Livro direito judicial criativo

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DIREITO JUDICIAL CRIATIVO

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DIREITO JUDICIAL CRIATIVOATIVISMO CONSTITUCIONAL E JUSTIÇA INSTITUINTE

AS NOVAS PERSPECTIVAS DO STF EM SEDE DE CONTROLE DIFUSO

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRALUNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

Pereira, Ricardo Diego Nunes Direito judicial criativo : ativismo constitucional e justiça instituinte as novas perspectivas do STF em sede de controle difuso de constitu-cionalidade / Ricardo Diego Nunes Pereira. – São Cristóvão : Editora UFS, 2012. 290 p.

ISBN 978-85-7822-243-7

1. Direito constitucional. 2. Direito processual. I. Título.CDU 342:347.9

P436d

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DIREITO JUDICIAL CRIATIVOATIVISMO CONSTITUCIONAL E JUSTIÇA INSTITUINTE

AS NOVAS PERSPECTIVAS DO STF EM SEDE DE CONTROLE DIFUSO

São Cristovão, 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

REITORProf. Dr. Angelo Roberto Antoniolli

VICE-REITORProf. Dr. André Maurício C. de Souza

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

COORDENADOR DO PROGRAMA EDITORIALPéricles Morais de Andrade Júnior

COORDENADORA GRÁFICAGermana Gonçalves de Araujo

CONSELHO EDITORIALAntônio Ponciano BezerraDilton Câdido Santos MaynardEduardo Oliveira FreireLêda Pires CorrêaMaria Batista LimaMaria da Conceição V. Gonçalves

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E CAPA

UFS Cidade Universitária “Prof. José Aloísio de Campos” Jardim Rosa Elze 49100-000 - São Cristovão-SE

Maria José Nascimento SoaresPéricles Morais de Andrade Júnior Ricardo Queiroz GurgelRosemeri Melo e SouzaVera Lúcia Corrêa FeitosaVeruschka Vieira Franca

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Como “uma andorinha só não faz verão” – relembrando Aristóteles (384-322 a.C.) – agradeço a minha família e a minha amada Milka.

A todos que contribuíram, muito grato.

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APRESENTAÇÃO

Honrado com o convite para apresentar o autor e sua primeira obra jurídica, o faço guiado por várias razões. A primeira delas, por acreditar no jovem estudioso e inteligente que é o Ricardo Diego. Além desta razão, o seu livro, fruto do seu trabalho de conclusão do curso de bacha-relado junto à Universidade Federal de Sergipe, é resultado de uma bem realizada pesquisa e aborda um dos temas mais fascinantes do direito constitucional contemporâneo, discutindo o papel do Supremo Tribunal Federal como Corte Constitucional a partir das suas próprias decisões, onde se destaca a aplicação da mutação constitucional em um processo de criação informal de norma constitucional admitida pela teoria e a efe-tividade do controle de constitucionalidade.

A jurisdição constitucional tem uma importância fundamental no processo da concreção das normas constitucionais e na defesa da or-dem constitucional, assim é que sempre serão bem vindos estudos que possam contribuir para a compreensão do fenômeno jurídico pela via das decisões judiciais, implicando uma análise da nova hermenêutica constitucional, o ativismo do Supremo Tribunal Federal e as novas teo-rias que buscam a efetividade dos princípios e normas constitucionais.

Este livro, que analisa as decisões dos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau acerca do novo sentido que deram ao disposto no art. 52, X, da CF de 1988, contribui para a compreensão da ampliação da atu-ação do STF, o que reforça o seu papel de Corte Constitucional pela via do controle difuso de constitucionalidade.

Concluindo, a obra merece ser lida e bem acolhida no meio juríd-ico nacional, pois credencia o autor como um novo talento que por certo ainda irá contribuir e muito com o seu trabalho para a ciência jurídica, especialmente no campo do direito constitucional.

José Anselmo de OliveiraJuiz de Direito do TJSE. Mestre em Direito Constitucional pela

Universidade Federal do Ceará. Professor da Escola Superior da Mag-istratura de Sergipe. Professor da Pós-graduação da Estácio-FASE.

Membro da Academia Sergipana de Letras, cadeira 21. Poeta. Autor de livros e artigos jurídicos.

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A Constituição de 1988 foi feita com características de instrumento de transformação da realidade nacional. Será assim na medida em que se cumpra e se realize na vida prática. Uma Constituição que não se efetive não passa de uma folha de papel, tal como dissera Las-salle, porque nada terá a ver com a vida subjacente. As leis que ela postula serão as garras e as esponjas que a fazem grudar na realidade que ela visa a reger, ao mes-mo tempo que se impregna dos valores enriquecedores que sobem do viver social às suas normas.

Que se cumpra para durar e perdurar, en-riquecendo-se da seiva humana que nutre e imortali-za, se antes disso o processo de reformas neoliberais, de interesse dos detentores do poder, não a liquidar, pela desfiguração sistemática.

José Afonso da Silva(Poder Constituinte e Poder Popular, 2000, p. 259)

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SUMÁRIO

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Introdução

Conclusão

Lista de Abreviaturas

Referências

Anexos

Mutação Social e Jurídica: Considerações Propedêuticas ao Estudo da Mutação Constitucional e a Nova Hermenêutica

Mutação Constitucional e Poder Constituinte Difuso: Fundamentos Para a Nova Perspectiva do STF em Sede de Controle Difuso

Direito Judicial Criativo (Beta):Previdência de um Modo de Direito (Ativismo Constitu-cional e Justiça Instituinte)

A Jurisdição Constitucional e o Controle de Constitu-cionalidade Como Mecanismos de Garantia da Con-stituição e da Democracia e Cidadania

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13Introdução

INTRODUÇÃO

Ao longo do trabalho jurídico, considera-se para estudo a relação entre a maior efetividade das normas constitucionais e a nova perspectiva do Supremo Tribunal Federal em face da juris-dição constitucional, onde se analisa o novo paradigma que pre-tende inovar a feição do Supremo em sede de controle difuso de constitucionalidade, fundamentando, ao final, um autêntico Direito Judicial Criativo, o qual traz concepções inovadoras, tais como Ativ-ismo Constitucional e Justiça Instituinte.

Essa nova abordagem acerca dos limites da jurisdição con-stitucional no tocante ao controle difuso dá-se frente à inop-erância do Poder Legislativo1 – recorde-se que o próprio Senador Garibaldi Alves (PMDB-RN) afirma que “o Congresso está na UTI”2 –, ressurgindo o debate no Supremo Tribunal Federal sobre a sua

1 A título de exemplo, basta observar que, em março de 2009, foi noticiada, no portal eletrônico do Supremo Tribunal Federal, uma opinião que bem reflete a situação atual do Poder Judiciário e do Poder Legislativo. A Senadora Fátima Cleide (PT-RO), refer-indo-se ao tema dos direitos dos homossexuais (objeto da ADPF 132), afirmou que o Supremo, mais uma vez, vai assumir o lugar do Congresso, que não consegue votar leis específicas sobre questões homossexuais: “Temos muitas dificuldades de avançar; são mais de 40 projetos de lei (sobre esse tema) no Congresso Nacional e infelizmente naquela Casa nós não conseguimos avançar, de forma que a jurisprudência tem nos mostrado que a Justiça sempre garante os direitos”.2 Cf. ALVES, Garibaldi. O Congresso na UTI. Veja, São Paulo, n. 2054, 2 abr. 2008. p. 11-15. Entrevista. O seguinte trecho dessa entrevista é revelador da situação atual do Con-gresso: “O Congresso deixou de votar, de legislar, de cumprir sua função. É uma agonia lenta que está chegando a um ponto culminante. Essa questão das medidas provisó-rias é emblemática da crise do Legislativo, que não é mais uma voz da sociedade, não é mais uma caixa de ressonância da opinião pública. Está meio sem função. O Congresso está na UTI, e ninguém do mundo político percebe que esse desapreço pelo Poder Le-gislativo é uma coisa que está minando as suas bases de sustentação e que a qualquer hora poderá haver um momento de maior tensão, de crise entre os poderes. À medida que o Legislativo abre mão de suas prerrogativas, o Executivo [e o Judiciário] invade espaços. Precisamos inverter essa tendência. [...] Essa leniência [agora referindo-se à corrupção que assola o Congresso] tira a autoridade do Legislativo”. Essa situação é tão crítica que o Senador Cristóvão Buarque (PDT-DF) disse, de forma radical, que, no ritmo que se vai, logo alguém proporá a convocação de um plebiscito para decidir se não é o caso de o Brasil fechar o seu Congresso. Para evitar tal situação, o Deputado Federal Michel Temer (PMDB-SP), para quem “o Legislativo só é enaltecido quando o país está saindo de um regime autoritário”, defende que “o Congresso, porém, precisa reagir e promover uma recuperação ética [...]”. Cf. TEMER, Michel. É preciso reagir agora. Veja, São Paulo, n. 2109, 22 abr. 2009. p. 17-21. Entrevista.

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possibilidade ou não. Leva-se em consideração, para tanto, a teo-ria da transcendência dos motivos determinantes e, especialmente, os estudos da Mutação Constitucional, que significa, consoante Uadi Lammêgo Bulos (1997, p. 57), um processo informal de mu-dança da Constituição, dando-lhe novos sentidos e conteúdos até então não alcançados pela sua simples letra, seja pela interpre-tação, seja por meio da construção (construction), ou mesmo dos usos e costumes constitucionais.

Observa-se, destarte, que a hermenêutica e a interpretação são figuras importantes para a correta apreensão do conceito de Mu-tação Constitucional, motivo pelo qual se reserva um capítulo inteiro à sua análise (tanto da hermenêutica jurídica quanto da hermenêu-tica constitucional, especialmente esta).

Tal discussão deve-se, principalmente (mas não somente, con-forme será visto a partir da análise da tendência de abstrativização do controle concreto), à Reclamação 4.335-5/AC, onde o Ministro Relator Gilmar Mendes, seguido de Eros Grau (hoje aposentado), impende uma mutação no sentido normativo do art. 52, X, CF/88, que deve-ria ser lido normativamente da seguinte maneira, a repúdio da atual redação e da norma derivada: “compete privativamente ao Senado Federal dar publicidade à suspensão da execução, operada pelo Supre-mo Tribunal Federal, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo”.

Sendo assim, em resumo, as decisões em âmbito de controle di-fuso passariam a ter os efeitos ditados pelo Supremo – com possibili-dade de dar os mesmos efeitos de uma decisão proferida no controle concentrado (erga omnes e vinculante) –, e não ficar aguardando a boa vontade do enfermo Congresso Nacional para suspender a lei declarada inconstitucional. Os efeitos extraídos das discussões trava-das nos votos dos Ministros já repercutem no mundo jurídico, com publicações de Teses3 e outros trabalhos científicos, como este, além de acirrados debates em palestras a respeito do tema.

3 Refira-se, por oportuno, à Tese de Doutorado do professor Lucas Gonçalves da Silva, da Universidade Federal de Sergipe – UFS, cujo título foi obtido em 2009, com ori-entação de André Ramos Tavares: Mutação Constitucional pela Justiça Constitucional: Tipologia e Limites. O referido professor também fez estudos sobre a Hermenêutica e Interpretação Constitucional (mestrado em direito) e O papel do Supremo Tribunal Fede-ral na garantia dos direitos fundamentais.

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15Introdução

Há, basicamente, que se discutir acerca de qual seria o sentido ex-traído da norma do art. 52, X, CF/88, que diz, textualmente, que “compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”, permitindo-se, ao final, com base forte na hermenêu-tica constitucional, uma alteração no sentido normativo do dispositivo. O problema, entretanto, forma-se à medida que se faz o questiona-mento sobre a legitimidade daquilo propugnado pelos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau, ou seja, é necessário saber se esse novo quadro está condizente com o ordenamento jurídico-constitucional brasileiro.

Poder-se-ia pensar, inicialmente, que toda abordagem estaria es-gotada, de certo modo, em razão da adoção, pela Emenda Constitu-cional 45/04, da Súmula Vinculante (art. 103-A, CF/88) – sem falar nos outros instrumentos trazidos ultimamente para dar efetividade ao princípio constitucional da razoável duração do processo, instado no art. 5º, LXXVIII, CF/88, que foi acrescido também pela Emenda 45/04, tais como a Lei de Repercussão Geral (Lei 11.418/06)4, no âmbito do STF, a Lei dos Recursos Repetitivos (Lei 11.672/08), no âmbito do STJ5, e, mais recentemente, o II Pacto Republicano6.

Quimera. Até porque muda a estrutura tradicional do controle difuso, argumentos de peso são colocados pelos que dizem ser sub-versor o posicionamento de mudança de sentido do art. 52, X, CF/88, dentre eles a violação do princípio da Separação dos Poderes, a fun-damentação por uma Mutação Inconstitucional e a caracterização do Poder Judiciário como um poder constituinte permanente, ilegítimo e autoritário (“ditadura do Judiciário”), ao dar a função ao Senado Fed-

4 Essa lei foi questionada por meio da ADI 4175, pois restringiria o acesso do cidadão ao STF, porém foi indeferida a inicial pelo Rel. Min. Carlos Britto, DJE 06/02/2009, por falta de pertinência temática quanto ao autor.5 Consoante noticiado em janeiro de 2009, no portal eletrônico do STJ, o Min. Luiz Fux, agora do STF, defende que este Tribunal Superior adote também a Súmula Vinculante e a Repercussão Geral para selecionar as causas que irão a julgamento, o que demon-stra a tendência atual em busca da efetividade e celeridade, enfim, da economia pro-cessual, pela qual se persegue, com ponderação, a obtenção de maior resultado com o menor uso de atividade jurisdicional.6 O I Pacto Republicano, assinado em 2004, gerou toda a modernização do sistema da Justiça e reformulação das leis. O II Pacto Republicano tem três objetivos principais: a proteção dos direitos humanos e fundamentais, a agilização e efetivação da prestação jurisdicional e a promoção de maior acesso à Justiça.

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eral de mero chancelador das decisões do Supremo. Nesse sentido, pode-se citar Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Martonio Mont’Alverne Barreto Lima (2007), além de Marcelo Nov-elino (2009), Pedro Lenza (2011), Wellington Márcio Kublisckas (2009), o professor da Universidade Católica de Petrópolis – UCP, Roberto Wagner Lima Nogueira (2008), e o professor Mestre da Universidade Federal de Sergipe – UFS, Carlos Augusto Alcântara Machado (infor-mação verbal)7. Registre-se, ainda, que o Ministro Sepúlveda Pertence julgou improcedente a reclamação e o Ministro Joaquim Barbosa não a conheceu, mas ambos concederam habeas corpus de ofício.

De outro lado, afirmando ser autêntica a expendida Mutação Con-stitucional no dispositivo da Carta Maior, destacam-se Dirley da Cunha Júnior (2010) e os já referidos Ministros do Supremo, Gilmar Mendes e Eros Grau, podendo-se mencionar ainda, pelos estudos desenvolvidos, André Ramos Tavares (1998), além de Teori Albino Zavascki (2001, apud LENZA, 2011) e Lúcio Bittencourt (1968, apud LENZA, 2011).

Adotando uma posição de elasticidade da atuação do Excelso Pretório e do próprio Poder Judiciário, a alteração do sentido norma-tivo seria uma das formas de garantir a autoridade das decisões do STF, transformando-o, assim se entende, em verdadeira Corte Constitu-cional. Outro ponto importante, destacado por Gilmar Mendes, passa pela questão da própria limitação natural do instituto da suspensão de execução da lei pelo próprio Senado, cuja eficácia não pode ser ampli-ada quando o caso assim requeira – isso tudo será mais bem detalhado em tópico correspondente. Ademais, tema reflexo é a necessidade de o direito acompanhar as diretrizes sociais e a aclamação por soluções efetivas e céleres aos problemas concretamente postos.

Acaso prevaleça essa última posição, a depender da votação da Rcl. 4.335-5/AC, estabelecer-se-á um verdadeiro corte epistemológi-co, isto é, uma ruptura de paradigma da Jurisdição Constitucional no

7 Palestra proferida no XVII Simpósio Transnacional de Estudos Científicos (Constitucio-nalismo e Relações Internacionais – 06 a 10 de outubro de 2008, Universidade Federal de Sergipe – UFS), cujo tema apresentado em 06/10/2008 pelo professor Carlos Au-gusto Alcântara Machado foi A Constituição de 1988 como Obra Inacabada. Na opor-tunidade, falou que não concorda com o pensamento de Gilmar Mendes, pois, como propugnada, a mutação constitucional é, na verdade, mutação inconstitucional, apesar de admitir ser a tendência do STF. Afirmou, ainda, que “devemos observar o direito brasileiro de acordo com a realidade brasileira”.

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17Introdução

Brasil – que, repita-se, já está ocorrendo em virtude de outros fatores em tendência. Isso porque as decisões em âmbito de controle difuso passariam a ter os efeitos ditados pelo Supremo, fortalecendo-se, de-starte, como Corte Constitucional.

Uma nova concepção acerca do Controle de Constitucionali-dade, do Poder Constituinte, do Equilíbrio entre os Poderes e do Sis-tema Federativo está surgindo, o que pode estabelecer uma ruptura paradigmática no plano da Jurisdição Constitucional no Brasil, tra-zendo, como corolário, mais efetividade aos direitos e garantias con-sagrados na Carta Magna, em virtude da extensão dos efeitos das de-cisões para todos, mormente naquilo que diga respeito às liberdades individuais e à cidadania, pelo que se fortalece a segurança jurídica e a justiça, objetivos esses almejados tanto pelo Direito quanto pela Ética, como bem lembra o Doutor em Direito, Professor Osvaldo Fer-reira de Melo (2005), aludindo-se a Miguel Reale.

Assim sendo, é objetivo do presente trabalho o estudo detido do complexo tema, mas que recai em assuntos conexos como, dentre vári-os outros, o fenômeno da jurisprudencialização e do ativismo judiciário8, hoje deveras expandido. Para tal desiderato, serão utilizadas diversas fontes, tais como doutrina, leis e jurisprudência, e partir-se-á da prem-issa de que o Direito não é estático, ou seja, ele sempre está buscando soluções para pacificar o meio social, sendo feita, preponderantemente, uma análise histórica e teleológica dos institutos jurídicos.

Com essas considerações introdutórias, vê-se que está aberta uma nova Caixa de Pandora, donde pode transbordar, sem embargo do maniqueísmo, tudo de bom e de mau. Comece-se, então, a mexer nessa Caixa, tentando extrair os pontos positivos e fundamentais da tese a ser defendida, qual seja, maior garantia dos direitos fun-damentais insculpidos na Constituição através da mudança de para-digma do controle difuso de constitucionalidade.

8 A omissão e atrofia do Legislativo, que muitas vezes obriga o Judiciário a “legislar”, não é somente uma questão do Brasil. Na Lituânia, foi debatido, no 14º Congresso da Conferência de Cortes Constitucionais Europeias, ocorrido em junho de 2008, o tema da omissão legislativa na jurisprudência constitucional, onde, “na ocasião, o ministro Gilmar Mendes proferiu uma palestra mostrando que a Constituição brasileira de 1988 permite ao Judiciário exercer funções legislativas em caso de omissão do Congresso Nacional, e fez um relato da experiência da Suprema Corte brasileira no julgamento de casos relativos ao tema”, consoante a notícia publicada em abril de 2009, no portal eletrônico do STF.

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1Mutação Social e Jurídica:

Considerações Propedêuticas ao Estudo da Mutação

Constitucional e a Nova Hermenêutica

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Considerações Propedêuticas ao Estudo da Mutação Constitucional e a Nova Hermenêutica

O que é Direito? Essa é, provavelmente, a primeira pergunta a que todos que ingressam no estudo da “ciência jurídica”1 propõem-se a responder. Não é intento deste trabalho o aprofundamento do tema, porém algumas palavras são necessárias, até porque é de rel-evância para o estudo a percepção da dialética da nossa matéria.

É verdade que a lei (ou norma jurídica) é o principal objeto (ou fonte) de análise do Direito. Recordemos, entretanto, que quando se busca o que o Direito é devemos levar em consideração, sob o aspecto de uma mutação social e jurídica, as transformações por que passam, de forma constante, o seu conteúdo e sua forma, sendo ele, por fim, o resultado de uma manifestação concreta do mundo histórico, cultural e social2. Percebe-se, desde já, que out-ros fatores (valores e fatos, por exemplo)3 também devem ser ob-servados ao se estudá-lo.

Justamente por não vislumbrar o Direito como “coisa” fixa, parada, definitiva e eterna, Roberto Lyra Filho (2005, p. 86), ob-servando a dialética4 na sua realização, se reporta a ele, precisa-mente, como um processo, dentro do processo histórico. Expli-ca: “[...] cada perfil atualizado do direito autêntico é um instante do processo de sua eterna reconstituição, do seu avanço, que vai desvendando áreas novas de libertação [processo de libertação permanente]” (LYRA FILHO, 2005, p. 85, grifo do autor). Assim, conclui o referido autor que o Direito não “é”; ele “vem a ser”. E

1 Note-se que o termo ciência aqui não está empregado, como outrora se queria, a um estudo puro do direito, sem relacioná-lo a nenhum fator externo. Ver-se-á, ao longo deste trabalho, que a interdisciplinaridade e o estudo de fatores instáveis (fatos e va-lores) também estarão presentes.2 Parece natural dizer, como o faz Norberto Bobbio (1992), que o que seja fundamental em determinada época histórica e civilização pode não o ser em outras épocas e em outras cul-turas, não se podendo conceber fundamento absoluto a direitos historicamente relativos.3 Miguel Reale (2002) assim se reportava ao Direito, como o conjunto indissociável dos fatos, valores e normas, sendo expressão cultural, portanto – essa é a conhecida estrutura tridimensional do Direito.4 Registre-se, desde já, o que se entende por processo dialético, nas lições de Karl Pop-per (1972, p. 345, apud COELHO, 2002, p. 99): “Na terminologia de Hegel, tanto a tese quanto a antítese são reduzidas, pela síntese, a componentes, e portanto canceladas (negadas, anuladas, afastadas); ao mesmo tempo, são preservadas (guardadas) e eleva-das (a um nível superior). Hegel aproveita a ambigüidade da palavra alemã ‘aufgehoben’, empregando-a no sentido de reduzida a componentes, cancelada, preservada e elevada”.

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por ele “vir a ser”, entende-se que a pergunta inicial “o que é Di-reito?” deve transmudar-se para “o que vem a ser Direito?”, já que “é todo o processo [derivado da constante luta social] que define o Direito, em cada etapa, na procura das direções de superação” (LYRA FILHO, 2005, p. 83).5 6

Goffredo Telles Junior ([1971?], p. 285), em curiosa obra pub-licada originalmente em 1970 (O Direito Quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica), se reportou ao Direito, em conexão epistemológica com a Física Quântica, como “a ordenação quânti-ca das sociedades humanas”. Essa correlação serve para simbolizar o quanto as relações sociais reguladas pelo Direito são instáveis. Na Física clássica (tradicional, não quântica) o que temos são com-portamentos previsíveis (por exemplo, pode-se saber a trajetória de uma bola antes mesmo de arremessá-la). Já na Física quântica, é impossível prever, com absoluta certeza, a trajetória das coisas: elas fazem todos os caminhos possíveis e ao mesmo tempo. As-sim, como o comportamento do homem (ou grupos de homem) não pode ser, de forma absoluta, determinado7, diz-se que as leis humanas são leis de probabilidade, cabendo ao Direito Objetivo

5 Interessante dizer que o sistema jurídico, sofrendo influências e interações com o meio externo, acaba por ser reflexo da sociedade em que está inserido, admitindo-se mudanças. Por isso, concebe-se tal sistema como aberto, alopoiético, prospectivo, heterônomo, em contraposição à ideia de um sistema fechado, autopoiético, retro-spectivo, autônomo (embora quem assim o considere não deixa de admitir a interfe-rência da sociedade, mas não a sua influência e interação, como o é no sistema alopoié-tico). (SIQUEIRA JR., 2006)6 Curiosa, também, é a ilustração da capa da obra de Roberto Lyra Filho O que é Di-reito, publicada em 2005 pela editora brasiliense, em sua Coleção primeiros passos (nº 62): há a imagem de dois operários carregando a estátua da deusa Justitia, que foi tirada do seu pedestal, o que fez surgir o sol em seu lugar. Nesse caso, levando-se em consideração o conteúdo da obra, é possível denotar a seguinte interpretação: a saída de uma concepção estritamente positivista do direito (com os seus respectivos “operadores jurídicos”, termo este que transmite a ideia de aplicação mecânica do di-reito), surgindo uma nova concepção de direito (pós-positivismo) que brinda a relação entre valores, princípios e regras, aspectos estes da Nova Hermenêutica Constitucional e da teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana, que ilumina a todos indistintamente.7 É inerente ao homem (e, por derivação, à sociedade) a contínua mudança, sendo “[...] da natureza imutável do homem, mudar e mudar sempre”, ou dito de outra forma, “o eu histórico é um eu permanente, mas um eu permanente em contínuo perfazimento” (TELLES JUNIOR, [1971?], p. 277).

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23Mutação Social e Jurídica:

Considerações Propedêuticas ao Estudo da Mutação Constitucional e a Nova Hermenêutica

quantificar e autorizar, ou não, a maneira de proceder. Ou seja, o Direito Objetivo

é a ordenação [de determinadas interações hu-manas] que quantifica a liberação das energias hu-manas, para assegurar o equilíbrio das forças, e para garantir que, a cada direito, corresponda uma obrig-ação. É a ordenação que delimita a liberação de en-ergia, nos campos dos homens [quanta], para que a sociedade seja efetivamente o que ela precisa ser, isto é, um meio a serviço dos fins humanos. (TELLES JUNIOR, [1971?], p. 285)

Importante notar que Goffredo Telles Júnior, ao fazer essa abord-agem, almeja a conclusão de que o Direito deve se sujeitar aos fins a que a sociedade anseia, sendo, ainda, a disciplina especializada em engineering social8:

Assim como essas proteínas se dirigem com autonomia, em conformidade com os interesses fisi-ológicos da célula, assim também o Direito, livre de imposições absolutas, se pode dirigir pelos inter-esses reais da sociedade, de acordo com os siste-mas de referencia [sic] efetivamente vigorantes. (TELLES JUNIOR, [1971?], p. 285, grifo nosso)

Esse Direito, inserido, representativamente, na harmonia do uni-verso (do Unum versus alia; do Uno feito do diverso) e promovido para/pelos anseios da sociedade (que dá legitimidade ao governo), possui natureza dual, consoante aponta Túlio Lima Vianna (2008, p. 119): é, ao mesmo tempo, instrumento de dominação e de resistên-cia9; de manutenção do status quo e de inclusão social; de segurança jurídica e de justiça distributiva. Essa dualidade revela a já referida di-alética na realização do Direito. Dessa forma, a Teoria Quântica do

8 Em alusão às proteínas reguladoras, produtos especializados em engineering molecular.9 “[...] o revolucionário de ontem é o conservador de hoje e o reacionário de amanhã” (LYRA FILHO, 2005, p. 82).

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Direito10 (ou, se preferir, a Teoria de um Direito não-determinista), ao conceber o fenômeno jurídico como instrumento dual de domi-nação/resistência, revela o caráter político que permeia todas as decisões judiciais, que não podem ser consideradas, a priori, como certas ou erradas – em razão da superação da ideia de uma razão jurídica universal (no sentido de verdade absoluta)11, pelo que temos, nos dias de hoje, uma realidade a ser compreendida12 –, “[...] mas ações políticas que ora tutelam os interesses de manutenção do status quo, ora os interesses de redução da tensão de poder entre opressores e oprimidos” (VIANNA, 2008, p. 120).

A figura do juiz, assim, ganha relevo. É ele que, longe de ser ape-nas um observador neutro para fins de se extrair o significado verda-

10 Vale dizer que a teoria do conhecimento em geral foi abalada pelo “golpe quântico”, pelo qual a Teoria Quântica (após os outros golpes dados pela Cosmologia de Copérnico, pela Biologia de Darwin e pela Psicologia de Freud) substituiu a racionalidade deter-minista da Física daquele momento por uma racionalidade probabilística do “princípio da incerteza” (Heisenberg), inaugurando uma era que pôs fim às certezas. É nesse ponto que a verdade objetiva, natural e divina cede espaço a uma verdade subjetiva, artificial e humana, ou seja, é o olhar do observador que irá definir o que é verdade, em um pro-cesso de compreensão. Por isso, o referido autor diz que “a paradoxal certeza absoluta do pensamento pós-moderno é que tudo é relativo. Não há verdades, apenas probabili-dades” (VIANNA, 2008, p. 119). Note-se, ainda, que nas décadas de 70 e 80 do século XX, surgiu o movimento crítico do direito, que questionava o “saber jurídico tradicional na maior parte de suas premissas: cientificidade, objetividade, neutralidade, estabilidade, completude” (BARROSO, 2003, p. 14/15, apud WINCK, 2007, 43). Tais acepções serão mais bem explicadas no tópico referente à (nova) hermenêutica jurídica – subcapítulo 1.2.11 O pensamento da pós-modernidade, relegando as verdades metafísicas e puramente racionais de outrora, atesta o término dos “marcos de referência da certeza” (LEFORT, 1991, p. 50, apud WINCK, 2007, p. 45), fato esse que condiz com o universo complexo, dinâmico e instável das sociedades atuais e que reflete crises de legitimidade e na própria produção e aplicação da justiça (WOLKMER, 1991, p. 32, apud WINCK, 2007, p. 45). A abordagem da “verdade” passa a ser feita no plano da criação humana derivada de um processo racional de compreensão da realidade concreta, o que corrobora o pensamento de Nietzsche de que não há sentido em se falar de origem (Ursprung) do conhecimento humano, mas, sim, em invenção (Erfingdung), criação deste conhecimento (FOUCAULT, 2000, p. 262, apud VI-ANNA, 2008, p. 115/116), desembocando, consoante aponta Foucault (2003, p. 27, apud VIANNA, 2008, p. 117), em múltiplas racionalidades, cada qual com as suas “verdades”. Não deixa de ser curiosa, quanto à analise da “verdade” e da “mentira”, a composição de Edu Lobo e Chico Buarque, Verdadeira Embolada: Na realidade | Pouca verdade | Tem no cordel da história | No meio da linha | Quem escrevinha | Muda o que lhe convém.12 As coisas do mundo, inclusive os fatos sociais, são resultados de um sentido en-laçado pelos homens, que edificam, historicamente, através de uma sucessão de es-colhas (permitidas pela vontade, intenção, livre arbítrio, livre afirmação), um sistema de valores (cultura) (ARON, 1982, p. 485).

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deiro da lei, cria a norma a ser aplicada ao caso concreto, através da escolha (jurídica e política13) entre uma racionalidade de segurança jurídica (cujos elementos são estabilidade, previsibilidade e unifor-midade) e uma racionalidade de justiça distributiva – valores esses, normalmente, apontados como inversamente proporcionais, com o que não se pode concordar, pois, na verdade, há uma relação entre eles de coordenação e de equilíbrio.

Quando nos referimos à necessidade de a norma corresponder aos anseios da sociedade como forma de legitimação do governo14, quer-se chamar a atenção para a própria acepção de Justiça. Não a justiça inserida nas leis, nem aquela justiça doutrinária ideal – emb-ora, por vezes, em ambas possa se encontrar –, mas a Justiça Social15, a que Goffredo Telles Junior ([1971?]) invoca, em nova roupagem, como Direito Natural. Para ele, “[...] o autorizamento das normas ju-rídicas decorre da natureza da sociedade, uma vez que, em cada co-munidade, certos movimentos hão de ser exigíveis, e outros hão de ser proibidos” (TELLES JUNIOR, [1971?], p. 280/281). Assim, o Direito Natural, nessa concepção, é o Direito que não é artificial, sendo, na verdade, “[...] consetaneo [sic] com o sistema ético de referencia [sic],

13 Não há como se negar que o juiz, ao decidir, traz consigo todo seu arcabouço mor-al, ético e ideológico. A própria palavra “sentença”, na acepção dada pelo Dicionário Houaiss (2001), sugere isso, já que, originando-se do latim sententia, significa “[...] sen-timento, parecer, opinião, idéia, maneira de ver, impressão do espírito; modo de pen-sar ou de sentir, vontade, desejo; opinião (emitida pelo Senado)”.14 Governo está aqui alocado como “o conjunto das funções necessárias à manutenção da ordem jurídica e da administração pública” (MALUF, 1995, p. 27), ou, dito de outra forma por Duguit (apud MALUF, 1995, p. 27), no sentido coletivo, “[...] como conjunto de órgãos que presidem a vida política do Estado [...]”, e não no sentido meramente singular de Poder Executivo.15 Consoante o Dicionário Acadêmico de Direito de Marcus Cláudio Acquaviva (2003, p. 470/471), a Justiça Social, vinda do latim justitia, já fazia parte da ideia de justiça na época de Platão e Aristóteles, embora o adjetivo social tenha sido incorporado no século XIX, em razão das crises socioeconômicas. A expressão justiça social foi divulgada, inicialmente, pela doutrina social da Igreja, sendo relacionado como princípio divino. Com a ascensão do Iluminismo (sécs. XVII e XVIII), esse conceito tradicional começou a declinar, dando margem ao direito natural (atributo da própria natureza humana). Após, a ideologia his-toricista (Von Savigny) nivela os atributos da pessoa humana às concepções de cada mo-mento histórico, enquanto o Positivismo revela ser a justiça o direito positivo (lei escrita) de cada povo. Na verdade, em Aristóteles já se vê o moderno significado da expressão justiça social, enunciado como o princípio da justiça distributiva, pelo qual a comunidade deve distribuir a seus membros os bens e encargos de forma equitativa, isonômica.

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vigente em uma dada comunidade” (TELLES JUNIOR, [1971?], p. 280), isto é, Direito Natural é sempre um Direito Positivo que esteja de acordo com as expectativas legítimas da sociedade16 17 (TELLES JUNIOR, [1971?], p. 281). Essa acepção do direito enquanto corre-spondência dos anseios de justiça da sociedade é, precisamente, de-lineada por Roberto Lyra Filho (2005, p. 85):

O legalismo é sempre ressaca social de um im-pulso criativo jurídico. Os princípios se acomodam em normas e envelhecem; e as normas esquecem de que são meios de expressão do Direito móvel, em constante progresso, e não Direito em si. [...] Direito e Justiça caminham enlaçados; lei e Direito é que se di-vorciam com freqüência. Onde está a Justiça no mun-do? – pergunta-se. Que Justiça é esta, proclamada por um bando de filósofos idealistas, que depois a entre-gam a um grupo de “juristas”, deixando que estes de-vorem o povo? A Justiça não é, evidentemente, esta coisa degradada. Isto é negação da Justiça [...]. Porém, onde fica a Justiça verdadeira? Evidentemente, não é cá, nem lá, não é nas leis (embora às vezes nelas se misture, em maior ou menor grau), nem é nos princí-pios ideais, abstratos (embora às vezes também algo dela ali se transmita, de forma imprecisa) [...].

Com essas considerações, conclui magistralmente:

[...] a Justiça real está no processo histórico de que é resultante, no sentido de que é nele que se realiza progressivamente. Justiça é Justiça Social, antes

16 Kant (apud SILVA, R.P.M., 2005) considera que o direito positivo (não natural) não tem como estabelecer o que é justo e injusto, mas apenas se determinado fato ou ato é lícito ou ilícito sob o ponto de vista jurídico.17 Cf. GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 8. ed. São Paulo: Malhei-ros, 2011. 384 p., em função de interessante cotejo entre o direito posto (leis) e pressu-posto (princípios), mostrando-se, em síntese, a necessidade de se transcender o mero direito posto para encontrar na realidade social as raízes do Direito, vendo-o, portanto, num sistema sob influência de vários fatores, sejam políticos, jurídicos, econômicos ou culturais, todos encarados de forma dinâmica, os quais também devem, por certo, atender as demandas sociais igualmente dinâmicas.

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de tudo: é atualização dos princípios condutores, emergido nas lutas sociais, para levar à criação duma sociedade em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem; e o Direito não é mais, nem menos, do que a expressão daqueles princípios supremos, enquanto modelo avançado de legítima organização social da liberdade. [...] Direito é processo, dentro do processo histórico [...]. (LYRA FILHO, 2005, p. 86, grifo nosso)

Sem o fim de imersão no terreno fértil que é a discussão em torno da Justiça, e a título de complementar tudo o que já foi ana-lisado, apenas diga-se, com o escólio firme de Miguel Reale (2002, p. 375/376), que não se pode separar a compreensão subjetiva da Justiça, enquanto valor da pessoa humana, da forma objetiva, como realização da ordem social justa (a multicitada Justiça Social18),

[...] mesmo porque o seu de cada um somente logra sentido na totalidade de uma estrutura na qual se cor-relacionem, deste ou daquele modo, o todo e as partes [e] [...] porque esta ordem [social justa] não é senão uma projeção constante da pessoa humana, valor-fon-te de todos os valores através do tempo [...] visando a atingir a plenitude de seu ser pessoal, em sintonia com os da coletividade. (REALE, 2002, p. 376/377)

Para ele, “a justiça, em suma, somente pode ser compreendida ple-namente como concreta experiência histórica, isto é, como valor fundan-te do Direito ao longo do processo dialógico da história” (REALE, 2002, p. 377), traço esse também assinalado, como visto, por outros autores.

Em vista de todo o exposto, o Direito pode ser concebido como o ordenamento jurídico, ou seja, o sistema de normas ou regras ju-

18 O termo Justiça Social, além do significado posto no texto, pode-se referir também, pragmaticamente, à ampliação de certo direito fundamental para a coletividade. Tal sentido, interessante notar, foi utilizado recentemente pelo Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, ao defender a proposta de reforma do sistema de saúde dos EUA, pela qual haveria um sistema público universal de saúde. Na ocasião, em discurso no Congresso, declarou que saúde para todos é uma questão de “justiça social”. Cf. PETRY, André. Depois do palanque, vida real. Veja, São Paulo, n. 2130, 16 set. 2009. p. 108-109. Reportagem.

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rídicas que traçam determinadas formas de comportamento, além de ser a ciência que o estuda (Ciência do Direito e Jurisprudência19) – concepção normativa. É, ainda, fenômeno histórico-cultural – con-cepção fática –, que traduz um ideal de Justiça (Justiça Social, mais especificamente) – concepção valorativa (REALE, 2002).20 Esses três elementos (tridimensionalidade do direito) se integram de forma dinâmica e dialética, na forma denominada por Miguel Reale (2002, p. 67) de “dialética de implicação-polaridade”, ou seja, fato e valor se correlacionam de modo irredutível (polaridade) e mútuo (impli-cação), dando origem à estrutura normativa como momento de reali-zação do Direito. Em seara constitucional, como não poderia deixar de ser, a tridimensionalidade também está presente:

[...] as Constituições elaboradas no período pós-Se-gunda Guerra Mundial – estruturadas no contexto do movimento denominado pós-positivismo ou neo-constitucionalismo – são documentos abertos que visam congregar, especialmente através dos princí-pios constitucionais, elementos fáticos, normativos e axiológicos. Tal característica permite que as Con-stituições atuais não incidam nem em um legalismo exacerbado e tampouco na total insegurança jurídica, bem como sejam suficientemente flexíveis e aptas a acompanhar a dinâmica social, em constante e cada vez mais rápida transformação. (KUBLISCKAS, 2009, p. 163, grifo nosso e itálico do autor)

É em torno desse sistema e com essas ideias que se passa ao estudo específico do Direito Constitucional e da evolução do movi-mento constitucionalista, abordando-se, após, aspectos da her-

19 Hoje, a Jurisprudência, entendida como as decisões judiciais reiteradas dos tribu-nais (e mesmo resoluções administrativas), é fonte imediata do direito, ao lado da Con-stituição Federal, leis e tratados internacionais de direitos humanos. Cf., para maiores detalhes, o subcapítulo 1.3, acerca do tema jurisprudencialização/tribunalização.20 Percebe-se, com Tercio Sampaio Ferraz Jr. (2003), que o Direito, como objeto, comporta tanto uma investigação zetética (enfoque aberto) quanto dogmática (enfoque fechado). Por isso, pode-se falar de vários focos no estudo do fenômeno jurídico, por exemplo: o estudo do direito civil, processual ou constitucional na álea normativa; o estudo da so-ciologia jurídica na álea fática; e o estudo da filosofia jurídica na álea valorativa.

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menêutica jurídica e constitucional e o tema acerca do fenômeno da jurisprudencialização e do ativismo judiciário, tudo como condição necessária e complementar para concluir-se, ao final, pela legitimi-dade da adoção de uma nova perspectiva do Supremo Tribunal Fed-eral em face da Jurisdição Constitucional.

Finalizando esse prolegômeno, por ora necessário afirmar que a Constituição, sendo o Direito Objetivo maior, também deve estar em harmonia com os Direitos Naturais dos Homens, no sentido antes delineado de Justiça Social, modelo esse mais at-ento à satisfação dos anseios da sociedade. Adota-se aqui, invari-avelmente, a concepção de “Constituição Civil” de Kant, citada por Norberto Bobbio (1992, p. 52):

Por “Constituição civil” Kant entende uma Con-stituição em harmonia com os direitos naturais dos homens, ou seja, uma Constituição segundo a qual “os que obedecem à lei devem também, reunidos, legislar”. Definindo o direito natural como o direito que todo homem tem de obedecer apenas à lei de que ele mesmo é legislador [até porque todo poder emana do povo, consoante art. 1º, parágrafo único, CF/88], Kant dava uma definição da liberdade como autonomia, como poder de legislar para si mesmo.

Enfim, como restará mais claro à frente, visando à consagração legítima da Constituição, entendida como o “primado do direito for-mador da arquitetura axiológica sobre o qual se funda a sociedade” (WINCK, 2007, p. 46), e desfazendo-se de muitas das ilusões positivas do Direito, numa abordagem humanista e socializante21,

[...] o constitucionalismo passa a ter “uma dimensão comunitária” ao adotar a concepção de Constitu-ição como “ordem concreta de valores”, destarte, os “valores compartilhados por uma comunidade política” [ordenação cultural] devem estar conec-

21 Essa abordagem humanista e socializante condiz com a observação feita por Miguel Reale (2002) já citada no texto, no sentido de que não há como se dissociar o aspecto subjetivo da Justiça, envolvido na pessoa humana, e o objetivo, como realização da ordem social justa.

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tados a “ordenação jurídica fundamental e su-prema representada pela constituição federal”. (WINCK, 2007, p. 45/46)

1.1 O fenômeno constitucional e o (neo)constitucionalismo

Pode-se conceber o Estado como a organização soberana de um povo sobre um território determinado, orientada ao atingimento de um conjunto de finalidades. Pelo que se vê, todo Estado deve ter uma forma de organização sob a base de uma ordem jurídica, tendo a Constituição um relevante papel nesse sentido, ou seja, como a Lei Fundamental do Estado. O estudo sistemático, evolucional e racional do fenômeno con-stitucional se desenvolve a partir do surgimento das primeiras Constitu-ições escritas, o que foi expresso pelo movimento político, jurídico e ide-ológico denominado constitucionalismo, que desenvolveu a concepção de estruturação racional do Estado e de limitação do exercício de seu poder, a partir da elaboração de um documento escrito a fim de repre-sentar a sua lei fundamental e suprema. A história do constitucionalismo não é senão a luta do homem político pela limitação do poder absoluto:

[...] la historia del constitucionalismo no es sino la búsqueda por el hombre político de las limitaciones al poder absoluto ejercido por los detentadores del poder, así, como el esfuerzo de establecer una justi-ficación espiritual, moral o ética de la autoridad, en lugar del sometimiento ciego a la facilidad de la au-toridad existente. (LOEWENSTEIN, 1986, p. 150, apud DORNELES, 2001)

A origem do constitucionalismo (moderno) é concebida com a Constituição dos Estados Unidos, de 1787, e a Constituição da França, de 1791, ambas de orientação liberal, cujo conteúdo estabelecia regras acerca da organização do Estado, do exercício e transmissão do poder e da limitação do Estado em vista dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo. Com base em pontos essencialmente político-liberais da Constituição, J. J. Gomes Canotilho (1995) cunhou a expressão “Consti-tuição ideal”, sendo que seus elementos caracterizadores, observados por Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (2009, p. 5), são:

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a) a Constituição deve ser escrita; b) deve conter uma enumeração de direitos fundamentais individ-uais (direitos de liberdade); c) deve adotar um sis-tema democrático formal (participação do “povo” na elaboração dos atos legislativos, pelos parlamentos); d) deve assegurar a limitação do poder do Estado me-diante o princípio da divisão de poderes.

À vista disso, três são as ideias básicas do constitucionalismo em referência: 1) a separação dos poderes; 2) a garantia dos direitos fundamentais; e 3) o princípio do governo limitado. Com a evolução, o Direito Constitucional não mais retratava exclusivamente es-ses ideais liberais, fazendo com que a Constituição assumisse nova feição: a de norma jurídica e formal, protetora dos direitos humanos. É dizer: a forma de organização política do Estado liberal não poderia ser retratada de per si, posto que a Constituição passou a representar qualquer forma de organização política, não importando o regime político ou a forma de distribuição da competência.

Modernamente, consoante aponta Vicente Paulo e Marcelo Alex-andrino (2009, p. 2), ao lado do constitucionalismo puramente juríd-ico, temos o político, democrático e social, em vista das exigências e dos conflitos sociais, e, por isso mesmo, o Direito Constitucional atu-al, com fortes marcas políticas, democráticas e sociais, não se limitar-ia às conquistas liberais22 – embora os referidos autores destaquem que, “[...] em todas as fases de sua evolução, o constitucionalismo não perdeu seu traço marcante, que é a limitação, pelo Direito, da ingerência do Estado (Governo) na esfera privada” (PAULO; ALEX-ANDRINO, 2009, p. 2, grifo do autor).

Adiante-se que está em voga o fenômeno da expansão do objeto da Constituição (constitucionalização do direito), “[...] cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sis-tema jurídico” (BARROSO, 2005, apud WINCK, 2007, p. 97), pelo que se pode falar em um neoconstitucionalismo. Quanto a esse tema, diga-se, por ora, que é fruto de duas mudanças de paradigma: a busca

22 Já foi dito que “o constitucionalismo passa a ter uma ‘dimensão comunitária’, ao adotar a concepção de Constituição como ‘ordem concreta de valores’, destarte, os ‘valores com-partilhados por uma comunidade política’ devem estar conectados a ‘ordenação jurídica fundamental e suprema representada pela constituição federal’ ” (WINCK, 2007, p. 45/46).

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da efetividade das normas constitucionais (através do fundamento da força normativa da Constituição) e o desenvolvimento de novos princípios e métodos hermenêuticos em sede constitucional (BAR-ROSO, 2003, p. 47, apud WINCK, 2007, p. 46/47).

Com essas considerações, passe-se a analisar as fases do con-stitucionalismo ou, se preferir, a evolução do Direito Constitucional. Far-se-á isso com o escólio do professor Marcelo Novelino (2009), o qual aponta cinco fases de desenvolvimento23, a seguir comentadas.

A primeira fase é de pouco importância, não sendo raro que seja relegada pelos autores constitucionalistas. Basta dizer, a título históri-co, que compreende o período entre a antiguidade e o final do séc. XVIII e passa pelos Hebreus, Grécia, Roma e Inglaterra (Rule of Law).

A segunda fase, em que o constitucionalismo é chamado de clássico ou liberal, influenciado pelas ideias (liberais) de Locke, Montesquieu e Rousseau, aparece em virtude do surgimento das primeiras Constituições escritas (EUA – 1787 e França – 1791). Nessa fase, tem-se a consolidação da supremacia da Constituição e de sua estrutura rígida e escrita (pontos de diferenças entre as duas fases). É a fase da chamada primeira dimensão dos direitos fundamentais, com ampla proteção à liberdade, propriedade e aos direitos civis e políticos. Nos Estados Unidos, firmam-se a supremacia da Constitu-ição (que estabelece as regras do jogo político) e a garantia jurisdi-cional (cuja proteção cabe ao Poder Judiciário, em razão da sua maior neutralidade política). Já na França, tem-se como pedra de toque a

23 Rogério Salgado Martins (1998), numa abordagem histórica do Constitucionalismo, faz a sua divisão em dois grandes períodos: o CONSTITUCIONALISMO CLÁSSICO (1787-1918) e o CONSTITUCIONALISMO MODERNO (1918-...). O Constitucionalismo clássico subdi-vide-se em cinco ciclos: CONSTITUIÇÕES REVOLUCIONÁRIAS DO SÉC. XVIII, no qual se enquadra a Constituição Americana de 1787, a Declaração dos Direitos do Homem e do Ci-dadão francesa de 1789, podendo ser incluída a Magna Carta; CONSTITUIÇÕES NAPOLE-ÔNICAS autoritárias do início do século XIX; CONSTITUIÇÕES DA RESTAURAÇÃO, como a dos Bourbons, de 1814; CONSTITUIÇÕES LIBERAIS, como a francesa de 1830 e a belga de 1831; CONSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS, iniciado em 1848. O Constitucionalismo moderno também é compreendido num total de 5 ciclos constitucionais: DEMOCRÁTI-CO-RACIONALIZADO, com a Constituição de Weimar de 1919; SOCIAL-DEMOCRÁTICO, que contém as Constituições francesas de 1946, italiana de 47 e a alemã de 49; EXPERIÊN-CIA NAZI-FACISTA; CONSTITUIÇÕES SOCIALISTAS surgidas em 1917 com a Declaração dos Direitos dos Povos da Rússia; CONSTITUIÇÕES DO TERCEIRO MUNDO, “que caracter-izam-se por uma tentativa de copiar as construções estrangeiras e que tombaram por terra diante de uma realidade que não condizia com as instituições copiadas”.

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separação dos poderes e a garantia dos direitos – quanto a isso, basta lembrar que a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Ci-dadão de 1789 dispunha que “toda a sociedade na qual a garantia dos direitos não é assegurada e nem a separação dos poderes deter-minada não tem Constituição”.

Interessante notar que estamos tratando, ao se referir a essa época, do Estado de Direito (liberal, por certo), que transmite a ideia de império da lei e de Estado abstencionista (que é diferente do Estado de polícia ou absolutista), cujas características podem ser assim resu-midas: os direitos fundamentais correspondem aos direitos da burgue-sia (liberdade e propriedade), sendo direitos com caráter formal e que necessitam de lei para serem restringidos; a limitação do Estado pelo Direito se estende ao soberano; a atuação da Administração Pública só pode ocorrer dentro da lei (legalidade); no campo econômico, não há intervenção do Estado (ideia de Estado mínimo de Adam Smith)24.

Identificam-se quatro concretizações desse Estado de Direito: o Rule of Law (Inglaterra durante a Idade Média), com a substituição do “governo dos homens” pelo “governo das Leis” e a concepção do devido processo legal em seu caráter substantivo (processo justo e adequado); o Rechtsstaat (Prússia), que significa o “Estado de Direito”, em seu aspecto apenas formal, trazendo em seu bojo a percepção da impessoalidade do poder; État Legal, que consiste no estabel-ecimento de normas por legisladores eleitos democraticamente, sendo o juiz, porém, mera bouche de la loi (“boca da lei”); État du Droit, evolução do anterior e que corresponde, fielmente, ao Verfas-sungsstaat, que é o “Estado Constitucional”.

Ao fim da Primeira Guerra Mundial, surge a terceira fase do con-stitucionalismo, qual seja, o moderno ou social, correspondente aos direitos fundamentais de segunda dimensão (igualdade material e direitos sociais, econômicos e culturais). É a vez do Estado Social25, como prestador de serviços, o qual buscava a superação de uma desigualdade social, que estava em contradição com a alcançada

24 O Estado liberal se limita à ordem e segurança públicas, tendo três deveres, segundo Adam Smith: proteger a sociedade contra a violência e a invasão externa; estabelecer uma adequada administração da justiça; erigir e manter certas obras e instituições públicas que nunca seriam de interesse privado.25 Estado Social não se confunde com Estado Socialista, em virtude, principalmente, de aquele manter a adesão ao capitalismo.

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igualdade política. As características fundamentais são: intervenção no âmbito social, econômico e laboral; papel decisivo na produção e distribuição de bens; garantia de um mínimo de bem-estar (welfare state), através de políticas sociais, a exemplo da distribuição do sa-lário social; estabelecimento de um grande convênio global de esta-bilidade econômica (pacto keynesiano).

A quarta fase se desenvolve ao fim da Segunda Guerra Mun-dial, momento o qual nos referimos ao neoconstitucionalismo, tema este muito discutido nos dias de hoje. Essa é a fase dos direitos transindividuais (coletivos e difusos), representados pelas terceira e quarta dimensões dos direitos fundamentais. A terceira dimen-são (ou geração) traz consigo o valor fraternidade ou solidariedade, tais como o direito à paz, ao meio-ambiente, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento e progresso. Já a quarta dimensão incorpora a ideia de pluralidade, como o direito à democracia, à in-formação e ao pluralismo.

Em síntese, as gerações ou dimensões dos direitos fundamentais podem ser desenhadas na forma do seguinte quadro elaborado por George Marmelstein Lima (2003):

Quadro 1 – Desenvolvimento das gerações ou dimensões dos direitos fundamentais

Fonte: LIMA, George Marmelstein. Críticas à teoria das gerações (ou mesmo dimen-sões) dos direitos fundamentais. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 173, 26 dez. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4666>. Acesso em: 02 dez. 2009.

1a Geração 2a Geração 3a Geração 4a Geração

Liberdade Igualdade Fraternidade Democracia (direta)

Direitos nega-tivos (não agir)

Direitos a prestações

Direitos civis e políticos: liber-dade política, de expressão, re-ligiosa, comercial

Direitos sociais, econômicos e culturais

Direito ao desen-volvimento, ao meio-ambiente sadio, direito à paz

Direito à informação, à democracia direta e ao pluralismo

Direitos individ-uais

Direitos de uma cole-tividade

Direitos de toda a Humanidade

Estado Liberal Estado social e Estado democrático e social

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Como já foi adiantado em linhas atrás, o neoconstitucionalismo26 consolida, através da mudança de paradigma, novos e importantes princípios e métodos hermenêutico-constitucionais – que ainda serão analisados detidamente –, com vista a dar maior efetividade e força normativa à Constituição, constatações tais resultantes do fenômeno da expansão do objeto constitucional.

São características desse novo movimento constitucionalista: 1) normatividade da Constituição27, com destaque para Konrad Hesse, em sua obra A Força Normativa da Constituição; 2) superioridade da Constituição (escrita e rígida); 3) centralidade da Constituição, que significa a onipresença ou ubiquidade constitucional e bem reflete o citado fenômeno da expansão do objeto (e do objetivo) da Con-stituição. Essa constitucionalização do direito, que é uma fase me-todológica de renovação da Constituição, com repercussão nos out-ros ramos do direito, dá-se por dois aspectos: a eficácia horizontal (e não somente vertical) dos direitos fundamentais, sendo cogentes es-ses direitos também nas relações entre particulares, e o princípio da interpretação conforme a Constituição28, pelo que a lei, além de ser compatível com ela, deve ser conforme, numa aplicação direta ou in-direta do Texto Maior; 4) rematerialização da Constituição, que reflete a nossa Magna Carta de 1988, dita prolixa; 5) maior abertura da inter-pretação constitucional, estando superada a subsunção tão somente lógica das regras pela configuração da ponderação, argumentação e métodos específicos relacionados aos princípios (normativos); 6) for-talecimento do Poder Judiciário. Esse último ponto é relevante para a finalidade deste trabalho, em vista de hoje termos o Poder Judiciário

26 O neoconstitucionalismo se aloca no contexto do pós-positivismo, onde houve o reconhecimento do caráter normativo dos princípios, motivo pelo qual a norma passa a ser conjunto de princípios (agora, vinculantes e obrigatórios) e regras. São nomes dessa fase Robert Alexy e Ronald Dworkin. Diga-se apenas que o direito pós-positivista une elementos do jusnaturalismo (correção substancial, de conteúdo – aspecto Justiça) e do positivismo (validade formal e eficácia social – aspecto Segurança Jurídica). Dessa forma, o conteúdo do direito tem de ser compatível com a moral. Vale a pena dizer que, para Alexy, o direito extremamente injusto não pode ser considerado direito.27 Interessante correlação pode-se fazer entre a normatividade dos princípios e a nor-matividade da Constituição, já que esta, por certo, engloba diversos princípios (nor-mativos).28 Não por menos, conforme Luis Roberto Barroso, toda a interpretação jurídica é in-terpretação constitucional.

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(em contraposição ao legislador de outrora) como o principal pro-tagonista no tocante à proteção das garantias constitucionais, num fenômeno que é chamado, sob a mira do Estado Democrático de Di-reito, de judicialização da política e das relações sociais.

Em relação ao Estado Democrático de Direito, atualmente, seus meandros principais são a consagração, pelo ordenamento jurídico, de institutos que permitem a participação do povo na vida política do Estado (nesse sentido, a ação popular – art. 5º, LXXIII, CF/88 – e o plebiscito, referendo e iniciativa popular – art. 14, CF/88) e a pre-ocupação com o aspecto material e com a efetividade dos direitos fundamentais. Quanto a isso, saliente-se que o Legislativo não está condicionado apenas ao aspecto formal na elaboração das leis, mas também ao aspecto material (ou seja, ao conteúdo da Constituição e à sua força normativa, motivo pelo qual alguns autores apontam uma evolução do Estado Democrático de Direito para o Estado Con-stitucional Democrático). Como fácil se percebe, o próprio conceito de democracia passa a ter um aspecto material, além do formal29, significando a fruição de direitos básicos por todos, inclusive pelas minorias, cabendo ao Poder Judiciário a capacidade de equilibrar eventuais prejuízos da maioria e as garantias contramajoritárias.

Por fim, é curiosa a referência feita por Marcelo Novelino (2009), citando José Roberto Dromi, a uma quinta fase, que não é atual, posto que é um constitucionalismo futuro. A respeito disso, sinaliza-se uma busca do equilíbrio entre as conquistas e concepções dominantes do constitucionalismo moderno e os excessos do constitucionalismo con-temporâneo. Ademais, selecionam-se alguns valores fundamentais das Constituições do futuro, quais sejam: verdade, solidariedade, con-senso, continuidade, participação, integração e universalização.

Visto o desenvolvimento do Direito Constitucional, ancorado no movimento constitucionalista, mister focarmos atenção na Constitu-ição em si. Passemos, portanto, às concepções fundamentais acerca dela, que, consoante Marcelo Novelino (2009), são cinco: sociológica, política, jurídica, normativa e culturalista.

A concepção sociológica (1868, Prússia), atribuída a Ferdinand Lassalle, indica que os problemas constitucionais são problemas liga-dos ao poder, e não jurídicos. Divide a Constituição em duas: a escrita

29 Limita-se, o aspecto formal, à constatação da participação do povo e à vontade da maioria.

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(jurídica), que significa o conjunto de normas feito pelo Poder Con-stituinte, e a real (efetiva), ou seja, a soma dos fatores reais de poder que regem uma determinada nação. Se a Constituição escrita não corresponde à realidade, ela não passa de uma folha de papel. Por outras palavras, esse enfoque sociológico traz a concepção de que a Lex Major “[...] manifesta a emergência das forças sociopolíticas, do poder ativo dentro de uma sociedade [fatores reais do poder]” (FER-RAZ JR., 2003, p. 230) e, por espelhar esses fatores reais do poder, em conformidade com a própria realidade social, seria uma Constituição real, e não meramente algo no papel, sem qualquer eficácia.

Em relação ao sentido político (1928, Alemanha), com referência a Carl Schmitt, a Lex Legum é vista como uma decisão política fun-damental, não obstante as identificações sociológicas e jurídicas, em equivalência, num sentido absoluto, ao próprio Estado. Nesse enfoque, “a constituição é um ato de vontade [decisionismo, vol-untarismo], não importa se corresponde ou não a anseios sociais. É uma questão de oportunidade política [...]” (FERRAZ JR., 2003, p. 232). Acresça-se a divisão feita entre Constituição propriamente dita (normas materialmente constitucionais) e Leis Constitucionais (nor-mas formalmente constitucionais), sendo, ainda, ambas as acepções formalmente iguais e materialmente distintas. Para Schmitt, a Consti-tuição propriamente dita (material) é apenas aquilo que decorre de uma decisão política fundamental que antecede (e.g. direitos funda-mentais, separação dos poderes, estrutura do Estado), enquanto que o restante seria as leis constitucionais (e.g. art. 241, § 2º, CF/8830).

Tem-se, na primeira parte do séc. XX, com Hans Kelsen, a Con-stituição no sentido jurídico (stricto sensu), como lei fundamental, ou seja, conjunto de normas básicas que, tecnicamente, viabilizam os procedimentos para desenvolvimento da atividade organizada da sociedade. O aspecto jurídico de Kelsen, assaz examinado no sub-capítulo 3.1, propugna que a Constituição não precisa buscar o seu fundamento nem na sociologia nem na política, posto que, sendo ela também uma lei, tal embasamento é jurídico31. A Constituição tem o sentido lógico-jurídico, através do pressuposto da Norma Funda-

30 “Art. 242. [...] § 2º - O Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal.”31 Embora seja feita crítica sobre esse ponto, pois não se preocupa com o conteúdo.

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mental Hipotética, e o sentido jurídico-positivo, ao estar no topo da pirâmide normativo-positiva, derivada do Poder Constituinte.

Além desses pontos, pode-se falar em uma concepção normativa da Constituição, posição essa defendida, a partir de 1959, por Konrad Hesse, em contraposição ao aspecto sociológico. Em certos casos, admite-se que há, de fato, a sucumbência da Constituição jurídica diante da realidade. No entanto, muitas vezes (e tal intensidade deve prevalecer) essa Constituição escrita possui uma força normativa capaz de modificar a realidade apontada, bastando, para isso, que exista vontade de Constituição, e não apenas vontade de poder. Vol-taremos, por vezes, a comentar as ideias lançadas na obra do referido autor – A Força Normativa da Constituição.

A quinta e última concepção é a culturalista, sendo Meireles Teixei-ra o seu expoente. Esse aspecto faz um apanhado dos outros referidos, ao entender que o Texto Maior tem ares sociológico, político e jurídico (além do normativo), o que nos remete ao conceito de Constituição to-tal, isto é, com todos os aspectos – e, por isso mesmo, Canotilho refere-se a ela como uma estrutura jurídica do aspecto político. Assim sendo, ao mesmo tempo em que uma Constituição é resultante da cultura de um povo, ela também é condicionante dessa mesma cultura.

Importante notar que, em todos esses sentidos, percebe-se, de um lado, uma regra estrutural (fonte sociológica, política, jurídica, norma-tiva e cultural da norma constitucional) e, de outro, um elemento do sistema do ordenamento (a Constituição) (FERRAZ JR., 2003).

Em vista de todo esse estudo sistemático e evolucional do fenô-meno constitucional, a seguinte afirmação de J. J. Gomes Canotilho (1995, p. 245, grifo nosso e itálico do autor), aplicada diretamente ao presente trabalho, é mais bem compreendida nesse momento do que se fosse alocada isoladamente, sem todo o contexto acima descrito:

O direito constitucional, como conformador do político, é necessariamente o direito de uma realidade social, historicamente determinada. [...] Nesta perspec-tiva, a história do direito constitucional não é apenas nem fundamentalmente a história do texto; é tam-bém, e, sobretudo, a história do contexto (o conjunto de práticas constitucionais e de estratégias), o que o coloca no cerne da própria produção histórica e social.

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1.2 Nova Hermenêutica e Interpretação Jurídica e Constitucional

O presente subcapítulo é especialmente importante para se compreender a construção de uma nova hermenêutica que embase, com um viés mais pragmático, as técnicas e formas de interpretação e aplicação do direito.

Conforme prefacia Vicente de Paulo Barreto, da UERJ/UGF, a obra de Margarida Maria Lacombe Camargo, Hermenêutica e Argumentação: uma contribuição ao estudo do direito, tem o grande mérito de inves-tigar a mudança de paradigma na interpretação e compreensão do fenômeno jurídico, apontando, principalmente, a aplicação concreta-prática do direito, em contraposição ao abstrativismo de outrora.

A referida mudança de paradigma deve-se a uma crise do direito, no sentido de se ter presente, hoje, uma nova forma de pensá-lo e aplicá-lo. Nesse ponto, não há que se confundir interpretar legalmente (dogmática) uma norma e fazer autêntica hermenêutica jurídica (ze-tética). Não. O processo hermenêutico considera a norma como parte integrante de um sistema, o jurídico, mas também a considera além de seu aspecto estritamente legal, para abarcar, assim, as dimensões sociais e valorativas, que determina, assaz, a eficácia do direito.

A complexidade de uma sociedade pluralista demanda, outros-sim, que fatores antes tidos como ajurídicos (a exemplo dos valores, que são abordados classicamente como um conceito inerente à Moral e à Ética) permeiem a análise do pensar jurídico, concebendo-se uma nova metodologia, que expressam novos valores sociais e políticos, deixando de lado a dogmática civilista clássica e relegando, ainda mais, o brocardo medieval in claris cessat interpretatio, que não condiz com o constitucionalismo moderno – Canotilho (1994, apud PAULIO; ALEXANDRINO, 2009, p. 66) ensina que “toda a norma é sig-nificativa, mas o significado não constitui um dado prévio; é, sim, o resultado da tarefa interpretativa”.

O direito pós-moderno apresenta-se, enfim, como um mecanis-mo de prática social e agente de mudança social. Essa nova racionali-dade jurídica busca fundamento na tópica e retórica (argumentação) para um completo entendimento (compreensão) do sistema jurídico da sociedade contemporânea.

Importante observar que, na introdução do trabalho, apresenta-do pela autora à Universidade Gama Filho como sua Tese de Douto-

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rado, ela já finca as bases de seu estudo: a argumentação, levando em consideração o que está na lei, doutrina, jurisprudência (dogmática jurídica e os costumes) (CAMARGO, 2003).

Aponta a insuficiência da hermenêutica tradicional e a descon-fiança que paira sobre o direito como as molas propulsoras de uma discussão sobre a aceitação, legitimidade e controle do mesmo. Quanto a essa hermenêutica tradicional, esta consiste nas técnicas de interpretação das leis (determinar o sentido e o alcance das ex-pressões do direito). E é justamente em razão dela que costuma a hermenêutica ser apontada como a ciência do direito que tem por objeto as técnicas de interpretação e aplicação do direito, ideia esta, por certo, reducionista (CAMARGO, 2003).

Mas era esse critério que dava o viés cientificista e objetivo à in-terpretação das leis. Porém, essas técnicas não alcançam nem o seu objetivo, a um porque o seu comando é fluido, já que não há hierar-quia entre elas, e a dois porque tal orientação não vislumbra a dimen-são criadora do intérprete, que tende a mais focar o problema que se lhe apresenta do que para a lei em si.

Embora essas ponderações, os livros de Introdução ao Direito sempre trazem técnicas de interpretação (gramatical, lógico-sis-temática, histórico-evolutiva, axiológica ou teleológica), sem se ater para o fato de que elas correspondem, ao fim, a uma construção de teorias, doutrinas e movimentos acontecidos ao longo dos séculos, e que representam uma abordagem bem maior do que a dada.

Mister ponderar que Savigny já as apontava, indicando a sua apli-cação em conjunto, a fim de se compreender a norma jurídica. Contudo, concluímos com Margarida Camargo (2003, p. 4) que “são, na realidade, elementos que informam e orientam a lei sem, contudo, sobrepor-se ao comando do problema, ou seja, à dimensão prática e concreta do caso”, pelo que seria visto como automático entender a interpretação como simples descoberta do sentido objetivo do texto, independente do caso sub judice. Juiz não é máquina; é, na verdade, a viva vox iuris.

Assim, ganha relevo figuras como ponderação, razoabilidade e di-alética na interpretação das leis, sendo, portanto, como insuficientes a simples aplicação de determinadas técnicas, como o silogismo puro e formal. Há necessidade, mormente no âmbito do direito con-stitucional, como bem aponta Margarida Camargo (2003), citando Friedrich Müller, Konrad Hesse e J. J. Gomes Canotilho, de um maior

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compromisso do intérprete com a realidade social, no sentido de uma hermenêutica concretizadora.

Historicamente, a essência do direito sempre esteve calcada na justiça e segurança (algo que se aponta como inversamente propor-cionais, mas que são, na verdade, concepções complementares). De um lado, temos a justiça formal, onde prepondera a ideia de segu-rança do direito. De outro, o questionamento dessa “modernidade”.

Em Hobbes, Locke, Rousseau, Montesquieu e nos Fouding Fathers (Hamilton, Madison e Jay), temos, de forma geral, a manifestação no sentido de igualar o Estado à ordem do ordenamento jurídico posi-tivo, onde a segurança se encontra nas leis legitimamente criadas pelos representantes do povo e garantidas pelo poder judiciário, que inibem o abuso de poder, mas também garante a igualdade formal entre os homens. Assim, a teoria da separação dos poderes e a igual-dade garantida pela aplicação da lei formam a estrutura formal e os ideais do Estado de Direito.32

Dando um salto quântico, na pós-modernidade esse valor segu-rança abre espaço para o valor justiça, garantido, agora, pela razoabi-lidade das decisões de cada caso concreto. Nas palavras de Margarida Camargo (2003, p. 64/65): “é quando as relações intersubjetivas e dialé-ticas, capazes de viabilizar o consenso e a legitimidade das decisões jurídicas, fazem com que se recupere a antiga retórica clássica e lhe confira objetos novos” (lógica do razoável e nova hermenêutica).

Importante, ainda, que observemos o efeito concreto trazido pela pesquisa jurídica de matriz jurisprudencial, a que, muito apro-priadamente, A. Castanheira Neves (1998, apud CAMARGO, 2003, p. 9) chama de jurisprudencialismo, que se apresenta “[...] como o suces-sor do normativismo legalista e do funcionalismo jurídico [o direito como o meio de realizar os interesses de outras esferas de poder ou mesmo da economia e da política]33 anteriores, e que busca enfrentar a crise de sentido pela qual atravessa o direito” (CAMARGO, 2003, p. 9). Nas palavras do citado autor:

32 O conto O moleiro de Sans Souci, do francês François Andrieux, resenha um fato ocor-rido na França pelo qual se demonstra o triunfo da lei sobre a força e o arbítrio. A um chamado do rei para que se cumprisse uma ordem sua de retirada de um moinho que maculava a imagem do seu palácio de veranei, o moleiro respondeu: “ainda há juízes em Berlim”.33 Cf. SALDANHA; ESPINDOLA; MACHADO, 2009.

