Livro Brasil Seguranca

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Segurança do Brasil e seu entorno

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  • A Amrica do Sul vive um momento bastante especial. Com o encerramento de um longo ciclo de regimes autoritrios e a superao das principais hipteses de conflito entre os pases da regio,

    o subcontinente tem avanado decisivamente rumo consolidao democrtica, ao progresso so-cioeconmico e estabilidade institucional. Ainda que tal processo enfrente obstculos e, por vezes,

    aparentes recuos, no se vislumbra a possibilidade de inverso de tal tendncia.

    A existncia de instituies regionais e de espaos bilaterais de dilogo possibilita, por seu turno,

    que os desafios e as oportunidades comuns sejam pensados e trabalhados a partir de novas bases,

    que transcendem a esfera do interesse nacional estrito. O dilogo permanente , de fato, essencial

    para o desenvolvimento/manuteno da confiana, reduzindo a possibilidade de que percepes

    equivocadas levem a decises de poltica externa prejudiciais s naes sul-americanas.

    Relaes cooperativas na rea de defesa e segurana trazem, particularmente, diversas oportuni-dades, como: o aprimoramento tcnico; a participao em operaes de paz; o intercmbio de ideias

    e informaes; e o desenvolvimento de novas tecnologias. Contudo, se verdade que tais relaes se

    fortaleceram nas ltimas dcadas, elas ainda se encontram distantes do potencial. E o aproveitamento

    efetivo deste potencial demanda maior compreenso das especificidades histricas e institucionais,

    bem como das capacidades e necessidades de defesa, dos pases sul-americanos.

    tambm a partir da percepo do compartilhamento de oportunidades e desafios comuns que se

    deve pensar a integrao no Atlntico Sul. O oceano que separa mas tambm une Brasil e frica traz

    possibilidades em diversas reas. O intercmbio de bens e servios, a explorao de recursos martimos,

    a pesquisa cientfica conjunta e a cooperao em defesa e segurana so alguns dos campos em que

    a integrao entre o Brasil e naes africanas avana.

    No campo da defesa e segurana, particularmente, a cooperao entre os dois lados do Atlntico

    realidade h mais de duas dcadas. Entre as iniciativas, destacam-se: a cooperao naval entre

    Brasil e Nambia; a cooperao entre Brasil e frica do Sul no setor missilstico; e os exerccios militares

    realizados de forma conjunta com Argentina, Uruguai e frica do Sul.

    Tal cooperao revela-se essencial ao se considerar a importncia que a segurana no mar pos-sui para a manuteno da estabilidade econmica e social dos pases lindeiros. Assim como o Brasil,

    outros pases do Atlntico Sul so largamente dependentes da navegao martima no seu comrcio

    exterior, assim como das fontes energticas exploradas no mar.

    Cabe ainda aos pases sul-atlnticos zelar pela manuteno desta rea como um espao livre de armas

    nucleares, onde predomine um esprito de paz e cooperao. Novamente, o dilogo se faz fundamental para

    a consecuo deste objetivo. Alm disso, a adoo de posies comuns em temas de paz e segurana

    essencial para que o Atlntico Sul no se torne palco de disputas extrarregionais, comprometendo o status pacfico e cooperativo que, historicamente, tem caracterizado este espao.

    Essas so algumas das questes tratadas neste livro. A discusso dos temas ora apresentados se

    faz fundamental para se pensar o desenvolvimento nacional, pois a estabilidade econmica e poltica

    destes espaos constitui, cada vez mais, uma condio essencial para a prpria estabilidade do Brasil.

  • Governo Federal

    Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica Ministro interino Marcelo Crtes Neri

    Fundao pbl ica v inculada Secretar ia de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica, o Ipea fornece suporte tcnico e institucional s aes governamentais possibilitando a formulao de inmeras polticas pblicas e programas de desenvolvimento brasi leiro e disponibi l iza, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados por seus tcnicos.

    PresidenteMarcelo Crtes Neri

    Diretor de Desenvolvimento InstitucionalLuiz Cezar Loureiro de Azeredo

    Diretor de Estudos e Relaes Econmicas e Polticas InternacionaisRenato Coelho Baumann das Neves

    Diretor de Estudos e Polticas do Estado, das Instituies e da DemocraciaDaniel Ricardo de Castro Cerqueira

    Diretor de Estudos e PolticasMacroeconmicasCludio Hamilton Matos dos Santos

    Diretor de Estudos e Polticas Regionais,Urbanas e AmbientaisRogrio Boueri Miranda

    Diretora de Estudos e Polticas Setoriaisde Inovao, Regulao e InfraestruturaFernanda De Negri

    Diretor de Estudos e Polticas SociaisRafael Guerreiro Osorio

    Chefe de GabineteSergei Suarez Dillon Soares

    Assessor-chefe de Imprensa e ComunicaoJoo Cludio Garcia Rodrigues Lima

    Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoriaURL: http://www.ipea.gov.br

  • Braslia, 2014

  • Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ipea 2014

    As opinies emitidas nesta publicao so de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, no exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ou da Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica.

    permitida a reproduo deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reprodues para fins comerciais so proibidas.

    O Brasil e a segurana no seu entorno estratgico : Amrica do Sul e Atlntico Sul / organizadores: Reginaldo Mattar Nasser, Rodrigo Fracalossi de Moraes. Braslia : Ipea, 2014. 284 p. : grafs., mapas.

    Inclui Bibliografia. ISBN 978-85-7811-193-9

    1. Segurana Nacional. 2. Poltica de Defesa. 3. Criminalidade. 4. Preveno ao Crime. 5. Cooperao Internacional. 6. Amrica do Sul. 7. Brasil. I. Nasser, Reginaldo Mattar. II. Moraes, Rodrigo Fracalossi de. III. Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada.

    CDD 355.45

  • SUMRIO

    PREFCIO .................................................................................................... 7

    APRESENTAO .......................................................................................... 9

    INTRODUO ............................................................................................ 11

    PARTE 1 O BRASIL E A SEGURANA SUL-AMERICANA ........................................... 17

    SEO 1 DEFESA E SEGURANA NA AMRICA DO SUL........................................ 19

    CAPTULO 1BREVE PANORAMA DE SEGURANA NA AMRICA DO SUL .............................. 21Oscar Medeiros Filho

    CAPTULO 2ENTRE A SEGURANA DEMOCRTICA E A DEFESA INTEGRAL: UMA ANLISE DE DUAS DOUTRINAS MILITARES NO CANTO NOROESTE DO SUBCONTINENTE SUL-AMERICANO .......................................... 43Adriana A. MarquesOscar Medeiros Filho

    CAPTULO 3PROPOSIO DE UM SISTEMA DE SEGURANA DE FRONTEIRAS BRASILEIRAS: UM ESFORO PARA TRANSFORMAR O DESENHO DE FORA ..................................................................................... 59Salvador Raza

    CAPTULO 4OPORTUNIDADES E LIMITES DO DILOGO SOBRE SEGURANA ENTRE A UNIO EUROPEIA E A AMRICA LATINA ...................................87Anna Ayuso

  • SEO 2 CRIME E COMBATE AO CRIME NA AMRICA DO SUL ........................... 117

    CAPTULO 5TENDNCIAS E DESAFIOS DO CRIME ORGANIZADO NA AMRICA LATINA ...... 119Marcelo Fabin SainNicols Rodriguez Games

    CAPTULO 6OS ESTADOS UNIDOS E O CRIME TRANSNACIONAL NA AMRICA DO SUL: ASPECTOS HISTRICOS E CONTEMPORNEOS .................................. 145Reginaldo Mattar Nasser

    CAPTULO 7COOPERAO INTERNACIONAL NO COMBATE CRIMINALIDADE: O CASO BRASILEIRO ....................................................................................... 169Almir de Oliveira JuniorEdison Benedito da Silva Filho

    PARTE 2 O BRASIL E A SEGURANA NO ATLNTICO SUL ...................................... 197

    CAPTULO 8O ATLNTICO SUL NA PERSPECTIVA DA SEGURANA E DA DEFESA ............... 199Antonio Ruy de Almeida Silva

    CAPTULO 9O ATLNTICO SUL E A COOPERAO EM DEFESA ENTRE O BRASIL E A FRICA ........................................................................... 215Adriana Erthal AbdenurDanilo Marcondes de Souza Neto

    CAPTULO 10DO MARE LIBERUM AO MARE CLAUSUM: SOBERANIA MARTIMA E EXPLORAO ECONMICA DAS GUAS JURISDICIONAIS E DA REA .......... 239Rodrigo Fracalossi de Moraes

  • PREFCIO

    Em boa hora, o Ipea edita este novo volume de estudos sobre a Defesa Nacional do Brasil no sculo XXI. Esta meritria iniciativa associa um dos principais centros de reflexo do Estado a um assunto que vem merecendo cada vez mais ateno da sociedade brasileira.

    Nos ltimos anos, o debate pblico sobre a Defesa ganhou corpo no Brasil. Tem-se hoje um conjunto de documentos fundamentais, que orienta e esclarece a ao do governo nessa rea: a Poltica Nacional de Defesa, a Estratgia Nacional de Defesa e o Livro Branco de Defesa Nacional. Estes documentos foram enviados pela presidenta Dilma Rousseff ao Congresso Nacional, que os promulgou em 26 de setembro de 2013. Todos levam a marca do aprofundamento do dilogo entre a Defesa e a sociedade.

    Avano anlogo ocorre na imprensa e na academia, que demonstram um interesse crescente pelo tema da proteo da soberania brasileira. Como j afirmou a presidenta Dilma Rousseff, defesa e democracia formam um crculo virtuoso no Brasil deste novo sculo.

    O Brasil um pas que vem crescendo, com incluso social e projeo internacional, em um contexto de plenas liberdades democrticas. Para fazer frente aos desafios externos que o aguardam nessa etapa histrica, o Brasil deve se pautar por uma grande estratgia, em que a poltica de defesa e a poltica externa se conjuguem para prover a paz.

    Na Amrica do Sul, de um lado, e no Atlntico Sul e na orla ocidental da frica, de outro, esse objetivo h de ser alcanado pela intensa cooperao com os pases vizinhos. fundamental que o Brasil se cerque de um cinturo de paz e boa vontade em todo seu entorno estratgico. Destaque-se, por exemplo, a necessria proteo das fronteiras terrestres brasileiras, que tem sido orientada pelo Plano Estratgico de Fronteiras, lanado em 2011, e reforada pelas aes da Operao gata, que, em 2013, atingiu sua stima edio.

