estudaram noite, enquanto trabalhavam. Em grande nmero, foram formados no interior do pas. Da fronteira nacional pequena cidade, deiniivamente no somos mais um proisso restrita elite urbana. Esse novo contexto formaivo nos impe acurada relexo sobre nossas novas pricas, saberes e espaos de atuao.

    A nova formao em psicologia, onde esteja, provocada crica, reinveno. As pricas de estgio e interveno so o foco dos dois cap-tulos seguintes. Pesquisas empricas e implicadas, procuram enfrentar te-mas tradicionais em nosso percurso formaivo, em um contexto e espao novos, que requerem novas epistemes, tcnicas e didicas.

    A primeira, Anlise das pricas desenvolvidas em estgios obriga-trios do curso de psicologia na rea social, uma pesquisa paricipante realizada em uma insituio paricular frente aos desaios de uma prica de estgio em Psicologia Social Comunitria. Analisa os relatrios dos dis-centes. signiicaivo que pretenda ideniicar a parir destes documentos a natureza epistemolgica, ica, ontolgica e metodolgica de suas in-tervenes.

    Em O Pr-sade e o contexto universitrio: os achados de uma pesqui-sa-experincia, novamente as pricas da psicologia em sua interface com a sade so colocadas em xeque. Aqui, mais especiicamente naquilo que concerne nossa formao. Embora hoje ns psiclogos estejamos mais do que nunca radicados como proissionais da sade, e inseridos no SUS, ainda h muito a avanar. A pesquisadora, engajada no programa gover-namental Pr-sade, em Minas Gerais, sinteiza o desaio: Romper com a centralidade do modelo biomdico e hospitalar para uma ateno em sa-de focada na promoo e educao exige de trabalhadores, professores e cidados uma mudana de paradigma que relita nos processos de ensino e de trabalho, nas relaes de saberes, na atuao em redes integradas de sade e na paricipao social. Todo esse contexto clama por produo de conhecimentos e mudana cultural, para outro fazer na sade.

    O sistema universitrio mudou muito nas duas limas dcadas. Novas modalidades de cursos, expanso da oferta de vagas, novos perfis

  • 8Pricas e saberes psi: os novos desaios formao do psiclogo

    de estudantes ingressaram na educao superior. Em Heranas militan-tes: perspecivas estudanis sobre os Bacharelados Interdisciplinares na Universidade Federal da Bahia, so confrontadas duas experincias de es-tudantes sobre a implantao dos BIs, nova estrutura universitria, com suas potencialidades e contradies, campo de tenses que coloca a uni-versidade e seus preconceitos em evidncia.

    O captulo seguinte, Graduandos em Psicologia e preconceito, racio-nalidade tecnolgica e narcisismo, enfoca esse novo espao de formao, virtual, e seus impactos na relao intersubjeiva. Novamente a teoria cr-ica da sociedade trazida enquanto referencial em um campo atual e emergente de relexes.

    Talvez o mais novo e contraditrio espao da educao superior seja a EAD. o campo do captulo seguinte, Desigualdade educacional: o caso do EAD no Brasil. Nele, o grupo de pesquisadores coordenado por Dei-se Mancebo, pertencentes Rede Universitas/BR, Associao Nacional de Ps-graduao e Pesquisa em Educao (ANPED) e ao Observatrio da Educao (CAPES/INEP), no faz concesses, apontando as contradies dos discursos oiciais e de mercado que procuram fundament-la. Airma, com base em levantamento documental e estasico rigoroso: Trata-se de uma dinmica de excluso includente; isto , um processo mediante o qual os mecanismos de excluso educacional se recriam. Em uma feliz expresso, trata-se de uma universalizao sem direitos.

    O limo captulo, Da epistemologia s ecologias cogniivas: reco-locando o problema do conhecer e do conhecimento psi, traz outro re-ferencial terico, enfoca uma preocupao epistemolgica implicada na formao dos psiclogos: o problema do conhecer e do conhecimento psi em nosso percurso na graduao. Defrontamo-nos h tempos com essa temica, colocada em trs eixos pelo captulo: nossa relao com as diferentes psicologias; nossas escolhas tericas; e a relao que estabele-cemos entre teoria e prica, cincia e experincia. Tema rido, repre-sentaivo do desaio intelectual que temos e da necessidade de enfrent--lo em nossa formao.

    A ABRAPSO, como em 2001, faz jus a sua tradio acadmica e mi-litante. Novamente Florianpolis, novamente nossa histria retomada. Em xeque, nossa formao em sua relao com nossos saberes e pricas. Em ano de intensas manifestaes sociais, de incertezas nacionais, vamos

  • 9Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    ao, s polticas pblicas, espao conquistado desde l com dedicada militncia. Amparados com nossas teorias e tcnicas, tal como as apren-demos e nos foram oferecidas: de Marx a Foucault, da teoria crica cog-nio social; das estratgias de grupo aos quesionrios, observaes e entrevistas... Com essa miscelnea apressadamente absorvida, vamos favela, fronteira, ao interior, ao hospital, universidade. Inevitavelmen-te, quebramos a cara.

    Necessrio pensar, recuar, rever saberes e fazeres, desconstruir nos-sa formao para que ela efeivamente acontea. O conjunto de textos que segue enfrentou modestamente esse desaio.

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    Pricas e saberes psi: os novos desaios formao do psiclogo

    Uma histria sociotcnica do Laboratrio do Insituto de Psicologia

    Luiz FonsecaArthur Arruda Leal Ferreira

    Introduo

    Este trabalho se dedica a discorrer sobre a histria do anigo La-boratrio do Insituto de Psicologia da UFRJ, fechado no incio dos anos 1990. Porm, antes de iniciarmos esta jornada, que remonta ao incio da dcada de 1920, precisamos lanar mo do prprio senido de uma histria desse gnero. Qual seria a importncia de uma histria acerca de um laboratrio que j acumula quase vinte anos de desaivao? Cer-tamente no seria apenas pela importncia de documentar os aconteci-mentos que levaram a tal situao. H tambm a peculiar condio do Laboratrio do Insituto de Psicologia (IP) da UFRJ: junto com os anigos instrumentos, h um intenso trnsito de personagens, locaes e razes, bem como interesses diversos, colaboradores e decretos de lei que de-cidiram os rumos do laboratrio at o im de seus dias, no Campus da Praia Vermelha da UFRJ. Esse laboratrio, portanto, confunde-se com a prpria histria do Insituto de Psicologia e pode servir para uma inte-ressante relexo acerca da regulao da Psicologia, enquanto saber, no Rio de Janeiro e, talvez, no Brasil. Iniciaremos nosso percurso releindo sobre a posio do historiador em relao ao seu objeto, passando pe-las ferramentas necessrias para o trabalho histrico e terminando com a histria do Laboratrio, percorrendo seu trajeto desde 1924 at seu fechamento nos anos 1990, numa histria marcada por muitos persona-gens, lugares, instrumentos e leis, todos misturados num amlgama que ainda hoje caracteriza esse objeto chamado Laboratrio do Insituto de Psicologia.

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    Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    Tecendo uma histria possvel: do presente em direo ao passado

    Ao se fazer uma histria de qualquer tema, preciso atentar para os problemas envolvendo a prpria posio de historiador. Somos consi-tudos pelo nosso tempo histrico, e esse tempo no passa despercebido quando escrevemos uma histria. o que nos aponta Michel de Certeau:

    Certamente no existem consideraes, por mais gerais que sejam, nem leituras, por mais longe que as estendamos, capazes de apagar a paricula-ridade do lugar de onde eu falo e do domnio por onde conduzo uma inves-igao. Essa marca indelvel. No discurso onde fao representar as ques-tes gerais, essa marca ter a forma do idioismo: meu dialeto demonstra minha ligao com um certo lugar. (Certeau, 1976, p. 17)

    O que nos conta Certeau justamente a percepo deste lugar: o historiador, em seu fazer, parte do seu tempo e de onde est para escre-ver sobre o passado. No , como se acredita comumente, apenas uma descrio do passado: exatamente a tomada do passado a parir do mo-mento presente, do que se apresenta ao historiador em seu tempo.

    Certeau nos indica que a histria uma prica fabricada1 pelo histo-riador (termo por ele uilizado e grifado no incio do captulo). Mas, a que nos leva esse entendimento de uma histria preseniicada no senido de uma fabricao? Leva a uma ideia de que a histria um recorte, e esse recorte visa a parir de problemas do presente em direo ao passado, em busca das pricas e experincias de outros tempos:

    Sem dvida excessivo dizer que o historiador tem o tempo como mate-rial de anlise ou como objeto especico. O historiador trata, segundo seus mtodos, os objetos sicos (papis, pedras, imagens, sons etc.) disinguidos no coninuum do percebido, pela organizao de uma sociedade e pelo sis-tema de perinncias prprias a uma cincia. O historiador trabalha sobre um material para transform-lo em histria. Efetua ento uma manipulao que, como as outras, obedece a regras. Tal manipulao assemelha-se fabricao efetuada com o minrio j reinado. Transformando de incio as matrias-primas (uma informao primria) em produtos standart (infor-mao secundria), transporta-o de uma regio da cultura (as curiosida-

    1 A ideia de uma fabricao da histria pelo historiador comum na Escola dos Annales, cole-ivo de historiadores franceses que era composto por Jaques Le Gof, Lucien Febvre, Georges Duby, dentre outros.