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O que dá sentido ao jurisprudencialismo é uma outra perspectiva bem diferente. Designamo-la por perspectiva do homem (do homem-pessoa), i. é, aquela perspectiva em que o direito, com uma sua norma-tividade axiologicamente fundada, é assumida por, e está diretamente ao serviço de uma prática pessoal-mente titulada e historicamente concreta [...]. (NEVES, 1998, p. 18, apud CAMARGO, 2003, p. 9)

Esse jurisprudencialismo não se confunde com a jurisprudenciali-zação, embora tenham reflexões calcadas pelo mesmo aspecto concre-to e criador do direito. A jurisprudencialização do direito constitucional será tratada em subcapítulo próprio. Diga-se, por enquanto, que repre-senta uma nova forma de ver a Constituição, ao ser revelada a criação jurisdicional em matéria constitucional e a autoridade da Jurisprudên-cia (direito constitucional jurisprudencial), identificando-se, outrossim, a interpretação concretizante de certos conteúdos constitucionais. Tem o ponto de conexão com o jurisdicionalismo à medida que ambos levam em consideração os efeitos concretos das decisões judiciais.

Em um apelo distintivo, que não pode ser considerado absoluto, pode-se dizer que a jurisprudencialização está para o enfoque jurisdi-cional e jurisprudencial (no sentido das decisões, no caso, das Cortes Constitucionais) assim como o jurisprudencialismo está para a análise fenomenológica do decidir jurídico (concreto)34. Este, como juridici-dade, influencia aquele35. Enfim,

[...] o Jurisprudencialismo toma o direito como um con-stitutivo e sempre novo pensamento comprometido com o decidir concreto; um pensamento problemático

34 “É a focalização e análise fenomenológica do ‘decidir jurídico’ em sua intencion-alidade específica, revelando a prioridade do caso para a abordagem metodológica do direito (abordagem esta por isso mesmo ‘microscópica’), que afasta desde logo quaisquer concepções em que o direito figure como um mero (já) dado, normativo ou fático, preexistente (seja lá como este objeto seja pensado: uma norma positiva emanada do legislador estatal ou do costume, ou fruto da razão ou da natureza, ou de Deus, ou um conjunto de fatos reveladores de uma ordem social), o qual cumpriria ao pensamento jurídico ‘apreender’. Ao mesmo tempo, revela inequivocamente a racion-alidade que governa e a autonomia que caracteriza o direito.” (COELHO, 2006, p. 4)35 “O modelo de jurisdição – sustenta CASTANHEIRA NEVES – determina-se pelo mod-elo de juridicidade que lhe é contemporâneo” (COELHO JUNIOR, 2005).

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pertencente ao presente e voltado para o futuro, por força de sua historicidade mesma. (COELHO, 2006, p. 2)

O modelo do jurisprudencialismo traz a perspectiva do homem-pessoa convivente no seu direito, no seu dever e na sua responsa-bilidade36, em contraposição ao normativismo (perspectiva do legal) e ao funcionalismo (perspectiva do social). Destarte, esse novo para-digma, com o esgotamento daquele positivista, reveste de especial importância os princípios jurídicos37 (que tem relação estreita com os

36 “Na investigação [...] do decidir concreto demonstra-se o prius metodológico do caso so-bre a norma. O direito não é tido na conta de um objeto pré-constituído, mas como um problema de validade, como pensamento jurídico emergente sempre em/com situações humanas concretas que desafiam o homem a uma resposta de validade, que é uma re-sposta sobre si mesmo, uma resposta em que o homem se decide na convivência. [...] O direito é uma decisão/afirmação fundamental do homem em sua historicidade, que não está lá desde sempre mas é posto por força do próprio homem” (COELHO, 2006, p. 9 e 12).37 Os princípios, como é cediço, são mandamentos de otimização que se servem da propor-cionalidade e da razoabilidade. Diversamente das regras (embora ambos façam parte do gênero “norma”), onde os conflitos são resolvidos pelos clássicos critérios hierárquico, cronológico e de especialidade, a hipótese de colisão de princípios soluciona-se por meio da proporcionalidade (também chamado de razoabilidade, de proibição de excesso ou do devido processo legal em sentido substantivo, embora alguns diferenciem proporcionali-dade de razoabilidade – já que o teste da (ir)razoabilidade (teste Wednesbury) é menos in-tenso do que o da proporcionalidade, afastando-se tão somente os atos absurdamente irra-zoáveis –, como Humberto Ávila (2009) e Luís Virgílio Afonso da Silva (2002, apud CARDOSO, 2009). Mas, diga-se, o STF considera a proporcionalidade abrangente da razoabilidade). Essa regra da proporcionalidade foi desenvolvida pelo Tribunal Constitucional alemão a partir do paradigmático processo do caso Lüth – que diz respeito a um pedido de boic-ote público a um filme chamado Unsterbliche Geliebte (“Amada Imortal”), envolvendo esse caso questão acerca da livre manifestação de opinião –, estabelecendo os seus elementos: adequação (o meio é adequado ao fim, revelando-se apta a medida a ser tomada), necessi-dade (não há outra medida que impeça tal prejuízo) e proporcionalidade em sentido estrito – ponderação (averiguação das vantagens e desvantagens da adoção da medida, devendo haver um equilíbrio, uma ponderação entre o grau de restrição e o grau de realização do princípio contraposto). O legado do caso Lüth se espraia, por exemplo, nos conceitos ref-erentes à dimensão objetiva dos direitos fundamentais (eficácia irradiante desses direitos – Ausstrahlungswirkung), à eficácia horizontal dos direitos fundamentais (Drittwirkung) e à necessidade de ponderação, em caso de colisão de direitos – fala-se, ainda, em constitu-cionalização do direito privado, filtragem constitucional, interpretação conforme os direi-tos fundamentais, etc. Cf. também, para maiores detalhes sobre o caso Lüth e seus efeitos, citando, inclusive, a decisão na íntegra da Corte Constitucional alemã: LIMA, George Mar-melstein. 50 Anos do Caso Lüth: o caso mais importante da história do constitucionalismo alemão pós-guerra. Direitos Fundamentais, 13 maio 2008. Disponível em: <http://direitos-fundamentais.net/2008/05/13/50-anos-do-caso-luth-o-caso-mais-importante-da-historia--do-constitucionalismo-alemao-pos-guerra/>. Acesso em: 30 nov. 2009.

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direitos fundamentais), estruturados de forma normativa, pelo que se permite o desenvolvimento reclamado pelas transformações so-ciais, num sistema aberto de valores que se interagem uns com os outros, a depender do caso concreto posto a julgamento (perspectiva jurisprudencial). Os princípios jurídicos – sustenta Inocêncio Mártires Coelho (2003, p. 98, apud COELHO JUNIOR, 2005) – são produzidos

[...] em dois tempos e a quatro mãos: primeiro são formulados genérica e abstratamente pelo legislador; depois se transformam e se concretizam, natural-mente, em normas de decisão que, a partir deles, são criadas pelos intérpretes e aplicadores do direito.

É dessa forma que A. Castanheira Neves (1998, p. 13, apud COEL-HO JUNIOR, 2005) ensina que a atual praxis caracteriza-se, funda-mentalmente, pela “transformação irreversível do sentido das leis e pela assunção deliberadamente programática de uma estratégia político-social no todo da realidade social”, não mais se admitindo aquele juiz que não fala, ou melhor, que somente emite sons com as palavras do legislador. É dizer: o magistrado, antes mero bouche de la loi, assume papel ativo na garantia de direitos que não se ache necessariamente na lei ou mesmo nela se encontre abstrati-vamente, à espera de que lhe seja dado conteúdo. Tal fenômeno ju-rídico articula-se mediante os seguintes vetores, bem apresentados por Sergio Coelho Junior (2005), e que servem de parâmetro para todo o trabalho, em razão da disseminação da Jurisdição Constitu-cional e fortalecimento do Poder Judiciário:

a) A todo momento, emergem conflitos das mais variegadas naturezas, para os quais o legislador não pode dar resposta. Trata-se de uma “explosão de litigiosidade”, que não se manifesta somente em ter-mos quantitativos;

b) O advento da sociedade de massa, orientada pelo e para o mercado, o qual no terreno jurídico tem por colunas os institutos do contrato e da responsa-bilidade. É o mercado, e não mais a lei, que faz fun-cionar as engrenagens da sociedade. Prova disso são a onipresença das relações de consumo, a aplicação

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analógica de seu estatuto às mais variadas situações e a flexibilização das relações de trabalho (prevalência do pactuado sobre o legislado);

c) A dissolução de um consenso moral, especial-mente no que tange à relações de família, profunda-mente alteradas (sob muitos aspectos em boa hora) pelo reconhecimento da união estável, pela vedação de distinção entre os filhos havidos ou não na con-stância do matrimônio dos pais, pela emancipação da mulher, pelo reconhecimento dos direitos da cri-ança e do adolescente;

d) A disseminação da Jurisdição constitucional, mediante a qual se rompe o dogma rousseauísta da soberania do legislador;

e) A universalização da justiça e dos direitos fun-damentais, máxime com o advento do direito comu-nitário, veio contribuir para a preeminência do julga-dor. E não se está somente falando da jurisdição das próprias cortes comunitárias, mas sobretudo dos juízes internos que fundamentam suas decisões em normas de direito supranacional ou na jurisprudência daque-les tribunais, de que é exemplo a Corte de Estrasburgo;

f) A tutela coletiva dos novos direitos, envolven-do questões relativas ao meio ambiente, ao consumi-dor, à informação, à livre concorrência, ao patrimônio genético etc., sempre a exigir do juiz soluções que não raro desconhecem tratamento nos textos legais, seja no aspecto material, seja no instrumental, onde as categorias clássicas forjaram-se sob a ótica dos direitos individuais. Destarte, não são apenas os in-divíduos, que dele se socorrem como último recurso, mas a sociedade ela mesma transfere suas incapaci-dades à instituição judiciária.

Delinear-se-á o tema da jurisprudencialização e do ativismo ju-diciário mais adiante. Voltemos, por ora, porém, à análise hermenêu-tica encampada por Margarida Camargo.

A autora propõe uma investigação do direito através de uma teo-ria da argumentação da hermenêutica jurídica, que leve em conta o estudo tópico-retórico-dialético num processo de compreensão e

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concretização da norma, com concentração na idéia da lógica do ra-zoável (Perelman) e Nova Retórica.

Para ela, os termos hermenêutica – que advém do deus Hermes, da mitologia grega, que detinha o conhecimento e era capaz de deci-frar corretamente as mensagens divinas – e interpretação jurídica nos remetem ao processo de aplicação da lei, que é feito pelo Poder Ju-diciário. Tal norma jurídica encontra-se jungida a valores que devem ser compreendidos e o processo de interpretação e aplicação das leis correspondem a uma situação hermenêutica (Gadamer) relacionada a uma situação histórica, da qual fazem parte o sujeito (intérprete) e o objeto a ser interpretado (fato e norma).

Assim, hermenêutica jurídica caracteriza-se como o processo de interpretação e aplicação da lei que desemboca na compreensão to-tal do fenômeno que requer solução (problema concreto que clama por solução razoável, justa).

Diferem-se ciências empíricas (naturais) da do espírito (que dizem respeito às relações humanas). Estas necessitam de compreensão, porque proferem conhecimentos. Dizem respeito, também, a relação histórica e de liberdade que se estabelecem no campo da variedade e da probabilidade. Por isso mesmo se diz que o intérprete, aí, é um ser historicamente orientado e que faz parte de uma tradição. “A nor-ma jurídica constitui-se, assim, em um fazer humano, carregado de sentido [valores]” (CAMARGO, 2003, p. 17).

Dessa forma, o direito – a sua existência –, enquanto significação, depende de concretização ou da aplicação da lei em cada caso jul-gado, através da relação fática entre compreensão e interpretação, no âmbito da experiência em um vasto campo de possibilidades (hermenêutica como filosofia prática; Gadamer). Isso se aplica tanto ao direito objetivo (ratio legis) quanto ao direito subjetivo (intenção do autor numa situação específica).

A hipótese lançada pela autora é a de que esse processo de com-preensão, no direito, se concretiza por meio da argumentação, que torna possível, tecnicamente, a interpretação. Essa argumentação, em instaurado o pensamento dialético, seria a técnica que viabilizaria o acordo sobre a escolha do significado (dentre as várias possibilidades) mais adequado, verossímil às partes historicamente presentes.

Assim dispõe Margarida Camargo (2003, p. 22): “[...] o direito con-siste na realização de uma prática que envolve o método hermenêu-

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tico da compreensão e a técnica argumentativa”. Logo, compreensão e concretização encontram-se relacionadas, onde a realidade do di-reito confunde-se com a realidade de sua compreensão.

Nessa interpretação devem ser considerados os pré-juízos (topoi; Heidegger) e as provas concretas e opiniões amplamente aceitas (“auditório universal”). Busca-se, com isso, a verdade, não inques-tionável, mas aquela persuasiva e responsável.

Falamos muito em hermenêutica e interpretação como se sig-nificassem a mesma coisa. Não são. A hermenêutica se comporta como ciência que se preocupa com as técnicas próprias da atividade interpretativa, inserida, aquela, por vezes na lógica formal, por outras vezes na fenomenologia de Husserl e Heidegger.

Gadamer, ao questionar a problemática da compreensão das ciências do espírito, aborda a análise da “consciência da história efe-tiva” e do “horizonte histórico”. Essa historically effected consciousness significa a consciência da situação hermenêutica, ou seja, do momen-to de realização da compreensão. Já o projeto do horizonte histórico é um momento na realização da compreensão, baseado na ideia de tradição (formada dos princípios, lei, doutrina e jurisprudência, com forte carga de legitimidade do poder): “compreender é operar uma mediação entre o presente e o passado”, numa relação de confronto entre o novo (experiência) e o antigo (costume). (GADAMER, 1998, apud CAMARGO, 2003, p. 34)

Dessa forma, conclui que a tarefa da hermenêutica é refletir sobre a dinâmica da própria interpretação, compreendendo o objeto com base em uma certa tradição. Ou seja, a interpretação como comportamento reflexivo-dialético-histórico-linguístico diante da tradição, de forma a aflorar o verdadeiro significado do texto. Completa Margarida Camargo (2003), ao afirmar que “o indivíduo compreende-se a si mesmo através da consciência que tem de sua situação histórica”. Richard Palmer (1970, p. 216, apud CAMARGO, 2003, p. 38) assim sintetiza o pensamento de Gadamer: “as chaves para a compreensão não são a manipulação e o controle, mas sim a participação e a abertura, não é o conhecimento, mas a experiência, não é a metodologia mas sim a dialética”.

Como mais adiante será repetido, na hermenêutica atual há uma prevalência da “vontade objetiva da lei (rectius: da Constituição)” so-bre a “vontade subjetiva do legislador”, e por isso mesmo cabe ao intérprete o importante papel de adequar a significação da lei ao mo-

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mento presente de aplicação da mesma, dentre um leque de possibi-lidades, revelando-a ao mesmo tempo em que a concretiza (existen-cialismo de Gadamer). Afirma Gadamer (1983, apud CAMARGO, 2003, p. 44) que “aplicar o direito significa pensar conjuntamente o caso e a lei de maneira tal, que o direito propriamente dito se concretize”. “E de concretização em concretização temos, como resultado, um franco projetar da jurisprudência” (CAMARGO, 2003, p. 44, grifo nosso). Nesse ponto, o pensamento tópico tem como base o acordo, o que “democratiza” o pensamento.

Pondere-se que Descartes, ao contrário, prega o cartesianismo, que vai de encontro a tudo aqui já dito, posto que reprova a influên-cia dos costumes e valores, que “contaminam a pureza e a clareza do raciocínio” (CAMARGO, 2003, p. 49).

O direito, como obra humana, está impregnado de valores, seja na intenção do legislador ou mesmo no processo de aplicação da lei próp-rio do juiz, seja levando-se em consideração aqueles valores incorpora-dos à tradição histórica, o que faz com que ele deva ser compreendido.

Nesse processo, há que se falar da pré-compreensão, que significa uma antecipação daquilo que se compreende, pela expectativa cria-da pelo intérprete frente a seu objeto. Dentro dessa interação dialé-tica, depreende-se a figura do “círculo hermenêutico”, que coloca em movimento a interpretação. Não é por menos que se afirma: “os pré-juízos de um indivíduo são muito mais que seus juízos; a realidade histórica do seu ser” (viés ontológico-existencialista) (GADAMER, 1992, apud CAMARGO, 2003, p. 57).

A autora finaliza o primeiro capítulo distinguindo a hermenêu-tica jurídica dos demais campos hermenêuticos, ao dizer que aquela tem uma característica que lhe é peculiar, qual seja, utilização no processo de compreensão, além da tradição histórica, da tradição es-pecificamente jurídica (regras e princípios), que desemboca na ideia da dogmática, que tem a grande vantagem de preservar a segurança nas relações sociais, “pelo quantum de previsibilidade que oferece ao controle de suas ações, mais do que em qualquer outra área do con-hecimento [...]”. (CAMARGO, 2003, p. 58/60)

Percorreremos, nesta parte, que corresponde ao segundo capí-tulo da obra de Margarida Camargo, a análise de diversos movimen-to/teorias lançados ao longo dos séculos acerca da interpretação do mundo jurídico, “da exegese à jurisprudência de valores”.

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A essência do direito sempre esteve calcada na justiça e seguran-ça (algo que se aponta como inversamente proporcionais, mas que são, na verdade, concepções complementares). De um lado, temos a justiça formal, onde prepondera a ideia de segurança do direito. De outro, o questionamento, feito pela autora, dessa “modernidade”.

Em Hobbes, Locke, Rousseau, Montesquieu e nos Fouding Fa-thers (Hamilton, Madison e Jay), temos, de forma geral, a manifes-tação no sentido de igualar o Estado à ordem do ordenamento jurídico positivo, onde a segurança se encontra nas leis legitimam-ente criadas pelos representantes do povo e garantidas pelo poder judiciário, que inibem o abuso de poder, mas também garante a igualdade formal entre os homens. Assim, a teoria da separação dos poderes e a igualdade garantida pela aplicação da lei formam a es-trutura formal e os ideais do Estado de Direito.

Dando um salto quântico, na pós-modernidade esse valor seguran-ça abre espaço para o valor justiça, garantido, agora, pela razoabilidade das decisões de cada caso concreto. Nas palavras de Margarida Cama-rgo (2003, p. 64/65): “é quando as relações intersubjetivas e dialéticas, capazes de viabilizar o consenso e a legitimidade das decisões jurídicas, fazem com que se recupere a antiga retórica clássica e lhe confira obje-tos novos” (lógica do razoável e nova hermenêutica). Mas isso se deveu a uma grande discussão ao longo do tempo, que passaremos a abordar.

A Escola da Exegese surge com o objetivo de interpretar os grandes códigos, como o de Napoleão. Na verdade, impunham uma atividade restrita do poder judiciário nessa tarefa interpretativa, pois propugnava a observância severa e restrita aos termos da lei, à gra-maticalidade. O juiz seria, assim, mero aplicador do texto legal, neu-tro e objetivo. É a época do dogma da razão, que vai de 1804 a 1880, quando do declínio, ou seja, da onipotência do legislador.

Mas muitas vezes os juízes se defrontavam com casos de lacunas, e por isso François Gény faz sua crítica ao defender a “livre investi-gação científica”, onde o juiz, naqueles casos, deve fazer uma análise sobre os fatos sociais. Livre porque não está adstrita a uma autori-dade positiva; científica porque encontra suas bases nos elementos sólidos e objetivos da ciência. Assim, permite-se uma procura do di-reito fora do texto legal. Esse foi o cientificismo de base sociológica.

Em contraposição à filosofia das luzes, surge, na Alemanha, a Escola Histórica do Direito, que propugna por manifestações es-

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pontâneas e concretizadoras sobre a realidade, deixando de lado as deduções abstratas. O direito natural passa a ser visto como aquele direito naturalmente produzido pela sociedade, espontâneo de cada povo através da história, costumes38.

Os pandectistas procuravam, por meio do usus modernus pan-dectarum, fazer a ligação entre a lei romana e os costumes locais de origem germânica, buscando naquela as instituições jurídicas ainda existentes. Isso levou a uma assistematicidade no estudo do vetor jurídico, o que gerou discussões acerca de uma codificação à moda francesa. Thibaut era a favor e Savigny, contra.

Thibout entendia que um código ordenaria todo o direito, de forma sistemática e positiva. Já Savigny propunha que o direito deveria ser condensado por meio de uma ciência orgânica e pro-gressiva, sendo uma imposição da razão a codificação, estranha aos costumes, beirando o despotismo.

Nas palavras da autora, “o ordenamento jurídico é, para Sav-igny, o ‘direito vivo’, que o legislador pode exprimir ou integrar, mas não criar arbitrariamente” (CAMARGO, 2003, p. 76). Dessa for-ma, o legislativo teria a função de engendrar os costumes, o que já revela o viés científico-histórico que Savigny vê no direito (ciência jurídica). Por isso lança a ideia de Volksgeist, ou “convicção jurídica do povo” unificadora, sendo o direito não mais como um simples produto exclusivo da razão.

De efeito reflexo, tal concepção de Savigny não chega a criar um direito espontâneo, mas sim algo que a doutrina científica elabora, revelando-se o pensamento conceitual lógico-abstrato, como um novo racionalismo jurídico. Daí se extrai o método de interpretação histórico-evolutivo, onde se pretendia atualizar a “vontade do legis-lador” mediante a aplicação de outras técnicas, apontadas por Savi-gny, quais sejam, gramatical, lógica, histórica e sistemática: “Con es-tos cuatro elementos se agota la comprensión del contenido de la ley” (SAVIGNY, 1949, apud CAMARGO, 2003, p. 81).

Tércio Sampaio resume que, a princípio, para Savigny, interpretar significa compreender o pensamento do legislador expresso no tex-to da lei. Porém, pondera que ele enfatizava a existência fundamen-tal dos “institutos jurídicos” (Rechtsinstitute), que seria um conjunto

38 O início do capítulo 1 tratou desse tema, chamando tal concepção de Justiça Social.

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orgânico vivo em constante movimento – “daí a idéia de que seria a convicção comum do povo (Volksgeist) o elemento primordial para a interpretação das normas” (CAMARGO, 2003, p. 83).

Dessa Escola Histórica, houve a propagação do formalismo ju-rídico na Alemanha, tanto pela cientificidade trazida, tanto pelo pen-samento de conceitos (Jurisprudência dos conceitos), que acaba por fazer do direito uma totalidade fechada em si mesma, com o máximo de objetividade possível. Esse mesmo alto grau de racionalidade foi que deu origem ao “dogma da subsunção” (o direito como um des-dobramento lógico-dedutivo), que influenciaria, mais tarde, a base dogmática do positivismo jurídico.

Tal filosofia positivista tem por objeto o estudo das relações constantes dos fatos sociais, através de investigações empíricas. Conectam-se, assim, os fatos sociais ao direito, a fim de que a legis-lação corresponda àqueles. Mas o positivismo que ora se comenta firmou-se além da tendência sociológica de Augusto Comte, fincan-do bases no formalismo, “uma vez que para uma teoria objetiva do direito importava mais o conjunto das normas postas pelo Estado, [...] do que a realidade social propriamente dita” (CAMARGO, 2003, p. 88/89). Assim, o direito positivo é aquele que interessa ao jurista, pois o único existente em determinado ordenamento jurídico.

Porém, quanto a esse modelo, houve críticas. Ihering critica esse método lógico-dedutivo e o formalismo jurídico, pelo seu alto grau de abstração. Para ele, o direito seria uma vivência (A Luta pelo Di-reito), “[...] uma luta, ou um verdadeiro esforço animado pelo espírito prático que subjaz à sua própria realização” (CAMARGO, 2003, p. 91). Nesse sentido, é o sentimento de justiça que põe o direito em con-stante movimento dinâmico; é a luta concreta, para qual se interessa não tanto o direito objetivo, mas, sim, o subjetivo.39

Tal autor liga a noção de fim à ideia de direito como práxis, já que quem age, age em virtude de um fim, que é a vontade que se pretende realizar. Então, o jurista, para compreender o direito, deve observar as vontades que determinam o fim, e não conceitos lógicos-

39 Conclui Rudolf Von Ihering (2009, p. 94), fazendo menção ao pensador alemão Goe-the: “Sem luta não há direito, da mesma forma que sem trabalho não há propriedade. [...] No momento em que o direito renuncia à luta, ele renuncia a si mesmo. Também ao direito aplicam-se estas palavras do poeta: É esta a palavra final do sábio: A vida e a liberdade, só a merece Aquele que sem cessar tem de conquistá-la.”

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dedutivos. Abre-se caminho, portanto, para a Jurisprudência dos In-teresses e, bem depois, para a Jurisprudência de Valores.

A Jurisprudência de Interesses contrapõe-se à Jurisprudência de Conceitos, já que aquela visa o estudo pragmático em detrimento à lógica formal. Nesse ponto, Heck sintetiza a ideia de direito como prática, analisando a função do jurídico em razão da ideia de fim, como interesse. Necessidade e interesse compõem as partes em con-flito, e por isso mesmo deve o juiz decidir pautado por esses interess-es em questão. Ou seja, a atividade do juiz, para Heck, é criadora, já que procura conjugar os interesses indicados na lei, pelo legislador, com o interesse do caso concreto, seja geral (lei) ou individual (sen-tença), contribuindo para isso a sua própria experiência de vida e seu sentimento de justiça (não arbitrário, mas segundo uma perspectiva histórico-objetiva do comando contido na vontade normativa). No-ta-se que todo esse processo se passa por uma valoração, que dará ensejo à futura jurisprudência de valores.

Ainda quanto à crítica à insuficiência do formalismo, surge, no-vamente na Alemanha, o Movimento para o Direito Livre, pelo qual Ehrlich propõe uma atitude de livre busca do direito ao invés do mecanicismo da aplicação da vontade do legislados instada na lei. “Defende-se a idéia de que o juiz, ao decidir, considere os fatos so-ciais que deram origem e condicionam o litígio, a ordem interna das associações humanas, assim como os valores que orientam a moral e os costumes” (CAMARGO, 2003, p. 98). Para Kantorowicz, é aquele direito havido espontaneamente dos grupos e movimentos sociais, a que ele chama de direito natural, em mais uma de suas concep-ções. Ao lado do direito estatal estaria o direito livre, produzido pelos membros da sociedade, pelas sentenças e pela ciência jurídica. Daí desenvolve-se a própria Sociologia do Direito, já que aproxima o di-reito estanque da sociedade em movimento.

Com Hans Kelsen, voltamos ao formalismo, mas agora em forma de uma verdadeira ciência jurídica. Kelsen isola da abordagem jurídi-ca qualquer questão referente à moral ou justiça, sendo esses pontos afeitos à Política, Sociologia e Filosofia do Direito. A Teoria Pura do Direito, como já visto, é uma construção lógico-estrutural do ordena-mento jurídico, concebendo-se este como uma pirâmide supra-infra escalonada, onde as normas de grau inferior encontram sua validade nas disposições das superiores, sendo a Constituição o ápice de fun-

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damento de validade, o que permite, aliás, que seja vislumbrado um controle de constitucionalidade das leis – já se percebe que respira-mos Kelsen nos dias atuais.

A dignidade científica do direito é alcançada, embora à custa de uma purificação do direito. Quanto a isso, Kelsen distingue ser de dever ser, sendo este derivado da ideia de imputação normativa (a norma é um dever-ser40, comando este acompanhado de sanção). Para ele, ademais, ato jurídico serão sempre aqueles atos que recebem um sig-nificado jurídico-objetivo. Percebe-se, assim, que o objeto de estudo da teoria kelsiana é a norma, como esquema básico de interpretação.

Para validar toda a sua construção lógica-científica, Kelsen abstrai uma norma hipotética-lógica, que é a norma fundamental (Grund-norm). Assim, toda ordem de conduta segue um sistema de normas criadas por autoridades competentes, ao passo que estas encontram sua validade e unidade na norma fundamental hipotético-lógica: é a pirâmide normativa como ordem dinâmica, onde o ordenamento jurídico basta a si mesmo, conforme analisado mais detidamente no capítulo 3, subcapítulo 3.1 posterior.

Consoante bem aponta a autora, “a idéia de valor no direito, para Kelsen, é objetiva e tem como parâmetro o grau de eficácia e de vali-dade da lei” (CAMARGO, 2003, p. 110, grifo nosso e da autora). Assim, somente a conduta que corresponda à norma terá valor positivo, à medida que a conduta que lhe seja contrária tem valor negativo. Por esses motivos expostos, cabe à ciência jurídica descrever as pre-scrições/comando contidos na norma jurídica, cabendo à doutrina o papel restrito de traduzir o significado da norma jurídica: a norma prescreve e a doutrina descreve.

Enfim, conforme mesmo afirma Kelsen, citado por Margarida Camargo (2003, p. 113), “a interpretação jurídico-científica [que pode ser autêntica, relacionada à esfera pública, que cria direito e vincula a ação, ou não autêntica, na esfera privada, onde o indivíduo é compe-lido a observar certa conduta, sob pena de sanção, e que não possui nenhuma validade especial] não pode fazer outra coisa senão esta-

40 É de se fazer referência, quanto ao dever-ser, à fenomenologia de Husserl, teoria segunda a qual o mundo do espírito é dominado pela motivação e compreensão. Es-pecificamente no Direito como pensamento, há um objeto intencional, o chamado dever-ser. É assim que nos apresenta à consciência quando pensamos na ideia de Di-reito, ou seja, como algo que deve ser.

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belecer as possíveis significações de uma norma jurídica”, bastando a subsunção do fato à norma válida para que se extraia a sentença. Nesse ponto, interessante notar que a norma de escalão superior, segundo aduz Kelsen, deve ter sempre o caráter de um quadro ou moldura.

Nesta moldura, que corresponde ao texto normativo, várias pos-sibilidades de sentido podem ser destacadas. Mas os motivos da es-colha dentro das possibilidades fornecidas pela moldura normativa não fazem parte da teoria do direito, sendo um problema de Política do Direito. Magistralmente conclui Margarida Camargo (2003, p. 115): “interpretar, para Kelsen, é estabelecer a moldura que encampa as várias possibilidades de significação da lei”, para, ao final, a sen-tença judicial se conter nessa moldura.

Segundo Casamiglia, há que se fazer uma crítica ao positivismo (jurídico) na medida em que elimina do âmbito do conhecimento todo o viver social ou tudo o mais que fuja às relações objetivas de causa/efeito (não aquele das ciências naturais, mas referente ao lógico-científico). Conclui: “las tesis positivistas son reduccionistas porque niegan racionalidad a aquellos saberes que no concuerdan con su idea de Ciencia” (CASAMIGLIA, 1982, apud CAMARGO, 2003, p. 117). Os valores voltam a ter importância a partir da “Jurisprudência da Valoração” ou “Jurisprudência dos Valores”.

Com a renegação do pragmatismo no final do séc. XIX e início do séc. XX, vem a tona a ideia de valor, trabalhada pela Jurisprudência dos Valores a partir das dicotomias valor/realidade, ser/dever ser e natureza/cultura. Tal concepção faz com que o direito seja reconhe-cido como parte de uma referência cultural, em que a cultura for-nece a pauta de valores aceitos em determinada comunidade. Nesse passo, com Stammler e Larenz, tem-se que as ciências finais (que cor-responde às relações entre meio e fim denotadas pela vontade), da qual faz parte a cultura, em contraposição às ciências naturais, pos-suem objetos que somente podem ser compreendidos: “os objetos culturais, tal como as ações humanas, são dotados de significação porque relacionado a valores. Logo, a hermenêutica também deverá orientar-se em função dos valores, como instância de compreensão” (CAMARGO, 2003, p. 121).

Radbruch (1979, apud CAMARGO, 2003, p. 123) traz importante observação ao afirmar que, sendo o direito dado da experiência, só pode ser compreendido por meio de sua ideia, que corresponde

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à justiça: “o valor do direito é a justiça”, e a luta por ele somente é legítima se tiver por finalidade defender um direito justo; e nessa con-cepção valorativa do direito, afirma Larenz (1983, apud CAMARGO, 2003, p. 125), exige-se da solução jurídica legítima uma razoabilidade de fundamento. Privilegia-se, a partir daí, uma fundamentação legiti-madora da ação prática, de base argumentativa, objeto dos demais capítulos do trabalho de Margarida Maria Lacombe Camargo.

Ao fim do segundo capítulo de sua obra, a autora propõe uma abordagem acerca da “vontade objetiva da lei” e da “vontade subjetiva do legislador”. Pode-se resumir da seguinte forma: o que se apresenta como correto à atividade do intérprete ou do aplicador da lei? A vontade da lei (interpretação ex nunc) ou a do legislador (interpretação ex tunc)?

Inicialmente, encampado pela Escola da Exegese, entendia-se a her-menêutica jurídica pela transposição da vontade legítima do legislador, do momento (anterior) de criação da lei, para o momento (posterior) de sua aplicação, como via a se evitar o arbítrio. Tendo em vista a necessi-dade suprema de se atualizar o direito, passou-se a dar razão ao pen-samento jurídico objetivo próprio do instituto jurídico, com Savigny.

Assim, a vontade objetiva da lei (rectius: da Constituição) (que faz preponderar o poder judiciário) acabou por prevalecer sobre a vontade subjetiva do legislador (que faz preponderar o poder legislativo), e é o que temos nos dias atuais, em que se leva em consideração a adap-tação das leis antigas às leis novas, em vista da unidade do ordena-mento jurídico, dando ênfase aos elementos teleológico e axiológico da ordem jurídica41 – embora Tércio Sampaio Ferraz Jr. entenda que “cabe ao aplicador da lei utilizar-se de um ou de outro método, con-forme a necessidade de seu trabalho” e a própria Margarida Camargo afirme que qualquer das proposições “é válida à medida que se apre-sente como argumentativamente apta a produzir um resultado de consenso”, encontrando-se a solução mais adequada e razoável para cada caso (CAMARGO, 2003, p. 129/134, grifo nosso). Importante no-tar, como o faz Robert Alexy (2005, apud CARSOSO, 2009), que quem procura argumentar em sentido contrário à literalidade da lei ou à von-

41 Instigantes os dizeres de Umberto Eco (1993, apud COELHO, 2002, p. 92), colaciona-dos por Inocêncio Mártires Coelho (2002): “entre a intenção do autor e o propósito do intérprete, existe a intenção do texto”, pelo que, sem dúvidas, esse “texto” deve estar in-serido num “contexto”. Essa frase tem o condão de traçar, para o intérprete, o parâmet-ro objetivo de sua análise, sem que ele mergulhe “num pântano de relatividade”.

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tade do legislador arca com uma carga de prova maior, já que deve apresentar boas razões a fim de fazer prevalecer as suas afirmações.

Não fica difícil perceber o contexto no qual o Poder Judiciário passa a ter papel fundamental na tarefa de aplicar o Direito concretamente, sem estar submetido a uma pretensa vontade subjetiva do legislador, mas sim à objetiva da lei, com a flexibilidade e a liberdade de interp-retar a norma, conforme resulta a experiência jurisprudencial, apoiada assaz na doutrina. As teorias positivistas do direito e seus conceitos de validade, legalidade e aplicação silogística das regras legais não mais se coadunam com a vivência de uma sociedade de risco surgida com a crise de paradigmas sociológicos, políticos e jurídicos da Segunda Modernidade42, fato esse que urge maiores garantias dos indivíduos e da sociedade, a serem alcançadas pelas decisões judiciais.43

Com base nisso, o professor Doutor da Universidade Federal de Sergipe – UFS, Henrique Ribeiro Cardoso, no livro Proporcion-alidade e Argumentação: A Teoria de Robert Alexy e seus pressupos-tos filosóficos (2009), vale-se da Teoria Discursiva do Direito como a melhor proposta para garantir a legalidade, legitimidade, eficiência e controle do direito, modelo o qual utilizaremos também aqui. E é justamente calcado nessa Teoria que podem ser concebidos os mecanismos de controle das decisões judiciais concretas, ponto esse importante para o assentamento do novo papel assumido pelo Poder Judiciário, em especial, o Supremo Tribunal Federal, na busca de um novo paradigma dos efeitos de suas decisões.

Levando em consideração os atos de fala que realizam uma ação social (falar é fazer), a Teoria do Agir Comunicativo, ponto de partida para a construção da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia

42 Essa é a fase que Habermas denomina de sociedade pós-tradicional, onde “[...] os dogmas não mais se sustentam sozinho, tampouco as instituições tradicionais repre-sentam membros que agiam em confiança cega”. (CARDOSO, 2009)43 Com base nisso, o professor Doutor da Universidade Federal de Sergipe – UFS, Hen-rique Ribeiro Cardoso, no livro Proporcionalidade e Argumentação: A Teoria de Robert Alexy e seus pressupostos filosóficos (2009), vale-se da Teoria Discursiva do Direito como a melhor proposta para garantir a legalidade, legitimidade, eficiência e controle do direito, modelo o qual utilizaremos também aqui. E é justamente calcado nessa Teoria que podem ser concebidos os mecanismos de controle das decisões judiciais concre-tas, ponto esse importante para o assentamento do novo papel assumido pelo Poder Judiciário, em especial, o Supremo Tribunal Federal, na busca de um novo paradigma dos efeitos de suas decisões.

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Deliberativa, perfeitamente aplicável ao Direito, tem como objetivo a propositura de modelos de fala que correspondam a resultados mais justos e ao bem comum de todos participantes desse processo de fala, tudo pautado pelo critério da correção normativa. Para tanto, Haber-mas (2003, apud CARDOSO, 2009) propõe uma coordenação do pro-cesso de comunicação (atos ilocucionários orientados ao acordo num agir comunicativo forte)44, identificando a correlação entre a racionali-dade com a linguagem, num fenômeno denominado de “linguistischen wende” (“guinada linguística”), que será a base para uma racionalidade do discurso, analisada pragmaticamente, com vista à sua legitimação e identificação no princípio democrático (democracia deliberativa).

Diga-se que é com âncora no agir comunicativo, direcionado à consecução do bem comum, que se pode defender a tese aqui en-campada, em busca de dar legitimidade às concepções trazidas pe-los Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau em sede de controle difuso de constitucionalidade.

O contraposto a esse agir comunicativo é o agir estratégico, este orientado para satisfazer exclusivos interesses egoísticos, que nem assegura legitimidade nem democracia. Além disso, o agir comuni-cativo pode ser forte ou fraco. O primeiro é orientado ao acordo (as partes envolvidas em um discurso aceitam a pretensão de validade pelas mesmas razões) e o segundo ao entendimento mútuo, que é um acordo alcançado de forma limitada (as partes envolvidas em um discurso concordam com certa medida, mas por fundamentos diferentes). Na verdade, o que diferencia um do outro é o grau de liberdade (maior no agir comunicativo forte e menor no fraco) “[...] de se afastar de si mesmo, de suas preferências, a adotar a solução mais verdadeira, sincera e correta – enfim, a mais justa” (CARDOSO, 2009).

44 Para o correto entendimento dessa afirmação, temos que observar o dualismo oposto por Austin. De um lado, há os atos de fala ilocucionários, que são proposições performativas (que significam fazer algo ao invés de descrever e têm como condições necessárias as palavras apropriadas à circunstância para se chegar a uma compreen-são, além da sinceridade, isto é, intenção não posta em dúvida), com força argumen-tativa, racionalmente motivadora, estando sujeitos tais atos à análise de sucesso ou fracasso. Já os atos locucionários tornam possível o emprego cognitivo da linguagem, sendo proposição assertórica, em busca de significado das coisas, sujeito à análise de ser verdadeiro ou falso. Há, ainda, referência a um terceiro ato, que é o perlocucionário, orientado às consequências, ou seja, ao entendimento mútuo indireto. (HABERMAS, 2002, apud CARDOSO, 2009)

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Denota-se que a Teoria do Agir Comunicativo, como uso comuni-cativo e racional da linguagem, é uma teoria pragmática, preocupada não com a “verdade”, mas, sim, com a validade no sentido de aceita-bilidade racional, derivada dos atos de fala, num enfoque performa-tivo, que exige que os atos orientem-se por pretensões de validez criticáveis, levantadas alternadamente pelos atores de um discurso. Utiliza-se, assim, de uma racionalidade que visa ao entendimento, compreensão e consenso, obtidos de forma comunicativa.

Essa comunicação, para ser forte, deve seguir os seguintes parâmet-ros: fatos verdadeiros (aspecto externo), ou seja, de forma a representar o estado das coisas; intenções sinceras (aspecto interno), ao exprimir in-tenções e vivências do falante; e valorativamente aceito como correto45 (aspecto social), entabulando relações com os destinatários.

A partir das acepções de Habermas, estudadas pelo professor Henrique Ribeiro Cardoso, pode-se observar uma correlação respec-tiva entre as racionalidades discursivas (epistêmica, teleológica e co-municativa), ou seja, o expressar-se racionalmente por pretensões de validade, as teorias do significado (semânticas formal ou da verdade, intencionalista e significado como uso) e a autorrelação refletida da pessoa com o que ela pensa (sabe), faz (direcionado a um fim) e diz (comunicação): a) a racionalidade epistêmica, como conhecimento de fatos e um saber sobre os mesmos, alcança-se após a compreensão correta do significado das expressões linguísticas, ou seja, do conhec-imento da dimensão lógico-semântica da linguagem, corresponden-do às ações de fala do mundo objetivo; b) a racionalidade teleológica, calcada no agir da intenção do ator discursivo, direcionado a um fim, resultado, está para o enfoque da percepção de a linguagem repre-sentar algo, em que cada indivíduo exerce uma atividade teleológica, isto é, visando a um fim, o que corresponde às ações de fala do mun-do subjetivo; c) a racionalidade comunicativa, exprimida como forma de fala orientada ao consenso ou ao entendimento mútuo, liga-se à teoria do significado do vocábulo como uso na linguagem à me-dida que ambas observam na prática comunicativa interativa uma

45 Isso faz lembrar a ideia de auditório universal de Perelman, mediante a qual uma pes-soa baseia-se por argumentos racionais e com pretensões reais de validade quando possa prestar contas de sua orientação num fórum de um discurso, aos outros atores, ou seja, a capacidade de persuasão do auditório formado pelo universo dos atores de um discurso.

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forma de vida46 compartilhada intersubjetivamente, que, partindo de alguns consensos preliminares (pré-compreensão das instituições e costume), pode-se chegar a uma nova constituição da linguagem ou a um novo consenso. Essa terceira abordagem corresponde às ações de fala do mundo social.

Toda essa correlação é dinâmica, pois “o uso de comunicações lingüísticas serve para exprimir as intenções do falante, para rep-resentar estado de coisas e estabelecer relações interpessoais: ‘En-tender-se / com alguém / a respeito de algo’ ” (CARDOSO, 2009, grifo nosso e do autor). Já foi dito que a comunicação, para ser forte, deve-se pautar pela verdade, sinceridade e correção normativa. Sendo assim, considera-se inválido o ato que traga proposições assertóricas inverídicas, manifeste intenções e enunciados viven-ciais insinceros ou mesmo seja incorreto o contexto normativo de ações de fala regulativas.

Habermas, com a Ética do Discurso – teoria da especial argumen-tação –, propõe um programa de fundamentação – correspondente a uma moral racional – de um modelo procedimental aproximativo que dê sustentação à coordenação da ação comunicativa no sentido forte na resolução de questões práticas, concretas, em que se faz necessária uma tomada de posição. Apresenta, para tanto, o Princípio do Discurso, pelo qual “só podem reclamar validez as normas que en-contrem (ou possam encontrar) o assentamento de todos os concer-nidos enquanto participantes de um Discurso prático” (HABERMAS, 2003, apud CARDOSO, 2009). Aduz Henrique Ribeiro Cardoso (2009):

[...] a Ética do Discurso adota uma abordagem cogni-tivista da ética, ao afirmar que questões práticas são passíveis de verdade, buscando identificar “em que sentido e de que maneira podem ser fundamenta-dos os mandamentos e normas morais”. [...] A Ética do Discurso, cognitivista e dialógica, estará assim, calcada no Princípio da Universalização e na correção normativa das proposições de conteúdo normativo, sedimentadas na Teoria do Agir Comunicativo – agir comunicativo forte, orientado ao acordo [...].

46 No sentido de uma série de “práticas comuns da vida diária”. (ALEXY, 2005, apud CAR-DOSO, 2009)

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Não sendo intento deste trabalho o aprofundamento do tema, reservemo-nos a apontar que o Princípio da Universalização comen-tado, ao expressar “o caráter impessoal ou universal dos mandamen-tos morais válidos”, exclui do discurso, por invalidade, “as normas que não possam encontrar o assentimento qualificado de todos os con-cernidos possíveis” (HABERMAS, 2003, apud CARDOSO, 2009), levan-do-se em consideração, ainda, que “o que deve poder ser universali-zado são as maneiras de agir e ‘os interesses que elas levam em conta’ e que tomam corpo nas normas de ação” (CARDOSO, 2009). Quanto à correção normativa, ela surge a partir do “abandono da premissa de que as proposições normativas somente poderiam ser válidas ou não-válidas no sentido de uma verdade proposicional. [...] ‘a correção das ações significa o preenchimento de normas’ ” (CARDOSO, 2009). Teremos uma pretensão de correção normativa sempre que conferir-mos ao argumento uma pretensão de validade (de verdade).

Margarida Maria Lacombe Camargo (2003), como exposto, ad-ota a teoria da argumentação da hermenêutica jurídica, que leva em conta o estudo tópico-retórico-dialético, num processo de com-preensão e concretização da norma. É justamente nesse ponto que identificamos os pressupostos argumentativos (regras de argumen-tação), observados por Habermas (2003, apud CARDOSO, 2009), em correlação com a análise tópica, retórica e dialética, respectivamente: pressupostos no plano lógico-semântico (significado da linguagem), pressupostos no plano dialético dos procedimentos (agir orientado para o entendimento mútuo em geral) e pressupostos no plano retórico dos processos (discurso argumentativo).

Habermas, ademais, faz uma relação da Ética do Discurso com a Teoria dos Estágios Morais de Lawrence Kohlberg. Na formação da moral e do direito, segundo Kohlberg (1981, apud CARSOSO, 2009), passamos por três níveis: o pré-convencional, em que o direito consiste na obediência literal às regras, tendo um viés individu-alista, de satisfação de interesses próprios; o convencional, onde surgem as expectativas interpessoais mútuas, dos relacionamen-tos e da conformidade, identificando-se também a necessidade de preservação do sistema, das instituições sociais e da consciência; e o pós-convencional, ou o baseado em princípios, pelo qual, num estágio, a norma deve ser mantida quando legitimada pelo contrato social, sendo, porém, legítimo modificá-las quando não mais aten-

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dam ao bem comum ou aos direitos e valores básicos constituídos em uma sociedade. Quanto a esse último nível, há que se fazer referência aos “princípios éticos universais”, que são princípios universais de justiça, como a igualdade dos direitos humanos e o re-speito à dignidade humana. “A razão para fazer o que é direito é a percepção, por parte da pessoa racional, da ‘validade dos princípios’, e seu comprometimento com estes” (CARSOSO, 2009).

Em se tratando, especificamente, de discursos jurídicos, questio-na-se acerca da existência de uma única resposta correta na solução de questões jurídicas controversas e difíceis (hard cases)47. Para Habermas (2003, apud CARSOSO, 2009), o resultado normativo racional válido a que se chegará é binário: ou a proposta é correta normativamente ou é incorreta normativamente. Nos discursos de aplicação (Anwendugs-diskurs), próprios do Poder Judiciário e da Administração, têm-se nor-mas adequadas/não-adequadas (com base na pretensão de validade de um juízo); nos discursos de fundamentação/justificação, como ocorre nos processos de legislação, mais de uma solução se assegura possív-el, sendo, através da ampla discricionariedade do Legislador, julgada cada proposta como correta/incorreta.

Alexy (2005, apud CARSOSO, 2009, grifo nosso), por sua vez, ig-nora a existência de uma única resposta como correta, pois “as regras do discurso não permitem encontrar sempre um resultado correto. Com frequência resta uma considerável margem do discursivamente possível”.48 Ademais, ele critica a distinção feita por Klaus Günther en-tre “discursos de fundamentação e discursos de aplicação”, já que a distinção entre aplicação e justificação não significa que irão existir dois tipos de discursos essencialmente diferentes. Dessa forma, afir-ma, buscando uma espécie de discurso com validade universalizante para as diversas situações aplicativas (“normas universais”): “the appli-

47 Citem-se os debates de Habermas, Dworkin, Alexy e Günther.48 “[...] a existência da única solução correta é mais um objetivo a ser perseguido do que um resultado final obrigatório do processo argumentativo. Esclarece Alexy: ‘O conceito de correção não pressupõe que exista para cada questão prática uma res-posta correta que deve ser descoberta. Uma única resposta correta é a finalidade a que se deve aspirar. Os participantes em um discurso prático, independentemente de haver uma única resposta correta, devem formular a pretensão de que sua resposta é a única resposta correta. Caso contrário seriam sem sentido suas afirmações e funda-mentações’ ” (CARSOSO, 2009).

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cation of norms, too, can be considered a justification of norm; in its logi-cal form it only differs from is generally called ‘justification of norms’ in-sofar as its object of is not an universal but an individual norm”49 (ALEXY, 1993, apud STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007).

Esse é um dos pressupostos do estudo aqui perpetrado, ou seja, é discursivamente possível que se defenda, racionalmente e com preten-sões universais de validade, através da Teoria da Mutação Constitucional, a nova perspectiva do Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso, que, indubitavelmente, se configura como um hard case.

Cabe mencionar ainda a Teoria Discursiva do Direito, derivada das contribuições de Habermas e Alexy (este apresentando, em sua Teoria da Argumentação Jurídica, a Tese do Caso Especial). Essa teoria, basicamente, se preocupa com as decisões judiciais dos casos con-cretos e com os poderes do juiz constitucional50. Tal abordagem é es-pecialmente importante numa concepção pós-positivista do direito, que contempla uma “relación con el sistema social y con los diversos aspectos del sistema social: morales, políticos, económicos, culturales” (ATIENZA, 2005, apud CARSOSO, 2009).

Para Alexy (2005, apud CARSOSO, 2009), o discurso jurídico é um caso especial de discurso prático geral, pautado, portanto, pela correção dos enunciados normativos51, sendo apontados, de forma resumida, quatro aspectos: a necessidade do discurso jurídico em virtude da na-tureza (não-vinculante) do discurso prático geral; a coincidência parcial com a pretensão de correção; a coincidência estrutural das regras e for-mas de ambos os discursos; e a necessidade da argumentação prática geral no âmbito da argumentação jurídica. Porém, no caso do discurso jurídico, a liberdade dos argumentos é limitada externamente pelo or-

49 “A aplicação da norma, também, pode ser considerada uma justificação da norma; em sua forma lógica somente difere daquilo em que é geralmente chamado de ‘justi-ficação de normas’ na medida em que o seu objeto não é uma norma universal senão individual” [tradução nossa].50 Especificamente acerca da aplicação da Teoria Discursiva do Direito em sede constitu-cional, abordando questões sobre as decisões no âmbito da jurisdição constitucional e a relação entre o legislador e o juiz constitucional, cf. ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.51 Conforme aponta Henrique Cardoso (2009, grifo nosso), “a noção de correção, no atual estágio da Modernidade Reflexiva, substitui a de segurança jurídica pautada na legalidade estrita e no formalismo jurídico, buscada – mas não alcançada – na Primeira modernidade”.

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denamento jurídico (leis, ciência do direito, precedentes jurisprudenci-ais, além da racionalidade do processo de argumentação, da argumen-tação empírica e das formas especiais de argumentos jurídicos). É dizer, com isso, que ocorrerão afirmações jurídicas e decisões judiciais coer-entes com a ordem jurídica vigente à medida que se possa fundamentar racionalmente com base na lei, no precedente e na dogmática.

A teoria do discurso, num contexto da teoria do Estado e do Di-reito, passa por quatro fases: o reconhecimento do caráter aberto do resultado advindo do discurso prático real; a institucionalização de um procedimento para a produção de normas jurídicas (procedimento legislativo); a necessidade do discurso jurídico (Tese do Caso Especial) para que se busquem resultados corretos na aplicação do direito, ten-do em vista a impossibilidade de a legislação determinar sempre uma solução para um caso posto; e, por último, a necessidade de institu-cionalização da forma mais racional possível do processo judicial.

Alexy (2005, apud CARSOSO, 2009), analisando especificamente o sistema jurídico pautado pela racionalidade discursiva, apresenta formas de discursos que constituem critérios de correção para as decisões jurídicas. A Tese do Caso Especial situa-se no campo da justificação externa de uma decisão jurídica, significando isso que, ao contrário da justificação interna – que visa a que a decisão siga logicamente as premissas (silogismo jurídico) –, a justificação externa tem como objeto a correção dessas premissas que se mostram como fundamentação: “[...] na justificação externa se trata de buscar uma fundamentação para as fontes – elementos, regras e formas – que serão utilizadas na argumentação como premissas da justificação in-terna – do silogismo lógico da decisão” (CARDOSO, 2009).

Distinguem-se três grupos de premissas que se relacionam de maneira variada na fundamentação de discursos jurídicos: regras de direito positivo, enunciados empíricos e premissas que não são enunciados empíricos nem regras de direito positivo. O primeiro grupo refere-se à validade do ordenamento jurídico, perquirindo-se acerca da validade, da vigência, da eficácia e da efetividade da lei, analisando-se, assim, a sua legalidade e constitucionalidade. O segundo grupo utiliza métodos de diversas áreas das ciências empíricas, numa cooperação interdisciplinar, além das máximas da presunção racional e das regras e concepções jurídicas, a exem-plo daquela concernente ao ônus da prova no processo. Por fim,

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ao terceiro grupo de premissas aplica-se a argumentação jurídica, que é justamente o objeto da tese de Alexy: a fundamentação das premissas postas em decisões judiciais (justificação externa), quan-do não seja possível se estabelecer dessas premissas questões de validade de normas de direito positivo ou enunciados empíricos, não havendo, portanto, que se falar, nesse caso, em investigação de compatibilidade lógica entre as premissas e a conclusão que for-mam a decisão. Ao enfocar a fundamentação da decisão judicial, ele objetiva, na verdade, lhe conferir legitimidade e controle.

Ademais, reconhecendo que a lei escrita nem sempre cumpre a sua função de resolver um litígio de forma justa, Alexy (2005, apud CARSOSO, 2009) propõe que a decisão judicial assuma esse papel, segundo os critérios de razão prática e concepções gerais de justiça, consolidadas na coletividade, e de forma criativa, inclusive, o que já demonstra uma superação da ideia do magistrado como simples leg-islador negativo (cf. subcapítulo seguinte). Obviamente, nesse pro-cesso criativo, o juiz deve atuar sem arbitrariedade, posto que sua decisão deve ser fundamentada em argumentações racionais.

Igualmente, vislumbrando a possibilidade de existir leis irracionais ou injustas e permissão em certos julgados (hard cases) de se decidir contra disposição de lei, Alexy (2005, apud CARSOSO, 2009) atribui ao discurso jurídico “um papel essencial na decisão da justiça con-stitucional ou na fundamentação de uma decisão contra legem”. Isso porque pode acontecer de o lugar do discurso jurídico na aplicação da lei injusta se restringir tanto até ser nulo, hipótese em que a racion-alidade discursiva aponta o motivo de incorreção e crítica à legislação.

Na Tese do Caso Especial, desenvolvida na Teoria da Argumen-tação Jurídica, Alexy (2005, apud CARSOSO, 2009) agrupa seis espé-cies de regras de justificação externa e formas lógicas de argumentos: a) interpretação das leis, apresentando os seguintes modelos de ar-gumentos, conferindo-se um matiz discursivo à metodologia de Sav-igny52: argumento semântico (interpretação através da linguagem), argumento genético (interpretação em função da vontade do leg-islador), argumento histórico (interpretação histórica, sociológica e econômica), argumento comparativo (interpretações baseada em

52 Como já visto, Savigny apresenta quatro técnicas de interpretação: gramatical, lógi-ca, sistemática e histórica.

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outras sociedades), argumento sistemático (interpretação da norma no contexto legal) e argumento teleológico (interpretação com vista aos fins racionais do ordenamento jurídico)53; b) ciência do direito ou argumentação dogmática54, que leva em consideração a descrição do direito vigente (dimensão empírico-descritiva, que dedica estudo à práxis dos tribunais e à averiguação da vontade do legislador), a sua análise sistemática e conceitual (dimensão analítico-lógica, que ana-lisa os conceitos jurídicos, as regras e os princípios) e a elaboração de propostas para a solução de casos jurídico-problemáticos (dimensão prático-normativa, que trata de propor e fundamentar uma norma ou criticar uma decisão judicial)55; c) uso de precedentes jurispru-denciais, sendo o seu fundamento o princípio da universalidade, que cai na concepção de justiça (formal) de tratar de igual ma-neira o igual, determinando-se e ponderando-se as diferenças56; d) racionalidade do processo de argumentação prática geral; e) ar-gumentação empírica; f ) formas especiais de argumentos jurídicos, como a analogia, o argumentum a contrario, o argumentum a fortiori e o argumentum ad absurdum.

53 De qualquer modo, a carga de prova para quem deseja argumentar em sentido con-trário à literalidade da lei ou à vontade do legislador é sempre maior. Nesse exato sen-tido, afirma Humberto Ávila (2009, p. 119): “as regras têm eficácia de trincheira, pois, embora geralmente superáveis, só o são por razões extraordinárias e mediante um ônus de fundamentação maior”.54 Cujas funções, aplicadas também na argumentação dos precedentes, são seis: de es-tabilização (reprodução de determinadas soluções por muito tempo), de progresso (que depende da atividade do cientista do direito, do aplicador, do legislador e das mudanças das ideias valorativas da sociedade), de descarga (possibilidade de adoção e extensão de enunciados dogmáticos já comprovados e aceitos), técnica (construção de conceitos ge-rais, enunciados e instituições jurídicas que oferecem um panorama das relações por eles tuteladas), de controle (relaciona-se à questão da consistência dos enunciados) e heurís-tica (o sistema dogmático é um ponto de partida para novas observações e relações, que leva sempre em consideração o estado de compreensão alcançado anteriormente).55 Ressalta Henrique Cardoso (2009) que “as boas razões das novas decisões devem ser suficientes para não só justificar a nova solução, mas para justificar o abandono da solução tradicional. ‘Tem vigência, portanto, o princípio da inércia de Perelman. Quem propõe uma nova solução, suporta a carga da argumentação’ ”.56 É comum a referência aos termos distinguishing e overruling quanto ao uso dos prec-edentes em relação a certa decisão. A técnica do distinguishing demonstra que o caso atual se distingue do caso do precedente, não se aplicando, portanto, seu enunciado. Diferentemente, a técnica do overruling consiste na rejeição do precedente por este restar superado.

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A fim de concluir essas considerações sobre a hermenêutica ju-rídica geral, veja-se a linha seguida pela ideia de derrotabilidade (“de-feasibility”), atribuída a Hart em contraposição ao modelo do “all or nothing” (tudo ou nada) de Dworkin, onde diante de conflito entre re-gras, somente uma prevaleceria (este último modelo já vinha sendo, aliás, bastante criticado em razão dos estudos de Alexy, chegando-se a afirmar a possibilidade sim de as regras também serem pondera-das, dado o caso concreto).

Humberto Ávila (2009) sistematiza os requisitos, ao reconhecer que as regras não são facilmente superáveis: a) requisito material ou de conteúdo: “a decisão individualizada, ainda que incompatível com a hipótese da regra geral, não prejudica nem a promoção da finalidade subjacente à regra, nem a segurança jurídica que suporta as regras [...]”; b) requisito procedimental ou de forma: deve haver justificativa condizente onde a justiça individual não afete a justiça geral (“demonstração de incompatibilidade entre a hipótese da regra e sua finalidade subjacente”), fundamentação condizente (“a funda-mentação deve ser escrita, juridicamente fundamentada e logica-mente estruturada”) e comprovação condizente (“a mera alegação não pode ser suficiente para superar uma regra”).

Deve-se, contudo, na linha apontada por Vasconcellos (apud LENZA, 2011, p. 143), dotar a derrotabilidade de coerência do julga-dor ou órgão durante a decisão, pelo que a decisão singular, num fenômeno de universalização, tenha como se tornar paradigmática, referencial e modelo às ulteriores em casos semelhantes.57 Enfim,

57 Pedro Lenza (2011, p. 143/144) ainda destaca decisões judiciais que utilizaram o mecan-ismo da derrotabilidade. Vale conferir: TRF-1, EDAMS 5553 – GO 2001.35.00.005553-9, j. 16/03/2005, 6ª Turma, DJ 18/04/2005; Recurso JEF nº 200535007164388, TJ/GO. Cf. tam-bém BERNARDES, Juliano Taveira. Aborto de feto anencefálico e “derrotabilidade”. Jus Na-vigandi, Teresina, ano 10, n. 617, 17 mar. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/6466>. Acesso em: 29 dez. 2011. Quanto ao caso analisado, pondera este autor: “seria inteiramente legítima a decisão judicial que desqualificasse o caráter criminoso da interrupção da gravidez do feto anencefálico, pois o órgão julgador não estaria a criar di-reito novo, senão a ‘reconhecer’ que essa situação configuraria exceção implicitamente prevista no próprio sistema jurídico” (BERNARDES, 2005). Ainda o referido Recurso JEF nº 200535007164388, TJ/GO, relatado pelo também citado juiz Juliano Taveira Bernardes, trouxe uma interessante distinção entre antinomia em abstrato – onde, classicamente, em caso de conflito hierárquico se resolve pela invalidez, em caso de conflito cronológico, pela não vigência, e em caso de conflito de especialidade, pela ineficácia – e antinomia em concreto, onde, embora a norma seja válida, vigente e eficaz, pode sofrer derrotabilidade.

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essa técnica foca o sentido a ser dado à expressão “a menos que” que pode seguir subjacente às palavras postas em regras e em normas.

Ultrapassado o delineamento da moderna concepção da her-menêutica jurídica, resta especificar o conteúdo da hermenêu-tica constitucional. Para tanto, porém, importante que se parta da seguinte premissa, retirada do pensamento de Konrad Hesse (1991, p. 22, grifo nosso), para quem a força normativa da Constituição re-alça a chamada vontade de Constituição (Wille zur Verfassung) em con-traposição à vontade de poder (Wille zur Macht):

Como anotado por Walter Burckhardt, aquilo que é identificado como vontade da Constituição “deve ser honestamente preservado, mesmo que, para isso, tenhamos de renunciar a alguns benefí-cios, ou até a algumas vontades justas. Quem se mostra disposto a sacrificar um interesse em fa-vor da preservação de um princípio constitucion-al, fortalece o respeito à Constituição e garante um bem da vida indispensável à essência do Es-tado, mormente ao Estado democrático”. Aquele, que, ao contrário, não se dispõe a esse sacrifício, “malbarata, pouco a pouco, um capital que significa muito mais do que todas as vantagens angariadas, e que, desperdiçado, não mais será recuperado”.

A Constituição deve ser compreendida de maneira tal que pre-serve a sua unidade. Daí o relevo maior dado à técnica sistemática,

porquanto é indubitável que uma Constituição não constitui um conglomerado aleatório de artigos, in-cisos, alíneas e parágrafos, desconectados entre si. Ao invés, apresenta-se de modo coordenado, em feixes orgânicos, procurando formar unidade de sentido. Os seus elementos mantêm um vínculo de inter-relação e interdependência, no qual tudo o mais se coloca sub especie do mesmo conjunto. (BULOS, 1997, p. 35, apud MACHADO, 2005, p. 61)

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Em face de sua natureza peculiar, a interpretação constitu-cional deve ser guiada por métodos e princípios específicos58. Antes mesmo de vê-los, necessário saber quem interpreta a Constituição. Para tanto, Celso Ribeiro Bastos (1999, p. 65/78) aponta o rol exemplificativo59 de cinco fontes interpretativas dos mandamentos constitucionais, havendo, por isso, uma plu-ralidade de intérpretes: a) interpretação político-legislativa (leg-islador constitucional e legislador ordinário); b) interpretação jurisdicional ( juízes e Tribunais); c) interpretação promovida pelo Poder Executivo, minguada pelo princípio da legalidade; d) inter-pretação doutrinária; e e) fontes interpretativas genéricas, que é aquela interpretação feita pelas partes e seus representantes em processo judicial ou mesmo pela opinião pública, especialmente pela imprensa, numa verdadeira alusão à sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, de Peter Häberle (1997).

Na esteira de Peter Häberle (1997), deve-se democratizar a interpretação constitucional, fenômeno que ele denominou de sociedade aberta dos intérpretes da Constituição (ou, como en-tendemos, do próprio Direito, na medida que este encontrar seu fundamento direto naquele), em oposição à sociedade fechada dos intérpretes da Constituição, pelo que hão de ser ampliados e aperfeiçoados os instrumentos de informação dos juízes (e juí-zos) constitucionais, com participações tais os cidadãos e grupos, órgãos estatais, o sistema público e a opinião pública, consub-stanciados, por exemplo, na figura do amicus curiae e das audiên-

58 Geraldo Ataliba (1978, p. 238, apud MACHADO, 2005, p. 64) aponta uma peculiari-dade da interpretação constitucional: “a interpretação da lei constitucional deve ser feita diversa da do direito ordinário, porque sabemos que no direito constitucional a exceção é o emprego de termos técnicos. Na norma constitucional, havendo dúvida sobre se uma palavra tem sentido técnico ou significado comum, o intérprete deve ficar com o comum, porque a Constituição é um documento político”.59 Trata-se de numerus apertus posto que, nas palavras de Häberle (1997, p. 13), “no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intér-pretes da Constituição”: quem vive a norma acaba, de alguma forma, por (co)inter-pretá-la. Não obstante isso, Raúl Canosa Usera (1988, p. 25) destaca apenas três intér-pretes, tomando por base a sua força: “el Tribunal Constitucional; el poder judicial; y el legislador”. (Cf. BASTOS, 1999, pp. 66 e 76)

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cias públicas60. A tudo isso ele cognominou forças produtivas de interpretação, intérpretes constitucionais em sentido lato ou pré-intérpretes constitucionais, o que, por certo, traz mais legitimidade e, por que não, justiça às decisões judiciais.61

Especificamente quanto à importância do Tribunal Constitucion-al e de suas decisões, traz-se a lição de Raúl Canosa Usera (1988, p. 63), mencionada por Celso Ribeiro Bastos (1999, p. 70):

La posibilidad de desarrollar directamente la Con-stitución no está atribuida en exclusiva ni al Parlamen-to ni al Tribunal Constitucional, sino a ambos. En últi-mo término, es verdad, el Tribunal puede rebasar unos límites contenidos en la Constitución y sobre los cuales el juez constitucional elabora una interpretación de-finitiva. En conclusión, esta competencia de desarrollo compartido se desequilibra a favor del Tribunal, que se sitúa por encima, como vigilante de la acción del otro operador de la Constitución.

Canotilho (1999, p. 1136/1139, apud MACHADO, 2005, p. 61) aponta cinco métodos de interpretação da Constituição, que são com-plementares entre si: a) método jurídico, que parte da consideração de que a Constituição não deixa de ser uma lei e, para se atingir o seu conteúdo, utiliza-se das regras tradicionais da hermenêutica (elemen-to filológico, lógico-sistemático, histórico, teleológico, etc.); b) método tópico-problemático (contribuição de Peter Häberle)62, em que a inter-

60 Como as que discutiram o fenômeno da judicialização da saúde pública e a obrig-ação de o Estado fornecer medicamentos, frente à reserva do financeiramente possível sempre lembrada pelos defensores (rectius: procuradores) estatais (AgR nas SL nº 47 e 64, nas STA nº 36, 185, 211 e 278, e nas SS nº 2361, 2944, 3345 e 3355). Outros exemplos foram o caso de interrupção de gravidez por anencefalia (ADPF 54) e constitucionali-dade de políticas de ação afirmativa ou discriminação reversa, como as cotas de acesso ao ensino superior (ADPF 186 e RE 597.285/RS).61 Ainda são características apontadas acerca dessa sociedade aberta: interpretação constitucional pela e para a sociedade aberta, convivendo harmonicamente com os intérpretes jurídicos; incremento a uma sociedade pluralista; atendimento do interesse público e do bem-estar geral; subsistência da jurisdição constitucional; direito de par-ticipação democrática; democratização da interpretação constitucional. (LENZA, 2011)62 Embora a referência a ele seja também ao desenvolvimento do método concretista da Constituição aberta. Cf. Márcia Haydée Porto de Carvalho (1997, p. 67).