    Ao mesmo tempo, o pas precisa estar pronto para se defender contra ameaas oriundas de outros quadrantes. Deve-se construir adequadas capacidades dissuasrias no mar, em terra e no ar. Isto essencial para desestimular eventuais agresses soberania brasileira e, desta forma, respaldar a insero pacfica do Brasil no mundo.

    O Brasil tem, ainda, um compromisso direto com a paz mundial, que tem sido exercido por meio da participao em misses de paz das Naes Unidas. Esta uma dimenso importante de uma grande estratgia voltada para a construo de um mundo mais estvel e justo.

  • 8 O Brasil e a Segurana no seu Entorno Estratgico

    Esses objetivos requerem foras armadas aprestadas, modernas e integradas. E exigem tambm uma reflexo contnua e de qualidade sobre o papel do pas no mundo e sobre como a poltica de defesa brasileira pode ajudar nessa realizao. esta a principal contribuio do volume que o leitor tem em mos.

    Celso AmorimMinistro da Defesa

  • APRESENTAO

    Uma das maiores conquistas da Amrica do Sul nas ltimas dcadas foi o fim da possibilidade de um conflito armado entre os pases do Cone Sul, alcanada a partir de um processo de reaproximao poltica ocorrido ao longo da dcada de 1980. Tal processo, marcado pela reaproximao Brasil-Argentina e Argentina-Chile, permitiu o incio da efetiva integrao desta poro do subcontinente sul-americano. Observou-se, a partir de ento, uma crescente expanso nos intercmbios econmicos, polticos e culturais entre os pases da sub-regio, amparados pelo fato de que a importncia atribuda estabilidade regional tornou-se parte da cultura estratgica de seus governos nacionais.

    Fenmeno mais recente o estreitamento dos intercmbios entre as pores norte e sul do subcontinente sul-americano. Com relaes caracterizadas, histori-camente, pelo baixo grau de contato, os pases das duas sub-regies tm fortalecido suas relaes em diversos campos e percebem, crescentemente, os benefcios que a integrao pode lhes propiciar.

    A baixa propenso ao conflito entre os Estados sul-americanos, sobretudo no Cone Sul, um verdadeiro patrimnio regional. Recursos que, em outras partes do globo, so alocados para o possvel enfrentamento dos pases vizinhos, direcionam-se, aqui, para polticas voltadas promoo do bem-estar das sociedades locais. Contudo, a preservao deste patrimnio para as prximas geraes depende do desenvolvimento e aprimoramento de mecanismos regionais de confiana, coordenao e integrao.

    Ao mesmo tempo, a Amrica do Sul atravessa um perodo preocupante no que diz respeito criminalidade transnacional. A expanso da produo e do trfico de drogas, bem como de diversos delitos conexos, traz consigo o crescimento da violncia e de diversos problemas de sade pblica, afetando milhares de vidas e drenando recursos pblicos j escassos.

    nesse contexto que a segurana na Amrica do Sul deve ser pensada. Por um lado, as ameaas interestatais no possuem grande relevncia e, nos casos em que se mantm, possvel minimizar a possibilidade de escalada de tenses a partir de mecanismos regionais. Por outro lado, a violncia est presente de forma acentuada no subcontinente: taxas de homicdio mantm-se elevadas (sobretudo no Brasil e na poro norte da Amrica do Sul), e a criminalidade organizada transnacional parece um problema cuja soluo no se vislumbra no curto prazo.

  • 10 O Brasil e a Segurana no seu Entorno Estratgico

    Nesse sentido, o Brasil desempenha papel essencial, possuindo condies econmicas, polticas, demogrficas e territoriais que lhe capacitam a fornecer alguns dos bens pblicos essenciais regio. Tais condies so favorecidas pelo fato de que a estabilidade dos demais pases sul-americanos se consolidou na poltica externa brasileira como elemento central ao desenvolvimento e estabilidade do Brasil: o pas s pode avanar em compasso com os seus vizinhos, do que decorre a perspectiva presente nos documentos de defesa nacionais de que a Amrica do Sul parte do entorno estratgico brasileiro.

    Em paralelo, o Brasil considera tambm o Atlntico Sul como parte integrante de seu entorno estratgico. Assim como h relao direta entre a estabilidade sul-americana e a estabilidade brasileira, a paz no Atlntico Sul condio essencial para a manuteno da segurana do Brasil. pelo oceano que transita a maior parte do comrcio internacional do nosso pas e nele que se encontra parte substancial de nossas fontes energticas. Os problemas do Atlntico Sul so, portanto, problemas do Brasil.

    Deve-se considerar, ainda, que a estabilidade sul-atlntica depende, funda-mentalmente, de processos ocorridos na costa ocidental africana. Por esta razo, o entorno estratgico brasileiro se estende at a outra margem do Atlntico. E este um dos motivos pelos quais o Brasil busca contribuir para o desenvolvimento destes pases lindeiros, em reas to diversas como sade, educao, agricultura e segurana pblica.

    nesse contexto que os trabalhos deste livro foram pensados. Apresentam-se, aqui, textos escritos a partir de diferentes perspectivas, elaborados por autores com distintas formaes profissionais e filiaes tericas, todos compartilhando do objetivo de ampliar a compreenso sobre alguns dos principais processos presentes no entorno estratgico brasileiro.

    As dinmicas sul-americanas e sul-atlnticas no campo da segurana e da defesa no apenas afetam o Brasil, mas so tambm afetadas por polticas brasileiras. Entender este processo implica compreender os fatores que conduzem estabilidade regional, condicionante essencial para o desenvolvimento do pas.

    Marcelo Crtes NeriMinistro da Secretaria de Assuntos Estratgicos

    da Presidncia da Repblica (SAE/PR) Presidente do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (Ipea)

  • INTRODUO

    Ainda que alguns pases sul-americanos tenham ampliado seus gastos militares em perodo recente, o subcontinente permanece como a regio de menor gasto militar no mundo, no representando, ainda, qualquer tipo de ameaa estabi-lidade internacional. Entretanto, embora se possa afirmar que a regio seja uma zona de paz, em que os conflitos interestatais esto praticamente ausentes e em que inexistem quaisquer tipos de armas de destruio em massa, vrias ameaas surgiram e/ou se intensificaram ao longo da ltima dcada, com destaque para o narcotrfico e o crime organizado.

    Os acontecimentos de 11 de setembro de 2001, as invases militares ao Afeganisto e ao Iraque, bem como a guerra contra o terror, liderada pelos Estados Unidos, reintroduziram os temas de segurana entre as questes prioritrias na regio. A nfase, no entanto, estendeu-se para alm das relaes entre Estados, envolvendo, necessariamente, a sociedade civil, na medida em que a percepo acerca da fonte das novas ameaas se encontra precisamente no mbito desta.

    Frente s tendncias de securitizao de diversas agendas por parte dos Estados Unidos, a opo dos pases da Amrica do Sul poderia residir na fragmentao das aes, em que cada pas almejasse obter vantagens pontuais, ou na construo de mecanismos efetivos de dilogo que abordassem temas de interesse comum. Neste sentido, ao longo da ltima dcada, os pases do subcontinente e suas respectivas sociedades dedicaram-se a um processo de progressiva reformulao dos conceitos de segurana e redefinio das ameaas. Em tal processo, foram includas no rol de ameaas as de natureza domstica ou transnacional, ainda que considerando os fatores militares tradicionais, que, no entanto, passaram a ter um novo significado neste contexto.

    Os riscos e vulnerabilidades que afetam a segurana das naes na Amrica do Sul evidenciam a necessidade de se definir uma nova agenda de segurana, que leve em considerao as relaes entre as dimenses global, nacional e a das pessoas. Neste sentido, um dos principais desafios estabelecer uma concatenao conceitual que incorpore desde a segurana humana at a segurana internacional, passando pela segurana estatal. Os contextos especficos indicaro a maneira como se esta-belecero as relaes entre essas trs dimenses e qual delas teria mais importncia.

    Muito embora os nexos entre sociedade civil e atores polticos em relao aos temas de segurana e defesa ainda sejam tnues, na medida em que avanam os processos de consolidao democrtica, nota-se tendncia a uma participao mais ativa por parte de organizaes da sociedade civil nos processos de formulao

  • 12 O Brasil e a Segurana no seu Entorno Estratgico

    de polticas pblicas e na legislao associada a estas questes. Se, inicialmente, a preocupao da sociedade civil em torno dos temas de segurana referia-se, basi-camente, estabilidade democrtica e preveno da transformao das Foras Armadas em ator poltico, a nfase na proteo dos direitos humanos tornou a segurana um dos temas indissociveis dessa agenda.

    Essas dificuldades enfrentadas em nvel nacional potencializam-se no mbito regional, no marco de uma debilidade ou ausncia de organizaes, movimentos e redes que elaborem uma agenda de segurana regional comum orientada para a paz, a segurana e a preveno de conflitos. Mesmo com o aumento da criminali-dade e da violncia nas sociedades de toda a regio, as organizaes da sociedade civil ainda tendem a perceber tais questes como preocupaes domsticas.

    Os desafios que se apresentam para o subcontinente sul-americano, em parte, tambm so observados ao se considerar a segurana sul-atlntica. Tal como a Amrica do Sul, este espao efetivamente uma zona de paz, livre de armas de destruio em massa. No entanto, a manuteno desta condio requer que os pases do Atlntico Sul tenham capacidades para, em conjunto, manterem-na livre de ameaas extrarregionais e que, ademais, disputas alheias a este espao no venham nele se manifestar. Estas capacidades tambm so necessrias para que se mantenham em constante funcionamento as linhas de comunicaes martimas que atravessam o Atlntico Sul, preservando, assim, a boa ordem no mar. Interrupes de tais linhas trariam transtornos considerveis aos pases que delas dependem, impedindo, muitas vezes, a manuteno de atividades de exportao/importao. Em tal caso, isto poderia no apenas causar danos econmicos, mas privar grande nmero de indivduos de gneros de primeira necessidade trazidos do exterior.

    Para alcanarem tal objetivo, os pases lindeiros devem dispor de meios materiais e humanos adequados, ademais da necessidade de certo grau de institu-cionalidade nas relaes entre os dois lados do Atlntico Sul, facilitando o dilogo dos temas de interesse mtuo e o avano de atividades de cooperao.

    A importncia de se estudar temas dessa natureza decorre de, entre outros aspectos, ser este um passo crucial para se desenhar a agenda dos problemas e desafios que afetam o processo de tomada de deciso, bem como da avaliao de consensos possveis que possam mobilizar a vontade poltica nacional para o enfrentamento desses problemas.

    com este esprito que este livro trazido a pblico, reunindo trabalhos de acadmicos e militares, brasileiros e estrangeiros, que buscam contribuir para a melhor compreenso de espaos considerados em documentos oficiais do pas como parte do entorno estratgico brasileiro. O livro fruto do projeto O Papel da Defesa na Insero Internacional Brasileira, coordenado pelo Ipea, que tem como objetivo contribuir com o debate sobre as polticas pblicas na rea da defesa nacional.

