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  • CULTURAE SOCIABILIDADES

    NO MUNDO ATLNTICO

  • Suely Creusa Cordeiro de AlmeidaGian Carlo de Melo Silva

    Marlia de Azambuja Ribeiro(Organizadores)

    CULTURAE SOCIABILIDADES

    NO MUNDO ATLNTICO

    Recife, 2012Editora

    Universitria UFPE

  • Universidade Federal de PernambucoReitor: Prof. Ansio Brasileiro de Freitas DouradoVice-Reitor: Prof. Slvio Romero MarquesDiretora da Editora UFPE: Prof Maria Jos de Matos Luna

    Comisso Editorial

    Presidente: Prof Maria Jos de Matos LunaTitulares: Ana Maria de Barros, Alberto Galvo de Moura Filho, Alice Mirian Happ Botler, Antonio Motta, Helena Lcia Augusto Chaves, Liana Cristina da Costa Cirne Lins, Ricardo Bastos Cavalcante Prudncio, Roglia Herculano Pinto, Rogrio Luiz Covaleski, Snia Souza Melo Cavalcanti de Albuquerque, Vera Lcia Menezes Lima.

    Suplentes: Alexsandro da Silva, Arnaldo Manoel Pereira Carneiro, Edigleide Maria Figueiroa Barretto, Eduardo Antnio Guimares Tavares, Ester Calland de Souza Rosa, Geraldo Antnio Simes Galindo, Maria do Carmo de Barros Pimentel, Marlos de Barros Pessoa, Raul da Mota Silveira Neto, Silvia Helena Lima Schwamborn, Suzana Cavani Rosas.

    Editores Executivos: Afonso Henrique Sobreira de Oliveira e Suzana Cavani Rosas

    Catalogao na fonte:Bibliotecria Joselly de Barros Gonalves, CRB4-1748

    C968 Cultura e sociabilidades no mundo atlntico / organizadores: Suely Creusa Cordeiro de Almeida, Gian Carlo de Melo Silva, Marlia de Azambuja Ribeiro. Recife: Ed. Universitria da UFPE, 2012.544 p.

    Vrios autores.Inclui referncias bibliogrficas.ISBN: 978-85-415-0084-5 (broch.)

    1. Histria Moderna 2. Brasil Histria Perodo Colonial 1500-1822 3. Igreja e o mundo. 4. Feminismo. 5. Escravido. 6. Miscigenao. I. Almeida, Suely Creusa Cordeiro de (Org.). II. Silva, Gian Carlo de Melo (Org.). III. Ribeiro, Marlia de Azambuja (Org.).

    981.03 CDD (23.ed.) UFPE (BC2012-070)

  • Agradecimentos

    Cultura e Sociabilidades no Mundo Atlntico e Poder e Administrao no Mundo Atlntico so obras que resultaram de um trabalho coletivo iniciado em finais de 2008 quando as Universidades pblicas pernambucanas, atravs de seus professores de Histria Colonial, aceitaram o desafio de realizar no Recife, em 2010, a 3 verso do Encontro Internacional de Histria Colonial. Para sua edio nas antigas terras de Duarte Coelho, a comisso organizadora buscou articular os debates que norteiam a Histria Colonial, especialmente no espao Atlntico, levando a temtica central a intitular-se: Cultura, poderes e sociabilidades no Mundo Atlntico.

    Para realizao do encontro, e consequentemente dos volumes que apresentamos ao pblico, contamos com o apoio de pessoas e instituio s quais desejamos expressar nosso agradecimento, pois sem elas teria sido impossvel realiz-los. Em primeiro lugar a todos aqueles que participaram do evento em 2010 nas mais variadas atividades. Aos discentes das instituies envolvidas e que atuaram nos bastidores por meses. Aos que disponibilizaram seus trabalhos, fruto de pesquisas inditas e ainda em andamento para compor os livros que hoje entregamos comunidade cientfica.

    As instituies que abrigaram e financiaram o evento no podem ser esquecidas. Nosso agradecimento Universidade Federal de Pernambuco, que atravs da Coordenao do Programa de Ps-Graduao em Histria e da Direo do Centro de Filosofia e Cincias Humanas nos cedeu o espao fsico e nos apoiou financeiramente. Universidade Federal Rural de Pernambuco e ao Programa de Ps-Graduao em Histria, pelo apoio financeiro e acolhida ideia, e Universidade de Pernambuco pelo apoio. FACEPE (Fundao de Amparo Cincia e Tecnologia do Estado de Pernambuco), instituio que sempre tem amparado nossas promoes acadmicas e que no nos faltou tambm no 3 Encontro Internacional de Histria Colonial. E, por fim, mas no menos importante, ao apoio dado pela CAPES

  • (Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior), sem o qual no seria possvel a publicao destes livros que consideramos ser uma grande contribuio cientfica para o estudo do passado colonial.

  • SUmrio

    Apresentao ...................................................................................11

    Temas introdutrios........................................................................15

    Os canibais de Lisboa: da histria colonial e imperial histriaglobal .................................................................................................17Serge Gruzinski

    Ser mesmo que somos modernos? A propsito de um livro sobre o modelo pr-moderno da poltica ..................................................35Antnio Manuel Hespanha

    PrimEirA PArTE - A igreja Catlica e o imprio ...................43

    Os Jesutas na Capitania do Rio de Janeiro e suas atuaes noestabelecimento e na consolidao da cidade ...................................45Marcia Amantino

    Reflexes acerca da ao inquisitorial no Gro-Par ........................69Marcia Alves Mello e Maria Olindina Andrade de Oliveira

    Ensino e Misso Jesuta no Oriente ..................................................85Leonor Diaz de Seabra e Maria de Deus Beites Manso

    Escrita e trajetria de um franciscano luso-descendente nascido em Macau (sculo XVII) ........................................................................125Patricia Souza de Faria

    O vigrio geral forense que foi processado pela Inquisio: Frei Cosme Damio da Costa Medeiros no Piau colonial .......................149Pollyanna Gouveia Mendona Muniz

  • As Ordens Terceiras do Carmo e de So Francisco no Rio de Janeiro (c.1700-1822): Anlise comparativa das estruturas administrativas ..................................................................................163William de Souza Martins

    Pregando e convertendo por inspiracin sensible estratgias jesuticas de missionao: Provncia Jesutica do Paraguai (Sculo XVII) ....................................................................................189Eliane Cristina Deckmann Fleck

    Sobre agir muy poco poco hasta tenellos ganados: as Instrues do Padre Diego de Torres Bollo para a misso entre os guaranis .....213Maria Cristina Bohn Martins

    A circulao dos modelos retabilsticos entre Europa e Bahia: o retbulo-mor da Igreja de So Pedro dos Clrigos de Salvador .......233Luiz Alberto Ribeiro Freire

    SEGUNDA PArTE Estratgias Femininas de Sobrevivncia .247

    Espelhos de Esther. As mulheres e a resistncia criptojudaica no mun-do colonial .........................................................................................249Angelo Adriano Faria de Assis

    As donas do poder: Prticas testamentrias de mulheres no Maranho oitocentista (1800-1822) ...................................................................265Marize Helena de Campos

    Entre a proteo e o abandono: recolhimentos femininos na cidade de Lisboa no Perodo Moderno ..............................................................287Suely Creusa Cordeiro de Almeida

    Mulheres indgenas: saberes e poderes na Amrica Portuguesa .......303Leila Mouro

  • TErCEirA PArTE Escravido e mestiagem .......................323

    Los negros esclavos como bienes heredables, segn los testamentos de Toluca en el siglo XVII .....................................................................325Georgina Flores Garca e Beln Benhumea Bahena

    Pai zeloso, cristo e senhor de escravos: o caso de Jos Henrique Pereira Brainer - Pernambuco, limiar dos sculos XVIII e XIX .........................................................................339Gian Carlo de Melo Silva

    Negros e mestios nas guerras da Colnia do Sacramento (1680-1777) .......................................................................................349Paulo Cesar Possamai

    Exticas denominaes: manipulaes e dissimulaes de qualidades de cor no reino de Angola na segunda metade do sculo XVII ........369Roberto Guedes

    San Martn de Porres: um santo mulato no vice-reino do Peru ........399Eliane Garcindo de S

    A Irmandade de So Gonalo Garcia em Pernambuco: a apoteose dos Homens Pardos em Recife (1745) ....................................................425Marcos Antonio de Almeida

  • QUArTA PArTE Cultura e Circulao de Saberes .................453

    Homo Litteratus: o mundo e os modos da leitura na prtica da justia em Minas Gerais no sculo XVIII. ........................................455lvaro de Arajo Antunes

    Contar coisas de todas as partes do mundo: as Relacionesde Sucesos e a circulao de notcias escritasno perodo filipino .............................................................................469Ana Paula Torres Megiani

    As especiarias na cozinha e na botica: notas sobre o intercmbiode plantas e sementes com fins alimentares e medicinais no Imprio Portugus .............................................................................485Leila Mezan Algranti

    Claude DAbbeville e a inveno do ndio: cosmologiae silenciamento ..................................................................................501Ivnia dos Santos Neves

    Cosmologias e saberes afroindgenas na Amaznia marajoara ........525Agenor Sarraf Pacheco

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    Apresentao

    O volume intitulado Cultura e Sociabilidades no Mundo Atlntico composto de trabalhos que, como o prprio ttulo sugere, esto articulados entre o campo da cultura e da histria social. O livro aborda o mais recente debate travado pelos historiadores que estudam o perodo moderno. H toda uma desconstruo em torno das certezas de um paradigma que negava a autonomia de territrios, ideias e pessoas frente s normas e prticas emergentes do Velho Mundo. Os autores e suas reflexes demonstram a dimenso da pluralidade e das negociaes necessrias para a conduo do cotidiano no espao das conquistas.

    Na parte introdutria, o historiador francs Serge Gruzinski analisa a Histria Moderna numa dimenso que vai do colonial ao global. O historiador reflete sobre a crise dos estudos da Amrica colonial na Frana e em outros pases europeus. Na mesma sesso, Antnio Manuel Hespanha trata do ocaso do Estado, de seus direitos e da regulao estadual, atravs do estabelecimento de um dilogo entre quatro obras recentes, com o intuito de fazer uma reflexo acerca do paradigma da modernidade.

    Na primeira parte, intitulada A Igreja Catlica e o Imprio, Marcia Amantino investiga a chegada da Companhia de Jesus no Rio de Janeiro e demonstra sua importncia na consolidao da presena portuguesa, bem como na organizao da prpria cidade, ao fazer frente aos franceses e aos Tamoios com outros grupos indgenas e portugueses. Marcia Mello e Maria Olindina explicam detalhadamente o processo de disciplinamento desenvolvido pela Igreja atravs de seu brao inquisitorial no Gro-Par, tribunal que tinha como objetivo civilizar e levar a salvao a ndios, negros e mestios. No trabalho de Maria de Deus Manso e Leonor Seabra aborda-se a atuao da Companhia de Jesus no Oriente portugus, mais precisamente em Goa. O captulo trata dos espaos de formao criados pelos jesutas, demonstrando seu carter doutrinrio, suas limitaes e contradies. Patrcia Souza, por sua vez, se ocupa da trajetria do frei franciscano Jacinto de Deus, nascido em Macau, deputado do Santo Ofcio de Goa. O mesmo foi

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    autor de uma vasta obra composta por vrios gneros que vo do espiritual histria. J Pollyanna Gouveia acompanha o percurso do Vigrio Geral Forense, frei Cosme e Damio da Costa Medeiros, que foi processado pela inquisio no Piau colonial, religioso descrito como mulato, homem vil e acusado de crimes horrendos. William de Souza Martins trata, numa abordagem comparativa, das Ordens Terceiras do Carmo e de So Francisco no Rio de Janeiro. Ele analisa os mecanismos de escolha dos dirigentes dessas instituies, apontando para a importncia dessas eleies. Eliane Fleck analisa a normatizao do trabalho missionrio junto aos indgenas guaranis no Paraguai, missionao voltada principalmente para reduo dos chamados pecados pblicos, vigilncia e afastamento dos feiticeiros. J Maria Cristina B. Martins trata das Instrues do Pe. Diego de Torres Bollo para as misses guaranticas no Paraguai no incio do sculo XVII. Por fim, Luiz Alberto Ribeiro Freire demonstra a influncia dos tratados arquitetnicos italianos na concepo dos retbulos baianos do sculo XVIII, assim como analisa a circulao de gravuras impressas como meio de transmisso das formas estilsticas europeias.