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pretação constitucional é um processo aberto de argumentação, pelo que se adéqua a norma constitucional ao problema concreto (primado do problema sobre a norma); c) método hermenêutico-concretizador (contribuição de Konrad Hesse), situação na qual o intérprete, já pré-compreendendo o sentido normativo, concretiza a norma para e a par-tir de uma situação concreta, buscando a congruência entre o texto constitucional e o contexto (primado da norma sobre o problema); d) método científico-espiritual, conhecido também como método val-orativo ou sociológico, busca encontrar o conteúdo axiológico último da ordem constitucional, compreendendo o sentido e a realidade da Constituição; e) metódica jurídica normativa-estruturante (contribuição de Friedrich Müller), fundamentada em diversos postulados, tais como objetivar a investigação das várias funções da realização constitucional (legislação, administração e jurisdição), buscar a resolução de proble-mas práticos, preocupar-se com a estrutura das normas e textos nor-mativos, não reconhecer a identidade entre norma e texto normativo (já que o texto de um preceito normativo é somente a ponta do iceberg normativo (Müller), abrangendo a norma, também, um domínio norm-ativo, ou seja, o pedaço da realidade social parcialmente contemplado pelo programa normativo).63

Quanto aos princípios próprios da hermenêutica constitucional, Canotilho (1999, p. 1148/1151, apud MACHADO, 2005, p. 63) indica o seguinte “catálogo-tópico”, indispensável à correta compreensão da norma constitucional: a) princípio da unidade da Constituição, pelo qual as normas constitucionais têm de ser vistas como um todo organizado, devendo ser interpretadas de tal forma que se evite contradições entre elas; b) princípio do efeito integrador, reforçando-se a integração política e social e a unidade política; c) princípio da máxima efetividade, pelo que se deve atribuir a uma norma jurídica constitucional o sentido que maior eficácia lhe seja dada; d) princípio da “justeza” ou da conformidade funcional, que busca impedir a sub-versão da repartição das funções constitucionalmente estabelecida; e) princípio da concordância prática ou da harmonização, pelo qual se impõe uma coordenação entre bens jurídicos em conflito, visando a evitar um sacrifício pleno de um frente ao outro; f ) princípio da força normativa da Constituição, desenvolvido por Konrad Hesse,

63 Cf. também Márcia Haydée Porto de Carvalho (1997, p. 64/68).

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significando que, quando da interpretação e resolução de conflitos constitucionais, deve-se dar prevalência a tudo aquilo que contribua para a eficácia ótima da Lei Fundamental.

Especificamente em relação à força normativa da Constituição, colacionam-se abaixo fragmentos retirados do texto de Konrad Hesse (1991, passim), como forma de se ter uma visão ampla desse princípio tão importante ao presente trabalho:

[...] a Constituição contém, ainda que de forma limi-tada, uma força própria, motivadora e ordenadora da vida do Estado. A questão que se apresenta diz res-peito à força normativa da Constituição. [...] A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concre-tizada na realidade [pretensão de eficácia – Geltung-sanspruch]. [...] A Constituição adquire força normativa na medida em que logra realizar essa pretensão de eficácia. [...] somente a Constituição que se vincule a uma situação histórica concreta e suas condicionante, dotada de uma ordenação jurídica orientada pelos parâmetros da razão, pode, efetivamente, desenvolver-se. [...] Se não quiser permanecer “eternamente estéril”, a Constituição – entendida aqui como “Constituição ju-rídica” – não deve procurar construir o Estado de forma abstrata e teórica. [...] A norma constitucional somente logra atuar se procura construir o futuro com base na natureza singular do presente. [...] Em outras palavras, a força vital e a eficácia da Constituição assentam-se na sua vinculação às forças espontâneas e às tendên-cias dominantes do seu tempo, o que possibilita o seu desenvolvimento e a sua ordenação objetiva. A Consti-tuição converte-se, assim, na ordem geral objetiva do complexo de relações da vida.

Como se percebe, dois são os termos-chaves para se compreender bem o princípio: a eficácia e a força normativa da Constituição. Desse modo, afirma Hesse (1991, p. 19) que “a Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas [ordem normativa imposta por ela mesma] forem efetivamente realizadas”, sendo necessário que se fa-

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çam presentes na consciência geral, mormente na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional, “não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung)”.64

Outrossim, importante para a preservação da força normativa da Constituição, em um mundo de permanente processo de mudança político-social, é que ela não se assente numa estrutura unilateral, isto é,

Se pretende preservar a força normativa dos seus princípios fundamentais, deve ela incorporar, mediante meticulosa ponderação, parte da estrutura contrária. Direitos fundamentais não podem existir sem deveres, a divisão de poderes há de pressupor a possibilidade de concentração de poder[65], o fed-eralismo não pode subsistir sem uma certa dose de unitarismo. Se a Constituição tentasse concretizar um desses princípios de forma absolutamente pura, ter-se-ia de constatar, inevitavelmente – no mais tardar em momento de acentuada crise – que ela ultrapas-sou os limites de sua força normativa. A realidade ha-veria de pôr termo à sua normatividade; os princípios que ela buscava concretizar estariam irremediavel-mente derrogados. (HESSE, 1991, p. 21, grifo nosso)

Corrobora para o desenvolvimento da força normativa da Con-stituição não apenas o seu conteúdo, mas também sua práxis, na qual se observa o respeito a seus termos, mesmo em situações em que essa observância se manifeste incômoda. Perigosa para a força normativa da Constituição é “a tendência para a freqüente revisão constitucional sob a alegação de suposta e inarredável necessidade

64 Quanto a isso, preleciona Luís Roberto Barroso (2006, p. 374): “O intérprete constitu-cional deve ter compromisso com a efetividade da Constituição: entre interpretações alternativas e plausíveis, deverá prestigiar aquela que permita a atuação da vontade constitucional, evitando, no limite do possível, soluções que se refugiem no argumen-to da não-auto-aplicabilidade da norma ou na ocorrência de omissão do legislador”.65 Há um viés mais positivo pelo qual deve ser estudado o princípio da separação dos Poderes, ou seja, a readequação dos conceitos de harmonia e independência entre os Poderes em vista de uma maior eficiência do Estado na garantia dos direitos funda-mentais e da democracia.

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política”, já que “a freqüência das reformas constitucionais[66] abala a confiança na sua inquebrantabilidade, debilitando a sua força norma-tiva” (HESSE, 1991, p. 22). Por isso, conclui Hesse (1991, p. 22), “a estab-ilidade constitui condição fundamental da eficácia da Constituição”67.

Ademais, em linhas sobre a interpretação, assevera Hesse (1991, p. 22/23, grifo nosso):

Finalmente, a interpretação tem significado de-cisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A interpretação constitu-cional está submetida ao princípio da ótima concre-tização da norma (Gebot optimaler Verwirklichung der Norm). Evidentemente, esse princípio não pode ser aplicado com base nos meios fornecidos pela subsunção lógica e pela construção conceitual. Se o direito e, sobretudo, a Constituição, têm a sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça deles tábula rasa. Ela há de contemplar essas condicionantes, cor-relacionando-as com as proposições normativas da Constituição. A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação.

Em outras palavras, Hesse (1991, p. 23, grifo nosso) admite que uma mudança das relações fáticas provoque mudanças na interpre-tação da Constituição, sendo que essa interpretação – e qualquer mu-tação normativa – será limitada pelo sentido da proposição jurídica:

A finalidade (Telos) de uma proposição constitu-cional e sua nítida vontade normativa não devem ser sacrificadas em virtude de uma mudança da situ-

66 Diz Hesse (1991, p. 22) que “cada reforma constitucional expressa a idéia de que, efetiva ou aparentemente, atribui-se maior valor às exigências de índole fática do que à ordem normativa vigente”.67 E os processos informais de mudança da Constituição servem, de certo modo, jus-tamente a esse propósito: evitar, de imediato, a modificação formal da Constituição, quando isso for possível.

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ação. Se o sentido de uma proposição normativa não pode mais ser realizado, a revisão constitu-cional afigura-se inevitável. Do contrário, ter-se-ia a supressão da tensão entre norma e realidade com a supressão do próprio direito. Uma interpretação construtiva é sempre possível e necessária den-tro desses limites. A dinâmica existente na inter-pretação construtiva constitui condição funda-mental da força normativa da Constituição e, por conseguinte, de sua estabilidade. Caso ela venha a faltar, tornar-se-á inevitável, cedo ou tarde, a ruptura da situação jurídica vigente.

Hesse (1991, p. 25, grifo nosso) aponta como importante, so-bretudo durante o estado de necessidade, não a verificação da “[...] superioridade dos fatos sobre o significado secundário do elemento normativo, mas, sim, constatar, nesse momento, a superioridade da norma sobre as circunstâncias fáticas”:

Se os pressupostos da força normativa encon-trarem correspondência na Constituição, se as forças em condições de violá-la ou de alterá-la mostrarem-se dispostas a render-lhe homenagem, se, também em tempos difíceis, a Constituição lograr preservar a sua força normativa, então ela configura verdadeira força viva capaz de proteger a vida do Estado contra as desmedidas investidas do arbítrio.

A nova proposta do STF em sede de jurisdição constitucional, ao dar eficácia geral a suas decisões proferidas em âmbito de controle difuso, como será visto adiante, rende homenagem à Constituição e à sua força normativa, concordando-se perfeitamente com a sua rigi-dez, estabilidade e princípios, inclusive o da separação dos Poderes.

Afirma Konrad Hesse (1991, p. 27), acerca do papel do Direito Constitucional e da Constituição:

[...] o Direito Constitucional deve explicitar as con-dições sob as quais as normas constitucionais podem adquirir a maior eficácia possível, propiciando, assim, o desenvolvimento da dogmática e da interpretação

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constitucional. Portanto, compete ao Direito Con-stitucional realçar, despertar e preservar a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung), que, indubi-tavelmente, constitui a maior garantia de sua força normativa. Essa orientação torna imperiosa a assun-ção de uma visão crítica pelo Direito Constitucional, pois nada seria mais perigoso do que permitir o surgi-mento de ilusões sobre questões fundamentais para a vida do Estado.68

Para finalizar o assunto acerca da interpretação da Constituição, cabe fazer menção, de forma resumida, à denominada teoria dos po-deres implícitos (implied powers), que vem sendo reconhecida no Bra-sil pelo Supremo Tribunal Federal69. Conforme lições de Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (2009, p. 73),

Essa doutrina, desenvolvida pelo constitucion-alismo norte-americano, adota a premissa de que a atribuição, pela Constituição, de uma determinada competência a um órgão, ou o estabelecimento de um fim a ser por ele atingido, implicitamente confere os poderes necessários à execução dessa competên-cia ou à consecução desse fim (se a Constituição pre-tende o fim, entende-se que tenha assegurado os meios para a satisfação desse fim).

68 Contribui para que seja realçada essa vontade ou sentimento de Constituição o conhecimento de suas disposições. Para tanto, o art. 64 do Ato das Disposições Con-stitucionais Transitórias (ADCT) assegura a divulgação do texto constitucional: “Art. 64. A Imprensa Nacional e demais gráficas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração direta ou indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, promoverão edição popular do texto integral da Con-stituição, que será posta à disposição das escolas e dos cartórios, dos sindicatos, dos quartéis, das igrejas e de outras instituições representativas da comunidade, gratuita-mente, de modo que cada cidadão brasileiro possa receber do Estado um exemplar da Constituição do Brasil.”69 Ruy Barbosa (1932, p. 210/211, apud SILVA, 2000, p. 294) já fundamentava na dout-rina dos poderes implícitos – “quer dizer (princípio indiscutível) que, uma vez conferida uma atribuição, nela se consideram envolvidos todos os meios necessários para a sua execução regular” – e no “princípio de que a concessão dos fins importa a concessão dos meios”.

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Assim, tem-se que a atribuição de competências constitucionais deve corresponder à atribuição de capacidade para o seu exercício, ou seja, todos os meios necessários à sua efetivação, desde que se observe uma adequação entre meios e fins (princípio da propor-cionalidade). Interpretando essa teoria dos poderes implícitos, nada obsta a conclusão de que, se a Constituição Federal em seu art. 102 afirma que “compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição [...]”, ela, necessariamente, dotou o STF de meios necessários à efetivação dessa guarda. Vai nesse mesmo sen-tido Celso de Albuquerque Silva (2005, p. 145/146, grifo nosso):

Se aos tribunais é conferido o poder para aplicar a lei dando-lhe seu sentido e apontando suas con-seqüências diante de novos fatos e circunstâncias, não se poderia proibi-los de formular regras que não tivessem sido previamente anunciadas, pois tal poder criativo é um meio necessário para o atingi-mento das finalidades perseguidas pela jurisdição na solução das disputas. Quem confere os fins, outorga necessariamente os meios [teoria dos po-deres implícitos].

Um dos meios necessários à efetivação da guarda da Constitu-ição pelo STF é a pretensão de soluções efetivas e céleres aos proble-mas concretamente postos, que, indubitavelmente, pode ser alcan-çada pela nova perspectiva em sede de controle difuso, nos termos delineados nos capítulos seguintes.

1.3 Jurisprudencialização / Tribunalização e Ativismo Judiciário: superação da função judicial de “legislador negativo” e insurgên-cia do direito constitucional jurisprudencial

Hodiernamente, principalmente em razão da Emenda 45/2004, que trouxe a Súmula Vinculante, não se pode negar a Jurisprudên-cia, no seu sentido de decisões judiciais reiteradas dos tribunais (e mesmo resoluções administrativas), como sendo fonte imediata do direito, ao lado da Constituição Federal, leis e tratados internacionais

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de direitos humanos70. Ressalta-se, a partir disso – como bem desta-cado pela professora da UNB e assessora jurídica do gabinete do Min-istro Gilmar Mendes, Christine Oliveira Peter da Silva (2005), citando texto de José Luis Bolzan de Morais e Walber de Moura Agra71 –, a ju-risprudencialização da Constituição como meio para a consolidação do Estado Social-Democrático-Constitucional de Direito e a concre-tização dos direitos fundamentais, levando-se em consideração, ain-da, a Lei Fundamental como elemento concreto da vida de um país.

Relembre-se que jurisprudencialização, também chamada de tri-bunalização, – que não se confunde, como visto no tópico anterior, com jurisprudencialismo, embora haja pontos de conexão – represen-ta uma nova forma de ver a Constituição, ao ser revelada a criação ju-risdicional em matéria constitucional e a autoridade da Jurisprudên-cia (direito constitucional jurisprudencial), identificando-se, outrossim, a interpretação concretizante de certos conteúdos constitucionais.

Notou essa abordagem sobre o Direito Constitucional Jurispru-dencial Wellington Márcio Kublisckas (2009, p. 92/93, grifo do autor), baseando-se nas lições de José Alfredo de Oliveira Baracho (2004, p. 98, apud KUBLISCKAS, 2009, p. 92/93):

Nos dias atuais, seguindo o entendimento de José Alfredo de Oliveira Baracho, pode-se dizer, ainda que com certas restrições, que se está desenvolvendo um Direito Constitucional Jurisprudencial. Nesse sentido, sa-lienta o autor que: “As decisões da jurisprudência da Su-prema Corte dos Estados Unidos e das jurisdições constitu-cionais dos Estados Europeus acarretaram uma profunda transformação no Direito Constitucional Contemporâ-neo. Trata-se de mutações de importância semelhantes

70 Cf., por exemplo, o art. 557, caput e § 1º-A do CPC, onde o relator negará seguimen-to ou dará provimento a recurso a depender, respectivamente, se tal recurso está em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior ou se a decisão re-corrida está em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior.

71 Cf. MORAIS, Jose Luis Bolzan de; AGRA, Walber de Moura. A jurisprudencialização da Constituição e a densificação da legitimidade da jurisdição constitucional. In: (Neo)Constitucionalismo – ontem, os códigos; hoje, as constituições. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, 2004, p. 217-242.

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àquelas que ocorreram por ocasião do direito escrito, do direito positivo e do direito constitucional, surgindo uma crença em um ‘Direito Constitucional Jurisprudencial’, com o decrescente papel do direito constitucional for-mal”. Assim, na atualidade, devido à consolidação do controle judicial de constitucionalidade e ao advento do chamado Direito Constitucional Jurisprudencial, ad-quiriram relevância as mutações constitucionais op-eradas pelos tribunais. Nesse sentido, a configuração do sistema de controle de constitucionalidade e a sua eficiência influem decisivamente na ocorrência e na configuração das mutações constitucionais.

Prestigiando essa concepção, Anarita Araujo da Silveira (2008, p. 2), em interessante artigo publicado – no qual ela indaga se a Consti-tuição ainda constitui, além de notar a gradativa politização do Poder Judiciário e a jurisprudencialização e tribunalização da política, re-sultante de uma tensão entre a Política e o Direito – afirma que “vive-se um momento histórico no Judiciário brasileiro, isto é, vive-se um crescer do Poder Judiciário, o qual tem realizado, como nunca se viu antes, a jurisprudencialização da Constituição”. Continua a referida autora, traçando os limites e consequências desse fenômeno:

A tese da jurisprudencialização da Constituição visualiza-se na inexistência de exclusividade do pro-cesso de normogênese pelo Poder Legislativo. Este é um dos traços característicos da Pós-modernidade e quando a jurisdição constitucional se manifes-ta – por meio das decisões do Supremo Tribunal Federal – por vezes, ocorre a chamada mutação constitucional, esta se dá quando a determinação da compreensão acerca do conteúdo das normas constitucionais altera a cultura constitucional his-toricamente construída. É preciso questionar até que ponto se está dizendo o que a Constituição diz sem alterá-la e até que ponto, devido à imersão em um jogo de forças, o político não está lendo o jurídico, distanciando-o de seu papel de ajuste social. Com certeza, o movimento da jurisprudencialização deve ser trabalhado como a perspectiva de ser uma possib-

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ilidade de realização das promessas da modernidade a partir da atualização e adequação do texto constitu-cional também enquanto contexto. [...] a densificação da jurisprudencialização possui duas faces e duas perspectivas: a positiva, no sentido da atualização e adequação histórica das normas, e a negativa, diante do risco de retrocesso social e de eterno retorno aos vícios positivistas pela não suspensão dos preconcei-tos. (SILVEIRA, 2008, p. 3 e 7, grifo nosso)

Justamente para se evitar esse ponto negativo (risco de retroces-so social e retorno aos vícios positivistas), aponta Anarita Araujo da Silveira (2008, p. 9) que é extremamente valioso para o contexto de jurisprudencialização da Constituição o princípio da proibição do retrocesso72, o qual deriva da noção de Estado Democrático de Di-reito e mantém pontos de conexão com o princípio da dignidade da pessoa humana, os princípios da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais, a segurança jurídica, a proteção da confiança e o princípio da precaução.

A jurisprudencialização, conforme visto em tópico anterior, advém de vários fatores ocorridos em uma era de globalização/mundialização, dentre eles a “explosão de litigiosidade”, para a qual o legislador não pode dar respostas, o advento da sociedade de massa e, consequentemente, dos processos de massa, mor-mente em questões consumeristas, a disseminação e centralidade da Jurisdição Constitucional, a universalização da justiça e dos di-reitos fundamentais, com enfoque da Nova Hermenêutica, além da tutela coletiva dos novos direitos, que envolvem questões so-bre o meio ambiente, o consumidor, a informação, a livre concor-rência, o patrimônio genético, etc., exigindo-se do juiz soluções que muitas vezes não se encontram no texto legal ou na “vontade do legislador”, principalmente se levar em consideração a ótica dos direitos individuais. Por isso afirma-se que “não são apenas os indivíduos, que dele se socorrem como último recurso, mas a sociedade ela mesma transfere suas incapacidades à instituição judiciária” (COELHO JUNIOR, 2005).

72 Esse princípio significa, conforme visto anteriormente, que os direitos fundamentais conquistados pela sociedade e que sejam objeto de consenso não podem retroceder.

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Daí também surge o fenômeno correlato do ativismo judiciário, visto negativamente por Elival da Silva Ramos (2010, p. 308) como o “exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento”, caracterizando-se pela “incursão insidi-osa sobre o núcleo essencial de funções constitucionalmente atribuí-das a outros Poderes”, sendo que “é nos limites substanciais que o próprio direito a aplicar lhe impõe (e não nos procedimentos for-mais que deve seguir para fazê-lo – due process of law) que se há de buscar os critérios para a aferição da existência ou não de ativismo judiciário”. Argumenta, então, que o ativismo judicial extrapola os limites criados pelas leis e pela Constituição, esmagando um Poder Legislativo já oprimido pelo excesso de Medidas Provisórias editadas pelo Executivo. O autor aponta como solução, de forma original, a interpretação criativa, alicerçada na noção da inexistência de lacunas no direito, e, para além disso, através da interpretação sistemática do Direito seria possível adequar normas jurídicas vigentes já superadas à realidade social. (RAMOS, 2010, passim)

Noutra dimensão, porém, consoante observa Luís Roberto Bar-roso73 (2009, p. 6), tal ativismo pode ser assim explicado, inobstante as diversas críticas acerca de uma “ditadura do Judiciário”, pela qual o Tribunal Constitucional passaria a se tornar um árbitro irresponsável da vida do Estado e dono, ao invés de servo, da Constituição:

A idéia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação

73 Conforme análise de Luís Roberto Barroso (2009, p. 6), judicialização não se confunde com ativismo judicial, embora sejam primos: “A judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política. Em todos os casos referidos acima, o Judiciário decidiu porque era o que lhe cabia fazer, sem alternativa. Se uma norma constitucional permite que dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo a matéria. Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, im-pedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva.”

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direta da Constituição a situações não expressa-mente contempladas em seu texto e independente-mente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos norma-tivos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em maté-ria de políticas públicas.

Quanto às razões desse ativismo judicial, dispõe Luiz Flávio Gomes (2009):

Quais seriam as razões do ativismo judicial no Brasil? Luís Roberto Barroso invoca duas (O Globo de 22.03.09, p. 4): (a) nova composição do STF (por Min-istros bastante preocupados com a concretização dos valores e princípios constitucionais) e (b) crise de fun-cionalidade do Poder Legislativo (que estimula tanto a emissão de Medidas Provisórias pelo Executivo como o ativismo judicial do Judiciário). Todo poder quando não exercido (ou quando não bem exercido) deixa vácuo e sempre existe alguém pronto para preencher esse espaço vazio por ele deixado.

Acrescenta, ainda, Wellington Márcio Kublisckas (2009, p. 92):

Some-se a isto o fortalecimento do fenômeno denominado judicialização da política, que foi respon-sável por trazer para o âmbito do Poder Judiciário a responsabilidade de decidir sobre o mérito de ações administrativas, alargando a área de atuação das cor-tes judiciais, em especial das cortes constitucionais.

A referida “explosão de litigiosidade” e a transferência pelos indi-víduos e pela sociedade de suas incapacidades à instituição judiciária, além da necessidade de meios que possam, com segurança, trazer soluções efetivas e céleres para os litígios (como aquele defendido neste trabalho, ou seja, dar efeitos erga omnes e vinculantes às decisões profer-idas em sede de controle difuso), podem ser traduzidas pelos números

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de processos que chegam ao Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido, confiram-se os gráficos abaixo, em que se percebe uma nítida evolução no período da década de 1990 até hoje (cf. também o anexo, onde se pode verificar um comparativo entre 1940 a 2011):

Gráfico 1 – Movimento processual no STF entre 2010 e nov. 2011

Fonte: Site do STF (www.stf.jus.br)

Gráfico 2 – Movimento processual no STF entre 2000 e 2009

Fonte: Site do STF (www.stf.jus.br)

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Nesse contexto, agravado por um “Legislativo” que mais parece um “Legispassivo”74 75, permite-se que o STF assegure, com postura ativa e intervencionista, os valores constitucionais, dos quais é a guardião. É dizer, assim, que, a fim mesmo de se preservarem os in-stitutos constitucionais – sempre com vista nos princípios democráti-cos e dos direitos fundamentais –, há, atualmente, a superação da visão da função judicial de simples “legislador negativo”, pois o Poder Judiciário, com o seu poder de efetivação e decisório, ao assumir uma responsabilidade de transformação social, consagra um papel de legitimador não mais meramente formal, “senão, principalmente, substancial, implicando que a noção de garantia não fica mais res-trita aos padrões liberais de limitação negativa da ação estatal, mas vem acrescida de um plus transformador” (BRAVO et al., 2007). Tal en-tendimento leva a uma conclusão que já foi feita linhas atrás: a dis-tribuição clássica dos poderes não significa separação rigorosa, pois

74 Esse jogo de palavras já foi mencionado por Carlos Britto, conforme disse o professor Carlos Augusto Alcântara Machado em palestra proferida no XVII Simpósio Transna-cional de Estudos Científicos (Constitucionalismo e Relações Internacionais – 06 a 10 de outubro de 2008, Universidade Federal de Sergipe – UFS), cujo tema apresentado em 06/10/2008 foi A Constituição de 1988 como Obra Inacabada.75 Cf., para maiores detalhes, a introdução deste trabalho.

Gráfico 3 – Movimento processual no STF entre 1990 e 1999

Fonte: Site do STF (www.stf.jus.br)

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está calcada em uma flexibilidade que se volta para a cooperação, em prol da unidade do Estado, com a finalidade reclamada pela so-ciedade de realização dos valores constitucionais.

Critica-se, por conseguinte, a partir dessa nova realidade alçada, a atuação judicial na concepção clássica (e ultrapassada) de mero legislador negativo, típica do Estado liberal absenteísta, o que não significa, obviamente, que o Judiciário se tornará um legislador posi-tivo. Explica Celso de Albuquerque Silva (2005, p. 92, grifo nosso):

[...] a moderna doutrina constitucional superou de há muito essa visão conservadora estruturada no paradigma liberal-individualista onde o direito é visto como mero ordenador de condutas, para reconhecer à justiça a posição de um verdadeiro poder político. Ao juiz moderno, atuando na nova concepção de um direito promovedor-transformador típico do Estado Democrático de Direito, é reconhecida importância capital para a efetiva concretização e realização dos valores e princípios acolhidos na Constituição. Verifica-se, assim, a superação da função judicial negativista clássica, que cede passo a uma função ativa e interven-cionista do Poder Judiciário.

É dizer, por outras palavras, que

Essa função interventiva do Poder Judiciário visando não apenas defender, mas promover os di-reitos assegurados no texto básico, implica na su-peração da função judicial na sua concepção clássica de “legislador negativo” e reconhecimento de uma atuação positiva, embora não tão ampla como a do poder legislativo, na criação do direito. Nesse dia-pasão fica também superada a vetusta concepção de separação de poderes que não reconhecia nenhuma atividade produtora e/ou agregadora de sentido na interpretação judicial. (SILVA, p. 98, grifo nosso)

Essa quebra de paradigma também foi percebida por outros estudiosos do tema, a exemplo de Lenio Streck (2002, apud SILVA, 2005) e Bianca Stamato (2005), respectivamente:

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[...] com a institucionalização da interpretação con-forme a Constituição e da inconstitucionalidade par-cial sem redução de texto através da Lei n º 9.868, o Poder Legislativo brasileiro admite (explicitamente) que o Poder Judiciário possa exercer uma atividade de adaptação e adição/adjudicação de sentido aos textos legislativos, reconhecendo, ademais, que a função do Poder Judiciário, no plano de controle de constitucionalidade, não mais se reduz – repita-se – à clássica concepção de “legislador negativo”. À evidên-cia, isso não significa dizer que o Judiciário se trans-formará em legislador positivo. (STRECK, 2002, p. 444, apud SILVA, 2005, p. 98, grifo nosso e do autor)

[...] o tribunal constitucional não se limita a atuar como legislador negativo, mas age de forma posi-tiva e criativa, impondo critérios de interpretação para as normas constitucionais. (STAMATO, 2005, p. 95, grifo nosso)

É bom perceber que o Tribunal, ao adicionar ou reduzir sentido normativo, não estará legislando. Pelo contrário, afirma Lenio Streck (2002, p. 445, apud SILVA, 2005, p. 99). Estará, de fato, adaptando o texto à Constituição a partir dos mecanismos interpretativos ex-istentes (cf. supra), cumprindo, assim, sua tarefa de guardião da con-stitucionalidade das leis.

Desse modo, a jurisprudencialização, evidenciando a magni-tude da jurisprudência, se legitima ao ser concebida dentro de um processo hermenêutico produtivo, fundamentado na função cria-dora do intérprete, pelo que, num modelo onde cabe ao Tribunal Constitucional extrair através da interpretação o sentido da norma que a coloque em consonância com o texto maior, excluindo-se os resultados dissonantes, “[...] vincular-se à interpretação dos tribunais superiores não se trata meramente de uma questão de eficiência, conveniência ou de sanidade do sistema jurídico, mas é logicamente uma condição necessária para a existência de um único sistema ju-rídico” (SILVA, 2005, p. 89), construído sob as bases de decisões racio-nais. Presta-se homenagem aos princípios da legalidade, igualdade e imparcialidade, em prol dos princípios democrático, de proteção

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dos direitos fundamentais, da constitucionalidade e, finalmente, da universalidade da jurisdição.76

E não se diga que – principalmente quando se discutia a legit-imidade da súmula vinculante77 – tal atitude positiva e criativa não pode ser encampada pelo Judiciário em vista de não ter legitimi-dade democrática para tanto – já que os juízes não são investidos por eleição popular –, ou mesmo que isso violaria o princípio con-stitucional da separação dos Poderes. Rebatendo de vez ambos os referidos argumentos, basta lembrar que, nas palavras de Humberto Ávila (2009, p. 174), “[...] o exercício das prerrogativas decorrentes do princípio democrático deve ser objeto de controle pelo Poder Judiciário, especialmente porque restringe direitos fundamentais”. Nesse diapasão, notadamente quando o Poder Legislativo (ou Ex-ecutivo) utiliza premissas evidentemente errôneas, haverá um maior controle pelo Poder Judiciário (checks and balances), em face mesmo de sua função de “avaliar a avaliação” feita por aqueles.78

76 Cf., para maiores detalhes, capítulo 3.77 Cf., nesse sentido, MAZZILLI, Hugo Nigro. As Súmulas Vinculantes. O Estado de São Paulo. 21 out. 1997, p. A-4, apud TAVARES, 1998, p. 150.78 Anota Humberto Ávila (2009, p. 174, grifo nosso) que “é importante encontrar cri-térios que aumentem e que restrinjam o controle material a ser exercido pelo Poder Judiciário”. Dessa forma, colaciona os seguintes fatores e critérios, salientando, porém, que em qualquer caso caberá ao Judiciário verificar a avaliação do legislador, seja de forma preventiva ou posterior, não representando isso afronta ao princípio da sepa-ração dos Poderes: “De um lado, o âmbito de controle pelo Poder Judiciário e a ex-igência de justificação da restrição a um direito fundamental deverá ser tanto maior quanto maior for: (1) a condição para que o Poder Judiciário construa um juízo seguro a respeito da matéria tratada pelo Poder Legislativo; (2) a evidência de equívoco da premissa escolhida pelo Poder Legislativo como justificativa para a restrição do di-reito fundamental; (3) a restrição ao bem jurídico constitucionalmente protegido; (4) a importância do bem jurídico constitucionalmente protegido, a ser aferida pelo seu caráter fundante ou função de suporte relativamente a outros bens (por exemplo, vida e igualdade) e pela sua hierarquia sintática no ordenamento constitucional (por ex-emplo, princípios fundamentais). Presentes esses fatores, maior deverá ser o controle exercido pelo Poder Judiciário, notadamente quando a premissa utilizada pelo Poder Legislativo for evidentemente errônea. [...] De outro lado, o âmbito de controle pelo Poder Judiciário e a exigência de justificação da restrição a um direito fundamental de-verá ser tanto menor, quanto mais: (1) duvidoso for o efeito futuro da lei; (2) difícil e téc-nico for o juízo exigido para o tratamento da matéria; (3) aberta for a prerrogativa de ponderação atribuída ao Poder Legislativo pela Constituição. Presentes esses fatores, menor deverá ser o controle exercido pelo Poder Judiciário, já que se torna mais difícil uma decisão autônoma desse Poder” (ÁVILA, 2009, p. 174/175, grifo nosso e do autor).

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Ora, se o Poder Legislativo somente realizará ao máximo o princí-pio democrático conquanto escolha a premissa que melhor promova a finalidade pública, não o fazendo, estará submetido ao controle do Judiciário; é justamente aí onde nasce a legitimidade democrática da atividade judiciária e seu aspecto positivo e criativo, afastando-se, outrossim, concepção vetusta da separação dos Poderes:

[...] a decisão a respeito da justificabilidade da medida adotada pelo Poder Legislativo é o resultado final do controle feito pelo Poder Judiciário e, não, uma posição rígida e prévia anterior a ele. [...] Todas es-sas considerações levam ao entendimento de que o controle de constitucionalidade poderá ser maior ou menor, mas sempre existirá, devendo ser afastada, de plano, a solução simplista de que o Poder Ju-diciário não pode controlar outro Poder por causa do princípio da separação dos Poderes. O princí-pio democrático só será realizado se o Poder Leg-islativo escolher premissas concretas que levem à realização dos direitos fundamentais e das finali-dades estatais. Os direitos fundamentais, quanto mais forem restringidos e mais importantes forem na ordem constitucional, mais devem ter sua realização controlada. A tese da insindicabilidade das de-cisões do Poder Legislativo, sustentada de modo simplista [utilizando-se de concepção obsoleta acerca da separação dos Poderes], é uma monstru-osidade que viola a função de guardião da Consti-tuição atribuída ao Supremo Tribunal Federal, a plena realização do princípio democrático e dos direitos fundamentais bem como a concretização do princípio da universalidade da jurisdição. (ÁVILA, 2009, p. 175/176, grifo nosso)

É dizer: é legítima e se coaduna com o princípio democrático essa acepção ativa do Judiciário, já que, como se denota do quanto dito supra, indiretamente, ou melhor, diretamente ele promove a finalidade pública e os anseios sociais, ao adequar as premis-sas equivocadas estabelecidas pelo Legislativo. Nas palavras de Luiz Flávio Gomes (2009), “as decisões dos juízes são democráticas

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na medida em que seguem (nas decisões judiciais) aquilo que foi aprovado pelo legislador”.

Exemplifica-se da seguinte forma: se o legislador edita uma lei e esta contraria dispositivo fundamental da Constituição, cabe es-sencialmente ao Judiciário (mormente o STF) fazer o controle de constitucionalidade dessa lei; ambos dispositivos (lei e Constituição) são obras do poder popular; assim, controla-se a “vontade do povo” (manifestada na lei) pela própria “vontade do povo” (manifestada na Constituição)79, conectando-as naquilo que for de valor mais su-premo. Estender a todos o entendimento extraído de uma hipótese como essa – declaração incidental pelo STF da inconstitucionalidade de uma lei – é prestigiar, de outro mote, a “vontade da Constituição” e o respeito principalmente à legalidade e igualdade.

Proclama-se a superioridade das normas constitucionais sobre todo o ordenamento jurídico, consagrando-se o moderno Estado Constitucional de Direito:

Esta conclusão não supõe de modo algum uma superioridade do poder judiciário sobre o legislativo. Supõe apenas que o poder do povo é superior a am-bos, e que, quando a vontade do legislativo, expressa em suas leis, entre em oposição com a do povo, ex-pressa na Constituição, os juízes devem ser governa-dos por esta última e não pelas primeiras. Devem reg-ular suas decisões pelas leis fundamentais, não pelas que não são fundamentais. (Hamilton, The federalist papers LXXVIII, apud MORAES, 2009, p. 5)

No mesmo sentido, argumenta Inocêncio Mártires Coelho (2002, p. 95, grifo do autor):

Nessa direção seria saudável, por exemplo, re-jeitarmos a postura fundamentalista dos que não ad-mitem sequer discutir o assunto, imbuídos da crença de que o ativismo judicial é de todo incompatível

79 Lembre-se nesse ponto que, para ser legítimo o Poder Constituinte Originário, deve haver uma congruência entre a vontade do povo (material) e a vontade da Assembleia Constituinte (formal).

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com o regime democrático, onde quem não tem vo-tos não tem legitimidade para emitir comandos com força de lei. Essa tese, de consistência aparente, pode-ria ser enfrentada com o argumento de que os juízes, embora não possuam legitimidade de origem para produzir normas jurídicas, de certa maneira têm-na adquirida [legitimidade de exercício, nas palavras de Prieto Sanchís] com a aprovação social do seu com-portamento; ou, ainda, com a constatação de que, sem a participação vivificadora dos seus intérpretes e aplicadores, as leis permanecem textos frios e in-acabados, como afirmou, no início dos anos quarenta, o intuitivo Lúcio Bittencourt.

Ainda acerca da separação dos Poderes, apenas cabe lembrar que, à luz da história, a causa de dogmatização ou endurecimento de tal princípio remonta-se à experiência do absolutismo e à desconfi-ança nos magistrados do rei. Porém, como bem colocado por Inocên-cio Mártires Coelho (2002, p. 98), a consolidação do Estado de Direi-to, após ultrapassada a conjuntura jurídico-política em que viveram John Locke e Montesquieu, aposentou essa velha camisa-de-força, adicionando que “[...] se algum poder ainda se faz temido e, por isso, deve ser controlado, esse não é o poder do juiz democrático, que desfrutava da confiança de Hamilton, mas o do monarca despótico, que assustava Montesquieu”80. Continua o referido autor, à guisa de conclusão dessa reflexão:

Ultrapassada essa fase da sua evolução – fase dialeticamente cancelada, preservada e elevada (auf-gehoben) nas etapas seguintes do ininterrupto pro-cesso de sua realização histórica –, cumpre repensar a separação dos poderes em perspectiva temporal-mente adequada, porque a sua sobrevivência, en-quanto princípio, dependerá da sua adequação, enquanto prática, às exigências da sociedade ab-erta dos formuladores, intérpretes e realizadores da constituição. Noutras palavras, impõe-se re-

80 Essa foi a mesma conclusão a que chegou Carlos Britto. Cf. nesse sentido BRITTO, 1999, p. 366/367.

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interpretar esse velho dogma para adaptá-lo ao moderno Estado constitucional, que sem deixar de ser liberal, tornou-se igualmente social e democrático, e isso não apenas pela ação legislativa dos Parlamen-tos, ou pelo intervencionismo igualitarista do Poder Executivo, mas também pela atuação do Poder Judiciário e das Cortes Constitucionais, politica-mente engajadas no alargamento da cidadania e na realização dos direitos fundamentais. (COELHO, 2002, p. 99, grifo nosso e do autor)

Ainda, pode-se falar, sem sombra de dúvida, com o escólio de José Luis Bolzan de Morais et al. (2003) e Celso de Albuquerque Silva (2005), que o fenômeno da jurisprudencialização/tribunalização do direito constitucional tem causado um abalo na dicotomia tradicional entre os modelos common law (base costumeira) e civil law (base legislativa escrita)81, em face do papel assumido, ultimamente82, pelas Cortes Constitucionais83, especialmente no caso brasileiro, pelo Supremo Tri-bunal Federal, atuando em conformidade com a tarefa concretizante dos valores expressos na Carta Constitucional, particularmente diante de uma Constituição principiológica conformadora de um Estado Democrático de Direito, como a nossa Carta de Outubro.

A produção jurisprudencial, tida como inegável fonte criadora do direito tal como entendido pelas Cortes Superiores, contribui, nesse

81 Perelman (2000, p. 185, apud SILVA, 2005, p. 99, grifo nosso) já havia notado essa tendência de aproximação dos dois sistemas, conforme observou Celso de Albuquer-que Silva (2005): “Faz algumas décadas que assistimos a uma reação que, sem chegar a ser um retorno ao direito natural, ao modo próprio dos séculos XVII e XVIII, ainda assim confia ao juiz a missão de buscar, para cada litígio particular, uma solução equitativa e razoável, pedindo-lhe ao mesmo tempo que permaneça, para consegui-lo, dentro dos limites autorizados por seu sistema de direito. Mas é-lhe permitido para realizar a síntese buscada entre a equidade e a lei tornar esta mais flexível graças à intervenção crescente das regras de direito não escritas, representadas pelos princípios gerais de direito e pelo fato de se levar em consideração os tópicos jurídicos. Esta nova concepção acresce a importância do direito pretoriano, fazendo o juiz o auxiliar e o complemento indis-pensável do legislador: inevitavelmente ela aproxima a concepção continental do direito da concepção anglo-saxã, regida pela tradição da common law”.82 Na verdade, a perda de sentido da dicotomia entre os modelos referidos vem sendo sentida desde o segundo pós-guerra.83 Representam relevante desenvolvimento constitucional os Estados Unidos da Amé-rica, a Alemanha, a Áustria e a Suíça. Cf. ALBERTON, 2002, p. 13/16.

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sentido, para que se atenue a distância entre o sistema romano-ger-mânico e o anglo-saxônico naquilo concernente à função judicial, no-tadamente apresentando-se cada vez mais significativa a atuação dos Tribunais nos países que adotam o sistema da primazia da lei. Como adverte André Ramos Tavares (1998, p. 154), “[...] não é mais possível pretender-se a construção de um modelo jurídico que negue total-mente a doutrina da common law”. Continua o referido autor:

A questão de ser o Tribunal Constitucional um verdadeiro “legislador negativo” parece estar suplan-tada. Aliás, é necessário dar mais um passo adiante, como diz o Ministro Velloso, e reconhecer a necessi-dade de que o Tribunal Constitucional, em circunstân-cias especiais, atue normativamente em relação à omissão legislativa, ao menos para o caso concreto a ele submetido. (TAVARES, 1998, p. 154, grifo nosso)

Aplicado o caso ao Brasil, conclui Celso de Albuquerque Silva (2005, p. 101, grifo nosso), para quem, aliás, o efeito vinculante das decisões constitui consequência inexorável de todo um processo de revitalização hermenêutico, que concilia o texto da lei (elemento objetivo da interpretação) com a liberdade do intérprete (elemento subjetivo da interpretação):

Considerando-se a função exercida pelo Supre-mo Tribunal Federal de guardião da Constituição e a função exercida pelo Superior Tribunal de Justiça de guardião da legislação infraconstitucional, segue-se como consectário natural o dever de obediência, pe-los tribunais inferiores, das normas construídas pelos tribunais superiores no exercício de seu labor exegé-tico, decorrência inexorável que promana do princí-pio da legalidade. [...] Nesse sentido, ressai como consectário natural, a adoção do efeito vinculante para as decisões dessas cortes que, ao se tornar-em pacíficas no seio dos respectivos tribunais, definem o exato sentido dos textos constitucional e legal, ali interpretados construtivamente, que devem, obrigatoriamente constranger os demais tribunais e juízes inferiores.

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Por fim, e sendo oportuna a ocasião, resta mencionar que o ativ-ismo judiciário conta com apoio de expressivos setores da opinião pública. Basta observar, para comprovar isso, que os meios da im-prensa vêm se dedicando ao tema e à abordagem das pautas de julgamento do STF, inclusive com entrevistas dos Ministros84. A re-portagem da revista Veja de 27 de agosto de 2008 é emblemática. Dedicando cinco páginas ao ativismo judiciário, Carlos Graieb (2008) se posiciona da seguinte forma, numa reportagem que inicia dizendo que “agora adeptos do ‘ativismo judicial’, os ministros do STF ocupam espaços do Legislativo e assumem seu papel político”, sendo que os julgamentos históricos do Supremo estão pondo

[...] em relevo, novamente, o papel de protagonista que o tribunal assumiu e que não vai abandonar, por três motivos: porque a paralisia do Congresso não terminará de súbito; porque, ao estilo da Suprema Corte americana, tem em sua pauta de curto prazo temas polêmicos e de influência direta no cotidiano dos brasileiros, como o debate sobre o casamento homossexual; e porque, dentro da corte, consolida-se rapidamente uma cultura de “ativismo judiciário”. Um

84 Diversos temas de repercussão, já definidos pelo STF, podem ser citados, como a questão dos vereadores, da criação e desmembramento de municípios, da fidelidade partidária, da greve no serviço público, da aposentadoria especial, das algemas, do nepotismo. Cf. GRAIEB, Carlos. A calma é só aparente... Veja, São Paulo, n. 2075, 27 ago. 2008. p. 60-64. Reportagem (sobre o ativismo judiciário); AZEVEDO, Reinaldo. O di-reito só pode ser achado na lei. Veja, São Paulo, n. 2075, 27 ago. 2008. p. 64-65. Artigo; MENDES, Gilmar. Fumaça de casuísmo. Veja, São Paulo, n. 2057, 23 abr. 2008. p. 11-15. Entrevista, onde afirma que “o STF vem cumprido devidamente o seu papel ao fazer al-gumas censuras” e que “[...] o papel do STF é sempre o de consolidar o estado de direito democrático”; NORTHFLEET, Ellen Gracie. Fé na Justiça. Veja, São Paulo, n. 2051, 12 mar. 2008. p. 11-15. Entrevista, onde afirma que “[...] às vezes as questões se arrastam por anos no Congresso e acabam desaguando no Judiciário. Esse fenômeno de judiciali-zação da política não acontece só no Brasil”; BRITTO, Carlos Ayres. Pela transparência. Veja, São Paulo, n. 2069, 16 jul. 2008. p. 13-17. Entrevista, onde afirma que “está entran-do em curso uma nova era, de aproximação do Poder Judiciário com a sociedade [...]”; MELLO, Marco Aurélio. Pelo fim da hipocrisia. Veja, São Paulo, n. 2076, 3 set. 2008. p. 74-75. Entrevista, onde responde, perguntado por que um tema de tanto impacto como o aborto de anencéfalos será definido no STF e não no Congresso: “porque o Supremo Tribunal Federal é a última trincheira do cidadão”; GRAIEB, Carlos. Nem ciência, nem religião. Veja, São Paulo, n. 2063, 4 jun. 2008. p. 64-68. Reportagem, onde é citada uma afirmação de Gilmar Mendes, que diz: “Já nos livramos do dogma da atuação restritiva. Uma atuação criativa vai nos permitir suprir muitas lacunas da lei”.

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sistema político-jurídico é como a natureza, na frase de Nicolau Copérnico: abomina o vácuo. Se um dos três poderes não exerce o seu papel, os outros ocu-pam o espaço. O Congresso brasileiro é, hoje, o poder apequenado[85]. [...] Passados vinte anos, o Congresso ainda não regulamentou 54 artigos da Constituição de 1988. Diz o cientista político Octaciano Nogueira, da Universidade de Brasília: “Em qualquer país, se o Congresso não regulamenta logo uma nova Constitu-ição, eximi-se de sua principal tarefa”. A legislação in-fraconstitucional também está cheia de buracos e, di-ante deles, o STF pode se ver na posição de legislar[86]. [...] “Não é por razões ideológicas ou pressão popular. É porque a Constituição exige. Nós estamos traduz-indo, até tardiamente, o espírito da Carta de 88, que deu à corte poderes mais amplos”, diz o presidente do STF, Gilmar Mendes. [...] Uma certa dose de ativismo judicial talvez seja impossível evitar num sistema con-stitucional como o brasileiro. O essencial é que ele seja informado pela razão jurídica, e não pela ideo-logia ou pelas crenças particulares de cada ministro. Isso, a sociedade precisa vigiar.

Resume o quanto exposto neste tópico Sergio Coelho Junior (2005):

Tudo isso está a conferir ao Poder Judiciário um locus bem diverso daquele que lhe reservou a clássica doutrina da separação de poderes, tal como conce-bida por Montesquieu.

A formulação de uma nova Teoria Geral do Esta-do, identificando as causas profundas desse desloca-mento e fixando os limites de atuação dos diferentes agentes políticos de nosso tempo, constitui tarefa inacabada e desafiadora para todos os que pensam a Ciência Política e o Direito.

85 Cf. notas da introdução.86 Por certo, o sentido empregado na palavra “legislar” aqui está ligado a um papel mais ativo da Corte.

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A crise87 daí advinda reforça o Poder Judiciário, cuja porosidade o constitui no único poder do Estado que se pode mobilizar a qualquer momento e exigir que exerça sua função típica, reconstruindo o social mediante o processo. O juízo não pode eximir-se de examinar a pretensão, não conhece hierarquia no ex-ercício da jurisdição e não pode delegar.

Enfim, está-se diante da jurisprudência enquanto fonte de mu-tação constitucional, desenvolvendo-se, consequentemente, como bem colocado pela Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e professora Doutora em Direito Genacéia da Silva Al-berton (2002, p. 13), “a idéia da constituição aberta[88], isto é, de na-tureza jurisprudencial”89, que significa, em outros termos, a tendência de uma Constituição jurisprudencial, atualizada pelas decisões dos Tribunais Constitucionais: “a jurisdição constitucional, através da ativ-idade do Tribunal Constitucional aparece como efetivo coroamento do Estado de Direito” (ALBERTON, 2002, p. 16). Por outro lado, citando Carlos Augusto Alcântara Machado (1999, p. 135, grifo nosso),

87 “Neste passo é de toda pertinência explicitar o que aqui se entende por crise, sob pena de comprometer-se as conclusões do estudo. Para tanto, invoca-se o magistério de CASTANHEIRA NEVES, ‘Entre o ‘legislador’, a ‘sociedade’ e o ‘juiz’ ou entre‘sistema’, ‘função e problema’ - os modelos atualmente alternativos de realização jurisdicional do direito’. In: Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, v. LXXXIV. [Separata], p. 2, para quem o vocábulo ‘não traduz apenas o negativo substancial, a quebra anómica que se sofre e lamenta, mas sobretudo a consumação histórico cultural de um sistema, a perda contextual de sentido das referências até então regulativas - o paradigma que vigorava esgotou-se, um novo paradigma se exige.’ ” [Nota e grifo do autor]88 A ideia de Constituição aberta remete para a abordagem do direito constitucional como “um sistema aberto de regras e princípios que, através de processos judiciais, procedimentos legislativos e administrativos, iniciativas dos cidadãos, passa de uma ‘law in the books” para uma “law in action”, para uma “living constitution’ ”. (CANOTI-LHO, 2000, apud KUBLISCKAS, 2009, p. 25)89 “Sobre o assunto, discorre GARCÍA: ‘Frente a la idea de Constitución reducida a un conjunto de normas, y entendida como un dato estático, surgirá la idea de Constitución abierta, como algo no concluso y acabado. La Constitución perderá entonces su carácter de norma fija e inmutable para aparecer como um proceso de realización en el tiempo, sujeto a alteraciones y modificaciones continuas. Además, porque sus contenidos norma-ticos son con frecuencia vagos, incompletos, indeterminados y confusos, no susceptibles para fundamentar una doctrina de la aplicación y ejecución directa de los mismos (Hesse, Grundzuge, págs. 12 y s.), se hará necesario establecer una adecuada teoría de la interpre-tación’ ( p. 50/51).” [nota da autora]

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A inércia dos Poderes Públicos, sua conduta omissiva prolongada no tempo, provoca uma mu-tação inconstitucional[90], trazendo graves danos à or-dem constitucional, pois funciona como verdadeiro bloqueio à concretização de valores/direitos funda-mentais consagrados pelo legislador constituinte.

Frente a isso tudo, não se pode negar que a nova perspectiva do Supremo quanto ao controle difuso de constitucionalidade e à juris-dição constitucional é reforçada pela tese da jurisprudencialização ou tribunalização da Constituição (direito constitucional jurispruden-cial), num contexto de veemente ativismo judiciário, revelando-se, destarte, medida apta a assegurar os direitos e garantias fundamen-tais, como vem se afirmando durante todo o trabalho.

90 Cf., para maiores detalhes sobre o tema, Anna Cândida da Cunha Ferraz, 1986, p. 217/233.

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Poder Constituinte Difuso:

Fundamentos Para a Nova Perspectiva do STF em Sede de

Controle Difuso

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Logo no início da sua Tese de Doutorado, intitulada O Regime Ju-rídico das Emendas à Constituição, o hoje Ministro do STF Carlos Ayres Britto (1999, p. 5, grifo do autor) faz uma correlação entre o Poder Constituinte e Deus, a fim de explicar o porquê da transcendência daquele – ressalte-se que essa ideia de transcendência, muitas vezes, gera acirrados debates doutrinários acerca de qual seria a natureza do Poder Constituinte (Direito Natural; Norma hipotética-fundamental de Kelsen; fundamento no poder, como conjunto das forças políticas que, em determinado momento histórico, instauram um determinado or-denamento jurídico, consoante Bobbio). Para isso, destaca um diálogo entre ele e seu filho, que merece ser reproduzido, pois elucidativo:

O meu filho Marcel tinha cinco anos de idade, quando travou comigo o seguinte diálogo: – Meu pai, é verdade que Deus tudo pode? – É verdade, sim, meu filho. Deus tudo pode. – E se Deus quiser morrer? – Bem, aí você me obriga a recompor a idéia. Deus tudo pode, é certo, menos deixar de tudo poder. Logo, Deus tem que permanecer vivo, porque somente as-sim Ele vai prosseguir sendo Aquele que tudo pode.

Ao dar essa resposta, por intelecção pedagógica, chegou à seguinte conclusão: Poder Constituinte é aquele que tudo pode (com inicialidade), menos deixar de tudo poder (com iniciali-dade), havendo “[...] um espaço de conformação jurídico-positiva que somente pelo Poder Constituinte é passível de ocupação” (BRITTO, 1999, p. 7, grifo do autor). Inobstante isso, Carlos Britto (1999, p. 8, grifo nosso) pondera que o constitucionalismo contemporâneo (neoconstitucionalismo, analisado em citerior capítulo) vem, cada vez mais, tirando os obstáculos que separam o Poder Constituinte do Poder Reformador, “a ponto de admitir que este último reveja as próprias cláusulas de revisão do Magno Texto”. Isso porque no confronto entre o “princípio da constitucionalidade” (ou “princípio da racionalidade constitucional”) e o “princípio da Democracia”, a base neoconstitucionalista afirma que o primeiro deve sucumbir ante o segundo, “[...] [o] que rompe totalmente com o passado jurídico, mas que enlaça demasiadamente a si toda a positividade futura” e donde nasce – e a percepção dessa reconceituação sobre o Poder Constituinte e a Constituição é fundamental para este trabalho – o caráter construtivista da Constituição, no sentido aqui exposto

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de substancial modificação constitucional sem necessidade de recorrer-se a mecanismos formais de emenda, encontrando seu fundamento no fato de que o Direito é experiência (BULOS, 1997).

Pode-se apontar esse caráter construtivista (construction) da Con-stituição na concepção da Constituição de 1988 como Obra Inacaba-da, propugnada pelo professor Carlos Augusto Alcântara Machado (informação verbal)1. Nesse sentido, aponta o Mestre, a Constituição Federal brasileira nasceu para ser instrumento da cidadania, ao de-fender e garantir preponderantemente a dignidade da pessoa hu-mana e o Estado Democrático de Direito.

Como se sabe, tradicionalmente o Poder Constituinte divide-se em Poder Originário e Poder Derivado2. Porém, há um Poder que nem

1 Palestra proferida no XVII Simpósio Transnacional de Estudos Científicos (Constitucio-nalismo e Relações Internacionais – 06 a 10 de outubro de 2008, Universidade Federal de Sergipe – UFS), cujo tema apresentado em 06/10/2008 pelo professor Carlos Au-gusto Alcântara Machado foi A Constituição de 1988 como Obra Inacabada.2 Como não poderia deixar de ser, somente pode-se falar em Poder Constituinte quan-do surge, a partir das grandes revoluções que deram origem ao Estado Constitucional Moderno (Inglesa – 1688; Americana – 1776; Francesa – 1789), o fenômeno constitu-cional (Constituição), com a Constituição dos Estados Unidos, de 1787, e a Constituição da França, de 1791. O surgimento da Constituição pode-se dar por revolução, como as destacadas, ou por transição constitucional, a exemplo da nossa Carta Magna de 1988. Interessante destacar, outrossim, que durante o processo de elaboração de uma Consti-tuição, normalmente, a Assembleia Constituinte rompe os laços com a autoridade que a criou e se apropria de alguns ou de todos os poderes dessa autoridade, fenômeno ao qual se reportou o cientista político Jon Elster (1994) como constitutional bootstrapping. Mas, obtemperando essa afirmação, o citado autor afirma que clarividente o passado pode dar forma ao presente, no sentido de oferecer um ponto de partida para as ativi-dades constituintes, inclusive concedendo alguns interesses do antigo regime para fins de evitar conflitos imediatos que poderiam destruir o novo regime, ou mesmo, como aponta Canotilho (1998), acontecendo a situação de as normas constitucionais terem que mostrar uma articulação das preferências e interesses públicos dos produtores da norma com os seus destinatários, além de manter uma medida de aptidão (fitness) para as redefinições interativas entre interesses públicos e privados, modelo esse próprio de um caráter constitucional aberto, fragmentário, incompleto, inacabado. É justamente por isso que se pode chegar a dizer que há elementos do constitucionalismo que de-vem ser observados por toda e qualquer Constituição, como a limitação dos Poderes, a aderência à lei e a proteção dos direitos fundamentais, motivo pelo qual ainda que se pretenda afirmar que o poder constituinte originário rompa integralmente com a ordem constitucional anterior, isso já não é possível falar em relação ao constitucionalismo e sua evolução; nesse ponto, a inconstitucionalidade em relação à Carta que se rompe pode ser evidente, sem contudo ser admitida discordância com os pilares do constitucional-ismo (OLIVEIRA, 2006). Como bem se vê, é uma das características do constitucionalismo a de ser um limitador do poder constituinte originário (OLIVEIRA, 2006).

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possui marcas de inicialidade, autonomia e incondicionalidade3, nem tem traços da secundariedade, limitabilidade e condicionalidade. É o Poder Constituinte Difuso, apontado por Uadi Lammêgo Bulos (1997).

Esse Poder Difuso é que constitui toda uma teoria de modificação informal da Constituição, da qual faz parte a Mutação Constitucional. Difere do Poder Reformador, pois este se regula pelos mecanismos formais instituídos na ordem jurídica por meio do legislador consti-tuinte originário.

3 Como adiantado no rodapé anterior, note-se que até em relação ao Poder Constituin-te Originário essas características tradicionais da inicialidade, autonomia e incondicio-nalidade são mitigadas. Quanto à característica da incondicionalidade, entende-se que esse Poder deve estar vinculado ao princípio da democracia e também à dignidade da pessoa humana. O abade Sieyès (1973, apud MACHADO, 2005), formatador da Teoria do Poder Constituinte, referindo-se à característica da incondicionalidade, já mostrava traços de que o Poder Constituinte não está submetido ao direito positivo, mas deve obedecer aos princípios do direito natural: “A nação existe antes de tudo. Sua vontade é sempre legal, é a lei mesma. Antes dela e por cima dela só existe o Direito Natural (Sieyès: 1973, p. 75)” (MACHADO, 2005, p. 21). Com o neopositivismo, acha-se por bem que a ideia de direito natural clássica deva ser substituída pelos princípios universalizadores (Habermas, com a Ética do Discurso, trabalha com a concepção de princípios éticos universais, que são os princípios universais da justiça), dos quais fa-zem parte a democracia e a dignidade da pessoa humana, com todo o arcabouço dos direitos humanos. Ainda, Sieyès aponta a permanência do Poder Originário, que não se esgota com seu exercício, e a inalienabilidade, pela qual o povo nunca pode perder o direito de querer mudar a sua vontade, sendo vedada a transferência do Po-der Constituinte a outro titular. Em relação ao seu caráter ilimitado, Marcelo Noveli-no (2009), citando Jorge Miranda, traz alguns limites materiais ao Poder Constituinte Fundacional, quais sejam: limites transcendentes – com relação ao Poder Constituinte Originário Material –, imanentes – com relação ao Poder Constituinte Originário For-mal – e heterônomos. Os limites transcendentes vêm do direito natural, dos valores éticos e da consciência jurídica coletiva. Estão calcados no “princípio da proibição do retrocesso”, pelo qual os direitos fundamentais – mais uma vez eles – conquistados pela sociedade e que sejam objeto de consenso não podem retroceder. Esse é o cha-mado “efeito cliquet”, muito referido na jurisprudência da França e adotado, de forma implícita, pela Constituição do Brasil, por exemplo, em seu art. 3º, que objetiva que o Estado sempre atue no sentido de melhorar progressivamente as condições de vida da população – só por curiosidade, a expressão “cliquet” é utilizada pelos alpinistas e define um movimento que só permite a ele subir, não lhe sendo possível retroceder em seu percurso. Os limites imanentes, impostos, como dito, ao Poder Constituinte Originário Formal enquanto poder situado de forma finalista e circunstanciada, estão ligados à configuração do Estado à luz do Poder Constituinte Originário Material ou à própria identidade do Estado. Já os limites heterônomos são os que advêm da conju-gação com outros ordenamentos jurídicos, referindo-se, principalmente, ao direito in-ternacional. O respeito a esses limites materiais gera a legitimidade objetiva do Poder Constituinte Originário (Canotilho), não tendo a Assembleia Constituinte liberdade de inserir toda e qualquer norma na Constituição.

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Os limites ao Poder Reformador4, instados no art. 60 da CF/88, são os verdadeiros processos formais de modificação da Lei Maior, que, como notado, objetivam evitar a quebra da continuidade jurídica e a descon-figuração da identidade constitucional. Essas limitações podem ser tem-porais, circunstanciais, formais (subjetivas e objetivas) e materiais.

A limitação temporal impede a modificação da Constituição den-tro de um determinado período de tempo, e fazia parte do art. 174 da CB/1824 – a CF/88 não tem essa limitação. Quanto às limitações circunstanciais, estas impedem a modificação da Constituição em determinadas circunstâncias de extrema gravidade, como a inter-venção federal (art. 34, CF/88), o estado de defesa (art. 136, CF/88) e o estado de sítio (art. 137, CF/88). Essas circunstâncias estão dispostas no art. 60, § 1º, CF/88. Os limites formais, também chamados de limi-tações procedimentais ou processuais ou implícitas, estão ligados aos processos delimitados na CF/88, podendo ser subjetivos (quanto à iniciativa de proposta de emenda – art. 60, I a III, CF/88) ou objetivos (o procedimento em si – art. 60, §§ 2º, 3º e 5º, CF/88).

Por fim, as limitações materiais, também chamadas de substan-ciais, que são aquelas relacionadas a certos conteúdos, ou seja, que impedem a alteração de determinados conteúdos consagrados no Texto Constitucional – as cláusulas pétreas, que fazem da nossa CF/88 super-rígida –, a fim de preservar a identidade material da Constituição, proteger instituições e valores essenciais e assegurar a continuidade do processo democrático. Essas entrenchment clauses podem ser colocadas, figurativamente, da seguinte forma: na alego-ria das sereias, Ulisses, na Odisseia, escapou do canto das sereias – que atraia os marinheiros para matá-los – ao ordenar que o amarras-sem no mastro do navio e não o soltasse de modo algum, pelo que podia ouvi-las, porém sem obedecê-las. As cláusulas pétreas são esse mastro do navio, por qual impede, embora ora seja tentado a fazer por influência das “vozes de sereias”, modificações na integridade constitucional, desvirtuando sua identidade.

Inobstante essa ideia, devemos ponderar que nem todas as voz-es doces partem de sedutoras sereias que engendram a morte. Nada

4 Nesse Poder Reformador, há coincidência entre o seu titular e o seu exercente, sendo os membros do Parlamento, no caso do Brasil, do Congresso Nacional (Senadores e Deputados Federais).

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obsta que haja, dentro desse universo, sereias que somente fazem guiar os navios dos marinheiros rumo ao progresso, no caso, rumo à Justiça e ao fortalecimento das instituições, que nada tem a ver com a descaracterização do modelo político-constitucional proposto. Com isso, compreendemos o porquê de o STF afirmar que as cláu-sulas pétreas não significam a intangibilidade literal do respectivo dispositivo, mas apenas a proteção de seu núcleo essencial.

Entretanto, ao revés desse Poder Derivado Reformador, o Poder Difuso se encontra em estado de latência, invisível, somente surgin-do quando necessário, sendo exercitado, em tal momento, pelos órgãos constitucionais competentes para aplicar a Constituição, “[...] interpretando-a, escandindo-a se for preciso, a fim de dar-lhe efetivi-dade” (BULOS, 1997, p. 171/172, grifo nosso). O Poder Constituinte Difuso tem o dever de fazer com que a Constituição atue efetiva-mente, a fim de solucionar imbróglios e vazios normativos.

É precisamente no poder constituinte difuso que as práticas constitucionais encontram esteio. São, em essência, fruto dessa manifestação invisível, latente, por meio da qual os poderes con-stituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário) con-tinuam a obra do legislador constituinte originário, interpretando disposições vagas, ambíguas ou obscu-ras, bem como colmatando lacunas, preenchendo, as-sim, os espaços em branco do produto constitucional legislado. (BULOS, 1997, p. 172, grifo nosso)

Como esses processos de mudanças não-formais dão-se por modificações das tradições, adequação político-social, costumes, al-teração empírica e sociológica, pela interpretação judicial e pelo or-denamento de estatutos que afetam a estrutura orgânica do Estado (SILVA, 2000, p. 283), abordou-se, no capítulo anterior, o tema da her-menêutica, que nos guiará com base firme ao estudo específico da Teoria da Mutação Constitucional. Por ora, apenas diga-se que, não obstante a ressalva do professor Carlos Augusto Alcântara Machado (2005, p. 34) no sentido de não haver nenhuma identidade entre a reforma constitucional e a mutação constitucional, vislumbra-se, na verdade, que ambos os institutos – que são distintos, isso não se nega – são espécies do gênero “processos de mudanças da Constitu-

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ição”, tendo, de um lado, os “processos formais de mudança”, dos quais faz parte a reforma constitucional, e do outro os “processos informais de mudança”, materializados pela mutação constitucional.5

É importante notar essa divisão porque se para Carlos Augusto A. Machado (2005, p. 34) “a adoção dessa doutrina [das mutações con-stitucionais] poderá, ao que parece, fragilizar sobremaneira o princípio da rigidez constitucional [...]”, é possível reconhecer, todavia, ambos os processos de mudanças da Lei Maior (formal e informal, que fazem parte de um todo) condizentes com o princípio da Força Normativa da Constituição e com o seu propósito de permanência, sendo os proces-sos informais, não obstante limitados pela conformidade com a ordem constitucional, disposições perfeitamente legítimas e de acordo com o nosso ordenamento jurídico. A rigidez da Constituição não faz de suas normas conceitos jurídicos estratificantes, o que obrigaria a que toda mutação constitucional apenas desse-se ao nível das emendas e revisões. Não. Conforme aduz Carlos Britto (1999, p. 198), “[...] as normas-princípio[6], além de atribuir unidade axiológica ou material à Constituição rígida, impede que a própria rigidez venha a significar impermeabilidade conceitual dos valores de berço constitucional [...]”.

Mister dizer, por fim, ainda relacionando o processo formal com o informal, que a opção das emendas é sempre uma ultima ratio, ou seja, quando a Constituição já não cumpre a contento com o seu papel histórico e não consegue atualizar-se por via da interpretação doutrinária e jurisprudencial, ou mesmo por qualquer outra forma disposta pelo processo informal das mutações constitucionais (BRIT-

5 José Afonso da Silva (2000, p. 246/247) anota três funções da reforma constitucional, a saber: a reforma como a) instrumento de adequação entre a realidade jurídica e a rea-lidade política (e social), com vista à permanência da Constituição e da ordem consti-tucional democrática; b) mecanismo de articulação da continuidade jurídica do Estado, de modo que a adequação das normas constitucionais à realidade seja operada sem quebra da continuidade jurídica, sendo a reforma necessariamente submetida a limi-tes, para que a Constituição não perca a sua identidade como estrutura conformadora do Estado; e c) instituição básica de garantia, pois é com a reforma que a Constituição transforma-se em lex superior, fazendo com que toda lei ordinária deva ter compatibi-lidade com a lei constitucional (lex superior derogat legi inferiori). Paulo Cesar Santos Bezerra (2002) assim se refere especificamente quanto às mutações na Constituição: “as mutações constitucionais ao servirem de meio de adaptação dos textos constitu-cionais à realidade social servem de mecanismo a um maior acesso à justiça”.6 Espécies normativas assaz utilizadas pela hermenêutica e que serve de fundamento à Teoria da Mutação Constitucional.

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TO, 1999, p. 232). Isso significa que, embora o estudo das mutações constitucionais, conforme observação feita no início do capítulo, so-mente seja possível após a análise dos mecanismos formais de modi-ficação da Constituição, no momento de vislumbrar-se a reforma constitucional, deve ser feita uma análise prévia para ver se to-dos os mecanismos informais já foram utilizados, sob pena, aí sim, de ferir-se o princípio da rigidez constitucional.

É nesse sentido que Konrad Hesse (1998, p. 46, apud KUBLISCKAS, 2009, p. 151, grifo nosso) coloca: “a problemática da modificação constitucional (formal) começa lá onde as possibilidades de uma mutação constitucional terminam”. Em determinado ponto de sua obra, Wellington Márcio Kublisckas (2009, p. 167, grifo nosso e itálico do autor) também afirma:

[...] na maioria dos casos, o âmbito de incidência das reformas e das mutações constitucionais não se con-funde: as reformas constitucionais incidem sobre as normas herméticas e fechadas e as mutações constitu-cionais incidem sobre as normas elásticas e abertas. Nestes casos, as mutações constitucionais não atuam como mecanismos substitutos, mas como instru-mentos complementares das reformas constitucio-nais na tarefa do desenvolvimento e atualização da Constituição Federal.

Paradoxalmente, é dizer, por outras palavras, que os processos informais de modificação (ou se preferir, o Poder Constituinte Difu-so) estão mais presentes na prática (principalmente na prática dos Tribunais)7 do que mesmo os formais. Não por outro motivo, Carlos Britto (1999, p. 199 e 233, grifo nosso e do autor) dispõe no sentido da “rédea curta” no trato das emendas, que devem, além de passar pelo trâmite do art. 60, CF/88, observar a inaptidão de a Constituição ser atualizada por meios difusos:

[...] os princípios [instrumentos hermenêuticos] dotam o sistema constitucional de uma espontânea

7 Isso se revela, principalmente, no fenômeno da jurisprudencialização, abordado no capítulo anterior.

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flexibilidade ou jogo de cintura [...] para colocar a Constituição em dia com os novos fatos sociais. At-enuando, assim, a necessidade de alteração for-mal das normas constitucionais e contornando as dificuldades processuais que são próprias da reforma de tais normas.

[...] O recurso [às emendas] [...] é sempre uma ulti-ma ratio, por significar um atestado formal de que a Constituição, tal como posta, já não cumpre a contento o seu histórico papel. Já não é passível de atualização pela via da interpretação doutrinária e jurisprudencial, ou por qualquer outra forma do que se vem chamando de “mutações constitucion-ais” [...]. [...] na prática, as linhas que separam o Poder Constituinte do Poder Reformador são muito menos nítidas do que as linhas demarcadoras da atuação do mesmo Poder Constituinte e do Poder Legislativo comum. E porque são linhas muito menos nítidas ou mais tênues, as possibilidades de invasão pelo Poder Reformador são bem maiores. Tudo a justificar, então, a rédea curta que estamos a reclamar como postura técnico-interpretativa das emendas à Constituição.