  • 13Introduo

    O livro possui duas partes. A primeira aborda algumas das principais dinmicas securitrias da Amrica do Sul, dividindo-se em duas subpartes, que analisam questes relativas, respectivamente, defesa nacional e aos desafios para o enfrentamento da criminalidade organizada transnacional. A segunda parte tem como objeto o Atlntico Sul, buscando contribuir para o debate acerca dos inte-resses brasileiros neste espao e de como o pas pode cooperar para a manuteno de sua estabilidade.

    No captulo de abertura, Oscar Medeiros Filho explora o sentido de se consi-derar a Amrica do Sul como uma unidade de anlise do ponto de vista dos estudos em segurana regional. Para tanto, a teoria dos complexos regionais de segurana aplicada e adaptada ao contexto sul-americano. O autor separa o subcontinente em duas partes, denominadas de arco da estabilidade e arco da instabilidade, analisando ainda o Conselho de Defesa Sul-Americano e os principais desafios de segurana para o subcontinente. Em seguida, no captulo 2, o mesmo autor, Oscar Medeiros Filho, em conjunto com Adriana Marques, discute os aspectos centrais das polticas de defesa e segurana da Colmbia e da Venezuela. Os autores destacam que estes dois vizinhos, muito embora vivam momentos polticos distintos, atravessam processos que guardam semelhana: ambos no apenas tm expandido as suas foras armadas, mas tm atribudo crescente prioridade s questes de defesa externa.

    Salvador Raza, no captulo 3, prope um sistema de segurana de frontei-ras para o Brasil. Tal sistema criaria verdadeiras muralhas nas fronteiras tanto terrestres como martimas. Contudo, em razo da multiplicidade de fluxos e atores presentes em regies de fronteira, fundamental que o referido sistema possua capacidade de articular as aes de diversos rgos de Estado. O autor ainda explora os possveis custos financeiros deste sistema, destacando seu montante reduzido frente aos possveis benefcios advindos de sua implementao.

    A pesquisadora Anna Ayuso aborda, no captulo 4, assunto ainda pouco explorado, a cooperao na rea de segurana entre Amrica Latina e Europa. Se, por um lado, esta tem encontrado dificuldades para avanar, deve-se destacar, por outro, a existncia de um elemento comum nas perspectivas dos pases de ambas as regies, isto , a importncia atribuda chamada agenda de segurana ampliada, com nfase na segurana humana. Tal perspectiva pode ser referncia importante para a cooperao e o dilogo inter-regional, alm de possibilitar a adoo de posies comuns no mbito multilateral.

    Muito embora a paz interestatal seja uma caracterstica marcante do subcon-tinente, h um grau elevado de violncia em diversos pases da Amrica do Sul. E, ainda que esta seja fruto de diversos fatores, a criminalidade transnacional , sem dvida, um dos mais importantes. Neste sentido, trs captulos neste livro abordam a questo.

  • 14 O Brasil e a Segurana no seu Entorno Estratgico

    Ao examinarem algumas das tendncias e desafios advindos da criminalidade organizada transnacional na Amrica Latina, Marcelo Fabin Sain e Nicols Rodriguez Games, no captulo 5, introduzem avaliaes crticas sobre as formas de enfrenta-mento de tal ameaa, bem como propostas para aprimor-las. Os autores destacam que o crime organizado , primordialmente, uma atividade econmica, ressaltando, ainda, os tipos de relaes que este estabelece com o poder pblico e a sociedade civil.

    Compreender a forma pela qual os Estados Unidos lidam com os temas de segurana no entorno brasileiro fundamental para o entendimento das principais dinmicas polticas do subcontinente e para se pensar as formas mais adequadas de enfrentamento do problema. Neste sentido, Reginaldo Nasser explora, no captulo 6, os principais aspectos da poltica norte-americana de enfrentamento da crimina-lidade organizada na Amrica do Sul, particularmente de grupos narcotraficantes. O autor destaca a expanso dos recursos pblicos nos Estados Unidos alocados para o combate ao problema das drogas, particularmente por meio do Plano Colmbia, ao mesmo tempo em que discute a militarizao e o alcance limitado destas aes.

    O captulo 7, de autoria de Almir de Oliveira Junior e Edison Benedito da Silva Filho, apresenta alguns dos principais desafios para a promoo da segurana regional na Amrica do Sul, destacando o papel da cooperao internacional no combate ao trfico de drogas e armas, bem como de outros ilcitos transfronteirios. A partir da literatura sobre os mecanismos de provimento de bens pblicos globais e regionais, os autores discutem a efetividade da cooperao brasileira com os pases vizinhos no campo da segurana pblica e os obstculos para a coordenao das aes de instituies civis e militares engajadas nas regies de fronteira do pas.

    Em seguida, trs captulos examinam o Atlntico Sul e a costa ocidental africana. Este espao tem ganhado crescente projeo na poltica externa e de defesa do Brasil em perodo recente, no bojo da expanso das atividades de instituies brasileiras na frica e das descobertas das reservas de hidrocarbonetos do pr-sal. Torna-se essencial, portanto, refletir sobre as formas pelas quais o Brasil influencia e influenciado por este espao

    O capitulo 8, de Antonio Ruy de Almeida Silva, faz uma sntese dos principais aspectos estratgicos relativos ao Atlntico Sul, destacando o papel das relaes Brasil-Argentina como elemento de estabilidade deste espao. O autor aponta, ainda, a percepo do governo brasileiro de que a manuteno do Atlntico Sul como uma rea pacfica e de cooperao requer que disputas extrarregionais no se manifestem neste espao. Contudo, tal perspectiva implica que os pases do Atlntico Sul devam ser efetivamente capazes de garantir, por seus prprios meios, tal condio.

  • 15Introduo

    No captulo 9, Adriana Abdenur e Danilo Marcondes analisam tema impe-rioso para a manuteno da paz e da segurana no Atlntico Sul, qual seja, o da cooperao em defesa entre Brasil e frica. Os autores destacam, inicialmente, como o governo brasileiro tem buscado desenvolver uma identidade atlntica comum com os demais pases do Atlntico Sul, para, em seguida, explorarem as conexes entre poltica de defesa e poltica externa que emergem neste processo. Examinam, por fim, a prtica da cooperao em defesa Brasil-frica.

    O ltimo captulo, de Rodrigo Fracalossi de Moraes, examina as formas pelas quais diversos Estados tm buscado, desde o final da Segunda Guerra Mundial, estender suas jurisdies sobre extensas reas martimas: o antigo princpio do mare liberum parece ceder espao, progressivamente, ao do mare clausum. Analisam-se, ainda, as vantagens que possuem os pases com ilhas ocenicas e/ou territrios ultramarinos, particularmente as possibilidades em termos de explorao de recursos naturais.

    Agradecemos os autores pelas valiosas contribuies para este livro, bem como o apoio de Andr de Mello e Souza, Edison Benedito da Silva Filho, Joo Diogo Ramos Soub de Seixas Brites, Marcelo Colus Sumi e Renato Baumann, por meio de crticas, sugestes e revises, tanto da estrutura do livro como dos textos nele contidos.

    Espera-se que o trabalho possa ser til para militares, servidores civis, parlamentares, acadmicos, estudantes, empresrios, integrantes de organizaes da sociedade civil e outros interessados no tema.

    Em razo de a estabilidade da Amrica do Sul e do Atlntico Sul ser de grande interesse para o Brasil, cabe ao Estado e sociedade civil debater as suas principais tendncias e as formas pelas quais o Brasil pode e deve contribuir para a consolidao destes espaos como reas de paz e cooperao.

    Reginaldo Mattar NasserRodrigo Fracalossi de Moraes

    Organizadores

  • PARTE 1O BRASIL E A SEGURANA SUL-AMERICANA

  • Seo 1Defesa e Segurana na Amrica do Sul

  • CAPTULO 1

    BREVE PANORAMA DE SEGURANA NA AMRICA DO SULOscar Medeiros Filho*1

    1 INTRODUO

    Este captulo apresenta um panorama de defesa e segurana na Amrica do Sul. Partindo de uma abordagem terica que privilegia o nvel regional dos estudos sobre segurana internacional, buscar-se- situar o subcontinente como um peculiar complexo regional de segurana, marcado por um paradoxo central: a ausncia de guerras formais, de um lado, e o elevado nvel de violncia social, de outro.

    Sero analisados, na segunda seo, os aspectos tericos que envolvem a temtica, com destaque para os conceitos de complexo regional de segurana CRS (Escola de Copenhague) e comunidade de segurana (perspectiva construtivista). Para tanto, sero considerados fatores estruturais e aspectos histricos que tm contribudo para moldar o comportamento dos Estados na regio. Na terceira seo, sero descritas as principais caractersticas da geografia poltica sul-americana, sugerindo um modelo de diviso regional com base no grau de integrao e cooperao entre os pases. Alm disso, ser brevemente abordada a estrutura de defesa dos pases da Amrica do Sul. Na quarta seo, sero analisados os aspectos geopolticos, em especial o processo de integrao regional, desde a conteno dos anos 1970 at o perodo de institucionalizao observado na dcada atual. Ademais, sero consideradas algumas agendas de defesa para o subcontinente, tendo como pano de fundo o processo de consolidao do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS), criado em 2008. Na ltima seo, sero apresentados alguns desafios ao aprofundamento do processo de integrao regional.

    2 POR UMA ESCALA SUL-AMERICANA DE ANLISE REGIONAL

    A utilizao da escala regional para a anlise de questes de segurana internacional coincide com a chamada nova onda do regionalismo, iniciada em meados da dcada de 1980 e ampliada com o fim da Guerra Fria. Nesse perodo, a intensificao

    * Oficial do Exrcito Brasileiro. Mestre em geografia humana e doutor em cincia poltica pela Universidade de So Paulo (USP). professor e pesquisador do Programa de Ps-graduao em Cincias Militares da Escola de Comando e Estado-Maior do Exrcito (ECEME).

  • 22 O Brasil e a Segurana no seu Entorno Estratgico

    das relaes entre pases de uma mesma regio expunha a necessidade de arranjos de governana para a gesto de fluxos que transpunham as fronteiras nacionais.