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    Pricas e saberes psi: os novos desaios formao do psiclogo

    des, os arquivos, as colees etc.) a uma outra (a histria). Um trabalho histrico paricipa do movimento pelo qual uma sociedade modiicou sua relao com a natureza, transformando o natural em uilitrio (por exem-plo, a loresta em explorao) ou em estico (por exemplo, a montanha em paisagem), ou fazendo passar uma insituio social de um estatuto a outro (por exemplo, a igreja converida em museu). (Certeau, 1976, p. 29)

    Frente a essas relexes propostas por Michel de Certeau, enten-demos, portanto, que a historiograia no se faz do passado ao presente, mas justamente com o movimento contrrio: do presente ao passado, em busca de material para manufaturar e transform-lo em Histria. Mais do que apenas inverter o senido de um pensamento comum e corrente, Cer-teau atenta que a operao historiogrica produz uma histria vinculada ao tempo do historiador. Seus problemas e suas questes iro norte-lo em sua pesquisa, e esta ser a marca indelvel de seu trabalho.

    Nossa marca indelvel ser, ento, o fechamento do laboratrio, que foi uma igura cara para a psicologia em geral por ter dado incio a uma tradio experimental que supostamente a alicerou ao status de ci-ncia. Pariremos dele para buscar e entender exatamente aquilo que no est dado em sua desaivao: o que aconteceu? Havia aividade? Que ipo de aividade? Era relevante? Sobretudo, e de algum modo ousando fechar a questo, qual foi o moivo do fechamento desse disposiivo? Para responder tais perguntas, precisaremos de ferramentas especicas para analisar o material de nossa histria (documentos, textos e testemunhos da poca) que viro na terceira seo deste arigo. Por ora, iremos nos deter em precisar os modos de anlise do material histrico bruto para depois fabric-lo e historiograf-lo.

    Das ferramentas: um laboratrio que circula

    crucial escolher ferramentas conceituais para conduzir nossa an-lise. Tomaremos, neste caso, do modelo de Sistema Circulatrio proposto por Bruno Latour (2001). Este autor fornece uma anlise histrica de um caso especico da Fsica na Frana: a tentaiva de construo, por parte do sico Frederic Joliot, de uma bomba de nutrons. Em suas diversas negociaes(que classiicaramos tanto como tericas quanto como pol-

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    Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    icas e econmicas), Joliot busca alicerar seu projeto da bomba de nu-trons. Latour analisa tais negociaes sob cinco eixos, listados a seguir:

    Eis a cinco ipos de aividades que os estudos cienicos tm de descrever em primeiro lugar caso pretendam comear a entender, de um modo realis-ta, o que determinada disciplina cienica procura: instrumentos, colegas, aliados, pblico e, inalmente, o que eu chamo de vnculos ou ns, a im de evitar a bagagem histrica que vem com a expresso contedo conceitu-al. Cada uma destas cinco aividades to importante quanto as outras, cada uma nutre-se de si mesma e das demais. (Latour, 2001, pp. 117-118)

    Latour (2001) denomina, mais detalhadamente, os cinco compo-nentes da circulao dos conceitos da cincia (aos quais ele d o nome de ns ou vnculos): Mobilizao do Mundo, Autonomizao, Alian-as, Representao Pblica e Vnculos e Ns. Trata-se de analisar o empreendimento cientfico a partir de suas tcnicas de inscrio, sua comunidade cientfica, aqueles nela interessados, os modos com que a populao a percebe e, por fim, o que amarra esses demais componentes: os conceitos.

    Mobilizao de mundo [trata-se de] se deslocar em direo ao mundo, de torn-lo mvel, de encaminh-lo para o lugar das controvr-sias, de assegurar a sua manuteno e de o tornar prprio para um uso retrico (Latour, 2001, p. 146). O socilogo neste ponto trata dos instru-mentos dos quais a cincia se vale para criar suas inscries e proposies.

    Entram os inscritores, ou seja, os artefatos que o cienista usa para transformar o mundo em proposies mveis: medidores (como balanas e termmetros), contadores (como o Geiger, de radiao), separadores (como centrfugas em laboratrios de bioqumica), planilhas (como ques-ionrios nas cincias sociais) etc.; tudo aquilo que transforma a realidade em dados mobiliza o mundo. Neste caso, o laboratrio um grande mobi-lizador, e para nossa anlise este exemplo no ser toa: o laboratrio em questo seria outrora um grande mobilizador de mundo, portanto, parte do circuito por onde pode circular um modo de fazer cincia.

    Porm, no apenas dos instrumentos se valem as cincias. Na pro-duo de seus contedos e leis, existem tambm as marcas da prpria comunidade cienica. Ao propor como circuito do sistema circulatrio a autonomia dos cienistas, Latour deine-o assim porque ele diz respeito

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    ao trabalho atravs do qual uma disciplina, uma proisso, um grupo, um colgio invisvel se tornam independentes, formam o seu prprio critrio de avaliao e de perinncia. (Latour, 2001, p. 148). Ou seja: a prpria comunidade regula sua aividade atravs de seus critrios e regras.

    Que critrios seriam esses? Podemos citar como exemplo exerccios, condutas e conceitos presentes na formao do cienista. A comunidade cienica regula-se a parir deles, e cada membro precisa estar a par disso para seguir em seus estudos, mesmo que seja para problemaizar os acha-dos de seu tempo: Joliot, como nos conta Latour, sabia de problemas com relao quanidade de parculas emiidas aps a isso de um tomo, e trabalhou arduamente para provar que a emisso de parculas era maior do que a esperada pelas predies da poca.

    Alm dos cienistas e seus instrumentos, fazem parte tambm da aividade cienica aqueles que esto diretamente interessados no fazer cienico, tais como os que inanciam e provm recursos diversos e que esto to inseridos como qualquer outro j citado. Desse modo, entram as alianas, como um interessamento (Latour, 2001, p. 149) daqueles que podem prover as comunidades cienicas de recursos. Interessamento2 seria estar entre, atrair os militares para um produto da sica ou os go-vernos para um modelo pedaggico.

    O interessamento algo importante, pois sem ele a aividade cien-ica ica descaracterizada. No exemplo de Joliot, foi necessria muita negociao para que houvesse apoio do governo em seu projeto, espe-ciicamente por parte do Ministrio de Defesa e do Exrcito. Foi necess-rio demonstrar que o projeto da bomba de nutrons poderia servir aos interesses do Ministrio de Defesa, de modo que pudesse servir como precauo ameaa de guerra contra a Alemanha. Nota-se o grau de im-portncia da anlise do circuito dos chamados Aliados: sem eles, parte do empreendimento cienico ica descaracterizado, desprovido de algumas moivaes que alimentam seu interesse.

    Tais aividades, devidamente instrumentalizadas, organizadas em comunidades e com seus interessamentos em curso, ainda carecem 2 Dentro da Sociologia da Cincia e do campo CTS, muitos outros autores iro uilizar este ter-

    mo, como Michel Callon, Vinciane Despret e, especialmente Isabelle Stengers, sempre com o senido de estar-entre. Optamos por uiliz-lo, pois acreditamos ser um conceito-chave para nossa anlise.

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    de novas anlises. E, neste quarto crculo, insere-se o mbito das Representaes, ou seja, a vinculao das aividades com o pblico. Latour adianta: Nele, encontramos a histria das representaes que as sociedades izeram, sucessivamente, das certezas cienicas, da sua epistemologia espontnea. Que coniana depositamos na cincia? (Latour, 2001, p. 150).

    Esse quarto circuito demonstra uma interessante forma de entender a produo cienica, pois coloca os chamados setores sociais no como passivos diante dos avanos cienicos, mas de certa forma aivos. H aqui toda uma gama de possveis jogos de interesse com conluncias e desvios. No caso de Joliot, uma arma atmica signiicaria proteo contra a ameaa da guerra, embora em outros casos possam exisir contraposies.

    Por im, chegamos ao quinto crculo, no qual Latour trata dos elos ou dos ns. neste crculo que lidamos com os conceitos cienicos: fr-mulas, teorias, leis (Latour, 2001, p. 151). Nele acontece a juno dos outros quatro a parir dos elos, que mantm todos os fatores unidos no centro do sistema circulatrio. Todos, como coloca Latour, prontos para traduzir ou desviar os intuitos dos cienistas, a menos que tais elos sejam duros o suiciente para mant-los unidos.

    A colocao das teorias cienicas no im da anlise dos outros cir-cuitos no gratuita e nem visa coloc-las como menos importantes. La-tour (2001) o faz assim para demonstrar que as teorias no antecedem todos os circuitos sempre, e que mesmo que sejam anteriores, depen-dem plenamente dos demais para serem fortes. Joliot s conseguiu que suas teorias fossem adiante aps arregimentar tcnicas, colegas, aliados e consenso, conseguindo tornar suas ideias mais fortes. Vir por limo no torna a teorizao menos importante, apenas abre caminho para ou-tros personagens entrarem na histria.