Coaduna com todo o exposto a afirmação de Konrad Hesse (1991, p. 23, grifo nosso):

Se o sentido de uma proposição normativa não pode mais ser realizado, a revisão constitu-cional afigura-se inevitável. Do contrário, ter-se-ia a supressão da tensão entre norma e realidade com a supressão do próprio direito. Uma interpretação construtiva é sempre possível e necessária den-tro desses limites. A dinâmica existente na inter-pretação construtiva constitui condição funda-mental da força normativa da Constituição e, por conseguinte, de sua estabilidade. Caso ela venha a faltar, tornar-se-á inevitável, cedo ou tarde, a ruptura da situação jurídica vigente.

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Resta, neste momento, visto o Poder Constituinte Difuso que a estabelece, traçar breves palavras acerca dos conceitos da Mutação Constitucional, seus fundamentos e, principalmente, seus limites, concluindo, ao final, com a sua aplicação prática no Brasil.

Logo no prefácio de seu livro Mutação Constitucional, Uadi Lam-mêgo Bulos (1997) adverte que “a doutrina das mudanças difusas é bem mais complexas do que a teoria dos processos formais de alter-ação da Carta Maior, envolvendo grande riqueza de conteúdo, sendo um dos tópicos mais difíceis e fascinantes do direito constitucional”.

As Constituições são mutáveis por natureza, em face mesmo do caráter movediço e cambiante das forças sociais e políticas. Aliás, isso foi percebido pela Constituição francesa de 1793, ao declarar, em seu art. 28, que: “Um povo tem sempre o direito de rever, reformar e mu-dar sua Constituição. Uma geração não pode submeter a suas leis as gerações futuras”. José Afonso da Silva (2000, p. 280) aduz:

A modificabilidade da Constituição [que pode ser maior ou menor, a depender de se tratar de Con-stituição flexível ou rígida] constitui mesmo uma gar-antia de sua permanência e durabilidade, na medida mesma em que é um mecanismo de articulação da continuidade jurídica do Estado e um instrumento de adequação entre a realidade jurídica e a realidade política [e social], realizando, assim, a síntese dialética entre a tensão contraditória dessas realidades.

Nota-se que o objetivo maior é a busca pela estabilidade da Con-stituição, com vista à sua função essencial de assegurar os direitos fun-damentais do homem e a dignidade da pessoa humana. Ao se falar em mudança constitucional, deve vir à mente dois processos, um formal e outro informal, respectivamente: reforma constitucional (emendas e revisão) e mutação constitucional, assaz abordadas outrora.

O termo “mutação constitucional”, segundo Wellington Márcio Kublisckas (2009, p. 70), foi usado primeiramente por Paul Laband8, no livro Wandlungen der deutschen Reichsverfassung, de 1895. A par-tir de então, o fenômeno passou a ser estudado e conceituado por

8 Outros nomes da doutrina tradicional podem ser citados além de Laband, como G. Jellinek, Hsü-Dau-Lin, Heller e Konrad Hesse.

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vários autores, atentando ao fato de que norma não se confunde com texto. À guisa de um conceito acerca da mutação constitucional, além dos que já foram abordados9, cite-se, por ser inédito, o que é dado por Wellington Márcio Kublisckas (2009, p. 78), após fazer um aprofundamento sobre o tema:

Assim, com fundamento no conceito restrito at-ualmente aceito em larga escala na doutrina, é pos-sível definir a mutação constitucional como sendo o fenômeno por meio do qual, sem emendas ou revisões (processos formais de mudança da Constituição), são introduzidas, no processo de concretização/aplicação, por meio da interpretação constitucional e/ou da inte-gração pelos costumes, alterações no sentido, signifi-cado ou alcance de determinadas normas constitucio-nais (que tenham o conteúdo minimamente aberto/elástico), desde que estas alterações sejam compor-tadas pelo programa normativo, ou seja, promovam o desenvolvimento, complementação, esclarecimento etc., das normas constitucionais escritas, mas não vi-olem nem a sua letra e tampouco o seu espírito.

Merece destaque, igualmente, o conceito trazido por Anna Cân-dida da Cunha Ferraz (1986, p. 10/11):

Assim, em síntese, a mutação constitucional altera o sentido, o significado e o alcance do texto constitu-cional sem violar-lhe a letra e o espírito. [...] Trata-se, pois, de mudança constitucional que não contraria a Constituição, ou seja, que, indireta ou implicitamente, é acolhida pela Lei Maior. [...] Em resumo, a mutação constitucional, para que mereça o qualificativo, deve satisfazer, portanto, os requisitos apontados. Em primeiro lugar, importa sempre em alteração do sen-tido, do significado ou do alcance da norma constitu-cional. Em segundo lugar, essa mutação não ofende a letra nem o espírito da Constituição: é, pois, constitu-

9 Cf. na introdução deste trabalho o conceito dado por Uadi Lammêgo Bulos (1997, p. 57) – adiante também reproduzido – e citeriormente, por José Afonso da Silva (2000, p. 283).

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cional. Finalmente, a alteração da Constituição se pro-cessa por modo ou meio diferentes das formas organ-izadas de poder constituinte instituído ou derivado.

Da mesma forma, aponte-se a concepção de J. J. Gomes Cano-tilho (1995, p. 231) acerca do problema das transições ou mutações constitucionais: “considerar-se-á como transição constitucional a re-visão informal do compromisso político formalmente plasmado na constituição sem alteração do texto constitucional. Em termos inci-sivos: muda o sentido sem mudar o texto”.

Dessa forma, observe-se que só serão válidas as mutações con-stitucionais que não contrariem a Constituição e as garantias ali as-seguradas de forma rígida, sob pena de se incorrer em mutações inconstitucionais, como o diz Anna Cândida Ferraz (2009, p. 10) – opor-tunamente, perceba-se que a autora distingue dois tipos de processos que desembocam na mutação inconstitucional: os processos manifes-tamente inconstitucionais, que provocam mudanças contra a Consti-tuição, e os processos anômalos, dos quais fazem parte os fenômenos da inércia constitucional dos Poderes constituídos no atuarem a Con-stituição, do desuso de preceitos ou disposições constitucionais e da mutação tácita de normas constitucionais (FERRAZ, 1986, p. 213/251).

Para José Afonso da Silva (2000, p. 285), o conceito de mutação constitucional, destarte, deve ser restrito – nada impedindo, obvia-mente, adequações pontuais –, conforme ponderou Hesse (1962, apud SILVA, 2000, p. 285), pois do contrário a função limitadora de alguns princípios constitucionais estaria quebrantada. Lembre-se, como nota José Afonso da Silva (2000, p. 284), que Constituição flexível está para espíritos conservadores e aristocráticos – em vista da forma de governo restar elástica e indefinida – assim como Consti-tuição rígida está para a massa popular – que tem seus direitos fun-damentais protegidos do arbítrio do poder.

Como fundamento das mutações constitucionais, segundo José Afonso da Silva (2000, p. 285), tem-se o denominado poder consti-tuinte difuso, também já mencionado outrora. Apenas tenha-se o seguinte cuidado apontado por Anna Cândida Ferraz (1986, p. 10):

Tais alterações constitucionais, operadas fora das modalidades organizadas de exercício do poder con-

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stituinte instituído ou derivado, justificam-se e têm fundamento jurídico: são, em realidade, obra ou man-ifestação de uma espécie inorganizada do poder con-stituinte, o chamado poder constituinte difuso, na feliz expressão de Burdeau. [...] Destina-se a função consti-tuinte difusa a completar a Constituição, a preencher vazios constitucionais, a continuar a obra do consti-tuinte. Decorre diretamente da Constituição, isto é, o seu fundamento flui da Lei Fundamental, ainda que implicitamente, e de modo difuso e inorganizado.

Para José Afonso da Silva (2000, p. 286/287), costume constitu-cional, preenchimento de lacunas e o desuso de competências con-stitucionais não são vetores onde se embarcam as mutações constitu-cionais. Isso porque, quanto aos costumes, difícil fica de se referir a eles num regime de Constituição rígida. Quanto às lacunas, adverte que simplesmente o que não está na Constituição é porque assim o quis o Poder Constituinte. Por último, em relação ao desuso, afirma que o não uso das competências constitucionais não importa desqualificá-las, pois a qualquer tempo poderão ser utilizadas novamente.

Avançando no tema, devem-se fixar quais os tipos de mu-tações constitucionais e, consequentemente, os seus limites. Mais uma vez se vale aqui do multicitado José Afonso da Silva (2000, p. 288), para quem são

[...] válidas as mutações constitucionais provenientes: a) dos atos de complementação constitucional [e.g. atos jurídicos normativos – leis, regulamentos]; b) da interpretação e da construção constitucionais [e.g. atos jurídicos jurisdicionais - basicamente, as sentenças dos Tribunais Constitucionais]; c) das práticas político-soci-ais, convertidas em convenções constitucionais.10

Visto isso, cabe analisar cada uma dessas hipóteses, começando

10 José Afonso da Silva (2000) utiliza-se das lições de Pedro de Vega (1991, p. 189, apud SILVA, 2000, p. 288), para quem são capazes de produzir mutações constitucionais: a) os atos normativos; b) os costumes, que, em verdade, ele não aceita como forma de mutação constitucional válida, senão como um modo de destruir os fundamentos da organização constitucional; c) convenções constitucionais.

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pelos atos de complementação constitucional. Esses são atos do Poder Público que visam à complementação de normas constitucionais, de-notando “[...] que só são válidas mutações deles emanadas quando expandem normas constitucionais que requeiram integração para sua aplicação” (SILVA, 2000, p. 288).

Citem-se alguns exemplos de normas que precisam de comple-mentação: é o caso da lei que define os crimes de responsabilidade, prevista no art. 85, parágrafo único da CF/88, sem a qual o princípio constitucional da responsabilidade não é realizado; é a lei que pre-ceitua o sistema eleitoral, como o alistamento, voto obrigatório, su-frágio universal, representação proporcional, partidos políticos, tudo constante nos art. 14, 17 e 45 da CF/88, podendo ainda se mencionar a previsão de lei complementar sobre inelegibilidades (art. 14, § 9º). “São hipóteses de legislação que desdobra o conteúdo das normas constitucionais” em que a lei “[...] se caracteriza como desdobramen-to necessário do conteúdo da Constituição” (SILVA, 2000, p. 289).11

Não somente a lei que desenvolve o conteúdo normativo con-stitucional, sendo considerada por isso “como um instrumento de realização da eficácia da Constituição, exercendo a função trans-formadora da sociedade, alterando-lhe o controle social, impondo mudanças sociais democráticas” (SILVA, 2000, p. 289). Basta que se lembre que o art. 196 da CF/88 garante o direito à saúde mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução dos riscos de doen-ças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Nasce daí também outro fundamento: o de que, para efetivar a vontade constitucional, muitas vezes tem que se completar a norma constitucional. Se essa integração não ocorre, ter-se-á um vazio, uma

11 Vale, contudo, a ressalva de Canotilho (2000, p. 1192/1193, apud KUBLISCKAS, 2009, p. 154/155): “Algumas concepções que defendem a idéia de constituição como con-centrado de princípios, concretizados e desenvolvidos na legislação infraconstitucio-nal, apontam para a necessidade da interpretação da constituição de acordo com as leis, a fim de encontrar um mecanismo constitucional capaz de salvar a constituição face a pressão sobre ela exercida pelas complexas e incessantemente mutáveis ques-tões económicos-sociais [sic]. Esta leitura da constituição de baixo para cima, justifica-dora de uma nova compreensão da constituição a partir das leis infraconstitucionais, pode conduzir à derrocada interna da constituição por obra do legislador e de outros órgãos concretizadores, e à formação de uma constituição legal paralela, pretensa-mente mais próxima dos momentos ‘metajurídicos’ (sociológicos e políticos)”.

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omissão, uma inércia, que, como apontou Carlos Augusto Alcânta-ra Machado (1999, p. 135), promove uma mutação inconstitucional. Por outro lado, por que não deixar que, nesses casos, haja uma inte-gração feita pelo Judiciário? Isso, por certo, será resultado de autên-tica mutação constitucional, que completará a eficácia da Constitu-ição, desde que não distorça o seu espírito.

Quanto à interpretação e construção constitucionais, finque-se a seguinte premissa: “[...] a interpretação, especialmente a judicial, exerce papel fundamental de adaptação das normas constitucion-ais às exigências de novos conceitos da realidade por elas pensa-das” (SILVA, 2000, p. 291), conquanto não viole ou destrua a Con-stituição. Em relação especificamente à construção constitucional, significa dizer que esse é um outro processo fecundo de adaptação dos textos constitucionais à realidade em transformação constante. Nas palavras de José Afonso da Silva (2000, p. 293), “a construção constitucional é uma forma de interpretação fecunda na medida em que, partindo de uma compreensão sistemática de princípios e nor-mas constitucionais, constrói instituições explicitamente não pre-vistas”. Cita-se como exemplo disso a criação do controle de con-stitucionalidade difuso das leis, pela sentença proferida pelo Chief Justice Marshall, em 1803, que trouxe à baila a teoria da nulidade do ato legislativo que contrarie a Constituição12.

Embora essas considerações, José Afonso da Silva (2000, p. 294) admite que tal construção constitucional não é tão fértil na realidade do Judiciário brasileiro, o que, entretanto, pode estar mu-dando, em virtude da intensificação da jurisprudencialização e do ativismo judiciário, corroborando, para tanto, a nova tendência do STF em sede de controle difuso.

Por fim, as práticas político-sociais, onde se manifestam as chamadas convenções constitucionais: “As convenções são normas extrajurídicas formadas por meio de precedentes políticos que se tornaram práticas costumeiras relativamente às atribuições e funcionamento dos poderes” (SILVA, 2000, p. 295). É o que se chama de “consenso costumeiro”. Ocorre, normalmente, no âmbito de Con-stituições não-escritas e flexíveis, podendo, porém, ocorrer também nos regimes de Constituição rígida – mas aqui, em geral, sempre

12 Cf. o trecho do voto do Juiz Marshall citado no capítulo 3, subcapítulo 3.2.

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importam desvios na reta compreensão das normas constitucion-ais. Exemplo maior dessas práticas no Brasil é o abuso das medidas provisórias, editadas, muitas vezes, sem a observância de seus pres-supostos, o que revela prática contrária à função legislativa do Con-gresso Nacional, ficando este ancorado em razão de ter de apreciá-la, sob pena de se entrar em regime de urgência.

A doutrina admite as mutações constitucionais conquanto se tenham presentes alguns limites indispensáveis para a sua confor-mação com a ordem constitucional, com vista à maior defesa da Constituição. E para fazer prevalecer a vontade da Constituição, im-portantes as decisões judiciais nesse sentido, como no caso de o Ju-diciário impedir a reiteração indefinida de medidas provisórias.

Konrad Hesse (1962, p. 99 e 101/102, apud SILVA, 2000, p. 297), consoante explicação de José Afonso da Silva (2000), se preocupou em estabelecer limites às mutações constitucionais, nos seguintes termos:

A mutação constitucional e seus limites só se consegue entender com clareza quando a modifi-cação do conteúdo da norma é compreendida como mudança “no interior” da norma constitucional mes-ma, não como conseqüência de desenvolvimento produzido fora da normatividade da Constituição, e cuja “mutação” em normatividade estatal tampouco se pode explicar satisfatoriamente quando se parte de uma relação de coordenação correlativa entre nor-malidade e normatividade. [...] Onde a possibilidade de uma compreensão lógica do texto da norma ter-mina ou onde uma determinada mutação constitu-cional apareceria em clara contradição com o texto da norma, terminam as possibilidades da interpre-tação da norma e, com isso, as possibilidades de uma mutação constitucional.

Para ele, o limite insuperável da interpretação constitucional é a própria Constituição e sua normatividade: “onde o intérprete passa por cima da Constituição, ele não mais interpreta, senão ele modifica ou rompe a Constituição” (HESSE, 1983, p. 69/70, apud KUBLISCKAS, 2009, p. 150). De seus estudos, Wellington Márcio Kublisckas (2009, p. 150/151) extrai três ideias básicas: 1) as mutações constitucionais são

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alterações produzidas dentro da norma constitucional; 2) as mutações constitucionais não são ilimitadas juridicamente na medida em que a aplicação da Constituição deve sempre estar vinculada às normas postas; 3) os limites das mutações constitucionais são justamente as possibilidades de compreensão da norma constitucional que não entrem em conflito com o programa normativo. Arremata o referido autor, criticando opinião divergente logo a mais esboçada:

Contudo, há outros limites além daqueles de na-tureza meramente subjetiva do aplicar que impedem que as mutações constitucionais ocorram indiscrimi-nadamente e em contrariedade com a Constituição. Com efeito, uma mutação constitucional apenas é aceitável quando o ato que a origina (i) não contraria de modo evidente a letra ou o espírito da Constitu-ição; (ii) está devidamente fundamentado nos precei-tos constitucionais interpretados; (iii) é racional; e (iv) é legitimamente aceito pela comunidade (jurídica e não-jurídica). (KUBLISCKAS, 2009, p. 153)

Logo, não deixa de ser interessante a constatação de Wellington Márcio Kublisckas (2009, p. 153/156) de duas grandes cadeias de limitações das mutações constitucionais: a de ordem subjetiva e a de ordem objetiva.

Os limites subjetivos são a postura ética do aplicador, que deve ter uma consciência de não estar violando as normas constitucion-ais, e a consciência jurídica geral, já que o aplicador da Constituição, mantendo relação de recíproca retroalimentação (feedback) com os demais atores sociais, não possui total liberdade na definição do sentido, significado e alcance das normas constitucionais, vincu-lando-se, por exemplo, à ciência jurídica, bibliografia especializada, opinião pública, etc.

Por sua vez, os limites objetivos são o respeito ao programa nor-mativo – em que “interpretações que nitidamente não são acolhidas pelo programa normativo e que, portanto, contrariam o texto e/ou o espírito da Constituição não podem ser aceitas como legítimas mutações constitucionais”13 (KUBLISCKAS, 2009, p. 155) – e a ne-

13 Aduz Wellington Márcio Kublisckas (2009, p. 154/155), trazendo lições de Canoti-

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cessidade de as mutações constitucionais serem fundamentadas e razoáveis, pelo que o hermeneuta deve utilizar argumentações com-preensíveis e racionalmente sustentáveis, revelando-se obrigatória a motivação14, aduzindo, ainda, que, “por outro lado, não basta que o ato ou a decisão que introduz uma mutação constitucional seja moti-vado. Ele também deve ser racional de modo a que seja possível fazer o seu controle” (KUBLISCKAS, 2009, p. 155).

Não obstante tudo quanto dito até agora acerca dos limites da mutação constitucional, uma visão diferente acerca da questão é dada por Uadi Lâmmego Bulos (1997, p. 87/92), sendo essa con-cepção mais adequada aos propósitos do presente trabalho15. Isso porque o autor entende que não é possível se fixar limites jurídicos claros e precisos para a mutação constitucional, dada a natureza in-formal do fenômeno, chegando mesmo a não descartar, se o caso, alterações na letra dos preceitos supremos do Estado:

[...] a prática constitucional evidencia a im-possibilidade de traçarmos, com exatidão, as limitações a que está sujeito o poder constituinte difuso, de que nos fala Burdeau, responsável pela ocorrência daquelas alterações informais, que,

lho (2000, p. 1192/1193, apud KUBLISCKAS, 2009, p. 154/155): “Conforme salienta J. J. Gomes Canotilho, a mutação constitucional deve considerar-se admissível quando se reconduz a um problema normativo-endogenético, mas não quando ela é resul-tado de uma evolução normativamente exogenética. Nesse sentido, ‘problema mais complicado é o que se levanta quando existe uma radical mudança de sentido das normas constitucionais [...]. Perspectiva diferente se deve adoptar [sic] quanto às ten-tativas de legitimação de uma interpretação constitucional criadora que, com base na força normativa dos fatos, pretenda ‘constitucionalizar’ uma alteração constitucional em inequívoca contradição com a constitutio scripta. [...] Reconhece-se, porém que en-tre uma mutação constitucional obtida por via interpretativa de desenvolvimento do direito constitucional e uma mutação constitucional inconstitucional há, por vezes, diferenças quase imperceptíveis, sobretudo quando se tiver em conta o primado do legislador para a evolução constitucional e a impossibilidade de, através de qualquer teoria, captar as tensões entre a constituição e a realidade constitucional”.14 Lembre-se que todas as decisões judiciais devem ser públicas e fundamentadas, sob pena de nulidade (art. 93, IX, CF/88).15 Essa é a concepção mais adequada aos propósitos deste trabalho à medida que dis-solve uma das críticas feitas à nova perspectiva do STF em controle difuso, qual seja, a de que pretende-se mudar o texto da Constituição, o que pretensamente revelar-se-ia como mutação inconstitucional.

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se não alteram a letra dos preceitos supremos do Estado, modificam-lhes a substância, o sentido, o significado e o alcance. Em verdade, não é possível determinar os limites da mutação constitucional, porque o fenômeno é, em essência, o resultado de uma atuação de forças elementares, dificilmente ex-plicáveis, que variam conforme acontecimentos deri-vados do fato social cambiante, com exigências e sit-uações sempre novas, em constante transformação. (BULOS, 1997, p. 87/88, grifo nosso)

Baseia-se, para tanto, nas anotações de Hesse16 (1992, p. 90, apud BULOS, 1997, p. 88), afirmando que

Uma teoria jurídica dos limites da mutação con-stitucional só seria possível, ressalta Hesse, “mediante el sacrificio de uno de los presupuestos metódicos básicos del positivismo: la estricta separación entre ‘Derecho’ y ‘realidad’, así como los que constituye su consecuencia, la inadmisión de cualesquiera consid-eraciones históricas, políticas y filosóficas del proceso de argumentación jurídica”. (BULOS, 1997, p. 88)

Ademais, aponta que Heller (1968, apud BULOS, 1997, p. 89) ad-mitiu que a mutação constitucional encontra limitações na própria normatividade da Constituição: “Entende que uma mudança de sig-nificado na norma constitucional encontra-se adstrita à normalidade dos fatos, a qual não pode renegar por completo a normatividade, pois ambos os elementos estão coordenados entre si, formando a tensão entre o sein [ser] e o soler [dever ser]” (BULOS, 1997, p. 89). E continua:

Ao prospectar que a mutação constitucional en-contra seu limite na própria normatividade da Con-stituição, Heller utilizou um pensamento genérico e difícil de precisar, sem pontos de apoio que permitam uma concretização do problema. Estamos que é im-

16 Não se pode deixar de notar que o mesmo Konrad Hesse serviu de fundamento tanto para as concepções de José Afonso da Silva (2000) quanto para as de Uadi Lam-mêgo Bulos (1997).

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possível estipular critérios exatos para o deline-amento dos limites da mutação constitucional. Isso porque uma Constituição é um organismo vivo, em cujo esteio se encontra a autoconsciência de um povo, assentado em uma base territorial definida e submetido a um governo soberano, numa determi-nada época histórica, sujeita a fatores sociais cambi-antes. Como a doutrina das mutações constitucionais é o reflexo, teórico e prático, desses fatores sociais cambiantes, ela se produz quando a normatividade constitucional se modifica pelo influxo de aconteci-mentos que não afetam a sua forma, porém transmu-tam seu conteúdo. Conseguintemente, o fenômeno é involuntário e intencional, como disseram La-band e Jellinek, e, destarte, não se pode imprimir-lhe uma exatidão, a ponto de prever-se a unanimi-dade dos casos de mutação constitucional que a experiência possa apresentar. Diversamente da reforma constitucional, a mudança difusa da Lei maior não segue limites previstos pelo legislador, nem tampouco formas expressas e sacramenta-das. Surge espontaneamente, de modo sub-reptí-cio, sem previsões de quando irá ocorrer. (BULOS, 1997, p. 89/90, grifo nosso e itálico do autor)

Estendendo a função de interpretar as normas constitucionais aos três Poderes, afirma contundentemente Georg Jellinek (1991, p. 15/16, apud BULOS, 1997, p. 90/91):

No sólo el legislador puede provocar semejantes mutaciones, también pueden producirse de modo efectivo mediante la práctica parlamentaria, la admin-istrativa o gubernamental y la de los tribunales. Han de interpretar las leyes y también las normas constitucion-ales, pero de modo subrepticio una ley constitucional puede adquirir, poco a poco, un significado totalmente distinto al que tenía en el sistema originario.

Com efeito, Uadi Lammêgo Bulos (1997, p. 91, grifo nosso e itáli-co do autor) conclui que os limites existentes são subjetivos, ou seja,

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a consciência do intérprete – postura ética do aplicador – em não estar desrespeitando a norma constitucional, tendo, assim, ineliminável dever ético para com todo o corpo social, sendo, porém, “inegável que esse limite subjetivo [...], através de interpretações maliciosas e trau-matizantes, não pode ser levado às últimas conseqüências, diante da realidade cotidiana dos diversos ordenamentos constitucionais”:

Diante de tudo isso, as mudanças informais da Constituição não encontram limites em seu ex-ercício. A única limitação que poderia existir – mas de natureza subjetiva, e, até mesmo, psicológica – seria a consciência do intérprete de não extrap-olar a forma plasmada na letra dos preceptivos supremos do Estado, através de interpretações deformadoras dos princípios fundamentais que embasam o Documento Maior. Assim, evitar-se-iam as mutações inconstitucionais, e o limite, nesse caso, estaria por conta da ponderação do intérprete, ao empreender o processo interpretativo que, sem violar os mecanismos de controle de constitucionalidade, adequaria a Lei Máxima à realidade social cambiante.

Toda essa concepção distinta de Uadi Lammêgo Bulos (1997) acerca dos limites da mutação constitucional reflete, como não pode-ria deixar de ser, no conceito por ele elaborado, reproduzido abaixo, o qual não traça como limite do fenômeno o texto da Constituição, senão a própria Constituição em sistema – um sistema constitucional mutante, complete-se:

Assim, denomina-se mutação constitucional o processo informal de mudança da Constituição, por meio do qual são atribuídos novos sentidos, conteú-dos até então não ressaltados à letra da Lex Legum, quer através da interpretação, em suas diversas mo-dalidades e métodos, quer por intermédio da con-strução (construction), bem como dos usos e cos-tumes constitucionais. (BULOS, 1997, p. 57)

De uma forma ou de outra, no final, vale a ponderação feita por Anna Cândida da Cunha Ferraz (1986, p. 10): “Trata-se, pois, de mu-

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dança constitucional que não contraria a Constituição, ou seja, que, indireta ou implicitamente, é acolhida pela Lei Maior”, sendo que tudo que for manifestamente contrário a ela não é uma mutação constitu-cional, senão uma mutação inconstitucional. Ou, ainda, aproveitan-do-se da tautológica, porém espirituosa advertência do Juiz Marshall (apud KUBLISCKAS, 2009, p. 152), “não se pode perder de vista que, ao interpretar a Constituição, o que se está interpretando é a Consti-tuição”. Contudo, havendo mutação inconstitucional, Anna Cândida da Cunha Ferraz (1986, p. 214) assevera: “O único tipo de controle que poderá incidir sobre tais mutações é o controle constitucional não organizado, isto é, o acionado por grupos de pressão, pela opinião pública, pelos partidos políticos, etc.”.

2.1 Aplicação da Mutação Constitucional no Brasil pós-88

Uma vez estudados os aspectos teóricos da mutação constitu-cional, passa-se analisar tal mecanismo de alteração sob a realidade constitucional no Brasil pós-88. Essa abordagem se revela especial-mente importante devido à junção de vários elementos peculiares – como a elaboração da Constituição de 1988 durante o período de consolidação e intensificação da globalização, além da incorpo-ração de interesses específicos e conjunturais à época dos trabal-hos da Assembleia Nacional Constituinte (lembre-se que o texto constitucional não partiu de um projeto-base oficial, sendo resul-tado da aglutinação de projetos parciais). Como adverte Wellington Márcio Kublisckas (2009, p. 163),

A junção dos elementos mencionados anterior-mente [...] deu origem ao surgimento de inúmeros pontos de tensão dentro do texto constitucional bra-sileiro vigente, os quais, de tempos em tempos, se intensificam e passam a exercer forte pressão no sen-tido da alteração da Constituição. Com isso se explica, ao menos em partes, a importância teórica do tema e se justifica a enorme incidência prática dos mecanis-mos de modificação constitucional no Brasil pós-88.

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Revela-se, diante dessa conjuntura, que um dos pontos de tensão na Constituição de 1988 é o art. 52, X, assaz delineado. Tanto o é assim que, como já dito, Gilmar Mendes (2009a, p. 32) entende “que o insti-tuto da suspensão pelo Senado assenta-se hoje em razão exclusiva-mente histórica”, restando o tema aberto para inúmeras controvérsias.

A Constituição brasileira se amolda à teoria da mutação constitu-cional em virtude de sua abertura e elasticidade, que decorrem de três fatores: 1) o caráter altamente principiológico e estrutural de seu tex-to, em especial quanto aos temas dos direitos fundamentais, ordem econômica, ordem social, etc.; 2) a presença de inúmeras normas sujei-tas à complementação (normas de eficácia contida e de eficácia limi-tada); 3) a existência de vários dispositivos antagônicos, cuja aplicação de uma hermenêutica harmonizadora diante de conceitos indetermi-nados, lacunas normativas (descobertas e ocultas) e os próprios dis-positivos antagônicos entre si. “Assim, os dispositivos constitucionais dotados de suficiente abertura e elasticidade [...] podem perfeitamente ser (e têm efetivamente sido) modificados por meio da atuação dos mecanismos informais de alteração da Constituição” (KUBLISCKAS, 2009, p. 164/165), respeitando-se, sempre, os superprincípios con-stitucionais – princípio da constitucionalidade, princípio do Estado Democrático (Constitucional) de Direito e princípio da proteção dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana.

Dessa forma, a conjugação do caráter aberto de grande parte das normas da Constituição Federal brasileira de 1988 com o fortalecimen-to do STF como agente concretizador da Lei Fundamental – além do aperfeiçoamento dos mecanismos de controle de constitucionalidade e a alteração da composição do Supremo – importam na relevância do tema acerca da mutação constitucional no Brasil pós-88.

Alguns exemplos práticos em que o STF introduziu mutações con-stitucionais nas normas da Constituição de 1988 podem ser citados, com o escólio de Wellington Márcio Kublisckas (2009, p. 251/261):

I. Mutação constitucional e direitos funda-mentais: a) HC nº 82.424/RS e a definição do alcance do termo “racismo” (art. 5º, XLII); b) HC nº 82.959-7/SP e a progressão de pena nos crimes hediondos (art. 5º, XLVI); c) RE nº 251.445/GO e a abrangência do termo “casa” (art. 5º, XI); d) HC nº 74.051-3/SC e a proteção

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do estrangeiro não residente no Brasil (art. 5º, caput);

II. Mutação constitucional e princípio federa-tivo: a) ADIN nº 276/AL e a adoção das regras do pro-cesso legislativo da União pelos Estados-membros (art. 11 do ADCT); b) ADIN nº 1.704/MT, ADIN nº 3.323/DF e o art. 22, XI, da Constituição Federal; c) ADIN nº 2.948/MT e a competência para legislar sobre bingos (art. 22, XX); d) ADIN nº 3.035 MC/PR e a competência sobre produtos geneticamente modificados (art. 22, I, VII, X e XI, e art. 24, I e VI); e) alcance das competências municipais – “assuntos de interesse local” (art. 30, I): AI nº 622.403-AgR e RE nº 182.976 – que reafirmaram que o Município é competente para regular o horário do comércio local; RE nº 397.094 – que fixou que o Município detém competência para impor limites ao tempo de espera em fila dos usuários dos serviços prestados pelos cartórios; ADIN nº 1842/RJ e ADIN nº 2077/BA – referente à definição da competência para saneamento básico, como a prestação dos serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário em regiões metropolitanas;

III. Mutação constitucional e regras do pro-cesso democrático: Nesse ponto, o STF tem pro-movido uma reforma política informal, ao definir, independentemente da atuação do Parlamento, algumas regras importantes ao funcionamento do jogo democrático: a) RE nº 197.917-8/SP e a fixação proporcional do número de vereadores (art. 29, IV); b) MS 26.603-1/DF e a fidelidade partidária (art. 17, § 1º);

IV. Reclamação nº 4.335-5/AC, art. 52, X, da Constituição de 1988 e os limites da mutação constitucional: esse é o caso no qual o STF vem tra-tando, desde 2007, de maneira mais direta o fenô-meno da mutação constitucional, e será objeto de todos os próximos tópicos.

Pode ser acrescida nessa lista, embora não seja mudança de nor-ma da Constituição, a emblemática mutação constitucional ocorrida

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no texto do art. 514 do Código de Processo Penal, feita pelo Superior Tribunal de Justiça através da Súmula 330, DJ 20/09/2006.

Por fim, Paulo Gustavo Gonet Branco (in MENDES; COELHO; BRANCO, 2009c, p. 263, nota de rodapé) traz exemplo de mutação constitucional em relação ao fenômeno da inflação, que levou a uma visão diferente do princípio constitucional da legalidade. Isso porque, num primeiro momento em que a corrosão da moeda não era extrema, a jurisprudência afirmava que “a correção monetária so-mente pode ocorrer em face de autorização legal” (STF, RE 74.655, DJ 01/06/1973). Após, com o agravamento da situação monetária, entendeu-se que o princípio da legalidade conviveria com a correção monetária mesmo sem lei expressa nos casos de dívida de valor (STF, RE 104.930, DJ 10/05/1985). Com o descontrole inflacionário, a cor-reção monetária passa a ser aplicada em qualquer dívida, independ-entemente de previsão legal (STJ, REsp 2.122, RSTJ, 11/384):

CORREÇÃO MONETÁRIA - MÚTUO RURAL - IN-CIDÊNCIA - EVOLUÇÃO DOS FATOS ECONÔMICOS E CONSTRUÇÃO PRETORIANA - REGRA MORAL - INVOCAÇÃO DE OFENSA À LEI Nº 4.829/65, AO DL Nº 167/67 E AO ART. 145, II, CCB – DISSÍDIO NOTÓRIO - RECURSO DESPROVIDO

I - Mesmo que se admita que a intenção ini-cial do legislador tenha sido a de excluir a correção monetária dos mútuos rurais, a evolução dos fatos econômicos tornou insustentável a sua não incidên-cia, sob pena de prestigiar-se o enriquecimento sem causa, recorda ainda a lição de que a regra moral está acima das leis positivas. II - Construção preto-riana e doutrinária, antecipando-se ao legislador, adotando a correção como imperativo econômico, jurídico e ético indispensável à justa composição dos danos e ao fiel adimplemento das obrigações, dispensou a prévia autorização legal para a sua aplicação. III - Conhece-se do recurso especial so-bre a alínea c do art. 105-III da Constituição, mesmo quando a parte não faz a demonstração analítica das circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados, se notório o dissídio na matéria,

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dado o escopo do recurso em assegurar a unidade do direito federal. (STJ - 4ª T.; Rec. Esp. nº 2.122-MS; rel. Min. Sálvio de Figueiredo; j. 14.05.1990; v.u.; DJU, Seção I, 11.06.1990, p. 5.361, ementa, grifo nosso)

2.2 Aspectos da Divergência da Nova Perspectiva do STF em sede de Controle Difuso: Mutação Constitucional Vs. Mutação Inconstitucional

A Reclamação 4.335-5/AC tem tudo para quebrar paradigmas em relação ao controle difuso. No ano de 2006, a Defensoria Pública do Estado do Acre ajuizou a referida Reclamação no STF (Rel. Min. Gilmar Mendes) contra a decisão do Juiz de Direito da Vara das Execuções Penais da Comarca de Rio Branco/AC, que indeferiu o pedido de pro-gressão de regime em favor de vários réus que cumprem penas de re-clusão em regime integralmente fechado, em decorrência da prática de crimes hediondos, fazendo afixar, até mesmo, nas dependências do fórum, comunicado com o seguinte teor, conforme se extraí do voto do Ministro Gilmar Mendes:

Comunico aos senhores reeducandos, familiares, advogados e comunidade em geral, que A RECENTE DECISÃO PLENÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDER-AL proferida nos autos do “habeas corpus” nº 82.959, A QUAL DECLAROU A INCONSTITUCIONALIDADE DO DISPOSITIVO DA LEI DOS CRIMES HEDIONDOS QUE VEDAVA A PROGRESSÃO DE REGIME PRISIONAL (ART. 2º, § 1º DA Lei 8.072/90), SOMENTE TERÁ EFICÁCIA A FAVOR DE TODOS OS CONDENADOS POR CRIMES HEDIONDOS OU A ELES EQUIPARADOS QUE ESTE-JAM CUMPRINDO PENA, a partir da expedição, PELO SENADO FEDERAL, DE RESOLUÇÃO SUSPENDENDO A EFICÁCIA DO DISPOSITIVO DE LEI declarado incon-stitucional pelo Supremo Tribunal Federal, nos ter-mos do art. 52, inciso X, da Constituição Federal.

O fundamento da reclamação foi que estaria sendo infringida a decisão do STF proferida nos autos do HC nº 82.959/SP (Rel. Min.

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Marco Aurélio, j. 23/02/2006, DJ 01/09/2006), em que a Corte afastou a vedação da progressão de regime aos condenados pela prática de crime hediondo, ao considerar inconstitucional o art. 2º, § 1º (origi-nal), da Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos)17. Sustentam os rec-lamantes, pois, que a denegação do pedido de progressão de regime desrespeita a decisão do STF (a ratio decidendi), mesmo tendo sido proferido julgamento em sede de controle difuso de constitucionali-dade, através do HC 82.959.

A Reclamação 4.335 não foi ainda julgada em definitivo pelo STF, estando, neste momento, empatada a votação (2 x 2). No entanto, os votos já proferidos e o tema em questão lançaram discussões acerca da ocorrência ou não da mutação constitucional no dispositivo do art. 52, X, CF/88, que diz, textualmente, que “compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declara-da inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”.

A partir disso, formaram-se as duas correntes bem definidas. Em resumo, a corrente a favor da modificação da competência do Senado para apenas dar publicidade às decisões do STF que suspendam a execução de lei declarada inconstitucional18 baseia-se nas alterações no sistema de controle de constitucionalidade vigente no Brasil – cor-rente dos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau, Dirley da Cunha Júnior (2010), André Ramos Tavares (1998), Teori Albino Zavascki (2001, apud LENZA, 2011) e Lúcio Bittencourt (1968, apud LENZA, 2011).

Esse movimento, defendido veementemente por Gilmar Mendes19, visa a, dessa forma, atribuir eficácia erga omnes às decisões de inconstitucionalidade proferidas em sede de controle incidental ou concreto, que já se revestiriam, desde a sua publicação, de eficácia

17 A Súmula Vinculante nº 26/2009 pôs uma pá de cal no assunto, e mesmo a reforma na legislação em 2007, restando ainda pendente a questão de fundo acerca da mu-tação constitucional do art. 52, X, CF/88.18 Poder-se-ia pensar em outras soluções nesse mesmo sentido, como atribuir a com-petência tanto para o STF quanto para o Senado Federal para suspender a lei declara-da inconstitucional, de forma que não transformasse aquele em mero chancelador das decisões deste, embora tivesse que publicar a manifestação do Supremo quando este agisse suspendendo a lei inconstitucional. No entanto, na prática dá no mesmo, pois o que se está visando aqui é a aplicação da teoria da nulidade e, com ela, o STF teria como dar efeitos gerais, retroativos e vinculantes mesmo sem disposição do Senado.19 Cf. análise completa do tema feita por Gilmar Mendes no capítulo 3, subcapítulo 3.3.

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geral e vinculante (teoria da nulidade da lei inconstitucional). Para o Ministro-relator da Rcl. 4.335,

A exigência de que a eficácia geral da declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tri-bunal Federal fique a depender de uma decisão do Senado Federal, introduzida entre nós com a Con-stituição de 1934 e preservada na Constituição de 1988, perdeu grande parte do seu significado com a introdução do controle abstrato de normas. (STF, voto do Min. Rel. Gilmar Mendes, DJ 09/02/2007, p. 31/32)

Na vertente oposta, representada pelos Ministros Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa, defendeu-se que a interpretação tradicional da regra constitucional deve ser mantida, na medida em que (i) mesmo com o advento do controle concentrado, a Consti-tuição Federal em nenhum momento teria abandonado o sistema difuso, sendo, portanto, indispensável a participação do Senado Federal a fim de se suspender as normas declaradas inconstitucion-al in concreto, além de (ii) não estarem presentes dois importantes requisitos para a configuração da mutação constitucional, quais se-jam, o decurso do tempo e o desuso definitivo do dispositivo (cf. KUBLISCKAS, 2009, p. 260). Convergem aqui Lenio Luiz Streck, Mar-celo Andrade Cattoni de Oliveira e Martonio Mont’Alverne Barreto Lima (2007), seguidos por Marcelo Novelino (2009), Pedro Lenza (2011), Wellington Márcio Kublisckas (2009), o professor da Univer-sidade Católica de Petrópolis – UCP, Roberto Wagner Lima Nogueira (2008), e o professor Mestre da Universidade Federal de Sergipe – UFS, Carlos Augusto Alcântara Machado20.

Para essa corrente, destarte, sendo o art. 52, X, CF/88, uma norma hermética e sendo a mutação constitucional jungida pelo respeito à letra e ao espírito da Constituição, tal dispositivo somente pode ser alterado pelos mecanismos formais de modificação constitucional,

20 Palestra proferida no XVII Simpósio Transnacional de Estudos Científicos (Constitu-cionalismo e Relações Internacionais – 06 a 10 de outubro de 2008, Universidade Fed-eral de Sergipe – UFS), cujo tema apresentado em 06/10/2008 pelo professor Carlos Augusto Alcântara Machado foi A Constituição de 1988 como Obra Inacabada. Cf. nota da introdução correlata.

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sob pena de se incorrer em hipótese de mutação inconstitucional ou mesmo de inexistência de qualquer mutação.21

Especificamente para Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cat-toni de Oliveira e Martonio Mont’Alverne Barreto Lima (2007), con-soante instigante artigo sobre o tema, o STF não fez ou está a fazer mutação constitucional, pois mutação constitucional, segundo sus-tentam os autores, não poderia jamais implicar alteração do texto ou a sua derrogação, ou seja, a mudança da norma com a mudança do texto. Afirmam que a pretensão dos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau implicaria “não a atribuição de uma (nova) norma a um texto (Sinngenbung), mas, sim, a substituição de um texto por outro (con-struído pelo Supremo Tribunal Federal)”.

No trabalho, intitulado A Nova Perspectiva do Supremo Tribunal Fed-eral sobre o Controle Difuso: Mutação constitucional e Limites da Legitimi-dade da Jurisdição Constitucional, os autores tratam de diversos assuntos, como o controle de constitucionalidade, poder constituinte, equilíbrio entre os Podres da República e sistema federativo, tendo como objeto de estudo a famigerada Reclamação 4.335-5/AC e a possível ruptura paradigmática no plano da jurisdição constitucional no Brasil.

Eles propõem saber se é “possível atribuir efeito erga omnes e vinculante às decisões emanadas do controle difuso, dispensando-se a participação do Senado Federal ou transformando-o em uma es-pécie de diário oficial do Supremo Tribunal Federal em tais questões” (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007), porém já firmando que, caso prev-aleça a tese de Gilmar Mendes, haverá, na verdade, a substituição de um texto pelo outro, e não a atribuição de um novo sentido normativo ao texto, ou seja, haverá uma alteração do próprio texto constitucional. Conforme já adiantado parágrafos atrás, Lenio Luiz Streck juntamente com os coautores não concordam com os votos proferidos pelos Min-istros Gilmar Mendes e Eros Grau, motivo pelo qual buscam outras al-ternativas teóricas a fim de contribuir com o acirrado debate.

Quanto ao argumento de que a Reclamação cabe contra as teses do Supremo, conforme defendeu Gilmar Mendes em seu voto, citan-do a Rcl. 1.880, explicam que o STF julga pelo Recurso Extraordinário “as causas decididas em única ou última instância”, ou seja,

21 Pode-se até dizer que o conceito de mutação inconstitucional engloba a própria noção de inexistência de mutação, já que se é inconstitucional é porque não é propriamente mutação.

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julga a aplicação dada à Constituição em situações jurídicas concretas, e não meras teses sobre a con-stitucionalidade ou inconstitucionalidade de leis e de atos normativos. O Supremo Tribunal, aqui, não fun-ciona nem mesmo como mera corte de cassação, mas como corte de apelação, cabendo-lhe julgar tanto o error in procedendo quanto o error in iudicando. Assim, o resultado da atuação do Supremo Tribunal Federal no controle difuso de constitucionalidade nunca é o julgamento de uma tese, e dessa atuação não resulta uma teoria, mas uma decisão; e essa decisão trata da inconstitucionalidade como preliminar de mérito para tratar do caso concreto, devolvido a ele por meio de recurso, sob pena de se estar negando jurisdição (art. 5.º, XXXV e LV, da Constituição da República). (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores)

Mais adiante, os articulistas afirmam que, em sede de controle difuso, entender daquela forma proposta pelo Ministro Gilmar Mendes “desloca a discussão jurídica para os discursos de fundamentação (Begründungs-diskurs), elaborados de forma descontextualizada”, ou seja, “em outras palavras, a tese esgrimida pelo Ministro Gilmar Mendes reduz a discussão jurídica a questões de justificação da validade das normas”. E arrematam:

Desta forma, a alegação de que é cabível rec-lamação contra as “teses” - e não contra os julgados –22 do Supremo Tribunal Federal incorre na imprecisão

22 “Não vamos discutir, aqui, o problema da relação entre o papel do Senado (art. 52,X,CF) e a questão da ‘repercussão geral’ introduzida pela EC 45/04, regulamentada no art. 543-B do CPC. Observe-se a complexidade do problema: além do poder que o Supremo Tribunal Federal terá a partir da equiparação do controle difuso ao con-trole concentrado, tem-se que aquela Corte pode, agora, determinar a interpretação de uma norma constitucional e impô-la a todos os processos em sede de controle difuso. Podem ser anuladas, inclusive, as decisões já proferidas pelas diversas instân-cias do Poder Judiciário. Portanto, como bem alerta Fernando Faccury SCAFF (Novas Dimensões do Controle de Constitucionalidade no Brasil: Prevalência do Concentrado e Ocaso do Difuso. In: Revista Dialética do Direito Processual n. 50, São Paulo, 2007, pp. 20 e segs), isto é mais do que uma súmula vinculante: é uma decisão única, tomada por seis ministros (maioria absoluta), que pode desfazer as decisões adotadas pelos Tribunais de todo o País. A exigência de quorum qualificado (oito votos) é apenas para o juízo de admissibilidade e não para a votação do mérito. É um poder jamais visto no Brasil nas mãos do STF’ (id. ib.).” [nota e grifo dos autores]

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inerente ao papel das cortes controladoras da con-stitucionalidade que é o de agirem somente diante de uma situação contextualizada23. Agir no limite de um contexto significa obedecer aos ditames do poder constituído, condição existencial do Supremo Tribunal Federal como poder jurisdicional vinculado à Constitu-ição. (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores)

As críticas que os autores fazem ao modelo proposto na Rcl. 4.335 não param por aí. Afirmam que toda e qualquer decisão do STF se legitima tanto por sua complexa responsabilidade constitucional de guarda da Lei Maior quanto pelo desenvolvimento de um pro-cesso jurisdicional em que a sociedade tem participação, sendo que

[...] o modelo de participação democrática no con-trole difuso também se dá, de forma indireta, pela atribuição constitucional deixada ao Senado Federal. Excluir a competência do Senado Federal – ou con-ferir-lhe apenas um caráter de tornar público o en-tendimento do Supremo Tribunal Federal – significa reduzir as atribuições do Senado Federal à de uma secretaria de divulgação intra-legistativa das decisões do Supremo Tribunal Federal; significa, por fim, retirar do processo de controle difuso qualquer possibilidade de chancela dos representantes do povo deste referido processo, o que não parece ser sequer sugerido pela Constituição da República de 1988. (STRECK; OLIVEI-RA; LIMA, 2007, grifo dos autores)

Por isso, chegam a afirmar que a competência do Senado, ness-es casos, seria reduzida a de um órgão de imprensa, havendo, ade-mais, outras consequências graves, que atingiriam principalmente o sistema de direitos e de garantias fundamentais. Para eles, ao se atribuir eficácia geral e efeito vinculante às decisões do STF em sede de controle difuso, ferem-se os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório (art. 5.º,

23 “O que não significa dizer em concreto, quando direitos subjetivos não estão em questão, ou seja, no sentido esse em que o termo é comumente emprestado por dou-trina e jurisprudência do controle da constitucionalidade.” [nota e grifo dos autores]

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LIV e LV, CF/88), já que tal decisão atingiria mesmo aqueles que não participaram do processo de julgamento, tendo, em verdade, efei-tos avocatórios. Além disso, segundo os autores, seria desconstuída a concepção de que os efeitos da retirada das leis pelo Senado Fed-eral são ex nunc e não ex tunc.

A essas e outras críticas, adiante-se, diversamente, que os super-princípios constitucionais – princípio da constitucionalidade, princí-pio do Estado Democrático (Constitucional) de Direito e princípio da proteção dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana – não estariam sendo violados, ao revés, incrementados, tendo em vista a legalidade, igualdade e imparcialidade que essa nova perspectiva acopla, consoante toda uma fundamentação feita ao longo desta dissertação.

Lenio Luiz Streck e os outros autores (2007, grifo dos autores) também tocam no ponto referente à distinção entre controle con-centrado e difuso, não havendo, para eles, “como se imaginar que os efeitos do controle concentrado sejam extensivos ao controle difuso, de forma automática”. Continuam: “parece óbvio que, se se entendesse que uma decisão em sede de controle difuso tem a mesma eficácia que uma proferida em controle concentrado, cairia por terra a própria diferença”. Isso porque entendem que é uma regra fixa que o controle difuso tenha “na sua ratio o efeito ex tunc entre as partes”.

Porém, observe-se, desde logo, que esse fenômeno é legítimo, consoante a tendência de abstrativização, objetivação ou verticali-zação do controle concreto, tipicamente difuso (cf. capítulo 3, sub-capítulo 3.3, para mais detalhes).

Desenvolvendo a questão, perguntam, sempre os referidos ar-ticulistas: “Então, qual é a função do Senado (art. 52, X)?”. Para re-sponder essa indagação, diferenciam dois institutos: o da suspensão da execução da lei e o da retirada da eficácia da lei. Este ocorre em controle concentrado e aquele, em controle difuso, significando o mesmo que revogar a lei. Eis o papel do Senado sendo efetivado: revogar a lei declarada inconstitucional, com efeitos ex nunc. E isso é que diferencia os dois sistemas de controle, no plano da nulidade: o controle difuso é problema de suspensão/revogação da lei (plano da vigência da lei) – que aguarda a retirada de sua eficácia “daqui para frente” – e o controle concentrado é problema de retirada da

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eficácia da lei (plano da eficácia da lei)24. Ou ainda, dito de outro modo, há diferença entre efeitos ex tunc (nulidade) e efeitos ex nunc (revogação) – “quando se revoga uma lei, seus efeitos permanecem; quando se a nulifica, é esta írrita, nenhuma” (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores) –, fato esse que distingue na essência os con-troles de constitucionalidade difuso e concentrado. Baseados nisso, é que os autores do mencionado artigo entendem não poder haver uma confusão entre os sistemas de controle da Constituição.

Argumentam: “Se até o momento em que o Supremo Tribunal declarou a inconstitucionalidade da lei no controle difuso, a lei era vi-gente e válida, a decisão no caso concreto não pode ser equiparada à decisão tomada em sede de controle concentrado” (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores)25. A isso, contra-argumenta-se: ora, se a jurisprudência e doutrina entendem que a lei inconstitucional é ipso jure nula, ela é nula desde sempre (ex tunc) e para todos (erga omnes)26 – teoria da nulidade da lei inconstitucional27. Continua esse raciocínio Carlos Alberto Lúcio Bittencourt (1968, p. 145/146, apud MENDES; COELHO; BRANCO, 2009c, p. 1136, grifo nosso), de forma lúcida:

Se o Senado não agir, nem por isso ficará afetada a eficácia da decisão, a qual continuará a produzir to-dos os seus efeitos regulares que, de fato, indepen-dem de qualquer dos poderes. O objetivo do art. 45, IV da Constituição – a referência é ao texto de 1967 – é apenas tornar pública a decisão do tribunal, levando-a ao conhecimento de todos os cidadãos. Dizer que o Senado “suspende a execução” da lei inconstitucional é, positivamente, impropriedade técnica, uma vez que o ato, sendo “inexistente” ou “ineficaz”, não pode ter suspensa a sua execução.

24 Cf. também STRECK, 2006, p. 115 e ss.25 Cf. também STRECK, 2004, p. 479 e ss.26 A menos, é claro, que a decisão que declare a nulidade da lei module seus efeitos, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.27 Cf. MENDES; COELHO; BRANCO, 2009c, p. 1134/1136. Cf. também o voto de Gilmar Mendes proferido na Rcl. 4.335-5/AC, colacionado no anexo D.

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Consoante Gilmar Mendes (2009c, p. 1136, grifo nosso), comen-tando a postura tomada por Lúcio Bittencourt:

Tal concepção afigurava-se absolutamente coerente com o fundamento da nulidade da lei inconstitucional. Uma orientação dogmática minimamente consistente haveria de encamin-har-se nesse sentido, até porque a atribuição de funções substantivas ao Senado Federal era a própria negação da idéia de nulidade da lei devi-damente declarada pelo órgão máximo do Poder Judiciário. Não foi o que se viu inicialmente. Como apontado, a jurisprudência e a doutrina acabaram por conferir significado substancial à decisão do Senado, entendendo que somente o ato de suspensão do Senado mostrava-se apto a conferir efeitos gerais à declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal, cuja eficácia estaria limitada às partes envolvidas no processo.

A posição de Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Ol-iveira e Martonio Mont’Alverne Barreto Lima (2007, grifo dos autores), como já se percebe, decorre, consoante eles mesmo dizem, da “ob-jetiva e singela razão de que a Constituição da República possui deter-minação expressa sobre o papel do Senado neste sentido e que não foi revogada”. Asseveram, outrossim, que “o Estado Democrático de Di-reito é um paradigma constitucional e o que dele menos se pode dizer é que dá guarida a ativismos e decisionismos judiciais”, com o que não se pode concordar, com vista no que foi abordado em capítulos ante-riores, principalmente aquele referente à jurisprudencialização/tribu-nalização e ativismo judiciário (cf. capítulo 1, subcapítulo 1.3).

Como alternativa, apontam a edição da súmula vinculante:

[...] se o Supremo Tribunal Federal pretende – agora ou em futuros julgamentos - dar efeito vinculante em con-trole difuso, deve editar uma súmula (ou seguir os pas-sos do sistema, remetendo a decisão ao Senado). Ou isso, ou as súmulas perderam sua razão de ser, porque valerão tanto ou menos que uma decisão por seis votos a cinco (sempre com o alerta de que não se pode con-

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fundir súmulas com declarações de inconstitucionali-dades). [...] Deixar de aplicar o artigo 52, X, significa não só abrir precedente de não cumprimento de norma constitucional – enfraquecendo sobremodo a força normativa da Constituição – mas também suportar as conseqüências, uma vez que a integridade também supõe integridade da própria Constituição. E, não se pode esquecer que a não aplicação de uma norma é uma forma de aplicação. Incorreta. Mas é. (STRECK; OL-IVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores)

Continuam, tecendo comentários acerca do porquê da com-petência do Senado prevista no art. 52, X, CF/88:

A competência do Senado Federal estabelecida pelo art. 52, X da Constituição, para além de se mate-rializar no exercício de uma atribuição do poder con-stituinte originário, deixa-se refletir, ainda, quando da contextualização de seu lugar constitucional. Espaço de representação política da Federação, ao Senado Federal foi atribuída a competência do art. 52, X da CF porque, racionalmente, somente a um organismo da Federação é que poderia recair a autoridade para suspensão de instrumentos normativos, por exemplo, oriundos de outros entes da Federação, como Esta-dos, Distrito Federal ou Municípios, em razão, espe-cialmente, da amplamente solidificada sistemática de controle da constitucionalidade a inadmitir controle concentrado de espécie normativa municipal dire-tamente no Supremo Tribunal. Tem-se, então, uma dupla acepção de democracia: a que parte do controle reflexo do povo na eleição de representantes dos entes federados e o trato e o equilíbrio necessários à harmo-nização do sistema federativo brasileiro. (STRECK; OL-IVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores)

Vale aqui outra ressalva: não seria possível para os autores – em-bora admitam que tal tese não vingou em terrae brasilis – a atribuição de eficácia erga omnes e vinculante à decisão de rejeição de incon-stitucionalidade, que afirmasse, portanto, a constitucionalidade da

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norma, posto que essas decisões que não acolhem o pedido de in-constitucionalidade da lei

têm força meramente de coisa julgada formal, não impedindo sequer que o mesmo requerente solicite novamente a apreciação da inconstitucionalidade da norma anteriormente “declarada” constitucional. [...] A recusa de atribuição de eficácia erga omnes à decisão de não-inconstitucionalidade permite [...] remediar, através de nova decisão, os possíveis er-ros precedentemente cometidos na apreciação da constitucionalidade pelo tribunal constitucional. (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores)

Sendo assim, questionam – não obstante a Lei 9.868/99 preveja fato diverso – até mesmo a atribuição de efeito vinculante e eficácia erga omnes à interpretação conforme a constituição e à declaração parcial de inconstitucionalidade, não merecendo, por causa disso, prosperar o entendimento do Ministro Gilmar Mendes quando re-corre a esses institutos a fim de demonstrar a evolução do controle de constitucionalidade. De tal modo, aduzem:

Já para a situação que almeja a extensão dos efei-tos de controle concentrado ao difuso, não há nada que autorize o Supremo Tribunal Federal a operar men-cionada sistemática no texto de nossa Constituição, tampouco na tradição de nossa doutrina de controle da constitucionalidade. [...] Ao contrário: o art. 52, X aponta em outro sentido. (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores)

Ainda, reafirmam que a questão da validade e da força norma-tiva do art. 52, X, CF/88, passa pelo exame da “exigência democrática de participação da sociedade no processo de decisão acerca da (in)constitucionalidade de uma lei produzida pela vontade geral” (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores), pelo que há um controle das decisões judiciais solipsistas (Selbstsüchtiger) pela esfera pública. Quanto a isso, já foi visto que as decisões dos juízes são democráticas na medida em que seguem aquilo que foi aprovado pelo legislador, pro-

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movendo diretamente a finalidade pública e os anseios sociais, ao adequar as premissas equivocadas estabelecidas pelo Legislativo28.

Demais disso, pode-se dizer que é encontrado no texto de Le-nio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Martonio Mont’Alverne Barreto Lima (2007) uma crítica a um fenômeno mencio-nado em capítulos anteriores: a judicialização da política e das relações sociais. Pela opinião deles, que se faz questão de destacar a seguir, o referido fenômeno se transmudaria para a politização do Direito e do Poder Judiciário. Lembre-se apenas que ambos são acontecimentos naturais resultantes das tensões entre Política e Direito, sendo sau-dáveis até o ponto em que se mantenham ainda em equilíbrio.

[...] o constitucionalismo do Estado Democrático de Direito deve ser compreendido no contexto da ruptura paradigmática ocorrida no campo da filoso-fia. Dito de outro modo, o direito não está imune ao pensamento que move o mundo. Mundo é mundo porque é mundo pensado. Conseqüentemente, a derrocada do esquema sujeito-objeto (ponto fulcral das reflexões das teorias democráticas que vão desde as teorias do discurso à hermenêutica) tem reper-cussão no novo modelo de Estado e de direito exsur-gido a partir do segundo pós-guerra. O sujeito solip-sista (Selbstsüchtiger) dá lugar à intersubjetividade. Veja-se o problema ocasionado pela prevalência do velho paradigma representacional (sujeito-objeto) nas diversas reformas no processo: cada vez mais se coloca o procedimento à disposição do pensamento “justo” do juiz, valendo, por todos, citar a assim de-nominada “instrumentalidade do processo” (por todos, Candido Dinamarco e José Bedaque). Cada vez que se pretende “processualizar mais o sistema”, ocorre uma diminuição do processo enquanto instru-mento de garantia do devido processo legal. Ora, se o devido processo legal serve para preservar direitos, não é em nome dele que se pode fragilizar o próp-rio processo. Dia-a-dia, o sistema processual caminha para o esquecimento das singularidades dos casos.

28 Cf. capítulo 1, subcapítulo 1.3.

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Trata-se, pois, de um novo princípio epocal. Na ver-dade, se o último princípio epocal da era das duas metafísicas foi a vontade do poder (Wille zur Macht), o novo princípio, forjado na era da técnica, acaba por se transformar no mecanismo que transforma o direito em uma mera racionalidade instrumental (lembremos, sempre e novamente, as escolas instru-mentalistas...!). Manipulando o instrumento, tem-se o resultado. Ao final dessa “linha de produção”, o direito é (será) aquilo que a vontade do poder quer que seja. Chega-se ao ápice da não democracia: o direito transformado em política. Não que direito e política estejam cindidos. Parece despiciendo qualquer co-mentário acerca dessa problemática (pensemos, por exemplo, na doutrina de Hans P. Schneider). O que ocorre é que a relação direito-política não pode criar/estabelecer uma contradição em si mesmo, ou seja, se o direito serve para controlar/garantir a democracia (e, portanto, a política), ele não pode ser a própria política. (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo nosso e itálico dos autores)

Finalmente, lançando vistas à incompreensão do fenômeno da mutação constitucional, afirmam que ele “não pode ser entendido como espaço de livre atribuição de sentido”, principalmente quando se trata do texto constitucional:

Ou seja, em determinadas situações, mutação constitucional pode significar, equivocadamente, a substituição do poder constituinte pelo Poder Judiciário. E, com isso, soçobra a democracia. E este nos parece ser o ponto principal da discussão acerca dos votos proferidos na aludida Reclamação 4335-5. Numa pa-lavra, o processo histórico não pode, desse modo, delegar para o Judiciário a tarefa de alterar, por mu-tação ou ultrapassagem, a Constituição do País (ve-ja-se, nesse sentido, só para exemplificar e esse é o ponto da presente discussão -, o “destino” dado, em ambos os votos, ao art. 52, X, da Constituição do Bra-sil). (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores)

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Para provar o sobredito, propõem uma reflexão:

Paremos para pensar: uma súmula do Supremo Tribunal Federal, elaborada com oito votos (que é o quorum mínimo), pode alterar a Constituição. Para revogar essa súmula, se o próprio Supremo Tribunal Federal não o fizer, são necessários três quintos dos votos do Congresso Nacional, em votação bicameral e em dois turnos. Ao mesmo tempo, uma decisão em sede de controle de constitucionalidade difuso, proferida por seis votos, pode proceder a alterações na estrutura jurídica do país, ultrapassando-se a dis-cussão acerca da tensão vigência e eficácia de uma lei. Não se pode deixar de frisar, destarte, que a mu-tação constitucional apresenta um grave problema hermenêutico, no mínimo, assim como também de legitimidade da jurisdição constitucional. (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007)

Na verdade, os autores, adeptos de uma exigência de integridade do caráter principiológico do direito democrático, não veem com bons olhos a tese da mutação constitucional quando esta é compreendida

como solução para um suposto hiato entre texto constitucional e a realidade social, a exigir uma “juris-prudência corretiva”, tal como aquela a que falava Bül-low, em fins do século XIX (veja-se, pois, o contexto histórico): “uma jurisprudência corretiva desenvolvi-da por juízes éticos, criadores do Direito” (Gesetz und Richteramt, Leipzig, 1885) e atualizadores da constitu-ição e dos supostos envelhecimentos e imperfeições constitucionais; ou seja, mutações constitucionais são reformas informais e mudanças constitucionais empreendidas por uma suposta interpretação evo-lutiva.29 [...] Em síntese, a tese da mutação constitu-cional advoga em última análise uma concepção deci-sionista da jurisdição e contribui para a compreensão

29 “MENDES, Gilmar Ferreira. ‘A eficácia das decisões de inconstitucionalidade – 15 anos de experiência’ in: SAMPAIO, José Adércio Leite. !5 anos de Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 207.” [nota dos autores]

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das cortes constitucionais como poderes constituintes permanentes.30 Ora, um tribunal não pode mudar a constituição; um tribunal não pode “inventar” o di-reito: este não é seu legítimo papel como poder juris-dicional, numa democracia. A atividade jurisdicional, mesmo a das cortes constitucionais, não é legislativa, muito menos constituinte (e assim não há o menor cabimento, diga-se de passagem, na afirmação do Min. Francisco Rezek, quando do julgamento da ADC n.º 1, quando este dizia que a função do STF é a de um oráculo que “diz o que é a Constituição”). (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores)

Para eles, o papel do direito e da jurisdição inclusive constitucionais é “construir interpretativamente, com a participação da sociedade, o senti-do normativo da constituição e do projeto de sociedade democrática a ela subjacente”31, sendo que “um tribunal não pode paradoxalmente subvert-er a constituição sob o argumento de a estar garantindo ou guardando” (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007). Em termos incisivos: a Suprema Corte, para os referidos articulistas, não pode legislar, muito embora admitam que a súmula vinculante adquiriu explícito caráter normativo no Brasil.

Criticando especificamente o discurso de justificação advindo das súmulas vinculantes – discurso esse que serve de base também para pretensões universalizantes, como a que sustenta um obsoleto limite semântico do texto do dispositivo constitucional em questão, pelo que, como pretende o Ministro Eros Grau, a partir da dicotomia “texto e norma”, poderia até mesmo o texto sucumbir em face não apenas de uma nova norma, mas também de um novo texto32 –, asseguram:

30 “Sabe-se que na época em que foram escritas as obras de Lin e Smend, não havia Tribunais Constitucionais nos moldes construídos posteriormente. A tese da mutação não significa que não tenha sido dado valor fundamental às práticas políticas no parla-mento ou no governo. A conseqüência das teses ‘mutacionistas’ em tempos de ‘cortes constitucionais’ poderia ser diferente.” [nota dos autores]31 “CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo: Uma justifica-ção democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo le-gislativo. 2.ª ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006. Também CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Poder Constituinte e Patriotismo Constitucional. Belo Horizonte: Man-damentos, 2006.” [nota dos autores]32 Cf., para maiores detalhes, voto-vista do Ministro Eros Grau no Anexo D.

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No fundo, toda (ess)a discussão é similar à pre-tensão de universalização das súmulas vinculantes; ou seja, as súmulas vinculantes podem ser entendi-das como uma hipostasiação de discursos de justifi-cação, isto é, o pólo de tensão passa a estar somente no plano da validade do discurso jurídico. (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007)

Tocando ainda no ponto da pretensão de um discurso válido universalmente (“normas universais”) – observando-se aquilo que foi trabalhado por Alexy (1993, apud STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007) quanto aos discursos de aplicação e discursos de fundamentação/justificação e às similitudes entre esses discursos, na concepção dele, conforme analisado no capítulo 1, subcapítulo 1.2 –, os referidos au-tores notam que a argumentação acaba hipostasiada em detrimento da realidade, “isto é, tudo se resume a fórmulas matemáticas e a cál-culos de custo-benefício, que, por ter pretensão corretiva, acaba se substituindo ao próprio direito” (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores). Além disso,

no Brasil, essa tese – a de Alexy e a do Supremo Tribu-nal Federal na Rcl n.º 4335-5 - pode dar (ainda mais) respaldo aos defensores das súmulas vinculantes e a distorções no seu processo inadequado de aplicação. De fato, ao se constituírem em discursos de validade construídos para resolver problemas futuros que nela se “subsumam” (não parece haver dúvida a esse res-peito, porque a súmula busca impedir a construção de discursos de aplicação - Anwendugsdiskurs), as súmulas vinculantes parecem encaixar-se na tese de que tudo se resume a discursos de validade, uma vez que nos dis-cursos de justificação (validade) já haveria a referência a muitas situações construídas e experenciadas.33 (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores)

Porém, como visto em momento oportuno, é justamente a partir dessa acepção de Alexy (2005, apud CARDOSO, 2009), apre-

33 “Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 2ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2007.” [nota dos autores]

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sentada pela Tese do Caso Especial, desenvolvida em sua Teoria da Argumentação Jurídica, que ele aponta como uma das regras de justificação externa e formas lógicas de argumentos (jurídicos) o uso de precedentes jurisprudenciais, sendo o seu fundamento o princípio da universalidade, que cai na concepção de justiça (formal) de tratar de igual maneira o igual, determinando-se e ponderando-se as diferenças – em função das interpretações dadas pelas Cortes Judiciais Superiores e sedimentadas via precedentes, acresça-se a esse princípio da igualdade outros princípios derivados do princí-pio-mor justiça, como os princípios da legalidade e imparcialidade.

Por fim, Lenio Luiz Streck mais os outros articulistas (2007) per-guntam, no sentido similar da indagação feita, em determinado pon-to de seu voto, por Eros Grau à posição de Gilmar Mendes:

A interpretação da Constituição pode levar a que o STF produza (novos) textos, isto é, interpretações que, levadas ao limite, façam soçobrar os limites semânticos do texto no modo que ele vinha sendo entendido na (e pela) tradição (no sentido hermenêu-tico da palavra)?