    Na segunda parte do volume, dedicada s Estratgias femininas de sobrevivncia, encontramos escritos que examinam as aes empreendidas pelas mulheres no mundo colonial. Dentre as fontes disponveis que nos foram legadas pelo passado, aquelas produzidas pelo Tribunal do Santo Ofcio esto entre as mais ricas de informaes sobre a sociedade e o cotidiano colonial. Tais fontes servem de base para o estudo de ngelo Assis, que aborda o papel desempenhado pelas mulheres na preservao e propagao do judasmo no Brasil colonial. Representantes do gnero feminino no estiveram ligadas somente ao mbito religioso, mas foram elementos cruciais no desenvolvimento social e cultural da colnia. Neste caso as donas do poder, apresentadas por Marize Campos, so exemplos da insero feminina no espao econmico colonial e de como suas prticas testamentrias podem servir como uma fresta para entendermos um pouco da sociedade colonial maranhense. Partindo para uma compreenso social dilatada entre a colnia e a metrpole portuguesa, Suely Almeida nos conduz pelo mundo do recolhimento. A autora realiza uma investigao sobre o

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    Recolhimento de Lisboa, apresenta suas especificidades e suas regras de funcionamento, bem como demonstra o papel que tal instituio exerceu na manuteno da honra feminina e consequentemente das famlias e da sociedade, servindo de exemplo para outras instituies similares em todo o Imprio Ultramarino. De volta ao mbito dos domnios portugueses na Amrica, o texto de Leila Mouro trata do papel da mulher na colonizao do norte do Brasil. Sua abordagem tenta lidar com os silncios da documentao e lanar luz sobre a histria das mulheres amerndias, elementos ativos e de grande importncia para o povoamento da regio.

    A terceira parte do livro ocupa-se de Escravido e Mestiagem no espao ibero-americano. Os escravos estiveram presentes no espao colonial desde o sculo XVI e desempenharam um papel significativo no desenvolvimento social, econmico e cultural das sociedades americanas. Deixaram marcas e foram marcados pelas regras da lgica escravista, mas sempre contriburam de forma ativa para consolidao dos iderios coloniais. A presena de indgenas, europeus e africanos nas Amricas tambm favoreceu os processos de mestiagens, que extrapolam o mbito sexual e esto subsumidos por todas as prticas sociais. Esta parte inicia-se com um estudo das antigas colnias espanholas, mais especificamente o Mxico, realizado por Georgina Garcia e Beln Bahena, as quais examinam testamentos do sculo XVII para observar como os escravos eram tratados como bens e serviam de herana para as famlias. Tambm a partir de fontes testamentrias, Gian Carlo de Melo observa, no Recife colonial, o papel dos escravos africanos dentro da famlia branca, tentando entender como o funcionamento da famlia estava ligado ao trabalho realizado pelos seus cativos, sendo eles a fonte de sustento e renda daquelas unidades domsticas. Paulo Possamai, por sua vez, nos traz um estudo sobre os negros e mestios nas guerras pela Colnia do Sacramento. O autor mostra as estratgias desenvolvidas para manuteno do controle de uma regio que foi importante centro de vendas de escravos para a parte sul da Amrica espanhola. Deixando o Brasil vamos para o contexto da Angola setecentista, regio que forneceu muitos dos africanos que foram escravizados nos sculos em que vigorou o comrcio e o trfico escravo.

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    Nesse espao geogrfico, Roberto Guedes examina o significado social das qualidades de cor atribudas aos indivduos. Eliane S debrua-se sobre os santos e as mestiagens na Amrica espanhola. A partir do exame dos significados da devoo a um santo mulato no Peru, a autora busca entender as relaes sociais, culturais e raciais desenvolvidas na complexa trama colonial. Ainda no campo religioso, o santo de devoo da Irmandade dos Pardos em Recife do sculo XVIII, So Gonalo Garcia, serve de fulcro para o estudo dos homens e mulheres pardos, realizado por Marcos Almeida. A devoo mestia que existia em torno de So Gonalo permite ao autor entender um pouco da sociedade que se desenvolveu na Capitania de Pernambuco.

    Na quarta e ltima parte, dedicada Cultura e circulao de saberes, lvaro Antunes, atravs do estudo de aes judiciais em Minas Gerais no sculo XVIII, explicita os conhecimentos e leituras utilizados pelos advogados para amparar suas argumentaes na prtica da justia. Ana Paula Megiani, atravs de Relaciones de Sucesos, busca demonstrar a importncia e o impacto da circulao de notcias nas sociedades ibricas durante o perodo filipino. Leila Algranti estuda os intercmbios dentro do Imprio Portugus: trata do interesse portugus por conhecimentos sobre a fauna e flora das regies colonizadas. Ao longo da narrativa a historiadora vai demonstrando como as drogas e especiarias foram sendo incorporadas s prticas culinrias e da medicina, ampliando o processo de hibridizao cultural. J Ivnia Neves, atravs da anlise da obra do muito conhecido cronista Claude DAbbeville, discute a criao de um imaginrio discursivo repleto de esteretipos acerca dos ndios como mecanismo de dominao poltica dos mesmos. Usando de Foucault a Orlandi, a autora constri um estudo sobre tradues culturais e poder. Trabalhando, por seu turno, com cultura material, memrias e literatura, Agenor Pacheco tece uma reflexo sobre o papel das mesclas culturais afroindgenas como desarticuladoras das aes de poderes colonizadores na regio Amaznica.

    Os Organizadores

  • TEmAS iNTroDUTrioS

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    os canibais de Lisboa:da histria colonial e imperial histria global

    Serge GruzinskiCNRS/cole des Hautes tudes en Sciences Sociales

    De incio no posso deixar de exprimir minha gratido aos organizadores, em especial professora Suely de Almeida, pelo convite que me fizeram e que me permite, aqui e agora, apresentar algumas interrogaes sobre a histria colonial.

    Tanto os debates sobre a natureza do imprio lusitano e do antigo regime nos trpicos quanto as polmicas que animam o cenrio acadmico brasileiro e portugus testemunham a riqueza e a diversidade dos estudos coloniais que dizem respeito a essa parte do mundo. Minha preocupao outra. Est relacionada com a crise dos estudos de histria da Amrica colonial na Frana e em outros pases europeus. Est relacionada com a necessidade de redefinir a contribuio desses estudos para as cincias sociais e para a histria em particular. Como escolher problemticas, levantar hipteses e privilegiar interpretaes que possam dialogar com o mundo presente, ou seja, com um mundo globalizado no qual os nossos velhos horizontes historiogrficos a regio, a nao, a identidade nacional, as colnias, os imprios podem transformar-se em fronteiras e obstculos que mantm o pesquisador nas guas mornas da rotina e do academismo? No disponho de uma resposta universal. S posso responder como historiador europeu. Na medida, obviamente, em que ns, historiadores europeus, to frequente e justamente acusados de eurocentrismo, teramos conservado a capacidade de contribuir para a construo e a leitura dos passados das outras partes do mundo

    os canibais de Lisboa

    Iniciarei as minhas reflexes com uma antiga receita: Esta gente gosta de comer crianas. Costumam ferver gua numa grande panela;

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    quando borbulha, pem uma pequena criana numa gaiola de ferro e colocam-na em cima da panela e a escaldam usando o vapor para fazer-lhe sair o suor. Quando todo o suor saiu, retiram-na [da gaiola] e com uma escova de ferro tiram, escovando, a pele danificada. A criana est ainda viva. Ento matam-na, racham-lhe o ventre, retiram os intestinos e o estmago, e cozem [o corpo] a vapor; eles comem-na1.

    A citao lembra um texto famoso de Jean de Lry que escreve na Viagem terra do Brasil: chegam com gua fervendo, esfregam e escaldam o corpo a fim de arrancar-lhe a epiderme; e o tornam to branco como na mo dos cozinheiros os leites que vo para o forno2.

    Pois bem, esses canibais que gostam de comer crianas cozidas a vapor no so Tupinambs. So Portugueses, conforme o texto citado, um texto chins que pertence a uma crnica da segunda metade do sculo XVI, intitulada Chou-yu tcheou-tseu lou 3. Foi redigida por Yen Tsong-kien em 24 captulos com um prefcio datado de 1574. Yen Tsong-kien era um alto funcionrio da corte Ming de Pekim encarregado das audincias imperiais, em particular das audincias concedidas aos enviados estrangeiros. Ou seja, ele era um especialista das gentes de fora.

    Vrios textos chineses dessa poca repetem que os Portugueses coziam crianas raptadas a vapor em recipientes metlicos antes de esfol-las ainda vivas e de com-las. No so testemunhos isolados nem afirmaes exclusivamente chinesas4. As crnicas portuguesas consignam semelhantes acusaes, embora de maneira mais elptica e modificando a receita: [os Portugueses] os comio asados5. Na metade 1 PELLIOT, Paul in Le Hoja et le Sayyid Husain de lhistoire des Ming, Toung Pao, Second series, vol. 38, Livr.2/5, 1948, p. 94. 2 LRy, Jean de. Viagem Terra do Brasil. Belo Horizonte: EDUSP, Itatiaia, XV, p.198. Ou estas linhas do ingls Anthony Knivet: Ento, com um dente de capivara, rasgaram os selva-gens toda a pele do morto e tomando-o pela cabea e pelos ps, o mantiveram chama; depois esfregando com as mos, lhe despregaram toda essa pele, deixando-o em carne viva in FER-NANDES, Florestan. A funo social da Guerra na sociedade tupinamba. Revista do Museu Paulista, n.s., p. 293.3 PELLIOT, Paul. Op. cit., p. 119.4 BARROS, Joo de. Dcadas da Asia, T.III, IIa parte, livro VI, Lisboa, 1777, pp.16-18.5 DINTINO, Raffaella. Enformao das cousas da China. Textos do sculo XVI. Lisbonne:

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    do sculo XVI, o famoso autor das Dcadas da sia, o cronista Joo de Barros, fala desse rumor e procura mesmo encontrar uma explicao: por que de gente [de quem os chineses] nunca tiveram noticias e [ns] ramos terror e medo a todo aquelle oriente no era muito crer-se que fazamos estas cousas, porque outro tanto cremos nos delles e de outras naes to remotas, e de que temos pouca noticia6. Ou seja, os Portugueses tinham to pavorosa imagem na sia que no lhes parecia surpreendente serem acusados de antropofagia. Outras fontes portuguesas censuram a informao e preferem falar de cachorros assados e comidos pelos Portugueses, embora a substituio tornasse a acusao absurda, j que os chineses costumavam provar cachorros.