    Com tais ferramentas, temos o que necessrio para seguir em frente com a histria do laboratrio, parindo dos cinco eixos propostos e da anlise de Certeau (1976) sobre o lugar do historiador. Iniciaremos do fechamento, vamos formao do disposiivo do laboratrio e tentare-mos percorrer o caminho por ele atravessado, tentando capturar traos de sua circulao atravs dos documentos, textos e testemunhos.

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    Da histria do laboratrio: circulando por pessoas, lugares, leis e instrumentos

    Para contar a histria do laboratrio, seguiremos algumas fontes pri-mrias (revistas como os Boleins do Insituto de Psicologia), entrevistas com personagens e historiadores do laboratrio e textos de comentado-res (como Penna, e, especialmente Centofani), de modo a tentar estar o mais perto possvel de seus modos de circulao.

    Optamos por dividir o laboratrio em perodos de funcionamento por entender que suas circulaes so muitas e luidas, no cabendo di-vidi-lo em fases para no soar como certa evoluo da histria do labo-ratrio. H tambm o detalhe de que muitas de suas circulaes no so apenas no senido de um deslocamento sico, mas tambm de funes e uilizaes.

    Por im, a escolha pela periodizao interessante por permiir uma forma mais luida de historiografar o laboratrio, o que no seria possvel se o tomssemos por fases. Por alguns momentos, ser notado que os perodos que escolhemos iro conluir com fases de funcionamento dele, mas para os limos anos esta coincidncia fortuita ir se tornar nebulosa face aos muitos deslocamentos e interferncias tanto internas, das insi-tuies, como externas que o laboratrio iria sofrer.Primeiro perodo: fundao, pesquisa e Insituto (1924 1932)

    Narrar a histria do Laboratrio do Insituto de Psicologia represen-ta percorrer uma trilha formada por trs perodos diferentes, combinando rupturas, vnculos e alguns personagens caractersicos do seu processo de formao e encerramento.

    A dcada a de 1920. Um dos primeiros igurantes nesta composi-o histrica foi o diretor da Colnia dos Psicopatas do Engenho de Den-tro, Gustavo Riedel. Segundo Centofani (2004), ele monta um laboratrio na prpria colnia, com o apoio inanceiro da fundao Gafre-Guinle, composto por equipamentos adquiridos das irmas Boulite, de Paris, e Zimmermann, de Leipzig, conhecidas por fornecerem instrumentos para laboratrios de Psicologia pelo mundo. Mas o protagonista principal s viria em 1924, quando Waclaw Radecki - um psiclogo polons contratado

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    por Riedel - organiza o funcionamento de um laboratrio de psicologia nas dependncias da Colnia. Podemos airmar o protagonismo porque essa criao torna-se to indissocivel de seu criador, a ponto de Penna (1992) dizer que Radecki o laboratrio, clara operao historiogrica do pre-sente sobre um personagem-chave da histria.

    As principais funes estabelecidas no laboratrio se resumiam a: insituio auxiliar mdica, auxiliar de necessidades sociais e pricas, n-cleo cienico e centro didico para formar os tcnicos brasileiros. Penna (1992) descreve as publicaes registradas nos Annaes da Colonia de Psi-copatas, referentes aos anos de 1928 e 1929: so exames realizados em adultos e crianas, testes, cursos e conferncias, trabalhos cienicos so-bre memria, psicotcnica, pensamento, ateno e percepo. Cabe citar que o uso do laboratrio servia em grande parte Colnia de Psicopatas, mas inha parte de seu uso encabeado por Radecki para pesquisas par-iculares a saber, a criao de um sistema de Psicologia de sua autoria, denominado Discriminacionismo Afeivo.

    Grande parte desses resultados so garanidos pelo acervo numero-so e diversiicado de instrumentos, como estesimetros, polgrafos, osci-lmetros e muitos outros, que inham servenia tal como descrita por Cen-tofani: Todos eles, conforme o problema formulado pelo pesquisador, serviam para os mais diversos estudos experimentais sensaes muscu-lares esticas e cinestsicas, relexos, ateno, associao, discriminao, memria, pensamento, processos afeivos etc. (Centofani, 1982, p. 184).

    Alguns dos nomes iguram notadamente nesse cenrio laboratorial, nas funes de assistentes e colaboradores de Radecki: Nilton Campos, Luclia Tavares, Euralo Canabrava, Edgar Sanches e Jaime Grabois. Este limo ser um importante informante para um texto de referncia, como o de Centofani (1982).

    Em 1930, Radecki busca novos rumos para seu trabalho. Aps uma ida Europa para estudos, em 1927, iniciam-se os preparaivos para uma virada no laboratrio. Trabalhos comeam a ser produzidos, pesquisas se aceleram e aliados so recrutados, tudo para um plano de converter o La-boratrio da Colnia de Psicopatas do Engenho de Dentro em um Insituto de Psicologia. Vislumbrando a possibilidade dentro da Reforma Francisco Campos, que regulava as linhas gerais do ensino superior e a criao da Universidade do Rio de Janeiro, Radecki tentava aninhar seu Insituto de

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    Psicologia dentro da Faculdade de Educao, Cincias e Letras. Centofani busca descrever o jogo de interesses:

    Em tal estgio de desenvolvimento de seu trabalho, Radecki comeou a se interessar por uma dimenso maior. Ainal, um laboratrio de psicologia, dentro de uma colnia de psicopatas, ver-se-ia reduzido aos limites que os ins a que fora desinado o obrigariam. (Centofani, 1982, p. 188)

    Dessa forma, atravs de seus contatos e intensas negociaes (espa-o na colnia, inanciamento da Gafre-Guinle, busca por colaboradores e produo cienica), Radecki ampliou o laboratrio a ponto de jusiicar a criao do Insituto. Este, porm, duraria apenas sete meses, tendo sua curta durao dentro do ano de 1932, quando o Insituto de Psicologia foi fundado e fechado. Centofani (1982) sugere que o Insituto foi fechado por no ser capaz de se manter inanceiramente, bem como por no inte-ressar a alguns setores especicos, como a Psiquiatria da poca e grupos catlicos ligados Psicologia.

    Ao longo desse perodo, o laboratrio apresentou-se basicamente como instrumento para a Colnia de Psicopatas e, aos poucos, como base para as pesquisas do psiclogo polons Waclaw Radecki. Tivemos acesso a parte de seus escritos e alguns sugerem um uso aivo do labora-trio para fomentar seu Discriminacionismo Afeivo, sistema que levou adiante nos anos seguintes. Aps o fechamento do Insituto de Psicolo-gia, mudou-se para a Argenina e para o Uruguai, para onde levou seus escritos, publicou um Tratado de Psicologia advindo, em grande parte, das pesquisas realizadas na Colnia e, por im, fundou um centro de es-tudos que culminaria em outro Insituto de Psicologia, na Universidade do Brasil.Segundo perodo: resgate, desaivao e mudana (1937 1964)

    Na trilha cheia de sinuosidades seguida pelo laboratrio, h um momento de interrupo de cinco anos aps o seu fechamento, em 1932. O espao perde o seu senido inicial, vinculando-se ao centro de psiquiatria da Colnia e usado para aulas demonstraivas pelos ex-auxiliares de Radecki.

    Mas essa situao de retrocesso encontra seu im na iniciaiva de Jaime Grabois e Euralo Cannabrava de (re)criar o Insituto de Psicologia

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    em 1937, prevista pela organizao da Universidade do Brasil. Mediante tal conquista, o laboratrio foi incorporado e seu novo diretor, Jayme Grabois, providenciou imediatamente a transferncia dos instrumentos da Colnia para a sede da Universidade do Brasil, localizada no centro da cidade. Centofani (1982) indica que Grabois foi diretor do Insituto de 1937 a 1945, quando ento foi afastado. Nesse perodo, ministrou cursos durante os anos de direo, tendo inclusive nomeado um auxiliar como conservador do laboratrio.

    Os materiais eram uilizados nas aividades da prica de ensino e pesquisa psicolgica e deram um signiicado de completude3 ao Insitu-to. Ao menos no que tange aos informantes mobilizados por Centofani (1982): O instrumental, trazido do Engenho de Dentro e os novos apa-relhos ali projetados tornaram o insituto bastante completo. Este ins-trumental foi fartamente uilizado nos cursos promovidos pelo insituto e em pesquisas.. Este relato, obido por Centofani atravs do prprio Jaime Grabois, supostamente indica aividade do laboratrio, mas ou-tras fontes no apontam para esse senido4.

    Porm, a situao do laboratrio muda quando Nilton Campos assume, em 1948, a direo do Insituto. Tendo ido desavenas com Radecki (Centofani, 1982, p. 198), ele j havia mudado os rumos de sua formao, tendo abandonado as vias experimentais da Psicologia e concentrado inteiramente seu interesse na Filosoia. Dessa forma, Cen-tofani relata que Campos fechou o laboratrio, tornando-o pea de mu-seu5. Essa marca permaneceu mesmo aps seu falecimento, em 1963, quando Antnio Gomes Penna assumiu a direo do Insituto. Para pes-quisar essa poca, temos apenas os Boleins do Insituto de Psicologia, peridico fundado por Penna em 1950.3 A existncia de aparatos como os do laboratrio poderia jusiicar a ideia de um Insituto,

    visto que inha este nome por ser voltado pesquisa, alm de os laboratrios serem notrios por funcionarem como lugar de pesquisa cienica por excelncia.