Segue a resposta dada por eles, grande parte feita em forma de outras perguntas:

[...] nossa leitura permite-nos entender que o Minis-tro Eros Grau reconhece, com apoio em Jean-Pierre Vernant, que sempre há que se indagar, quando se está frente a uma mutação constitucional, se o texto result-ante da mutação mantém-se adequado à tradição (= à coerência) do contexto, reproduzindo-a, de modo a ele se amoldar com exatidão. “A mutação não é uma degenerescência, senão uma manifestação de sanidade do ordenamento.” Entendemos que, nesse exato contexto, a pergunta que não foi respondida é: mas o que é a tradição? De que tradição se está falando? O que diz a tradição que consubstancia o texto e a norma do art. 52, X? Em que sentido a “sub-stituição” do texto constitucional, efeito em nome de uma mutação, deixa o novo “texto” em harmonia com a tradição? Não é exatamente para mudar a tradição

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que se faz “mutação”? Mas, então, se se faz mutação para alterá-la, como lhe ser coerente e fiel? É nesse sentido que a posição de Vernant é tautológica, incor-rendo em um paradoxo. E paradoxos são coisas so-bre as quais não podemos decidir. Mais ainda: se o texto “mutado” é obsoleto - como textualmente diz o Min. Eros Grau - como admitir que o Supremo Tri-bunal Federal “faça” outro, que confirme a tradição? De que modo se chega a conclusão de que “um texto constitucional é obsoleto”? E de que modo é possível afirmar que, “por ser obsoleto”, o Supremo Tribunal Federal pode se substituir ao processo constituinte derivado, único que poderia substituir o texto “ob-soleto”? A tradição não residiria exatamente no fato de termos adotado – e ratificado em 1988 – o sistema misto de controle de constitucionalidade? A tradição não estaria inserida na própria exigência de remessa ao Senado, buscando, assim, trazer para o debate - acerca da (in)validade de um texto normativo – o Poder Legislativo, único que pode tratar do âmbito da vigência, providência necessária para dar efeito erga omnes à decisão que julgou uma causa que não tinha uma tese, mas, sim, uma questão prejudicial? [...] Afi-nal, cabe ao Supremo Tribunal Federal “corrigir” a Con-stituição? A resposta é não. Isso faria dele um poder constituinte permanente e ilegítimo. Afinal, quais seriam os critérios de correção, uma suposta “ordem concreta de valores”, um “Direito Natural” no estilo de Radbruch?... Agregue-se a essa relevante questão hermenêutica a seguinte preocupação: decisões do Supremo Tribunal Federal, como a da Reclamação sob comento, podem incorrer no equívoco de con-fundir as tarefas constituídas daquelas constituintes, o que traduziria, portanto, uma séria inversão dos pressupostos da teoria da democracia moderna a que se filia a Constituição da República. [...] Tais questões, ao que tudo indica, devem preocupar sobremodo a comunidade jurídica. E não provocar – como está a parecer – um silêncio eloquente! (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores)

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Os articulistas, após constatarem ser “possível [...] apreender a di-mensão da crise que atravessa o direito a partir das representações simbólicas”, finalizam o estudo do tema com a seguinte observação, que não deixa de ser, de certo modo, pertinente:

Nessa linha, a decisão do Supremo Tribunal Federal, por mais que esteja imbuída de um sentido pragmático e sustentada na melhor ciência jurídica, pode (e, certa-mente assim será) representar uma afirmação do im-aginário jurídico que justamente levou àquilo que hoje é combatido: o excesso de recursos e a multiplicação das demandas. Se o Supremo Tribunal Federal pode fazer mutação constitucional, em breve essa “mutação” começará a gerar – como se já não existissem à sacie-dade34 - os mais diversos frutos de cariz discricionário (portanto, positivista, no sentido em que Dworkin criti-ca as teses de Hart). Exatamente porque no Brasil cada um interpreta como quer, decide como quer e recorre como quer (e isso parece recorrente na cotidianidade dos fóruns e tribunais da República), é que faz com que cresçam dia-a-dia as teses instrumentalistas do proces-so, como que a mostrar, a todo instante, que as teses de Oscar Von Büllow não foram (ainda) superadas. A solução tem sido essa: corte-se o acesso à justiça. Sob pretexto de agilizarmos a prestação jurisdicional, cria-mos mecanismos para impedir o processamento de recursos. E quem perde com isso é a cidadania que vê assim negada a jurisdição. (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores)

A despeito dos argumentos de peso retroelencados, conforme estudo esboçado ao longo dos capítulos idos e vindouros desta dis-sertação, o contexto atual (hermenêutico, social, político e jurídico – no caso deste, fortalecido pelos superprincípios constitucionais) per-mite, sim, mudança no texto constitucional do art. 52, X, através de

34 “Por todos, veja a ‘mutação constitucional’ feita recentemente pelo STJ no art. 514 do Código de Processo Penal. Com efeito, considerando ultrapassada a garantia da defesa prévia de quinze dias que o CPP concedia ao funcionário público quando processado, o STJ editou a Súmula 330, alterando, não a norma do art. 514, mas o texto...!” [nota dos autores]

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uma “autêntica mutação constitucional”, compondo-se, assim, “um mesmo espaço semântico” na Constituição, para usar as palavras de Eros Grau, no voto proferido na Rcl. 4.335-5/AC.

E é o próprio Ministro Eros Grau quem revela a legitimidade da mutação constitucional visada, ponderando as dicotomias dimensão legislativa (dimensão constitucional textual) Vs. dimensão normativa (dimensão constitucional normativa) e tendência à rigidez (a rigidez do texto) Vs. tendência à elasticidade (a criatividade da interpretação), para concluir que “na mutação constitucional caminhamos não de um texto a uma norma [processo esse de interpretação, que seria um minus em relação ao processo de mutação constitucional], porém de um texto a outro texto, que substitui o primeiro”, ou seja, “na mutação constitucional há mais [o plus]. Nela não apenas a norma é outra, mas o próprio enunciado normativo é alterado”.

E é alterado, registre-se, pelo próprio resultado da mutação nor-mativa, que poderíamos chamar de “resultado normante”, ou seja, que dá nova vida ao texto (“resultado normado”).

Vale conferir os votos na íntegra do Ministro Gilmar Mendes e Eros Grau no Anexo D deste trabalho, onde se encontra o seguinte trecho explicativo:

Passamos em verdade de um texto [pelo qual] compete privativamente ao Senado Federal suspend-er a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tri-bunal Federal, a outro texto: compete privativamente ao Senado Federal dar publicidade à suspensão da execução, operada pelo Supremo Tribunal Federal, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo. (STF, voto do Min. Eros Grau, DJ 27/04/2007, p. 9/10, grifo nosso)

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e o Controle de Constitucionalidade Como

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Depreende-se, do quanto já foi dito, que o trabalho passa pela percepção de três princípios fundamentais e inspiradores da Carta de Outubro de 1988, os quais rondam, aqui e acolá, os mecanismos de defesa e mudança da Constituição. São os superprincípios constitucio-nais1: a) o princípio da constitucionalidade, fazendo com que todos os atos/normas infralegais sejam vinculados (princípio da conformidade) à Constituição rígida e suprema (princípio da rigidez e da supremacia constitucional), segundo as regras da jurisdição constitucional; b) o princípio democrático, em toda a sua abrangência delineada no capítulo anterior, no sentido de fornecer garantia geral aos direitos fundamen-tais, constituindo-se, com finco na soberania popular e no pluralismo político, em uma democracia representativa, participativa e pluralista; e c) o princípio da proteção dos direitos fundamentais, também visto anteri-ormente, compreendendo os direitos e garantias individuais, coletivos, sociais, de nacionalidade e de cidadania (políticos), buscando realizar a justiça social (SILVA, 2000, p. 237/238). Nesse ponto, o art. 5º, § 1º, CF/88, consagra a vinculação das autoridades públicas e do Judiciário às normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais.

Segundo José Afonso da Silva (2000, p. 238), “esse conteúdo ideológico de transformações sociais provocam ataques que po-dem ser de dois tipos – políticos ou jurídicos – que, por seu lado, requerem defesa compatível com sua natureza”. Assim sendo, a permanência da ordem constitucional e dos valores de convivência social selecionados depende tanto de fatores extrínsecos (de ordem política, sociológica e psicológica) quanto dos intrínsecos (técnicas jurídicas constitucionais destinadas a assegurar a estabilidade da Constituição), ambos mecanismos de defesa da Constituição: “A de-fesa da Constituição, numa tal situação, consiste em todos os meios políticos, sociológicos, psicológicos, jurídicos e proces-

1 Tal denominação – superprincípios constitucionais – é encontrada na obra de Welling-ton Márcio Kublisckas (2009, p. 234), o qual divide aqueles em dois: o princípio do Estado Democrático de Direito (art. 1º, II, V, e parágrafo único) e o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, II, III e IV). Esboça o tema da seguinte forma: “Os superprincípios cons-titucionais são, portanto, as normas constitucionais dotadas (i) de importância nuclear no sistema constitucional, o que pode ser comprovado pela freqüência com que são utilizados na interpretação das demais normas constitucionais e infraconstitucionais; e (ii) do mais alto nível de abstração e flexibilidade, podendo ser invocados inclusive para a defesa de interesses contrapostos e ter o seu conteúdo definido/alterado com base no contexto social e nas situações concretas” (KUBLISCKAS, 2009, p. 235).

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suais que assegurem a vigência, eficácia e aplicabilidade da Constituição” (SILVA, 2000, p. 238, grifo nosso).

A defesa política da Magna Carta dá-se contra os diversos ataques político-ideológicos a ela, encampado por correntes retrógradas, e vai ao encontro da percepção de a nossa Constituição ser instrumento ad-equado à proteção dos direitos fundamentais e de valores políticos e sociais, apontando para o presente e para o futuro. Por sua vez, a defesa jurídica consiste nos elementos, mecanismos e técnicas criadas pelas normas constitucionais que visam à defesa da estabilidade da Consti-tuição, chamadas, em virtude de seu propósito, de normas de estabi-lização constitucional, consoante José Afonso da Silva (2000, p. 240).

Todos os princípios antes referidos – princípio da constitucion-alidade, princípio democrático e princípio da proteção dos direitos fundamentais – servem ao estudo da defesa jurídica da Constituição brasileira. Um desses mecanismos de defesa da Constituição já foi abordado no capítulo anterior, com todo o enfoque nos princípios da democracia e da proteção dos direitos fundamentais: a reforma con-stitucional. Resta o aprofundamento, com base firme no princípio da constitucionalidade, de outro importante mecanismo de defesa, que é o sistema de controle de constitucionalidade, especificamente no tocante ao controle difuso e seus desdobramentos. Contudo, prelimi-narmente, deve ser feita uma análise do tema jurisdição constitucional, que, por certo, abrange a teoria do controle de constitucionalidade.

Em poucas linhas, pode-se resumir a jurisdição constitucional2 como um dos mais expressivos instrumentos de defesa da Constitu-ição, dotada de dois sentidos gerais e interligados: em sentido am-plo, como atividade jurisdicional em matéria de interpretação e apli-cação adequada da Constituição, em que o STF é o seu guardião-mor, consoante o art. 102 da CF/883; e, em sentido estrito, como o próprio controle de constitucionalidade. Observa prontamente o professor da UFMG e PUC/MG, José Luiz Quadros de Magalhães (2004), que, enquanto a jurisdição constitucional considerada no sentido amplo representa a efetividade constitucional – posto toda jurisdição seja constitucional na medida em que se deve “[...] promover sempre

2 Cf., acerca da Jurisdição Constitucional, trabalho de KELSEN, 2007, e de MENDES, 2009b.3 “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Cons-tituição, cabendo-lhe [...]”.

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leituras [interpretações] constitucionalmente adequadas de todo o direito infra-constitucional” (fenômeno da constitucionalização do direito) –, em seu sentido estrito, equivale “apenas” à proibição de violação da norma constitucional, verificando-se a conformidade dos atos normativos com a Constituição.

De um ou de outro modo, mister ressaltar, alcança-se a efetivi-dade do Texto Maior. A mesma ideia é encampada por José Afonso da Silva (2000, p. 247), para quem o objeto da jurisdição constitucion-al, além de estar contido no processo de verificação da conformidade de um ato público à Constituição, “[...] compreende toda a ação dos tribunais judiciários destinada a assegurar a observância das normas constitucionais [...]”, envolvendo também outros pontos4.

Paulo Hamilton Siqueira Jr. (2006, passim) formata o estudo da jurisdição constitucional partindo do pressuposto primário da íntima relação entre o processo e a Constituição5, o direito constitucional processual em sentido lato, donde derivam dois canais metodológi-cos que, pelo processo, efetivam, reciprocamente, os preceitos con-stitucionais: o direito constitucional processual (em sentido estrito) e o direito processual constitucional. O primeiro investiga os temas con-stitucionais do processo (direitos e garantias processuais), tais como o devido processo legal e a ampla defesa, que irão guiar o Direito Processual como um todo; o segundo, os temas processuais da Con-stituição (controle de constitucionalidade, writs constitucionais, ação civil pública, ação popular), ou seja, a jurisdição constitucional.

O direito processual constitucional é ramo autônomo da ciência jurídica6 e tem como escopo jurídico investigar os instrumentos de

4 Tais como, “a) o controle de constitucionalidade dos atos do poder público; b) con-flitos entre o Estado e indivíduos ou grupos, desde que reclamem ter havido violação de direitos fundamentais; c) conflitos entre órgãos do governo; d) conflitos entre enti-dades intraestatais autônomas. É verdade que tudo isso poderia entrar no conceito de controle de constitucionalidade em sentido amplo” (SILVA, 2000, p. 247).5 “Giuseppe Bettiol afirma que a Constituição, ligada a valores, fixa normas processuais vinculadas à democracia, com a finalidade de tutelar a liberdade individual” (SIQUEIRA JR., 2006, p. 35).6 Vale a observação feita por Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho (1998, p. 5, apud SIQUEIRA JR., 2006, p. 37/38): “há uma distinção entre princípio constitucional apli-cado ao Direito Processual e princípio processual-constitucional. [...] Essa é uma discussão teórica, ninguém vai exigir um rigor técnico-científico na aplicação deste ou daquele princí-pio. O que importa é o princípio, a sua noção e a conseqüência prática de sua aplicação”.

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preservação e efetivação dos preceitos da Carta Magna, principal-mente no que toca aos direitos fundamentais. Daí o seu conteúdo instrumental e garantístico, por meio do qual a jurisdição constitu-cional é concretizada e o sistema constitucional, implementado. “Nesse sentido, o processo é uma garantia da liberdade do cidadão em face do Estado”, sendo que “seu objeto alcança os procedimentos relativos ao controle de constitucionalidade e elaboração do manan-cial normativo” (SIQUEIRA JR., 2006, p. 64/65).

O importante a depreender-se disso tudo é o fato de que a juris-dição constitucional é meio de garantia da Constituição, a fim de pre-servá-la dos abusos do governo, como também é meio de controle do povo sobre a classe política e os interesses políticos, “que vai além da atribuição periódica do voto” (CUNHA, 1999, p. 55, apud SIQUEIRA JR., 2006, p. 66). “Por esse motivo, não deixa de ser paradoxal que o século do triunfo da democracia seja também o século da ex-pansão da jurisdição constitucional” (MORO, 2004, p. 313, apud SIQUEIRA JR., 2006, p. 66). Nesse mote, a jurisdição constitucional é também instrumento de controle político, já que sua existência apri-mora a democracia (SIQUEIRA JR., 2006, p. 66). Dessa forma, somente resta concordar com a explanação de Paulo Hamilton Siqueira Jr. (2006, p. 67, grifo nosso), de muita valia para a tese aqui propugnada:

A jurisdição constitucional coaduna-se perfeita-mente com o Estado Democrático e Social de Direito, na medida em que se torna instrumento eficaz para compatibilizar os preceitos do Estado Liberal com os do Estado Social. A Constituição tem essa função. Logo, a existência de um órgão com a finalidade da implementação e guarda dos preceitos constitu-cionais, sem a presença das paixões políticas, é in-dispensável. A democracia social exige um órgão independente que tenha como meta a guarda da Constituição [e, no nosso modelo constitucional, esse órgão é o STF, conforme art. 102, caput, CF/88]. O ativismo do Poder Judiciário coaduna-se com a Democracia Social. O passivismo do Judiciário é inerente ao Estado Liberal. O Estado Democrático e Social [e Constitucional] de Direito que surgiu com o advento da Constituição Federal de 1988

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concilia os interesses individuais e sociais. Aí está a legitimidade da jurisdição constitucional.

Bem como assim, aí está a legitimidade da nova perspectiva do STF em sede de controle difuso, posto que, com a atitude pro-pugnada nos votos dos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau, anali-sados a seguir, há uma efetivação dos preceitos constitucionais, principalmente, repita-se, quanto aos direitos fundamentais e sua expansão incontinenti para todos.

Complemente-se dizendo que, se a democracia sobrevive e le-gitima-se pela resolução dos conflitos e controle de poder, e o Poder Judiciário tem justamente a função de apaziguá-los, produzindo o consenso social, conclui-se, com o escólio firme de Paulo Hamilton Siqueira Jr. (2006, p. 67), que “a resolução das alterações sociais rea-firma a democracia e a paz social”, funções essas, diga-se mais uma vez, desempenhadas, preponderantemente, pelas decisões judiciais, cabendo ao STF o supremo papel de guarda da nossa Lex Major.

Não por outro motivo, emergem como estruturas lógicas de def-esa da democracia a jurisdição constitucional e o controle de constitu-cionalidade por ela exercido, o que se expressa pela fórmula “maior democracia, mais controle”, isto é, “o desenvolvimento da democracia é proporcional ao sistema de controle” (SIQUEIRA JR., 2006, p. 67). “Em síntese conclusiva: a jurisdição constitucional pode ser compatível com a democracia, e será tanto mais legítima quanto mais contribuir para o seu aprimoramento [e alargamento]” (MORO, 2004, p. 317, apud SIQUEIRA JR., 2006, p. 67), ou, visto da mesma forma, mas por outro ân-gulo, a proliferação da democracia fortalece e aperfeiçoa a jurisdição constitucional. Isso se reflete no excerto seguinte, que demonstra que jurisdição constitucional e governos de fato repelem-se:

En la misma medida que la jurisdicción constitu-cional tiene por finalidad y fundamento impedir el quebrantamiento de la Carta Fundamental por los gobernantes, pierde el sentido hablar de ella como enfrentada a un gobierno que, aparte carecer de legitimidad política, carece de título constitucional para ejercer el poder y realiza su gestión mediante el quebrantamiento permanente y sistemático de la normas supremas sobre separación de funciones y

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regularidade de los procedimientos político-constitu-cionales. (TAPIA, 1977, apud SILVA, 2000, p. 253)

Destarte, em resumo, o direito processual constitucional calca-se no âmbito da jurisdição constitucional. Esta, tendo por finalidade a estabilidade e a regularidade constitucional, é ligada à democra-cia, que pressupõe a existência do sistema de controle. Por sua vez, o controle pode ter três objetos: o controle da constitucionalidade, o controle das liberdades e o controle político. Disso derivam as três formas assumidas pela jurisdição constitucional, relacionadas, re-spectivamente, a cada um dos controles: 1) jurisdição constitucional (controle de constitucionalidade); 2) jurisdição constitucional das liberdades (controle das liberdades, que são os writs constitucionais: habeas corpus, mandado de segurança, habeas data e mandado de injunção); e 3) jurisdição constitucional política (controle político, que se exterioriza pelos instrumentos de defesa da cidadania: ação civil pública e ação popular) (SIQUEIRA, 2006, p. 68/69).

Dentro dessa classificação, especificar-se-á a jurisdição constitu-cional como controle jurisdicional da constitucionalidade (também chamada, de melhor forma, em vista da sua finalidade abordada su-pra, de Justiça Constitucional)7. Esse é, aliás, o já mencionado princípio da constitucionalidade, ao qual devem, segundo José Afonso da Silva (2000), ser acoplados o princípio democrático e o princípio da proteção dos direitos fundamentais, formando um todo na defesa da Constitu-ição. Por isso, o controle de constitucionalidade serve para evitar atos normativos contrários tanto à Constituição quanto ao próprio Estado Democrático-Social-Constitucional de Direito consagrado no Texto Maior, sendo, portanto, instrumento que desconstitui, de forma excep-cional, a presunção de constitucionalidade (legitimidade) das leis.

3.1 Ordenamento Jurídico e Constituição

A análise preliminar do ordenamento jurídico e da sua estrutura escalonada revela-se especialmente importante neste trabalho, em vista do exame que será feito dos controles de constitucionalidade,

7 Cf. CANOTILHO, 1998, p. 789.

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especificamente o difuso. Ora, não há como se conceber controle de constitucionalidade sem uma ideia de “construção escalonada de nor-mas supra-infra-ordenadas umas às outras” (KELSEN, 1991, p. 214), que é o ordenamento jurídico. Nesse sentido, partindo-se de uma concep-ção estritamente normativa, o Direito não é apenas norma (objeto da nomostática), mas conjunto coordenado de normas (objeto da nomod-inâmica), que possui a particularidade de regular a sua própria criação. Essa diferenciação foi estabelecida por Hans Kelsen (1991), no sentido de que a teoria estática estuda a norma em seu estado de repouso, en-quanto a teoria dinâmica considera o direito (positivo) em movimento, como processo jurídico de elaboração e aplicação das normas. É nessa última teoria (a dinâmica) onde moram os problemas relativos ao or-denamento jurídico e à sua definição: “o que comumente chamamos de Direito é mais uma característica de certos ordenamentos normativos que de certas normas” (BOBBIO, 1999, p. 28).

Assim, transfere-se o problema da norma para o do ordena-mento jurídico, sendo que toda questão passa a se dar no plano de validade (material ou formal) – a norma inferior encontra o seu fun-damento de validade na norma superior. Por isso, diz-se que normas jurídicas são aquelas que validamente venham a fazer parte de um ordenamento jurídico (BOBBIO, 1999, p. 30).

A partir dessas premissas, Norberto Bobbio (1999) dedica 4 capí-tulos da sua obra Teoria do Ordenamento Jurídico à abordagem dos assuntos daí derivados, cada qual em relação aos seguintes propósi-tos: 1) unidade do ordenamento e discussão da hierarquia das norma; 2) sistema do ordenamento e discussão das antinomias jurídicas; 3) completude do ordenamento e discussão das lacunas do Direito; e 4) conexões entre diversos ordenamentos. Para o nosso objetivo, faz-se importante a análise do primeiro ponto: a unidade do ordenamento jurídico e a discussão da hierarquia das normas (ver-se-á mais adi-ante, também, o aspecto da unidade da Constituição em si mesma considerada, além das discussões acerca de uma possível hierarquia entre normas originárias constitucionais).

A questão da unidade do ordenamento jurídico é questão das fontes de produção de normas jurídicas. Em todo ordenamento, o ponto de referência último (ou primeiro, a depender do ângulo de visão) de todas as normas é o poder originário, chamado também de fontes das fontes. Porém, como se sabe, nem todas as normas deri-

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vam diretamente desse poder originário (embora a ele deva satisfa-ções), posto que ele autolimita-se ao atribuir (delegar) uma parte do poder normativo a outros órgãos ou entidades. Nesse processo de formação do ordenamento, há sempre, de um lado, a absorção de um direito preexistente, que deverá ou não ser recepcionado pela nova ordem, o que faz que nos reportemos a um limite externo do poder soberano. De outro lado, há sempre a criação de um novo di-reito, derivado das novas centrais de produção jurídica surgidas da autolimitação do poder soberano. Fala-se, nesse caso, de limite inter-no do poder normativo originário. Essas fontes, diga-se, tanto podem estipular normas de conduta (comportamento)8 quanto normas de estrutura, estas destinadas a regular a produção de outras normas9.

Essa complexidade do ordenamento jurídico não exclui a sua uni-dade. Para que um ordenamento complexo (e não meramente aquele simples, donde todas as normas nascem de uma única fonte, o que não condiz com a realidade) seja considerado unitário, devemos aceitar a teoria escalonada do ordenamento jurídico, desenvolvida por Hans Kels-en. Registre-se que a teoria do escalonamento (Stufenbau) do sistema jurídico é parte essencial no estudo implementado por esse autor em sua Teoria Pura do Direito (que é uma teoria do Direito Positivo), onde desenvolveu essa ideia sob a influência de seu discípulo Adolf Merkl.

O núcleo dessa teoria do escalonamento é que as normas de um ordenamento não estão todas, invariavelmente, no mesmo plano, po-dendo-se falar, assim, de normas superiores e inferiores, estas depen-dendo daquelas. Robert Walter, no ensaio inserido no livro Teoria Pura do Direito de Kelsen (2003), faz uma apresentação sumária da teoria da formação escalonada do sistema jurídico, atentando-se para duas graduações: o sistema escalonado segundo o condicionamento jurídico e o sistema escalonado segundo a força derrogatória. Acerca do primeiro, pode-se observar que a norma de elaboração jurídica superior con-diciona a norma elaborada inferior; já quanto ao segundo, superior é a forma de direito que tem a força para derrogar preceitos de outra forma jurídica, a qual, no entanto, não pode derrogar aquela forma

8 São as normas imperativas, proibitivas e permissivas.9 São normas que mandam ordenar, proíbem ordenar, permitem ordenar, mandam proibir, proíbem proibir, permitem proibir, mandam permitir, proíbem permitir e per-mitem permitir.

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superior de direito (exemplo elucidativo é a possibilidade de a forma constitucional poder derrogar as regulamentações na forma legal).

Robert Walter traz, ainda, algumas outras características da formação escalonada da ordem jurídica, a saber: é objetivo da te-oria do escalonamento evidenciar a estrutura do direito positivo; os graus superiores na construção escalonada podem determinar, em grande ou pequena medida, os graus seguintes, sendo que o legislador é, normalmente, menos limitado pela Constituição que o poder regulamentar ou o juiz, pela lei; a teoria da estrutura es-calonada – ponto esse muito importante – não permite concluir que o direito seja um processo quase lógico, posto que, na ação configuradora do legislador, na faculdade discricionária, nas diver-sas margens de liberdade do órgão habilitado ou no campo jurídico indeterminado, há também uma função criadora do direito, ao lado da função executiva (duplo aspecto jurídico).

Como dito, por esse sistema escalonado (que não é simplesmente lógico, já que Kelsen admite discricionariedade dentro da “moldura” normativa)10, as normas inferiores dependem das superiores e são por estas limitadas materialmente (conteúdo) e formalmente (forma). Subindo da inferior àquelas mais acima, onde uma norma representa o fundamento de validade de outra11, encontra-se uma norma suprema: a norma fundamental (ou Grundnorm). É essa norma fundamental que dá unidade e validade, num processo de reductio ad unum, a todas as outras normas, formando, sob uma estrutura hierárquica (ou pirami-dal12), o próprio ordenamento. Limite-se a dizer que essa Grundnorm é uma construção lógica-científica abstraída por Kelsen, uma norma

10 No capítulo referente à interpretação das normas, Kelsen (2003, p. 114) afirma que a determinação de uma norma nunca é completa, pois “deve haver sempre um espaço, ora maior, ora menor, de livre estimativa, de modo que a norma de grau mais alto, em relação ao ato de produção da norma ou da execução, tenha uma moldura que preencha esse ato”. Dessa forma, “a norma a ser executada [...] forma apenas uma moldura dentro da qual são apresentadas várias possibilidades de execução, de modo que todo ato é conforme a norma, desde que esteja dentro dessa moldura, preenchendo-a de algum sentido possível” (KELSEN, 2003, p. 116, grifo nosso).11 Disso, têm-se normas executivas (expressão de dever) e produtivas (expressão de poder): norma executiva (dever) em relação à norma superior e produtiva (poder) com respeito à norma inferior.12 Dessa forma, temos: Norma Fundamental – Constituição – Leis Ordinárias (grau in-termediário) – Atos Executivos (portarias, decretos, etc.).

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hipotética-lógica, pressuposta, que atribui, legitimamente, ao poder constituinte a faculdade de produzir normas jurídicas, sendo ao mes-mo tempo atributiva e imperativa, consoante observação feita por Norberto Bobbio (1999). Enfim, é o ubi consistam, “[...] ou seja, o ponto de apoio do sistema” (BOBBIO, 1999, p. 59). Diga-se, ainda com escólio em Norberto Bobbio (1999, p. 63), que a problemática do fundamento da norma fundamental foge à teoria do Direito Positivo e entra “[...] na secular discussão em torno do fundamento, ou melhor, da justificação, em sentido absoluto, do poder”, isto é, desloca o problema da existên-cia de um ordenamento jurídico para a sua justificação13.

Destarte, a Constituição – objeto-fim deste estudo –, vista num ordenamento representado por normas superiores e inferiores, é colocada pelo pressuposto da norma fundamental na camada juríd-ico-positiva mais alta14, cuja função é regular tanto os órgãos quanto o procedimento e o conteúdo da produção jurídica geral – sentido material –, além de outros assuntos politicamente importantes e preceitos pelos quais as normas da própria Constituição não podem ser revogadas ou alteradas da mesma forma que as leis simples, de-vendo haver um processo especial mais severo, embora não tenha que ser necessariamente assim15 – sentido formal (KELSEN, 1991, p. 240/242)16. Esse sentido formal, ao dar conteúdo à própria Constitu-ição, é que irá estabilizar as normas designadas pelo sentido material.

13 Bobbio (1999, p. 63/65) sistematiza, fugindo do ordenamento jurídico positivo, algu-mas das respostas acerca da formulação de uma norma superior à norma fundamen-tal, verdadeira fonte última de poder: a) todo poder vem de Deus (omnis potestas nisi a Deo); b) o dever de obedecer ao poder constituinte deriva da lei natural (dictamem rectae rationis – ditame da reta razão); c) o dever de obedecer ao poder constituído deriva de uma convenção originária (contrato social). Como já afirmado, há um deslo-camento do problema da existência do ordenamento jurídico para a sua justificação.14 E daí afirmar-se que “[...] o Direito Constitucional é muito mais do que apenas um ramo do direito público”, sendo “[...] a matriz de toda a ordem jurídica de um específico Estado”, o que representa a unidade do Direito (PAULO; ALEXANDRINO, 2009, p. 3).15 Isso porque se admite, evidentemente em alguns ordenamentos de tradição não ro-manística (que não é o caso do Brasil, cuja Constituição é rígida, ou como quer Alexandre de Moraes (2009), superrígida, em virtude das cláusulas pétreas), a alteração de normas constitucionais por procedimento simples, semelhante àquele das demais leis do orde-namento, pelo que falamos aqui em Constituição flexível ou, ainda, semirrígida.16 Alguns constitucionalistas, conforme observação de Tercio Sampaio Ferraz Jr. (2003, p. 230), invertem o conteúdo da distinção entre Constituição no sentido formal e ma-terial, porém nada que altere substancialmente a formulação de Kelsen.

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Desse modo, seguindo o conceito dado por Tercio Sampaio Ferraz Jr. (2003, p. 229, grifo nosso),

Entendemos usualmente por Constituição a lei fundamental de um país, que contém normas res-peitantes à organização básica do Estado, ao recon-hecimento e à garantia dos direitos fundamentais do ser humano e do cidadão, às formas, aos limites e às competências do exercício do Poder Público (leg-islar, julgar, governar).

A Constituição, portanto, coloca-se perante o Ordenamento Ju-rídico Positivo como fonte, bússola e imã, chamada, por isso, de Lei das leis, o que resulta num “sistema do Direito-com-a-Constitu-ição”, ou seja, o Direito Positivo formado a partir da conjunção da Constituição com as regras infraconstitucionais (BRITTO, 1999, pas-sim). Quanto a esse modelo hierarquizado de unidade jurídica, dota-do de supremacia constitucional (princípio da constitucionalidade)17, adverte Carlos Ayres Britto (1999, p. 193, grifo do autor) que “a Con-stituição não faria do Direito em geral um conjunto, um todo congru-ente de prescrições, se, antes, um todo congruente de prescrições ela não fosse”. “Não pode haver fronde em ordem com raízes em de-sordem” (Confúcio), é dizer, por ser a Constituição um sistema é que o Direito o é também. Daí a concepção de unidade sistêmica da Con-stituição em si, pelo que se formam duas unidades jurídico-positivas, uma materializada na Constituição e a outra, na relação dela com o Direito em geral18 (BRITTO, 1999, p. 194).

Visto isso, resta saber se dessa unidade da Constituição consid-erada em si mesma deriva alguma hierarquia das próprias normas constitucionais. Para Otto Bachof (1994, apud PASSOS; PESSANHA, 2008), seria possível conceber, a partir da ideia de hierarquia entre normas originárias da Constituição, normas constitucionais incon-

17 Cf. SILVA, 2000, p. 237: “o princípio da constitucionalidade [...] exprime, em primeiro lugar, que o Estado se funda na legitimidade de uma Constituição rígida, emanada da vontade popular, que, dotada de supremacia, vincule os poderes e os atos deles provenientes, com as garantias de atuação livre, e regras da jurisdição constitucional”.18 Os atos de reforma constitucional, consoante lembra Carlos Britto (1999, p. 194), fazem parte da unidade materializada na Constituição em si.

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stitucionais, como no caso de as normas constitucionais de grau “inferior” (preceitos meramente formais) violarem aquelas de grau “superior” (preceitos materiais fundamentais para a Constituição). Ainda nessa acepção, as normas de sobredireito (direito natural) limi-tam qualquer que seja a norma constitucional (direito positivo), dev-endo haver sempre, segundo o referido jurista, a concordância com os princípios constitucionais basilares, que se impõem, inclusive, ao Poder Constituinte, conforme será visto em tópico atinente.

Atente-se, porém, que essa unidade da Constituição não tem os mesmos efeitos da unidade do ordenamento jurídico, no sentido de não se derivar daquela o critério da hierarquia presente nesta. Isso porque as normas constitucionais originárias não se relacionam por graus hierárquicos, ou seja, “todas elas têm a mesma força impositiva, a mesma hierarquia, no sentido de que uma não retira da outra o seu fundamento de validade” (BRITTO, 1999, p. 194, grifo do au-tor). Inclusive, o Supremo Tribunal Federal, na ADI 4097, que tratava da questão da inelegibilidade dos analfabetos, não admitiu a tese de hierarquia entre normas originais da Constituição, ao levar em con-sideração a sua unidade harmônica, pelo que se pode falar, assim, de normas constitucionais gerais e normas constitucionais especiais que se harmonizam entre si. Resume o sobredito a seguinte passagem do voto do Rel. Min. Cezar Peluso, in verbis:

A tese da inicial, que defende a viabilidade da de-claração da inconstitucionalidade de norma constitu-cional constante do texto originário, não encontra su-porte algum no ordenamento brasileiro, perante o qual a “jurisprudência do STF assentou, igualmente, a inadmis-sibilidade do controle de constitucionalidade de norma constitucional originária, enfatizando que a tese da hierar-quia entre normas constitucionais originárias, que dá azo à declaração de inconstitucionalidade de umas em face de outras, é incompatível com o sistema de constituição rígida” (GILMAR FERREIRA MENDES, op. cit., p. 195) [...]. (STF, voto do Rel. Min. Cezar Peluso, DJE 01/08/2008, p. 2)

Não se poderia avançar, contudo, sem ao menos caracterizar a Con-stituição Federal de 1988 do Brasil, donde deriva todo objeto de estudo deste trabalho. A nossa Carta Magna é, quanto à forma, escrita; à sis-

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temática, codificada; à origem, democrática, popular, votada, promul-gada; ao modo de elaboração, dogmática (não histórica); à estabilidade, rígida (o processo de elaboração é mais rígido) ou, como prefere Alexan-dre de Moraes (2009), superrígida, pois tem cláusula pétrea; à extensão, prolixa, analítica, regulamentar; à identificação das normas constitucio-nais, Constituição em sentido formal (leva-se em consideração a forma e não o conteúdo); à função ou estrutura, dirigente, programática; à dog-mática, eclética (reúne características liberais e sociais).

Apenas abra-se um parêntese aqui. Não obstante a existência das limitações às modificações do texto constitucional, é de se estranhar que uma Constituição como a nossa, em 23 anos, tenha sofrido 68 emendas19 – 62 por emendas ordinárias e 6 por revisão –, numa média de quase 3 emendas por ano. A esse fenômeno, a doutrina chama de emendismo constitucional ou agenda constituinte permanente20. Buscando as causas desse excesso de emendas, Wellington Márcio Kublisckas (2009, p. 196/217) imerge em curiosos estudos, como o perpetrado pelo profes-sor de Ciência Política da Universidade de Houston, Donald Lutz (1995), em Toward a theory of constitutional amendment, onde destaca índices de emendabilidade (amendment rate) e índices de dificuldade (index of difficulty) para a alteração constitucional. Seguindo os parâmetros traça-dos por Donald Lutz (1995), Wellington Márcio Kublisckas (2009, p. 212) conclui que a Constituição Federal brasileira obtém um índice final de 2,00 pontos, numa escala de 1,00 a 6,00, significando um baixo índice de dificuldade para a alteração da Constituição de 1988 (onde obtém 1,5 pontos, sendo que a média geral mundial é de 3,26 pontos) e um alto índice de emendabilidade (3,35 emendas por ano, sendo que a média geral mundial é de 1,48 emendas por ano) – cf., para maiores detalhes, as tabelas que trazem os critérios para os cálculos em KUBLISCKAS, 2009, p. 205 e 208/212. Completa:

Diante do exposto, é possível concluir que, do ponto de vista jurídico, os dois fatores que mais con-tribuem para a ocorrência do fenômeno do emendis-

19 Curioso notar que as Emendas 59, 60 e 61 são todas da mesma data (11/11/2009).20 Nesse sentido, cf. Wellington Márcio Kublisckas, 2009, p. 197, que também traz lições de Cláudio Gonçalves Couto e Rogério Bastos Arantes, 2006, p. 41, apud KUBLISCKAS, 2009, p. 197, donde extrai o termo agenda constituinte permanente.

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mo constitucional no Brasil são: (i) a estrutura prolixa, detalhista e casuísta do texto brasileiro, estrutura esta decorrente do contexto político em que foi editada[21]; e (ii) o baixo grau de dificuldade para a alteração da Constituição brasileira, decorrente das formalidades exigidas em seu art. 60 [e.g. participação de forma simples do Presidente da República no início do processo[22]; baixo quórum exigido para a aprovação das emendas, mormente quando se leva em consid-eração a aplicação de quóruns mais elevados – 2/3 – em outros países, como EUA, México, Bélgica, Áustria, Coréia, Angola etc.[23]; necessidade de haver lapso temporal/procedimentos especiais mais rigorosos entre as votações]. (KUBLISCKAS, 2009, p. 213)

3.2 O Controle Misto de Constitucionalidade no Brasil

Os sistemas constitucionais de controle no mundo conhecem, hoje, três modelos bem definidos, conforme lições de Gilmar Mendes (2009c): 1) modelo americano (1803), concreto, incidental, prejudi-cial, de perfil difuso, onde o Judiciário só se manifesta no caso con-creto e qualquer tribunal ou juiz competente pode dirimir uma dada controvérsia jurídico-constitucional; 2) modelo austríaco (1920), europeu, abstrato, europeu-continental, kelseniano, de perfil con-

21 Wellington Márcio Kublisckas (2009, p. 205) explica que há uma relação entre o ta-manho da Constituição (em palavras) e o índice de emendabilidade, sendo que, por isso, “considerando que a Constituição Federal de 1988 possui mais de 60.000 palavras, sendo aproximadamente 49.000 na sua parte permanente e 11.000 em sua parte tran-sitória, não é de se estranhar que o seu índice de emendabilidade supere a proporção de 3,1 emendas por ano [atualmente 3,35 emendas por ano]”. Sustenta ainda que essa relação entre extensão do texto e o fenômeno do emendismo constitucional foi per-cebida por Gilmar Mendes (2007, apud KUBLISCKAS, 2009, p. 205), o qual sintetizou: “alguns se queixam do excesso de emendas constitucionais, como se houvesse a ideo-logia do ‘emendismo’. Se me permite outro neologismo, eu diria que o ‘emendismo’ é decorrente do ‘analitismo’ da Carta, que exige essas emendas”.22 Isso explica o motivo de aproximadamente 40% das emendas constitucionais no Brasil foram de iniciativa do Poder Executivo (KUBLISCKAS, 2009, p. 213).23 Em alguns outros países, como Itália e Argélia, há instrumento que fortifica, pelo menos em tese, a participação democrático-popular, ao associar o quórum parlamen-tar a um referendum popular (KUBLISCKAS, 2009, p. 213).

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centrado, havendo um órgão determinado para dirimir a controvérsia constitucional, posta em análise abstrata por alguns entes e órgãos predeterminados24; 3) modelo alemão (anos 50), que de certa forma se filia ao austríaco, cria um terceiro instrumento de controle de con-stitucionalidade: o recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde), ação constitucional ou recurso de amparo (este, no direito espanhol). Neste modelo, a alegação de inconstitucionalidade só se faz quando exaurida todas as instâncias. No Direito alemão, assim, o sistema de controle de constitucionalidade é dotado tanto de mecanismos de controle abstrato, adaptando o modelo austríaco, quanto difuso, de competência exclusiva do Tribunal Constitucional Federal (Bundes-verfassungsgericht), atuando mediante provocação – nesse último caso, permite-se a arguição de (in)constitucionalidade nos processos judiciais em curso, que são suspensos via recurso constitucional para que o Tribunal Constitucional julgue a quaestio constitutionalis.25

Já no Brasil (bem como em Portugal, registre-se), como se sabe, o sistema de controle é misto, pois influenciado pelo sistema europeu e pelo sistema americano. Cada forma de defesa constitucional emerge historicamente em resposta à natureza dos ataques à Constituição. Sendo assim, conforme nota José Afonso da Silva (2000, p. 248/249), três situações político-ideológicas fazem surgir o sistema europeu (do civil law), fundado no critério concentrado. Num primeiro mo-mento, logo quando do surgimento dos primeiros textos constitu-cionais, a defesa deles tinha uma perspectiva política e total, a fim de reverter a negação (política) às concepções de soberania popular, igualdade, liberdade e democracia. Superado isso, brota um poder neutro – poder moderador –, titularizado pelo monarca, que, como

24 Por curiosidade, interessante registrar que, ao lado deste controle, vigora também nos países adotantes do modelo abstrato um instrumento de viés concreto, onde, porém, é o juiz da causa que, reconhecendo a controvérsia constitucional num caso posto, remete a questão à Suprema Corte.25 Ainda no direito comparado, particular é o modelo francês, onde o Conselho Constitucion-al, que não é vinculado a qualquer Poder, aprecia preventivamente a constitucionalidade das leis (controle político, na classificação de José Afonso da Silva), sendo que, após a reforma de 2008, também tem competência para atuar repressivamente, mormente em matérias que envolvam direitos fundamentais. Não obstante, não é possível pelo modelo francês o con-trole repressivo de constitucionalidade abstrato-concentrado. Na Inglaterra, por sua vez, não é apropriado falar em controle de constitucionalidade, pois o seu direito é essencialmente costumeiro, não havendo rigidez e supremacia constitucional por conta disso.

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tal, passa a ser o guardião da Constituição – a Carta brasileira do Im-pério, de 1824, incorporou esse poder moderador como “a chave de toda organização política”26. Por fim, num terceiro momento, segue a tendência de racionalização do poder, advinda do pós-guerra de 1918, originando-se, por obra de Kelsen, o sistema europeu ou aust-ríaco de justiça constitucional, donde deriva a concepção de tribunal especializado em matéria constitucional, a Corte Constitucional.

O sistema americano (do common law), fundado no critério difuso, apesar de ter surgido, como o europeu, com o constitucionalismo do século XVIII, criou-se em um ambiente social e ideológico homogêneo, motivo pelo qual estava livre de radicais ataques político-ideológicos, não havendo necessidade de defesa política. Em virtude disso, assu-miu orientação exclusivamente técnica, com o objetivo de impedir a ruptura da coerência interna do ordenamento constitucional, firmando o entendimento, a partir do famigerado caso Marbury v. Madison (sob o comando do Juiz John Marshall, em 1803), de que o Poder Judiciário poderia deixar de aplicar uma lei ao caso concreto conquanto a en-tendesse inconstitucional (judicial review)27. É nesse ponto que alguns afirmam que o sistema norte-americano não integra uma verdadeira jurisdição constitucional, posto que a jurisdição ordinária, a quem se atribui também a solução dos conflitos constitucionais, não se carac-teriza como guardiã dos valores políticos ínsitos na Constituição, como sucede na Europa, pois tem como objetivo principal a decisão do caso concreto. Entende-se, porém, que nesse sistema não deixa de existir jurisdição constitucional, apenas dá-se preferência para a decisão do caso posto concretamente (SILVA, 2000; 2006).

26 Constituição Política do Império do Brasil, de 1824: “Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica [sic], e é delegado privativamente ao Impera-dor, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que inces-santemente vele sobre a manutenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos. [sic]”27 Explica Erival da Silva Oliveira (2009, p. 40): “No caso, Willian Marbury fora nomeado para o cargo de Juiz de Paz, no condado de Washington, no distrito de Columbia, de acordo com os trâmites constitucionais, porém o Secretário de Estado James Madison não queria entregar o título de comissão à Marbury, que por sua vez recorreu ao Ju-diciário, momento em que o juiz Marshall demonstrou que, se a Constituição americana era a base do direito e imutável por meios ordinários, as leis comuns que a contradisses-sem não eram verdadeiramente leis, não eram direito. Assim, essas leis seriam nulas, não obrigando os particulares. Além disso, demonstrou que, cabendo ao judiciário dizer o que é o direito, é a ele que compete indagar da constitucionalidade de uma lei”.

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Algumas características particulares insurgem desse modelo americano:

a) Desenvolveu-se numa ambientação do direito comum (com-mon law), na ideia do direito anglo-saxão, que tem uma base forte na jurisprudência, contrário, portanto, do direito romano-germânico;

b) As decisões de um Tribunal Superior (Suprema Corte) vincu-lam as cortes inferiores (stare decisis et non quieta movere, ou simples-mente stare decisis), não por força somente do instituto do controle de constitucionalidade, mas porque no sistema americano a decisão é vinculativa a todos os demais órgãos jurisdicionais, sendo esse um sistema baseado no case law. No Brasil, o instituto da súmula vincu-lante traz esse efeito;

c) É necessário que os interessados participem do processo de controle de constitucionalidade, pois o que for decidido pela Su-prema Corte terá efeito vinculante a todos os processos em que a causa de pedir for a mesma (base para a teoria da transcendência dos motivos determinantes). Para tanto, quem tem uma causa idên-tica àquela submetida ao Tribunal e quer levar argumentos novos, considerações científica, ética etc., valer-se-á do instituto do amicus curiae. Se a decisão da Suprema Corte não tem somente efeito inter partes, possuindo uma carga vinculativa, é natural que todas as pes-soas que possam ser afetadas por essa decisão busquem esclarecer, fundamentar, provocar a Suprema Corte para que ela se pronuncie sobre este tema com a melhor fundamentação possível;

d) Writ of Certiorari: por volta do início do século XX, se a Supre-ma Corte quisesse dar vazão a todas as demandas constitucionais, ela não daria conta, pois haveria excesso de recursos. Então, especial-mente para os processos da Suprema Corte, concebeu-se a fórmula do writ of certiorari, que é dotado de um processo de admissibilidade do recurso que se baseia na relevância da questão constitucional ou da questão do direito federal. Pode a Corte admitir ou rejeitar o recurso. Se aceitar, a Corte poderá conhecer da questão, pois a tem como relevante (MENDES, 2009c). Quanto a isso, explicita melhor Ives Gandra da Silva Martins Filho (2001, grifo nosso e do autor): “O ‘writ of certiorari’ [carta de requisição ou ordem requisitória] é, ba-sicamente, uma ordem dada por uma Corte superior a uma Corte in-ferior, no sentido de que lhe remeta um determinado caso, para que

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seja revisto pela Corte superior. No caso da Suprema Corte, o ‘writ of certiorari’ está sujeito ao ‘discretionary method of review’, pelo qual se selecionam os casos que serão realmente julgados”. Adiante-se que a Repercussão Geral no Brasil se inspira nesse instituto.

Voltar-se-á a abordar detalhadamente as teorias referentes ao controle difuso e suas repercussões atuais no próximo tópico.

Como dito, nos dias atuais o controle de constitucionalidade no Brasil é difuso e concentrado, ou seja, misto – muito embora haja uma tendência de abstrativização do controle concreto-difuso, con-soante se verá mais adiante. Porém, nem sempre foi assim.

Historicamente, o Brasil partiu do sistema norte-americano e evoluiu para um sistema misto e peculiar, combinando o critério do controle difuso com o do controle concentrado: a Constituição Impe-rial de 1824, que tinha uma parte flexível e outra rígida, não conhecia o controle judicial de constitucionalidade, cabendo ao próprio Leg-islativo, em um controle político, interpretar, suspender e revogar as leis, além de “velar na guarda da Constituição” (art. 15)28; a Constitu-ição de 1891, influenciada pelo constitucionalismo americano, insti-tuiu o controle judicial difuso, na via concreta, valendo, a declaração da inconstitucionalidade da lei, somente para o caso concreto; com a Carta de 1934, instituiu-se a reserva de plenário – pela qual somente a maioria absoluta dos membros dos Tribunais pode declarar a in-constitucionalidade de lei e atos normativos do Poder Público –, a representação interventiva e o mandado de segurança. Importante notar que foi aí que primeiro apareceu a possibilidade de atribuírem-se efeitos gerais à pronúncia de inconstitucionalidade pelo Poder Ju-diciário, de competência do Senado Federal (art. 91, IV)29.

A Constituição Polaca de 1937 foi um retrocesso no controle de constitucionalidade, pois deu possibilidade ao Presidente da República submeter ao Poder Legislativo lei já declarada incon-

28 É bom registrar que José Afonso da Silva (2000, p. 252) entende que cabia ao poder mod-erador o controle de constitucionalidade à época, funcionando como a “suprema expressão dos demais poderes”. Segundo o autor, não era reconhecida a nenhum outro órgão político, expressamente, a faculdade de declarar inconstitucionais atos do poder público.29 “Art 91 - Compete ao Senado Federal: [...] IV - suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, quando hajam sido declara-dos inconstitucionais pelo Poder Judiciário”.

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stitucional com o fim de a decisão do Tribunal perder efeito30 31, além de não fazer constar no seu texto a competência do Senado Federal para suspender a lei declarada inconstitucional, bem como a representação interventiva; a Constituição de 1946 restaura as regras da Carta de 1934, inclusive a competência do Senado para suspender a execução de lei declarada inconstitucional pelo STF, além de modificar a representação interventiva ao dar legitimação ao Procurador Geral da República para a representação, condicion-ando-a à apreciação do STF; ainda sob a vigência da Carta de 1946, surgiu, com a Emenda Constitucional 15/1965, uma novidade, qual seja, o controle abstrato de normas, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade; a Constituição de 1967/1969 não trouxe ino-vações e manteve os controles difuso e abstrato.

Chegamos, enfim, à Constituição de 1988. Nossa Carta atual, man-tendo as conquistas precedentes, inovou do seguinte modo: a bem dizer, reduziu a competência do STF à matéria constitucional (art. 102)32; am-

30 O Parlamento, observa José Afonso da Silva (2000, p. 253), nunca foi convocado e a medida era tomada de forma discriminada pelo Presidente por meio de decreto-lei.31 No Canadá, embora Gardbaum (2009, p. 182, apud FERREIRA, 2011) destaque a pouca utilização do instituto (na verdade, uma vez só), vigora um sistema que se asse-melha com o da CB de 1937, porém surgido de forma totalmente diversa, quer dizer, com intento democrático, tendo mais a ver com a sua tradição parlamentar. Tal cultura jurídico-política deu uma solução conciliatória, de diálogo institucional entre o poder judiciário e o parlamento, a ponto de a Seção 33 da Constituição canadense confiar ao parlamento o poder de reverter a decisão do judiciário: “Essa cláusula capacitava os parlamentos provinciais e o federal a anular, por maioria simples, os direitos contidos na Carta por um período renovável de 5 anos” (GARDBAUM, 2009, p. 176, apud FERREI-RA, 2011). Assim dispõe a Seção 33, traduzida: “O parlamento ou o legislativo de uma província pode expressamente declarar em uma lei do parlamento ou do legislativo, conforme o caso, que a lei ou uma disposição deve vigorar não obstante a disposição incluída na Seção 2 ou nas Seções 7 a 15 desta Carta”.32 Inobstante isso, José Afonso da Silva (2006, p. 559) afirma que “[...] não será fácil conciliar uma função típica de guarda dos valores constitucionais (pois, guardar a forma ou apenas tecnicamente é falsear a realidade constitucional) com sua função de julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância (base do critério do controle difuso) [art. 102, III, CF/88] [...], que o mantém como Tribunal de julgamento do caso concreto que sempre conduz à preferência pela decisão da lide, e não pelos valores da Constituição, como nossa história comprova. Não será, note-se bem, por culpa do Colendo Tribunal, se não vier a realizar-se plena-mente como guardião da Constituição, mas do sistema que esta própria manteve [...]. Reduzir a competência do STF à matéria constitucional não constitui mudança alguma no sistema de controle de constitucionalidade no Brasil”.

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pliou a legitimidade no controle abstrato (art. 103); criou novas figuras de controle, como a Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão, a Ação Declaratória de Constitucionalidade33 (com a EC 3/93), a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, o Mandado de Injunção, o controle abstrato nos Estados e, mais recentemente, com a EC 45/04, a Súmula Vinculante e a Repercussão Geral para o Recurso Extraordinário. Além de ser dada mais ênfase ao controle concentrado, tudo isso fez com que o Supremo se fortalecesse como Corte Constitucional, o que também favorece a tese da nova perspectiva de dar ao controle difuso os mesmos efeitos do controle concentrado – diga-se, por ora, que esse modelo não pode ser considerado desconhecido ou novidade no mun-do, pois a Corte Suprema dos EUA julga os casos dando eficácia geral (erga omnes) às suas decisões. Nessa linha, Ives Gandra Martins e Gilmar Mendes (2005, p. 93) afirmam, prenunciando o problema da repetição de processos no âmbito do STF:

[...] as mudanças ocorridas no sistema de con-trole de constitucionalidade brasileiro alteraram radicalmente a relação que havia entre os controles concentrado e difuso. A ampliação do direito de propositura da ação direta e a criação da ação de-claratória de constitucionalidade vieram reforçar o controle concentrado em detrimento do difuso. Não obstante, surgiu um espaço residual expressivo para o controle difuso relativo às matérias não suscetíveis de exame no controle concentrado [...]. É exatamente nesse espaço, imune à aplicação do sistema direto de controle de constitucionalidade, que tem sido re-sponsável pela repetição de processos, pela demora na definição das decisões sobre importantes contro-vérsias constitucionais e pelo fenômeno social e ju-rídico da chamada “guerra de liminares”.

Não há que se confundir controle difuso e concentrado (mod-elos de controle) com o concreto e abstrato (vias de ação), não ob-stante, no sistema brasileiro, todo controle difuso seja concreto e todo

33 Alguns doutrinadores apontam uma constitucionalidade duvidosa da ADC, citando, dentre outras razões, a inexistência de similar em qualquer sistema constitucional con-temporâneo. Nesse sentido, STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007.

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o controle abstrato seja concentrado34, havendo, consoante Marcelo Novelino (2009), um caso de controle concentrado concreto, que é a Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva (ou Represen-tação Interventiva)35.

Advirta-se, contudo, que Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (2007, p. 30/31, grifo do autor), citando outros casos de controle concentrado concreto – como a competência exclusiva do STF para processar e julgar, originariamente, o habeas corpus, o habeas data e o mandado de segurança (art. 102, I, d, CF/88), quando essas ações envolvam apreciação incidental de questão constitucional, e o caso de impetração de mandado de segurança por parlamentar, com vistas ao controle judicial do processo legislativo –, apontam hipótese que nega a afirmação de Marcelo Novelino feita anteri-ormente de que todo controle difuso seja concreto e todo o controle abstrato seja concentrado. É uma situação excepcional de controle abstrato difuso “em que uma lei estadual ou municipal é impugnada no controle abstrato (isto é, ‘em tese’) perante o Tribunal de Justiça por violar dispositivo da Constituição Estadual que seja mera re-produção da Constituição Federal”, pelo que caberá recurso ex-traordinário para o Supremo36.

Quanto à competência do órgão jurisdicional ou modelo de con-trole, pode ser concentrado (reservado) ou difuso (aberto). O controle

34 Na Alemanha, os controles concreto e abstrato são concentrados no Tribunal Federal Constitucional.35 No caso de ato estadual recusar a execução de lei federal (art. 34, VI, CF/88 – nesse caso específico, tem sido denominada Ação de Executoriedade de Lei Federal) ou vio-lação dos princípios constitucionais sensíveis (art. 34, VII, CF/88) e no caso de ato mu-nicipal recusar a execução de lei, ordem judicial ou princípios estabelecidos na Consti-tuição do Estado (art. 35, IV, CF/88 – ADI interventiva estadual).36 “Nesse caso, como a lei estadual ou municipal foi impugnada por desrespeitar disposi-tivo da Constituição Estadual que é mera reprodução de norma da Constituição Federal, contra a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça será cabível recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal. Com isso, teremos hipótese de controle abstrato (haja vista que a impugnação da norma perante o Tribunal de Justiça foi ‘em tese’, isto é, sem relação com nenhum caso concreto, com nenhum direito subjetivo) realizado de for-ma difusa (porque a controvérsia será apreciada por mais de um Tribunal do Poder Ju-diciário)” (PAULO; ALEXANDRINO, 2007, p. 31, grifo nosso). Nesse caso, Marcelo Novelino entende o recurso extraordinário como instrumento de controle concentrado abstrato e não controle abstrato difuso. Por certo, a adoção de um ou outro posicionamento de-pende da base conceitual dos controles difuso e concentrado.

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concentrado, com base no sistema europeu ou austríaco e incorpora-do ao sistema brasileiro pela EC 16/1965, é aquele reservado, concen-trado em um órgão do Poder Judiciário, que pode ser o STF (violação à Constituição Federal) ou o Tribunal de Justiça (violação à Constitu-ição Estadual). Já o controle difuso pode ser exercido por qualquer órgão do Judiciário, com possibilidade de recurso, e é baseado no sis-tema norte-americano. Por esse motivo, diz-se que todos os órgãos do Poder Judiciário exercem a jurisdição constitucional, sendo, em verdade, somente a jurisdição concentrada em face da Constituição Federal exclusiva do Supremo Tribunal Federal.

Quanto à finalidade ou vias de ação, o controle pode ser con-creto ou abstrato. O primeiro, que é uma via incidental, de defesa ou de exceção, visa à proteção dos direitos subjetivos, traduzindo-se, assim, em um processo constitucional subjetivo. Ou seja, a pre-tensão é deduzida em juízo através de um processo constitucional subjetivo, onde a inconstitucionalidade não é o objeto do pedido e, sim, a causa de pedir37. Aqui, por ser uma questão incidental, o questionamento acerca da constitucionalidade de certa lei pode ser reconhecido de ofício pelo juiz.

No controle abstrato (por via de ação, por via principal ou por via direta), a finalidade principal é a proteção da ordem con-stitucional objetiva, isto é, assegurar a supremacia da Constitu-ição, sendo secundário o fim de proteger os direitos subjetivos. Diz-se, destarte, ser um processo constitucional objetivo, onde o pedido é a própria declaração de inconstitucionalidade38 ou con-stitucionalidade, no caso da ação declaratória de constitucion-alidade (ADC). Nesse caso, a declaração de inconstitucionalidade não pode ser feita de ofício. A via abstrata pode ser instaurada perante o STF por meio de uma das seguintes ações diretas: ação

37 Na decisão, a apreciação incidental da inconstitucionalidade dá-se na fundamen-tação, pois não faz parte do pedido a declaração de inconstitucionalidade.38 Desse modo, sendo o pedido a própria declaração de inconstitucionalidade, a parte dispositiva da decisão apreciará tal pedido e declarará ou não a inconstitucionalidade. Esse dispositivo da decisão tem efeito erga omnes e vinculante, ao passo que a funda-mentação dela tem apenas efeito vinculante naquilo que seja a ratio decidendi, pelo que não se incluem as questões obiter dicta, secundárias, ditas de passagem, acessóri-as. O fenômeno que estende o efeito vinculante à fundamentação é chamado de “efeito transcendente dos motivos determinantes” ou “transcendência dos motivos”, ambos tidos por sinônimos pelo STF.

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direta de inconstitucionalidade genérica (ADI), ação direta de in-constitucionalidade por omissão (ADO)39, ação declaratória de constitucionalidade (ADC), arguição de descumprimento de pre-ceito fundamental (ADPF) e ação direta de inconstitucionalidade interventiva (ADI interventiva, com a observação da possibilidade da Ação de Executoriedade de Lei Federal). Refira-se, ainda, ao controle abstrato em cada Estado e no Distrito Federal, instaurado perante o respectivo Tribunal de Justiça.

Esse é o nosso rico modelo de controle judicial de constitucion-alidade ou jurisdição constitucional, essencialmente repressivo, sendo excepcionalmente admitido que o Poder Judiciário realize um controle preventivo no caso de impetração de mandado de se-gurança por parlamentar quando não for observado o devido pro-cesso legislativo constitucional. Entretanto, registre-se, esse mod-elo jurisdicional não exclui situações especiais de controle político preventivo e repressivo pelos demais Poderes, Legislativo e Execu-tivo, podendo-se falar, portanto, em fiscalização não-jurisdicional da validade das leis. Enfim, no Brasil, vige o Controle Judicial Misto (difuso e concreto) e o Sistema Jurisdicional, com possibilidade ex-cepcional de Controle Político40.

Dentre tantas outras diferenças entre o controle difuso e o con-centrado, quanto aos efeitos gerados, tem-se que, no difuso, os efeitos são, em regra, inter partes e ex tunc, podendo ser, desde que haja resolução do Senado, erga omnes e ex nunc41. Já no concen-trado, referindo-se especificamente à ADI genérica, ADC e ADPF, os efeitos da decisão de mérito são, em regra, erga omnes, ex tunc,

39 O STF, a partir de seus últimos julgados, tem utilizado “ADO” para designar a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, substituindo os termos “ADInPO” ou “ADI por omissão”.40 A título de comparação, na Suíça, por exemplo, vige o Sistema Misto (Político e Ju-risdicional), “onde as leis federais são controladas pela Assembléia Nacional (órgão político) e as leis locais, submetidas ao controle do Poder Judiciário, garantindo-se, em ambas as situações, a supremacia da Constituição” (MACHADO, 2005, p. 289/290).41 Esse é o entendimento majoritário. Porém, conforme apuração de Pedro Lenza (2011), Clèmerson Merlin Clève, Gilmar Ferreira Mendes, Marcelo Caetano e Paulo Napoleão Nogueira da Silva entendem, de forma contrária, pelo efeito ex tunc. Dessa forma também está consignado no texto do art. 1º, § 2º, do Decreto nº 2.346/97, o qual restringe à Administração Pública Federal direta e indireta a produção de efeitos ex tunc da resolução do Senado Federal.

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vinculantes42 (em relação aos órgãos do Poder Judiciário e da Ad-ministração Pública, embora não atinja o STF e o Poder Legislativo para evitar a fossilização da Constituição, nos termos do art. 102, § 2º, CF/88)43 e com efeitos repristinatórios, comportando a pos-sibilidade de modulação ou manipulação temporal dos efeitos da

42 O efeito vinculante foi introduzido com a ADC (EC 3/93), estendido à ADI pela Lei 9.868/99 (e acrescentado na CF/88 pela EC 45/04 – art. 102, § 2º) e à ADPF pela Lei 9.882/99.43 O legislador, em tese, poderá editar uma nova lei que tenha interpretação diver-gente daquela perpetrada pelo Supremo Tribunal. Porém, como ensina Eros Grau em seu voto exarado nos autos da Rcl. 4.335-5/AC, jamais poderá acontecer isso aca-so a Corte tenha decidido pela inconstitucionalidade da lei, sendo que, nesse caso, o braço do Tribunal alcança o céu, conforme aduz – embora haja posição divergente, como aquela exarada pelo então Ministro Moreira Alves nos autos da ADI nº 907 (Rel. Min. Ilmar Galvão), que diz que “também o Supremo Tribunal Federal tem enten-dido que a declaração de inconstitucionalidade não impede o legislador de prom-ulgar lei de conteúdo idêntico ao texto anteriormente censurado” (nesse sentido também preleciona Gilmar Mendes, 2009c, p. 1331/1332, citando, ainda, a ADI nº 864, Rel. Min. Moreira Alves). Ademais, o STF somente em determinadas circunstân-cias poderá rever suas decisões. Gilmar Mendes (2009c, p. 1328/1331) assim coloca a questão, primeiramente quanto ao caso de declaração de constitucionalidade da lei: “ ‘Se se considera que o Direito e a própria Constituição estão sujeitos a mutação e, portanto, que uma lei declarada constitucional pode vir a tornar-se inconstitu-cional, tem-se de admitir a possibilidade da questão já decidida poder ser submetida novamente à Corte Constitucional’. [...] declarada a constitucionalidade de uma lei, ter-se-á de concluir pela inadmissibilidade de que o Tribunal se ocupe uma vez mais da aferição de sua legitimidade, salvo no caso de significativa mudança das circun-stâncias fáticas ou de relevante alteração das concepções jurídicas dominantes [que venham a modificar o conteúdo da Constituição ou da norma objeto do controle, de modo a permitir supor que outra poderá ser a conclusão do processo de subsun-ção]”. Já no caso de declaração de inconstitucionalidade da lei, dispõe: “Aceita a id-eia de nulidade da lei inconstitucional, sua eventual aplicação após a declaração de inconstitucionalidade equivaleria à aplicação de cláusula juridicamente inexistente. Efeito necessário e imediato da declaração de nulidade há de ser, pois, a exclusão de toda ultra-atividade da lei inconstitucional. A eventual eliminação dos atos prati-cados com fundamento na lei inconstitucional há de ser considerada em face de todo o sistema jurídico, especialmente das chamadas ‘fórmulas de preclusão’ ”. E con-clui: “Os atos praticados com base na lei inconstitucional que não mais se afigurem suscetíveis de revisão não são afetados pela declaração de inconstitucionalidade [Cf. RE 86.056, Rel. Rodrigues Alckmin, DJ 1º-7-1977]. Em outros termos, somente serão afetados pela declaração de inconstitucionalidade com eficácia geral os atos ainda suscetíveis de revisão ou impugnação. Importa, portanto, assinalar que a eficácia erga omnes da declaração de inconstitucionalidade não opera uma depuração total do ordenamento jurídico. Ela cria, porém, as condições para a eliminação dos atos singulares suscetíveis de revisão ou de impugnação”.

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decisão44, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de ex-cepcional interesse social (art. 27 da Lei 9.868/99 – a declaração de inconstitucionalidade in concreto também é passível de limitação de efeitos45), a declaração de nulidade parcial sem redução de tex-to (princípio da interpretação conforme à Constituição, que, con-soante admite o STF, pode ser utilizado também no controle difuso) e a declaração de nulidade com redução total ou parcial de texto.

Para ambos os controles de constitucionalidade (difuso e concen-trado), o parâmetro constitucional é formado pela parte permanente da Constituição (arts. 1º ao 250, CF/88) e pelo Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), além dos tratados internacionais de direitos humanos com status de emenda constitucional (art. 5º, § 3º, CF/88) – bloco de constitucionalidade46 – e dos princípios tanto expressos quanto implícitos.

Chega-se, assim, ao núcleo de abordagem do controle de con-stitucionalidade no presente estudo: o controle difuso e o papel do Senado nessa seara.

44 Consoante Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (2007, p. 50), a declaração de in-constitucionalidade pro futuro foi excepcionalmente admitida pelo STF no RE 197.917, Rel. Min. Maurício Correa, 25/03/2004, que versava sobre o número de vereadores da Câmara Municipal (art. 29, II, CF/88). Nesse julgado, foi reconhecida a inconstitucion-alidade do critério anterior para a fixação da composição máxima das Câmaras Munici-pais, mas diferindo os efeitos da decisão para um momento posterior, alcançando-se somente a legislatura seguinte.45 Cf. RE 197.917, Rel. Maurício Corrêa, DJ 07/05/2004; Rcl. 2.391, Rel. Marco Au-rélio, DJ 12/07/2007; ADI 3.022, Rel. Joaquim Barbosa, DJ 18/08/2004; HC 82.959, de 23/02/2006. Cf. ainda MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 1146/1150.46 O bloco de constitucionalidade, consoante Erival da Silva Oliveira (2009, p. 71/72), significa “a reunião de vários diplomas legais considerados constitucionais, não ob-stante terem sido elaborados em momentos diferentes. [...] No Brasil, a Emenda Con-stitucional nº 45/2004 inseriu o art. 5º da CF/88 possibilitando que tratados e conven-ções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados em cada casa do Congresso Nacional por três quintos dos seus membros serão equivalentes às emen-das constitucionais”, podendo, dessa forma, serem, tais tratados, elevados à condição de normas constitucionais. Há quem sustente, como o faz Flávia Piovesan (2006, p. 55, apud OLIVEIRA, 2009, p. 71/72), que o bloco de constitucionalidade nos casos de tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos já seria possível desde a vigência da CF/88, tendo em vista os §§ 1º e 2º de seu art. 5º.

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3.3 O Controle Difuso (tendência de abstrativização / objeti-vação) e o Papel do Senado Federal (mutação constitucional e teoria da transcendência dos motivos determinantes)

Como foi dito, o controle difuso deriva, historicamente, do sis-tema americano e é conhecido no Brasil desde a sua primeira Con-stituição republicana (1891). É o controle que pode ser realizado no curso de qualquer ação, por via incidental (incidenter tantum) e concreta, cabendo a qualquer componente do Poder Judiciário con-hecer da inconstitucionalidade de um ato normativo, respeitado, no caso da competência do Tribunal, a “cláusula de reserva de plenário” (full bench), prevista no art. 97 CF/88.

Já foi visto também que esse controle pela jurisdição ordinária não descaracteriza a jurisdição constitucional, pois há composição de lití-gios constitucionais com possibilidade de recurso ordinário (art. 102, II, CF/88) e extraordinário (art. 102, III, CF/88) para o Supremo, dando-se, isso sim, prevalência ao caso concreto em sede de ações diversas, como o mandado de segurança, habeas corpus, habeas data, ação civil públi-ca, ação popular, ação ordinária, etc. Mais uma vez repete-se que esse controle (princípio da constitucionalidade), como todo e qualquer outro, está umbilicalmente jungido aos princípios da democracia e da proteção aos direitos fundamentais. Para uma melhor discussão dos efeitos típicos desse controle, é necessária uma abordagem mais detalhada do sistema do qual ele derivou.