    A escala regional situa-se em um ponto intermedirio entre perspectivas estritamente nacionais, de um lado, e globais, de outro. Nesta escala, a importncia dada aos entornos territoriais se deve ao fato de que, apesar da ideia de fluidez dos territrios, que ganhou fora com o processo de globalizao, os territrios dos Estados so entes geograficamente localizados, e a contiguidade territorial continua tendo peso nas questes de segurana. Desta forma, o fato de os Estados serem permanentemente localizados torna-se um imperativo geopoltico. Tal carter impe aos Estados preocupaes territoriais, excluindo de seu leque de estratgias a possibilidade de mudana domiciliar com relao a vizinhos indesejveis.

    De forma geral, regio tem sido compreendida nos estudos de segurana internacional como um grupo de Estados interdependentes que, por imperativos geogrficos de proximidade ou vizinhana, compartilha ameaas e preocupaes militares, independentemente de seus interesses (Buzan, 1991). Cabe destacar que, no caso aqui estudado, a escala regional a sul-americana e no a latino-americana. A opo por este recorte , antes de tudo, uma construo subjetiva que obedece a fatores histricos, geogrficos, culturais e polticos. Em relao ao constructo latino-americano, h os seguintes aspectos: a sua criao exgena, como referncia de separao dos pases anglo-saxnicos dos demais pases americanos; a presena de fragmentos territoriais (ilhas caribenhas) e culturais (mosaico de lnguas); e a maior proximidade de parte da regio em relao ao poder hegemnico norte- -americano, a qual contribui para, em termos de segurana internacional, tornar a Amrica Latina uma espcie de iluso cartogrfica. Desta forma, especialmente a partir da dcada de 1990, tm se tornado cada vez mais corriqueiras as referncias Amrica do Sul como unidade regional, com vocao comunitria e que compartilha entre seus membros uma identidade comum, tanto de carter quanto de destino.

    2.1 O Complexo Regional Sul-Americano

    2.1.1 Peculiaridades

    Do ponto de vista das questes de defesa e segurana, a situao sul-americana paradoxal: se, de um lado, a regio se destaca pela ausncia de guerras formais, por outro, enfrenta srios problemas relativos fragilidade do imprio da lei e ao alto grau de violncia social.

    O cenrio decorrente de tal paradoxo sugere uma interessante situao em que a lgica do dilema de segurana de John Herz1 estaria invertida. Ou seja, no

    1. Para o autor, os esforos de ampliao de segurana de um Estado conduzem maior insegurana de seu vizinho (Herz, 1950, traduo nossa).

  • 23Breve Panorama de Segurana na Amrica do Sul

    caso sul-americano, as maiores ameaas teriam origem no em polticas de poder adotadas por Estados, mas na incapacidade destes de adotarem polticas pblicas no enfrentamento de suas vulnerabilidades sociais. Neste caso, os principais problemas no seriam de fronteira questo de defesa , mas estariam na fronteira questo de segurana. Sob tal inverso, a ameaa passaria a ser o vizinho fraco, incapaz de controlar seu prprio territrio, e no o vizinho forte (Villa e Medeiros Filho, 2007, p. 8).

    Essa peculiaridade regional, marcada pelo contraste paradoxal entre instabi-lidade e/ou violncia domstica e relativa paz nas relaes internacionais, parece ter origem no perodo ps-independncia, ainda no final do sculo XIX, tendo se consolidado nas primeiras dcadas do sculo XX. De fato, com o fim da Guerra do Chaco (1932-1935), a regio passou a figurar como um ambiente internacional livre2 de conflitos blicos. A explicao para tal fenmeno complexa e distante de ser consensual. Certamente, no resulta de uma estratgia regional deliberada, mas, antes, fruto de uma combinao de fatores que envolvem aspectos polticos, histricos e geogrficos.

    Cinco fatores podem ser apontados como possveis causas do padro anmalo da Amrica do Sul no sistema internacional ao longo do ltimo sculo. O primeiro diz respeito localizao perifrica da regio em relao aos grandes conflitos mundiais. O fato de os pases da regio registrarem os menores ndices de gastos de defesa do mundo parece ter relao com a posio perifrica no s geogrfica que a regio ocupa em relao aos interesses de poder das grandes potncias. Tal posio amenizaria a sensao de insegurana internacional e reduziria, con-sequentemente, os investimentos militares, tornando menos belicosas as relaes entre os Estados da regio.

    O segundo fator, oriundo do primeiro, refere-se ao poder blico relativamente pequeno dos pases da regio. O problema maior seria o custo de se fazer a guerra. por demais conhecido entre os estrategistas militares a noo de que muito menos oneroso defender que atacar. A incapacidade logstica seria apenas uma das limitaes para o uso de instrumentos militares em operaes de carter ofensivo. Neste caso, a ausncia de guerras na regio se daria no pela eficcia dissuasiva dos exrcitos nacionais, mas pela incapacidade ofensiva dos oponentes.

    O terceiro fator corresponde presena hegemnica dos Estados Unidos como elemento de estabilidade regional. Sob tal perspectiva, os Estados Unidos teriam a capacidade de constranger qualquer tentativa de aventura blica entre os pases da regio. Alm disso, em vrios momentos do sculo XX, foi possvel perceber esforos

    2. Ocorreram alguns conflitos entre pases sul-americanos no perodo aqui considerado. O mais grave, envolvendo Peru e Equador, ocorreu em 1995. Foram dezenove dias de combate e morreram aproximadamente cem equatorianos e quatrocentos peruanos.

  • 24 O Brasil e a Segurana no seu Entorno Estratgico

    norte-americanos no sentido de implementar uma arquitetura hemisfrica de defesa e segurana, por meio, por exemplo: de um sistema de defesa hemisfrico (ps-Segunda Guerra Mundial); da doutrina de segurana nacional (Guerra Fria); e de um sistema de segurana hemisfrica (ps-Guerra Fria).

    O quarto fator se refere prioridade dada aos problemas domsticos (inimigo interno) em detrimento dos interesses externos. Ao longo dos dois ltimos sculos, a instabilidade poltica e a fragilidade institucional dos Estados nacionais acabaram por provocar o uso recorrente do aparelho militar na represso a conflitos internos. A urgncia destes problemas, para manter seja a incolumi-dade do territrio seja o regime poltico em vigor, teria gerado na mentalidade militar a percepo de que a prioridade deve ser dada aos problemas domsticos, em detrimento dos problemas de defesa externa. Ao longo do sculo XX, este fator esteve fortemente vinculado s injunes da bipolaridade emergente com a Guerra Fria, que marcaram a opo dos militares da regio pela doutrina de segurana nacional (luta contra o inimigo interno comunista).

    Por fim, sob uma perspectiva liberal, pode-se destacar o papel das normas nas relaes internacionais. Observa-se que, desde o perodo de independncias no sculo XIX, os pases da regio tm gradualmente construdo uma espcie de sociedade internacional na qual, conscientes de certos valores e interesses convergentes, consideram-se ligados no seu relacionamento por um conjunto comum de regras (Bull, 2002). O impacto das normas no comportamento dos Estados da regio e em suas relaes externas poderia ser evidenciado no conside-rvel nmero de pendncias territoriais resolvidas de forma pacfica, por meio de arbitragem ou negociao (Kacowicz, 2005).

    Deve-se destacar que, como ser visto adiante, constam do documento de constituio do CDS as normas essenciais de uma pretensa sociedade internacional, quais sejam os princpios da: soberania; integridade territorial; independncia e igualdade legal; e no interveno.

    2.1.2 Abordagens tericas

    Sero utilizadas duas perspectivas tericas de abordagem regional em relaes internacionais para situar o nvel de integrao sul-americano. A primeira, de-senvolvida por autores da chamada Escola de Copenhague, diz respeito aos CRS, tal como proposto inicialmente por Buzan (1991). Para este autor, em muitos casos, as preocupaes militares de um grupo de Estados so to interdependentes que a segurana de um pas s pode ser compreendida se for levada em considerao a de seus vizinhos. Nestes casos, faz-se necessrio compreender os mecanismos que ocorrem no nvel de anlise intermedirio entre o nacional e o global. Surge, assim, a necessidade de se pensar complexos regionais.

  • 25Breve Panorama de Segurana na Amrica do Sul

    Com base no padro de relacionamento entre unidades de uma regio, possvel identificar diferentes tipos de complexos regionais, variando entre ambientes conflituosos, em que a possibilidade de guerra iminente, de um lado, e ambientes de relativa paz, de outro. Dependendo das caractersticas de relacionamento entre os pases da regio padro de amizade e/ou inimizade , os CRS so classificados em trs diferentes tipos: i) formaes conflitivas; ii) regimes de segurana; e iii) comunidades de segurana (Buzan e Wver, 2003).

    Para Buzan e Wver (2003), as relaes entre os pases da Amrica do Sul estariam situadas em um padro de amizade/inimizade intermedirio regime de segurana. A falta de um padro homogneo no subcontinente, porm, percebida pelos autores.

    Uma segunda perspectiva de anlise de segurana no nvel regional diz respeito ao conceito de comunidade de segurana, desenvolvido inicialmente na dcada de 1950 por Karl Deutsch, e recentemente adotado pela perspectiva construtivista (Adler e Barnett, 1998). Uma comunidade de segurana se estabelece quando determinada regio passa a controlar os conflitos no seu interior. Neste sentido, as regies tendem a constituir unidades supranacionais, colocando-se entre o nacional e o global. Para Deutsch (1966), uma comunidade de segurana aquela na qual existe a convico real de que os membros da comunidade no combateriam entre si (1966, p. 25, traduo nossa). Diferentemente de outros CRS, o surgimento de uma comunidade de segurana pressupe, necessariamente, que os pases-membros compartilhem identidades positivas. Neste caso, no h comunidade de segurana independente do interesse das unidades que a compem. Ela s existe pela vontade deliberada de seus membros em construir um ambiente de paz. justamente a ideia de vontade poltica nas relaes internacionais que imprime originalidade proposta de Deutsch. Nela, os conceitos de segurana e comunidade em ambiente internacional so aproximados por meio da identificao de valores.

    Sob a perspectiva construtivista, possvel identificar sinais de surgimento de uma possvel comunidade de segurana na Amrica do Sul, mesmo que fraca e limitada. Isto, porm, mais evidente entre os pases situados no Cone Sul, o mesmo no podendo ser dito sobre outras partes da Amrica do Sul (Hurrell, 1998).

    3 A GEOGRAFIA POLTICA SUL-AMERICANA: ASPECTOS GERAIS

    Localizado em uma das periferias do globo, o subcontinente sul-americano estende-se por uma rea de quase 18 milhes de km, o que equivale a cerca de 12% da superfcie terrestre do planeta e a 42% do continente americano. Apresenta vasta riqueza natural e abriga a maior diversidade fsica, biolgica e climtica de todos os continentes, abrangendo de desertos ridos e florestas tropicais midas a geleiras. Alm da maior biodiversidade e da maior floresta

  • 26 O Brasil e a Segurana no seu Entorno Estratgico

    tropical do planeta, a Amrica do Sul possui grande parte das terras potencialmente agricultveis do mundo. Tal riqueza natural, porm, contrasta com os srios problemas socioeconmicos de sua populao. Com quase 400 milhes de ha-bitantes, os pases da Amrica do Sul apresentam ndices de desenvolvimento humano (IDHs) relativamente baixos.