    Desta vez no so os ndios do Novo Mundo, mas os Europeus que so acusados de canibalismo e de barbrie7, como se os chineses estivessem devolvendo contra os Portugueses uma das obsesses ou um dos preconceitos mais enraizados entre os Europeus no seu trato com povos desconhecidos. Percebidos como estrangeiros pouco educados, importunos, tirnicos e arrogantes, os Portugueses recm-chegados na China no podiam enganar ningum. Porm no pareciam caboclos idiotas nem visitantes inofensivos: eram vistos como espies que queriam estabelecer-se nas terras do Filho do Cu, como demonstram os famosos padres que os navegadores lusos costumavam erigir nos lugares que abordavam e logo pretendiam ocupar.

    Para as autoridades chinesas, quem eram os Portugueses? Um povo de piratas. [Para eles] ramos ladres8, lamentava-se um dos Portugueses aprisionados em Canto. Para os Chineses, eram uns franges ladres. Franges queria dizer francos, o nome atribudo a todos os Europeus no Mdio Oriente e na sia Medieval. As sentenas pronunciadas em Canto em dezembro de 1522 contra os membros da primeira embaixada portuguesa os designavam como ladres piquenos

    Imprensa nacional, Casa da Moeda, 1989, p. 9 e nota 17. 6 BARROS, Joo de. Op. cit., p.14. 7 DINTINO, Raffaella. Op. cit., p. 9, nota 17: Yueshan congtan, trad. francesa in PELLIOT, Paul. Op. cit., p. 93; Guangdong tongahi, ibid., p. 93; Tianxia jungo shu, cap. 119, p. 43.8 Ibid., p. 10.

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    do mar, enviados pollo ladro grande, [que] falsamente vm espiar nossa terra9. Seriam esses ladres militarmente perigosos? Nem mesmo isso, j que os Chineses os consideravam pssimos soldados. A sua opinio categrica: no sabem pelejar [= lutar] em terra que so como pexes que como os tiro dagoa ou do mar, logo morrem10.

    Vejamos agora como esta anedota do canibalismo portugus, este pequeno detalhe da histria sino-portuguesa, pode modificar a nossa abordagem da histria colonial americana.

    os canibais so os outros

    Ns nunca costumamos pensar os Europeus como seres selvagens e primitivos, menos ainda como os vencidos. Tampouco costumamos imaginar os Portugueses na pele de um povo de canibais, apesar dos preconceitos que conservamos contra nossos vizinhos. Para ns os canibais sempre so os outros, os aliens. Na Europa do sculo XVI, os antropfagos so os povos remotos do Oriente ou os naturais das ndias ocidentais. So amerndios, como os indgenas do Brasil e do Mxico; so africanos, como os Manes e os Sumbas da frica Central, que o cronista mulato cabo-verdiano Andr Alvarez de Almada descreve como horrveis canibais que matam os homens como se fossem vacas ou cordeiros. Para muitos Europeus, os ndios eram ou podiam ser canibais, porque eram brbaros e selvagens. A acusao de antropofagia tinha usos mltiplos: sublinhava a superioridade dos cristos ou dos brancos e justificava a exterminao e a colonizao.

    Vrios Europeus criticaram esse discurso colonialista. Na sua Historia apologtica sumaria, Bartolom de Las Casas tenta explicar a antropofagia indgena: para o dominicano, o canibalismo americano podia ser um rito religioso, como no caso dos ndios mexicanos, ou um acidente, uma perverso introduzida por indivduos ou grupos, como no caso dos ndios Caribes ou dos ndios do Brasil. Las Casas fundava a sua interpretao sobre observaes feitas no Novo Mundo 9 Ibid., p. 15. 10 Ibid., p.19.

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    e sobre dados recolhidos nos autores da antiguidade. Admitia que a antropofagia fosse uma forma de bestialidade, mas lembrava que tinha sido praticada por vrias naes europeias no passado e mesmo pelos conquistadores castelhanos na Flrida em situaes excepcionais. Adotando uma viso global do fenmeno, o dominicano falava dos canibais de Java e mencionava as prticas dos Trtaros com termos que lembravam as acusaes chinesas contra os Lusos11. Ignorava o nosso dominicano que os herdeiros dos Trtaros, os chineses da dinastia Ming, acusavam os Portugueses de comportamentos e prticas ainda mais cruis e bestiais, para empregar as prprias palavras do defensor dos ndios. Montaigne, anos depois, intervir no debate sobre o canibalismo, comparando as prticas indgenas com as guerras civis europeias, guerras que ele denunciava como muito mais brbaras que as dos ndios do Novo Mundo.

    De qualquer ngulo que se considere, o debate europeu sobre a antropofagia permanecia um debate interno entre Europeus cultos que nunca eram acusados de serem eles mesmos canibais. Indianfilos ou colonialistas e racistas tratava-se de discursos exclusivamente europeus.

    Com as acusaes chinesas, muda tudo. A acusao provm de fora e no apenas enuncia-se de fora, mas produzida por uma sociedade muito antiga, politicamente poderosa, eticamente admirvel, militar e economicamente forte. Com as acusaes chinesas, estamos confrontados a um discurso asitico, elaborado e difundido por uma potncia cujas foras eram naquele tempo superiores s de todos os pases europeus juntos. bvio que os Portugueses no eram antropfagos. verdade que eles capturavam ou compravam crianas, mas no o faziam para com-las, s o faziam para escraviz-las. Eles gostavam de comerciar escravos em todas as partes, no de cozinhar carne humana. O seu interesse era econmico, no gastronmico. Na realidade, essas acusaes eram rumores espalhados pelas autoridades

    11 LAS CASAS, Bartolom de. Apologtica historia sumaria, Edmundo OGorman ed. Mexico: UNAM, 1967, T. I, p.467-470, T. II, p. 187-188, 196, 211.

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    chinesas para aterrorizar as populaes locais e apart-las dos visitantes portugueses12. O clculo tinha sentido. Para entender a reao do poder chins, convm lembrar que os Portugueses esperavam poder conquistar Canto, apoiando-se no povo chins contra os mandarins, pois, segundo eles, [aqui] toda a gente deseja revolta e vinda de Portugueses13.

    Ns partimos de uma receita de crianas cozidas a vapor. Mas, como vemos, esta histria de Portugueses canibais de que talvez tivesse gostado o autor da Viagem do elefante, o escritor Saramago apenas a parte emersa do iceberg. Na realidade, estamos descobrindo um mundo ao inverso. Com efeito, para os chineses, os canibais eram os invasores portugueses, eles eram os brbaros, os selvagens, ou seja, os seres inferiores, o que causa situaes inusitadas para o especialista dos mundos americanos da era colonial: esta vez os vencidos somos ns os Europeus. Os Portugueses retidos nas prises de Canto aparecem como vtimas duma burocracia xenfoba, pois basta ler e reler suas cartas para perceber a angstia com que padeciam incriminaes e humilhaes. De repente o velho espelho colonial que alimenta o nosso narcisismo e nossa culpabilidade ps-colonial, e que continua fascinando os ex-colonizados, torna-se opaco e incmodo.

    Um mundo ao inverso.

    Vrios pontos chamam a nossa ateno: o paralelismo das reaes entre o Novo Mundo e a China, a inverso das posies e a simultaneidade dos casos apresentados. O mundo asitico inverte a

    12 Da mesma maneira, provvel que os Tupinambs e seus aliados europeus utilizaram ao m-ximo a reputao de que eram temveis antropfagos para afastar sempre que possvel a ameaa portuguesa. Cabe lembrar que os Castelhanos tampouco escaparam desta figura do alien devo-rador, pois os Japoneses acusaram os missionrios espanhois de prticas antropfagas: diziam que os franciscanos comiam os corpos dos leprosos, tomando como motivo que comen vaca. No Novo Mundo, o mestio Diego Muoz Camargo lembra que no momento da conquista os naturais acreditavam que os Espanhois traziam grandes animais y bestias fieras y drages, para que coman e engoliam as gentes.13 DINTINO, Raffaella. Op. cit., p.31.

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    situao americana, pois na China os selvagens so os intrusos e os canibais so os Ibricos. Cronologicamente, o discurso chins sobre a antropofagia lusa e o discurso ibrico sobre a antropofagia indgena so contemporneos.

    fascinante confrontar as acusaes chinesas com um quadro do museu de Arte antiga de Lisboa: trata-se da figurao do Inferno, no qual um grupo de danados portugueses so torturados e cozidos em grandes panelas; Sat e um dos ajudantes da cozinha infernal so ndios do Brasil cobertos com vestidos de plumas. A pintura foi realizada exatamente em anos nos quais os Portugueses de Canto eram tratados como ladres, raptores e comedores de crianas. No quadro de Lisboa, os ndios do Brasil e uma negra africana servem de carrascos cozinheiros, enquanto nos textos chineses so os Portugueses que preparam o banquete antropfago.

    Ao discurso ibrico corresponde um discurso chins. No so discursos independentes. Ao contrrio, compem um mesmo universo histrico, j planetrio, criado pela expanso ibrica. Nestas condies, ser que podemos continuar a discutir questes como a da antropofagia, da dominao colonial, da imagem do Outro, esquecendo sistematicamente a metade do mundo, principalmente quando hoje esta outra metade est se tornando a mais importante do globo? O velho espelho colonial no apenas deforma a imagem do mundo, mas a reduz, pois s reflete a metade dele.

    Como explicar este silncio ou esta cegueira?

    As historiografias modernas privilegiaram as histrias nacionais, coloniais e imperiais. A histria colonial cultivou vises dualistas e redutoras do passado, vises herdadas dos nacionalismos do sculo XIX, e sempre fortemente filtradas por eles. Escassos so os trabalhos que propem uma histria colonial do continente americano considerado na sua integralidade: a ltima obra de John Elliott, Empires of the Atlantic World, em muitos aspectos admirvel, deixa de lado a Amrica portuguesa, exatamente como David Brading esqueceu o

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    Brasil colonial em seu magnfico livro intitulado em espanhol Orbe indiano14 Mas o Novo Mundo foi tambm o produto das suas relaes coletivas com a frica. De maneira exemplar e nica no contexto latino-americano, muitos historiadores brasileiros esto recuperando a histria africana to essencial para entender o passado americano. Contudo o mundo ibrico do sculo XVI era ainda muito mais extenso. Ele no pode ser reduzido s suas dimenses africanas nem atlnticas. Em outros termos, parece difcil pretender analisar suas dinmicas, suas especificidades e at sua modernidade sem reintroduzir o Isl e a sia na paisagem do americanista e de suas problemticas. Nas Quatro partes do mundo, em 2004, e logo quatro anos depois em Quelle heure est-il l-bas?, tive a oportunidade de explicar qual era minha maneira de ver os imprios e como se poderia revisitar a histria ibrica. Agora queria insistir sobre o caso da China para estender mais ainda este percurso dos mundos ibricos.