    4 Conforme relatos informais de ex-professores e colaboradores, o Insituto, nesta poca, era esvaziado de maiores aividades. Resta-nos, com a pesquisa ainda em curso, checar tal infor-mao.

    5 Curiosamente, nos Boleins do Insituto de Psicologia, Campos (1953, pp. 1-3) dedica um Necrolgio ocasio da morte de Radecki, tecendo inmeros elogios acerca de sua jornada como insigador da experimentao psicolgica de alto nvel, possuindo um esprito de dedicao ao trabalho cienico e sendo o grande mentor da invesigao psicolgica no Brasil.

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    Os Boleins foram uma publicao interna do Insituto de Psicologia durante os anos de 1951 a 1973, e servia aos professores e colaboradores para publicarem seus escritos, aulas, conferncias e demais aividades. O grosso das publicaes se consitui de arigos breves sobre temas diversos (normalmente conluindo com a rea de interesse de cada professor ou colaborador6) e alguns informaivos (conferncias de Campos em alguns congressos e eventos e prova de admisso para professor do Insituto, por exemplo).

    No encontramos nenhum indcio claro de aividade frequente do laboratrio nos 23 anos de Boleins, exceo de trs arigos publi-cados em 1969, 1971 e 1972, por Ued Maluf, que relatavam estudos sobre percepo em planrias. H tambm um arigo publicado por Rolf Preuss em 1972 sobre deteco de radiao ionizante por ratos e um arigo publicado em 1964 por Faria Gos Sobrinho sobre condicio-namento e aprendizagem. Temos apenas 5 indcios claros de pesquisa experimental que indicam possvel aividade do laboratrio em 23 anos de Boleins, o que nos faz crer que seu uso era ou diminuto ou at mes-mo nulo.

    O problema aumenta, pois o segundo perodo do laboratrio vai at 1964, ano em que o Insituto de Psicologia muda de lugar e de casa, sediado, ento, na Praia Vermelha e, a parir de 1967, torna-se parte da renomeada Universidade Federal do Rio de Janeiro, aniga Universidade do Brasil. Dessa forma, tecnicamente nenhuma produo laboratorial te-ria sido publicada poca do IP da Universidade do Brasil. No entanto, iremos considerar tais publicaes pertencentes a ele, ainda que fora do segundo perodo por ns demarcado, por fazerem parte de uma deter-minada prica que acompanhou o Insituto em seu descolamento e nos primeiros anos de seu terceiro perodo.

    No entanto, cabe citar que, ainda que o laboratrio parecesse estar desaivado, o Insituto de Psicologia inha uma forssima inclinao para trabalhos psicomtricos. Nos 23 anos de Boleins, fcil encontrar uma srie de estudos com escalas, testes, listas e aplicaes da Psicologia no 6 A tulo de curiosidade, alguns temas e seus autores: Antnio Gomes Penna escrevia sobre

    Histria da Psicologia e sistemas psicolgicos; Eliezer Schneider sobre Psicologia Social; Nil-ton Campos sobre Fenomenologia e Filosoia; Octvio Soares Leite sobre Posiivismo Lgico e Filosoia; Ued Maluf sobre Psicometria e Fenomenologia. Havia inclusive tradues como do De Anima de Aristteles.

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    contexto da testagem psicolgica. Ainda que no laboratorial, o Insituto buscava, em algumas vertentes, parear-se ao que era estabelecido como rigor cienico em algumas Psicologias da poca.

    Recentemente, pudemos obter novos documentos que trazem luz ao problema da produo do laboratrio. O professor Marcos Jardim, aluno da terceira turma do IP-UFRJ (correspondente ao terceiro perodo do laboratrio), cedeu-nos um livro que lista todas as linhas de pesquisa correntes na UFRJ poca de seu lanamento, e na seo reservada ao Insituto de Psicologia estavam listadas quatro linhas, que exporemos a seguir. Cada projeto tem sua existncia jusiicada a parir de trabalhos publicados nos Boleins.

    poca (que acreditamos ser entre 1950 e 1960), o diretor do Insi-tuto era o professor Carlos Sanchez de Queiroz. Todas as linhas so aloca-das sob o tulo Diviso de Psicologia Experimental. Quatro professores so citados como responsveis pelas linhas: Ued Maluf, Roberto de Sou-za Bitencourt, Yolanda Schneider e Octvio Soares Leite, e em seguida listam-se alunos paricipantes dos projetos.

    A linha do professor Ued Maluf inha como tema Determinao dos fatores bsicos da personalidade, segundo os estudos analico-fato-riais do grupo de Illinois, que seriam cricos para o sucesso nas principais proisses liberais. Listam-se 5 trabalhos selecionados ligados pesquisa (um sobre invesigao da personalidade, um sobre uma bateria de tes-tes de seleo e trs sobre uma nova forma de psicoterapia).

    A linha do professor Roberto de Souza Bitencourt inha como tema Homossexualismo. Quatro trabalhos seus, de 1959 a 1961, jusiicam sua linha de pesquisa, e versam sobre Desenvolvimento, Personalidade e Psicanlise ( poca chamada de Psicologia Profunda).

    A linha da professora Yolanda Schneider inha como tema Deter-minar estereipos da mulher predominantes em nosso meio. Invesigar a sobrevivncia de certas imagens da mulher e sua inluncia no com-portamento, e em paricular na formao das aitudes misognicas. Esta a nica linha de pesquisa jusiicada com um trabalho fora dos Bole-ins, de tulo O Papel da Psicologia na Ginecologia, publicado nos Anais Brasileiros de Ginecologia, em 1953.

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    Por limo, a linha do professor Octvio Soares Leite inha como tema Pesquisa piloto sobre homossexualismo: Consiste em deinir operacionalmente certos critrios de medida de masculinidade, de in-teresses sexuais e quanidade de neurose e testar hipteses especicas sobre variveis hormonais, percepveis e neuricas no homossexua-lismo. Seus trabalhos so sobre a padronizao de um quesionrio de personalidade e medidas de resposta pupilar e ataxia.

    Tais trabalhos, no entanto, parecem no jusiicar uma linha ex-perimental que supusesse um laboratrio em funcionamento. Com os aparelhos aniquados existentes, alguns ainda da poca de Radecki (es-tesimetros, dinammetros e outros instrumentos mais ligados a linhas de pesquisa em psicosica), dicil imaginar como os aparelhos auxi-liariam as linhas de pesquisas descritas. Como dissemos anteriormente, sugerem, sim, uma forte tradio experimental vinculada Psicometria, claramente evidente nas pesquisas de Ued Maluf e Octvio Soares Leite, mas no indicam uso do laboratrio (ao menos no em sua totalidade ou potencialidade). Possivelmente exisia uma aividade experimental, mas no necessariamente laboratorial. Sendo o foco de nossa pesquisa o laboratrio, escolhemos por deixar a existncia ou no da aividade experimental em suspenso por ora.

    Temos, portanto, um segundo perodo tambm marcado por leis e alianas: as negociaes dos anigos assistentes culminaram na heran-a dos instrumentos de Radecki para o novo Insituto, em mbito aca-dmico. Porm, tal mbito foi novamente desviado, pois no pareceu interessar prpria comunidade para a qual ele serviria. Guardado, ou nas palavras de Centofani, musealizado, vislumbraria algum uso ape-nas com o aparecimento de novos personagens e fatores.

    Nessa fase do Insituto, observamos o resgate do objeivo de Ra-decki de criar um centro de pesquisas em Psicologia, mas ainda sem formao de psiclogos. Muito foi produzido academicamente, mas o laboratrio especiicamente no apareceu como personagem relevante nessa fase da histria do Insituto. Tal perodo se fecha como o mais dicil de ser historiografado, tendo apenas os Boleins do Insituto de Psicologia como testemunho, cabendo a ns ainda a tomada de relatos de personagens importantes dessa poca, mesmo que raros.

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    Terceiro perodo do laboratrio: reaivao, ensino e desaivao (1964 - 1990)

    Historiar o terceiro perodo do laboratrio, que vai desde 1967 at os anos 90, tem sido uma tarefa laboriosa, pela diiculdade de contatar alguns dos poucos personagens componentes da lima fase. H, no en-tanto, pessoas que chegaram a uilizar o laboratrio antes de seu fecha-mento: os ex-professores Nilton Pinto Ribeiro Filho7 e Cynthia Clark. De-les, extramos o testemunho de Cynthia Clark, bem como de alguns alunos que os conheceram, como Rosinda Oliveira e Marcos Jardim, ambos ex--alunos do Insituto e atualmente professores da casa. Portanto, para o limo perodo, iremos nos valer principalmente de testemunhos obidos em entrevistas.