    3.1 Subdivises regionais

    Em termos fisiogrficos, a Amrica do Sul se divide em trs grandes vertentes: i) andina; ii) platina; e iii) amaznica. Para fins de uma anlise espacial que con-temple os diferentes nveis de integrao regional na Amrica do Sul e, consequen-temente, os aspectos de defesa e segurana aqui analisados, prope-se neste texto a diviso da regio em cinco grandes pores que, mesmo sobrepostas, ajudam a compreender as diferentes dinmicas regionais. Conforme o mapa 1, as pores sub-regionais sugeridas so: Amaznia, Cone Sul, Andes, Brasil e Guianas.

    MAPA 1Pores regionais da Amrica do Sul

    Fonte: Medeiros Filho (2010).

  • 27Breve Panorama de Segurana na Amrica do Sul

    O padro de relacionamento entre os Estados-membros das pores regionais pode ser resumido da seguinte forma.

    3.1.1 Amaznia

    Envolve os pases pertencentes Organizao do Tratado de Cooperao Amaznica (OTCA). Geopoliticamente, destaca-se como potencial espao de articulao subcon-tinental, podendo vir a se constituir em um dos pivs da integrao sul-americana. Mais que em qualquer outro lugar do subcontinente, na Amaznia onde as chamadas novas ameaas mais se misturam noo de defesa nacional, gerando um complexo de insegurana. A prpria geografia do lugar impe barreiras a processos cooperativos mais ambiciosos. De uma forma geral, a regio ocupada por grandes vazios demogrficos e por escassa presena dos Estados. A riqueza natural desta poro, porm, constitui importante aspecto para a formao de uma identidade regional na medida em que se compartilha, mutuamente, a percepo de cobia internacional sobre os recursos naturais da Amaznia. Neste caso, a ameaa deixa de ser o vizinho e passa a ser o interesse estratgico de grandes potncias exteriores regio. Para fins da anlise deste texto, consideram-se pases amaznicos: Bolvia, Brasil, Colmbia, Equador, Peru e Venezuela.

    3.1.2 Cone Sul

    Corresponde aproximadamente ao espao regional em que teve origem o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e marcado pelo relativo xito dos processos cooperativos, onde h sinais de superao de uma geopoltica tradicional de orientao hobbesiana, notadamente no que se refere relao entre seus pases-chave: Brasil-Argentina e Argentina-Chile. A transformao ocorrida no padro de relacionamento de seus atores centrais aproxima a poro sub-regional do modelo de comunidade de segurana. Assim, medidas como a adoo de polticas de controle de arma-mentos e a realizao de exerccios militares conjuntos entre seus pases tm con-tribudo para reduzir a percepo de rivalidade e ameaa mtua que dominava o ambiente sub-regional. Isto no quer dizer, contudo, que a sub-regio esteja livre de conflitos. Problemas recentes envolvendo comrcio internacional e uso de fontes energticas tm levado a questionamentos a respeito da capacidade da sub-regio de aprofundar seu processo de integrao. Fazem parte do Cone Sul: Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai.

    3.1.3 Andes

    Envolve uma sub-regio com fraca tradio integracionista, em boa medida motivada pela permanncia de desconfianas, como aquelas reveladas, nos ltimos anos, nos seguintes pares de pases: Chile e Peru; Chile e Bolvia; Peru e Equador; Equador e Colmbia; Colmbia e Venezuela. Para Hurrell (1998), se a relao entre os pases

  • 28 O Brasil e a Segurana no seu Entorno Estratgico

    do Cone Sul d sinais do surgimento de uma possvel comunidade de segurana, o mesmo no pode ser dito em relao poro andina. Compem os Andes: Bolvia, Chile, Colmbia, Equador, Peru e Venezuela.

    3.1.4 Brasil

    A dimenso continental, a herana imperial e lusitana, a lngua portuguesa, o alto grau de miscigenao cultural, alm do relativo dinamismo industrial e da assimtrica produo interna, fazem do Brasil um pas com caractersticas prprias no subcontinente. Contribui para isto, tambm, o papel de destaque que o pas tem desempenhado na geopoltica sul-americana, em parte pela prpria condio geogrfica, a qual lhe confere importncia estratgica para a integrao regional, alm do peso poltico que exerce nas decises do continente, o que lhe permite agir com relativa liderana e capacidade de apresentar iniciativas cooperativas, como o CDS.

    3.1.5 Guianas

    Envolve pases com pouca expresso no tema defesa e segurana regional. Alguns fatores contribuem para isto. Primeiro, o fato de estes pases terem permanecido como colnias at a segunda metade do sculo XX, sendo que a Guiana Francesa permanece como territrio ultramarino francs. Segundo, a barreira natural que os separam dos demais pases sul-americanos a maioria das fronteiras guianenses se encontra em pores amaznicas. Terceiro, a forte barreira cultural, representada em primeiro lugar pelas diferentes lnguas oficiais, que no encontram semelhanas com os demais pases da regio. Compem esta poro regional a Guiana, o Suriname e a Guiana Francesa.

    De uma forma geral, a irregularidade espacial do processo de integrao regional na Amrica do Sul aponta para nveis de estabilidade/instabilidade tambm espacialmente irregulares. Enquanto o Cone Sul apresenta considervel xito, as pores Amaznia e Andes apresentam nveis de integrao bem mais modestos. exatamente nestas pores, onde o processo de integrao mais escasso, que se localizam reas de potenciais conflitos territoriais, entre as quais se destacam as fronteiras entre Chile, Peru e Bolvia a situao mediterrnea da Bolvia se constitui hoje na maior ameaa latente de conflito territorial no subcontinente , as cercanias do lago Maracaibo (Colmbia-Venezuela) e a regio de Essequibo (Venezuela-Guiana).

    Apesar de, em todas as pores analisadas, coexistirem simultaneamente movimentos de integrao e de fragmentao, pode-se, de forma geral, dividir a regio segundo dois grandes arcos: o da estabilidade e o da instabilidade.3

    3. Originalmente, essa ideia aparece em Saint-Pierre ([s.d.]).

  • 29Breve Panorama de Segurana na Amrica do Sul

    Enquanto o primeiro corresponde faixa atlntica Mercosul estendido , o segundo se refere poro onde persistem zonas potenciais de conflitos armados, notadamente Amaznia e Andes.

    MAPA 2Arcos da estabilidade e da instabilidade na Amrica do Sul

    Fonte: Medeiros Filho (2009).

    De forma simplificada, os nveis de integrao geopoltica na Amrica do Sul parecem obedecer a uma linha de gradao crescente entre a vertente atlntica maior nvel de integrao/estabilidade e a vertente pacfica integrao compro-metida e instabilidade regional.

    Pode-se, do ponto de vista das perspectivas tericas utilizadas, situar a sub--regio Cone Sul em um padro intermedirio de integrao regional regime de segurana , a caminho de uma pretensa comunidade de segurana. As sub-regies Amaznia, Andes e Guianas, por sua vez, enquadrar-se-iam em um modelo menos avanado, mantendo traos de uma formao conflitiva.

  • 30 O Brasil e a Segurana no seu Entorno Estratgico

    3.2 A geografia poltica sul-americana: estruturas de defesa

    3.2.1 Gastos militares na Amrica do Sul

    De acordo com dados do Stockholm International Peace Research Institute (Sipri), a Amrica do Sul continua sendo a regio com os menores gastos com defesa no mundo, representando em torno de 4% do total mundial em relao ao seu produto interno bruto (PIB), no so mais que 2%, em mdia.

    Apesar da ideia propalada por alguns setores sociais e polticos nos ltimos anos de que estaria havendo uma corrida armamentista no subcontinente, observa-se nas duas ltimas dcadas uma tendncia reduo dos gastos mdios com defesa na regio. Diversos fatores tm contribudo para esta tendncia. Entre os de carter sistmico, trs merecem destaque: i) fim da Guerra Fria; ii) fim de governos militares; e iii) forte conteno de gastos pblicos provocada pela implementao das chamadas reformas neoliberais (Villa, 2008, p. 48-49). No caso especfico do Cone Sul, a diminuio dos gastos com defesa sugere uma relao direta com o processo de transio democrtica, no qual o controle civil sobre as estruturas militares envolvia no apenas a reduo dos oramentos militares, mas tambm o enxugamento de suas atribuies polticas (Sotomayor, 2004).

    A tabela 1 apresenta a porcentagem mdia de gasto com defesa em relao ao PIB de cada pas da regio.

    TABELA 1Gastos com defesa na regio (1988-2008) (Em % do PIB)

    Pas 1988 2008 Gasto mdio

    Argentina 1,5 0,8 1,3

    Bolvia 1,7 1,5 2,1

    Brasil 2,1 1,5 1,7

    Chile 5,0 3,5 3,7

    Colmbia 2,4 3,7 3,1

    Equador 2,0 2,8 2,1

    Paraguai 1,3 0,8 1,2

    Peru 0,2 1,1 1,4

    Uruguai 2,6 1,3 2,0

    Venezuela 1,8 1,4 1,6

    Fonte: Stockholm International Peace Research Institute (Sipri). Disponvel em: . Elaborao do autor.

    Os dados revelam que a variao de gastos com defesa entre os pases da regio tem se comportado de forma distinta entre as pores regionais. Enquanto

  • 31Breve Panorama de Segurana na Amrica do Sul

    Argentina, Chile e Uruguai apresentaram as maiores redues, os pases andinos, com destaque para Colmbia e Equador, registraram crescimentos expressivos, conforme se observa no grfico 1.

    GRFICO 1Gastos com defesa na regio (1988-2008) (Em % do PIB)

    0

    1

    2

    3

    4

    5

    6

    1988 1998 2008

    Argentina Chile Colmbia Equador Uruguai

    Fonte: Sipri. Elaborao do autor.

    Em comparao s mdias mundiais, os gastos dos pases da regio so modestos. Apenas dois mantm gastos superiores a 3% do seu PIB: Colmbia e Chile. O primeiro pode ser explicado pelo estado de guerra interna vivido nos ltimos anos, o que tem levado as Foras Armadas colombianas a serem empregadas em conflitos de baixa intensidade (low intensity conflicts). O caso do Chile, em boa medida, explicado pela permanncia da Ley Reservada del Cobre, que estabelece que 10% do valor das exportaes de cobre devem ser destinados s Foras Armadas.