O controle difuso de constitucionalidade é fundado em um cri-tério interpretativo através do judicial review, que assegura a lei fun-damental de um país:

[...] na verdade, o controle de constitucionalidade pelo método difuso nada mais é do que a aplicação de certo princípio interpretativo, isto é, do princípio interpretativo das normas constitucionais e das nor-mas infraconstitucionais, por via judicial (daí a revisão judicial), para verificar se há ou não conformidade destas àquela. (SILVA, 2000, p. 250)

Nesse contexto, acolhendo as técnicas da common law, os Constituintes americanos conceberam a Constituição como o di-

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reito supremo da Terra (alusão a uma tradição do Direito Natural), a lex superior, lex legum, lex inmutabile, donde deriva o princípio da supremacia constitucional, que fez com que o Chief Justice John Marshall, no famigerado caso Marbury v. Madison, lançasse a con-strução de todo um sistema de controle de constitucionalidade, por qual a Suprema Corte Americana firmou o entendimento de que o Poder Judiciário poderia não aplicar uma lei por entendê-la inconstitucional, nos casos concretos a ele submetidos. Daí a importância da Corte Suprema dos Estados Unidos e o respeito e prestígio de que gozam suas decisões, deveras fundamentadas em princípios de interpretação normativa por meio da revisão judicial, o que acaba por gerar os precedentes (stare decisis; leading cases). Essa formulação ajuda a explicar a aceitação geral de uma institu-ição com competência de “juízo de revisão” que sequer foi expres-samente prevista na Constituição. Corrobora isso, ainda, o fato de a Corte representar toda a ideologia americana, como salienta García de Enterría (1981, p. 127, apud SILVA, 2000, p. 251):

O Tribunal Supremo é reverenciado e acatado como a representação mais alta da ideologia ameri-cana, da própria identidade nacional. Há inclusive toda uma mitologia religiosa: a Constituição como texto inspirado por Deus; os fundadores como os santos; os juízes da Corte Suprema como os sumos sacerdotes que cuidam do culto ao texto sagrado no Marbel Pal-ace, no Palácio de Mármore, onde tem sua sede, e que extraem desse texto pouco menos que a infalibilidade.

Talvez até por isso a Constituição americana e o papel da Corte Suprema tenham maior magnitude do que aqui no Brasil... José Afon-so da Silva (2000, p. 251) afirma que, se examinarmos bem a fundo, a conclusão natural disso tudo é que “a Corte Suprema norte-amer-icana exerce função muito aproximada das Cortes Constitucionais do sistema europeu, porque ela é efetivamente uma Corte de garan-tia Constitucional [...]”, tendo atribuições eminentes e praticamente reduzidas de controlar a constitucionalidade das leis e proteger os direitos humanos fundamentais (princípio da constitucionalidade e da proteção aos direitos fundamentais, com espeque democrático),

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com eficácia erga omnes, dada a eficácia geral de suas decisões, que abre a possibilidade de anular a lei erga omnes.

No Brasil, essa possibilidade de extensão dos efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal depende de resolução por parte do Senado (art. 52, X, CF/88), fato esse que já demonstra a apreensão diversa pelo sistema brasileiro do sistema americano, no tocante à eficácia (erga omnes) das decisões proferidas pela Corte Suprema dos EUA. Aliás, é com a Constituição Federal de 1988, a qual, dentre outras coisas, a bem dizer reduziu a competência do STF à matéria constitucional (art. 102), que se pode vislumbrar uma aproximação, ainda que tímida, entre os dois sistemas. Isso se revela positivo na medida em que o STF assume uma postura, mesmo que não tão bem fortificada, de uma Corte de garantia constitucional.

É nesse sentido que se entende condizente que o nosso Tribunal Supremo possa dar efeitos também erga omnes às suas decisões em controle difuso (como o faz a Corte Americana, com base no instituto do stare decisis, que assegura o efeito vinculante de suas decisões e sustenta a nulidade da lei inconstitucional), realizando-se plenamente como guardião da Constituição e fortificando-se como Corte Constitu-cional, ao fazer prezar, perante todos, os valores da Constituição.

Aliás, não pensar dessa forma é concluir mais pela negação do que a afirmação da teoria da nulidade da lei inconstitucional47, já que se dá ao ato do Senado um significado substancial que afasta a ideia de incon-stitucionalidade (nulidade) geral da lei declarada pelo órgão máximo do Poder Judiciário. Ora, lei inconstitucional é ipso jure nula (“null and void”, como falam os estadunidenses), e é nula desde sempre (ex tunc) e para todos (erga omnes)48, já que nascida morta (lei natimorta). Interessante, ao tratar desse controle difuso de constitucionalidade, o seguinte excer-to, extraído do voto de Marshall (apud SILVA, 2000, p. 294, grifo nosso):

Certamente todos os que fizeram Constituições escritas as contemplam como coisas que formam a lei fundamental e suprema da Nação, e, por con-

47 A teoria da nulidade da lei inconstitucional é sustentada nos Estados Unidos através do stare decisis e na Alemanha através da Gesetzeskraft (“força de lei”).48 Cf., para maiores detalhes, toda uma argumentação equilibrada feita por Gilmar Fer-reira Mendes em voto proferido na Rcl. 4.335-5/AC (Anexo D). Cf. também MENDES; COELHO; BRANCO, 2009c, p. 1134/1136, onde ele aloca os mesmos argumentos.

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seguinte, a teoria de todos os governos dessa es-pécie deve ser a da nulidade do ato da legislatura que contrarie a Constituição.

No Brasil, esse pressuposto teorético foi acatado pela maioria da doutrina, como Rui Barbosa, Alfredo Buzaid, Castro Nunes e Fran-cisco Campos, em oposição à teoria da anulabilidade, defendida de forma minoritária por Pontes de Miranda e Regina Nery Ferrari. São características da referida teoria da nulidade: a) o fato de a decisão ter eficácia declaratória da situação pré-existente; b) o vício ser aferido no plano de validade; c) por regra, a inconstitucionalidade produz efeitos ex tunc, ou seja, retroativos; d) a lei inconstitucional é ato nulo (null and void), ineficaz (nulidade ab origine), írrito e, portanto, desprovido de força vinculativa; e) invalidação de berço dos atos praticados com base na lei inconstitucional; f) por ser natimorta, a lei inconstitucional não entra nem no plano da eficácia.49 (LENZA, 2011)

Significante a seguinte observação de Rui Barbosa (1932, p. 268, apud MENDES, 2009c, p. 1135, grifo nosso), a propósito do direito americano:

[...] se o julgamento foi pronunciado pelos mais altos tribunais de recursos, a todos os cidadãos se estende, imperativo e sem apelo, no tocante aos princípios constitucionais sobre o que versa. [Nem a legislação] tentará contrariá-lo, porquanto a regra stare decisis exige que todos os tribunais daí em di-ante o respeitem como res judicata [...].

Por esse motivo, dentre outros, que Gilmar Mendes (2009c, p. 1140) entendeu da seguinte forma a questão posta na Rcl. 4.335-5/AC:

Proferi voto reafirmando minha posição no senti-do de que a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado há de ter simples efeito de publi-cidade, ou seja, se o Supremo, em sede de controle

49 Claro que há possibilidade de mitigação da teoria da nulidade referida no texto (bem como da anulabilidade), à luz de princípios como da segurança jurídica, da con-fiança, da ética jurídica, da boa-fé, ponderação de valores, etc., pelo que se desata o nó górdio do sistema de controle. (LENZA, 2011)

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incidental, declarar, definitivamente, que a lei é incon-stitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação àquela Casa legislativa para que pub-lique a decisão no Diário do Congresso. Dessa forma, julguei procedente a Reclamação por entender desre-speitada a eficácia erga omnes da decisão proferida no HC 82.959, no que fui acompanhado por Eros Grau.

Essa nova perspectiva, fundamentada em uma teoria da mutação constitucional (processo informal de mudança da Constituição)50 e em uma teoria da transcendência dos motivos determinantes adiante analisada, é resultado de vários fatores. Um deles é a tendência de abstrativização do controle concreto, tipicamente difuso. Marcelo Novelino (2009) aponta esse fenômeno como sendo a extensão dos efeitos do controle abstrato (erga omnes, ex tunc e vinculante) para o concreto (inter partes e ex nunc, caso não haja a suspensão pelo Sena-do), também podendo ser chamado de objetivação ou verticalização do controle concreto, em razão da imposição de decisão de Tribunal Superior (rectius: Supremo) ao inferior.

A jurisprudência do STF fornece exemplos disso, embora, por vez-es, não seja o posicionamento de todos os Ministros. O RE 197.917/SP (caso “Mira Estrela”), citado em nota anterior, referia-se à questão da Resolução do TSE acerca da proporcionalização do número de vere-adores. Restou assentado, porém, que era inconstitucional o critério anterior para a fixação da composição máxima das Câmaras Munici-pais, à luz do art. 29, II, CF/88, diferindo os efeitos da decisão para um momento posterior, alcançando-se somente a legislatura seguinte (modulação temporal dos efeitos). Importante notar, nesse exemplo, que, segundo o voto de Gilmar Mendes, a decisão ali proferida seria vinculante para todos os Municípios da federação brasileira, pelo que se daria efeito próprio do controle abstrato.

Outro exemplo é o HC 82.959/SP, no qual, consoante alguns vo-tos proferidos, o efeito da decisão seria erga omnes. O caso refere-se ao fato de o STF ter modificado a jurisprudência acerca da vedação da progressão de regime, colocando vista no princípio da individu-alização da pena (atualmente o assunto encontra-se pacificado pela

50 Cf. capítulo 2, acerca do Poder Constituinte Difuso, que constitui toda uma teoria de modificação informal da Constituição, da qual faz parte a Mutação Constitucional.

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Súmula Vinculante nº 26/2009, mas a questão de fundo – mutação do art. 52, X, CF/88 – ainda está acesa)51.

No Acre, após a decisão do referido habeas corpus, houve a inter-posição da Rcl. 4.335, já referida no texto, cujo relator é o Ministro Gilmar Mendes, que confirmou, no seu voto, os efeitos erga omnes daquela de-cisão, afirmando o papel do Senado de dar somente publicidade, inob-stante o art. 52, X, CF/88. O Ministro Eros Grau também seguiu esse voto, aplicando a mutação constitucional. Foram contra os Ministros Sepúlve-da Pertence e Joaquim Barbosa, estando os autos do processo, desde fevereiro de 2011, prontos para julgamento pelo plenário.

Outros casos emblemáticos deram-se pelos Mandados de Injun-ção 670, 708 e 712, relativos ao direito de greve dos servidores públi-cos. O efeito dado aí foi erga omnes, restando vencidos os Ministros que votaram pelo efeito inter partes.

Na legislação, tanto a constitucional quanto a infraconstitucional trouxeram novidades, que só vêm a reforçar a tese aqui defendida. A Súmula Vinculante (rectius: enunciado de súmula com efeito vinculan-te) é o exemplo maior, fruto da EC 45/04 (art. 103-A, CF/88) e regula-mentada pela Lei 11.417/06, ao dar possibilidade de o STF, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões so-bre matéria constitucional, aprovar súmula que terá efeito vinculante (art. 103-A, caput, CF/88), cabendo reclamação ao Excelso Pretório do ato ou decisão que contrarie ou aplique indevidamente a súmula (art. 103-A, § 3º, CF/88). Consoante o § 1º do art. 103-A da CF/88,

Art. 103-A. [...] § 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multipli-cação de processos sobre questão idêntica.

A adoção da súmula vinculante, ressalta Gilmar Mendes (2009c, 1139), só vem reforçar a ideia de superação do art. 52, X, CF/88, na medida em que o próprio Tribunal, sem qualquer interferência do

51 Antes, a redação de parágrafos do art. 2º da Lei 8.072/90 já fora reformada pela Lei 11.464/07.

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Senado, afere a inconstitucionalidade de determinada orientação, nos termos dos dispositivos citados acima (aproximação com o stare decisis americano).

A Lei de Repercussão Geral (Lei 11.418/06) também pode ser mencionada, que veio regulamentar o art. 102, § 3º, CF/88, acrescen-tado pela EC 45/04. Assim, passou a ser requisito intrínseco de admis-sibilidade recursal a demonstração da repercussão geral para que o Recurso Extraordinário fosse admitido (art. 543-A, caput, CPC), exig-indo-se que a questão deva ter relevância econômica, social, política ou jurídica (art. 543-A, § 1º, CPC) (aproximação com o writ of certiorari do modelo dos EUA e sua cláusula do discretionary method of review). Ademais, “negada a existência da repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão da tese, tudo nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal” (art. 543-A, § 5º, CPC).

O Recurso Extraordinário passa a ter um caráter objetivo, demon-strando, destarte, que esses dispositivos evidenciam também a tendência de objetivação do controle difuso. Aliás, esse é o posicion-amento de Gilmar Mendes, que assim manifestou-se no processo ad-ministrativo nº 318.715/STF, que culminou na edição da emenda nº 12 ao Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF), pub-licada no DJ de 17/12/200352, dispondo da mesma forma quando de seu voto no RE 556.664/RS, DJE 14/11/2008, ao se referir, nesse caso específico, à Emenda Regimental nº 21/07 do STF:

[O recurso extraordinário] deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou defesa de interesse das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. Trata-se de orientação que os modernos sistemas de Corte Con-stitucional vêm conferindo ao recurso de amparo e ao recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde). [...]

A função do Supremo nos recursos extraordinári-os – ao menos de modo imediato – não é a de resolver litígios de fulano ou beltrano, nem a de revisar todos os pronunciamentos das Cortes inferiores. O pro-

52 Cf. MENDES, 2009a, p. 28. Cf. também DIDIER JR., 2006, p. 122, apud GERMANO, 2009.

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cesso entre as partes, trazido à Corte via recurso ex-traordinário, deve ser visto apenas como pressuposto para uma atividade jurisdicional que transcende os interesses subjetivos.53

Gilmar Mendes54, no voto proferido na Rcl. 4.335, após abordar o RE 191.898, DJ 22/08/1997 – onde restou assentado que a decisão plenária do STF que declare a inconstitucionalidade de norma elide a presunção de sua constitucionalidade, podendo, a partir daí, “os órgão parciais dos outros Tribunais acolhê-la para fundar a decisão de casos concretos ulteriores, prescindindo de submeter a questão de constitucionalidade ao seu próprio plenário” –, aduz que

Esse entendimento [e também todo aquele de-lineado supra] marca uma evolução no sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, que passa a equiparar, ainda que de forma tímida, os efeitos das decisões proferidas nos processos de controle abstra-to e concreto. (STF, voto do Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 09/02/2007, p. 32/33)

Destacam Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes (2005, p. 93) a observação de Häberle, para o qual “a função da Con-stituição na proteção dos direitos individuais (subjetivos) é apenas uma faceta do recurso de amparo”, posto dotado de uma “dupla fun-ção”, subjetiva e objetiva, “consistindo esta última em assegurar o Di-reito Constitucional objetivo”.

Tudo isso reforça, além do mais, a estrutura de Corte Constitu-cional do Supremo, o qual deixa de lado, progressivamente, a outra

53 Cf. MARTINS; MENDES, 2005. Refira-se que tal linha foi seguida no julgamento do RE 376.852, de 27/03/2003, quando o próprio Ministro reafirmou a necessidade de trans-formação do Recurso Extraordinário em remédio de controle abstrato de constitucion-alidade. No julgamento do AI 375.011, constante do informativo 365 do STF, a Ministra Ellen Gracie segue tal entendimento, dispensando o prequestionamento para estender os precedentes aos casos concretos. O Ministro Sepúlveda Pertence, no julgamento do RE 298.694, publicado no DJ de 23/04/2004, flexibilizou o requisito do prequestionamento e consagrou a tese de que o Recurso Extraordinário transcende ao interesse das partes e se amolda como instrumento para controle abstrato da constitucionalidade. Cf. LIMA, 2007.54 Cf. MENDES, 1997. Disponível em: <www.gilmarmendes.com.br>.

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função de ser mera instância recursal, em virtude dessa verticali-zação – lembre-se que a Carta Maior de 1988 reforçou tal estrutura de Corte, ao reduzir, a bem dizer, a competência do STF à matéria constitucional (art. 102) e criar novas figuras de controle.

Por certo, toda essa situação tende a amenizar a repetição de processos, a demora das decisões constitucionais sobre importantes controvérsias e o chamado fenômeno das “guerras de liminares”. Quanto ao gigantesco número de processos que chegam à Suprema Corte brasileira, cf. anexo, onde se pode verificar um comparativo en-tre 1940 a 2011 e observar que, no ano de 2011 (dados atualizados até novembro), de todos os processos julgados (90.607), estrondosos 86,5% deles (78.383) se referiam apenas a Agravo de Instrumento e Recurso Extraordinário [!], instrumentos, como se sabe, próprios do controle difuso-concreto. Para efeito de direito comparado, valemo-nos do estudo feito por Ives Gandra da Silva Martins Filho (2001, grifo do autor) em relação aos julgamentos da Suprema Corte americana:

No ano de 1997, em termos quantitativos, en-quanto as Cortes Federais americanas receberam um total de 1,7 milhão de processos, as Cortes Es-taduais chegaram à cifra de 87 milhões de causas ajuizadas. Já a Suprema Corte não tem recebido mais de 8 mil processos por ano [e não tem julgado mais de 100 no ano]. Nesse mesmo período, o Bra-sil teve um total de aproximadamente 7 milhões de processos julgados pela Justiça Estadual (incluindo 1ª e 2ª instância, e juizados especiais de pequenas causas), 2,5 milhões pela Justiça do Trabalho e 700 mil pela Justiça Federal. Já o STF julgou 40 mil, o STJ 101 mil e o TST 111 mil processos em 1998. Comparando as cifras americanas com as brasileiras, verificamos que os Estados Unidos têm um nível de demanda judiciária muito mais elevado (maior litigiosidade e maior conscientização dos próprios direitos), mas com reduzido número de processos que chegam às Cortes Superiores, uma vez que há uma generalizada tendência a se buscar o acordo judicial que ponha fim ao litígio, em vez de se esperar pela decisão final da autoridade judiciária. Já no Brasil, a mentalidade é a de se recorrer enquanto houver re-

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curso cabível, encerrando-se as demandas mais por percalços processuais durante a tramitação da causa do que por efetiva aceitação da decisão judicial pe-las partes envolvidas. Daí a necessidade de se adotar algum mecanismo de simplificação do sistema recur-sal, de caráter seletivo das causas que, efetivamente, recomendem um exame pelas Cortes Superiores.

As inovações não param por aí. O I Pacto Republicano, assinado em 2004, gerou toda a modernização do sistema da Justiça e reformulação das leis. Seguindo essa trilha, não se pode olvidar o recente II Pacto Republicano, de abril de 2009, que tem três objetivos principais: a pro-teção dos direitos humanos e fundamentais, a agilização e efetivação da prestação jurisdicional e a promoção de maior acesso à Justiça. Isso tudo pode ser resumido em mais democracia e mais proteção aos direitos fundamentais, objetivos que o controle de constitu-cionalidade não pode perder de vista e que bem se coadunam com o Estado Democrático-Social-Constitucional de Direito implementado pela Constituição Federal de 1988 e por suas emendas, que trouxeram várias novidades, a exemplo da EC 3/93 (que introduziu com a ADC o efeito vinculante) e a multicitada EC 45/04 (reforma do Judiciário).

Pode-se, igualmente, mencionar os efeitos advindos dos instru-mentos de controle das omissões constitucionais. A Ação Direta de In-constitucionalidade por Omissão (ADO) e o Mandado de Injunção têm finalidade de assegurar a supremacia as Constituição, sendo aquele um controle abstrato e este, concreto. As discussões relevantes, con-tudo, encontram-se no instrumento do mandado de injunção, posto que na ADO apenas “será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão ad-ministrativo, para fazê-lo em trinta dias” (art. 103, § 2º, CF/88)55.

55 Cf. ADI 3682, na qual “o Tribunal julgou procedente ação para reconhecer a mora do Congresso Nacional, e, por maioria, estabeleceu o prazo de 18 (dezoito) meses para que este adote todas as providências legislativas ao cumprimento da norma constitu-cional imposta pelo artigo 18, § 4º, da Constituição Federal, nos termos do voto do Relator [...]”, porém esclarecendo que “não se trata de impor um prazo para a atuação legislativa do Congresso Nacional, mas apenas da fixação de um parâmetro temporal razoável, tendo em vista o prazo de 24 meses determinado pelo Tribunal nas ADI nºs. 2.240, 3.316, 3.489 e 3.689 para que as leis estaduais que criam municípios ou alteram seus limites territoriais continuem vigendo, até que a lei complementar federal seja promulgada contemplando as realidades desses municípios” (apelo ao legislador).

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Quanto aos efeitos da decisão de mérito no mandado de injun-ção, formaram-se duas correntes: a não concretista e a concretista, sendo importante notar que o STF já adotou, em sua jurisprudência, todas elas. A corrente não concretista vai de encontro ao que aqui se defende, pois não privilegia a segurança dos valores constitucionais pelo Supremo ao adotar uma postura de mera ciência ao órgão omis-so competente. Esse era o entendimento do STF, que, a contar pelos julgados recentes, foi superado. Sendo assim, a corrente concretista passa a assumir uma posição de destaque, pela qual é possível elabo-rar a norma para o caso concreto.

Repita-se, por não ser cansativa a ideia que se quer firmar, que essa atitude concretista em sede de controle concreto está em perfeita harmonia com os princípios da democracia e da proteção dos direi-tos fundamentais, tão incorporados na nossa Carta de 1988. Refira-se, ainda, às derivações concretistas, podendo ser: geral, que visa à adoção de uma postura de dar efeitos erga omnes, como no caso do direito de greve (MI 670, 708 e 712), individual, pela qual o Poder Judiciário faz a regulamentação para a parte, ou seja, dá efeito inter partes (MI 721) ou intermediária, pela qual o STF dá ciência ao órgão e estabelece prazo, sendo que, se nesse prazo não é suprida a omissão, o Tribunal já fixa quais são as condições para a pessoa exercer seu direito (e.g. MI 232).

Um dos argumentos contrários a essa tendência, relatada pelos exemplos destacados, é que seriam os Tribunais inferiores e os juízos de primeiro grau órgãos mais apropriados para a proteção dos di-reitos subjetivos, tendo os Tribunais Superiores uma tendência maior de se acomodar com as políticas governamentais, muitas vezes lev-ando em consideração as questões econômica em detrimento dos direitos subjetivos. Inobstante isso, porém, a utilização correta dos princípios da democracia e proteção dos direitos fundamentais pode neutralizar essa atitude “política” do STF. Ademais, sendo o Supremo o guardião da Constituição, cabe a ele dar a última palavra sobre como a Constituição deve ser interpretada, sob pena de as interpretações divergentes enfraquecerem a força normativa da Constituição.

Da mesma forma, diga-se, com o escólio de Gilmar Mendes (apud NOVELINO, 2009), que o sistema que o Brasil vem adotando viola o princípio da igualdade, podendo-se referir, também, à violação ao princípio da legalidade, com base no texto de Celso de Albuquerque Silva (2005, p. 90/96). Entende-se dessa maneira porque quando o

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Supremo, no controle incidental, decide pela inconstitucionalidade da lei, ele já deu o sentido normativo (constitucional e legal), sendo que a sua não extensão a todos afronta a igualdade e que qualquer interpretação normativa divergente, após o pronunciamento do su-premo intérprete, não condiz com o princípio da legalidade. Quanto a essa agregação de sentido normativo pelos Tribunais Superiores, Celso de Albuquerque Silva aduz (2005, p. 90 e 96, grifo nosso):

[...] seguir a interpretação dada pelas cortes superi-ores nada mais é do que prestar obediência ao princí-pio da legalidade, na medida em que se reconhece ser o direito alográfico (a norma é sempre resultado da interpretação de um texto). O dever de obediência do juiz não é ao texto frio da lei, mas à norma que dele é construída [...]. Ora, seguir a interpretação dos tribunais superiores é aplicar o direito de modo imparcial e regular, pois tal resultado se apresenta como fruto de decisões racionais e não derivadas de meras opções políticas e/ou pessoais do julgador.

[...] Em todas essas hipóteses, porém, não se pode afirmar que as cortes judiciais estejam atuando como, nem usurpando as funções do Poder Legislativo, pois, diversamente do atuar deste, os sentidos agregados ao texto não têm por fundamento opções políticas ou de moralidade consideradas mais adequadas, mas princípios jurídicos compartidos pela coletividade, como, v.g., o princípio da concordância prática, da ra-zoabilidade e da ponderação de interesses [com vista, sempre, nos supremos princípios da democracia e da proteção dos direitos fundamentais].

Assim, a fim de que os princípios da igualdade e legalidade (além da imparcialidade) não sejam violados, as decisões do STF, em sede de controle difuso, e quando o caso, deveriam ter eficácia erga omnes e efeito vinculante. Por certo, essa atitude aproximaria o nosso sistema ao stare decisis, teoria americana segundo a qual deve ser dado o devido peso ao precedente judicial, pois derivado de uma interpretação normativa, onde as decisões proferidas pelos Tribunais

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superiores vinculam os inferiores, o chamado binding effect, que o Su-premo utiliza como sinônimo de efeito vinculante. Esse é o cerne da concentração do controle no/pelo STF, que gera o fenômeno da juris-prudencialização, tratado em capítulo próprio. Ora, o Senado não tem exercido o seu papel, o que viola, como visto, o princípio da igualdade e da legalidade, além de enfraquecer o instituto a ele reservado.

Voltando ao caso específico da atuação do Senado, sabe-se que a ampliação dos efeitos da declaração incidental de inconstitucionali-dade depende da suspensão da execução da lei (entendida em sen-tido amplo, ou seja, como lei ou ato normativo) pelo Senado56 (art. 52, X, CF/88) – a outra possibilidade dessa ampliação é a aprovação de súmula vinculante pelo próprio STF, porém, devido a seu quorum e requisitos especiais (art. 103-A, CF/88), mostra-se instituto jurídico que ainda deixa a desejar no tocante a uma efetiva e global proteção constitucional, não obstante o grande avanço e esforço. Essa suspen-são pelo Senado dá-se através de resolução e é restrita às decisões proferidas no controle difuso57.

O entendimento predominante (inclusive, do STF), quanto a essa resolução, é de ser um ato discricionário, e é esse o sentido que o Senado vem adotando, embora haja autores que sustentam que é ato vinculado, a citar, com o escólio de Marcelo Novelino (2009), o en-tendimento (minoritário) de Zeno Veloso, Celso Ribeiro Bastos, Lenio Luiz Streck e Dirley da Cunha Júnior, este entendendo que o Senado tem um dever jurídico-constitucional. Advirta-se que, mesmo a reso-lução sendo ato discricionário, tem que se ater aos exatos limites da decisão proferida pelo Supremo.

A eficácia da resolução que suspende a execução de lei é erga omnes. Existem, porém, controvérsias acerca do efeito temporal (se ex nunc ou se ex tunc). Marcelo Novelino (2009) diz que José Afonso da Silva e Oswaldo Aranha Bandeira de Mello atribuem efeitos erga

56 Como o Senado é órgão federal e órgão nacional, composto por representantes dos Estados, é-lhe permitido suspender lei federal, estadual ou municipal, sem ferir o princípio federativo.57 Regimento Interno do STF (RISTF): “Art. 178. Declarada, incidentalmente, a incon-stitucionalidade, na forma prevista nos arts. 176 e 177, far-se-á comunicação, logo após a decisão, à autoridade ou órgão interessado, bem como, depois do trânsito em julgado, ao Senado Federal, para os efeitos do art. 42, VII [atual dispositivo da CF/88: art. 52, X], da Constituição.”

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omnes e ex nunc ao ato, enquanto Gilmar Mendes defende ter eficá-cia retroativa, ex tunc, portanto.

Com intuito de por fim a essa discussão, Marcelo Novelino (2009) propõe que seja dado efeito, em geral, ex nunc, embora possa a reso-lução conferir ex tunc. De forma mais contundente, Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (2007, p. 52/53) concluem pela produção de efeitos retroativos, afirmando, ainda, ser essa a posição majoritária na doutrina. Inobstante a palavra “suspensão” dar a ideia de efei-tos prospectivos, ex nunc, pelo que caberia tão somente ao Senado “revogar” a lei, realmente perderia sentido o fim claro do art. 52, X, CF/88, que é o “[...] de evitar que todos os possíveis interessados [...] ajuízem ações visando a obter a mesma decisão” (PAULO; ALEX-ANDRINO, 2007, p. 52). Quanto ao argumento de caber ao Senado “revogar” a lei, aduzem os referidos autores que assumiria essa Casa uma competência anômala, pois a revogação é ato cuja produção exige a conjugação da Câmara, do próprio Senado e do Presidente da República. Assim, essa atuação não é legislativa, posto que sim-plesmente o Senado estende a todas as pessoas decisões de eficácia inter partes, atuando, aí sim, no âmbito do controle de constitucion-alidade. Confirma essa tese o Decreto nº 2.346/97, o qual, em seu art. 1º, § 2º, afirma claramente que, no âmbito do Poder Executivo Fed-eral, a resolução do Senado produz efeitos retroativos (ex tunc)58.

De qualquer forma, nos termos do art. 52, X, CF/88, cabe inexo-ravelmente ao Senado a ampliação dos efeitos de lei declarada in-constitucional pelo STF. O que a nova perspectiva do STF pretende, engendrada pelos votos dos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau, é justamente uma mutação constitucional desse dispositivo. Questio-

58 Decreto nº 2.346/97: “Art. 1º As decisões do Supremo Tribunal Federal que fixem, de forma inequívoca e definitiva, interpretação do texto constitucional deverão ser uniformemente observadas pela Administração Pública Federal direta e indireta, obe-decidos aos procedimentos estabelecidos neste Decreto. § 1º Transitada em julgado decisão do Supremo Tribunal Federal que declare a incon-stitucionalidade de lei ou ato normativo, em ação direta, a decisão, dotada de eficácia ex tunc, produzirá efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitu-cional, salvo se o ato praticado com base na lei ou ato normativo inconstitucional não mais for suscetível de revisão administrativa ou judicial.§ 2º O disposto no parágrafo anterior aplica-se, igualmente, à lei ou ao ato normativo que tenha sua inconstitucionalidade proferida, incidentalmente, pelo Supremo Tribunal Federal, após a suspensão de sua execução pelo Senado Federal.”

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na Gilmar Mendes (2009a, p. 32, grifo nosso)59, atestando a superação de uma concepção de separação de Poderes:

A amplitude conferida ao controle abstrato de normas e a possibilidade de que se suspenda, limi-narmente, a eficácia de leis ou atos normativos, com eficácia geral, contribuíram, certamente, para que se mitigasse a crença na própria justificativa desse instituto, que se inspirava diretamente numa con-cepção de separação de Poderes – hoje necessária e inevitavelmente ultrapassada. Se o Supremo Tribunal pode, em ação direta de inconstitucion-alidade, suspender, liminarmente, a eficácia de uma lei, até mesmo de emenda constitucional, por que haveria a declaração de inconstitucionali-dade, proferida no controle incidental, valer tão somente para as partes?60

Vendo toda a evolução feita neste subtópico, não há como deixar de concordar com Gilmar Mendes (2009a, p. 32, grifo nosso), que re-sponde da seguinte forma, após dizer que a exigência da suspensão por parte do Senado, introduzida com a Constituição de 1934, em seu art. 91, IV – Gilmar Mendes (2009a, p. 29) adverte que já na época de seu surgimento havia questionamentos, como o do Deputado Godofredo Vianna, que pretendeu que a inexistência jurídica da lei fosse reconhecida após o segundo pronunciamento do Supremo Tribunal sobre a inconstitucionalidade do diploma –, e preser-vada na Carta de 1988 (art. 52, X), “perdeu parte do seu significado com a ampliação do controle abstrato de normas, sofrendo mesmo um processo de obsolescência”:

A única resposta plausível nos leva a acredi-tar que o instituto da suspensão pelo Senado as-senta-se hoje em razão exclusivamente histórica. Observe-se que o instituto da suspensão da execução da lei pelo Senado mostra-se inadequado para as-

59 Cf. também MENDES; COELHO; BRANCO, 2009c, p. 1131/1150.60 A mesma pergunta eloquente é feita por Dirley da Cunha Júnior (2010, p. 156).

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segurar eficácia geral ou efeito vinculante às de-cisões do Supremo Tribunal que não declaram a inconstitucionalidade de lei, limitando-se a fixar a orientação constitucionalmente adequada ou corre-ta. Isso se verifica quando o Supremo Tribunal afirma que dada disposição há de ser interpretada desta ou daquela forma, superando, assim, entendimento adotado pelos Tribunais Ordinários ou pela própria Administração. A decisão do Supremo Tribunal não tem efeito vinculante, valendo nos estritos limites da relação processual subjetiva. Como não se cuida de declaração de inconstitucionalidade de lei, não há cogitar aqui de qualquer intervenção do Senado, restando o tema aberto para inúmeras controvérsias.

De acordo com as lições de Gilmar Mendes (2009a, p. 32/33), as situações que comprovam a obsolescência do instrumento de sus-pensão pelo Senado multiplicam-se. É o caso da interpretação con-forme a Constituição, pela qual o STF ressalta que certa interpretação seja compatível com o texto constitucional ou que, para ser con-stitucional, a norma necessita de complemento (lacuna aberta) ou restrição (lacuna oculta – redução teleológica), não afirmando pro-priamente a ilegitimidade da lei. Essas decisões, igualmente, não po-dem ter a sua eficácia ampliada com o recurso ao instituto da suspen-são da execução da lei pelo Senado. Da mesma forma, o instituto do art. 52, X, CF/88, não tem aplicação nos seguintes casos: declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, em que um determinado significado normativo é tido por inconstitucional sem qualquer alteração da expressão literal; quando o Tribunal limita-se a rejeitar a declaração de inconstitucionalidade, valendo a decisão de per si, ou seja, a lei é constitucional e continua a ser; nas decisões do Tribunal que versem sobre matéria na qual a Corte, ao prover ou não o recurso, fixa uma interpretação da Constituição; nos casos de declaração de não recepção da lei pré-constitucional.

Outra questão interessante que também marca a evolução no sistema de controle de constitucionalidade brasileiro diz respeito à desnecessidade de utilizar o procedimento do art. 97 da CF/88 (reserva de plenário) quando o Supremo Tribunal já tenha pronun-

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ciado a inconstitucionalidade da lei debatida61. Explicita Gilmar Mendes (2009c, p. 1133) que “esse entendimento [...] passa a equipa-rar, praticamente, os efeitos das decisões proferidas nos processos de controle abstrato e concreto”, pois “a decisão do Supremo Tribu-nal Federal, tal como colocada, antecipa o efeito vinculante de seus julgados em matéria de controle de constitucionalidade incidental [...]”, o que permite, destarte, que o órgão fracionário – inclusive os órgãos parciais dos outros Tribunais (cf. RE 191.898, Rel. Sepúlveda Pertence, DJ 22/08/1997) – decida autonomamente com fundamen-to em anterior declaração de inconstitucionalidade (ou de constitu-cionalidade) pelo STF, proferida incidenter tantum. Tal orientação está positivada no art. 481, parágrafo único, CPC, que diz, em redação in-cluída pela Lei nº 9.756, de 17.12.1998, que “os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão”. No mesmo contexto, cite-se o art. 557, caput e § 1º-A do CPC.

Dessa forma, das decisões possíveis em sede de controle, a suspensão da execução pelo Senado está restrita aos casos de de-claração de inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo (MENDES, 2009a, p. 33). E, mesmo nesse caso, o Tribunal já avançou, no sentido de assumir posição que parte da doutrina costumava atribuir ao Senado. Basta lembrar que o STF vem admitindo (Cf. RE 197.917)62 as “decisões de calibragem” (MENDES, 2009a), ou seja, a pronúncia, no controle incidental ou difuso, de inconstitucionalidade com efeito limitado (declaração de inconstitucionalidade com efeito ex nunc). Indubitável, assim, o novo significado a ser extraído do insti-tuto da suspensão de execução pelo Senado, no contexto da Consti-tuição de 1988 (MENDES, 2009a, p. 33; 2009c, p. 1132/1133).

Quanto ao exposto, resume Gilmar Mendes (2009a, p. 45, grifo nosso), notando precisamente toda essa tendência de abstrativi-zação ou, como ele chama, de “dessubjetivização das formas proces-

61 Cf. RE 190.728, Rel. Ilmar Galvão, DJ 30/05/1997; AI-AgRg 168.149, Rel. Marco Aurélio, DJ 04/08/1995; AI-AgRg 167.444, Rel. Carlos Velloso, DJ 15/09/1995; RE 191.898, Rel. Sepúlveda Pertence, DJ 22/08/1997.62 Ação Civil Pública contra lei municipal que fixa o número de Vereadores, cujo relator foi o Min. Maurício Corrêa, DJ 31/03/2004.

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suais”, advinda da convivência do modelo incidental difuso com o direto concentrado (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009c, p. 1150):

Não parece haver dúvida de que a limitação de efeito é decorrência do controle judicial de constitu-cionalidade, podendo ser aplicado tanto no controle di-reto quanto no controle incidental. Em suma, a adoção de estrutura procedimental aberta para o processo de controle difuso (participação de amicus curiae e outros interessados), a concepção de recurso extraordinário de feição especial para os Juizados Especiais, o recon-hecimento de efeito transcendente para a declaração de inconstitucionalidade incidental, a lenta e gradual superação da fórmula do Senado (art. 52, X), a incor-poração do instituto da repercussão geral no âmbito do recurso extraordinário e a desformalização do recurso extraordinário com o reconhecimento de uma possível causa petendi aberta são demonstrações das mudanças verificadas a partir desse diálogo e intercâmbio entre os modelos de controle de constitucionalidade posi-tivados no Direito brasileiro. Percebe-se inequívoca tendência para ampliar a feição objetiva do proces-so de controle incidental entre nós.63

Revisando a orientação acerca do art. 52, X, CF/88, Gilmar Mendes (2004, p. 165/166; 2009c, p. 1139, grifo nosso e itálico do autor) con-clui ser legítimo “entender que, hodiernamente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado Federal há de ter simples efeito de publicidade”, visto que,

tal como assente, não é (mais) a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supre-

63 Não deixa de ser instigante a conclusão a que chegaram os articulistas Guido Naza-reth Júnior e Thiago Vieira Barbosa (2009, p. 5) de que “é preciso regular de maneira adequada pois se o intuito é o de igualar os efeitos ao do controle direto de con-stitucionalidade deve-se alinhar também os procedimentos pois temos importantes partícipes no controle concentrado que dão uma maior segurança ao resultado obtido no controle de constitucionalidade (Advogado Geral da União, Procurador Geral da República, amicus curiae) que não tem participação no controle difuso. Ora, se vamos igualar os efeitos, por conseguinte devemos ter similaritude nos procedimentos”.

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mo. A própria decisão da Corte contém essa força normativa. Parece evidente ser essa a orientação im-plícita nas diversas decisões judiciais e legislativas aci-ma referidas. Assim, o Senado não terá a faculdade de publicar ou não a decisão, uma vez que se não cuida de uma decisão substantiva, mas de simples dever de pub-licação, tal como reconhecido a outros órgãos políti-cos em alguns sistemas constitucionais (Constituição austríaca, art. 140, 5 – publicação a cargo do Chanceler Federal, e Lei Orgânica da Corte Constitucional Alemã, art. 31, (2) publicação a cargo do Ministro da Justiça). A não-publicação não terá o condão de impedir que a decisão do Supremo assuma a sua real eficácia. Essa solução resolve de forma superior uma das tormen-tosas questões da nossa jurisdição constitucional. Superam-se, assim, também, as incongruências cada vez mais marcantes entre a jurisprudência do Su-premo Tribunal Federal e a orientação dominante na legislação processual, de um lado, e, de outro, a visão doutrinária ortodoxa e – permita-nos dizer – ultra-passada do disposto no art. 52, X, da Constituição de 1988.64

Dirley da Cunha Júnior (2010, p. 156) entende também que essa competência do Senado, se foi necessária nos idos de 1934 ou mes-mo na década de 1980, hoje já não mais revela utilidade, em face do novel sistema trazido pela Constituição da República vigente, posto que “num sistema em que se adota um controle concentrado-principal, e as decisões de inconstitucionalidade operam efeitos erga omnes e vinculantes, a participação do Senado [...], [...] em sede de controle incidental, é providência anacrônica e contraditória”. Não é diferente o posicionamento de André Ramos Tavares (1998, p. 148), para quem a atribuição ao Senado da possibilidade de suspender a lei justificava-se quando o sistema brasileiro não conhecia o controle concentrado, porém “hoje, melhor teria sido, se a Constituição tivesse deferido diretamente ao Supremo Tribunal Federal a possibilidade de declarar, erga omnes, e, mais ainda, com força vinculante, a incon-stitucionalidade de ato normativo decorrente da análise em face de

64 Cf., também, voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes na Rcl. 4.335 (Anexo D).

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um caso concreto”. Dessa forma, diz o autor ser esdrúxula a posição adotada pelo Constituinte, “ao que a doutrina e jurisprudência sou-beram oferecer razoável solução, que não afeta a letra da Lei Máxima, nem tampouco redunda em indevida interferência de um ‘poder’ em outro” (TAVARES, p. 148, grifo nosso).

Explica-se. A Separação dos Poderes, também chamada de equipotência65 e

garantida essencialmente no art. 60, § 4º, inc. III, CF/8866, não é uma fórmula rígida, apriorística, ideal, posto que cada Constituição consa-gra uma forma de apresentá-la. Por isso mesmo, sendo um princípio histórico (Konrad Hesse)67, deve ser analisada dentro do sistema da Carta brasileira. Quando se fala em “princípio da separação de po-deres”, o que se deve ter em mente, sendo uno o Poder Estatal, é a repartição de funções estatais, revelando-se o Estado ora como Esta-do-administrador, ora como Estado-legislador, ora como Estado-juiz68. Fundamentado nisso, Montesquieu (2007) concebeu a famigerada tripartição orgânica das funções estatais (distinção entre os Poderes e não separação), como forma de moderação do poder, pelo que somente o poder seria capaz de conter o poder (“le pouvoir arrête le

65 Cf. ALBUQUERQUE, 2003, p. 119.66 Além daquelas expressas no art. 60 da CF/88, há outras cláusulas pétreas implícitas, consoante defendem Paulo Bonavides, José Afonso da Silva, Pinto Ferreira e Marcelo Novelino. São elas: o próprio art. 60 da CF/88 (para evitar a dupla revisão, ou seja, al-terar o processo da Constituição para alterar outro conteúdo); os direitos sociais (pelo que se entende que os direitos sociais são pressupostos elementares para o exercício dos direitos individuais – Paulo Bonavides e Ingo Sarlet); os direitos fundamentais (Car-los Velloso); o sistema presidencialista e a forma republicana de governo (Ivo Dantas sustenta que o art. 2º do ADCT fez com que a forma e o sistema de governo tornassem-se cláusulas pétreas).67 Esse princípio da separação deve ser considerado como um princípio histórico porque está em contato com uma determinada ordem constitucional concreta, não sendo um dogma de valor intemporal (CANOTILHO, 1995, p. 688). Aliás, sua importân-cia vem sendo destacada desde a elaboração da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que o consagrou como ratio essendi da Constituição: “Art. 16. Toda socie-dade em que a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não tem Constituição”.68 Kant, explicando a unidade e a indivisibilidade do poder, de um lado, e a pluralidade dos órgãos de sua manifestação, de outro, parodiou o dogma da Santíssima Trindade, ao dizer que o Estado é uno e trino ao mesmo tempo.

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pouvoir”)69. Destaca-se, em relação às vertentes do Estado (adminis-trador-legislador-juiz), a concepção de freios e contrapesos (checks and balances) ou interpenetração dos poderes70.

Como bem esclarece Carlos Augusto Alcântara Machado (2005, p. 167), a palavra que outrora designava o princípio em comento era sep-aração/distinção, contudo, com a sua relativização, “hoje procura-se at-ingir a coordenação e a harmonização71, como garantia da estabilidade política”, o que significa, consoante as lições de Sahid Maluf (1995, p. 208), que eles “[...] se entrosam e se subordinam mutuamente na finali-dade essencial de compor os atos de manifestação da soberania na-cional [...]”. Dessa maneira, atribuem-se, de acordo com o disposto no texto constitucional, funções típicas e atípicas a cada um dos Poderes do Estado: Executivo (típica: administrar; atípica: legislar e julgar); Leg-islativo (típica: legislar; atípica: administrar e julgar); Judiciário (típica: julgar; atípica: administrar e legislar). Essa é a linha geral traçada pelo art. 2º da CF/88, que diz que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

Destarte, o princípio da separação funcional é posto numa dimensão negativa e positiva, ou seja, segundo J. J. Gomes Cano-tilho (1995, p. 365, grifo nosso), “(1) a separação como ‘divisão’, ‘controlo’ [sic] e ‘limite’ do poder – dimensão negativa” e “(2) a separação como constitucionalização, ordenação e organização do poder do Estado tendente a decisões funcionalmente efica-zes e materialmente justas [dimensão positiva]”, esta desembo-cando no esquema relacional de competências, tarefas, funções e responsabilidades dos órgãos estatais.

69 Madison, em O Federalista, observa que se devem controlar os detentores do poder porque os homens não são governados por anjos, mas sim por outros homens (Cf. LIMONGI, 2003, p. 249).70 J. A. Guilhon Albuquerque (2003, p. 119) defende que Montesquieu, na verdade, ref-utava a separação dos poderes, entendida na sua versão mais divulgada de independ-ência entre eles. Baseado nas análises de L. Althusser e Charles Eisenmann, o referido autor dispõe que “a separação de poderes da teoria de Montesquieu teria, portanto, outra significação”, pela qual o barão de Montesquieu já apontaria aquilo que hoje se tem de moderna acepção, ou seja, a imbricação de funções e a interdependência entre o executivo, o legislativo e o judiciário, sendo esse um problema mais político (de cor-relação de forças) do que mesmo jurídico-administrativo (de organização de funções).71 Essa constatação, J. J. Gomes Canotilho (1995, p. 366) chama de “ordenação contro-lante-cooperante de funções”.

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Ocorre que, de tempos em tempos, parece que um desses Poderes está em crise. Referindo-se somente ao período pós-1988, tivemos a crise no Executivo, com o impeachment de Collor e, recentemente, o mensalão, a crise do Judiciário, com a morosidade da Justiça, que vem sendo amenizada com as diversas reformas, a citar a EC/45 de 2004, e a crise do também envolvido no esquema do mensalão (e mensalinho), o Legislativo, o qual, como visto no introito deste trabalho, não con-segue, atualmente, cumprir satisfatoriamente a sua função legiferante. Nesse contexto, por serem harmônicos entre si, é que justamente deve haver o reforço natural de um (ou uns) quando o outro (ou outros) está no ápice da crise, a fim de preservarem-se mesmo as instituições, no interesse da sociedade. Isso não significa que um adentre na função típica do outro, o que seria subversivo. Nesse sentido,

[...] separação dos poderes quer dizer não que os três poderes devam ser reciprocamente independentes, mas que se deve excluir que quem possua todos os poderes de um determinado setor possua também todos os poderes de um outro, de modo a subverter o princípio [...]. (BOBBIO, 1988, p. 100, grifo nosso)

Com base nisso, precisamente, é que se pode concluir com Cano-tilho (1995, p. 366, grifo nosso e do autor) que “o que importa num Estado constitucional de direito não será tanto saber se o que legis-lador, o governo ou o juiz fazem são actos [sic] legislativos, executivos ou jurisdicionais, mas se o que eles fazem pode ser feito e é feito de forma legítima”. Para ele, essa legitimidade traduz-se na proibição do “monismo de poder”, do qual resultaria “[...] o esvaziamento das funções materiais especialmente atribuídas a outro [órgão]” (teoria do núcleo essencial) (CANOTILHO, 1995, p. 691).

Assim, se se atribui ao Poder Judiciário (mais especificamente à nossa Corte Constitucional, o STF) a interpretação final sobre o significado da Constituição72, consoante o art. 102 e seguintes da CF/88, não há que se falar em usurpação de poder a proposta de dar nova feição ao controle difuso de constitucionalidade, pois, assum-

72 Já defendia isso Hamilton, em O Federalista n. 78, incorporada essa ideia, após, na Corte Suprema americana (Cf. LIMONGI, 2003, p. 252).

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indo o STF a função de suspender a execução de lei declarada incon-stitucional – o que o Senado não vem fazendo –, o mesmo não estar-ia fugindo de seu encargo (responsabilidade) de guardião, garantido constitucionalmente, nem violando o núcleo essencial (Kernbereich) dos limites constitucionais de competência. Ao revés, isso, além de firmar a unidade do poder do Estado – sem que seja ultrapassado, frise-se, o núcleo essencial das competências –, somente o fortalece-ria como Corte Constitucional, ao garantir-se a autoridade de suas decisões, além de enfraquecer a concepção de ser ele parte Corte e parte órgão de cúpula do Poder Judiciário (Tribunal de Apelação)73 – instrumentos como a Súmula Vinculante e a Repercussão Geral, den-tre outros, dão norte a essa tendência atual.

Pertinente, neste momento, a seguinte indagação: se a teoria da separação dos poderes foi concebida para assegurar a liberdade dos indivíduos e, posteriormente, com o objetivo de aumentar a eficiên-cia do Estado, como conceber seja o próprio princípio utilizado con-tra a tendência de dar maior efetividade às decisões judiciais, que visam a justamente assegurar, numa acepção atual, as liberdades e os direitos individuais, coletivos, sociais, de nacionalidade e de ci-dadania (políticos)? Responde-se com o escólio magistral do profes-sor da USP, Dalmo de Abreu Dallari (2002, p. 220/222, grifo nosso):

Como se tem observado, a separação dos po-deres foi concebida num momento histórico em que se pretendia limitar o poder do Estado e reduzir ao mínimo sua atuação. Mas a evolução da sociedade criou exigências novas, que atingiram profunda-mente o Estado. Este passou a ser cada vez mais solicitado a agir, ampliando sua esfera de atuação e intensificando sua participação nas áreas tradicion-ais. [...] Entretanto, apesar da patente inadequação da organização do Estado, a separação dos poderes é um dogma, aliado à idéia de democracia, daí decor-rendo o temor de afrontá-la expressamente. Em conseqüência, buscam-se outras soluções que

73 Essa acepção dúplice do STF e suas consequências nefastas mostram-se através de números, em relação aos processos que chegam à Suprema Corte. Cf. anexo, onde se pode verificar um comparativo entre 1940 a 2009.

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permitam aumentar a eficiência do Estado man-tendo a aparência da separação dos poderes. [...] Na verdade, as próprias exigências de efetiva garantia de liberdade para todos e de atuação democrática do Estado requerem deste maior di-namismo e a presença constante na vida social [como vem sendo, atualmente, o Estado-juiz], o que é incompatível com a tradicional separação de poderes. É necessário que se reconheça que o dogma da rígida separação formal está superado, reorganizando-se completamente o Estado, de modo a conciliar a necessidade de eficiência com os princípios democráticos.

Acaso o princípio da separação de poderes não fosse reanalisa-do, sob o ponto de vista da coordenação entre os Poderes para efe-tivação dos direitos constitucionais, haveriam de prevalecer os ques-tionamentos de outrora sobre a incompatibilidade entre jurisdição constitucional, que visa precisamente a uma efetivação dos preceitos constitucionais, e a democracia. Por esse sentido, seríamos obriga-dos a concordar com a tese de que o controle de constitucionalidade teria sido ato de usurpação de poder por parte da Suprema Corte; o judicial review afrontaria a clássica tripartição dos poderes, poten-cializando a oligarquia da toga; o controle de constitucionalidade prestar-se-ia tão somente a legitimar variáveis políticas.

Ora, sabe-se que a jurisdição constitucional alinha-se perfei-tamente com o Estado Democrático-Social-Constitucional de Direito, sendo “[...] instrumento eficaz para compatibilizar os preceitos do Esta-do Liberal com os do Estado Social”, pelo que “o ativismo do Poder Ju-diciário coaduna-se com a Democracia Social”, estando aí “[...] a legitim-idade da jurisdição constitucional” (SIQUEIRA JR., 2006, p. 66/67). Dessa evolução de posicionamento doutrinário, o princípio da separação dos poderes, como instrumento também de efetivação dos preceitos constitucionais, não poderia ficar de fora. O Poder Judiciário, por-tanto, é reforçado para que se reconstrua o social através do pro-cesso, em razão da transferência pela sociedade de suas incapaci-dades às instituições judiciárias (COELHO JUNIOR, 2005).

Já se disse citeriormente que cabe essencialmente ao Judiciário (mormente o STF) fazer o controle de constitucionalidade das leis;

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lei e Constituição são obras do poder popular; assim, a legitimidade popular, não de origem, mas adquirida (de exercício) do Judiciário74 vem do fato de ele controlar a “vontade do povo” (manifestada na lei) pela própria “vontade do povo” (manifestada na Constituição), conectando-as naquilo que for de valor mais supremo – esse ponto foi bem abordado no capítulo referente ao ativismo judiciário e à ju-risprudencialização, ao qual se remete o leitor (subcapítulo 1.3).

Não há autoritarismo do Poder Judiciário, pois será ele guiado, essencialmente, pelos superprincípios da constitucionalidade ou da racionalidade constitucional (da conformidade), da democracia (do Estado Democrático de Direito – supercláusula pétrea, nas palavras de Carlos Britto, 1999) e da dignidade da pessoa humana e proteção aos direitos fundamentais, inclusive das minorias. Engendra, em verdade, um papel fundamental ante as omissões dos Poderes Executivo e Legislativo, pela efetivação constitucional através, principalmente, do controle de constitucionalidade, sendo indispensável, por isso, à fomentação da democracia em nosso país.

Corrobora a visão da Separação de Poderes [rectius: separação funcional dos órgãos constitucionais]75 supra delineada, muito em-bora por motivos diversos, o seguinte trecho da Tese de Carlos Britto, pelo qual se demonstra que, por vezes, a aparente usurpação do princípio, na verdade, é um reforço dele mesmo, além de revelar que ele foi estratificado em consequência, antes de tudo, de se dar mais atenção ao Poder Executivo, por razões históricas:

Mais conhecida ainda é a crônica da Separação dos Poderes. Aqui, o localizado embate é dos Poderes Legislativos e Judiciário contra o Poder Executivo. Este sempre foi o mais sujeito às tentações do abuso e do desvio de autoridade, por ser, pela natureza mesma das funções, o guardião das chaves do Erário e das prisões. O controlador do Fisco e das forças mili-tares e policiais. Por ele é que a História conheceu a negra fase do absolutismo real, símbolo máximo da supremacia do poder sobre o Direito. Donde a clara

74 Cf. Inocêncio Mártires Coelho (2002, p. 95).75 Cf. CANOTILHO, 1995, p. 366.

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compreensão de que as propostas emendacionais que significarem desconcentração de competência (o Executivo é o centro orgânico do Poder estatal) não infirma o princípio da Separação. Não tisna a pureza desse princípio e ainda o reforça, desde, naturalmente, que se preservem os mecanismos da harmonia e da independência. Nesse contexto, até mesmo a substituição emendativa do presidencial-ismo pelo parlamentarismo não seria de se entender como ofensiva da cláusula pétrea em questão, pois o parlamentarismo é princípio de organização do poder estatal que divide, justamente, o Executivo. (BRITTO, 1999, p. 366/367, grifo nosso e do autor)

Carlos Britto (1999, p. 369), analisando panoramicamente cada uma das cláusulas pétreas, propõe que elas sejam entendidas por sua genérica finalidade, “[...] que radica no enfrentamento ou na contenção de um caracterizado algoz histórico”, sem que seja esquecida a super-cláusula pétrea da democracia76, que abraça o rol do art. 60, CF/88. Di-ga-se, por oportuno, que a proposta deste trabalho passa justamente pelo entendimento histórico dos institutos e sua teleologia, conforme propugnado por Carlos Britto em sua Tese, para chegar-se à conclusão de que, pelo exposto, o que temos é um revigoramento do núcleo in-tangível da Separação dos Poderes – essa abordagem histórica e tel-eológica ronda todo o trabalho, o que, desde logo, demonstra ser um modelo geral de análise do fenômeno jurídico.

Quanto à mencionada supercláusula pétrea da democracia, ela segue o entendimento, a ser captado pelo povo, “[...] de ser ele o único senhor do seu próprio destino constitucional” (BRITTO, p. 298).

76 O Estado Democrático, institucionalizado no art. 1º, CF/88, e presente em vários outros dispositivos, destina-se a assegurar o exercício dos direitos e garantias sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça social (art. 3º, CF/88), além do voto direto, secreto, universal e periódico, a divisão espacial e orgânica do poder (regime federal e tripartição dos poderes, re-spectivamente), que desembocam na soberania popular (art. 14, CF/88) e no regime democrático e pluralismo político (arts. 17; 34, VII, a; 127, CF/88), fazendo com que o povo suba ao podium das decisões que a ele digam respeito. Essa é a perspectiva da democracia como afirmação do povo e ferrenho combate ao poder descendente (au-tocracia), o que faz dela um superconceito e transforma-a na mais pétrea (a ratio essen-di) de todas as cláusulas pétreas materiais (BRITTO, 1999, p. 357/360).

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Nesse diapasão, o Constituinte é o povo mesmo (titular do Poder), que, num primeiro momento, é sujeito normante; num segundo, entra na Constituição como sujeito normado (BRITTO, p. 297). Dessa identidade entre Constituinte e povo, surgida por natureza de um sistema democrático, é que José Afonso da Silva (2000) concebe o Poder Constituinte como um Poder Popular, embora o que se tenha muitas vezes é um poder sobre o povo e não que repousa no povo...

Demais disso, adverte Dirley da Cunha Júnior (2010, p. 156), acei-tar a liberdade do Senado, que pode discricionariamente suspender ou não o ato declarado inconstitucional pelo STF, significa admitir que uma consideração exclusivamente política sobrepõe-se a um exame jurídico acerca da inconstitucionalidade, o que viola, inclusive, os princípios da constitucionalidade, da democracia e da proteção aos direitos fundamentais, tripé do nosso Estado Constitucional de Direito. Enfim, a conclusão a que se chega, juntamente com Dirley da Cunha Júnior (2010, p. 156/157), é que o sistema da intervenção do Senado nas questões constitucionais incidentais deve ser eliminado, “para transformar o Supremo Tribunal Federal em verdadeira Corte com competência para decidir, ainda que nos casos concretos, com eficácia geral e vinculante, à semelhança do stare decisis da Supreme Court dos Estados Unidos da América”. Aliás, faz-se oportuna a menção ao seguinte fragmento, selecionado da epígrafe do livro Tribunal e Ju-risdição Constitucional, de André Ramos Tavares (1998):

[...] the law often becomes what judges say it is. The decisions of the United States Supreme Court, for ex-ample, are famously important in this way. That Court has the power to overrule even the most deliberate and popular decisions of other departments of gov-ernment if it believes they are contrary to the Consti-tution [...].[77] (Ronald Dworkin, Law’s Empire)

Cite-se Gilmar Mendes (2009c, p. 1141, grifo nosso):

77 “[...] a lei geralmente transmuda-se naquilo que os juízes dizem sê-la. As decisões da Corte Suprema dos Estados Unidos, por exemplo, são especialmente importantes nesse sentido. Aquela Corte tem o poder de anular ainda que sejam as mais delib-eradas e populares decisões de outros órgãos do governo se acreditar que elas são contrárias à Constituição [...]” [tradução nossa].

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A amplitude conferida pela Constituição de 1988 ao controle abstrato de normas contribuiu para tornar visíveis as inadequações ou insuficiências do modelo difuso de controle de constitucionalidade. Não só a notória superação do instituto da suspensão de execução da lei pelo Senado Federal, mas tam-bém a complexidade e a demora na obtenção de julgamento definitivo da questão constitucional pelo Supremo Tribunal, na via incidental, exige reforma radical do sistema difuso de controle de constitucionalidade entre nós.

O que acontece, porém, é que toda essa balbúrdia em torno da nova perspectiva – e isso já foi alertado por Dirley da Cunha Jr. – é gerada, inicialmente, a partir de um simples diagnóstico: a utilização do termo “mutação constitucional” como padrão teorético. Isto é, embora a mutação constitucional, queira ou não, já venha ocorren-do, quando se fala nesse termo os olhares já ficam torcidos.

Que isso não seja problema, então, pois a teoria da transcendên-cia dos motivos determinantes nos fornece substrato suficiente para se chegar à mesma conclusão. Para tanto, a aplicação dessa teoria (também chamada de efeitos irradiantes ou transbordantes dos motivos determinantes), mais aceita – revele-se – pela comunidade jurídica no âmbito do controle concentrado, ocorrerá também no controle difuso.

Tal teoria, ainda tímida mesmo no âmbito do STF, foi bem defi-nida pelo Ministro Celso de Mello, no julgamento do RE 197.917 (o já citado caso dos vereadores de Mira Estrela), como o “efeito vinculante emergente da própria ratio decidendi que motivou o julgamento do precedente”, passando, destarte, a vincular outros julgamentos com o mesmo conteúdo essencial. Distingue-se, por certo, dos comen-tários laterais que não influem na decisão (o obiter dictum).

O Ministro do STJ, Teori Albino Zavascki, no REsp 828.106 (grifo nosso), por sua vez, afirma quanto ao tema que a decisão acerca da inconstitucionalidade de lei,

embora tomada em controle difuso, é decisão de incontestável e natural vocação expansiva, com eficá-cia imediatamente vinculante para os demais tribu-nais, inclusive o STJ (CPC, art. 481, § único [...]), e com

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força de inibir a execução de sentenças judiciais con-trárias, que se tornam inexigíveis (CPC, art. 741, § único; art. 475-L, § 1º, redação da Lei 11.232/05 [...]). Sob esse enfoque, há idêntica força de autoridade nas de-cisões do STF em ação direta quanto nas proferidas em via recursal. Merece aplausos essa aproximação, cada vez mais evidente, do sistema de controle difu-so de constitucionalidade ao do concentrado, que se generaliza também em outros países [...]. No atual es-tágio de nossa legislação [...] é inevitável que se passe a atribuir simples efeito de publicidade às resoluções do Senado previstas no art. 52, X, da Constituição.

São argumentos para se implementar efetivamente tal teoria tran-scendental: a força normativa da Constituição, que não pode ficar a mercê de norma de eficácia limitada, posto que todas as suas normas devem ter eficácia plena; princípio da supremacia da Constituição e a sua aplicação uniforme a todos os destinatários (igualdade substancial e imparcialidade); o STF enquanto guardião da Constituição é seu inté-rprete máximo; dimensão política das decisões do STF. (LENZA, 2011)

Desse modo, descumprindo a tese jurídica encampada, isso au-torizaria o uso da Reclamação como mecanismo de fazer valer a de-cisão acerca da (in)constitucionalidade tomada pelo Tribunal Supre-mo. Em contrabalanceamento, haveriam de se fortalecer, como já o são nos EUA, mecanismos mais acessíveis aos interessados no resul-tado do processo (e.g. amicus curiae e audiências públicas, na ideia de Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição, de Peter Häberle)78, participando dele porque serão afetados pela pronúncia da Corte Su-prema, o que traria mais legitimidade às decisões tomadas com menos processos idênticos, os denominados “casos de massa”.

Repita-se, contudo, que no STF ainda não é unanimidade esse modelo teorético transcendental, mesmo no controle concen-trado. Carlos Britto, por exemplo, chega a dizer na Rcl. 10.604 (de 08/09/2010), referindo-se à questão de ordem pendente na Rcl. 4.219, que “tal aplicabilidade implica prestígio máximo ao órgão de

78 Cf. capítulo 1, subcapítulo 1.2, in fine, para mais detalhes sobre a Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição (e do Direito, na medida em que este encontrar seu fundamento direto naquele, conforme visto).

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cúpula do Poder Judiciário e desprestígio igualmente superlativo aos órgãos da judicatura de base, o que se contrapõe à essência mesma do regime democrático, que segue a lógica inversa: a lógica da desconcen-tração do poder decisório”. Cita, nesse sentido, várias decisões do Su-premo onde foi rejeitada a tese: Rcl. 2.475-AgR, Rel. Min. Carlos Vello-so (vencidos Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa e Celso de Mello); Rcl. 2.990-AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; Rcl. 4.448-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski; Rcl. 3.014, Rel. Min. Carlos Britto.

Não obstante, há julgados em sentido favorável à objetivação, na esteira de garantir, além dos direitos individuais (aspecto subjetivo), o próprio Direito Constitucional objetivo (Peter Häberle). Citem-se:

EMENTA Agravo regimental. Ação direta de in-constitucionalidade manifestamente improcedente. Indeferimento da petição inicial pelo Relator. Art. 4º da Lei nº 9.868/99. 1. É manifestamente improcedente a ação direta de inconstitucionalidade que verse sobre norma (art. 56 da Lei nº 9.430/96) cuja con-stitucionalidade foi expressamente declarada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, mesmo que em recurso extraordinário. 2. Aplicação do art. 4º da Lei nº 9.868/99, segundo o qual “a petição inicial inepta, não fundamentada e a manifestamente improcedente serão liminarmente indeferidas pelo relator”. 3. A al-teração da jurisprudência pressupõe a ocorrência de significativas modificações de ordem jurídica, social ou econômica, ou, quando muito, a superveniência de argumentos nitidamente mais relevantes do que aqueles antes prevalecentes, o que não se verifica no caso. 4. O amicus curiae somente pode demandar a sua intervenção até a data em que o Relator liberar o pro-cesso para pauta. 5. Agravo regimental a que se nega provimento. (ADI 4.071-AgR, Rel. Min. Menezes Direito, j. 22/04/2009, Plenário, DJE 16/10/2009) (grifo nosso)

EMENTA: FISCALIZAÇÃO NORMATIVA ABSTRATA - PROCESSO DE CARÁTER OBJETIVO - LEGITIMIDADE DA PARTICIPAÇÃO DE MINISTRO DO SUPREMO TRIBU-NAL FEDERAL (QUE ATUOU NO TSE) NO JULGAMENTO DE AÇÃO DIRETA AJUIZADA CONTRA ATO EMANADO

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DAQUELA ALTA CORTE ELEITORAL - INAPLICABILI-DADE, EM REGRA, DOS INSTITUTOS DO IMPEDIMEN-TO E DA SUSPEIÇÃO AO PROCESSO DE CONTROLE CONCENTRADO, RESSALVADA A POSSIBILIDADE DE INVOCAÇÃO, POR QUALQUER MINISTRO DO STF, DE RAZÕES DE FORO ÍNTIMO. [...] CONSAGRAÇÃO, PELO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, COM A EDIÇÃO DA RESOLUÇÃO Nº 21.702/2004, DOS POSTULADOS DA FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO E DA SEGU-RANÇA JURÍDICA. - O Tribunal Superior Eleitoral, ao editar a Resolução nº 21.702/2004, consubstanciadora de mera explicitação de anterior julgamento do Su-premo Tribunal (RE 197.917/SP), limitou-se a agir em função de postulado essencial à valorização da própria ordem constitucional, cuja observância fez prevalecer, no plano do ordenamento positivo, a força norma-tiva, a unidade e a supremacia da Lei Fundamental da República. EFEITO TRANSCENDENTE DOS FUN-DAMENTOS DETERMINANTES DO JULGAMENTO DO RE 197.917/SP - INTERPRETAÇÃO DO INCISO IV DO ART. 29 DA CONSTITUIÇÃO. - O Tribunal Supe-rior Eleitoral, expondo-se à eficácia irradiante dos motivos determinantes que fundamentaram o jul-gamento plenário do RE 197.917/SP, submeteu-se, na elaboração da Resolução nº 21.702/2004 [sobre a redução do número de vereadores de todo o país], ao princípio da força normativa da Constituição, que representa diretriz relevante no processo de interpretação concretizante do texto constitucion-al. - O TSE, ao assim proceder, adotou solução, que, le-gitimada pelo postulado da força normativa da Consti-tuição, destinava-se a prevenir e a neutralizar situações que poderiam comprometer a correta composição das Câmaras Municipais brasileiras, considerada a ex-istência, na matéria, de grave controvérsia jurídica re-sultante do ajuizamento, pelo Ministério Público, de inúmeras ações civis públicas em que se questionava a interpretação da cláusula de proporcionalidade in-scrita no inciso IV do art. 29 da Lei Fundamental da República. A FORÇA NORMATIVA DA CONSTITU-IÇÃO DA REPÚBLICA E O MONOPÓLIO DA ÚLTIMA

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PALAVRA, PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, EM MATÉRIA DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL. - O exercício da jurisdição constitucional - que tem por objetivo preservar a supremacia da Constituição - põe em evidência a dimensão essencialmente política em que se projeta a atividade institucional do Supremo Tribunal Federal, pois, no processo de indagação con-stitucional, assenta-se a magna prerrogativa de decidir, em última análise, sobre a própria substância do poder. No poder de interpretar a Lei Fundamental, reside a prerrogativa extraordinária de (re)formulá-la, eis que a interpretação judicial acha-se compreendida entre os processos informais de mutação constitu-cional, a significar, portanto, que “A Constituição está em elaboração permanente nos Tribunais incumbidos de aplicá-la”[prática constitucional]. Doutrina. Precedentes. A interpretação constitucional derivada das decisões proferidas pelo Supremo Tribu-nal Federal - a quem se atribuiu a função eminente de “guarda da Constituição” (CF, art. 102, “caput”) - assume papel de essencial importância na organização institu-cional do Estado brasileiro, a justificar o reconheci-mento de que o modelo político- -jurídico vigente em nosso País confere, à Suprema Corte, a singular prer-rogativa de dispor do monopólio da última palavra em tema de exegese das normas inscritas no texto da Lei Fundamental. (ADI 3.345/DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. 25/08/2005, Plenário, DJE 20/08/2010) (grifo nosso)

EMENTA: FISCALIZAÇÃO ABSTRATA DE CONSTITU-CIONALIDADE. RECONHECIMENTO, PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, DA VALIDADE CONSTITUCIONAL DA LEGISLAÇÃO DO ESTADO DO PIAUÍ QUE DEFINIU, PARA OS FINS DO ART. 100, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO, O SIGNIFICADO DE OBRIGAÇÃO DE PEQUENO VALOR. DECISÃO JUDICIAL, DE QUE ORA SE RECLAMA, QUE ENTENDEU INCONSTITUCIONAL LEGISLAÇÃO, DE IDÊNTICO CONTEÚDO, EDITADA PELO ESTADO DE SER-GIPE. ALEGADO DESRESPEITO AO JULGAMENTO, PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, DA ADI 2.868 (PIAUÍ). EXAME DA QUESTÃO RELATIVA AO EFEITO TRAN-

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SCENDENTE DOS MOTIVOS DETERMINANTES QUE DÃO SUPORTE AO JULGAMENTO, “IN ABSTRACTO”, DE CONSTITUCIONALIDADE OU DE INCONSTITU-CIONALIDADE. DOUTRINA. PRECEDENTES. ADMIS-SIBILIDADE DA RECLAMAÇÃO. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. Sustenta-se, nesta sede processual - pre-sentes os motivos determinantes que substanciaram a decisão que esta Corte proferiu na ADI 2.868/PI - que o ato, de que ora se reclama, teria desrespeitado a au-toridade desse julgamento plenário [...]. [...] cumpre analisar, presente o contexto ora em exame, se a “ratio decidendi”, que substancia o julgamento desta Corte proferido na ADI 2.868/PI, apresenta-se, ou não, revestida de efeito transcendente, em ordem a viabilizar, processualmente, a utilização do instrumento reclamatório. Parece-me que sim, ao menos em juízo de estrita delibação, especialmente se considerada a decisão que o Plenário do Supremo Tri-bunal Federal proferiu na Rcl 1.987/DF, Rel. Min. MAU-RÍCIO CORREA: “(...) Ausente a existência de preterição, que autorize o seqüestro, revela-se evidente a violação ao conteúdo essencial do acórdão proferido na mencionada ação direta, que possui eficácia erga omnes e efeito vinculante. A decisão do Tribunal, em substância, teve sua autoridade desrespeitada de forma a legitimar o uso do instituto da reclamação. Hipótese a justificar a transcendência sobre a parte dispositiva, dos motivos que embasaram a decisão e dos princípios por ela consagrados, uma vez que os fundamentos result-antes da interpretação da Constituição devem ser ob-servados por todos os tribunais e autoridades, contexto que contribui para a preservação e desenvolvimento da ordem constitucional.” (Rcl 1.987/DF, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA - grifei) Essa mesma orientação, que reconhece o caráter transcendente e vinculante dos fundamen-tos determinantes de decisão do Supremo Tribunal Federal, proferida em sede de controle normativo ab-strato, veio a ser reafirmada no julgamento plenário da Rcl 2.363/PA, Rel. Min. GILMAR MENDES, quando o eminente Relator da causa fez consignar, em expres-siva passagem do seu douto voto, o que se segue: “(...)