    Vale lembrar que, nessa poca, a Universidade do Brasil transfor-mou-se em Universidade Federal do Rio de Janeiro atravs de decretos-lei de 1967. Contriburam tambm a regulamentao da proisso de psiclo-go em 1962 e a criao do curso de Psicologia na FNF (Faculdade Nacional de Direito), em 1964. Novamente os decretos-lei entram em cena e mos-tram-se paricularmente importantes no desenrolar dos fatos a seguir.

    A dcada a de 1960. O laboratrio, situado na Praia Vermelha, ga-nha sugesivamente a sala do anigo necrotrio do hospcio, como espao de acomodao dos equipamentos. Segundo Clark, em 1970 houve uma lima compra de instrumentos da empresa americana Lafayete, a qual consitua setenta por cento do maquinrio existente (sendo possivelmen-te a outra parte ainda sobra dos tempos de Radecki), e no havia verba para a manuteno da aparelhagem. Um elemento interessante nos foi apresentado atravs da professora Cnthia Clark: uma foto de um dinam-metro, ainda conservado, pertencente ao laboratrio, com uma inscrio, n 194. O dinammetro jaz em posse da professora, e nos indica que a aparelhagem do laboratrio deveria chegar a quase duzentos itens.

    Conta a professora Cynthia que os laboratrios de psicologia da po-ca eram, em sua maioria, nos moldes skinnerianos (vinculada e estudos de aprendizagem) por serem baratos na manuteno e cumprir a exigncia de um laboratrio para a prica de ensino. Porm, o do Insituto de Psico-logia da UFRJ inha um diferencial: a diversidade de equipamentos forma-7 Infelizmente, enquanto esta pesquisa estava em curso, o professor Nilton veio a falecer, em

    julho de 2013. Tal acontecimento apenas reforou a diiculdade de nossa pesquisa.

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    va, de fato, um laboratrio de psicologia mais completo, inclusive sendo visitado e fotografado por interessados da Alemanha, que inham grande interesse em conhec-lo, uma vez que coninha instrumentos raros vindos da empresa Zimmermann, de Leipzig.

    Apesar de bem instrumentado, de acordo com Clark, o laboratrio se arrasta numa situao nova, tal qual anuncia o inal da segunda fase, pois j no cumpre mais com sua funo inicial das outras fases, sendo uilizado como sala de aula para aividades pricas de algumas discipli-nas, como: percepo, moivao e emoo, pensamento e linguagem. O laboratrio era usado para ins didicos, pois estava to defasado que no dava mais para produzir com aqueles equipamentos, airma Clark sobre a sua servenia. Conirmamos tal informao com Rosinda Oliveira, aluna de Clark durante a dcada de 1980 e atual professora do Insituto: O laboratrio era usado para ins didicos. Lembro de reservar a sala para estudos experimentais. O Insituto no inha vocao para a Psicolo-gia Experimental, no entanto.

    Mesmo diante da necessidade de laboratrios em Insitutos de Psi-cologia, suas aividades so relegadas ao segundo plano e sucumbem em meio obsolescncia e ao desinteresse polico, expe Clark: Alm de um laboratrio ultrapassado, no acompanhamos a evoluo da tecnologia e da psicologia que permite a invesigao de determinados processos, sem falar que no havia interesse em manter o laboratrio. As nicas evidn-cias de possvel uso do laboratrio (no conirmado) para ins de pesquisa experimental encontram-se nos 5 arigos j citados publicados por Maluf, Sobrinho e Preuss, entre 1964 e 1973.

    Findamos, portanto, o terceiro perodo, que culmina no fechamen-to do laboratrio, indicado por Clark como sendo por volta do incio dos anos 1990. Um laboratrio marcado por um cunho didico, no ensino das aividades cienicas da comunidade atravs do ensino, mas sem aliados, interesses pblicos e conceitos fortes que amarrassem suas aividades. Portanto, sem circular.

    Reforamos o relato de Clark acerca da falta de interesse e inan-ciamento como principais moivos para o fechamento do laboratrio, mas atentamos para um detalhe sociotcnico: com o ganho de fora que as Psicologias de cunho Cogniivista iveram, a parir de 1950, mui-to comeou a se produzir atravs de modelos computacionais. O labo-

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    ratrio do Insituto, no entanto, respondia a uma tradio de virada do sculo, o que o fez obsoleto frente s pricas atuais. A sentena de Rosinda Oliveira sobre o Insituto no ter vocao experimental provavelmente corrobora essa situao, mas h que considerar certos modos novos de tcnicas de inscrio e mobilizao do mundo nos sa-beres e pricas psi.

    Concluso

    O Laboratrio do Insituto de Psicologia da UFRJ detm uma longn-qua histria, riqussima em detalhes, mas ainda obscura em alguns pon-tos. Porm, ica evidente sua singularidade histrica: mistura-se durante bom perodo com a prpria histria da formao em Psicologia no Rio de Janeiro.

    O laboratrio caracterizou-se por ter um intenso trnsito: muitos personagens deiniram seus usos e funes em todos os trs perodos, notadamente Waclaw Radecki e Nilton Campos, o primeiro fundando um laboratrio de cunho experimental, e o segundo engavetando este uso ao musealiz-lo. Apenas Ued Maluf parece, em 1970 aivar seus usos para produo de conhecimento, mas a baixa publicao talvez indique que o laboratrio j no era mais produtor de conhecimento validado como cienico, mas sim um centro didico para as disciplinas bsicas de Psi-cologia Geral e Experimental. Seu trnsito no foi da ordem do uso, mas de seus deslocamentos e mudanas de conigurao, pois ele mudou de funes, localidades e de estrutura ao longo do tempo.

    Tambm foi deinido por seus instrumentos vindos direto da Ale-manha, em 1920, alguns dos quais subsisiram at 1970 e 1980, duran-te os limos usos do laboratrio. Porm, ao longo do tempo, no eram to usados nas pricas do laboratrio: no segundo perodo, na gesto de Campos, eles j no inham mais uso e muitos foram musealizados. Foram resgatados para uso pelos professores do laboratrio do terceiro perodo, mas j eram minoria, consituindo talvez apenas 30% do cabedal de ins-trumentos, segundo Clark. Revelam-se, tambm como pouco prioritrios, pois mesmo com a compra de 1970 no havia verba para sua manuteno. Curiosa repeio do problema que Radecki enfrentou com seu Insituto: ambos no inham verba suiciente para se manterem e ambos no ge-

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    Pricas e saberes psi: os novos desaios formao do psiclogo

    ravam renda para sua manuteno, alm de no despertarem interesse.Por im, temos os decretos-lei importantes para o laboratrio. Por

    vezes fecharam e abriram Insitutos, inauguraram etapas e as indaram. Algumas leis foram feitas por conta de aliados interessados no Insituto, que carregou consigo o laboratrio. Porm, com o tempo, cada vez menos o Insituto ligava-se ao laboratrio: Se foi a base do primeiro Insituto e legiimou a criao do segundo, serviu ao terceiro apenas como prica de ensino. Um decaimento de sua importncia gradual, ainda que fosse um legiimador das aividades dos trs Insitutos.

    Conclumos nossa anlise percebendo que o laboratrio circulou, como props Latour (2001), pelos cinco crculos do sistema circulatrio. Porm, a circulao que no incio rendeu-lhe fora foi enfraquecendo, o que tornou dicil ligar tantos fatores unidos. Perdendo sua fora vinculan-te e seu circuito, encontrou seu im. Vimos tambm a operao da qual Certeau tratava, ao passo que o laboratrio consituiu-se de vrias ma-terialidades e pricas, as quais organizamos nesta proposta de histria: instrumentos, pessoas, leis, lugares, todos personagens diversos dessa fabricao. Porm o aspecto mais interessante desta operao histrica buscar saber porque este espao, o laboratrio, exerce tal fascnio junto aos pesquisadores em Histria da Psicologia. Qui a busca de uma ori-gem ou legiimao s pricas deste campo. Mas que podem ceder es-pao a outras operaes, que talvez revelem o seu espao frgil, precrio e, principalmente, raro diante de uma extensa rede que os (i) mobilizaria. Talvez seja este ipo de operao histrica que gostaramos de aivar e de ver mais presentes nos atuais estudos de Histria de Psicologia no Brasil.

    Referncias

    Campos, N. (1953). Necrolgio Waclaw Radecki (1887 - 1953). Boleim do Ins-ituto de Psicologia, 3(3), 1-3.

    Centofani, R. (1982). Radecki e a psicologia no Brasil. In M. A. M. Antunes (Org.), Histria da psicologia no Brasil: primeiros ensaios (pp. 177-208). Rio de Janeiro: EDUERJ/Conselho Federal de Psicologia.

    Certeau, M. (1976). A operao histrica. In J. Le Gof & P. Nora (Orgs.), Hist-ria: novos problemas (pp. 17-48). Rio de Janeiro: Francisco Alves.

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    Latour, B. (2001). O luxo sanguneo da cincia: um exemplo da inteligncia cienica de Joliot. In B. Latour (Org.), A esperana de Pandora (pp. 97-132). Bauru, SP: Edusc.