    3.2.2 Papel das Foras Armadas na Amrica do Sul

    Com relao misso das Foras Armadas, alm do emprego tradicional contra ataques militares clssicos, os militares tm sido empregados: no enfrentamento a delitos transnacionais; em misses de paz da Organizao das Naes Unidas (ONU); como instrumento de desenvolvimento nacional misses subsidirias; e no apoio segurana pblica em caso de carncia policial.

  • 32 O Brasil e a Segurana no seu Entorno Estratgico

    Dos temas anteriores, as novas ameaas especialmente a simbiose entre crime organizado e aes terroristas so as que tm provocado mais impacto sobre as reestruturaes doutrinrias e a destinao dos aparatos militares. A natureza transnacional destas ameaas complica a situao. Diante de tal realidade, resta aos governos nacionais uma difcil escolha: ou investem em estruturas clssicas de defesa, destinando seus militares misso exclusiva de defesa externa, ou reestruturam seus aparatos militares, adaptando-os para o emprego em misses de natureza policial.

    Diante das dificuldades oramentrias e do carter episdico de difcil pre-viso das novas ameaas, torna-se impraticvel pensar na criao de agncias especficas para o tratamento desses ilcitos. Assim, os governos tm, de forma cada vez mais recorrente, envolvido os militares em misses de segurana pblica.

    O envolvimento das Foras Armadas em misses internas, porm, bastante controverso. Os argumentos contrrios so diversos, variando desde o receio de contaminao do instrumento militar pelo crime organizado, passando pelo risco de ampliao da autonomia militar, at o perigo de se estar obedecendo a uma suposta cartilha norte-americana, que pregaria a transformao dos exrcitos latino-americanos em gendarmarias na luta contra o narcoterrorismo.

    A compreenso do quadro que caracteriza a geografia poltica sul-americana sugere uma anlise do processo histrico que envolve as relaes geopolticas na regio, assunto discutido na seo seguinte.

    4 GEOPOLTICA SUL-AMERICANA: UM BREVE PERCURSO

    Sero analisados nesta seo alguns aspectos geopolticos que envolvem a relao entre os pases sul-americanos e o processo de aproximao entre dois atores cen-trais na regio: Argentina e Brasil. De forma geral, o percurso pode ser dividido em quatro fases: i) conteno dcada de 1970; ii) inflexo incio da dcada de 1980; iii) cooperao acentuada na dcada de 1990; e iv) mais institucionalizao dcada passada.

    Pode-se dizer que, at a dcada de 1970, as relaes entre Estados na Amrica do Sul ocorriam sob o pano de fundo de uma geopoltica de conteno, caracterizada pela desconfiana mtua entre vizinhos vistos como ameaas latentes e inimigos em potencial e pela percepo de fronteiras enquanto instrumentos de separao (Medeiros Filho, 2005). Este clima de desconfiana mtua contribuiu para o distanciamento entre os pases sul-americanos, representado pelo baixo volume de comrcio intrarregional e, consequentemente, a escassa integrao regional.

    A relao entre pases-chave, como Brasil e Argentina, era dominada pela percepo de vizinho-ameaa. Podia-se ver, em todos os gestos do vizinho, intenes pouco amistosas ou confiveis. Analisando-se textos de geopoltica

  • 33Breve Panorama de Segurana na Amrica do Sul

    produzidos no Brasil e na Argentina, percebe-se que eles eram marcados por posturas agressivas/defensivas de ambas as partes (Miyamoto, 1999, p. 4). Em Geopoltica do Brasil, por exemplo, o general Golbery do Couto e Silva defendia a tese de que o Brasil, em relao ao seu permetro continental, e fronteira com a Argentina, em particular, deveria adotar uma geoestratgia de conteno, em grande parte preventiva (Silva, 1981, p. 171).

    O perodo entre o fim da dcada de 1970 e o incio dos anos 1980 registrou uma srie de eventos que acabaram por constituir um ponto de inflexo nas relaes geopolticas sul-americanas. Alguns destes esto relacionados a iniciativas coopera-tivas elaboradas pelo Brasil, ator central na regio, na tentativa de desconstruir o imaginrio oriundo da geopoltica de conteno (Villa, 2006). Entre estes eventos, podem ser citados: a criao do Tratado de Cooperao Amaznica, em 1978; a assinatura do acordo junto Argentina e ao Paraguai pondo fim ao impasse que envolvia a questo de Itaipu-Corpus marco histrico da parceria estratgica que d incio ao Mercosul; alm do comportamento do Brasil durante a Guerra das Malvinas, no incio dos anos 1980, fundamental para diluir o dilema de segurana argentino-brasileiro (Russell e Tokatlian, 2003).

    A parceria Brasil-Argentina se aprofunda com a assinatura da Declarao do Iguau, tratando de temas nucleares (entre outros), em 1985, e do Tratado de Assuno, criando o Mercosul, em 1991.

    A partir do incio dos anos 1990, j com a presena de governos civis eleitos diretamente em toda a regio, as tratativas de cooperao regional ganham novos impulsos, alterando, em alguma medida, a percepo mtua entre os vizinhos. O argumento de que a democracia possa gerar a paz controverso. O argumento inverso, porm, de que a paz estabilidade geopoltica possa ser um fator im-portante para a manuteno da democracia na regio parece plausvel.4 Algumas medidas tomadas pelos governos democrticos tm contribudo para possibilitar um clima de paz na regio, incluindo-se o controle civil do aparelho militar por meio dos ministrios de defesa e a publicao de livros brancos.

    Contudo, mesmo aps o fim da Guerra Fria, no havia entre os pases sul-americanos propostas de poltica de segurana para o subcontinente. Este vcuo de iniciativas contribua para que persistisse na regio a ideia de uma arquitetura hemisfrica a partir de iniciativas norte-americanas (Villa, 2007, p. 22). Ao longo da dcada de 1990, as experincias de integrao regional se restringiam quase que exclusivamente a aspectos econmicos, tendo como carro-chefe a ampliao do comrcio regional. Isto no impedia que os temas de defesa e segurana

    4. No mbito do Mercosul, merece destaque a chamada clusula democrtica, institucionalizada pelo Protocolo de Ushuaia sobre o Compromisso Democrtico no Mercosul, em 1998, que considera a plena vigncia das instituies democrticas condio essencial para o desenvolvimento dos processos de integrao entre os Estados-membros do bloco.

  • 34 O Brasil e a Segurana no seu Entorno Estratgico

    fossem pensados e discutidos pelos militares da regio; porm, os acordos assinados tinham carter basicamente bilateral.

    O incio do sculo XXI, porm, registra uma srie de acontecimentos que parecem indicar a direo de uma arquitetura poltico-estratgica e acabam por desaguar na proposta de institucionalizao de um arranjo propriamente sul-americano, representado pelo CDS. Tal postura parece romper com uma longa tradio pan-americana, revestindo-se de um interessante ineditismo geopoltico na Amrica do Sul.

    Nas subsees seguintes, sero apresentadas as principais discusses ocorridas a respeito de uma arquitetura exclusivamente regional para o tratamento de temas de defesa e segurana.

    4.1 Agendas para a integrao regional de defesa

    Propostas de uma arquitetura de defesa em escala subcontinental de carter autctone comearam a aparecer a partir dos anos 1990, em um contexto marcado pelo fim da Guerra Fria e o incio de um novo perodo unipolar. Elas tm origem, portanto, em um contraponto regional ao projeto de globalizao liderado pelos Estados Unidos. Estas propostas, entretanto, obedeceram a interesses e preferncias nem sempre consensuais. Para fins de anlise, podem-se identificar trs diferentes agendas de integrao regional: i) a mercosulina; ii) a bolivariana; e iii) a brasileira.

    4.1.1 Agenda mercosulina

    Denomina-se aqui de agenda mercosulina as propostas de construo de um organismo sul-americano, sob uma perspectiva liberal, como parte da ampliao natural da integrao regional a partir do Mercosul. A finalidade da integrao regional sob esta perspectiva est geralmente relacionada ampliao do grau de integrao regional, atingindo a esfera poltica. Neste caso, o objetivo de uma arquitetura de defesa estaria relacionado necessidade de estabilidade regional, entendida como precondio para a manuteno dos regimes democrticos na regio. Para tanto, a adoo de polticas pblicas transparentes de defesa e segurana, sob o controle civil, passa a ser uma meta central.

    4.1.2 Agenda bolivariana

    Esta agenda resgata a necessidade de se fazer frente a ameaas externas poder hegemnico, potncias extrarregionais que podem pr em xeque a capacidade autnoma dos pases do subcontinente, retomando o pensamento de Simon Bolvar. De carter nitidamente ideolgico para o qual o socialismo do sculo XXI idealizado por Hugo Chvez a sua melhor expresso , ela se caracteriza por mesclar tendncias socialistas, populistas e nacionalistas. Sua retrica

  • 35Breve Panorama de Segurana na Amrica do Sul

    notadamente antiamericanista, sendo os Estados Unidos citados entre as principais ameaas externas regio. Em termos de propostas, a agenda bolivariana contempla a possibilidade de uma integrao militar sul-americana, sugerindo, inclusive, a criao de um organismo militar regional, com estratgia prpria.5

    4.1.3 Agenda brasileira

    Tradicionalmente, a postura brasileira era contrria ao surgimento de qualquer arquitetura de defesa sub-regional. Os primeiros sinais favorveis ao desenvolvimen-to de um sistema de defesa sul-americano comearam a vir tona com a criao do Ministrio da Defesa, em 1999, quando o ento ministro Geraldo Quinto defendeu uma estratgia regional sul-americana, capaz de promover no a formao de alianas militares no sentido clssico, mas o dilogo sobre polticas de defesa na regio (Martins Filho, 2006, p. 21). Estes sinais se tornaram mais explcitos na gesto do ministro Jos Viegas Filho (2003-2004), que se mostrava favorvel ao avano da cooperao militar na Amrica do Sul, especialmente por meio da integrao das indstrias de defesa.6 Foi, porm, na gesto do ministro Nelson Jobim (2007-2011) que se consolidou a proposta, por ele encampada, em relao criao do CDS. Tal postura tem conferido ao pas lugar de destaque na geopo-ltica regional, sugerindo uma agenda brasileira de defesa para a Amrica do Sul.

    4.2 O CDS: origem e consolidao

    A primeira reunio presidencial a tratar do projeto de uma arquitetura regional de defesa contou com a participao de trs presidentes, cada um representando uma das agendas aqui consideradas.