    A China foi uma das numerosas vtimas da fragmentao e da desconexo propiciadas pelas rotinas acadmicas, pelos cortes disciplinares e pelos etnocentrismos, sejam europeus ou latino-americanos. Porm, a China foi descoberta e visitada pelos Portugueses nos mesmos anos nos quais os Espanhois exploravam as costas mexicanas15. Mas os americanistas costumam excluir a China da sua paisagem historiogrfica. Num artigo recm-publicado na revista Tempo sobre as imagens do canibalismo na Europa do sculo XVI, comenta-se mais uma vez a inscrio canibali que figura no lugar do Brasil sobre o famoso mapa de Sebastian Mnster, Novus orbis, Die Nw Welt (1540), sem, porm, reparar um detalhe que salta vista,

    14 ELLIOTT, John. Empires of the Atlantic World,Britain and Spain in America, 1492-1830, yale, 2006; BRADING, David A. The first America. The Spanish Monarchy, Creoles Patriots and the Liberal State, 1492-1867. Cambridge, 1991.15 At o incio do sculo XVI, a China era um pas to desconhecido dos Europeus como o Mxico. Sabia-se algo do Cathay de Marco Polo, mas nada se conhecia da China dos Ming. Com efeito, como sabemos, os Portugueses demoraro anos para compreender que a China dos Ming era o pas que tinha sido visitado e observado por um mercador veneziano no sculo XIII, chamado Marco Polo.

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    a estranha proximidade entre Tenochtitlan, Zipangu e Cathay16 Ou seja entre o Mxico, o Japo e a China, que os Europeus do sculo XVI achavam serem todos eles pases vizinhos.

    O mapa de Mnster e muitas outras fontes nos lembram que, na Europa da primeira metade do sculo XVI, para muitos Europeus o Novo Mundo no era mais do que a antecmara da China. Lembra-nos que a emergncia da figura do Chins contempornea apario da figura do ndio mexicano e do ndio brasileiro nos imaginrios europeus. Estou convencido de que daqui em diante ser cada vez mais difcil continuar dissociando esses fenmenos se quisermos renovar nossa compreenso da expanso europeia, o que nos levar a tomar mais a srio e em conta a outra cara desta histria: a cara asitica, e, mais especificamente, a cara chinesa.

    Histrias paralelas

    Como sabemos, esta histria de Portugueses canibais apenas a parte emersa do iceberg. Para entend-la, convm lembrar um pouco da cronologia. Com efeito, a primeira embaixada portuguesa para a China, a de Tom Pires, ou seja, a primeira tentativa oficial de penetrao do imprio celeste pelos Europeus, aconteceu exatamente nos anos da invaso do Mxico por Hernn Corts e pelos conquistadores castelhanos. Por um lado, o rei Manuel de Portugal tinha enviado uma embaixada corte de Pequim na firme inteno de estabelecer-se nas costas chinesas. Por outro lado, um Espanhol de Cuba determinou transformar uma expedio de resgate, uma incurso de saque na conquista (na pacificao, dizia ele) de um territrio imenso, que se chamaria Nova Espanha.

    Essas duas histrias foram paralelas e indiretamente ligadas. Elas tiveram lugar entre os anos 1517 e 1522. Elas tm muito em comum, apesar do silncio generalizado dos historiadores sobre esses anos e essa conjuntura, porm crucial na trajetria do Ocidente. Dois dos maiores 16 CHICANGANA-BAyONA, yobenj Aucardo. Canibais do Brasil: os aougues de Fries, Holbein e Mnster (sculo XVI). Tempo, 28, p.165-192.

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    choques de civilizao na histria do mundo se produziram nesse momento. Assistimos ao descobrimento simultneo de dois mundos civilizados, imensos, urbanizados, ricos e at ento completamente desconhecidos. Quer dizer, ao mesmo tempo, os dois povos ibricos tiveram a oportunidade de confrontar-se com sociedades extremamente sofisticadas e, ao mesmo tempo, ambos, tanto Castelhanos quanto Portugueses, pretenderam apoderar-se delas a sangue e a fogo. Por isso, achamos uma clara ressonncia entre as cartas dos Portugueses Vieira e Calvo e a segunda carta de relao de Hernn Corts, na medida em que todas contm projetos paralelos de conquista e colonizao.

    Essas histrias no so apenas paralelas. So tambm ligadas e rivais.

    Por que so histrias ligadas?

    Qual foi o contexto das duas empresas? Tanto a coroa portuguesa quanto a coroa castelhana queriam se apoderar das ilhas das Especiarias. Tanto Manuel de Portugal quanto Carlos de Gante cobiavam uma das maiores fontes de riqueza do momento: as especiarias das Molucas, em particular a pimenta17. Os castelhanos, por seu lado, eram convencidos de que o Oceano Pacfico era um lago e que as ilhas aromticas, as to cobiadas Molucas, e o fabuloso Cathay de Marco Polo ficavam muito perto das costas da Amrica Central. Nesse contexto, a conquista de Malaca e a de Cuba, ambas realizadas no ano de 1511, constituram etapas prvias para acercarem-se das Molucas e da China. Cabe lembrar tambm que pouco tempo aps concluir a conquista do Mxico, Corts iniciou a construo de uma armada nas praias do Pacfico para cruzar o Mar do Sul e chegar a Tidore e Ternate, com os reis das ilhas das Especiarias. Em poucos anos, a Nova Espanha tinha-se tornado a base castelhana para organizar a ocupao das Molucas e o avano at a China.

    17 O futuro Carlos Quinto nunca tinha programado a conquista do Mxico que Corts imps e realizou como uma iniciativa pessoal. Ao contrrio, o dinheiro da coroa e do grupo conduzido pelo poderoso Cristovo de Haro foi invertido na flota de Magalhes.

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    Mas as autoridades castelhanas no esperaram a queda de Mxico-Tenochtitlan. Como sabemos, enquanto Corts estava avanando para a capital asteca, o rei de Castela, Carlos, mandou o portugus Magalhes para que se apossasse das Molucas. Como sabemos tambm, a expedio conseguir chegar s ilhas depois de passar o estreito famoso e de cruzar o Pacfico. Nas Molucas chocar com os Portugueses estabelecidos na regio.

    Alm do comum tropismo asitico, essas histrias relacionam-se atravs de vrios atores histricos: nos primeiros contatos comerciais entre a China e Portugal aparece uma figura intrigante, um prtico das coisas da sia, um portugus de origem italiana, Rafael Perestrello, que realizou a primeira viagem comercial para Canto em 1514. Teve um papel relevante em Malacca e Sumatra. Pois bem, Rafael era nada menos que o primo de Filipa Perestrello-Moniz, a mulher de Cristvo Colombo, e a me do vice-rei das ndias desde 1511, Diego Coln y Moniz Perestrello. De Canto a Santo Domingo, a mesma famlia contribua ativamente expanso ibrica.

    Outro contato chave para desemaranhar o que aconteceu nestes anos: quem achamos na recm-conquistada Malacca? Ferno Magalhes, o futuro traidor, que abrir aos Espanhois as portas da sia. Em Malacca, Magalhes se familiarizou com os lugares, os homens, as culturas do Extremo-Oriente. provvel que ali tenha se encontrado com Tom Pires, que estava escrevendo a Suma oriental, um ensaio pioneiro, um dos textos portugueses mais fascinantes do sculo XVI, no qual o feitor consignou parte das informaes recolhidas sobre a geografia econmica e poltica da sia. Pires ainda no sabia que ia encabear a primeira embaixada portuguesa corte de Pequim. [25]

    o que nos ensinam essas histrias paralelas e transocenicas?

    Em primeiro lugar, que o discurso europeu e o discurso chins sobre o canibalismo so constitutivos de um todo, a parte, esta vez imersa, do iceberg. Em segundo lugar, que os acontecimentos dos anos 1517-1521 marcam uma conjuntura crucial para o destino da Europa e a

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    futura configurao do Ocidente: a criao das primeiras relaes entre a cristandade Latina e duas das maiores civilizaes do mundo.

    Por que tentar a confrontao sistemtica das fontes portuguesas, chinesas, castelhanas e mexicanas? Aqui estamos entrando mesmo no terreno duma histria global. Uma histria que permita repensar sistematicamente a histria do choque entre os Ibricos e os Amerndios luz dos acontecimentos contemporneos no Extremo Oriente. Fique claro que no se trata simplesmente de desenvolver uma histria comparada entre a China e o Mxico. Trata-se, no meu caso, de revisitar a conquista do Mxico a partir do que nos ensina a conquista abortada da China. Trata-se de utilizar o espelho chins para quebrar uma srie de clichs ligados conquista do Mxico e refletidos pelo velho espelho colonial.

    Que revela esse exerccio de releitura? Mostra, por exemplo, que a famosa conquista espanhola demorou meses e anos para tornar-se conquista no sentido pleno do termo, enquanto a embaixada de Pires exclusivamente apresentada na historiografia lusa como uma embaixada pacfica escondia desde o incio um projeto explcito de conquista, amplamente detalhado nas cartas dos Portugueses e anunciado pela tomada brutal de Malacca.

    Na realidade, as penetraes ibricas no so apenas paralelas e contemporneas; elas seguem o mesmo esquema: primeiro, o reconhecimento do terreno sob a forma e o pretexto de uma embaixada oficial ou fingida; segundo, o deslizamento progressivo para o conflito aberto, ou o enfrentamento militar; terceiro, a preparao da conquista, e depois, finalmente, a prpria conquista. Esta ltima etapa, como sabemos, permanecer virtual para os Portugueses da China.

    As duas penetraes tm muitos elementos em comum, salvo sua concluso, seu desfecho. Todos sabemos como acabou a histria da Amrica pr-cortesiana. Apesar do seu peso demogrfico, das suas sociedades complexas e das suas antigas civilizaes, a Amrica pr-colombiana ser em grande parte aniquilada, colonizada e ocidentalizada. Ao contrrio, nos mesmos meses nos quais Corts

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    estava sitiando a cidade do Mxico, entre junho e agosto de 1521, os Chineses decidiram romper todas as relaes com a embaixada de Pires e com os Portugueses. Em vez de abrirem-se aos invasores, tal como os Mexicanos, as autoridades chinesas fecharam o imprio celestial aos estrangeiros antes de eliminar fisicamente os intrusos, ficando tranquilos, soberanos e independentes at a primeira metade do sculo XIX.

    Dito de outra maneira, a perspectiva chinesa, ou seja, a tomada em considerao da outra cara do mundo nesta histria nos obriga a repensar as modalidades da expanso europeia; a reexaminar o que este sucesso pela metade dos Ibricos fiasco portugus na China, compensado pela vitria espanhola no Mxico e logo no Peru representou para a Europa e o Ocidente.

    Neste caso, fascinante observar como, face China e s Amricas, os Ibricos conseguiram improvisar estratgias de penetrao simultneas, porm completamente opostas: os Ibricos inventaram e implantaram formas esmagadoras de colonizao e ocidentalizao na parte americana, enquanto se resignaram a ou escolheram a asiatizao no Extremo-Oriente, optando ali por uma presena clandestina ou marginal.

    os Europeus vistos pelos seus hspedes

    fascinante tambm observar as reaes dos indgenas, ou seja, dos Mexicanos e dos Chineses. Aqui passamos do jogo habitual com apenas dois jogadores espanhol/ndio ou espanhol/portugus para uma partida mais complexa jogada com quatro jogadores: espanhol, ndio, chins, portugus. Passando de uma viso bidimensional quarta dimenso, encontramos novamente reunidas as condies de uma histria global. Pois bem, as percepes que tinham Chineses e Mexicanos dos Ibricos eram bem distintas. Sabemos que os ndios mexicanos consideraram os castelhanos como teules, ou seja, como seres no humanos, sobrenaturais, e que podiam revelar-se extremamente nefastos. Alm disso, o termo indgena teules designava

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    as vtimas humanas que eram transformadas ritualmente em deuses para morrerem sacrificadas elas eram os ixiptla dos deuses. Para os ndios do Mxico, os castelhanos teules eram ao mesmo tempo perigosas criaturas invasoras e alimento predileto dos deuses.