    Penna, A. G. (1992). Sobre a produo cienica do laboratrio de psicopatas da Colnia do Engenho de Dentro. In A. G. Penna (Org.), Histria da psico-logia no Rio de Janeiro (pp. 31-74). Rio de Janeiro: Imago.

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    Ressonncias do pensamento de Michel Foucault no Brasil - para alm das categorias sociolgicas

    Heliana de Barros Conde Rodrigues

    Introduo

    Com base em problemaizaes surgidas ao longo de pesquisa an-terior, voltada para a caracterizao das cinco visitas de Michel Foucault ao Brasil, o presente texto visa a delimitar, como aspecto fundamental de uma invesigao em curso, um modo singular de aproximao aos efeitos e s ressonncias do pensamento do ilsofo francs em nosso pas.

    Para tanto, algumas categorias de cunho sociolgico (melhor dizen-do, ligadas sociologia de inspirao durkheimiana) recepo, penetra-o e difuso , habitualmente empregadas em invesigaes do mesmo ipo, estaro sob visada crica. Como alternaiva, ser priorizada uma abordagem fundada em disperses, anexaes e permeabilizaes, con-forme sugerida pelo prprio Michel Foucault ao longo de entrevistas e debates. Nesse intuito, categorias como profanao da sociedade como um todo, acontecimentalizao, problemaizao e temporalidades no cronolgicas sero postas em discusso na qualidade de ferramen-tas virtualmente aptas a conferir novo estatuto aos estudos de histria dos sistemas de pensamento.

    Passos e descompassos

    Em pesquisa concluda, Michel Foucault no Brasil: presena, efeitos e ressonncias, foram exploradas as cinco visitas do ilsofo a nosso pas (1965, 1973, 1974, 1975 e 1976). Para tanto, trs diretrizes nos serviram de ancoragem: a consituio de uma audiograia, ou seja, de uma ca-racterizao do modo como Foucault ocupou, entre ns, os espaos de fala (Arires, 2006); uma avaliao crica da funo desempenhada pelas

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    viagens na produo foucauliana (Gondra & Kohan, 2006); e, em espe-cial, uma nfase nos disposiivos de poder em que Foucault se viu imerso, levando-se paricularmente em considerao que todas as visitas ocorre-ram durante os anos da ditadura militar (Foucault, 1979a). Apresentare-mos, de incio, alguns aspectos invesigados com apoio em tais diretrizes que, paralelamente, abriram caminho elaborao de categorias anali-cas, objeivos e procedimentos para uma nova pesquisa, ainda em curso, a serem detalhados na sequncia do texto.

    Em 1965, a Faculdade de Filosoia, Cincias e Letras da Universida-de de So Paulo (FFCL-USP) recebeu Foucault como uma coninuidade do que ali h muito se praicava: a anlise interna de textos ilosi-cos e literrios, ento posta na ordem do dia como mtodo estrutu-ral. Mais perturbadoras do que as famosas epistemes de As palavras e as coisas livro em preparo, sobre o qual versaram as conferncias do ilsofo eram as frequentes incurses do aparato repressivo sobre a Universidade.

    No entanto, essa presumida coninuidade com os cnones defen-didos pela misso francesa, to importante para a consolidao da FFCL--USP entre as dcadas de 1930 e 1960, rompe-se mediante alguns acon-tecimentos. Segundo fontes documentais, Foucault quem airma, talvez ironicamente, ser a faculdade paulistana um bom departamento francs de ultramar (Ribeiro, 2005; Rodrigues, 2010a). Com isso, convida a que obras como a de Arantes (1994) ponham em questo as certezas ali vigen-tes, principalmente quando comparadas s pricas do grupo Clima uma ilosoia uspiana voltada anlise do coidiano (Pontes, 1998) e s do Insituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) organizao carioca inte-ressada em formular projetos policos para o Brasil, dizimada com o golpe de 1964 (Toledo, 1982).

    Porm, Foucault no conviveu sequer com o grupo Clima, que po-ca se encerrava (Rodrigues, 2012a). E vale lembrar que Histria da Loucu-ra apenas comea, ento, a deixar as empoeiradas prateleiras da seo de Histria das Cincias em direo s ruas, carregado pelos anipsiquiatras ingleses. Sendo assim, Foucault mais absorvido, naquele momento, pe-las polmicas epistemolgicas em torno do Estruturalismo, por exemplo, do que por suas explosivas contribuies aos movimentos de desinsitu-cionalizao psiquitrica.

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    Em 1973, quando retorna ao Brasil, ele j outro: cheiara o De-partamento de Filosoia da Universidade de Vincennes, fora eleito para o Collge de France, criara o Grupo de Informao sobre as Prises (GIP). Conquanto a Literatura j no o entusiasme como na dcada anterior, o convite ao Rio de Janeiro provm do Departamento de Letras da Ponicia Universidade Catlica (PUC-RJ), atravs de seu diretor, Afonso Romano de SantAnna.

    Muito se falou, nos limos tempos, das desordens promovidas pelo ilsofo nessa temporada carioca: escapadas Lapa, contatos extra-oi-ciais com estudantes e esdrxulas consultas, com ar de mistrio, sobre o Estruturalismo (SantAnna, 2010). Mas h surpresas maiores: a srie de conferncias A verdade e as formas jurdicas pouco se assemelha ao epistemolico As palavras e as coisas, remetendo decididamente aos dis-posiivos de saber-poder (Foucault, 1974/1996); o grupo que se acerca de Foucault e com ele desenvolve uma mesa redonda incorpora muitos psi e outros interessados no tema da subjeividade, dentre os quais Helio Pellegrino, Chaim Katz, Roberto Machado, Lus Felipe Baeta Neves, Lus Alfredo Garcia Rosa e Magno Machado Dias.

    Acrescente-se que Foucault j no , entre ns, um ilustre desco-nhecido: as editoras Tempo Brasileiro (Foucault, 1968; 1971a; 1972) e Vozes (Foucault, 1971b; 1971c) haviam se encarregado de publicar entre-vistas, arigos e livros. Histria da Loucura se tornara referncia corrente, mediante a traduo para o espanhol e/ou via divulgadores brasileiros. Assim, em lugar de aparecer como austero ilsofo, ele convocado a debater temicas candentes da atualidade (o poder psiquitrico, a inds-tria da loucura, a suposta revoluo psicanalica), passa a interessar a um pblico bastante diversiicado e torna-se cada vez mais enigmico para as classiicaes disciplinares insitudas.

    A viagem de 1973 prossegue com trs dias em Belo Horizonte. Pes-quisa na imprensa e entrevistas facultaram-nos minuciosa apreciao dessa estada (Penzim & Rodrigues, 2011), durante a qual Foucault fez conferncias em hospitais psiquitricos e realizou uma apresentao na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). De modo ainda mais inten-so do que ocorrera no Rio, reluzem as aproximaes ao ilsofo que tm por base a crica da psiquiatria. Ainda que a imprensa belorizonina exi-bisse uma aitude entre o total desconhecimento e o repdio, professores

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    e estudantes preservaram memrias desse momento capazes de desen-caminhar o tempo cronolgico (Cronos), produzindo inlexes em direo ao tempo oportuno (Kairs) e ao jorro imanente do tempo (Ain). Nesse caso, a presena de Foucault em BH costuma ser associada de Franco Basaglia, datada de 1979.

    A visita de 1974 talvez seja a mais conhecida, pelos impactos pro-duzidos no movimento sanitrio, que tentava resisir s tendncias pri-vaizantes que prevaleciam sob o governo ditatorial. Paradoxalmente, os focos resistenciais inham por locus privilegiado cursos de ps-graduao em medicina social, medicina preveniva etc., cuja abertura fora favo-recida pelo mesmo governo (Pcaud, 1990; Rodrigues, 2010b).

    No Insituto de Medicina Social da Universidade do Estado da Gua-nabara - UEG (atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ), Foucault pronuncia seis conferncias, que sem demora circularam, mime-ografadas. Dentre elas, O nascimento da Medicina Social pode ser consi-derada a de maior impacto: o ilsofo defende que a medicina moderna sempre fora social, sendo o colquio mdico-paciente apenas um, e no o mais importante, de seus aspectos; medicina e corpo so ditos reali-dades biopolicas (Foucault, 1979b, p. 80), no que hoje reconhecido como primeira meno a esse famoso conceito.

    No ter sido fcil acatar tais postulaes, pois elas obrigavam os adeptos da medicina social, cujas palavras de ordem incluam um radical contraponto medicina individual, a reconhecer que seus discursos, pro-jetos e pricas talvez ivessem por solo aquilo mesmo que diziam comba-ter, ou seja, a produo de corpos teis, dceis, de fora polica reduzida. Mesmo a tese de Sergio Arouca, que abordava o dilema prevenivista (Arouca, 2003), defendida em 1976 na Universidade Estadual de Campi-nas (UNICAMP), no se arrisca a incluir uma autocrica fundamentada em O nascimento da medicina social. Embora Foucault seja um dos autores de referncia do trabalho, suas contribuies restringem-se anlise do discurso prevenivista; para a anlise das pricas, apela-se a um marxista, Louis Althusser. H, aparentemente, outro dilema em pauta: como aco-lher Foucault sem abandonar o marxismo?