    A proposta para a criao do CDS foi apresentada durante encontro entre os ento presidentes Lula, Hugo Chvez e Nstor Kirchner, realizado em 19 de janeiro de 2006, na Granja do Torto, em Braslia. Segundo o presidente brasileiro, o objetivo da proposta seria a promoo do desenvolvimento tecnolgico regional no setor de defesa, alm de um carter mais institucional s reunies peridicas dos ministros de Defesa da Amrica do Sul. Na ocasio, a opinio do presidente venezuelano, entretanto, era a de que o projeto seria uma espcie de Otan do Sul, com clara tendncia antiamericana.

    Passados alguns meses aps os debates iniciais, a proposta parecia condenada ao engavetamento. O tema foi retomado, porm, em outubro de 2007, quando Nelson Jobim assumiu o cargo de ministro da Defesa. Jobim resolveu percorrer, a partir do incio de 2008, todos os pases vizinhos, em uma misso que ele mesmo

    5. Em 4 de julho de 2006, aps a reunio de presidentes do Mercosul, que aprovaram a entrada da Venezuela no bloco, o presidente venezuelano Hugo Chvez declarou que o Mercosul deber tener algn da una organizacin de defensa conjunta, una estrategia propia para proteger la soberana de sus pases (Elias, 2006).6. Ver Viegas Filho (2003).

  • 36 O Brasil e a Segurana no seu Entorno Estratgico

    intitulou de diplomacia militar. Dois objetivos principais eram apresentados em seus discursos: a construo de uma identidade regional de defesa; e a criao de uma indstria blica sul-americana. No primeiro semestre de 2008, dois acontecimentos deram relevncia discusso do tema: o conflito envolvendo Colmbia, Equador e Venezuela; e a reativao da Quarta Frota norte-americana. Tais acontecimentos impulsionaram o debate e promoveram uma rodada de negociaes entre autoridades de defesa dos pases da regio. Finalmente, em 16 de dezembro de 2008, durante a reunio extraordinria de chefes de Estado da Unio de Naes Sul-Americanas (Unasul), realizada em Costa do Saupe (Bahia, Brasil), o CDS foi criado como uma instncia de consulta, cooperao e coordenao em matria de defesa.

    4.3 Segurana coletiva ou segurana cooperativa: qual a vocao do Conselho de Defesa Sul-Americano?

    Cabe uma ltima discusso a respeito da arquitetura de defesa regional em gestao na Amrica do Sul. Qual deve ser sua vocao? A formao de blocos regionais de defesa sugere dois tipos que, de certa forma, esto na base do que Deutsch (1982, p. 269) chama de comunidade de segurana pluralstica e comunidade de segurana amalgamada: um constructo de segurana cooperativa e de segurana coletiva, respectivamente. Enquanto a primeira visa manuteno da paz entre os pases-membros, a segunda sugere, para alm da segurana cooperativa, a formao de uma comunidade poltica, com identidade funcional comum e a gerao de poder, cujo objetivo principal seria a legtima defesa contra um inimigo comum.

    A definio do modelo que se pretende para o arranjo de defesa regional cooperativo ou coletivo mostra-se de grande importncia, pois desta definio que derivam os mecanismos a serem empregados.

    Se o modelo adotado for o da segurana cooperativa, os mecanismos de cooperao esperados devem se restringir construo de confiana entre Estados, objetivando um ambiente regional marcado pela paz e estabilidade. Em termos prticos, os mecanismos de confiana mtua podem ser representados por atitudes como: notificao de manobras militares, troca de informaes sobre gastos com defesa, intercmbio entre estabelecimentos de formao militar etc. Uma estratgia adequada para este fim pode vir a ser o desarmamento mtuo das partes, como sugeriu o ento presidente peruano Alan Garca.7

    Se o modelo for o de segurana coletiva, entretanto, visto que, neste caso, a regio deve ser entendida como uma comunidade poltica, a estratgia a ser adotada sugere maior grau de integrao, apontando inclusive para elementos de

    7. O ento presidente peruano Alan Garca props a assinatura de um protocolo de Paz, segurana e cooperao entre os pases sul-americanos. Segundo o que foi noticiado, Garcia fez um clculo de que se reduzissem em 3% os gastos que j existem na Amrica do Sul em armamento nos prximos cinco anos e em 15% os gastos em novas armas, permitiria liberar recursos para que 10 milhes de sul-americanos saiam da pobreza (Vaz, 2009).

  • 37Breve Panorama de Segurana na Amrica do Sul

    supranacionalidade. A prpria noo de ameaa comum como princpio fundante dos interesses compartilhados constituiria o elemento motivacional da formao da identidade regional. Nos moldes aqui expostos, a adoo do modelo de segurana coletiva provocaria uma alterao radical na forma como a concepo estratgica de dissuaso tem sido empregada: se, tradicionalmente, ela tem sido aplicada em termos regionais, com foco no entorno de cada pas, o modelo de segurana coletiva sugere pens-la em termos extrarregionais. Em um cenrio hipottico de plena integrao poltica da Amrica do Sul, portanto, a importncia dada dissuaso de mbito estritamente regional cederia lugar, paulatinamente, necessidade por uma dissuaso de amplitude extrarregional (Nascimento, 2008, p. 7).

    Diferentemente do modelo mais modesto de segurana cooperativa, que sugere inclusive o desarmamento como soluo para a segurana, a noo de segurana coletiva tende a apontar em sentido contrrio, em que a ideia de fortalecimento dos mecanismos de defesa reestruturao das Foras Armadas, revitalizao ou desenvolvimento de uma indstria blica regional etc. tende a ser invocada.

    5 SEGURANA REGIONAL SUL-AMERICANA: DESAFIOS INTEGRAO

    Passada a euforia sobre o sucesso do processo de cooperao regional observado na dcada de 1990, constatam-se alguns bices limitadores do avano da integrao regional, nos campos da defesa e segurana, na Amrica do Sul.

    1) Um primeiro aspecto, decorrente em boa medida da geopoltica de conteno que predominou at a dcada de 1980, diz respeito frgil infraestrutura fsica de circulao e escassa complementaridade econmica entre os pases sul-americanos. De fato, diferentemente do processo que ocorreu na poro norte do continente americano Estados Unidos e Canad , na Amrica do Sul, os pases se desenvolve-ram de costas uns para os outros. Um exemplo disto a dificuldade de integrao ferroviria no Mercosul em virtude da diversidade de bitolas usadas entre os pases do bloco, herana de um cenrio geopoltico em que os vizinhos se enxergavam mutuamente como ameaas e adotavam bitolas oficiais prprias com o objetivo de retardar uma eventual invaso militar (Camargo, 1999). Esta fragilidade regional afeta, em primeiro lugar, o avano da cooperao econmica. Eis a questo a ser respondida: possvel avanar no campo da integrao poltica quando os nveis de cooperao econmica so ainda claudicantes?

    2) Um segundo bice decorre da fragilidade da agenda democrtica no continente. A principal limitao parece recair sobre as condies polticas em que se desenvolvem as democracias regionais. O baixo grau da continuidade e institucionalizao das chamadas regras do jogo em

  • 38 O Brasil e a Segurana no seu Entorno Estratgico

    vrios pases da regio impossibilita um mnimo de congruncia entre a racionalidade formal e a prtica efetiva da democracia (Villa, 2006). Sem estabilidade democrtica no h confiana poltica; sem esta, dificil-mente os arranjos regionais avanaro para alm de acordos entre governos.

    3) Um terceiro bice diz respeito fragilidade das instituies regio-nais e ausncia de instituies supranacionais. A dificuldade em se avanar em arranjos supranacionais parece estar relacionada ao receio dos prprios Estados-membros de que a adoo de instituies regionais fortes implique cesso de soberania e, em ltima instncia, cesso de parte de suas liberdades e de seu poder de deciso. Como consequncia, os acordos entre os pases da regio exigem, necessariamente, o consenso, o que acaba por gerar paralisia quando da necessidade de discusso de temas mais complexos, como geralmente so os de defesa e segurana.

    4) O quarto e, talvez, o mais relevante dos bices, diz respeito manuteno na regio de um considervel estoque de desconfiana mtua. Apesar do cenrio de ausncia de guerras clssicas, e em que pesem as mudanas ocorridas a partir do processo de democratizao iniciado nos anos 1980, persistem na regio velhas desconfianas envolvendo questes com poten-cial de se desdobrar em conflito armado. Trs aspectos podem ser aponta-dos. O primeiro se refere a questes territoriais ainda no resolvidas, sendo a mais importante a da sada boliviana para o mar. O segundo aspecto, no obstante o esmaecimento do pan-americanismo na regio, refere-se forte influncia dos Estados Unidos, gerando um quadro de amor e dio no qual as ideologias nacionais se fundam. Atualmente, este aspecto representa a maior ameaa de uma possvel fragmentao regional. O ltimo aspecto se relaciona s supostas posturas imperialistas de seu principal lder. Acontecimentos recentes envolvendo o Brasil e pases da regio (Bolvia, Equador e Paraguai) apontam neste sentido e mostram que as elites destes pases continuam muito sensveis a discursos e imagens do passado sobre as intenes expansionistas do Brasil (Villa, 2006).

    O fato de o CDS ter tido como principal propagador um poltico brasileiro contribuiu para que se levantassem suspeitas sobre a possibilidade de o Conselho refletir um projeto estratgico brasileiro de liderana do subcontinente. Nesse sentido, o CDS poderia ser entendido como uma espcie de plataforma para a exportao dos planos militares do Brasil. Sendo assim, a proposta apenas refletiria a estratgia de sul-americanizao do Brasil, segundo a qual o pas tenderia a maximizar seus ganhos, ampliando suas relaes com a Amrica do Sul. Sob tal perspectiva, a construo de uma comunidade sul-americana para o Brasil poderia ser no um fim em si mesma, mas um meio para a sua projeo.

  • 39Breve Panorama de Segurana na Amrica do Sul

    Alm das questes geopolticas clssicas, contribuem para a manuteno desse estoque de desconfiana um conjunto de problemas que possui origens difusas e pode estar relacionado s vulnerabilidades sociais e fraqueza institucional dos Estados da regio, somados proliferao de grupos criminosos de natureza transnacional.

    6 CONCLUSO

    A geografia poltica sul-americana possui dinmicas muito particulares que envolvem, concomitantemente: i) elementos de conflito e cooperao; ii) ausncia de guerras; e iii) elevados ndices de violncia social. Tais condies, porm, no se espalham de forma homognea no espao sul-americano. Algumas reas so marcadas pela instabilidade regional, no s no que diz respeito s antigas descon-fianas territoriais, mas tambm a fortes vulnerabilidades sociais que colocam em risco a prpria manuteno do estado de direito, como o caso nos pases andinos. Outras pores do subcontinente tm apresentado transformaes radicais nas suas relaes externas e se configuram como candidatas formao de uma comunidade de segurana pluralstica, como o caso dos pases do Cone Sul.