    Para os Chineses, os Portugueses no eram mais do que brbaros, selvagens. As fontes chinesas perdem-se em conjecturas sobre a localizao do misterioso pas:18 Eram os Portugueses canibais originrios das ilhas perto de Borneo que eram povoadas por selvagens antropfagos? Pior ainda, o autor do primeiro tratado impresso sobre a China, o dominicano Gaspar da Cruz, explica que os Chineses chamavam os Portugueses de fancui, ou seja, gente do diabo19. E no lhes queriam dar outro nome. Para parafrasear o Glauber, os castelhanos eram deuses na terra do sol asteca, enquanto os Portugueses eram diabos na terra do drago! Os Ibricos tiveram essa dupla cara que leva a revisitar a histria linear e monoltica, seja triunfalista ou culpabilizadora, da expanso europeia, e tambm a histria duma parte do globo no sculo XVI.

    Como passar da histria colonial histria global?

    Primeiro, repensar a relao entre imprio portugus e imprio espanhol em vez de acreditar que o ibrico apenas a justaposio de casos espanhois e de casos portugueses, como observamos em demais publicaes coletivas com ambies comparativas. Tampouco ibrico pode ser reduzido a uma mistura de muito Brasil com uma pitada de Oriente20. A riqueza da categoria ibrica provm do patrimnio comum e nico que representa diante do resto da Europa e da sua natureza eminentemente polimorfa, compsita e mbil, que deve ser constantemente redefinida.

    18 Seria o reino dos Fo-lang-ki situado na parte sudoeste do oceano, perto de Malacca? Seria localizado no sul de Java? Seria Fo-lang-ki o novo nome do pas de Lambri, no noroeste de Sumatra? Ver PELLIOT, Paul. Op. cit., e GRUZINSKI, Serge. La guerre de Chine naura pas lieu. Pour une histoire globale de La Renaissance.19 CRUZ, Gaspar da. Tratado das coisas da China. Lisboa: Cotovia, 1997, p. 222.20 VAINFAS, Ronaldo & BENTES, Rodrigo (edit.). Imprio de vrias faces. Relaes de poder no mundo ibrico da poca Moderna. So Paulo: Alameda, 2009.

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    Abordar a expanso ibrica como um todo enriquece e complica a reflexo sobre a expanso europeia, porm esse esforo s no basta. A fixao pela expanso ibrica no deixa de ser uma atitude incorrigivelmente eurocntrica. A maior parte dos estudos histricos na poca moderna foi concebida e desenvolvida a partir de uma base europeia e de problemticas europeias, reservando sempre a posio dominante aos Europeus, seja para exaltar a sua obra civilizadora, seja para acus-los de serem os coveiros dos povos vencidos. Negativa ou positiva, alm disso, essa viso permanece basicamente dualista j que centrada nos enfrentamentos entre vencedores (ou colonizadores) e vencidos (ou colonizados). Por essa razo, cabe, em segundo lugar, reintroduzir nos horizontes americanistas outros mundos onde prevalecem outras formas de relao.

    A nossa anlise dos anos 1517-1521 no Mxico e na China tenta responder a esta dupla exigncia: privilegiarmos o ibrico e descentrarmos radicalmente o olhar. Ao mesmo tempo ela confirma e ilustra nossas hipteses sobre a extenso da mundializao ibrica. Nesse perodo, levados a interagirem com outras sociedades e civilizaes, os mundos comearam a tornar-se mundos encadeados, conforme a expresso do poeta novo-hispano Bernardo de Balbuena21. Como ignorar as implicaes do processo de mundializao que iniciou-se no sculo XVI, sob o impulso dos Ibricos? Um processo que, cabe lembrar, liga profundamente o destino da Amrica com o destino da sia. As histrias nacionais e imperiais raras vezes explicam ou tomam em conta o fato de que nos sculos XVII e XVIII a maior parte da prata americana acabou nas mos da China. Ali essas montanhas de prata tiveram profundos efeitos, dinamizadores e desestabilizadores, hoje considerados, com toda razo, como uma das maiores consequncias da expanso e da colonizao ibrica. Exportado atravs do Pacfico ou do Atlntico, cambiado no Brasil por escravos, o precioso metal propulsou a China dos Ming e dos Qing numa modernidade sui generis, hoje bem

    21 BALBUENA, Bernardo de. La grandeza Mexicana. Mxico, Porra: Luis Adolfo Domn-guez edit., 1990.

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    mais estudada e valorizada. Assim, o trato dos viventes foi um dos meios que contribuiu para extrair do Novo Mundo a prata que terminou nas caixas chinesas.

    Uma paisagem global

    Por que insistir tanto em repensar a histria colonial da Amrica ibrica nas perspectivas de uma histria global? Porque, alm das razes j ditas, na paisagem atual da histria global dominante as Amricas coloniais ocupam um espao minsculo, para no dizer insignificante. Nas ltimas dcadas, importantes livros amplamente difundidos, hoje considerados como clssicos, analisaram e compararam as trajetrias da Europa e da China, como os de Bin Wong (China Transformed) e Kenneth Pomeranz (The Great Divergence). Nesta fase, a presena da Amrica colonial mnima e meramente passiva. O Novo Mundo aparece reduzido a uma mina fornecedora de prata e devoradora de homens, ndios e negros escravos. A essas sequelas da ainda viva lenda negra, que configuram uma literatura hegemnica frente a qual a produo europeia e latino-americana sobre Iberoamrica fica quase invisvel, convm opor novas leituras dos sculos da dominao ibrica. Leituras que passam por uma mudana de lentes. A vitria castelhana no Mxico marcou o incio de uma transformao radical do continente americano. O Novo Mundo tornou-se um elemento essencial da construo da Europa moderna e da formatagem do mundo ocidental. A Amrica, em primeiro lugar a Amrica ibrica, foi um laboratrio pioneiro para a ocidentalizao e as mestiagens, combinando elementos oriundos de quatro continentes. Por isso, a confrontao do destino da sia com o destino do Novo Mundo aparece como um ponto de partida determinante para definir a natureza e a modernidade das experincias22

    22 Sobre a definio da modernidade no sculo XVI, RUSSEL-WOOD, A. J. R. The Portuguese Empire 1415-1808, A world on the move. JHU Press, 1998, e sobretudo os trs volumes de SLOTERDIJK, Peter. Sphren, 1998/1999/2004, reflexo histrico-filosfica sobre o processo de globalizao, que inclui pginas magistrais sobre os incios da Era Moderna e da expanso europeia (existe trad. Castelhana, Biblioteca de Ensayo Siruela).

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    que abrigou essa parte do mundo. Enquanto na China os Europeus eram seres brbaros, intolerveis ou s tolerados nas margens e nas periferias, na Amrica os ibricos foram com os ndios, os negros e os asiticos os iniciadores de transformaes decisivas para entender a mundializao de nosso tempo.

    o processo da americanizao

    Essas transformaes correspondem a processos de americanizao, entendida por ns como o surgimento, ou a progressiva construo, de especificidades americanas no contexto planetrio que se vislumbra a partir do sculo XVI. Esses processos, bem mais complexos do que uma simples tropicalizao23, so cruciais, porque fizeram do espao americano a antecmara da mundializao atual. Nessa perspectiva as zonas coloniais deixam de aparecer como essencialmente receptoras para tornar-se reas ativas, produtivas, nas quais os traos originalmente europeus, africanos e amerndios transformam-se e misturam-se continuamente, captando qualidades e dinmicas que os tornaro mundializveis. Nessa perspectiva, as periferias coloniais recebem um estatuto distinto ao daquele que costumamos a elas atribuir. No so mais exclusivamente pontos de chegada ou cenas portadoras de uma histria padecida, que concluiu-se com as independncias dos sculos XVIII e XIX; inscrevem-se claramente numa histria das mundializaes que ainda no est terminada: ao tempo colonial trissecular sucede um tempo mais longo e ainda sempre aberto o tempo das mundializaes. Tanto para a implantao universal do catolicismo e do direito europeu, quanto para a criao de um universo musical mundial, a formatagem americana constitui etapa obrigatria. A questo universal da diferena e a nossa 23 Falando da exportao do Antigo Regime nos trpicos, Laura de Mello explica que a especi-ficidade da Amrica portuguesa no residiu na assimilao pura e simples do mundo do Antigo Regime, mas na sua recriao perversa, alimentada pelo trfico, pelo trabalho escravo de negros africanos, pela introduo, na velha sociedade, de um novo elemento, estrutural e no institu-cional: o escravismo (Poltica e administrao colonial: problemas e perspectivas. In Laura de Mello e Souza et al., O governo dos povos. So Paulo: Alameda, 2009, p.88

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    maneira de enfrent-la procede tambm das experincias americanas de mestiagem e segregao.

    Para entender por que essa antecmara da mundializao contempornea se estabeleceu no Novo Mundo e no na sia, preciso que o historiador rompa fronteiras, faa um desvio, visite a China dos Ming, descubra os temidos canibais de Lisboa e a receita das crianas chinesas portuguesa. Em outros termos, esta histria global procura revisitar o passado com hipteses e questes atuais, ou seja, que nos ajudem a encarar o nosso presente de maneira tanto menos antiquada quanto mais crtica, porque sempre mais atenta aos desafios que nos rodeiam: o nosso presente j no mais o presente dos estados-naes, tampouco um presente reduzido Amrica Latina, nem mesmo ao continente americano. Nosso presente nos confronta dia a dia com foras mltiplas que se desdobram entre as Amricas, a Europa, a frica e a sia. definitivamente o presente de um pas emergente como o Brasil. Mas tambm o presente dos caboclos que vendem filmes chineses pirateados em Belm do Par ou nas remotas beiras dos rios da Amaznia.

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    Ser mesmo que somos modernos?A propsito de um livro sobre o modelo

    pr-moderno da poltica

    Antnio Manuel HespanhaUniversidade Nova de Lisboa

    O ttulo desta interveno inspirado no de um livro do antroplogo francs Bruno Latour (Nous navons jamais t modernes. Essais danthropologa symmtrique, Paris, La Dcouverte, 1999), do qual partirei para uma interrogao da modernidade da poltica moderna, confrontando-a com a poltica perdida (?) da pr-modernidade. Aproveitarei para falar das recentes releituras tradicionalistas do constitucionalismo oitocentista (Marta Lorente, Las Espaas y las Naciones, 2010) e, tambm, dos fracassos da modernidade, to bem descritos por James C. Scott (em Seeing like a State: How Certain Schemes to Improve the Human Condition Have Failed, yale Univ. Press 1998).

    Basicamente, o tema reconduz-se a outro bem atual: o do alegado ocaso do Estado e do seu direito, visto agora do ponto de vista dos historiadores. De fato, um dos temas mais atuais da reflexo de cientistas polticos e de juristas o ocaso do direito e da regulao estadual. Para muitos, os entusiastas da sociedade civil, isso um acontecimento epocal; para outros, os que creem que ao Estado compete ainda um papel regulador indispensvel, isso soa a tragdia. Os historiadores podem esclarecer muitos dos mitos em que essa questo anda envolvida. Mostrando como a acomodao entre a ordem estadual e outros complexos normativos tem sido uma constante, no apenas nas sociedades de Antigo Regime, mas mesmo nas sociedades ps-constitucionais do sc. XIX.

