Livro dos relatos - rl.art.br · depois para Marcel e falei a eles “Tô de cara ainda, ... Falei...

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Livro dos Relatos -uma experiência mística e divina com os cogumelos mágicos- Shauara David

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Livro dos Relatos -uma experiência mística e divina com os cogumelos

mágicos-

Shauara David

Agradecimentos A Jady Tariane e Marcel Arthur pela apresentação à sálvia; Ao Rogério Di

Girolamo, por viabilizar o acesso nacional às plantas mágicas, proporcionando a mudança e qualidade de vida de muitos viajantes; pelo maravilhoso trabalho de dedicação, estudo e investimento com o cultivo dos cogumelos, e principalmente pela amizade. A Tainah David, Layzianne Dantas (Gil), João David, Juan Pablo, Cinthia Danielle (in memoriam), Kaliane Araújo, Bernardo Silva, Teo Oliveira e Nhauan pela participação indispensável nas sessões, aprendizado e peculiaridade de cada um, enfim, pelo amor eterno que sinto a cada nome que citei e tantos outros dotados de uma sensibilidade natural para sentir a Natureza Suprema.

Agradeço muitíssimo ao Universo, essa mãe pulsante composta por todos nós; À Serena Luz do caminho fluido da vida. Aos infinitos seres do mar, da terra, do ar... A cada partícula de vida existente, tudo está interligado numa perfeita harmonia. Deus é Natureza! A paz é interna, exatamente onde reside o silêncio e a tranquilidade. Amor, sempre amor!

Apresentação

Tudo começou com a Sálvia Divinorum, meu primeiro contato com uma planta

de poder através dos amigos Jady e Marcel, que compraram na loja virtual Natureza Divina e posteriormente o convite deles para eu prová-la. “Claro! Quero sim!” falei meio afobada. Creio que era Abril ou Maio de 2012, uma quarta feira e estava pronta para ir à academia fazer Pilates. Nunca havia tido contato com plantas de poder, exceção da cannabis, e essa era a minha referência. Não fazia a menor ideia do que viria, e muito mais pela curiosidade não pestanejei e fui correndo até a casa deles, na mesma rua em que morava e Jady estava sozinha. Ela me recebeu com alegria, apagou as luzes, me fez algumas ressalvas como ficar tranquila, tentar relaxar e deixar que ela segurasse o bong (conhecido também por purificador, é um aparelho utilizado para fumar qualquer tipo de erva, seu design faz com que a fumaça entre em contato com a água e se concentre antes de ser inalada). Enquanto ela falava, eu a apressava em começar a acender o maçarico. Sentei na cama, dei o primeiro trago no bong de vidro transparente, olhei para ela e falei; “tudo certo”, ela calmamente me fez sinal para repetir o trago. Puxei mais uma vez e segurei no pulmão. Quando soprei fui junto com a fumaça para uma dimensão que jamais imaginava conhecer, e até hoje me é inconcebível uma descrição real por fugir completamente de tudo que vivera até então.

Durou apenas dois minutos e pouco posso falar sobre essa experiência. Qualquer palavra que denomina, restringe. Estive numa floresta que não era floresta, falei com duendes que não eram senão seres desconhecidos, e simplesmente sem conceitos. Babei muito e quando fui “voltando” estranhei o quarto, fiquei andando de um lado a outro perguntando “Cadê ele?” Jady respondia “Ele quem?” e eu não sabia dizer quem era. Não sabia aonde tinha ido, com quem tinha falado, não sabia nada e estava a cada minuto mais confusa. Senti um calor insuportável e sai da casa dela meio desorientada em direção à academia, a dois quarteirões dali.

O caminho até lá nunca foi tão estranho! Nada parecia normal e eu questionava se afinal, não havia morrido. Era uma dúvida realmente forte e clara. A sensação era exatamente essa. A estrada, os carros, o carrinho de cachorro quente, o sinal, as conversas paralelas; tudo, absolutamente parecia tão estúpido! Superficialmente sem sentido, um mundo perdido. Durante a sessão de pilates não pude me concentrar. Fazia um esforço enorme para me lembrar do que havia acontecido; ao menos explicar a mim sobre aquelas sensações desconhecidas, misteriosas. Já estava exaurida de não compreender absolutamente nada, quando decidir voltar na casa do casal para fumar novamente aquela planta inexplicável.