    Um dado interessante o diferente comportamento observado entre as pores regionais do subcontinente no que diz respeito porcentagem de gastos com defesa em relao ao PIB ao longo das ltimas duas dcadas (tabela 1). Enquanto a porcentagem dos pases que compem o Cone Sul manteve uma tendncia decrescente, a porcentagem entre os pases que compem a Amaznia e os Andes manteve tendncia crescente ao longo do perodo considerado. Estas diferenas tm relao com as caractersticas geopolticas predominantes nestas pores. Na primeira Cone Sul , a regio vive um cenrio de relativa estabili-dade poltica e aproximao estratgica entre seus atores centrais: Brasil-Argentina e Argentina-Chile. As demais Andes e Amaznia constituem o chamado arco da instabilidade, onde coexistem ameaas tradicionais e novas. A combinao entre a permanncia de antigas tenses geopolticas, a influncia norte-americana naquela rea, a necessidade de superar o obsoleto estoque de material blico e as novas percepes de ameaas tm contribudo para a ampliao da desconfiana de alguns daqueles pases. Sob tais condies, o avano no processo de integrao torna-se menos provvel.

    Independentemente de como se possa classific-la, deve-se destacar o fato de que a Amrica do Sul hoje uma regio que, no obstante a permanncia de potencial conflitivo, possui um conjunto de caractersticas que a qualifica como uma das regies mais estveis do mundo: apresenta gastos com defesa relativa-mente muito baixos; uma regio livre de armas qumicas e nucleares; e no registra guerras convencionais em seu territrio h quase um sculo. A discusso sobre quais seriam os fatores determinantes de tal situao parece controversa.

  • 40 O Brasil e a Segurana no seu Entorno Estratgico

    H quem defenda explicaes de ordem material: periferia regional e presena do poder hegemnico norte-americano; baixa capacidade de poder militar dos pases da regio; e prioridade dada ao inimigo interno. Outros autores apostam em elementos ideacionais, como a possibilidade de se pensar a regio como uma sociedade de Estados, em que determinadas normas seriam compartilhadas em nome de objetivos comuns a todos os pases da regio. Aparentemente, a melhor explicao no deve ser buscada em um fator determinante, mas em uma engenhosa combinao de fatores que tem proporcionado regio a relativa paz.

    Do ponto de vista das relaes internacionais, resta questionar se os aspectos analisados anteriormente apontam para a consolidao de uma comunidade de segurana na Amrica do Sul ou se este constructo regional no passa de mais uma iluso cartogrfica.

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  • CAPTULO 2

    ENTRE A SEGURANA DEMOCRTICA E A DEFESA INTEGRAL: UMA ANLISE DE DUAS DOUTRINAS MILITARES NO CANTO NOROESTE DO SUBCONTINENTE SUL-AMERICANO

    Adriana A. Marques*Oscar Medeiros Filho**

    Entre as polticas de defesa que esto sendo implementadas nos pases sul-ameri-canos nos ltimos anos, duas em particular vm chamando a ateno de analistas por conta dos diferentes projetos polticos que representam: a Poltica de Defesa e Segurana Democrtica da Colmbia e a doutrina de Defesa Integral da Nao, ado-tada recentemente pela Venezuela. Este captulo analisar os casos colombiano e venezuelano de forma comparada, buscando identificar algumas percepes sobre: i) relaes internacionais; ii) entorno regional; iii) concepes de segurana e defesa; iv) postura estratgica; v) relaes entre civis e militares; e vi) configurao das Foras Armadas. A identificao destas percepes nos permitir apreender alguns elementos das culturas estratgicas venezuelana e colombiana.

    1 CULTURA ESTRATGICA

    Utilizado pela primeira vez no final dos anos 1970 para analisar a doutrina sovitica de guerra nuclear limitada, o termo cultura estratgica, cunhado por Jack Snyder, vem, ao longo das ltimas dcadas, ganhando visibilidade na comunidade acadmica. Snyder usou o termo para se referir a um conjunto de atitudes e crenas que guiam e circunscrevem o pensamento sobre questes estratgicas, influenciam a maneira como estas so formuladas e articulam o vocabulrio e os parmetros perceptuais do debate estratgico (Marques, 2009).

    Dos primeiros trabalhos, produzidos durante a Guerra Fria e centrados na possibilidade de utilizao de armamentos nucleares pelas grandes potncias, s anlises mais recentes, que discutem a pertinncia de se ampliar a agenda de pesquisa sobre cultura estratgica, incorporando o estudo de grupos armados no

    * Mestre em cincia poltica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e doutora em cincia poltica pela Universidade de So Paulo (USP). Atualmente professora e pesquisadora do Programa de Ps-graduao em Cincias Militares da Escola de Comando e Estado-Maior do Exrcito (ECEME).** Oficial do Exrcito Brasileiro. Mestre em geografia humana e doutor em cincia poltica pela USP. professor e pesquisador do Programa de Ps-graduao em Cincias Militares da ECEME.

  • 44 O Brasil e a Segurana no seu Entorno Estratgico

    estatais e a existncia de culturas estratgicas regionais (Howllet, 2005), o conceito foi sendo rediscutido e reformulado, sem que, no entanto, tenha se estabelecido uma definio consensual na literatura especializada.

    Neste captulo, ser adotada uma definio de cultura estratgica inspirada na proposta de Neumann e Heikka (2005), para os quais a cultura estratgica de um pas ou regio pode ser entendida como uma interconexo dinmica entre o discurso (a grande estratgia os fundamentos do pensamento sobre os militares e a poltica de defesa) e a prtica (as doutrinas militares, as relaes entre civis e militares e a aquisio de armamentos). Alm disso, os autores enfatizam que a cultura estratgica dos pequenos pases fortemente influenciada pelo sistema internacional e as alianas so fundamentais para a sobrevivncia destas entidades; por isso, o carter transnacional da cultura estratgica dos pequenos pases um ponto que merece muita ateno dos analistas.

    Tambm ser agregada definio de Neumann e Heikka uma questo con-siderada por outros autores, como Booth e Macmillan (1999), fundamental para a compreenso da cultura estratgica de um pas: a geografia, tanto humana como fsica, incluindo sua posio relativa no globo. Neste sentido, considera-se que a presena de uma grande potncia, os Estados Unidos, no continente americano um fator que influencia fortemente a cultura estratgica dos demais pases do hemisfrio ocidental. Para discutir esta questo geopoltica, ser recuperada a tese de Mrio Travassos (1935), para quem a instabilidade do canto noroeste do subcontinente sul-americano estaria diretamente relacionada influncia dos Estados Unidos.

    2 CONCEITUANDO DEFESA E SEGURANA

    Antes de analisar alguns aspectos da cultura estratgica dos pases em pauta, este captulo far algumas breves consideraes tericas a respeito dos conceitos de defesa e segurana, tendo em vista as implicaes da ampliao da agenda de segurana no ps-Guerra Fria para a configurao das culturas estratgicas nacionais e regionais.

    2.1 O conceito tradicional de defesa e segurana

    O termo segurana tem sido empregado como um estado ou sensao de ausncia de ameaas que poderiam colocar em risco algo que nos pertence. Defesa, sob tal pers-pectiva, refere-se ao conjunto de aes que garantir aquela segurana (Saint-Pierre, 2008, p. 59). De forma simplificada, a segurana de uma nao corresponderia ausncia de ameaas, geralmente externas (ataques estrangeiros), e a defesa seria o conjunto de esforos adotados pelo poder nacional visando neutralizar ameaas.

  • 45

    Entre a Segurana Democrtica e a Defesa Integral: uma anlise de duas doutrinas militares no canto noroeste do subcontinente sul-americano

    O cenrio resultante do final da Guerra Fria colocou em xeque o mo-delo analtico tradicional baseado na ideia de segurana-sensao e defesa-ao. Em um contexto marcado pela indefinio e transnacionalizao das ameaas, e pela dificuldade em se separar questes internas de externas, percebe-se, atualmente, uma tendncia ao uso funcional dos termos defesa e segurana: a separao entre ameaas de carter militar (questes de defesa) e de carter policial (questes de segurana), conforme o esquema a seguir:

    QUADRO 1Uso dos termos defesa e segurana

    Termo Origem ou natureza Agentes Ambiente

    Defesa Conflito ou guerra Foras militares Externo

    Segurana Desordem ou delito Foras policiais Interno

    Fonte: Medeiros Filho (2010, p. 44).

    Os termos adotados no quadro 1 remetem s ideias de defesa nacional (que envolvem preponderantemente aes das Foras Armadas) e segurana pblica (campo de ao das foras policiais). Assim, enquanto o termo defesa empregado para se referir s atividades das Foras Armadas na garantia da independncia, soberania e integridade territorial de um pas, o termo segurana refere-se ao mbito de atuao dos aparatos policiais no combate a ilcitos e crimes de toda ordem.

    Tais definies apresentam, porm, algumas limitaes. A linha que separa questes de segurana interna e externa torna-se cada vez mais imprecisa, e a distino entre misses de carter policial (combate ao crime) e militar (conduo da guerra) torna-se cada vez mais complicada. At que ponto possvel estabelecer a diferena entre ameaas de natureza militar e policial? O combate a grupos armados no estatais que protegem laboratrios de refino de cocana no interior da Amaznia por soldados do Exrcito, por exemplo, constitui uma ao na esfera da defesa nacional ou da segurana pblica?

    Neste sentido, pode-se entender defesa como combate em guerra e seguran-a como combate ao crime. A guerra seria, ento, a violncia promovida pelas unidades polticas entre si, enquanto o crime seria o produto de uma desordem social: A violncia s guerra quando exercida em nome de uma unidade poltica. (...) a violncia empregada pelo estado para executar criminosos e eliminar piratas no se qualifica como tal, porque tem por alvo indivduos (Bull, 2002, p. 211).

    2.2 Por um conceito de segurana multidimensional

    No final do sculo XX, um conjunto de novas ameaas, no necessariamente militares, com capacidade de cruzar fronteiras e potencial para colocar em risco a integridade poltica e social das sociedades, comea a ganhar destaque. Por seu

  • 46 O Brasil e a Segurana no seu Entorno Estratgico

    carter plurissetorial e transnacional, estas novas ameaas passaram a representar srios desafios segurana dos Estados. Em 1994, a Organizao das Naes Unidas (ONU) apresentou uma proposta de mudana no conceito de segurana, transferindo o foco, tradicionalmente centrado nos Estados, para os indivduos. De um conceito de carter exclusivamente territorial, baseado em armamentos, procuro