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    A poltica perdida est realmente perdida? Alguns elementos para uma resposta

    Apresento este tema de uma forma menos habitual, dando a voz a quatro livros que, recentemente, contriburam muito eficazmente, tanto ao nvel dos estudos empricos como no plano da interpretao terica, para o ocaso da pr-modernidade e a instalao real da modernidade. Dois livros de uma historiadora do direito, um de um antroplogo e outro de um antroplogo da cincia e filsofo.

    A. Dois livros recentes de marta Lorente sobre o constitucionalismo de Cdis1:

    A constituio no consegue destruir a pluralidade de jurisdies que vinha do Antigo Regime, ainda que abaladas pelas reformas iluministas, de sentido centralizador. Isso fazia com que a nao histrica, naturalmente organizada em corpos, se sobrepusesse Nao atomizada em indivduos isolados; com que as jurisdies locais dos corpos competissem com a jurisdio da Nao; com que os estatutos tradicionais das reparties e dos oficiais inviabilizassem a pirmide hierrquica da administrao; com que os conflitos de competncia no pudessem ser resolvidos por atos de governo ou de administrao, mas antes por atos judiciais. Por isso, e justamente em virtude de alguns dos fatores referidos, o corpo jurisdicional, como corpo e no como instrumento pontualmente dependente da lei, adquirisse uma importncia decisiva, como instncia de definio da ordem constitucional e jurdica vigente.

    O impacto da Constituio de Cdis na histria poltica e constitucional da Amrica Latina. Em resumo, o argumento o de que as caractersticas tradicionalistas da nova lei fundamental se adaptou aos marcados traos corporativistas das sociedades sul-americanas. Isso no quer dizer que as sociedades latino-americanas fossem mais 1 GARRIGA, Carlos; LORENTE, Marta, Cdiz, 1812. La constitucin jurisdiccional. Madrid: Centro de Estudios Polticos y Constitucionales, 2007; LORENTE, Marta. Las Espaas y las Naciones, 2010.

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    prximas das fontes doutrinrias do corporativismo medieval e moderno do que os seus modelos inspiradores Europeus; a explicao de seu sucesso americano foi sim o fato de na Amrica Latina um pouco mais do que na Europa os modelos mentais corporativistas combinados com o fato poltico-social da existncia de sociedades hierarquizadas, dominadas por elites poderosas, e que, por causa da distncia do centro e das debilidades do aparelho administrativo perifrico da coroa, no cessaram de aumentar o seu poder at o fim do Antigo Regime (e para alm disso).

    Portanto, algumas das novas normas constitucionais (ou normas para-constitucionais, como as relativas ao processo eleitoral), na verdade funcionavam como um reforo de algumas caractersticas corporativistas da Amrica Latina espanhola. Marta Lorente no est particularmente interessada nas restries, j bastante bem identificadas, da cidadania, literalmente contidas na Constituio: mulheres, empregados domsticos, castas(africanos)2.

    O que ela pretende desvendar outros nveis de sobrevivncia de um corporativismo menos visvel, quer na Constituio, quer no seu uso na Amrica, um tema que ultimamente desperta o interesse das correntes mais inovadoras da historiografia latino-americana.

    Um desses nveis menos visvel a compatibilidade da nova Constituio com um reforo poltico das elites municipais, a partir de meados do sculo XVIII (p. 158). Por um lado, a possibilidade aberta pela Constituio de Cdis da criao de novos municpios em todos os municpios com mais de mil almas desencadeou uma revoluo municipal, combinada com a multiplicao de ndulos corporativos de mais baixo nvel, naturalmente dominados pelas elites subalternas.

    Como enfatiza Marta Lorente, as normas constitucionais Cdis foram geralmente favorveis a uma transio suave do regime colonial para independncias polticas elitistas e conservadoras, mesmo que essa no fosse a vontade da ala mais progressista dos membros das Cortes.

    2 Those who were deemed to have African origin could only become citizens by special valu-able actions, art. 22.

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    Por outro lado, todo o processo eleitoral promoveu a supremacia das elites instaladas. Os eleitores eram objeto de uma seleo prvia por notveis locais, laicos e eclesisticos, o que - de acordo com os exemplos dados no livro - levou a uma excluso de todas as pessoas imprprias para a governana (tal como acontecia no Antigo Regime).

    Alm disso, a eleio era organizada em fases progressivas, induzindo um processo de refinamento sucessivo de representao num sentido elitista. A falta de qualquer tipo de controlo das entidades superiores abriu um espao enorme para os notveis locais imporem uma representao prpria.

    Tudo isso somado excluso das camadas subalternas da populao nativa, por falta de qualidade de cidado ou de vizinhos.

    B. Um livro de James C. Scott sobre os fracassos da modernidade3.

    Como os fracassos de homogeneizao e racionalizao do modernismo (na poltica, na gesto das florestas, na organizao da agricultura, nas polticas lingusticas, nas abordagens gnosiolgicas, etc.) se explicam pela sua ignorncia de uma escala de gesto adequada variedade das coisas humanas. Tudo isso os aproxima muito do mundo tradicional, com a pequenez dos seus espaos, com a pluralidade da sua malhe jurisdicional, com a natureza imbricada das competncias, dos poderes e dos pontos de vista, com o carter local (em mltiplos sentidos) das solues. A prpria abordagem gnosiolgica das coisas no buscava certezas certas e universais, mas formais dialogais e abertas de entender o mundo, sobretudo o mundo das coisas humanas. Mas tambm das divinas, ou no se chamasse Sic et Non, o clebre tratado teolgico de Pedro Abelardo (1079-1142).

    A questio e o iudicium constituam os procedimentos intelectuais centrais para decidir, na religio, na poltica, no direito, mas tambm nas questes complicadas da fsica e da matemtica ou, em geral, em qualquer coisa que fosse (quaestiones quodlibicae). Em todo esse

    3 Seeing like a State: How Certain Schemes to Improve the Human Condition Have Failed, yale Univ. Press 1998

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    processo se infiltrava o arbitrium4 do decisor que, na verdade, no correspondia irracionalidade, como hoje tendemos a entender, mas uma aferio mais sutil e mais adequada da regra vlida para aquele caso. Discretus de onde colhemos a palavra discricionariedade significa distino; separao, pr parte; ou seja, localizao das solues.

    A unificao desta constelao dispersa de conhecimentos, de normas, de instituies, de prticas, de pontos de vista, era levada a cabo mediante uma referncia a uma natureza unificadora (a uma criao unificadora, sob a gide de um Deus nico, ainda que esse mesmo estivesse envolvido naquela complicao da Trindade5 e fosse servido por nove categorias de anjos, cuidadosamente definidas).

    a modernidade que reduz a modernidade, de uma forma de tal modo forada, que hoje h quem se continue a perguntar se isso foi uma aquisio, uma perda e se realmente teve lugar.

    E aqui chega o momento de falar do livro de Bruno Latour, um conhecido antroplogo da cincia6.

    4 V., central, MECCARELLI, Massimo. Arbitrium. Un aspetto sistematico degli ordinamenti giuridici in et di diritto comune. Milan: A. Giuffr, 1998; tambm, LOMBARDI, Luigi. Sag-gio Sul Diritto Giurisprudenziale. Milano: Giuffr, 1967; GROSSI, Paolo. Lordine giuridico medievale. Laterza, Roma-Bari, 1995; para extenses sul-americanas, ANZOTEGUI, Victor Tau. Casusmo y sistema. Indagacin histrica sobre el espritu del Derecho indiano. Buenos Aires: Instituto de Investigaciones de Historia del Derecho, 1992.5 Sobre a qual Francisco Suarez, ele tambm, bem se esforou no seu Tractatus de Deo Uno et Trino, escrito porventura em Coimbra, mas publicado em Frana (Lyon: Horatius Cardon, 1607).6 Com uma recente passagem pela antropologia do direito: La fabrique du droit. Une thnogra-phie du Conseil dtat. Paris: La Dcouverte, 2002. Um livro que se define como uma pea do seu programa de antropologia sistemtica das formas contemporneas de dizer a verdade [vridiction] (contra-capa), baseada na anlise minuciosa do tipo de dados com que lidam as decises do Conseil, pelo seu tratamento (formas de escrita e de uso da palavra) e por un con-tnuo confronto com a produo de objetividade nas cincias exatas: une grande attention est porte dans cette tude aux actes dcriture, la fabrication et manipulation des dossiers, aux interactions entre les membres, aux particuliers du corps des conseillers dtat mais surtout la diversit des ressorts qui permettent de bien juger (ibid.).

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    C. Um livro de Bruno Latour sobre o carter problemtico da nossa modernidade7.

    A pedra-chave do livro de B. Latour a caracterizao da modernidade por um duplo processo de purificao e hibridizao. Embora ambos os processos estejam intimamente ligados, o seu resultado uma separao da natureza (e cincia) em relao sociedade (e vida quotidiana), separao porm atenuada (ou quase anulada) pela construo (escondida, reprimida) de todo o tipo de hbridos8 de natureza-cultura, pois todos os fenmenos naturais se tornam em objeto de vrios discursos e prticas, a fim de os explicar ou os dominar9.

    Este o fundamento de sua definio da Constituio moderna: a natureza est fora do alcance do homem, limitando-se a cincia a

    descobrir os seus segredos; s o homem constri a sociedade e decide do seu prprio destino; estes dois mundos (natureza e cultura) devem ser mantidos

    afastados10; Deus expulso das cincias sociais e polticas, embora permanea

    como fonte imanente (embora cientifica- e politicamente irrelevante) de intuies espirituais11.

    7 LATOUR, Bruno. Nous navons jamais t modernes. Essais danthropologa symmtrique. Paris: La Dcouverte, 1999.8 I.e., a separao entre coisas e sujeitos, ou entre os mundos humano e no humano; paralela-mente com a correlativa separao entre os reinos do real, do discurso e do social.9 Anlise cientfica da sociedade; anlise social da cincia; e anlise discursiva das duas.10 Algo, no entanto, impossvel de manter e incompatvel com a constante construo de h-bridos. Latour descreve essa combinao da impossibilidade com a hipocrisia com uma frase significativa: Se voc os critica [os cientistas], dizendo que a natureza um mundo construdo por mos humanas, eles iro demonstrar que ela transcendente, que a cincia um mero intermedirio que permite o acesso a Natureza, e que voc deve manter suas mos fora dela. Se voc lhes disser que somos livres e que o nosso destino est nas nossas prprias mos, eles vo-lhe dizer que a sociedade transcendente e que as suas leis nos ultrapassam totalmente. Se voc objeta que eles esto sendo hipcritas, eles iro mostrar-lhe que nunca confundem as Leis da Natureza com a inevitvel liberdade humana. Se voc acreditar neles e direcionar sua ateno para outro lugar, eles vo aproveitar isso para transferir milhares de objetos da natureza para dentro do corpo social, procurando conferir a este corpo a solidez das coisas naturais Se voc se virar de repente, como no jogo infantil Me, posso? Eles vo parecer gelados, com ar inocente, como se no se tivessem movido: aqui, esquerda, esto coisas em si mesmas, acol, direita, est a sociedade livre de falar, de pensar em temas, valores e de sinais. (p. 54)11 Do ponto de vista espiritual foi reinventado: o Deus todo poderoso podia ter descido ao cora-

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    Por causa de suas contradies ou fices12, a constituio da modernidade nunca foi realmente muito diferente da Constituio indiferenciada pr-moderna, onde a tal diviso entre natureza e sociedade, seres humanos e coisas, temporal e espiritual, no existe. Assim que a grande diviso entre as constituies moderna / ocidental e pr-moderna/histrica oriental tambm um produto da modernidade e uma condio de sustentabilidade de sua constituio.