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Assinale-se que a aplicação dos fundamentos determi-nantes de um ‘leading case’ em hipóteses semelhantes tem-se verificado, entre nós, até mesmo no controle de constitucionalidade das leis municipais. Em um le-vantamento precário, pude constatar que muitos juízes desta Corte têm, constantemente, aplicado em caso de declaração de inconstitucionalidade o precedente fixado a situações idênticas reproduzidas em leis de out-ros municípios. Tendo em vista o disposto no ‘caput’ e § 1º-A do artigo 557 do Código de Processo Civil, que reza sobre a possibilidade de o relator julgar monocratica-mente recurso interposto contra decisão que esteja em confronto com súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, os membros desta Corte vêm aplicando tese fixada em precedentes onde se discutiu a inconstitucionalidade de lei, em sede de controle difuso, emanada por ente federativo diverso daquele prolator da lei objeto do recurso extraordinário sob exame. Não há razão, pois, para deixar de reconhecer o efeito vincu-lante da decisão proferida na ADIn [...]”. [...] o ato judicial de que ora se reclama parece haver desrespeitado os fundamentos determinantes da decisão do Su-premo Tribunal Federal proferida no julgamento final da ADI 2.868/PI, precisamente porque, naquela oportunidade, o Plenário desta Suprema Corte recon-heceu como constitucionalmente válida, para efeito de definição de pequeno valor e de conseqüente dispensa de expedição de precatório, a possibilidade de fixação, pelos Estados-membros, de valor referencial inferior ao do art. 87 do ADCT, na redação dada pela EC 37/2002, o que foi recusado, no entanto, no âmbito do Estado de Sergipe, pelo órgão judiciário ora reclamado. Na re-alidade, o caso versado nos presentes autos parece configurar hipótese de “violação ao conteúdo essen-cial” do acórdão consubstanciador do julgamento da referida ADI 2.868/PI, o que caracterizaria pos-sível transgressão ao efeito transcendente dos fun-damentos determinantes daquela decisão plenária emanada do Supremo Tribunal Federal, ainda que proferida em face de legislação estranha ao Estado de Sergipe, parte ora reclamante. Sendo assim, e

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presentes as razões expostas, defiro a medida liminar ora postulada (fls. 07, item IV) e, em conseqüência, sus-pendo a eficácia da decisão reclamada (Processo nº 01.05-1212/00 - 5ª Vara do Trabalho de Aracaju/SE - fls. 43 e 52), sustando-se a prática de qualquer outro ato processual e/ou administrativo que se relacione com o questionado ato decisório. (Rcl 2.986 MC / SE, Rel. Min. Celso de Mello, j. 11/03/2005, decisão monocrática em cautelar, DJ 18/03/2005) (grifo nosso)

Finalmente, no mesmo sentido das decisões supracitadas, vale conferir o douto voto do Ministro Gilmar Mendes, proferido na ADI 2.475, na qual restou vencido. Ressaltou ali que “o alcance do efeito vinculante não pode estar limitado à sua parte dispositiva, devendo, também, considerar os chamados ‘fundamentos determinantes’”. Continua, trazendo à baila a literatura jurídica alemã:

Tal como observado, a concepção de efeito vincu-lante consagrada pela Emenda nº 3, de 1993, está estri-tamente vinculada ao modelo germânico disciplinado no § 31, (2), da Lei Orgânica da Corte Constitucional. A própria justificativa da proposta apresentada pelo Deputado Roberto Campos não deixa dúvida de que se pretendia outorgar não só eficácia erga omnes, mas também efeito vinculante à decisão, deixando claro que estes não estariam limitados apenas à parte dispositiva. Embora a Emenda nº 3/93 não tenha incorporado a proposta na sua inteireza, é certo que o efeito vinculante, na parte que foi positivada, deve ser estudado à luz dos elementos contidos na proposta original.

Assim, parece legítimo que se recorra à literatura alemã para explicitar o significado efetivo do instituto.

A primeira indagação, na espécie, refere-se às de-cisões que seriam aptas a produzir o efeito vinculante. Afirma-se que, fundamentalmente, são vinculantes as decisões capazes de transitar em julgado. Tal como a coisa julgada, o efeito vinculante refere-se ao momento da decisão. Alterações posteriores não são alcançadas.

Problema de inegável relevo diz respeito aos limites objetivos do efeito vinculante, isto é, à parte

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da decisão que tem efeito vinculante para os órgãos constitucionais, tribunais e autoridades administrati-vas. Em suma, indaga-se, tal como em relação à coisa julgada e à força de lei, se o efeito vinculante está adstrito à parte dispositiva da decisão (Urteilstenor; Entscheidungsformel) ou se ele se estende também aos chamados fundamentos determinantes (tragende Gründe), ou, ainda, se o efeito vinculante abrange também as considerações marginais, as coisas ditas de passagem, isto é, os chamados obiter dicta.

Enquanto em relação à coisa julgada e à força de lei domina a idéia de que elas hão de se limi-tar à parte dispositiva da decisão (Tenor; Entschei-dungsformel), sustenta o Bundesverfassungsger-icht [Tribunal Constitucional alemão] que o efeito vinculante se estende, igualmente, aos fundamen-tos determinantes da decisão (tragende Gründe).

Segundo esse entendimento, a eficácia da decisão do Tribunal transcende o caso singular, de modo que os princípios dimanados da parte dispositiva (Tenor) e dos fundamentos determi-nantes (tragende Gründe) sobre a interpretação da Constituição devem ser observados por todos os tribunais e autoridades nos casos futuros.

Outras correntes doutrinárias sustentam que, tal como a coisa julgada, o efeito vinculante limita-se à parte dispositiva da decisão, de modo que, do prisma objetivo, não haveria distinção entre a coisa julgada e o efeito vinculante.

A diferença entre as duas posições extremadas não é meramente semântica ou teórica, apresentando profundas conseqüências também no plano prático.

Enquanto o entendimento esposado pelo Bun-desverfassungsgericht importa não só na proibição que se contrarie a decisão proferida no caso concreto em toda a sua dimensão, mas também na obrigação de todos os órgãos constitucionais de adequar a sua conduta, nas situações futuras, à orientação dimana-da da decisão, considera a concepção que defende uma interpretação restritiva do § 31, I, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional que o efeito vinculante há

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de ficar limitado à parte dispositiva da decisão, re-alçando, assim, a qualidade judicial da decisão.

A aproximação dessas duas posições extremadas é feita mediante o desenvolvimento de orientações mediadoras que acabam por fundir elementos das concepções principais.

Assim, propõe Vogel que a coisa julgada ultra-passe os estritos limites da parte dispositiva, abran-gendo também a “norma decisória concreta” (konkrete Entscheidungsnorm). A norma decisória concreta seria aquela “idéia jurídica subjacente à formulação contida na parte dispositiva, que, concebida de forma geral, per-mite não só a decisão do caso concreto, mas também a decisão de casos semelhantes”. Por seu lado, sustenta Kriele que a força dos precedentes, que presumiv-elmente vincula os Tribunais, é reforçada no direito alemão pelo disposto no § 31, I, da Lei do Bundesver-fassungsgericht. A semelhante resultado chegam as re-flexões de Bachof, segundo o qual o papel fundamen-tal do Bundesverfassungsgericht consiste na extensão de suas decisões aos casos ou situações paralelas.

Tal como já anotado, parecia inequívoco o propósito do legislador alemão, ao formular o § 31 da Lei Orgânica do Tribunal, de dotar a decisão de uma eficácia transcendente.

É certo, por outro lado, que a limitação do efeito vinculante à parte dispositiva da decisão tornaria de todo despiciendo esse instituto, uma vez que ele pouco acrescentaria aos institutos da coisa julgada e da força de lei. Ademais tal redução diminuiria sig-nificativamente a contribuição do Tribunal para a preservação e desenvolvimento da ordem constitu-cional. (cf. MENDES, 1999) (grifo nosso, itálico do autor)

Ainda por cima, nada impede a seguinte conclusão: com um gancho na técnica da derrotabilidade, estudada no subcapítulo 1.2, abre-se espaço para se analisar o sentido da expressão “a menos que” subjacente às palavras postas em regras e em normas. É dizer: se o art. 52, X, afirma literalmente que “compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada

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207A Jurisdição Constitucional e o Controle de Constitucionalidade Como Mecanismos de Garantia da Constituição e da Democracia e Cidadania

inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”, poder-se-ia acrescer a expressão subjacente “a menos que”, promov-endo, afinal, toda a finalidade subjacente à regra do dispositivo con-stitucional, que é, dentre outras, dar efetividade às normas e coman-dos fundamentais da Constituição.79

Assim, derrota-se um sentido e faz nascer outro complementar, mais adequado à finalidade subjacente, como dito, devendo, por isso, o art. 52, X, CF, ser lido da seguinte maneira: “Compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei de-clarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Fed-eral, a menos que, em matérias fundamentais e para dar efetividade plena às normas constitucionais, o próprio Supremo Tribunal Fed-eral o faça”. Aqui, nem o texto é modificado, senão a sua norma com-plementada hermeneuticamente (loas à dicotomia texto e norma).

Como facilmente se percebe, não é de se estranhar essa nova perspectiva do Supremo em face do controle difuso, através princi-palmente da Rcl. 4.335, já que é resultado de toda uma tendência de equiparação dos efeitos das decisões proferidas nos processos de controle abstrato e concreto80, como constatou Gilmar Mendes, assentando-se em fundamentos constitucionais, e não em razões de conveniência. É dizer, assim, que as janelas da casa que conservam a concepção do STF como “legislador negativo” estão sendo quebradas e, quando a casa ruir, haverá de renascer outra, muito mais sólida e condizente com todo o sistema, pelo qual cabe à Corte assegurar, com postura ativa e intervencionista, os valores constitucionais, dos quais é a guardiã81. Ratificam isso, outrossim, a nova hermenêutica e a própria concepção de Estado Constitucional de Direito (Verfassungsstaat).

79 Cabe recordar que desde a origem do instituto da suspensão pelo Senado, em 1934, essa finalidade subjacente à norma constitucional do atual art. 52, X, sempre veio sendo considerada, como visto, por exemplo, pela citação anterior do Deputado Go-dofredo Vianna, o que demonstra, por sua vez, esse intento sempre implícito à norma.80 Esse diálogo ou interlocução entre os modelos difuso e abstrato não se restringe, por certo, ao caso objeto deste estudo, mas também está presente na discussão acerca da ação civil pública como instrumento de controle de constitucionalidade e no caso da limitação de efeitos em sede de controle incidental, ao aplicar o art. 27 da Lei 9.868/99. Cf., nesse sentido, MENDES; COELHO; BRANCO, 2009c, p. 1141/1150.81 Não se pode negar que essa imagem da “janela quebrada” adveio ao texto partindo da teoria das janelas quebradas (Broken Windows Theory), própria da criminologia, em-bora com ela não se confunda, obviamente.

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Previdência de um Modo de Direito (Ativismo

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Previdência de em Modo de Direito (Ativismo Constitucional e Justiça Instituinte)

A Suprema Corte dos EUA, deparada numa situação de ter que afastar a 4ª emenda americana para não anular toda uma prova obtida ilegalmente, o que geraria problemas de administração de justiça, recorreu à sabedoria do Justice Holmes para indeferir o pedido que fora feito com base na referida emenda (mutação con-stitucional?): “na vida da lei não existe lógica; o que há é a experiência” (United State Reports, 381:629).

Essa sabedoria também se aplica aqui no Brasil, onde se en-tende que tal experiência (por certa, histórica e empírica, não obstante com inspirações doutrinárias) já está em plena ebulição através, principalmente, das práticas constitucionais, em detri-mento da lógica fria das leis. Como a prática constitucional é toda desenvolvida mediante as decisões dos Tribunais Superiores, em especial o STF – o já referido direito constitucional jurisprudencial –, surge como corolário a necessidade de se sistematizar um direito próprio desse fenômeno: o Direito Judicial.

Claro que todo o trabalho até aqui, implicitamente, tratou desse direito. Mas, como todo fenômeno, faz-se mister uma nomenclatura que simbolize, ou melhor, que traga a carga valorativa que ele quer passar. Assim é com o Direito Judicial, deveras, em formação, em mel-horamento e, por isso, em Beta. Quando se fala que algo está em beta (β), principalmente no meio eletrônico (e.g. na internet, software), significa que a versão de um produto ainda se encontra em fase de desenvolvimento e testes, como a noção acima explicitada.

E o direito judicial está em beta como também está outra noção já vista, que é a do constitucionalismo do futuro (por vir). Esta noção “do que podemos esperar”, de José Roberto Dromi, relembre-se, vem ligada à ideia de consolidação de todos os outros constitucionalis-mos pretéritos, mormente os direitos humanos de terceira dimensão, ao traçar um equilíbrio dos valores de cada geração (individual, social e fraternal-solidário). Da mesma forma, encarta uma série de valores novos, conforme síntese de Pedro Lenza (2011, p. 58):

a) Verdade: a constituição não pode mais gerar fal-sas expectativas; o constituinte só poderá “prometer” o que for viável cumprir, devendo ser transparente e ético [superação da classificação de normas constitucionais com eficácia limitada, pois toda a norma constitucional

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deve ter eficácia plena, sob pena de fazermos loas a um processo de constitucionalização simbólica]1;

b) Solidariedade: trata-se de nova perspectiva de igualdade, sedimentada na solidariedade dos povos, na dignidade da pessoa humana e na justiça social;

c) Consenso: a constituição do futuro deverá ser fruto de consenso democrático;

d) Continuidade: ao se reformar a constituição, a ruptura não pode deixar de levar em conta os avan-ços já conquistados [efeito cliquet – vedação ao ret-rocesso social];

e) Participação: refere-se à efetiva participação dos “corpos intermediários da sociedade”, consagrando-se a ideia de democracia participativa e de Estado de Direito Democrático [rectius: Estado Constitucional de Direito];

f) Integração: trata-se da previsão de órgãos su-pranacionais para a implementação de uma integração espiritual, moral, ética e institucional entre os povos [colabora nesse desiderato o conceito de transconstitu-cionalismo, em que o direito constitucional entra em contato com outros sistemas – relação transcendental permanente – em vista dos fatores, dentre outros, da expansão da jurisdição constitucional e fortalecimento dos direitos da pessoa humana ao longo do tempo]2;

g) Universalização: refere-se à consagração dos direitos fundamentais internacionais nas con-stituições futuras, fazendo prevalecer o princípio da dignidade da pessoa humana de maneira universal e afastando, assim, qualquer forma de desumanização

1 Essa classificação de norma plena, contida e limitada deriva, como se sabe, de José Afonso da Silva. Porém, há uma outra, da lavra de Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres Britto, que mais se coaduna com os novos tempos, se a virmos de modo que não dê margem a retirar a plena eficácia das normas constitucionais. Para eles, as normas são ou de aplicação, já aptas a produzir todos os efeitos e com possibilidade ou não de regulamentação não-restritiva do conteúdo constitucional (irregulamentáveis ou regu-lamentáveis), ou ainda normas de integração, a serem integradas pela legislação infra-constitucional de forma complementar ou restringível (LENZA, 2011).2 Palestra proferida no Fórum Brasileiro de Direito Administrativo (O Direito Público em Debate – 07 e 08 de abril de 2011, Aracaju/SE), cujo tema apresentado em 08/04/2011 pelo professor Dr. Dirley da Cunha Jr. foi Os Desafios do Direito Constitucional Contem-porâneo, onde o tema foi apresentado e tem como expoente na doutrina especiali-zada o jurista Marcelo Neves.

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[através dos Tribunais Internacionais, se for o caso].Nesse diapasão é que se menciona um novo modo de ver o di-

reito, voltado para a práxis dos Tribunais Superiores. Historicamente, a partir da sopa orgânica do constitucionalismo, assim podemos vê-lo de forma bastante resumida. No absolutismo vigorava a máxima da concentração de poder, motivo que fez surgir com os séculos e rev-oluções posteriores uma submissão à Lei do detentor do poder. Era a fase onde o judiciário era tão só a boca da lei, com forte presença, por-tanto, do Legislativo. Após principalmente a 2ª Grande Guerra com a constitucionalização dos direitos humanos, o Judiciário começou a se fazer mais e mais presente na vida da população, gerando a conhecida explosão de litigiosidade. Ocorre, porém, que na falta de como efetivar direitos garantidos na Constituição, passou o Poder Judiciário a ter pa-pel mais ativo, desembocando no alarmado ativismo judicial. Agora, como uma previdência do futuro, concebe-se uma sedimentação des-sa função ativa do Judiciário, superando a transição do ativismo para um próprio conceito mais elaborado de Direito Judicial. É assim que se olha essa evolução vinda e ainda por vir.

É bem verdade que tal tentativa de sistematização também foi lançada em artigo de conteúdo magnífico, da lavra de Emerson Gar-cia (2008), membro do Ministério Público do Rio de Janeiro, intitula-do Direito Judicial e Teoria da Constituição, o qual pode ser facilmente obtido na internet (cf. referências – artigo também publicado pela editora Juspodivm em conjunto com outros colaboradores, in Leituras Complementares de Direito Constitucional - Teoria da Constituição, co-ord. Marcelo Novelino, 2009).

Por esse motivo, abaixo beber-se-á dessa boa fonte para se che-gar, ao final, à conclusão pretendida.

Logo no resumo de seu artigo, Emerson Garcia (2008) já deixa claro o objetivo de seu texto:

O redimensionamento do papel desempenhado pelas distintas funções estatais, em especial do Poder Judiciário, fenômeno correlato às próprias mutações do Estado de Direito, terminou por aproximar os mo-mentos de criação e de aplicação da norma. A impor-tante atividade desenvolvida pelos órgãos jurisdicion-ais no processo de integração das normas, o controle

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de constitucionalidade, a posição do Judiciário perante as omissões legislativas e a força normativa dos prec-edentes exigem esforços no sentido de sistematizar o denominado Direito Judicial, delineando as potenciali-dades e os respectivos limites. (GARCIA, 2008)

Após breve andar histórico acerca do surgimento do Poder Judiciário, o autor mostra que o papel do Judiciário começou a se modificar de mera “boca da lei” (aplicação simples do silogismo das premissas maior e menor) de outrora em função, à primeira vista, da necessidade de se contrapor lei em face da Constituição (Kelsen) e, logo após, pela necessária atividade valorativa conducente à densifi-cação dos princípios jurídicos, dotados, numa fase pós-positivista, de caráter normativo. Pulveriza-se parcela da função normativa entre os demais Poderes, mormente a intervenção final definitiva dos órgãos jurisdicionais (final enforcing power), o que permite se falar em ativi-dade de produção normativa escalonada, em que a atuação norma-tiva parte do direito posto pelo legislador e “sobe” ou se desenvolve através da interpretação ou integração.

Com isso, ele conceitua o Direito Judicial nos termos seguintes:

O Direito Judicial reflete a atividade de definição do Direito (juris dictio) pelos tribunais, podendo as-sumir perspectivas concretas (v.g.: na solução de litígios específicos) ou abstratas (v.g.: no controle de constitu-cionalidade das leis realizado pelos Tribunais Constitu-cionais). No primeiro caso, assumindo uma postura ret-rospectiva, voltada ao passado; no segundo, com uma postura prospectiva, direcionada ao futuro, à regulação de relações jurídicas vindouras. Além disso, quando em cotejo com a produção normativa de cunho legislado, pode mostrar-se corretor da lei, concorrente da lei, sub-stitutivo da lei e supressivo da lei. (GARCIA, 2008)

E continua, delimitando seu trabalho:

Parece evidente não ser este o locus adequado a uma abordagem exauriente dos múltiplos aspectos mencionados, mas a sua mera indicação mostra-se

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suficiente ao propósito almejado: realçar a importân-cia do Direito Judicial (Richterrecht) como normativa geral, que transcende o caso concreto. (GARCIA, 2008)

Passando, posteriormente, a analisar o próprio vocábulo Direito Judicial, observa que a nomenclatura tem a vantagem de “realçar a preeminência dos órgãos jurisdicionais na argumentação desenvolv-ida, indicando, de imediato, os objetivos pretendidos”.

Seguindo a sistematização proposta, depreende-se de cara que o sujeito desse Direito Judicial é o agente densificador do conteúdo normativo (os órgãos jurisdicionais, portanto) e o objeto é a norma geral maleável (seja princípio, seja regra), ou seja, com predisposição à moldagem face à realidade ou mesmo expurgação mediante o mecanismo de controle de constitucionalidade, este em si um in-strumento próprio do Direito Judicial. A sua fonte é o processo de sedimentação da jurisprudência e o seu método é pela utilização da concepção forte dos princípios, dando-se a estes a mesma impera-tividade das regras, embora se distingam qualitativamente (dimen-são de validade das regras / operação de subsunção Vs. dimensão de peso dos princípios / operação de concreção e ponderação). É isso tudo que dá a individualidade existencial do Direito Judicial.

Desmistificando o debate acerca da legitimidade democrática, já trabalhado anteriormente, alega que o poder político também se pro-jeta na função jurisdicional, embora na função legislativa tenha a sua natural expressão. Tal fato não significa, nunca, uma supremacia do Ju-diciário em relação aos outros Poderes, mas apenas que aquele tem vo-cação própria de manter a paz institucional e garantir o sistema jurídico, deveras com finco na Constituição. E arremata, citando Robert Alexy:

Segundo ele, “a chave para a resolução é a distin-ção entre a representação política e a argumentativa do cidadão”. Estando ambas submetidas ao princípio fundamental de que todo o poder emana do povo, é necessário compreender “não só o parlamento mas também o tribunal constitucional como representação do povo”. Essa representação, no entanto, se mani-festa de modo distinto: “o parlamento representa o cidadão politicamente, o tribunal constitucional argumentativamente”, o que permite concluir que

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este, ao representar o povo, o faz de forma “mais ide-alística” que aquele. Ao final, realça que o cotidiano parlamentar oculta o perigo de que faltas graves se-jam praticadas a partir da excessiva imposição das maiorias, da preeminência das emoções e das mano-bras do tráfico de influências, o que permite concluir que “um tribunal constitucional que se dirige contra tal não se dirige contra o povo, senão, em nome do povo, contra seus representantes políticos”.

Conferindo-se à Constituição a condição de el-emento polarizador das relações entre os poderes, torna-se evidente que os mecanismos de equilíbrio por ela estabelecidos não podem ser intitulados de antidemocráticos. Além disso, a ausência de respon-sabilidade política dos membros do Poder Judiciário não tem o condão de criar um apartheid em relação à vontade popular. Na linha de Bachof, o juiz não é menos órgão do povo que os demais, pois, mais im-portante que a condição de mandatário do povo é a função desempenhada “em nome do povo”,18 aqui residindo a força legitimante da Constituição. Essa fórmula, aliás, mereceu consagração expressa no art. 202, no 1, da Constituição portuguesa: “os tribu-nais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo”. (GARCIA, 2008, grifo nosso, itálico do autor)

A interferência do Direito Judicial perpassa também por algo que no Brasil não é aceito, mas o é em países como Alemanha, Espanha e França. Ao se declarar a inconstitucionalidade de uma lei em sede de fiscalização abstrata, os efeitos dessa declaração são extensivos a todos os particulares e – aqui mora a ideia – a todas as autoridades e Poderes Públicos, vedando ao legislador reproduzir a mesma nor-ma sem prévia alteração da norma inconstitucional com ela incom-patível. Prestigia-se, portanto, o efeito erga omnes e a força de lei da decisão, assumindo o Direito Judicial feições supressivas e obstativas.

Mas é no problema das omissões (in)constitucionais que o Direito Judicial ganha potencialidade. A solução aqui é mais uma vez conver-gente ao intento da máxima efetividade das normas constitucionais:

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sob esse prisma, pode-se alcançar um resultado normante “não com a prolação de decisão substitutiva da própria lei, mas com uma reen-genharia interpretativa das normas já existentes, nelas reconhecendo o potencial de integração da Constituição ou mesmo a sua aplicação direta” (GARCIA, 2008). É dizer: o Direito Judicial concorre com a nor-mativa preexistente, pois faz a Constituição possuir sempre um con-teúdo mínimo que não pode ser ignorado, dotando-a de eficácia plena a todo o momento e exigindo provimento jurisdicional que preserve, pelo menos enquanto não sobrevinda a legislação, seus valores essen-ciais, principalmente em se tratando de normas fundamentais.

É nesse ponto de preservação dos direitos fundamentais que o Direito Judicial autoriza aos órgãos jurisdicionais atuarem de forma a integrar a norma constitucional, numa ação substitutiva à lei, “o que redundará no redimensionamento da clássica divisão entre as funções estatais, tendo como desiderato final a preservação da própria razão de ser da organização estatal: o bem comum” (GARCIA, 2008).

Soa absurdo imaginar que a Constituição, ao con-ferir liberdade ao legislador para delinear o conteúdo da norma e negar-lhe toda e qualquer liberdade para excluir alguns dos destinatários em potencial, não pu-desse ser diretamente aplicada pelo Judiciário, que, longe de substituir-se ao legislador, aplicaria a norma sob uma perspectiva corretiva, compatibilizando-a com o seu fundamento de validade. (GARCIA, 2008)

Vale uma importante observação: até este momento, todo o estudo de Emerson Garcia (2008) estava voltado os olhos para o caso concreto na aplicação do direito judicial, mas como se disse no conceito inicial dado o Direito Judicial também alcança ares abstrato. Com base nisso é que se pode, conforme entendemos, dividir-se quanto a sua perspec-tiva em Direito Judicial em perspectiva concreta, preocupado com as decisões do caso a caso, e Direito Judicial em perspectiva abstrata, pelo que se fala em força normativa dos precedentes e generalização das indi-vidualidades, objetivo enlaçado ao longo de todo o presente trabalho.

Como já analisado, a força normativa dos precedentes se identi-fica com o princípio do stare decisis americano, sistema esse baseado no case law em que a elaboração da norma individual ao caso con-

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creto transcenderá à norma geral. E nesse tear os precedentes po-dem assumir tanto contornos declarativos quanto criativos, nestes consubstanciando manifestação mais do Direito Judicial substitutivo e corretivo e naqueles, do Direito concorrente e supressivo. Para-doxalmente, contudo, parece que quanto mais o sistema jurídico é evoluído menos ele precisa de precedentes criativos, posto que os paradigmas já existentes são suficientes para a garantia dos direitos.

Emerson Garcia (2008) aponta vantagens e desvantagens em relação aos precedentes. De positivo, tem-se a uniformização da atividade interpretativa do Direito, a preservação da segurança ju-rídica nas relações sociais e a consequente manutenção do princí-pio da igualdade. De outro lado, de negativo, tem-se o comprometi-mento do envolver social, pois sendo as decisões tomadas de “cima” descarta-se os escalões inferiores, que são os que justamente pos-suem maior contato com a coletividade. Porém, o mesmo autor logo depois retranca: “essa linha argumentativa, no entanto, é diluída na medida em que os pronunciamentos dos tribunais superiores cos-tumam ser antecedidos por uma longa maturação da questão nas esferas inferiores, isto sem olvidar a possibilidade de serem revistos sempre que a evolução social o justifique” (GARCIA, 2008).

Aponta, ainda, os contatos modernamente feitos entre o com-mon law e o statute law, asseverando que naqueles, em especial o direito norte-americano, a importância do direito escrito vem cre-scendo, embora preeminente os precedentes. Quanto aos sistemas de raiz romano-germânica, a jurisprudência é considerada fonte for-mal do Direito, com certo valor normativo outrora negado pela Rev-olução francesa, mas sem divisar-lhe o seu caráter vinculativo, já que passa a ser nada mais que um vetor auxiliar na interpretação e inte-gração das normas. Nesse sentido, “por privilegiarem o papel criativo da legislação, os sistemas de raiz romano-germânica não costumam tratar a jurisprudência como fonte de regras de direito, mas como fonte de Direito” (GARCIA, 2008).

Por fim, discorrendo sobre o Brasil, de raiz romano-germânica, adverte que a introdução da súmula vinculante pela EC 45/2004 de longe não ocupa um papel de destaque na criação da regra de direito, próprio da essência dos sistemas de common law, em vista de suas limitações inerentes (art. 103-A, caput e § 1º da CF/88). Esse instituto do enunciado de súmula com efeito vinculante, portanto,

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desempenha um papel essencialmente declarativo (fixação da inter-pretação das normas), referente a um Direito Judicial concorrente.3

Nesse momento, já se pode sistematizar o espectro do aqui de-nominado Direito JuDicial criativo em perspectiva abstrata, e que se defende como necessário de aplicação também em nosso país em virtude de os paradigmas já existentes não serem suficientes para a garantia dos direitos fundamentais. A repúdio dos que dizem que as teorias vêm do estrangeiro com realidades diversas às nossas, firme-se que os pressupostos filosóficos tendem à universalização naquilo que se propõe, baseados na história e no mundo empírico e humano-científico4, pelo que até em contornos diferentes há possibilidade de se acharem pontos em comum. Muitos pontos em comum, aliás.5

a) Como dito, é um direito judicial ainda em formação, em versão beta, para o futuro, com base na própria noção de constitucionalismo por vir, que internaliza toda evolução no Direito Constitucional ao logo do tempo, cortando seus descomedimentos e mais apropriado para uma nação nível alfa, para se referir a um país de estágio con-stitucional avançado;

b) Jurisprudência como fonte imediata do direito, ao lado da Con-stituição Federal, leis e tratados internacionais de direitos humanos (cf. subcapítulo 1.3), o que leva à afirmação de que a jurisprudência também é a “lei” aplicada pelos juízes;

c) Supera-se a noção desgastada, e dotada de certo preconceito conceitual, de ativismo judicial, dando uma nova vida aos estudos ao seu redor, principalmente naquilo que toca ao direito constitucional jurispru-dencial – muito embora se deva registrar que a expressão “direito judicial” foi utilizada inicialmente por Prieto Sanchís de modo negativo também;

d) Com a supressão da ideia de norma de eficácia limitada, dev-endo todas ser plenas, passa o Judiciário a ter relevante papel concre-tizador das normas fundamentais da Constituição, sendo importante

3 “No Direito espanhol, o art. 5.1 da Lei Orgânica do Poder Judiciário dispõe que os juízes e tribunais, por estarem vinculados à Constituição, ‘interpretarán y aplicarán las leyes y los reglamentos según los preceptos y princípios constitucionales, conforme a la interpretación de los mismos que resulte de las resoluciones dictadas por el Tribunal Cons-titucional en todo tipo de procesos’ ”. (GARCIA, 2008)4 Sociologia, Filosofia, Política, Antropologia, Direito, etc., como braços das Ciências Humanas e Sociais.5 Exemplo: quem discorda da efetivação dos direitos humanos, pelo menos no Ocidente?

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nesse ponto a globalização e adaptação dos direitos fundamentais (cidadania) e da democracia – os superprincípios constitucionais – nela garantidos através de instrumentos como a mutação constitu-cional e a teoria transcendental dos motivos determinantes, ou mesmo pela aplicação da finalidade subjacente ao instituto com vista na expressão “a menos que”, derrotando-se um sentido nesse caso e fa-zendo nascer outro complementar;

e) Com isso, evita-se aquilo que Marcelo Neves (apud LENZA, 2011) chamou de constitucionalização simbólica em seu aspecto negativo e positivo, quando o texto constitucional ou “não é suficientemente con-cretizado normativo-juridicamente de forma generalizada” ou “a ativi-dade constituinte e a linguagem constitucional desempenham um relevante papel político-ideológico”, servindo apenas para, nos traços da legislação simbólica, confirmar valores sociais sem fornecer eficácia normativa, demonstrar a capacidade de ação do Estado mascarando a realidade com formas ideológicas (constitucionalização-álibe) e adi-ar a solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios. Indo contra, portanto, ao valor verdade do constitucionalismo do fu-turo, sendo certo que obstrui as transformações efetivas da sociedade devido “à discrepância entre a função hipertroficamente simbólica e a insuficiente concretização jurídica de diplomas constitucionais”.

f) Tem-se como certo que a função normativa não é só do Leg-islativo. O aposentado Min. Eros Grau já dizia isso: “O Poder Legisla-tivo não detém o monopólio da função normativa, mas apenas uma parcela dela, a função legislativa” (ADI 2.950-AgR, DJ 09/02/2007). Assim, ele possui parcela dela, a função legislativa, mas não o monopólio normativo, abrindo-se possibilidade de se dar efeitos normantes às decisões judiciais (produção normativa heterônoma), naquilo que falta para se garantir um direito constitucional funda-mental, inclusive ampliando-o com os mecanismos citados no item anterior e vistos ao longo dos capítulos do presente texto, nos casos de constitucionalidade ou inconstitucionalidade chapada;

g) Poder-se-ia falar até em uma Teoria Geral do Direito Judicial com fim mesmo de guiar o Judiciário nessa tarefa concretizadora, donde se beberia dos fundamentos da Teoria Geral do Direito Constitucional;

h) Entendimento a ser observado no sentido de a interpretação ser aberta à sociedade, pluralizando o debate e deixando-o mais democrático e justo, principalmente aos interessados e afetados

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pelas decisões judiciais. Os cidadãos são autores no seu direito, não mero destinatários. O art. 13, XVII, do RI/STF, traz algo nesse sentido, ao revelar a atribuição do Presidente do STF de convocar audiência pública para ouvir depoimento de pessoas com experiência e autori-dade no assunto (argumentos de autoridade), não se resumindo ao âmbito abstrato do controle, seguramente, consoante se extrai da leitura do texto6. Outro exemplo é a figura do amicus curiae;

i) Visão contemporânea da separação funcional de Poder, com a coordenação entre os Poderes para efetivação dos direitos constitu-cionais, interpenetrando-se uns aos outros e deixando de lado o com-plexo existencial de Poder, conforme intensa análise feita nos capítu-los anteriores (cf. subcapítulos 1.3 e 3.3). A preeminência da função do Poder Judiciário está no fato de a Corte e os órgãos jurisdicionais julgarem a constitucionalidade de uma norma em acordo com os di-reitos fundamentais, o que faz da Lei Maior não ser apenas um anseio sem força obrigatória (Kelsen). Note-se: tal preeminência, contudo, não é pelo fato em si do ser da instituição “Poder Judiciário”, mas da função a ele encarregada de controle da constitucionalidade (noção de guardião da Constituição – defensor: Hans Kelsen, no sentido de manutenção do Estado de Direito, o Rechtsstaat), que poderia muito bem ter sido também oferecida, por opção política preponderante, ao Presidente (Executivo – defensor: Schmitt, a fortalecer a unidade políti-ca alemã da época do Reich, e.g., numa visão autoritária de uma duvi-dosa democracia)7 ou ao Parlamento (Legislativo – supremacia parla-mentar no Canadá, e.g.). Por isso, defende-se neste estudo a função do controle de constitucionalidade, no Brasil inerente ao Poder Judiciário, caindo por terra críticas ao ativismo judicial (do Poder Judiciário), que não passa mais, na verdade, que ativismo constitucional (da Constitu-ição), este fidedigno à legitimidade e força, por derradeiro;

j) Quanto especificamente ao controle de constitucionalidade, de-vemos ficar com o modelo de filosofia constitucional substancialista

6 RI/STF. Art. 13. São atribuições do Presidente: [...] XVII – convocar audiência pública para ouvir o depoimento de pessoas com experiência e autoridade em determinada matéria, sempre que entender necessário o esclarecimento de questões ou circun-stâncias de fato, com repercussão geral e de interesse público relevante, debatidas no âmbito do Tribunal. (Atualizado com a introdução da Emenda Regimental 29/2009).7 Mas até aqui, na mácula do nazismo, a ideia de Schmitt de decisão política funda-mental corroborou para a aferição de cláusulas pétreas, imutáveis.

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de Ronald Dworkin em contraposição ao procedimentalismo de Jürgen Habermas. Este modelo procedimentalista habermeriano, em breves palavras, defende a participação da sociedade para determinação do direito e estruturação da democracia, porém fazendo pouco caso do Judiciário nessa trajetória, ou seja, como mero revisor dos atos com um mínimo de interferência. Tal modelo, todavia – e isso já é um avanço de paradigma –, não vem grandemente influenciando os sistemas políti-cos atuais, à exceção da Comunidade Britânica em geral e do Canadá, onde, como citado, a última palavra acerca da constitucionalidade cabe ao Legislativo (num diálogo de jurisdição constitucional entre este e o Judiciário), em virtude mesmo de sua tradição parlamentar e da necessidade histórica de se ter uma conciliação política para, enfim, erigir sua Carta Canadense de Direitos e Liberdades, desvinculando-se da legislação inglesa. Até por isso foi assim. O substancialismo de Dworkin, à sua maneira, bem compatível com o modelo americano, nasce de uma “leitura moral da Constituição”, que nada mais é que o neopositivismo da união indissolúvel entre o direito e a moral, junta-mente com toda carga valorativa e principiológica subjacente à Con-stituição. Vê-se, através dessa lente de caráter discursivo, o texto e contexto da Lei Máxima de uma nação. “A Constituição, ainda para Dworkin, é tida com efeito vinculante [força normativa da Consti-tuição], que guarda em si a conservação do Estado Democrático de direito [rectius: Estado Constitucional] e dos direitos e garantias fun-damentais, historicamente garantidos” (FERREIRA, 2011, grifo nosso);8

k) Distinção entre legitimidade popular formal e legitimidade pop-ular substantiva (Democracia formal, fictícia, plebiscitária Vs. Democracia substantiva, substancialista)9: já se disse que os juízes, embora não ten-ham legitimidade de origem (própria do parlamentar pelo voto), o tem

8 Fácil fica de notar que no procedimentalismo de Habermas observa-se uma participação plural da sociedade na determinação do direito mais pendente para o momento legisla-tivo e, no muito, posteriormente de forma autônoma, mas desagregada a qualquer Poder, o que o deixa de certa forma sem força impositiva política, principalmente para as minori-as. Superando isso, o modelo substancialista de Dworkin, longe de negar, a nosso ver, par-ticipação plural à sociedade, ainda a vincula a um Poder, geralmente o Judiciário, dotado na imensa maioria das vezes da função de controlar a constitucionalidade das normas.9 Não confundir de forma absoluta e total, por serem outros os padrões referenciais, essas nomenclaturas com as que foram utilizadas para designar anteriormente as concepções de Jürgen Habermas (democracia procedimentalista) e Ronald Dworkin (democracia substancialista).

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de exercício10 (adquirida, se preferir)11, pelo que controla a vontade do povo instada na lei pela própria vontade do povo instada na Constitu-ição12. De mais a mais, se disser que a legitimidade democrática popu-lar vem somente do voto ter-se-á que repensar toda essa concepção, pois – e isso não é novidade – há enorme manipulação eleitoral, que inexoravelmente desvirtua a vontade popular. Ora, é uma falácia que mais está para o plano da teoria do que o da prática dizer que o povo é o titular do Poder e os seus representantes o exercem (democracia formal, fictícia, plebiscitária). Que democracia substantiva se poderia falar no caso brasileiro, onde apenas 11% da população confia em seus representantes?!13 Como haver democracia sem confiança, onde os di-

10 Aponta Prieto Sanchís (apud LENZA, 2011).11 Como pronuncia Inocêncio Mártires Coelho (2002, p. 95).12 Nos Estados Unidos, no âmbito federal, os juízes são indicados (appointment) pelo Pre-sidente da República e nos Estados, mas não em todos necessariamente, há eleições para juízes para mandato fixo (e não “vitalício”, como os federais, para os quais a Constituição americana em seu art. III, seção I, estabelece a conservação do cargo “during good beha-viour”, isto é, enquanto bem servirem). O juiz federal, professor da Escola da Magistratura do Paraná, Vicente de Paula Ataide Junior (2008), pondera que mesmo esse modelo não é assim tão democrático como se parece e se divulga: “No Brasil, como se sabe, a atividade político-partidária é vedada aos juízes (artigo 95, parágrafo único, III, da Constituição). Nos Estados Unidos, não se desconhece que a seleção eletiva dos juízes pode gerar conflitos de interesses, pois os candidatos à magistratura devem recorrer a patrocinadores privados para suas campanhas eleitorais, dentre os quais firmas de advocacia, não obstante existam meios de controle das despesas eleitorais. Além disso, o critério parece não se ajustar tanto aos ideais democráticos que o inspiraram, pois a participação popular nessas eleições é bastante modesta. [...] Como se pode ver, tanto na justiça federal como nas estaduais não existe concurso público para juiz [refere-se ao modelo americano]. O critério político é o preponderante. Assim, é possível afirmar que o sistema judiciário brasileiro, nesse ponto, revela-se mais democrático, uma vez que franqueia a qualquer pessoa a possibilidade de chegar ao cargo de juiz, por seus próprios méritos, aquilatados em concurso público, inde-pendentemente de injunções políticas”. Isso, entretanto, não aniquila um debate de horas pró ou contra a elegibilidade dos juízes, inclusive misturando os modelos, ou seja, parte por concurso público e outra parte por eleição popular, por exemplo.13 Estudo de 2010 conduzido pelo grupo alemão GfK. Os juízes ficaram com 67% de apro-vação. O IBOPE, por meio do Índice de Confiança Social, também mediu a credibilidade das instituições brasileiras, onde igualmente restaram em última colocação os partidos políticos e o Congresso Nacional. Cf. <http://www.ibope.com.br/giroibope/14edicao/capa02.html>. Acesso em: 30 dez. 2011. Neste sítio, encontra-se a seguinte passagem esclarecedora da situação: “Na análise do diretor-científico do Núcleo de Pesquisas de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo, José Álvaro Moisés, os dados apontam para a valorização do Poder Executivo, como o presidente da República, assim como das eleições, em contraposição à desvalorização das instituições de representação. ‘Este é

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tos representantes ficam em última colocação [!] num ranking de credi-bilidade em que consta de sindicatos a bombeiros e o 2° grupo menos confiável (executivos de bancos) está 36 pontos à frente dos políticos?! Por causa desse divórcio consumado entre a vontade governada e a vontade governante (no plano mais da ficção de uma suposta paridade volitiva), como alternativa a evitar danos à cidadania preterida, Paulo Bo-navides (2001, p. 277/280), citando Maria Arair Pinto Paiva, refere-se a espaços públicos, em contraposição ao estatal, como “auxiliar poderoso na construção dos sistemas participativos da democracia direta”, “[...] de-mocracia que assume o status de direito da quarta geração, direito cuja universalidade e essencialidade compõem o novo ethos que o gênero humano, em sua irreprimível vocação para a liberdade, a igualdade e a justiça, toma por inspiração”. Assim sendo, “o teorema político da socie-dade nacional contemporânea já não é tanto o da legalidade [...], senão o da constitucionalidade [...]”. Dar-se a marcha, a partir disso, para um grau superior de democracia e legitimidade cidadãs, passando-se de um direito estatal a um direito comunitário ou político-coletivo, em alterna-tiva, como dito, à crise da representação política14 15;

um signo da cultura política brasileira’, afirma. De acordo com Moisés, sempre houve a desvalorização do Parlamento e dos partidos no Brasil. ‘O regime democrático é valori-zado, mas não há uma percepção clara sobre o que o Parlamento e os partidos políticos representam para a democracia’, explica. Para o cientista político, esse conjunto de fa-tores representa a baixa qualidade da democracia brasileira.”14 Veja-se, numa visão procedimentalista de Habermas adaptada ao caso: “o cidadão não seria um simples praticante de um jogo mercantil nem um cliente de burocracias de bem-estar, e sim o autor autônomo que constituiria a sua vontade e a sua opinião no âmbito da sociedade civil e da esfera pública, canalizando-o, em um fluxo comunicacio-nal livre, para o interior do sistema político.” (VIANA et. al., 1999, p. 28/29, apud FERREI-RA, 2011). Nesse contorno, é assim também que atesta Canotilho (1995) ao se referir ao paradigma do informal, ou seja, da deslocação da produção normativa (entende-se em seu sentido amplo) do centro para a periferia, da lei para o contrato, do Estado para a sociedade, num processo de desoficialização, descodificação, deslegalização.15 Deve-se, como se espera, tomar cuidado com algumas pseudorrepresentações. A exem-plo, cita-se o caso de alguns sindicatos que nada têm de representativos da classe. Cf. DALA-ZEN, João Oreste. Sindicato no Brasil virou negócio. Veja, São Paulo, n. 2248, 21 dez. 2011. p. 17-21. Entrevista, onde diz que “aqui, os sindicatos, em sua maioria, são fantasmas ou pouco representativos. [...] Eles são criados, na maioria, não para representar as categorias, mas com os olhos na receita auferida pela contribuição sindical, que é uma excrescência”. Referindo-se às relações sindicais com partidos políticos, outro segmento da representatividade, sustenta que “a questão está em saber se essa identificação com os partidos políticos atende aos in-teresses nacionais, porque nem sempre isso se dá. [...] Nem sempre são os mais saudáveis os interesses defendidos pela liderança sindical com repercussão no mundo político”.

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l) Ultrapassa-se, outrossim, a democracia da maioria, pois fo-cando-se no controle de controle de constitucionalidade tem-se um meio de proteção eficaz da minoria contra os atropelos da maioria (Kelsen) – a decisão pretensamente democrática não pode tolher liberdades alheias. O guardião da Constituição garante o respeito, portanto, a todas as parcelas da sociedade e ainda fortifica a feder-ação, ao ver inconstitucionalidades por usurpação de Poder, alcan-çando legitimidade democrática seja por plausíveis argumentações plurais e participativas, seja por ter como norte a conformidade con-stitucional valorativa e histórica. Se quiserem, até se compensando a falta formal do consagro popular através do voto;

m) A democracia substantiva ou substancialista, a anos-luz de significar necessariamente voto ou princípio majoritário de repre-sentação, faz surgir o papel ativo do judiciário (rectius: papel ativo da Constituição, em última análise, na verdade). “[...] a garantia dos direitos através do judiciário [encorpando, numa dada solução política, a função de guardião da Constituição] reforça o conteúdo democrático do sistema constitucional” (HOMMERDING, 2006, p. 19, apud FERREIRA, 2011). Nesse eixo substancialista, “concede-se ao Poder Judiciário [e a ele por causa da função lhe dada, podendo ter sido a outro se a opção político-constitucional também fosse outra] uma nova inserção no âmbito das relações entre os três po-deres, levando-o a transcender as funções de checks and balances” (VIANA et. al. 1999, p. 37, apud FERREIRA, 2011);

n) Em vista do sobredito, falar em Ditadura do Judiciário é um con-trassenso lógico - jurídico - político - social - filosófico - histórico - cultur-al..., pois o que se endeusa (se assim se fala) não é o Poder, mas a função que ele exerce de proteção à Constituição, necessária até para a sobre-vivência da sociedade e que, repita-se sem cansar, por ser necessário, po-deria ter sido atribuída (essa função) a outrem, por opção político-cultur-al. A atividade judicial-constitucional supre falhas de todos os Poderes e, de certa forma, também pode ser co partilhada, na medida em que os outros também podem, dentro das proposições clássicas para os quais foram criados tipicamente ou atipicamente (legislar, administrar e julgar, em concorrência recíproca), trazer esse papel fundamental aos valores constitucionais, disseminando-os responsavelmente;

o) Por isso, ganha sentido afirmar juntamente com Peter Häber-le ([in: Zeit und Verfassung, p. 47/48] apud LENZA, 2011, p. 159) que

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“o direito processual constitucional torna-se parte do direito de par-ticipação democrática. A interpretação constitucional realizada pelos juízes pode-se tornar, correspondentemente, mais elástica e amplia-tiva sem que se deva ou possa chegar a uma identidade de posições com a interpretação do legislador”. A vontade objetiva da Constituição (Wille zur Verfassung) (que faz preponderar o poder judiciário) acaba por prevalecer sobre a vontade subjetiva do legislador (que faz preponderar o poder legislativo), esta mais próxima de uma vontade de poder (Wille zur Macht). Nesse contexto, a Justiça não é um mero Poder instituído (passivo, estático), senão instituinte (ativo, dinâmico), principalmente em relação aos direitos fundamentais – note-se, chamou-se de Justiça instituinte e não “Poder Judiciário instituinte”16, sendo aquela a equação complexa entre este, a força normativo-vinculante da Constituição e a função encabeçada pelos superprincípios constitucionais – princípio da constitucionalidade (controle de constitucionalidade e de confor-midade do sistema jurídico-normativo), princípio do Estado Constitu-cional de Direito (Verfassungsstaat) e princípio da proteção dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana;

p) O pensamento de Peter Häberle tem influenciado o desen-volvimento do Direito Constitucional, principalmente aqui no Brasil pelas decisões recentes encontradas na jurisprudência do STF, o que assaz sintoniza o país no âmbito do Direito Judicial: a) abertura do processo constitucional a uma maior pluralidade de sujeitos – os in-térpretes em sentido amplo da Constituição numa “comunicação en-tre norma e fato” (Kommunikation zwischen Norm und Sachverhalt) –, através dos amici curiae (com possibilidade hoje de até fazerem sus-tentação oral)17 e das audiências públicas (art. 9º da Lei 9.868/99)18, propiciando maior legitimidade democrática às decisões proferi-

16 Ou Poder Executivo instituinte ou Poder Legislativo instituinte, a depender da lo-calização política preponderante da função de controle de constitucionalidade, pos-sibilidade esta já vista.17 Cf. ADI-QO 2.777, Rel. Min. Cezar Peluso, julg. 26.11.2003; art. 131, § 3º, do Regimento Interno do STF.18 Exemplo de audiência pública ocorreu em 20 de abril de 2007, acerca constitu-cionalidade da pesquisa científica com células-tronco embrionárias, pela qual restou declarada a constitucionalidade do artigo 5º da Lei 11.105/2005 numa votação de 6 contra 5, alguns deles propugnando verdadeiras sentenças aditivas com conteúdo manipulativo dos sentidos normativos da lei impugnada.

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das, sendo relevante ainda destacar que tais audiências devem ser transmitidas pela TV Justiça e pela Rádio Justiça para conhecimento geral e imediato (art. 154 do RI/STF)19; b) o pensamento das possi-bilidades ou indagativo (fragendes Denken), pelo que se revela que a Constituição não é norma fechada, mas sim um projeto (Entwurf) em contínuo desenvolvimento, tornando-se visível, segundo Häberle, “uma teoria constitucional das alternativas” a converter-se também em uma “teoria constitucional da tolerância”. Isso permite as per-spectivas de novas realidades, numa “adaptação às necessidades do tempo de uma visão normativa”. No âmbito do STF, vale citar a sua influência na ADI 1.28920 21; c) dos seus estudos, retiram-se reflexões sobre a relação entre tempo e Constituição (Zeit und Verfassung) e, desse modo, sobre o fenômeno da mutação constitucional (Verfas-sungswandel). Afirma Häberle que não existe norma jurídica, senão norma jurídica interpretada, colocando-a em seu devido tempo ou integrando-a na realidade pública. É o que ele passa a chamar con-ceitualmente de pós-compreensão (Nachverständnis)22, pelo que se compreende supervenientemente uma dada norma. Por outras pa-lavras, é dizer que a norma, confrontada com novas experiências, transforma-se necessariamente em uma outra norma, por uma in-

19 Explicita Cattoni de Oliveira (2005, apud OLIVEIRA, 2006): “Sob o paradigma do Es-tado Democrático de Direito, por um lado, a Constituição e o Direito Constitucional não limitam a Democracia; esta pressupõe aqueles, já que é através da mediação ju-rídica entre canais institucionais e não-institucionais, regulados e não-regulados, que a soberania popular se manifesta enquanto poder comunicativo”.20 EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Embargos Infringentes. Cabi-mento, na hipótese de recurso interposto antes da vigência da Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999. 3. Cargos vagos de juízes do TRT. Composição de lista. 4. Requi-sitos dos arts. 94 e 115 da Constituição: quinto constitucional e lista sêxtupla. 5. Ato normativo que menos se distancia do sistema constitucional, ao assegurar aos órgãos participantes do processo a margem de escolha necessária. 6. Salvaguarda simultânea de princípios constitucionais em lugar da prevalência de um sobre outro. 7. Interpre-tação constitucional aberta que tem como pressuposto e limite o chamado “pen-samento jurídico do possível”. 8. Lacuna constitucional. 9. Embargos acolhidos para que seja reformado o acórdão e julgada improcedente a ADI 1.289, declarando-se a constitucionalidade da norma impugnada. (grifo nosso)21 Cf. também Recurso Extraordinário 135.328 e 147.776; Suspensão de Segurança 3.154; Mandado de Segurança 26.690.22 Isso nada mais é que uma pré-compreensão do futuro, remetendo-se ao contra-ponto da ideia de pré-compreensão de Gadamer (cf. subcapítulo 1.2).

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terpretação constitucional aberta situada num processo dialético, sendo mais defensável ainda que ocorra exatamente em matéria de defesa dos direitos fundamentais23; d) em uma visão de Häberle de Estado Constitucional cooperativo, no contexto atual de abertura a ordens jurídicas supranacionais de proteção de direitos humanos e fundamentais24 25, destaca-se sua influência no âmbito do Supremo a partir do julgamento dos Recursos Extraordinários 349.703 (relator para o acórdão ministro Gilmar Mendes) e 466.343 (relator ministro Cezar Peluso), defensável em conta do art. 4º, parágrafo único, e art. 5º, §§ 2º, 3º e 4º da CF/88, pelo que adotou-se a tese da supralegali-dade dos tratados internacionais de direitos humanos com eficácia jurídica paralisante de disciplina normativa infraconstitucional con-flitante26 (Cf. MENDES; VALE, 2009);

q) De mais a mais, a Constituição não é só de um país, mas de uma nação globalizada, mundializada, podendo sofrer, até mesmo, inter-venções de Tribunais Internacionais em caso de violação a direitos hu-manos, modelo hoje desenvolvido na figura do transconstitucionalismo, em que o direito constitucional entra em contato com outros sistemas, numa relação transcendental permanente, contribuindo para tanto a ex-

23 Cf. Recurso Extraordinário 165.438; Questão de Ordem no Inquérito 687; Conflito de Competência 7.204; HC 82.959; Mandados de Segurança 26.602, 26.603 e 26.604; Recursos Extraordinários 349.703 e 466.343.24 Em virtude dessa visão, ao lado dos métodos tradicionais de Savigny, propõe Peter Häberle um quinto método de interpretação constitucional, que é a comparação de direitos fundamentais por meio dos sistemas jurídicos de vários países (direito com-parado). (Cf. MENDES; VALE, 2009)25 Em obra especialmente dedicada à integração latino-americana, Häberle desen-volveu a ideia de direito constitucional comum (no caso, iberoamericano, mas com clara possibilidade de projeção universal não obstante as diversificações das culturas nacionais), referindo-se a um processo de integração cultural e política deste conti-nente. Preservam-se as características constitucionais dos Estados, mas com vocação crescente para o intercâmbio internacional, substituindo o molde clássico de sobera-nia para ser cooperativo, a fim mesmo de consagrarem-se os direitos humanos uni-versais, como aqueles de objetivos educacionais, paz mundial, proteção ao meio am-biente, amizade, cooperação e ajuda humanitária – modelo próprio do hoje divulgado transconstitucionalismo. (Cf. MENDES, 2009d)26 Tal solução não é estranha no direito comparado, estando consagrada na Alemanha, França, Grécia, Argentina, Paraguai, Uruguai, México, Holanda, Itália, Chipre, Bélgica, Luxemburgo, Finlândia, Áustria, Rússia e Reino Unido, onde se reconhece, de uma forma ou de outra, a superioridade normativa da ordem jurídica internacional.

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pansão da jurisdição constitucional e o fortalecimento dos direitos da pessoa humana. A proposta que vem se afirmando é que as ordens es-tatais, internacionais e supranacionais dialoguem e entrosem-se.27 28

De tudo isso, observa-se que um novo modo de Direito mais ci-dadão e democrático surge: o Direito JuDicial criativo, focado que é na prática normativo-jurisprudencial criativa, por certo fortalecido no Brasil em sua perspectiva concreta e principalmente abstrata das no-vas tendências encampadas pelo STF em sede de controle difuso de constitucionalidade, com vistas na efetivação plena da Constituição.

É pelo Judiciário, nos moldes dworkiniano de proteção das liberdades, que se

põe em evidencia, inclusive contra as maiorias even-tuais, a vontade geral implícita no direito positivo, es-pecialmente nos textos constitucionais, e nos princi-pais selecionados como de valor permanente na sua cultura de origem e na do ocidente. (...). Nesse eixo, aquilo que pode ser entendido à semelhança da von-tade geral rousseaniana, uma vez bloqueada pelas circunstancias próprias à sociabilidade e à vida políti-ca contemporâneas, acaba encontrando expressão, pragmaticamente, em personagens e instituições, cuja história particular se apresentaria como o resul-tado de conquistas da ideia do justo positivados no

27 Palestra proferida no Fórum Brasileiro de Direito Administrativo (O Direito Público em Debate – 07 e 08 de abril de 2011, Aracaju/SE), cujo tema apresentado em 08/04/2011 pelo professor Dr. Dirley da Cunha Jr. foi Os Desafios do Direito Constitucional Contem-porâneo. Marcelo Neves (2009) aponta em livro homônimo que o transconstitucionalis-mo enseja a aproximar ordens constitucionais com o propósito sinérgico de proteção dos direitos humanos em patamar internacional, criando-se laços de diálogo entre países sem olvidar o respeito cultural e jurídico de cada realidade.28 Cite-se a possibilidade de o STF, no âmbito do MERCOSUL, solicitar opiniões consul-tivas, em específico relacionadas aos direitos fundamentais, ao Tribunal Arbitral Per-manente de Revisão, criado pelo Protocolo de Olivos de 2002, possibilidade essa que demonstra a evolução da interação dos Estados membros do Mercado Comum do Sul nos moldes propostos pela doutrina de Peter Häberle. Merece ainda destacar o atual debate sobre a criação de uma Corte de Justiça no Mercosul nos moldes da Corte Eu-ropeia de Justiça, que seria responsável pela aplicação de um catálogo internacional de direitos humanos e teria como ponto de partida a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, cuja proteção jurídica vem sendo realizada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

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direito e enraizadas na cultura política (VIANA et. al. 1999, p. 38, apud FERREIRA, 2011).

Fiquemos, ao final, com o mesmo epílogo do texto de Emerson Garcia (2008):

Ainda que sejam tortuosos os percursos me-todológicos conducentes à fundamentação do Direito Judicial, é inegável a influência projetada, no meio social, pelas decisões dos órgãos jurisdicionais, em es-pecial dos tribunais superiores. Não é exagero afirmar que materializam o direito vivo, renovando sua essên-cia a cada vaga de mutação social. O estudo do Direito Judicial estimula a identificação de suas virtualidades e permite a idealização de adequados mecanismos de controle, pois, na conhecida sentença de Lord Acton, “todo o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente”. Um breve tracejar das potencialidades dessa temática, ainda que acompanhado de imper-feições e incontáveis omissões, foi o nosso objetivo.

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CONCLUSÃO

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233Conclusão

No introito deste trabalho, fez-se referência, com o intuito de iniciar toda a fundamentação das teses antagônicas acerca da querela ao re-dor do art. 52, X, CF/88, à figura mítica grega da Caixa de Pandora. Tudo começou quando Zeus, o deus de todos os deuses, arquitetou um plano contra Prometeu, pois este entregara aos homens a capacidade de con-trolar o fogo. A título de vingança, Zeus forneceu Pandora e uma caixa a Prometeu, que logo recusou. Epimeteu, irmão deste, porém, aceitou-a, inobstante as advertências lhe dirigidas. Sem conhecer o conteúdo do artefato, manteve protegido em sua morada. Seduzido por sua agora es-posa Pandora, Epimeteu caiu em sono profundo, oportunidade na qual, por curiosidade, ela abriu a caixa para espiar o seu conteúdo. Naquele momento, como um efeito em cadeia, libertaram-se várias doenças e sentimentos que atormentariam a existência do homem no mundo, re-stando preservada, unicamente, a esperança.

Dessa forma, abrir a Caixa de Pandora significa que uma ação bem-intencionada pode liberar uma avalanche de repercussões neg-ativas. É nesse sentido que Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cat-toni de Oliveira e Martonio Mont’Alverne Barreto Lima (2007) põem o tema da mutação constitucional visada no dispositivo da Consti-tuição, como visto: caso prevaleçam os votos dos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau, a decisão do Supremo Tribunal Federal, por mais que seja pragmática e juridicamente científica, pode fazer com que, ao talante da mutação constitucional, sejam colhidos, daqui para frente, os mais diversos frutos de cariz discricionário, em detrimento, inclusive, da vontade da Constituição.

De outro lado, da mesma forma em que sobrou a esperança na Caixa de Pandora, é o idêntico sentimento que guia o presente texto, é dizer, embora se espraiam no universo jurídico argumentações contrárias à nova tendência do STF em sede de controle difuso, é, no fundo, a esperança, encontrada nos pontos positivos da tese defen-dida, de se fazerem mais efetivos e de se protegerem ainda mais os direitos fundamentais e a democracia que leva à conclusão de serem legítimos tais anseios mutacionais. Enfim, a Constituição como es-perança de realização do Direito.

De fato, como analisado, vários princípios/teorias dão o tom aos debates, inseridos no contexto da Nova Hermenêutica e do pós-positivismo: superprincípios da constitucionalidade ou da racionali-dade constitucional (da conformidade), da democracia (do Estado

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Democrático de Direito – supercláusula pétrea, nas palavras de Car-los Britto, 1999) e da dignidade da pessoa humana e proteção aos direitos fundamentais, princípio da nulidade da lei inconstitucional, princípio da supremacia e rigidez constitucional, princípio da ra-zoável duração do processo, da celeridade, da economia processual, princípio da separação funcional dos Poderes, princípio da proibição do retrocesso, princípio da interpretação conforme à Constituição, princípio da individualização da pena (em vista do caso concreto de-batido na Rcl. 4.335-5/AC), princípio da igualdade, da legalidade, da imparcialidade, da proporcionalidade, da concordância prática, da razoabilidade, da ponderação de interesses, da justiça, princípio da unidade da constituição, do efeito integrador, da máxima efetividade, da justeza ou da conformidade funcional, da concordância prática ou da harmonização, da força normativa da Constituição, princípio da segurança jurídica, da proteção da confiança, da precaução, princípio da universalidade da jurisdição, princípio do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.

Desses princípios, argumenta-se que, principalmente, os princípi-os da rigidez da Constituição, separação funcional dos Poderes e o do devido processo legal, ampla defesa e contraditório dariam o norte à sucumbência das pretensões enlaçadas na Rcl. 4.335-5/AC. Sem razão, conforme detalhadamente foi visto ao longo dos capítulos.

O princípio da rigidez, longe de significar impermeabilidade con-ceitual, é amplamente assegurado pelos processos informais de modi-ficação da Constituição – dos quais faz parte da teoria da Mutação Constitucional – na medida em que estes fazem da opção pelas emen-das (processos formais de modificação constitucional) sempre uma ul-tima ratio, quando a Constituição já não cumpre a contento com o seu papel histórico e não consegue atualizar-se por via da interpretação doutrinária e jurisprudencial, ou mesmo por qualquer outra forma dis-posta pelo processo informal das mutações constitucionais.

Ademais, deve-se fazer uma releitura, em vista da superação histórica, de concepção vetusta da separação dos Poderes, no sen-tido de ela ser concebida atualmente dentro de um Estado Constitu-cional-Democrático-Social de Direito ou simplesmente Estado Con-stitucional (Verfassungsstaat), que visa à plena realização do princípio democrático e dos direitos fundamentais bem como a concretização do princípio da universalidade da jurisdição – finalidades essas que

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cabem ao Poder Judiciário, ao dar maior efetividade às decisões judi-ciais, mormente quando se observa a conjuntura atual de leniência, senão inércia, do Legislativo no Brasil.

Igualmente, as decisões judiciais não deixam de ser democráticas, posto que, ao adequar as premissas equivocadas estabelecidas pelo Legislativo, diretamente elas promovem a finalidade pública e os ansei-os sociais, controlando a “vontade do povo” (manifestada na lei) pela própria “vontade do povo” (manifestada na Constituição) – legitimi-dade democrático-popular de exercício (adquirida), conforme analisado.

Quanto aos princípios do devido processo legal (due process of law), ampla defesa e contraditório, diga-se que eles hão de ser gar-antidos, sim, mas, alçado o entendimento da inconstitucionalidade da lei, esta é nula, e sendo nula, não mais deve pertencer ao orde-namento – teoria da nulidade da lei inconstitucional –, momento no qual todos os outros casos concretos devem ser submetidos, de ime-diato, à eficácia vinculante da decisão judicial do STF. Aqui, apenas no caso servido como paradigma, os referidos princípios deverão constar, sob pena de violar preceito constitucional.

Logo se percebe que os argumentos contrários à nova tendência do STF em sede de controle difuso soçobram (e até passam a fun-damentar a legitimidade dessa nova concepção), principalmente quando se tem presente uma outra tendência fundamentadora da primeira citada: a tendência de abstrativização, objetivação ou ver-ticalização do controle concreto, tipicamente difuso, em virtude da extensão dos efeitos do controle abstrato (erga omnes, ex tunc e vinculante) para o concreto (inter partes e ex nunc, caso não haja a suspensão pelo Senado), impondo-se a decisão de Tribunal Superior (rectius: Supremo) ao inferior, consoante demonstram os exemplos da legislação (e.g. Súmula Vinculante, Repercussão Geral, art. 481, parágrafo único, e art. 557, § 1º-A do CPC) e da jurisprudência do STF (e.g. RE 197.917/SP, HC 82.959/SP, Rcl. 4.335-5/AC, MI 670, 708 e 712).

Essa tendência de abstrativização também traz ao controle di-fuso a possibilidade de o STF, somente em determinadas circunstân-cias, poder rever suas decisões – como no caso de declaração de con-stitucionalidade em que surjam mudanças das circunstâncias fáticas ou de relevante alteração das concepções jurídicas dominantes. Da mesma forma, não serão afetados pela declaração de inconstitucion-alidade os atos não mais suscetíveis de revisão ou impugnação, tudo

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ao modo das decisões em controle abstrato. Além disso, a declaração de inconstitucionalidade in concreto também é passível de limitação de efeitos, como já vem, aliais, se decidindo (Cf., dentre outros julga-dos, Rcl. 2.391, Rel. Marco Aurélio, DJ 12/07/2007).

Ora, se a súmula vinculante foi implementada, apesar dos pesares, muitas discussões acerca da nova perspectiva do STF es-vaem-se. Jogaram-se as primeiras pedras com EC 45/04, e isso faz com que outras sejam arremessadas, como o tema aqui proposto. Como dito em outra passagem, a destruição das janelas da “casa” (ou da própria casa, se o caso), antes de significar a destruição do núcleo essencial das competências dos Poderes, é, na verdade, uma tendência de efetivação da Constituição e da sua força normativa: destroem-se apenas, nessa visão, as janelas que impedem a reflexão da luz solar, clarão este que nos guiará rumo à segurança jurídica e à justiça (social) a serem implementadas pela Lei Maior.

Somem-se a essa tendência os fenômenos da jurisprudenciali-zação/tribunalização da Constituição e do ativismo judiciário (rectius: ativismo constitucional), significando, em resumo, uma nova forma de ver a Constituição, ao ser revelada a criação jurisdicional em matéria constitucional e a autoridade da Jurisprudência (direito constitucional jurisprudencial), identificando-se, outrossim, em tempos de explosão de litigiosidade, a interpretação concretizante de certos conteúdos constitucionais, o que denota, certamente, uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais fundamentais (Justiça instituinte). Busca-se, dessa maneira, realizar a justiça social mesmo com maior interferência no invocado espaço de atuação dos outros dois Poderes (atividade nor-mativa pulverizada e escalonada), mormente quando um deles está em crise, como é o caso do atual Congresso Nacional.