    A despeito disso tudo, a parir de ento o pensamento foucauliano se espraia por mbitos ainda mais variados. Conquanto os historiadores tardem a acolh-lo (Rago & Rodrigues, 2011), os primeiros trabalhos vol-

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    tados realidade brasileira logo viro, pela pena dos psi e de ilsofos a eles prximos: Da(na)o da norma (Machado et al., 1978) e Ordem mdica e norma familiar (Costa, 1979). Tambm ao inal da dcada de 1970 ser publicada a coletnea Microsica do poder (Foucault, 1979c), composta de arigos, entrevistas e aulas.

    Mas no nos apressemos em estabelecer um tranquilo diagnsico de recepo, penetrao e difuso do pensamento de Foucault no Brasil. Em 1975, quando, de novo a convite da USP ele retorna, as obras aci-ma mencionadas ainda no vieram a pblico e, aparentemente, o que fora previamente combinado o aborrece, soando a repeio e mesmice: Freud e Marx ao ininito escreve ento a Daniel Defert (2002, p. 48).

    Uma srie de acontecimentos logo desmenir essa apreciao. O avano da linha (mais) dura do regime sobre pessoas suspeitas de liga-es com o Parido Comunista conduz o ilsofo, em 23/10/1975, as-sembleia estudanil. No dia seguinte, a Folha de So Paulo noicia: Mi-chel Foucault... fez um pronunciamento de solidariedade aos estudantes. Disse, ainda, que pretendia suspender as aulas que est dando (FSP, 24/10/1975, p. 17). No mesmo dia 24/10, agentes da represso vo TV Cultura para prender o jornalista Vladimir Herzog. Este consegue autori-zao para apresentar-se somente no dia seguinte tristemente famosa Rua Tutia e efeivamente o faz, na manh de 25/10. No meio da tarde, de to torturado, est morto. Se Foucault j pensava em suspender seu curso, no mais hesita em faz-lo: em 27/10, irrompe uma greve na USP e ele l um texto sobre o assassinato do jornalista, transformado em pan-leto pelos estudantes. Em 31/10, est presente s exquias de Herzog na Praa da S.

    Embora se considerasse, desde ento, seguido pelas foras de segu-rana, Foucault permaneceu no Brasil at 11 de novembro. Sabe-se, hoje, que estava sob vigilncia mesmo antes do envolvimento nos protestos. Documento obido no Arquivo Nacional, oriundo do Servio Nacional de Informaes (SNI), assim registra sua presena na assembleia universit-ria: O nominado ... pertence corrente ani marxista conhecida na Fran-a como Democrata Socialista. Foi manobrado a tomar posio contrria ao governo ... por Maria Sylvia de Carvalho Franco Moreira e Marilena Chau ... conhecidas pela ao esquerdista na Faculdade. Soa no mni-mo paradoxal perceber que enquanto a intelectualidade brasileira discute

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    se Foucault , ou no, marxista, o SNI se considere onisciente quanto s posies policas por ele adotadas e disso se aproveite para condenar professores esquerdistas.

    Aps a interrupo do curso na USP, Foucault procurado pela im-prensa alternaiva, no caso o peridico Versus. No primeiro nmero des-sas pginas da utopia vem cena uma longa entrevista. Diferentemente do que ocorria na grande imprensa, na qual seus aspectos sico-morais costumavam ter primazia, Foucault pde, ento: apresentar a Microsi-ca do poder em contraposio s perspecivas marxistas e estruturalis-tas; aclamar O Ani-dipo como a primeira crica de esquerda dirigida Psicanlise; exprimir seu cansao com a dupla Marx e Freud; defender as lutas minoritrias; afastar o intento de Vigiar e Punir, recm-publicado na Frana, de mera reforma das prises, associando-o ao quesionamento de todos os micropoderes vigentes.

    Indagado sobre seus mtodos de trabalho, airma: Minha histria pessoal no tem grande interesse. A no ser pelos meus encontros, ou situaes em que vivi (Foucault, 1975/2007, p. 32). Face a perguntas so-bre a Universidade, assevera: Os Baudelaires de hoje so professores na Sorbonne ... Ao mesmo tempo, desaparece o papel de profeta universal do intelectual (pp. 33-34). Finalmente, provocado por uma questo rela-iva necessidade de uma sntese de saberes e lutas, conclui: O que faz a sntese o processo histrico... Se o intelectual quiser fazer a sntese dessas vrias aividades ele retomar o seu velho papel solene e inil (p. 34).

    Podemos reencontrar essas referncias ao lugar especico do inte-lectual, ariculadas rejeio das snteses totalizadoras, na entrevista con-cedida, ainda em 1975, ao Jornal da Tarde. Em resposta pergunta Como possvel que Foucault seja de esquerda?, ele retruca:

    Foi apenas aps 1968, no curso desse processo que no consituiu exata-mente o triunfo do pensamento marxista, mas que, ao contrrio, foi um verdadeiro empurro nele, que esses problemas [do hospital, da sade, da psiquiatria, da priso, da educao] passaram a ocupar a relexo polica. Pessoas que no se interessavam pelo que eu fao passaram de repente a me estudar. E eu me vi implicado com elas ... Como vocs querem: fui anexado, ou, a parir de um certo momento, recebi direitos de cidadania. (Foucault, 1975, p. 12)

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    Sabedores da intransigente defesa dos movimentos de minorias por parte do ilsofo, os entrevistadores indagam se ela no seria in-compavel com a crica do humanismo. E Foucault assim contesta: Se essas lutas so conduzidas em nome de uma essncia determinada de homem, ... sero conduzidas em nome do homem abstrato, do homem normal, de boa sade, que o precipitado de uma srie de poderes (p. 13).

    Ao longo dessa temporada, cumpre ainda evocar uma ida UNI-CAMP, a convite do Centro Acadmico. A traduo icou a cargo do profes-sor Lus Orlandi que, em entrevista, destaca:

    No me era fcil acompanhar sua fluncia ....num certo momento, por exemplo, quando ele fez a crica das snteses totalizadoras, eu pude dizer a ele que minha traduo buscou especiicar a crica das snteses reacion-rias. Ele concordou, sorrindo e dizendo: isso mesmo, somos contra as sn-teses reacionrias1.

    Tambm a professora Mariza Corra (2001), em arigo de tom me-morialsico, evoca essa presena em Campinas:

    Foucault teve um grande impacto terico sobre os pesquisadores brasilei-ros desde aquela visita e provocou tambm grande impacto em Dona Lola, empregada domsica de minha casa, uma senhora negra, ao levantar-se cortesmente da almofada em que estava sentado, sua passagem. (p. 16)

    J Plinio Wander Prado Jnior, ento aluno da UNICAMP e hoje pro-fessor da Universidade de Paris VIII, assim se dirige, por e-mail, a Mariza Corra:

    naquele clima terriicante de inimidao sob o qual vivamos, Foucault teve a coragem de denunciar o crime [assassinato de Herzog] publicamente. A soire que passamos com ele na casa de vocs resta para mim memorvel ... A um dado momento ... ira do seu bolso um pedacinho de papel ordi-nrio e amarrotado, desdobra-o e ... me pergunta se eu conheo os nomes escritos na folha, e se eles so realmente bons; no papel iguram, anota-dos mo, trs ou quatro nomes, eu me lembro de dois: Cartola e Nlson Cavaquinho2.

    1 Entrevista realizada por Margareth Rago, via correio eletrnico, 14/06/2010.2 Correio eletrnico de Plnio Wander Prado Jnior a Mariza Corra, agosto de 2010.

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    Essas narraivas encaminham menos a uma histria pessoal de Foucault do que a encontros ou situaes por ele vividos e jamais despro-vidos de interesse analico, pois reaivam: o gosto pelo contato no-oi-cial com estudantes; a rejeio s snteses reacionrias; os nexos entre seu pensamento, o feminismo, os estudos de gnero; e o contato com a cultura brasileira extrauniversitria.

    Vale adicionar que Foucault ainda esteve, em 1975, na UERJ (Macey, 1993, p. 350). Segundo Guilherme Castelo Branco, poca estudante de Filosoia, colegas o animaram a assisir apresentao de um professor francs. Acrescenta lembrar-se menos do tema especiicamente aborda-do que da ligao estabelecida por Foucault entre ilosoia e vida aspec-to que teria marcado o hoje professor universitrio para o resto de sua existncia3.

    Em 1976, Foucault volta pela lima vez. Muito se tem falado em te-mores infundados quanto a tal retorno, visto que nenhum problema teria enfrentado. Ocorrncias associadas a essa presena, porm, talvez mais conirmem as teorizaes foucaulianas sobre os modos de exerccio do poder do que descartem a vigilncia sobre seus passos (Rodrigues, 2012b; 2012c).