    De momento, no estamos to interessados na constituio que B. Latour prope para o que ele chama a no-modernidade (p. 138 ss.)13. O nosso foco , por isso, o destacar das semelhanas entre pr-modernos e ps-modernos (ou no-moderno) e a parte de direito no resgate do legado da pr-modernidade.

    Realmente, com isso que a minha temtica de inventariar a estranheza do discurso jurdico e moral pr-moderno no tem como objetivo a recuperao da pr-modernidade para algum projeto jurdico do futuro. Insisto apenas em que nele h algumas caratersticas que fazem uma ponte por sobre a modernidade. Refiro uma a da dimenso pluralista das ordens que nos comandam, umas superiores, outras alheias, outras, paradoxalmente, de ns mesmos. Sugiro que estas constantes esto duplamente localizadas. Por um lado, elas teriam um lugar a Europa do Sul e as suas extenses ultramarinas; por outro, elas teriam uns tempos a pr-modernidade e a ps-modernidade. Creio que isso talvez deva ser problematizado. O livro de James C. Scott mostra que a pulverizao dos espaos, das tcnicas, das normas, dos poderes, se encontra tambm noutras culturas (tradicionais, camponesas ou, simplesmente, no modernas); enquanto que a modernidade, embora tenha tido precursores e extenses geogrficas, se desenvolve num cenrio mais preciso o mundo ocidental entre os finais do sc. XVIII e a atualidade, embora a globalizao a esteja por ora estendendo14.

    o dos homens sem intervir em nada nos negcios externos desses.12 V. nota 11.13 Para a distino, v. 43 ss., 61 ss., 134 ss.14 Sem ignorar que a globalizao se faz custa de processos de localizao glocalizao. Cf. RANDERIA, Shalini, Glocalization of Law: Environmental Justice, World Bank, NGOs and the Cunning State in India, em http://csi.sagepub.com/content/51/3-4/305.abstract.

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    Por sua vez, os livros de Marta Lorente mostram que os projetos de modernidade jurdica estiveram largamente hipotecados a marcantes legados da pr-modernidade.

    Creio que, na verdade, a principal utilidade desta comparao entre pr-modernidade e modernidade a de poder dar eventuais sugestes para ultrapassar os fracassos da modernidade jurdica como o hiper-individualismo, a perda de sentido de comunidade, a submisso absoluta dos deveres aos direitos, a converso da natureza num objeto disponvel e meramente funcional, o gigantismo e impessoalidade do Estado, a alienao do direito (a colonizao da vida quotidiana pelo direito burocrtico). Mas ajuda, sobretudo, a introduzir um saudvel relativismo nos nossos dogmas polticos e jurdicos. A pr-modernidade pode no dever ser restaurada em muitos aspectos: por exemplo, na menorizao das mulheres; na onipotncia dos juzes; na desigualdade jurdica das pessoas; no governo elitista ou carismtico da sociedade; mas, mesmo quando no recupervel, deixa a lio da inevitvel mutabilidade e pluralidade das formas de conviver, de organizar, de regular. Numa poca de poderes concentracionrios que hoje, mais do que os dos Estados, so os das entidades supranacionais ou globalizadas; ou as cataratas de senso comum debitadas pelos meios de comunicao de massa , a desconstruo dos mitos sagrados da modernidade j , em si mesma, uma inestimvel misso da histria.

  • PrimEirA PArTE

    A igreja Catlica e o imprio

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    os Jesutas na Capitania do rio de Janeiro e suas atuaes no estabelecimento e na consolidao da cidade

    Marcia AmantinoUniversidade Salgado de Oliveira

    A fundao da cidade do Rio de Janeiro em 1565 est ligada diretamente s atitudes tomadas pelos representantes da coroa portuguesa contra grupos de franceses e de ndios Tamoios que no s impediam a fixao de colonos como tambm facilitavam o acesso s riquezas contrabandeadas pelos primeiros. As alianas entre os dois grupos colocavam em risco o controle portugus sobre a regio sul da Amrica e solapavam as bases do Tratado de Tordesilhas, bem como questionavam a prpria legitimidade da expanso ibrica baseada no expansionismo catlico.1 Entretanto, essa histria tem outro vrtice que normalmente deixado de lado nas anlises sobre a fundao da cidade: a Companhia de Jesus e a atuao que seus religiosos tiveram ao lado das autoridades e o controle que exerceram sobre grupos indgenas, auxiliando nas etapas de conquista da regio.

    Maria Fernanda Bicalho, alicerada nas ideias de que a conquista da baa de Guanabara propiciou aos envolvidos no processo a obteno de mercs rgias, tpica atitude do Antigo regime portugus ao lado do expansionismo catlico2, salientou a importncia dos jesutas para a efetiva dominao lusa: Mais do que simples coadjuvantes, os jesutas foram atores fundamentais na implementao do projeto expansionista luso.3 1 MENDONA, Paulo Knauss de. O Rio de Janeiro da pacificao: franceses e portugueses na disputa colonial. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e esportes, 1999, p. 71-72. 2 Sobre o papel das guerras de conquista e a relao dessas com a formao das elites fluminen-ses identificadas como conquistadores, ver FRAGOSO, Joo. A nobreza da Repblica: notas sobre a formao da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro, sculos XVI e XVII. Topoi, Rio de janeiro, n. 1, p. 45-122, 2000. 3 BICALHO, Maria Fernanda. A Frana Antrtica, o corso, a conquista e a peonha luterana. Histria, So Paulo, 27 (1): 2008, p. 29-50.

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    A ordem inaciana atuou sistematicamente na colnia ao tentar exercer o controle sobre suas populaes atravs do cristianismo e da formao de sditos leais e cristos. Suas prticas de convvio com esses povos, ainda que adaptadas s realidades locais, podem ser identificadas mais pelas semelhanas do que pelas diferenas nas diversas partes do mundo onde estiveram.4 Todavia, importante ressaltar que os religiosos eram homens que conviviam no interior de sociedades especficas e que estavam sob o domnio de diferentes coroas. A Companhia de Jesus estava inserida nessas estruturas e em suas redes at mesmo por suas prprias caractersticas supranacionais. Garavaglia assinala que a ordem manteve uma relao estreita com o poder secular e religioso, colocando seus homens ao lado ou, pelo menos, muito prximos s pessoas essenciais ao sistema. Eram confessores de reis, de governadores, de autoridades e eram consultados por eles em assuntos polticos, econmicos e estratgicos e em decorrncia disso muitas vezes inspiraram medo nos demais e ningum, ou poucos, eram os que questionavam suas atitudes.5

    Desde o incio do sculo XVI que franceses percorriam a costa da Amrica portuguesa em busca de pau-brasil, animais e objetos exticos que levavam para as principais cidades francesas. Ao percorrerem o litoral das capitanias de So Tom e de So Vicente, cujas terras viriam posteriormente a formar a capitania do Rio de Janeiro, os franceses travaram contatos com os Tamoios, identificados como Tupinambs e pertencentes ao tronco lingustico Tupi. Esses indgenas ocupavam as terras que iam da Baa da Ilha Grande at a Ilha de Santana, nas reas do entorno da Baa da Guanabara e no vale mdio do rio Paraba do Sul.6 Somente nos anos de 1547 e 1548 foram 14 ou 15 embarcaes francesas a aportarem na regio de Cabo Frio trazendo em suas cargas 4 MANSO, Maria de Deus Beites. A Companhia de Jesus na ndia (1542-1622): atividades religiosas, poderes e contactos culturais. Macau: Universidade de vora e Universidade de Macau, 2009.5 GARAVAGLIA, Juan Carlos. Economa, sociedad y regiones. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 1987, p. 144.6 OLIVEIRA, Nanci Vieira de. So Barnab: lugar e memria. Tese apresentada Universidade Estadual de Campinas, 2002, p. 55.

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    ferramentas, espadas e espelhos destinados realizao de trocas com os indgenas e voltando para a Europa carregados de pau-brasil. Para conseguirem se manter os franceses contaram com o trabalho dos ndios aliados, mas tambm escravizaram os inimigos deles que eram obtidos nas guerras inter-tribais que ocorriam na regio.7 Nas suas inmeras viagens, alguns franceses permaneceram entre os ndios, tornando-se intrpretes e mediadores culturais ao desposarem as ndias e gerarem filhos mestios.8 Alguns, inclusive, se recusaram a abandonar sua vida com os ndios para ficar com Villegagnon e os demais franceses dentro da fortificao quando essa foi erigida a partir de 1555.9

    A presena de um pequeno ncleo urbano portugus, denominado de Vila de So Vicente, fundada em 1532, no foi suficiente para impedir as constantes entradas e permanncias de franceses mais ao norte dessa regio. E assim, em 1548, o donatrio da capitania de So Tom, vizinha de So Vicente, Luiz de Gis, advertia ao rei de que se no socorresse a regio em breve todos perderiam suas vidas e fazendas, mas que ele, o monarca, perderia a terra. Explicava que as embarcaes que saam de So Vicente carregadas de acar eram atacadas e queimadas por corsrios franceses e naus portuguesas eram perseguidas ou aprisionadas transformando a regio sul da Amrica portuguesa em rea perigosa aos interesses lusos. Dois anos depois, era Pero de Gis quem escrevia ao rei afirmando que a regio era a maior escala de corsrios.10

    Tentando aumentar o controle sobre to vasto territrio, em 1549 chegou a Salvador, na capitania da Bahia, o primeiro governadorgeral, Tom de Souza. Junto com ele, o padre jesuta Manuel Nbrega e mais alguns companheiros. Rodrigo Ricupero, ao elencar uma srie de objetivos do Governo-geral, aponta para o fato de que, dentro do

    7 MENDONA, Paulo Knauss de. O Rio de Janeiro da pacificao, p. 71-72. 8 BERNAND, Carmem; GRUZINSKI, Serge. Histria do Novo Mundo: as mestiagens. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2006, p. 492.9 HEMMING, John. Ouro vermelho: a conquista dos ndios brasileiros. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2007, p. 191.10 SERRO, Joaquim Verssimo. O Rio de Janeiro no sculo XVI. Vol. 1. Estudo histrico. Lisboa: Edio da Comisso Nacional das comemoraes do IV Centenrio do Rio de Janeiro, 1965, p. 43-48.

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    contexto de defesa das terras, [era necessrio] derrotar a resistncia indgena, derrotar os inimigos externos e acabar com a instabilidade reinante ao longo da costa. Para tanto, era imprescindvel a imposio da justia e da centralizao, facilitando, assim, o desenvolvimento das estruturas produtivas, criando ou consolidando as bases para que a prpria colnia pudesse garantir sua segurana.11

    A presena atuante dos jesutas tanto em relao aos ndios, como junto aos colonos ou s autoridades, foi marcada claramente por essas mesmas preocupaes. A catequese, marco e essncia da ordem, esteve sempre muito prxima a todos esses quesitos de ordem prtica e poltica.