Deriva daí outro ponto importante, que é a superação da visão da função judicial de simples “legislador negativo”, dando-se um novo papel especial à Jurisdição Constitucional. Dessa forma, a função criadora do intérprete, concebida dentro de um processo hermenêutico produtivo, traz um modelo onde cabe ao Tribunal Constitucional extrair através da interpretação o sentido da norma que a coloque em consonância com o texto maior, excluindo-se os resultados dissonantes. É a força normativa das decisões judiciais do Supremo, mencionada por Eros Grau.

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A teoria da Mutação Constitucional – ou ainda, com base firme em Peter Häberle, interpretação constitucional aberta com possibili-dade de mutação normativa ou evolução na interpretação –, de mais a mais, fornece substrato às intenções modificativas do art. 52, X, CF/88. Isso porque revela-se como um processo informal de modi-ficação constitucional “por meio do qual são atribuídos novos senti-dos, conteúdos até então não ressaltados à letra da Lex Legum, quer através da interpretação, em suas diversas modalidades e métodos, quer por intermédio da construção (construction), bem como dos usos e costumes constitucionais”, consoante o conceito de Uadi Lam-mêgo Bulos (1997, p. 57).

Nesse processo de mutação, para o referido autor, haveria de ter somente limitações subjetivas – a consciência do intérprete, ou seja, a postura ética do aplicador em não desrespeitar a norma constitu-cional através de interpretações deformadoras dos princípios funda-mentais que embasam o Documento Maior –, o que coaduna com os propósitos da tese aqui defendida, já que não traça como limite do fenômeno o texto da Constituição, senão a própria Constituição em sistema – um sistema constitucional mutante, complete-se.

Até mesmo Eros Grau confirma o sobredito, ao ressaltar, em seu voto quando Ministro em atividade do STF, que “na mutação constitu-cional caminhamos não de um texto a uma norma [processo esse de interpretação, que seria um minus em relação ao processo de mu-tação constitucional], porém de um texto a outro texto, que substitui o primeiro”, ou seja, “na mutação constitucional há mais [o plus]. Nela não apenas a norma é outra, mas o próprio enunciado normativo é alterado”. Alterado pelo próprio resultado da mutação normativa (“re-sultado normante”), que dá nova vida ao texto (“resultado normado”).

Além disso, lembre-se que a postura a ser alcançada pela Rcl. 4.335-5/AC respeita, como visto, os princípios fundamentais que norteiam a Carta Maior de 1988, além de prestigiar o STF enquanto guardião da Constituição e seu intérprete máximo. De outro lado, não adotar tal postura significa condescender-se com o vazio, a omissão, a inércia legislativa, que, como bem apontou Carlos Augusto Alcântara Macha-do (1999, p. 135), promove, aí sim, uma mutação inconstitucional.

Se mesmo assim teoricamente a pretensão de dar nova feição ao controle difuso de constitucionalidade não satisfaz, tem-se que prag-maticamente o STF pede socorro, para o fim de fazer valer o art. 5º,

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LXXVIII, CF/88, em face dos 90.607 processos que julgou somente no ano de 2011 (dados atualizados até novembro), sendo que estron-dosos 86,5% deles (78.383) se referiam apenas a Agravo de Instru-mento e Recurso Extraordinário! (cf. anexo, onde se pode verificar também um comparativo completo entre 1940 a 2011). Enquanto isso, tem-se registrado que a Suprema Corte americana julga anual-mente uma média de apenas 100 processos.

Por certo, o novel paradigma que se está formando com mais força na Rcl. 4.335-5/AC tende a amenizar a repetição de processos, a demora das decisões constitucionais sobre importantes controvér-sias e o chamado fenômeno das “guerras de liminares”.

Com base em toda a análise feita do instituto jurídico da suspen-são do Senado de lei declarada inconstitucional pelo Supremo, en-tende-se, nos passos dos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau, que a norma estabelecida no art. 52, X, CF/88, deve sofrer a mutação con-stitucional precisada e ser lida da seguinte maneira: “compete privati-vamente ao Senado Federal dar publicidade à suspensão da execução, operada pelo Supremo Tribunal Federal, de lei declarada inconstitucion-al, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo”.

De outro modo, poder-se-ia acrescer a expressão subjacente “a menos que” no dispositivo citado, promovendo toda a finalidade sub-jacente à regra constitucional, que é, dentre outras, dar efetividade às normas e comandos fundamentais da Constituição, derrotando-se um sentido e fazendo nascer outro complementar: “Compete privati-vamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tri-bunal Federal, a menos que, em matérias fundamentais e para dar efetividade plena às normas constitucionais, o próprio Supremo Tribunal Federal o faça”. Aqui, como ressaltado no estudo, nem o texto é modificado, senão a sua norma complementada hermeneu-ticamente, fazendo-se loas à dicotomia texto e norma.

Ou mesmo, ainda, deve-se seguir o caminho teórico da tran-scendência dos motivos determinantes, onde o efeito vinculante emerge da própria ratio decidendi da decisão, logo, irradiando o seu conteúdo essencial. Ou seja, o dispositivo deve ser lido, numa per-spectiva moderna, à luz da fundamentação.

Outrossim, nos trilhos da teoria da nulidade (“the inconstitutional statute is not law at all”), estender a todos (efeito erga omnes), desde

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sempre (efeito ex tunc) e com efeitos vinculantes o entendimento ex-traído da declaração incidental pelo STF da inconstitucionalidade de uma lei é prestigiar, antes de tudo, a “vontade da Constituição” (Wille zur Verfassung) e a sua força normativa (Die normative Kraft der Ver-fassung), além do respeito principalmente à legalidade, igualdade e imparcialidade, trazendo, por fim, segurança jurídica com justiça so-cial, objetivos esses que resguardam o comprometimento da norma jurídica com os valores éticos.

Deveras, a Constituição Federal brasileira (como outras) nasceu para ser instrumento da cidadania, ao defender e garantir prepon-derantemente a dignidade da pessoa humana e o Estado Democráti-co de Direito ou, modernamente como se tem dito, o Estado Con-stitucional (Verfassungsstaat), estendendo a todos.

É o reforço, assim, do caráter democrático do sistema constitucional, onde o controle de constitucionalidade ganha ares especiais para assegurar a efetivação plena da Constituição e a manutenção da Democracia e Cidadania, num aspecto substancial-ista. (Re)nascem, como uma fênix potencializada a partir do desen-volvimento da noção de Direito Judicial Criativo, novas concepções as quais oxigenam temas há muito criticados: o Ativismo Constitucional e a Justiça Instituinte dos direitos fundamentais, num tempo de tran-sição do ativismo judicial e superação, de uma vez por todas, da ideia de Poder Judiciário meramente instituído.

E não poderia ser de outra forma, já que, nas palavras do sem-pre lembrado Pontes de Miranda, “contra a Constituição nada pros-pera, tudo fenece”. Isso porque o Direito, antes de tudo, é achado na Constituição.

* Salus popopuli supreme lex esta 1

1 “A salvação do povo é a lei suprema.” (Cicen Legilus, liv. III, cap. 9)

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LISTA DE ABREVIATURAS

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ADC – Ação Declaratória de ConstitucionalidadeADCT – Ato das Disposições Constitucionais TransitóriasADI ou ADIN – Ação Direta de Inconstitucionalidade GenéricaADI interventiva – Ação Direta de Inconstitucionalidade InterventivaADO – Ação Direta de Inconstitucionalidade por OmissãoADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito FundamentalAI-AgRg – Agravo de Instrumento no Agravo RegimentalCB – Constituição Brasileira Cf. – ConferirCF/88 – Constituição Federal de 1988CP – Código PenalCPC – Código de Processo Civil CPP – Código Processo PenalDJ – Diário da JustiçaDJE – Diário da Justiça EletrônicoEC – Emenda Constitucionale.g. – exempli gratiaHC – Habeas Corpusj. – julgado emMI – Mandado de InjunçãoMin. – MinistroMS – Mandado de Segurançap. / pp. – página(s)Rcl. – ReclamaçãoRE – Recurso ExtraordinárioRel. – RelatorRI/STF – Regimento Interno do Supremo Tribunal FederalSTF – Supremo Tribunal FederalSTJ – Superior Tribunal de Justiçav.g. – verbi gratiaVs. – versus

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REFERÊNCIAS

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254 DIREITO JUDICIAL CRIATIVO

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256 DIREITO JUDICIAL CRIATIVO

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ANEXOS

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259Anexos

ANEXO – AMOVIMENTO PROCESSUAL NO STF NOS ANOS DE 1940 A 2011*

Movimentação STF 2010 2011*

Proc. Autuados 71.670 59.581

Proc. Distribuídos 41.014 35.476

Julgamentos 103.869 90.607

Acórdãos publicados 10.814 13.080

Movimentação STF 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

Proc. Protocolados 105.307 110.771 160.453 87.186 83.667 95.212 127.535 119.324 100.781 84.369

Proc. Distribuídos 90.839 89.574 87.313 109.965 69.171 79.577 116.216 112.938 66.873 42.729

Julgamentos 86.138 109.692 83.097 107.867 101.690 103.700 110.284 159.522 130.747 121.316

Acórdãos publicados 10.770 11.407 11.685 10.840 10.674 14.173 11.421 22.257 19.377 17.704

Movimentação STF 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999

Proc. Protocolados 18.564 18.438 27.447 24.377 24.295 27.743 28.134 36.490 52.636 68.369

Proc. Distribuídos 16.226 17.567 26.325 23.525 25.868 25.385 23.883 34.289 50.273 54.437

Julgamentos 16.449 14.366 18.236 21.737 28.221 34.125 30.829 39.944 51.307 56.307

Acórdãos publicados 1.067 1.514 2.482 4.538 7.800 19.507 9.811 14.661 13.954 16.117

Movimentação STF 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989

Proc. Protocolados 9.555 12.494 13.648 14.668 16.386 18.206 22.514 20.430 21.328 14.721

Proc. Distribuídos 9.308 12.853 13.846 14.528 15.964 17.935 21.015 18.788 18.674 6.622

Julgamentos 9.007 13.371 15.117 15.260 17.780 17.798 22.158 20.122 16.313 17.432

Acórdãos publicados 3.366 3.553 4.080 4.238 5.178 4.782 5.141 4.876 4.760 1.886

Movimentação STF 1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1977 1978 1979

Proc. Protocolados 6.367 5.921 6.253 7.093 7.352 8.775 6.877 7.072 8.146 8.277

Proc. Distribuídos 6.716 6.006 6.692 7.298 7.854 9.324 6.935 7.485 7.815 8.433

Julgamentos 6.486 6.407 6.523 8.049 7.986 9.083 7.565 7.947 8.848 10.051

Acórdãos publicados 3.328 3.491 3.926 4.340 4.459 3.913 3.377 3.741 3.755 3.554

Movimentação STF 1960 1961 1962 1963 1964 1965 1966 1967 1968 1969

Proc. Protocolados 6.504 6.751 7.705 8.216 8.960 8.456 7.378 7.614 8.612 8.023

Proc. Distribuídos 5.946 6.682 7.628 8.737 8.526 13.929 7.489 7.634 8.778 10.309

Julgamentos 5.747 6.886 7.436 6.881 7.849 6.241 9.175 7.879 9.899 9.954

Acórdãos publicados 4.422 7.000 7.317 7.316 7.511 5.204 6.611 6.479 6.731 5.848

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260 DIREITO JUDICIAL CRIATIVO

Movimentação STF 1950 1951 1952 1953 1954 1955 1956 1957 1958 1959

Proc. Protocolados 3.091 3.305 3.956 4.903 4.710 5.015 6.556 6.597 7.114 6.470

Proc. Distribuídos 2.938 3.041 3.572 4.623 4.317 4.686 6.379 6.126 7.816 7.440

Julgamentos 3.371 2.917 4.197 4.464 3.933 4.146 4.940 6.174 7.302 8.360

Acórdãos publicados 3.395 2.217 2.476 3.388 4.474 3.730 3.794 5.251 6.400 7.980

Movimentação STF 1940 1941 1942 1943 1944 1945 1946 1947 1948 1949

Proc. Protocolados 2.419 2.629 2.496 2.480 2.584 3.422 2.415 2.773 2.729 3.335

Proc. Distribuídos 2.211 2.503 2.310 2.281 2.324 2.566 2.246 2.430 2.569 3.705

Julgamentos 1.807 2.265 2.447 2.355 2.321 1.860 1.819 2.565 2.988 3.269

Acórdãos publicados 1.469 2.105 2.238 2.111 2.001 1.801 1.251 1.992 2.079 2.758

Obs: Protocolados: A partir de 17/10/2009 os processos deix-aram de ser protocolados e passaram a ser diretamente autuados. Os dados inseridos a partir dessa data são referentes a quantidade de processos autuados.

Julgamentos: Engloba decisões monocráticas (despachos) e de-cisões colegiadas (acórdãos).

Fonte: Portal de Informações Gerenciais do STF.*Dados de 2011 atualizados até 30 de novembro.

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261Anexos

ANEXO – BGRÁFICOS DO MOVIMENTO PROCESSUAL NO STF – 1940 A 2011*

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262 DIREITO JUDICIAL CRIATIVO

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263Anexos

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Page 265: Livro direito judicial criativo

264 DIREITO JUDICIAL CRIATIVO

Obs: Protocolados: A partir de 17/10/2009 os processos deixaram de ser protocolados e passaram a ser diretamente autuados. Os da-dos inseridos a partir dessa data são referentes a quantidade de pro-cessos autuados.

Julgamentos: Engloba decisões monocráticas (despachos) e de-cisões colegiadas (acórdãos).

Fonte: Portal de Informações Gerenciais do STF.*Dados de 2011 atualizados até 30 de novembro.

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265Anexos

ANEXO – CPROCESSOS PROTOCOLADOS, DISTRIBUÍDOS E JULGADOS POR

CLASSE PROCESSUAL NO STF – 2008 A 2011*

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266 DIREITO JUDICIAL CRIATIVO

Obs: Protocolados: A partir de 17/10/2009 os processos deixaram de ser protocolados e passaram a ser diretamente autuados. Os da-dos inseridos a partir dessa data são referentes a quantidade de pro-cessos autuados.

Julgamentos: Engloba decisões monocráticas (despachos) e de-cisões colegiadas (acórdãos).

Fonte: Portal de Informações Gerenciais do STF.*Dados de 2011 atualizados até 30 de novembro.

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267Anexos

ANEXO – DVOTOS NA ÍNTEGRA DOS MINISTROS DO STF GILMAR MENDES E

EROS GRAU NA RCL. 4.335-5/AC

SUPREMO TRIBUNAL FEDERALRECLAMAÇÃO 4.335-5 ACRE

VOTO DO RELATOR MINISTRO GILMAR MENDES

Conforme destacado, a ampliação do sistema concentrado, com a multiplicação de decisões dotadas de eficácia geral, acabou por modificar radicalmente a concepção que dominava entre nós sobre a divisão de poderes, tornando comum no sistema a decisão com eficácia geral, que era excepcional sob a Emenda Constitucional n 16/65 e sob a Carta de 1967/69. No sistema constitucional de 1967/69, a ação direta era apenas uma idiossincrasia no contexto de um am-plo e dominante modelo difuso. A adoção da ADI, posteriormente, conferiu perfil diverso ao nosso sistema de controle de constitucion-alidade, que continuou a ser um modelo misto. A ênfase passou a residir, porém, não mais no modelo difuso, mas nas ações diretas. O advento da Lei 9.882/99 conferiu conformação à ADPF, admitindo a impugnação ou a discussão direta de decisões judiciais das instân-cias ordinárias perante o Supremo Tribunal Federal. Tal como estabel-ecido na referida lei (art. 10, § 3°), a decisão proferida nesse processo há de ser dotada de eficácia erga omnes e de efeito vinculante. Ora, resta evidente que a ADPF estabeleceu uma ponte entre os dois modelos de controle, atribuindo eficácia geral a decisões de perfil incidental. Vê-se, assim, que a Constituição de 1988 modificou de forma ampla o sistema de controle de constitucionalidade, sendo in-evitáveis as reinterpretações ou releituras dos institutos vinculados ao controle incidental de inconstitucionalidade, especialmente da exigência da maioria absoluta para declaração de inconstitucionali-dade e da suspensão de execução da lei pelo Senado Federal. O Su-premo Tribunal Federal percebeu que não poderia deixar de atribuir significado jurídico à declaração de inconstitucionalidade proferida em sede de controle incidental, ficando o órgão fracionário de outras Cortes exonerado do dever de submeter a declaração de inconstitu-cionalidade ao plenário ou ao órgão especial, na forma do art. 97 da Constituição. Não há dúvida de que o Tribunal, nessa hipótese, aca-

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bou por reconhecer efeito jurídico transcendente à sua decisão. Em-bora na fundamentação desse entendimento fale-se em quebra da presunção de constitucionalidade, é certo que, em verdade, a orien-tação do Supremo acabou por conferir à sua decisão algo assemel-hado a um efeito vinculante, independentemente da intervenção do Senado. Esse entendimento está hoje consagrado na própria legis-lação processual civil (CPC, art. 481, parágrafo único, parte final, na redação da Lei n. 9756, de 17.12.1998). Essa é a orientação que parece presidir o entendimento que julga dispensável a aplicação do art. 97 da Constituição por parte dos Tribunais ordinários, se o Supremo já tiver declarado a inconstitucionalidade da lei, ainda que no modelo incidental. Na oportunidade, ressaltou o Relator para o acórdão, Il-mar Galvão, no já mencionado RE 190.728, que o novo entendimento estava “em perfeita consonância não apenas com o princípio da eco-nomia processual, mas também com o da segurança jurídica, merecendo, por isso, todo encômio, como procedimento que vem ao encontro da tão desejada racionalização orgânica da instituição ju-diciária brasileira, ressaltando que se cuidava “de norma que não deve ser aplicada com rigor literal, mas, ao revés, tendo-se em mira a finalidade objetivada, o que permite a elasticidade do seu ajusta-mento às variações da realidade circunstancial”. [56. RE 190.728, Rela-tor para o acórdão Min. Ilmar Galvão, DJ de 30.5.1997]. E ela também demonstra que, por razões de ordem pragmática, a jurisprudência e a legislação têm consolidado fórmulas que retiram do instituto da “suspensão da execução da lei pelo Senado Federal” significado sub-stancial ou de especial atribuição de efeitos gerais à decisão proferi-da no caso concreto. Como se vê, as decisões proferidas pelo Supre-mo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, acabam por ter eficácia que transcende o âmbito da decisão, o que indica que a própria Corte vem fazendo uma releitura do texto constante do art. 52, X, da Constituição de 1988, que, como já observado, reproduz dis-posição estabelecida, inicialmente, na Constituição de 1934 (art. 91, IV) e repetida nos textos de 1946 (art. 64) e de 1967/69 (art. 42, VIII). Portanto, é outro o contexto normativo que se coloca para a suspen-são da execução pelo Senado Federal no âmbito da Constituição de 1988. Ao se entender que a eficácia ampliada da decisão está ligada ao papel especial da jurisdição constitucional, e, especialmente, se considerarmos que o texto constitucional de 1988 alterou substan-

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cialmente o papel desta Corte, que passou a ter uma função preemi-nente na guarda da Constituição a partir do controle direto exercido na ADI, na ADC e na ADPF, não há como deixar de reconhecer a ne-cessidade de uma nova compreensão do tema. A aceitação das ações coletivas como instrumento de controle de constitucionalidade rela-tiviza enormemente a diferença entre os processos de índole objeti-va e os processos de caráter estritamente subjetivo. É que a decisão proferida na ação civil pública, no mandado de segurança coletivo e em outras ações de caráter coletivo não mais poderá ser considerada uma decisão inter partes. De qualquer sorte, a natureza idêntica do controle de constitucionalidade, quanto às suas finalidades e aos procedimentos comuns dominantes para os modelos difuso e con-centrado, não mais parece legitimar a distinção quanto aos efeitos das decisões proferidas no controle direto e no controle incidental. Somente essa nova compreensão parece apta a explicar o fato de o Tribunal ter passado a reconhecer efeitos gerais à decisão proferida em sede de controle incidental, independentemente da intervenção do Senado. O mesmo há de se dizer das várias decisões legislativas que reconhecem efeito transcendente às decisões do STF tomadas em sede de controle difuso. Esse conjunto de decisões judiciais e leg-islativas revela, em verdade, uma nova compreensão do texto con-stitucional no âmbito da Constituição de 1988. É possível, sem qualquer exagero, falar-se aqui de uma autêntica mutação constitu-cional em razão da completa reformulação do sistema jurídico e, por conseguinte, da nova compreensão que se conferiu à regra do art. 52, X, da Constituição de 1988. Valendo-nos dos subsídios da doutrina constitucional a propósito da mutação constitucional, poder-se-ia cogitar aqui de uma autêntica reforma da Constituição sem expressa modificação do texto. [57. JELLINEK, Georg. Reforma y Mutación de la Constitución. Tradução espanhola de Christian Förster, Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, p.15-35; DAULIN, Hsü. Mutación de La Constitución. Tradução espanhola de Christian Förster e Pablo Lucas Verdú. Bilbao: IVAP, 1998, p.68 e s; FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos Informais de Mudança da Constituição. São Paulo: Max Limonad, 1986, p.64 e s. e p.102 e s.]. Em verdade, a aplicação que o Supremo Tribunal Federal vem conferindo ao disposto no art. 52, X, da CF indica que o referido instituto mereceu uma significativa reinterpretação a partir da Constituição de 1988. É possível que a

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configuração emprestada ao controle abstrato pela nova Constitu-ição, com ênfase no modelo abstrato, tenha sido decisiva para a mu-dança verificada, uma vez que as decisões com eficácia erga omnes passaram a se generalizar. A multiplicação de processos idênticos no sistema difuso – notória após 1988 - deve ter contribuído, igual-mente, para que a Corte percebesse a necessidade de atualização do aludido instituto. Nesse contexto, assume relevo a decisão que afir-mou a dispensabilidade de se submeter a questão constitucional ao Plenário de qualquer Tribunal se o Supremo Tribunal já se tiver mani-festado pela inconstitucionalidade do diploma. Tal como observado, essa decisão acaba por conferir uma eficácia mais ampla - talvez até mesmo um certo efeito vinculante - à decisão do Plenário do Supre-mo Tribunal no controle incidental. Essa orientação está devida-mente incorporada ao direito positivo (CPC, art. 481, parágrafo único, parte final, na redação da Lei n. 9756, de 1998). No mesmo contexto situa-se a decisão que outorgou ao relator a possibilidade de decidir, monocraticamente, os recursos extraordinários vinculados às questões já resolvidas pelo Plenário do Tribunal (CPC, art. 557, § 1º A). De fato, é difícil admitir que a decisão proferida em ADI ou ADC e na ADPF possa ser dotada de eficácia geral e a decisão proferida no âm-bito do controle incidental - esta muito mais morosa porque em ger-al tomada após tramitação da questão por todas as instâncias - con-tinue a ter eficácia restrita entre as partes. Explica-se, assim, o desenvolvimento da nova orientação a propósito da decisão do Senado Federal no processo de controle de constitucionalidade, no contexto normativo da Constituição de 1988. A prática dos últimos anos, especialmente após o advento da Constituição de 1988, parece dar razão, pelo menos agora, a Lúcio Bittencourt, para quem a finali-dade da decisão do Senado era, desde sempre, “apenas tornar públi-ca a decisão do tribunal, levando-a ao conhecimento de todos os ci-dadãos”. [58. BITTENCOURT. O controle jurisdictional de constitucionalidade das leis, cit. p.145]. Sem adentrar o debate sobre a correção desse entendimento no passado, não parece haver dúvida de que todas as construções que se vêm fazendo em torno do efeito transcendente das decisões pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Congresso Nacional, com o apoio, em muitos casos, da jurisprudên-cia da Corte [59. MS 16.512 (Rel. Min. Oswaldo Trigueiro), RTJ 38 n.1,p 23; RMS 17.976 (Rel. Min. Amaral Santos) RDA, 105:111(113); AI-AgR

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168.149 (Rel. Ministro Marco Aurélio), DJ de 4.8.1995; AI-AgR 167.444, (Rel. Min. Carlos Velloso), DJ de 15.9.1995; RE 190.728 (Rel. Min. Celso de Mello), DJ 30.5.1997; RE 191.898 (Rel. Min. Sepúlveda Pertence), DJ de 22.8.1997; RE 228.844/SP (Rel. Min. Maurício Corrêa), DJ 16.6.1999; RE 221.795 (Rel. Min. Nelson Jobim), DJ 16.11.2000; RE 364.160 (Rel. Min. Ellen Gracie), DJ 7.2.2003; AI 423.252 (Rel. Min. Carlos Velloso), DJ 15.4.2003; RE 345.048 (Rel. Min. Sepúlveda Pertence), DJ 8.4.2003; RE 384.521 (Celso de Mello), DJ 30.5.2003); ADI 1.919 (Rel. Min. Ellen Gra-cie), DJ 1º.8.2003], estão a indicar a necessidade de revisão da orien-tação dominante antes do advento da Constituição de 1988. Assim, parece legítimo entender que, hodiernamente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado Federal há de ter simples efeito de publicidade. Desta forma, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, chegar à conclusão, de modo defini-tivo, de que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que este pub-lique a decisão no Diário do Congresso. Tal como assente, não é (mais) a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo. A própria decisão da Corte contém essa força normati-va. Parece evidente ser essa a orientação implícita nas diversas de-cisões judiciais e legislativas acima referidas. Assim, o Senado não terá a faculdade de publicar ou não a decisão, uma vez que não se cuida de uma decisão substantiva, mas de simples dever de publi-cação, tal como reconhecido a outros órgãos políticos em alguns sis-temas constitucionais (Constituição austríaca, art. 140, 5 – publicação a cargo do Chanceler Federal, e Lei Orgânica da Corte Constitucional Alemã, art. 31, (2), publicação a cargo do Ministro da Justiça). Tais de-cisões proferidas em processo de controle de normas são publicadas no Diário Oficial e têm força de lei (Gesetzeskraft) [Lei do Bundesver-fassungsgericht, § 31, (2)]. Segundo Klaus Vogel, o § 31, II, da Lei Orgânica da Corte Constitucional alemã faz com que a força de lei alcance também as decisões confirmatórias de constitucionalidade. Essa ampliação somente se aplicaria, porém, ao dever de publicação, porque a lei não pode conferir efeito que a Constituição não prevê. [60. VOGEL, Klaus. Rechtskraft und Gesetzeskraft der Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts. In: STARCK, Christian (Org.) Bundes-verfassungsgericht und Grundgesetz. 1. ed. Tübingen: Mohr, 1976, v. 1, p. 568-613]. Portanto, a não-publicação, pelo Senado Federal, de

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Resolução que, nos termos do art. 52, X da Constituição, suspenderia a execução da lei declarada inconstitucional pelo STF, não terá o con-dão de impedir que a decisão do Supremo assuma a sua real eficácia jurídica. Esta solução resolve de forma superior uma das tormentosas questões da nossa jurisdição constitucional. Superam-se, assim, tam-bém, as incongruências cada vez mais marcantes entre a jurisprudên-cia do Supremo Tribunal Federal e a orientação dominante na legis-lação processual, de um lado, e, de outro, a visão doutrinária ortodoxa e – permita-nos dizer – ultrapassada do disposto no art. 52, X, da Con-stituição de 1988. Ressalte-se ainda o fato de a adoção da súmula vinculante ter reforçado a idéia de superação do referido art. 52, X, da CF na medida em que permite aferir a inconstitucionalidade de de-terminada orientação pelo próprio Tribunal, sem qualquer interfer-ência do Senado Federal. Por último, observe-se que a adoção da técnica da declaração de inconstitucionalidade com limitação de efeitos [61. Cf. MENDES, Gilmar. Jurisdição Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.387-413] parece sinalizar que o Tribunal en-tende estar desvinculado de qualquer ato do Senado Federal, caben-do tão-somente a ele – Tribunal – definir os efeitos da decisão. No caso em apreço, concedi medida liminar em habeas corpus de ofício, em decisão de 21.8.2006, para que, mantido o regime fechado de cumprimento de pena por crime hediondo, fosse afastada a vedação legal de progressão de regime, nos seguintes termos, na parte em que interessa: “A possibilidade de progressão de regime em crimes hediondos foi decidida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento HC 82.959-SP, Rel. Min. Marco Aurélio, (acórdão pen-dente de publicação). Nessa assentada, ocorrida na sessão de 23.2.2006, esta Corte, por seis votos a cinco, reconheceu a inconstitu-cionalidade do § 1º do artigo 2º da Lei n. 8.072/1990 (“Lei dos Crimes Hediondos”), que proibia a progressão de regime de cumprimento de pena nos crimes hediondos. (...) Segundo salientei na decisão que deferiu a medida liminar, o modelo adotado na Lei n. 8.072/1990 faz tábula rasa do direito à individualização no que concerne aos chama-dos crimes hediondos. Em outras palavras, o dispositivo declarado inconstitucional pelo Plenário no julgamento definitivo do HC 82.959/SP não permite que se levem em conta as particularidades de cada indivíduo, a capacidade de reintegração social do condenado e os esforços envidados com vistas à ressocialização. Em síntese, o § 1º

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do art. 2º da Lei n. 8.072/1990 retira qualquer possibilidade de garan-tia do caráter substancial da individualização da pena. Parece in-equívoco, ademais, que essa vedação à progressão não passa pelo juízo de proporcionalidade. Entretanto, apenas para que se tenha a dimensão das reais repercussões que o julgamento do HC 82.959-SP conferiu ao tema da progressão, é válido transcrever as seguintes considerações do Min. Celso de Mello, proferidas em sede de medida liminar, no HC 88.231/SP, DJ de 20.3.2006, ‘verbis’: "Como se sabe, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o HC 82.959/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, declarou, 'incidenter tantum', a inconstitu-cionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072, de 25.7.1990, afastando, em conseqüência, para efeito de progressão de regime, o obstáculo representado pela norma legal em referência. Impende assinalar, no entanto, que esta Suprema Corte, nesse mesmo julgamento plenário, explicitou que a declaração incidental em questão não se reveste de efeitos jurídicos, inclusive de natureza civil, quando se tratar de pe-nas já extintas, advertindo, ainda, que a proclamação de inconstitu-cionalidade em causa - embora afastando a restrição fundada no § 1° do art. 2° da Lei n. 8.072/90 - não afeta nem impede o exercício, pelo magistrado de primeira instância, da competência que lhe é inerente em sede de execução penal (LEP, art. 66, III, 'b'), a significar, portanto, que caberá ao próprio Juízo da Execução avaliar, criteriosamente, caso a caso, o preenchimento dos demais requisitos necessários ao ingresso, ou não, do sentenciado em regime penal menos gravoso. Na realidade, o Supremo Tribunal Federal, ao assim proceder, e tendo presente o que dispõe o art. 66, III, 'b', da LEP, nada mais fez senão respeitar a competência do magistrado de primeiro grau para exami-nar os requisitos autorizadores da progressão, eis que não assiste a esta Suprema Corte, mediante atuação 'per saltum' - o que represen-taria inadmissível substituição do Juízo da Execução -, o poder de antecipar provimento jurisdicional que consubstancie, desde logo, a outorga, ao sentenciado, do benefício legal em referência. Tal ob-servação põe em relevo orientação jurisprudencial que esta Suprema Corte firmou em torno da inadequação do processo de 'habeas cor-pus', quando utilizado com o objetivo de provocar, na via sumaríssi-ma do remédio constitucional, o exame dos critérios de índole subje-tiva subjacentes à determinação do regime prisional inicial ou condicionadores da progressão para regime penal mais favorável

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(RTJ 119/668 - RTJ 125/578 - RTJ 158/866 - RT 721/550, v.g.). Não con-stitui demasia assinalar, neste ponto, não obstante o advento da Lei n. 10.792/2003 – que alterou o art. 112 da LEP, para dele excluir a referência ao exame criminológico -, que nada impede que os magis-trados determinem a realização de mencionado exame, quando o entenderem necessário, consideradas as eventuais peculiaridades do caso, desde que o façam, contudo, mediante decisão adequada-mente motivada, tal como tem sido expressamente reconhecido pelo E. Superior Tribunal de Justiça (HC 38.719/SP, Rel. Min. HÉLIO QUAGLIA BARBOSA - HC 39.364/PR, Rel. Min. LAURITA VAZ - HC 40.278/PR, Rel. Min. FELIX FISCHER – HC 42.513/PR, Rel. Min. LAURITA VAZ) e, também, dentre outros, pelo E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (RT 832/676 - RT 837/568): '(...). II - A nova redação do art. 112 da LEP, conferida pela Lei 10.792/03, deixou de exigir a realização dos exames periciais, anteriormente imprescindíveis, não importan-do, no entanto, em qualquer vedação à sua utilização, sempre que o juiz julgar necessária. III - Não há qualquer ilegalidade nas decisões que requisitaria a produção dos laudos técnicos para a comprovação dos requisitos subjetivos necessários à concessão da progressão de regime prisional ao apenado. (...).' (HC 37.440/RS, Rel. Min. GILSON DIPP - grifei) 'A lei 10.792/2003 (que deu nova redação ao art. 112 da Lei de Execução Penal) não revogou o Código Penal; destarte, nos casos de pedido de benefício em que seja mister aferir mérito, poderá o juiz determinar a realização de exame criminológico no sentencia-do, se autor de crime doloso cometido mediante violência ou grave ameaça, pela presunção de periculosidade (art. 83, parágrafo único, do CP).' (RT 836/535, Rel. Des. CARLOS BIASOTTI - grifei) A razão desse entendimento apóia-se na circunstância de que, embora não mais indispensável, o exame criminológico – cuja realização está sujeita à avaliação discricionária do magistrado competente - reveste-se de utilidade inquestionável, pois propicia 'ao juiz, com base em parecer técnico, uma decisão mais consciente a respeito do benefício a ser concedido ao condenado' (RT 613/278). As considerações ora referi-das, tornadas indispensáveis em conseqüência do julgamento plenário do HC 82.959/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, evidenciam a impossibilidade de se garantir, notadamente em sede cautelar, o in-gresso imediato do ora sentenciado em regime penal mais favorável. Cabe registrar, neste ponto, que o entendimento que venho de expor

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encontra apoio em recentíssimo julgamento da colenda Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, que, ao apreciar o RHC 86.951/RJ, Rel. Min. ELLEN GRACIE, deixou assentado que, em tema de pro-gressão de regime nos crimes hediondos (ou nos delitos a estes eq-uiparados), cabe ao magistrado de primeira instância proceder ao exame dos demais requisitos, inclusive aqueles de ordem subjetiva, para decidir, então, sobre a possibilidade, ou não, de o condenado vir a ser beneficiado com a progressão do regime de cumprimento de pena." (HC 88.231/SP, Rel. Min. Celso de Mello, decisão liminar, DJ de 20.3.2006) Em conclusão, a decisão do Plenário buscou tão-somente conferir máxima efetividade ao princípio da individualização das pe-nas (CF, art. 5º, LXVI) e ao dever constitucional-jurisdicional de funda-mentação das decisões judiciais (CF, art. 93, IX). Em sessão do dia 7.3.2006, a 1ª Turma, ao apreciar a Questão de Ordem no HC 86.224/DF, Rel. Min. Carlos Britto, admitiu a possibilidade de julgamento monocrático de todos os ‘habeas corpus’ que versem exclusivamente sobre o tema da progressão de regime em crimes hediondos. Em idêntico sentido, a 2ª Turma, ao apreciar a Questão de Ordem no HC 85.677/SP, de minha relatoria, em sessão do dia 21.3.2006, reconhe-ceu também a possibilidade de julgamento monocrático de todos os ‘habeas corpus’ que se encontrem na mesma situação específica. Tendo em vista que a situação em análise envolve direito de ir e vir, vislumbro, na espécie, o atendimento dos requisitos do art. 647 do CPP, que autorizam a concessão de ‘habeas corpus’ de ofício, “sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir (...).” Nesses termos, concedo medida liminar, de ofício, para que, mantido o regime fechado de cumprimento de pena por crime hediondo, seja afastada a vedação legal de progressão de regime, até o julgamento final desta rec-lamação. (...).”(fl.33-44). Com efeito, verifica-se que a recusa do Juiz de Direito da Vara de Execuções da Comarca de Rio Branco, no Estado do Acre, em conceder o benefício da progressão de regime, nos casos de crimes hediondos, desrespeita a eficácia erga omnes que deve ser atribuída à decisão deste Supremo Tribunal Federal, no HC 82.959, que declarou a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da Lei n. 8.072/1990. Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a presente rec-lamação, para cassar decisões proferidas pelo Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco, no Estado do Acre,

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que negaram a possibilidade de progressão de regime relativamente a cada um dos interessados acima mencionados. Nesta extensão da procedência da reclamação, caberá ao juízo reclamado proferir nova decisão para avaliar se, no caso concreto, os interessados (pacientes) atendem ou não os requisitos para gozar do referido benefício, po-dendo determinar, para esse fim, e desde que de modo fundamen-tado, a realização de exame criminológico.

VOTO-VISTA DO MINISTRO EROS GRAU

Antecipando-me à Ministra CÁRMEN LÚCIA e ao Ministro LE-WANDOWSKI pedi vista dos autos. Fi-lo porque visualizei proximi-dade efetiva entre esta reclamação e a de número 4.219, que recente-mente começamos a julgar, na qual proferi um voto-vista. Aqui e lá cogitamos do controle de constitucionalidade, de modo que me pareceu oportuno, até em razão do vigor do voto do Relator, o pedi-do de vista. Mais uma vez refleti sobre o tema. 2. Uma das marcantes oposições que se manifestam no bojo do direito é a que se põe entre a necessária tutela da segurança jurídica e da liberdade individual, de um lado, e a função da interpretação no desenvolvimento do direito, de outro. Dizendo-o na síntese de PAOLO GROSSI [1. Assolutismo giu-ridico e diritto privato, Giuffrè, Milano, 1.998, págs. 358-359], são duas as forças que, em direções opostas, percorrem o direito, uma ten-dente à rigidez, outra à elasticidade; e duas são as exigências funda-mentais que nele se manifestam: a da [i] certeza e liberdade individ-ual garantidas pela lei no sistema do direito burguês e a da sua [ii] contínua adequação ao devir social, garantida pela interpretação. Aquela apenas será assegurada na medida em que o texto vincule o intérprete; esta demanda criatividade que pode fazê-lo ir além do texto. Essa oposição apenas poderá ser compreendida se nos dis-pusermos a admitir que texto e norma não se superpõem; que o pro-cesso legislativo termina no momento do texto --- a norma virá de-pois, produzida no bojo de um outro processo, a interpretação. 3. Aqui a segunda oposição, agora entre a dimensão legislativa e a di-mensão normativa do direito. Uma, no processo legislativo; outra, no processo de produção normativa [= produção da norma, pelo intér-prete [2. Refiro-me ao intérprete autêntico, no sentido atribuído à expressão por KELSEN] ]. Da mesma forma, tratando-se da Constitu-

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ição, a oposição se dará entre uma dimensão constitucional textual e sua dimensão constitucional normativa. Mas esses dois momentos --- o momento do texto e o momento da norma --- não são expres-sivos de uma cisão na dinâmica jurídica, como se ela fosse divisível, como se a pudéssemos partir em distintos pedaços. Pois é certo que o texto é desdobrado, pelo intérprete, no momento da interpretação, de modo que o processo que o direito é, enquanto totalidade, aí não se interrompa; esse processo aí se completa. Ensina, a propósito, TUL-LIO ASCARELLI [3. Antigone e Porzia, estratto dalla Rivista Internazi-onale di Filosofia del Diritto, Anno XXXII (1955), Fasc. VI, Giuffrè, Milano, 1.956, pág. 765.]: “Il diritto non è mai un dato, ma uma con-tinua creazione della quale è continuo collaboratore l’interprete e così ogni consociato ed appunto perciò vive nella storia ed anzi com la storia”. Aqueles dois momentos compõem um só processo, o pro-cesso que o direito é, de sorte que se deve afirmar que ele é um dina-mismo [4. Isso desejo afirmar: o direito é um organismo vivo. Um or-ganismo contudo peculiar porque não envelhece, nem permanece jovem, visto ser contemporâneo à realidade. Vide meu Ensaio e dis-curso sobre a interpretação/aplicação do direito, 4a edição, Malheir-os Editores, São Paulo, 2.006, págs. 59- 60]. 4. O eminente Relator, ju-rista sensível à necessidade de adequação da Constituição ao devir social, em seu voto propõe se a promova no que tange aos efeitos das decisões do Supremo no exercício do controle difuso. E o faz ex-traindo o seguinte sentido do texto do inciso X do artigo 52 da Con-stituição, no quadro de uma autêntica mutação constitucional: ao Senado Federal está atribuída competência para dar publicidade à suspensão da execução de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. A própria decisão do Supremo conteria força normativa bastante para suspender a execução da lei declarada inconstitucional. Eis, pois, o que nos incumbe: verificar se no caso houve --- ou se não houve --- mutação constitucional. 5. Desejo inicialmente ponderar, no entanto, a procedência dos cuidados do eminente Ministro Relator. O cresci-mento do número de litígios e a multiplicação de processos idênticos no âmbito do sistema de controle difuso são expressivos da precarie-dade da paz construída no interior da sociedade civil. Uma paz dota-da de caráter temporário, na medida em que o dissenso entre par-ticularismos antagônicos é apenas mediado, superado pela

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conveniência --- o que, no direito, não consubstancia, a rigor, nen-huma mediação efetiva, nem suprassunção, mas justaposição confli-tante [5. Vide meu A ordem econômica na Constituição de 1988, 11ª edição, Malheiros Editores, São Paulo, 2.006, págs. 17-18]. Daí a mul-tiplicação de conflitos que operam a transposição, para o âmbito do Judiciário, de antagonismos que se revestem de múltiplas aparên-cias, insuficientes porém para ocultar suas raízes, plantadas na oposição de interesses historicamente bem definidos. As estruturas engendradas pela modernidade são insuficientes para nos elevar à eticidade (Sittlichkeit) hegeliana, permeada pela racionalidade como razão efetiva. De modo que, os particularismos opondo-se uns aos outros, profusamente, mas em última instância exibindo os antago-nismos de classe, o observador arguto verificará que nos juízos sin-gulares e nos tribunais são hoje travados, como se de um jogo e não de uma luta se tratasse, confrontos entre partes que consubstanciam uma manifestação própria da sociedade civil, as classes sociais. Di-zendo-o de outra forma: o Judiciário é atualmente arena em que se joga a luta de classes. Daí os cuidados do eminente Ministro Relator. É necessário que o Poder Judiciário cumpra adequadamente a mis-são --- autêntica missão de serviço público --- que lhe incumbe. Im-põe-se a esta Corte também atuar proficientemente, viabilizando a fluente transformação da luta em jogo [6. Vide meu O direito posto e o direito pressuposto, 6ª edição, Malheiros Editores, São Paulo, 2.005, págs. 158 e ss]. Então a oposição --- e como se vê bem vivermos em um mundo de oposições e confrontos, os particularismos afrontando os particularismos! --- então a oposição entre rigidez e elasticidade se manifesta. Nesse confronto, o eminente Relator opta por esta última. 6. A esta altura importa indagarmos se não terá ele excedido a mol-dura do texto, de sorte a exercer a criatividade própria à interpre-tação para além do que ao intérprete incumbe. Até que ponto o inté-rprete pode caminhar, para além do texto que o vincula? Onde termina o legítimo desdobramento do texto e passa ele, o texto, a ser subvertido? Temo que essa seja uma questão que só possa e deva ser respondida de modo indubitável caso a caso. Não obstante, em outra ocasião [7. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do di-reito, cit., pág. 218], pretendendo dar-lhe resposta, observei que, sendo a interpretação uma prudência [ela não é saber puro, separa-do do ser], haverá subversão do texto quando o intérprete autêntico

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produzir interpretante [= norma] não correta. A apuração dessa sub-versão também é [deve ser] objeto de uma prudência. O interpre-tante será correto quando --- a conclusão é de AULIS AARNIO [8. Le rationnel comme raisonable, trad. par Geneviève Warland, L.G.D.J., Paris, 1.992, pág. 278] --- [i] se insere no quadro [na moldura] do di-reito; [ii] o discurso que o justifica processa-se de maneira racional; [iii] atende ao código dos valores dominantes. Penso poder dizê-lo, agora, de modo diverso. Digo-o desde comentário colhido em JEAN-PIERRE VERNANT [9. O Universo, os Deuses, os Homens, trad. Rosa Freire d’Aguiar, Companhia das Letras, São Paulo, 2.000, pág. 13] a propósito da proximidade existente entre o discurso do direito e o discurso mítico: "O relato mítico, por sua vez, não é apenas, como o texto poético, polissêmico em si mesmo, por seus planos múltiplos de significação. Não está fixado numa forma definitiva. Sempre com-porta variantes, versões múltiplas que o narrador tem à sua dis-posição, e que escolhe em função das circunstâncias, de seu público ou de suas preferências, podendo cortar, acrescentar e modificar o que lhe parecer conveniente. Enquanto uma tradição oral de lendas estiver viva, enquanto permanecer em contato com os modos de pensar e os costumes de um grupo, ela se modificará: o relato ficará parcialmente aberto à inovação”. Note-se bem que menciono uma proximidade, não uma identidade, entre os dois discursos, o mítico e o jurídico. A vinculação do intérprete ao texto normativo é muito maior, por certo, do que a do expositor do mito ao texto do mito. Mas o que desejo neste passo enfatizar encontra-se em outra observação de JEAN-PIERRE VERNANT [10. Mito e religião na Grécia antiga, trad. Joana Angélica d’Avila Melo, Martins Fontes, São Paulo, 2.006, pág], essa a propósito da sujeição dos mitos a limitações coletivas bastante estritas: “... os trabalhos de Georges Dumézil e Claude Lévi-Strauss so-bre o mito levaram a formular de modo totalmente diferente os problemas da mitologia grega: como ler esses textos, que alcance intelectual reconhecer-lhes, que estatuto eles assumem na vida re-ligiosa? Acabou-se o tempo em que se podia falar do mito como se se tratasse da fantasia individual de um poeta, de uma fabulação roma-nesca, livre e gratuita. Até mesmo nas variações às quais se presta, um mito obedece a limitações coletivas bastante estritas. Um autor como Calímaco, quando, na época helenística, retoma um tema lend-ário para apresentar dele uma nova versão, não está livre para modi-

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ficar à vontade os elementos desse tema e para recompor-lhe o roteiro a seu bel-prazer. Ele se inscreve numa tradição; quer se amol-de a ela com exatidão; quer se afaste em algum ponto, é sustentado por ela, apóia-se nela e deve referir-se a ela, pelo menos implicita-mente, se quiser que sua narrativa seja entendida pelo público. Louis Gernet já o assinalou: mesmo quando parece inventar tudo, o narra-dor trabalha respeitando a linha de uma ‘imaginação lendária’ que tem seu modo de funcionamento, suas necessidades internas, sua coerência. Mesmo sem saber, o autor deve submeter-se às regras desse jogo de associações, de oposições, de homologias que a série de versões anteriores desencadeou e que constituem o arcabouço conceitual comum às narrativas desse tipo. Cada narrativa, para gan-har sentido, deve ser ligada e confrontada às outras, porque, juntas, compõem um mesmo espaço semântico cuja configuração particu-lar é como que a marca característica da tradição lendária” [grifei]. 7. Passo do texto do mito ao texto normativo para verificar que a este se amolda o quanto JEAN-PIERRE VERNANT afirmou a propósito do primeiro: o texto normativo obedece a limitações coletivas bastante estritas nas variações às quais se presta ao ser transformado em nor-ma; ainda quando operem o que chamamos de mudança de juris-prudência, os intérpretes autênticos não estão livres para modificá-lo, o texto normativo, à vontade, reescrevendo-o a seu bel-prazer; o intérprete inscreve-se na tradição do texto --- quer se amolde a ela com exatidão, quer se afaste dela em algum ponto, para atualizá-lo, o texto, é sustentado por ela, apóia-se nela e deve referir-se a ela, pelo menos implicitamente, se quiser que sua narrativa seja entendida pelo público; o intérprete há de construir a norma respeitando a co-erência interna do texto, sujeito a uma série de associações, oposições e homologias que conferem sentido ao texto, de modo que, em ver-dade, não inventa a norma. Permito-me repetir o que afirmei em outra oportunidade [11. Ensaio e discurso sobre a interpretação/apli-cação do direito, cit., pág. 32], para dizer que a norma encontra-se em estado de potência involucrada no texto; o intérprete a desnuda. Nesse sentido --- isto é, no sentido de desvencilhamento da norma de seu invólucro: no sentido de fazê-la brotar do texto, do enunciado --- é que afirmo que o intérprete "produz a norma". O intérprete com-preende o sentido originário do texto e o deve manter como referên-cia da norma que constitui. Dimensão legislativa e dimensão norma-

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tiva do fenômeno jurídico, qual observei inicialmente, compõem um só processo, o processo que o direito é enquanto dinamismo. Nele se hão de harmonizar as duas forças a que refere PAOLO GROSSI, uma tendente à rigidez [a rigidez do texto], outra, à elasticidade [a cria-tividade da interpretação]. Tudo andará bem, harmonicamente, se a coerência interna do texto normativo for observada na sua necessária atualização à realidade. 8. Ocorre-me ainda lembrar --- e peço vênia à Corte por me estender, embora a relevância do tema o justifique --- lembrar que ao ler um texto na abertura de um colóquio sob o título “Deconstruction and the Possibility of Justice”, na Cardozo Law School, em 1.989, JACQUES DERRIDA [12. Força de lei, trad. Leyla Per-rone-Moisés, Martins Fontes, São Paulo, 2.007, págs. 5-6] afirmou: “Devo falar em inglês (...) porque me colocam uma espécie de obrig-ação ou uma condição imposta por uma espécie de força simbólica, ou de lei, numa situação que não controlo. Uma espécie de pólemos concerne, de imediato, à apropriação da língua: se ao menos desejo fazer-me ouvir, preciso falar na língua de vocês, devo fazê-lo, tenho de fazê-lo”. Pois é exatamente disso que aqui tratamos. Se ao menos desejar fazer-se ouvir, o intérprete autêntico há de falar na, há de falar a língua do texto normativo. É dotado de legitimidade para, falando a e na língua do texto normativo, produzir normas e atualizar o direi-to. Mas essa legitimidade será dissolvida sempre que a língua do texto normativo for substituída por outra. Não se trata de afirmar que o intérprete autêntico tem legitimidade somente para repetir as pa-lavras da lei, porém algo substancialmente diverso disso --- ele de-tém legitimidade para atuar plenamente no plano da dimensão nor-mativa, para reproduzir o direito em sua dimensão normativa, fazendo-o porém na língua dos textos normativos. 9. Isto posto, cum-pre ponderarmos o que propõe, em seu voto, o eminente Relator, Ministro Gilmar Mendes. S. Excia. extrai o seguinte sentido do texto do inciso X do artigo 52 da Constituição, no quadro de uma autêntica mutação constitucional: ao Senado Federal está atribuída competên-cia privativa para dar publicidade à suspensão da execução de lei de-clarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. A própria decisão do Supremo conteria força normativa bastante para suspender a execução da lei declarada inconstitucional. Note-se bem que S. Excia. não se limita a interpretar um texto, a partir dele produzindo a norma que lhe corresponde,

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porém avança até o ponto de propor a substituição de um texto nor-mativo por outro. Por isso aqui mencionamos a mutação da Constitu-ição. 10. A mutação constitucional é transformação de sentido do enunciado da Constituição sem que o próprio texto seja alterado em sua redação, vale dizer, na sua dimensão constitucional textual. Quando ela se dá, o intérprete extrai do texto norma diversa daque-las que nele se encontravam originariamente involucradas, em esta-do de potência. Há, então, mais do que interpretação, esta concebida como processo que opera a transformação de texto em norma. Na mutação constitucional caminhamos não de um texto a uma norma, porém de um texto a outro texto, que substitui o primeiro. Daí que a mutação constitucional não se dá simplesmente pelo fato de um in-térprete extrair de um mesmo texto norma diversa da produzida por um outro intérprete. Isso se verifica diuturnamente, a cada instante, em razão de ser, a interpretação, uma prudência. Na mutação con-stitucional há mais. Nela não apenas a norma é outra, mas o próprio enunciado normativo é alterado. O exemplo que no caso se colhe é extremamente rico. Aqui passamos em verdade de um texto [com-pete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão de-finitiva do Supremo Tribunal Federal] a outro texto [compete privati-vamente ao Senado Federal dar publicidade à suspensão da ex-ecução, operada pelo Supremo Tribunal Federal, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Su-premo]. 11. Eis precisamente o que o eminente relator pretende ten-ha ocorrido, uma mutação constitucional. Pouco importa a circun-stância de resultar estranha e peculiar, no novo texto, a competência conferida ao Senado Federal --- competência privativa para cumprir um dever, o dever de publicação [= dever de dar publicidade] da de-cisão, do Supremo Tribunal Federal, de suspensão da execução da lei por ele declarada inconstitucional. Essa peculiaridade manifesta-se em razão da circunstância de cogitar-se, no caso, de uma situação de mutação constitucional. O eminente Relator não está singelamente conferindo determinada interpretação ao texto do inciso X do artigo 52 da Constituição. Não extrai uma norma diretamente desse texto, norma essa cuja correção possa ser sindicada segundo parâmetros que linhas acima apontei. Aqui nem mesmo poderemos indagar da eventual subversão, ou não subversão, do texto. O que o eminente

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Relator afirma é mutação, não apenas uma certa interpretação do texto do inciso X do artigo 52 da Constituição. 12. Impõe-se neste ponto, parenteticamente, brevíssima digressão a propósito da mu-tação constitucional, fenômeno discernido por LABAND, mas do qual terá sido GEORG JELLINEK [13. Reforma y mutación de la Constitu-cion, trad. de Christian Förster Y Pablo Lucas Verdu, Centro de Estu-dios Constitucionales, Madrid, 1.991] o primeiro a tratar no plano teórico. A nova doutrina do direito político, recusando explicações ancoradas em perspectiva formalista, caracteriza-a, qual anota HSÜ DAU-LIN [14. Mutación de la Constitución, trad. de Pablo Lucas Verdú y Christian Förster, Instituto Vasco de Administración Pública, Oñati, 1.998, pág. 29], como desvalorização e corrosão das normas jurídicas constitucionais por ela afetadas. A mutação constitucional decorre de uma incongruência existente entre as normas constitucionais e a realidade constitucional, entre a Constituição formal e a Constituição material. Oposições entre uma e outra são superadas por inúmeras vias, desde a interpretação, até a reforma constitucional. Mas a mu-tação se dá sem reforma, porém não simplesmente como interpre-tação. Ela se opera quando, em última instância, a práxis constitu-cional, no mundo da vida, afasta uma porção do texto da Constituição formal, sem que daí advenha uma ruptura do sistema. Este não sendo o momento adequado para o que o Ministro Pertence chama de seminário, permito-me apenas neste ponto referir o estudo prelimi-nar de PABLO LUCAS VERDU [15. Citada na nota 13] à tradução espan-hola do ensaio de JELLINEK e a monografia da Professora ANNA CAN-DIDA DA CUNHA FERRAZ [16. Processos informais de mudança da Constituição, Editora Max Limonad, s/ indicação de local, 1.986] so-bre o tema. E proponho retermos, em síntese, a afirmação que linhas acima formulei: na mutação constitucional não apenas a norma é nova, mas o próprio texto normativo é substituído por outro. 13. Em casos como tais importa apurarmos se, ao ultrapassarmos os lindes do texto, permanecemos a falar a língua em que ele fora escrito, de sorte que, embora tendo sido objeto de mutação, sua tradição seja mantida e ele, o texto dela resultante, seja coerente com o todo, no seu contexto. Pois é certo que a unidade do contexto repousa em uma tradição que cumpre preservar. Recorro a JEAN-PIERRE VER-NANT para dizer que o novo texto, para ganhar sentido, deve ser li-gado e confrontado aos demais textos no todo que a Constituição é,

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compondo um mesmo espaço semântico. O que se há de indagar, neste ponto, é se o texto resultante da mutação mantém-se adequa-do à tradição [= à coerência] do contexto, reproduzindo-a, de modo a ele se amoldar com exatidão. A mutação não é uma degenerescên-cia, senão uma manifestação de sanidade do ordenamento. 14. O sentido atribuído pelo eminente Relator ao inciso X do artigo 52 da Constituição não é inusitado. Há alguns anos foi afirmado por LÚCIO BITTENCOURT [17. O controle jurisdicional de constitucionalidade das leis, Ministério da Justiça, Brasília, 1.997, pág. 145]. De resto, in-úmeras circunstâncias esmiuçadas no voto do Relator --- circunstân-cias que não me parece necessário aqui reproduzir ou reiterar --- indi-cam a efetividade da mutação. Tentarei ser objetivo. 15. Breve relato da nossa sessão plenária do dia 28 de março passado: julgamos algu-mas ADI’s e alguns RE’s; debatia-se depósito em dinheiro como req-uisito necessário ao exercício, pelo administrado, do direito ao recur-so administrativo; julgamos inconstitucional a exigência, em mais de uma de suas manifestações; consta que no mesmo dia do julgamen-to, ao final da tarde, algum ou alguns contribuintes obtiveram o le-vantamento de depósitos que teriam anteriormente efetuado; se isso não for veraz, passa por ser na minha versão dos fatos; mas isso apenas se tornara possível, na realidade ou no conto que eu conto, porque a matéria à qual corresponderam os depósitos de que se trat-ava foi decidida em uma das ADI’s; as decisões tomadas em RE’s, ati-nentes a outra matéria, não aproveitarão os particulares senão quan-do, um dia, o Senado Federal vier a suspender a execução, no todo ou em parte, da lei que veicula a exigência de depósito... Um dia, no fu-turo... Esse relato diz tudo. Quem não se recusar a compreender per-ceberá que o texto do inciso X do artigo 52 da Constituição é --- val-ho-me da dicção de HSÜ DAU-LIN [18. Mutación de la Constitución, cit., pág. 67] --- obsoleto. 16. A esta altura a doutrina dirá que não, que entre nós coexistem a modalidade de controle concentrado e a de controle difuso de constitucionalidade e que a nossa tradição é a do controle difuso, atribuído à competência do Poder Judiciário desde a Constituição de 1.891. Que o Senado Federal participa desse controle a partir de 1.934, a ele competindo suspender, por meio de resolução, a execução de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF. Que o controle concentrado de constitucionalidade veio bem depois, inicialmente quando alterada a redação do artigo 101 da

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Constituição de 1.946 pela Emenda Constitucional n. 16/65, após em 1.988, com a incorporação ao nosso direito da Ação Direta de Incon-stitucionalidade. Que a decisão tomada no âmbito do controle con-centrado é dotada, em regra, de efeitos ex tunc [19. A exceção está prevista na Lei 9.868]; a definida no controle difuso, de efeitos ex tunc entre as partes. Que os efeitos da decisão em recurso extraordinário sendo inter partes e ex tunc, o Supremo, caso nela declare a incon-stitucionalidade da lei ou do ato normativo, remeterá a matéria ao Senado da República, a fim de que este suspenda a execução dessa mesma lei ou ato normativo. Que, se o Senado suspender a execução da lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo STF, agregará eficácia erga omnes e efeito ex nunc a essa decisão [20. Vide LENIO STRECK, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica, Forense, 2ª ed., 2004, págs. 479 e ss]. Por fim a doutrina dirá que, a entender-se que uma decisão em sede de controle difuso é dotada da mesma eficácia que uma proferida em controle concentrado, nenhuma diferença fundamental existiria entre as duas modalidades de controle de con-stitucionalidade. Sucede que estamos aqui não para caminhar seguindo os passos da doutrina, mas para produzir o direito e repro-duzir o ordenamento. Ela nos acompanhará, a doutrina. Prontamente ou com alguma relutância. Mas sempre nos acompanhará, se nos mantivermos fiéis ao compromisso de que se nutre a nossa legitimi-dade, o compromisso de guardarmos a Constituição. O discurso da doutrina [= discurso sobre o direito] é caudatário do nosso discurso, o discurso do direito. Ele nos seguirá; não o inverso. 17. Obsoleto o texto que afirma ser da competência privativa do Senado Federal a suspensão da execução, no todo ou em parte, de lei declarada incon-stitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, nele se há de ler, por força da mutação constitucional, que compete ao Senado Federal dar publicidade à suspensão da execução, operada pelo Supremo Tribunal Federal, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo. Indague-se, a esta altura, se esse texto, resultante da mutação, mantém-se adequa-do à tradição [= à coerência] do contexto, reproduzindo-a, de modo a ele se amoldar com exatidão. A resposta é afirmativa. Ademais não se vê, quando ligado e confrontado aos demais textos no todo que a Constituição é, oposição nenhuma entre ele e qualquer de seus princípios; o novo texto é plenamente adequado ao espaço semân-

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tico constitucional. 18. Ainda uma outra indagação será neste passo proposta: poderia o Poder Legislativo, no que tange à decisão a que respeita a Reclamação n. 4.335, legislar para conferir à Constituição interpretação diversa da definida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC n. 82.959, quando considerou inconstitucional o artigo 2o, § 1o, da Lei n. 8.072/90 [a chamada Lei dos crimes hedion-dos]? Entendo que não. As árvores judiciais --- como observa KARL LOEWENSTEIN [21. Verfassungsrecht und Vefassungspraxis der Ver-einigten Staaten, Berlin, 1.959, pág. 427], referindo-se à Suprema Corte dos Estados Unidos --- as árvores judiciais de ordinário não al-cançam o céu. Poderíamos, diz ele, por conta da posição superior que a Suprema Corte de fato ocupa na dinâmica constitucional, chegar facilmente à conclusão de que ao seu poder não se colocam limites. Esta suposição é no entanto incorreta. Foram tomadas providências para que também as árvores judiciais não alcancem o céu. Diz o texto de LOEWENSTEIN [22. Ob. cit., págs. 429-430], em tradução livre: "Im-portante limitação do poder do Tribunal Supremo encontra-se na possibilidade de o Congresso posteriormente, por meio de uma lei corretiva, revogar os efeitos de certa decisão. É importante frisar que aqui se trata apenas daqueles casos nos quais o Congresso não está de acordo com a interpretação dada pelo Tribunal Supremo a um texto normativo; aqui não se trata de modo algum dos casos onde o Tribunal Supremo decidiu pela inconstitucionalidade, seja por que o Congresso não tem absolutamente competência para promulgar a lei ou porque há contradição entre a lei e uma norma constitucional. [...] Correções de decisões do Tribunal Supremo por leis posteriores são muito freqüentes, de modo que podemos falar em um jogo de xadrez entre Congresso e Tribunal, onde o movimento do Congresso dá xeque-mate ao Tribunal. Essas reações do Congresso contra de-cisões que lhe parecem intragáveis mostram-se ainda mais interes-santes se consideramos que, repetidas vezes, o Presidente acudiu o Tribunal exercendo o poder de veto para evitar as correções. Isto ac-onteceu, por exemplo, em relação à existência de petróleo na costa. O Tribunal Supremo inicialmente definiu que o petróleo além da lin-ha da maré baixa pertencia à União (United States v. California, 332 U.S. 19, 1947). O Congresso por sua vez, sob influência de uma batal-ha publicitária extraordinariamente cara, sustentada pelos repre-sentantes dos interesses petroleiros dos Estados-membros, prom-

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ulgou duas vezes leis que definiam pertencerem, as reservas de petróleo, aos Estados-membros. O então Presidente Truman vetou estas duas leis (1946 e 1952). Posteriormente o Presidente Eisenhow-er, cumprindo uma promessa de campanha eleitoral aos seus finan-ciadores republicanos, não colocou empecilhos à terceira lei (Sub-merged Lands Act de 1953). [...] Desde a Segunda Guerra (até 1958) verificam-se não menos do que vinte e um casos deste tipo, nos quais o Congresso, por lei posterior, corrigiu decisões do Tribunal Supremo que o desagradavam, seja por motivos técnicos, seja por motivos políticos ou outras razões. Entre eles encontravam-se dois casos nos quais o Tribunal Supremo defendeu a preservação de direitos funda-mentais. Causou comoção o enfraquecimento de uma decisão (Jenckes v. United States, 353 U.S. 657, 1957) que possibilitou, por lei posterior, em 1957, o exame dos documentos de um acusado em processo político mantidos em arquivos do Estado. O Congresso, em uma cadeia de casos, anulou a ampliação de competências federais; em contrapartida, em apenas um caso corrigiu uma decisão a favor da União. Na maioria dessas decisões trata-se ou de diferenças de interpretação, nas quais naturalmente o legislador tem a última pala-vra, ou de casos nos quais o Tribunal Supremo pretendeu proteger um determinado grupo social (especialmente em casos trabalhistas), indispondo-se com o Congresso, que ou não estava de acordo com a posição adotada, ou tomava a decisão como inconveniente ou eco-nomicamente não sustentável; ou, ainda, que temia que determina-da decisão viesse a ensejar uma cadeia de processos subseqüentes. A possibilidade de que isso ocorresse é que, certamente, fez com que uma decisão do Tribunal Supremo (Wong Yang Sung v. Mc Grawth, 339 U.S. 33, 1950) --- que definiu como exigível também para a ex-tradição de estrangeiros um procedimento segundo determinadas regras --- viesse a ser corrigida mediante a alteração do Administra-tive Procedure Act de 1946 (60 Stat. 239, 1946), que passou a dispor que essa exigência não era, no caso, necessária; essa alteração legis-lativa resultou em economia em relação ao custo de milhares de pro-cessos atinentes a mexicanos que se encontravam ilegalmente no país". 19. Sei bem do perigo da importação de doutrinas jurídicas e exemplos estrangeiros para o e no debate sobre o direito brasileiro. Tenho insistido em que não existe o direito, existem apenas os direi-tos. E o nosso direito é muito nosso, próprio a nossa cultura. A ponto

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de afirmarmos a necessidade de uma antropofagia jurídica, à moda de OSWALD DE ANDRADE. A alusão ao texto de LOEWENSTEIN é porém, na hipótese, oportuna. Diz ele: o Poder Legislativo pode exer-cer a faculdade de atuar como intérprete da Constituição, para dis-cordar de decisão do Supremo Tribunal Federal, exclusivamente quando não se tratar de hipóteses nas quais esta Corte tenha decidi-do pela inconstitucionalidade de uma lei, seja porque o Congresso não tinha absolutamente competência para promulgá-la, seja porque há contradição entre a lei e um preceito constitucional. Neste caso, sim, o jogo termina com o último lance do Tribunal; nossos braços então alcançam o céu. 20. Vou dizê-lo de outro modo, em alusão às faculdades de estatuir e de impedir, para o quê recorro à exposição contida no capítulo VI do Livro IX d'O espírito das leis [23. Coleção Os Pensadores. v. XXI, trad. de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. São Paulo, Editor Víctor Civita, 1973], de MONTESQUIEU, sobre a distinção entre os poderes Legislativo e Ex-ecutivo (distinção e não separação entre poderes --- não me cansarei de repeti-lo --- que disso jamais tratou o barão). Distinguindo entre faculdade de estatuir --- o direito de ordenar por si mesmo, ou de cor-rigir o que foi ordenado por outrem - -- e faculdade de impedir --- o direito de anular uma resolução tomada por qualquer outro (isto é, poder de veto) [24. Ob. cit., pág. 159] ---, entende deva esta última estar atribuída ao Poder Executivo, em relação às funções do Legisla-tivo; com isso, o Poder Executivo faz parte do Legislativo, em virtude do direito de veto: “Se o Poder Executivo não tem o direito de vetar os empreendimentos do campo Legislativo, este último seria despótico porque, como pode atribuir a si próprio todo o poder que possa im-aginar, destruiria todos os demais poderes” [25. Idem, pág. 159]. “O Poder Executivo, como dissemos, deve participar da legislação através do direito de veto, sem o quê seria despojado de suas prer-rogativas” [26. Idem, pág. 161]. Bem se vê que MONTESQUIEU faz alusão a faculdades --- de estatuir e de impedir --- do Legislativo e do Executivo. Mas desejo referir, agora, a faculdade de impedir, do Ju-diciário, exercida em relação a atos do Legislativo. Ele, o Judiciário, pode [= deve] impedir a existência de leis inconstitucionais. Aí --- atu-alizo MONTESQUIEU --- como que um poder de veto do Judiciário. O Legislativo não poderá, nesta hipótese, retrucar, reintroduzindo no ordenamento o que dele fora extirpado, pois os braços do Judiciário

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nesta situação alcançam o céu. Pode fazê-lo quando lance mão da faculdade de estatuir, atuando qual intérprete da Constituição, por não estar de acordo com a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal a um texto normativo. Mas não, repito, quando aquele que estou referindo como poder de veto do Judiciário [= poder de afir-mar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo] houver sido ex-ercido. 21. Outra questão a ser imediatamente introduzida, anexa à anterior, diz com a impossibilidade de o Senado Federal permanecer inerte, da sua inércia resultando comprometida a eficácia da decisão expressiva do que venho referindo como poder de veto exercido pelo Supremo. A resposta é óbvia, conduzindo inarredavelmente à reiteração do entendimento adotado pelo Relator, no sentido de que ao Senado Federal, no quadro da mutação constitucional declarada em seu voto --- voto dele, Relator --- e neste meu voto reafirmada, está atribuída competência apenas para dar publicidade à suspensão da execução de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. A própria de-cisão do Supremo contém força normativa bastante para suspender a execução da lei declarada inconstitucional [27. A resolução do Senado consubstancia ato normativo vinculado --- decorrente, diria eu --- à decisão declaratória de inconstitucionalidade, ato secundário, conseqüente à comunicação do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, como assevera JOÃO BOSCO MARCIAL DE CASTRO, em O controle de constitucionalidade das leis e a intervenção do Senado Federal, mimeografado, Brasília, 2.006]. 22. No caso, ademais, trata-se da liberdade de pessoas, cumprimento de pena em regime integral-mente fechado. A não atribuição, à decisão do STF no HC n. 82.959, de força normativa bastante para suspender a execução da lei de-clarada inconstitucional compromete o regime de cumprimento de pena, o que não se justifica a pretexto nenhum. Julgo procedente a reclamação.

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