    Em Salvador, so discressimos, na Faculdade de Filosoia e Cin-cias Humanas da Universidade Federal da Bahia (FFCH-UFBA), os cartazes que divulgam a primeira apresentao, em 25/10: Hoje, conferncia do Professor Foucault, e nada mais. A grande imprensa no anunciou a che-gada do ilsofo cidade, embora tenha publicado matrias a posteriori. A cobertura detalhada estaria a cargo da imprensa alternaiva: o exemplar do peridico Opinio inclui, alm da reportagem Interlocutores ou inimi-gos? (Amaral, 1976) na qual a polmica com o marxismo reaivada, somada a desencontros com o lacanismo , um arigo sobre o vindouro Histria da sexualidade 1 (Katz, 1976) e a traduo de um texto foucaulia-no recente (Foucault, 1976).

    Outras edies em alternaivos baianos surgiro mais tardiamente: primeiro, trs pginas em Invaso, nanico de exemplar nico. A primeira pergunta dos entrevistadores previsvel: Em que consiste seu pensa-mento, em linhas gerais?. No tanto a resposta: Eu no funciono como um pensamento ilosico clssico como os grandes ilsofos do sculo 3 Entrevista concedida a Heliana Conde e Maria Izabel Pitanga, 14/09/2011, Rio de Janeiro.

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    XX. Eu no tenho pensamento, tenho obsesses. (Foucault, 1977a, p. 25). Pouco adiante, indagado sobre o materialismo histrico, a niidez da r-plica leva a suspeitar que Foucault apenas repita o muitas vezes dito, mas quase impossvel de ser ouvido naquele momento brasileiro:

    Podemos fazer dois usos diferentes do materialismo dialico ou histrico ... um que consiste precisamente em recodiicar toda a histria para re-produzir uma representao ilosica dela, e uma uilizao metodolgica, quase tcnica, de um certo nmero de conceitos ... No primeiro caso, voc tem o marxismo tal como praicado nas universidades ... e no segundo caso, voc faz um uso tico e estratgico do marxismo ... que permite deci-frar uma situao, analisar um tempo histrico etc. (p. 25)

    Mas ser um peridico anarquista aquele que garanir, embora com atraso, os mais preciosos registros da passagem pela capital baiana. Dividida em duas edies, a conferncia As malhas do poder foi publicada em Barbrie (Foucault, 1981; 1982). Segundo Pereira (2010)4, se no incio da dcada de 1980 o texto circulou de modo restrito, seguiu sendo repro-duzido atravs de processo xerogrico, tornando-se para alguns estudan-tes da FFCH uma espcie de texto cult, que vez por outra encantava quem o descobria ... ele coninua sendo redescoberto por jovens, hoje mais que outrora (p. 8).

    De Salvador, Foucault segue para Recife. Antes de sua chegada, muitos compromissos inham sido agendados com proissionais e acad-micos, interessados em contatos mais prximos do que os possveis em conferncias oiciais. A oicialidade, entretanto, predominaria: segundo as lembranas de Silke Weber, sua anitri na cidade, s vsperas dos en-contros algum sempre telefonava para desmarc-los, em claro indica-ivo do temor que as pessoas experimentavam em se verem associadas a Foucault. Este, que ignorava o que estava acontecendo, queixou-se do exagerado tempo livre de que dispunha, acusando os organizadores da temporada de o terem colocado em uma cage dor referindo-se hos-pedagem no Hotel do Sol, no to luxuoso assim, mas situado em frente ento paradisaca Praia de Boa Viagem5.4 Pereira, C. L. (2010). Apontamentos sobre os devaneios soteropolitanos do arquivista feliz. In

    Primeiro Encontro dos Programas de Ps-graduao da UFBA (trabalho completo, Salvador: UFBA), mimeo.

    5 Entrevista concedida a Heliana Conde, 28/04/2010, Recife.

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    Depois de Recife, Foucault se dirige a Belm. Sua apresentao fora minuciosamente planejada, conforme relata o professor Benedito Nunes (2008):

    para assegurar a presena de pessoas que inham um conhecimento de francs e que estavam manifestamente interessadas, eu iz uma relao que contava sessenta assistentes ... Foucault foi extraordinrio ... Eu fazia a intermediao, as pessoas faziam as perguntas, eu traduzia, ele dava as respostas e eu passava para a assistncia. (pp. 21-22)

    A idelidade da assistncia no pde garanir a sobrevivncia des-ses ditos foucaulianos na Universidade Federal do Par (UFPA): Tive-mos um jantar de despedida em um restaurante ... Ainda havia uma moa paulista que nos acompanhava sempre, e todas as itas gravadas das palestras do Foucault foram roubadas do carro dela. (p. 22)

    Talvez certa decepo se tenha seguido a essa ocorrncia. Mas houve riscos de desaparecimentos outros:

    Menos de uma semana depois ... fui chamado pelo diretor ... me dizendo que o SNI estava pedindo a relao dos frequentadores. Eu disse: eu no dou a relao. Sa de l e fui diretamente falar com o reitor. Ele foi muito correto, e at corajoso. Ele me disse para no dar a lista ... Havia uma vigilncia at nesse ponto. (p. 22)

    Portanto, se Foucault no teve problemas para voltar ao Brasil, aqueles que dele se aproximaram poderiam t-los experimentado, no fosse a conduta ica de alguns universitrios de Belm.

    O Foucault-corpo no mais regressou a nosso pas. Porm, como at este ponto procuramos mostrar, na segunda metade da dcada de 1970 j havia entre ns tanto um corpus bibliogrico crescente (Fou-cault & Deleuze, 1974; Foucault, 1977b; 1978a; 1978b) como uma srie seja de passagens, seja de entraves a seu pensamento, tanto no mbito acadmico quanto no extra-acadmico. Tais circunstncias nos conduzi-ro, em seguida, ao problema principal do presente texto, qual seja: de que maneira invesigar os efeitos e as ressonncias do pensamento de Foucault no Brasil?

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    Por novas peas

    Sobre pea teatral exibida em dezembro de 2011, noicia a Gazeta do Povo:

    Quantas vezes voc j se sentou na plateia de uma palestra e se irritou com a profuso de citaes de autores que desconhece? ... A situao ... vira uma sira nas mos de Alessandra Colasani, autora, diretora e atriz de Aniclssico. ... Vesida como uma bailarina em vermelho sada de um qua-dro de Edgar Dgas, a atriz profere uma palestra com moldura intelectual, mas que no tem p nem cabea. ... A certo ponto, ... conta uma anedota de uma suposta visita de Michel Foucault ao Rio de Janeiro. O venerado ilsofo francs se torna ento referncia recorrente .... Ela encerra a pea abrindo para perguntas da plateia (em Curiiba ningum disse um a). Ela mesma simula perguntas complexas que teriam vindo de crianas e adoles-centes superdotados.6

    No toa, justamente Foucault o personagem escolhido para a sira: de um lado, por ser um nome presente em qualquer curso universi-trio ou movimento social que se preze; de outro, porque traz-lo cena , por vezes, capaz de emudecer interlocutores que no se considerem superdotados.

    Brincadeiras parte, remete-se ao conecivo e, to frequentemente associado ao nome do ilsofo, fazendo-o bifurcar. Num primeiro aspecto, Foucault promove modulaes: a tudo se conecta, dentro da academia ou fora dela, facultando, inclusive, que esses dentro e fora percam seus con-tornos. Numa segunda direo, contudo, ao invs de promover diluio de fronteiras, o e que se acrescenta a seu nome faz-se a marca de um pan-teo: trate-se de saberes, pricas ou movimentos, verem-se associados a Foucault os estraiica (e tambm a ele).

    A intelligentzia sairizada no espetculo teatral acima mencionado talvez preferisse, em relao ao que ora trazemos a debate, um encami-nhamento mais simples, pois o que est em pauta muito se aproxima de um tema considerado mais clssico que aniclssico: a recepo, penetra-o e difuso do pensamento de Foucault no Brasil. Aos eventuais escapes 6 Disponvel em htp://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?id=1095978,

    acesso em 5/3/2012.

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    Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    em relao a esse pressuposto nos dedicaremos de agora em diante, lan-ando mo, para tanto, de novas peas ou ferramentas.Alguma coisa de intermdio

    A construo das categorias analicas a empregar na pesquisa hoje em curso, relaiva aos efeitos e s ressonncias do pensamento de Mi-chel Foucault no Brasil, foi em muito favorecida pela leitura da tese-livro De vagos y maleantes. Michel Foucault en Espaa (Galvn, 2010). Chama ateno, inicialmente, a apresentao do trabalho, a cargo de Francisco Vazquez Garcia, que arrisca um contraste: coexisiriam em solo espanhol duas sries de intelectuais interpelados pelo pensamento de Foucault, apelidveis, respecivamente, foucaulistas e foucaulianos. Os pri-meiros estariam empenhados em decifrar os textos do mestre, visando a enquadr-lo em algum dos ismos que fazem a fortuna da histria oicial da Filosoia; j os limos uilizariam a caixa de ferramentas montada por Foucault para efetuar pesquisas empricas em conexo com uma in-terrogao crica do presente. Conquanto essa diferenciao soe dema-siado deiniiva, excessivamente acabada, ela evoca alguns dos pontos levantados ao longo da seo precedente: tambm no Brasil, agentes, disciplinas e movimentos sociais eventualmente r