    Assim que chegou a Salvador, o padre Nbrega identificou que era necessrio o estabelecimento de uma cidade para proteger a parte ao sul da colnia e para isso era necessrio expulsar os mercadores estrangeiros que ali estavam realizando transaes com os ndios. Em 1552, ele, acompanhado de alguns padres, do governador Tom de Souza e de algumas centenas de homens, entraram na Baa de Guanabara. Os padres, que estavam indo para So Vicente, apesar de no terem conseguido desembarcar no continente por causa dos Tamoios, estabeleceram uma pequena aldeia de ndios Temimins na chamada Ilha do Governador.12 De l seguiram seu rumo, mas em vrios momentos explicaram ao rei e aos superiores que as capitanias de So Vicente e do Esprito Santo estavam muito enfraquecidas e no teriam como impedir qualquer ataque, quer fosse de ndios inimigos ou de estrangeiros. Explicavam ainda que o estabelecimento de um ncleo populacional forte impediria que outras coroas europeias tentassem se apossar da regio.13

    Em 1555, os receios das pessoas que conheciam a regio, sua

    11 RICUPERO, Rodrigo. A formao da elite colonial: Brasil, c. 1530-c.1630. So Paulo: Ala-meda, 2009, p. 107.12 LEITE, Serafim. Nbrega e a fundao de So Paulo. Lisboa: Instituto de Intercmbio Luso--brasileiro, 1953, p. 13-19. Carta de So Vicente. 10 de maro de 1553. 13 NBREGA, Manoel da. Cartas do Brasil, 1549-1560. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Edusp, 1988, p. 227.

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    fragilidade e importncia estratgica para o reino foram concretizados: os franceses, com o apoio militar dos Tamoios, fundaram uma fortificao na Baa de Guanabara. Estava oficializada, ento, a presena dos inimigos em terras portuguesas.

    Segundo Paulo Knauss de Mendona, a ocupao da Baa de Guanabara pelos franceses era um projeto que visava garantir, por parte da Coroa francesa, a liberdade dos mares (mar liberum). Essa proposta era totalmente contrria s monarquias ibricas que queriam manter para si o domnio martimo e dos povos coloniais. Ainda segundo esse autor, a Frana Antrtica servia antes de tudo para garantir uma parcela do mercado colonial de especiarias para a Coroa francesa. Entretanto, por problemas internos, esta no deu todo o apoio necessrio manuteno do projeto e em fins deste sculo, os conflitos no interior da colnia colocaram em lados opostos catlicos e protestantes franceses.14

    O apoio que havia sido dado por alguns grupos de ndios Tamoios permanncia dos franceses na regio foi essencial e, rapidamente, a Baa de Guanabara se viu dividida entre os que apoiavam os portugueses e os que estavam ao lado dos franceses, no necessariamente por eles serem considerados aliados ou inimigos, mas tambm em funo de inimizades seculares entre os prprios grupos de ndios que viviam na regio. As alianas feitas e desfeitas entre os diversos grupos entre si e com portugueses e ou franceses foram peas essenciais no intricado processo de conquista da Baa de Guanabara.

    Tentando retomar a regio, no dia 15 de maro de 1560, Mem de S, governador-geral do Estado do Brasil, liderou o ataque ao forte Villegagnon na Baa da Guanabara. Era o incio da derrocada do projeto francs que questionava a diviso do Novo Mundo entre as coroas de Portugal e Espanha e cuja implantao da colnia intitulada de Frana Antrtica em 1555 era apenas uma de suas bases.

    Os jesutas, que chegaram Capitania do Rio de Janeiro durante as tentativas de expulso dos franceses na segunda metade do sculo XVI, tiveram um papel decisivo neste contexto de criao de uma cidade

    14 MENDONA, Paulo Knauss de. O Rio de Janeiro da pacificao, p. 61.

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    na Baa de Guanabara. Como dois dos variados objetivos da criao da Companhia de Jesus eram impedir o avano do protestantismo e promover a catequese de pagos, a situao se prestava bem aos seus interesses. Nbrega, na mesma carta endereada ao Cardeal D. Henrique, ao relatar a conquista da fortaleza francesa, afirmava que Mem de S havia conseguido expulsar os franceses todos luteranos. Na continuao de seu texto, demonstrava que eles seguiam as heresias da Alemanha principalmente as de Calvino... e segundo soube deles mesmos e pelos livros que lhes acharam muitos, vinham a esta terra semear estas heresias pelo gentio.15 Os jesutas identificaram a luta contra os franceses e sua necessria expulso como uma guerra santa, na qual o protestantismo precisava ser derrotado para a imposio do catolicismo nas terras que pertenciam por direito ao rei portugus e se esqueceram que havia tambm catlicos no interior do grupo.16 De acordo com Baeta Neves, a invaso francesa-protestante uma rara conjuno de duas guerras, de dois tipos de inimigos que ento se aliam hereges (huguenotes) e pagos (ndios, inimigos) contra a cristandade (portugueses, leigos e religiosos).17

    Os relatos jesuticos desse momento e mesmo depois demonstraram o papel da religio nesses fatos. H informaes em cartas trocadas com superiores18, em crnicas19 e no Auto de So Loureno20 de que durante as batalhas os aliados portugueses, ainda que em menor nmero e em vias de serem derrotados pelos Tamoios e franceses, pediram a intercesso dos santos e foram atendidos. Em vrios momentos, a Virgem Maria e So Sebastio acudiram as tropas, protegendo os homens e tocando fogo nas embarcaes inimigas. Os jesutas, apesar de reconhecerem os mritos de Mem de S e das tropas,

    15 MENDONA, Paulo Knauss de. O Rio de Janeiro da pacificao, p. 226. 16 MENDONA, Paulo Knauss de. O Rio de Janeiro da pacificao, p. 227.17 NEVES, Luiz Felipe Baeta. O Combate dos soldados de Cristo na Terra dos Papagaios. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1978, p. 72.18 ANCHIETA, Jos de. Cartas. So Paulo: Loyola, 1984, p. 168-169.19 VASCONCELLOS, Simo de. Crnica da Companhia de Jesus. Petrpolis: Vozes, 1977, p. 48.20 ANCHIETA, Jos de. Auto de So Loureno. So Paulo: Martins Fontes, 1999.

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    creditaram a vitria aos desgnios divinos.21 Em junho de 1561, o padre Nbrega escrevia ao Geral Diogo

    Lainez informando-o sobre uma srie de fatos e, dentre eles, como uma soluo para os problemas enfrentados com a catequizao dos ndios, sugeria que copiassem o que haviam feito uns hereges franceses que povoaram certa terra do Brasil, referindo-se aos franceses estabelecidos na Frana Antrtica que enviaram muitos meninos a Calvino e a outras partes para que, ensinados em seus erros, voltassem a terra. Nbrega acreditava que os jesutas tambm deveriam escolher alguns meninos e os enviar para os colgios da Europa porque assim teriam no retorno desses escolhidos pessoas capazes de entender a lngua dos indgenas e ao mesmo tempo, jovens indgenas completamente cristianizados e que no voltariam s suas prticas habituais.22

    Entretanto, os problemas para os jesutas iam alm dos ndios que j mostravam que no iriam facilitar o trabalho de catequese dos padres. Mas estes ainda eram vistos como criaturas boas e que estavam apenas sendo ludibriadas por seus lderes e pelos hereges calvinistas. Alm do mais, caso se mostrassem realmente intransigentes com relao catequese, deveriam ser escravizados ou mortos em embates nas chamadas guerras justas. Para a moral crist, a presena dos franceses hereges que se comportavam de maneira errada era um problema de muito maior envergadura. Para o padre Jos de Anchieta, os franceses que viviam nestas terras levavam uma vida

    J no somente hoje apartada da Igreja catlica, mas tambm feita selvagem; vivem conforme aos ndios, comendo, bebendo, bailando e cantando com eles, pintando-se com suas tintas pretas e vermelhas, adornando-se com as penas dos pssaros, andando nu s vezes, s com uns cales, e finalmente matando contrrios,

    21 LUZ, Guilherme Amaral. Os justos fins da Frana Antrtica. Locus. Revista de Histria, 7(1):63-78; 2001, CARDOSO, V. M.. Emblema sagitado: os jesutas e o patrocinium de So Sebastio no Rio de Janeiro, scs. XVI-XVII. Seropdica, Dissertao de Mestrado, Universi-dade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2010.22 LEITE, Serafim. Novas cartas jesuticas (de Nbrega a Vieira). Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1940, p.108-109.

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    segundo o rito dos mesmos ndios, e tomando nomes como eles, de maneira que no lhes falta mais que comer carne humana que no mais sua vida corruptssima.23

    A expulso desses hereges, a conquista dos ndios e a fixao dos colonos catlicos permitiriam cumprir outro objetivo da Companhia que era o estabelecimento de um reino cristo na Amrica portuguesa.24 Para isso, era preciso domar os Tamoios e estabelecer aldeamentos para os ndios pacficos e aliados. Aos que atrapalhavam a colonizao e a catequese, como os da regio de Piratininga, Anchieta pregava que, Se Deus Nosso Senhor quiser dar maneira, com que sejam postos debaixo do jugo, porque para este gnero de gente, no h melhor pregao do que espada e vara de ferro, na qual, mais que em nenhuma outra, necessrio que se cumpra o compele eos intrare.25

    Apesar dos portugueses terem, em 1560, com a ajuda de alguns grupos indgenas que j estavam aldeados pelos jesutas em outras capitanias, destrudo o povoado francs, no significou que tivessem resolvido todo o problema. Na realidade, a questo principal, ou seja, a presena de franceses na regio e seus contatos com os Tamoios, era anterior ao estabelecimento da colnia e perdurou aps a sua destruio.

    Mem de S e os demais representantes da coroa portuguesa sabiam que era necessria a retirada dos franceses porque no somente era uma afronta ao poder da metrpole, mas tambm porque corria o risco de eles perderem o controle sobre uma regio importantssima para o abastecimento das embarcaes que seguiam para o sul da colnia e para a Rota do Cabo. De acordo com Rodrigo Ricupero, a segurana desse ponto do litoral era importante para garantir a navegao rumo ao Oriente porque, em funo dos regimes de ventos, as embarcaes de afastavam do continente africano e chegavam ao litoral da costa

    23 ANCHIETA, Jos de. Cartas: informaes, fragmentos histricos e sermes. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Edusp, 1988, p.108.24 TAVARES, Clia Cristina da Silva. Entre a cruz e a espada: jesutas e a Amrica Portuguesa. Dissertao apresentada a Universidade Federal Fluminense, 1995, p. 34. 25 LEITE, Serafim. Histria da Companhia de Jesus no Brasil. Belo Horizonte, Rio de Janeiro: Itatiaia, 2000. vol. 1, p. 291.

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    brasileira.26 A presena de estrangeiros colocava em perigo o domnio no s sobre essa rea, mas tambm receava-se que a partir de pontos especficos desse litoral, os invasores conseguissem controlar as rotas do Rio da Prata.27 Logo, essa era uma rea estratgica que precisava ser mantida a qualquer custo.28

    Mem de S, que tinha como um de seus maiores objetivos fazer com que o controle real se estabelecesse em definitivo nas terras da Amrica portuguesa, sabia que para isso a pacificao dos ndios era essencial na medida em que eles controlavam as terras e consequen