Marcel já havia chegado do trabalho e eles não só cederam ao meu pedido, como resolveram fumar também, claro, cada um de uma vez. Marcel foi o primeiro; ficou aparentemente tranquilo, de vez em quando falava coisas inaudíveis, incompreensíveis, o que não nos privou de entender algumas frases: “É, ela é engraçada, meu amigo invisível acha sua calça engraçada.” Ele ria, e tinha um semblante absurdamente tranquilo. Nunca nos falou em detalhes, mas confirmou que falava com um “amigo invisível” e o tal amigo falava da minha calça verde e que me achava engraçada. Tudo durou uns dez minutos, e depois me preparei para a vez. Fiquei no sofá da sala, pedi que pusessem músicas de Bob Marley, respirei, concentrei e fiquei atenta ao que a sálvia tinha a me mostrar.

Da mesma forma como a primeira vez dei o primeiro trago, olhei para Jady, depois para Marcel e falei a eles “Tô de cara ainda, nada aconteceu”, fumei novamente e agora um pouco mais preparada, fiquei na maliciosa observação de buscar entendimentos. Lembro que comecei a falar convictamente: “Entendi tudo! é tudo feito de borracha, tudo é mentira, isso aqui é tudo de mentira!” Pegava no sofá e sentia sua textura de borracha, bem como o vento e até meu próprio corpo. O calor era insuportável e quase sufocando, tirei a blusa por emergência. Duraram os mesmos dois minutos da primeira vez, e tudo que havia entendido era isso. Uma força torna o ar pesado. Nesse momento deixamos de ser “centro-um” e passamos a ser o todo. Ali percebi que a matéria não é tão verdadeira quanto a essência. A sálvia puxa um tapete sob os pés e nos derruba, uma perplexidade impede de falar sobre. Depois foi a vez de Jady, que babava, falava coisas incompreensíveis e pegava no ar, com um semblante desarmado e não identificado consigo mesma, como se houvesse esquecido quem era. Depois ela chorou muito, e se desculpava a mim e a Marcel, seu companheiro. Falei a ela que não tinha o que perdoar, e segui divagando até minha casa, apenas um pouco menos embaraçada, mas com certeza depois da experiência não fui mais a mesma. Surgiu o poema cujo título é o nome da planta, ficando registrada em versos essa peculiar experiência: Sálvia Divinorum O mundo feito em dois minutos. O mundo em mim, fractal e movido de pintura. Tudo é borracha densa derretendo balbucios; Cadê ele? A língua enrola enquanto a boca baba (vi o duende na floresta) mas cadê ele? Não era floresta, a casa testemunhava a agonia Não eram visíveis, os olhos incrédulos creem! Foi puxada abruptamente a alma, não havia corpo além do nada, a realidade se desintegra e transforma-se em nós, agora somos quadros, uma surrealidade sem importância, pouco importa. Ninguém nos pintou, é apenas mentira; O amigo invisível acha engraçada minha cara, minha calça verde. Todos riem, são desconexas as sensações num segundo foram esfumaçados o todo individualizado para comungar ainda mais irreal o que chamamos morte; ou será nascimento?(se) tanto faz o corpo desmembra em ondas de borracha, quadro. Porque tudo é mentira; Apenas não a ideia xamânica turva e breve. Tive medo. Fiquei curiosa: O duende pegou em minha mão, e a mão não era minha não havia dedos, porque não havia duende; eram múltiplas as realidades

o entendimento foi desorientado em túneis Minha calça não tem cura, é engraçada; Somos hilários enquadrados de Dali! Não é liquido nem concreto esse chão colorido, esses móveis, tudo feito de mentira. O tempo inexiste, a arte inexiste, a casa inexiste Só existe o mundo emborrachado, feito de loucura.

Algumas semanas se passaram e na próxima oportunidade de encontrar Jady, conversamos sobre a experiência e o que havíamos pesquisado individualmente. O nome do gênero Sálvia é derivado do latim salvare, significando “curar” ou “salvar”. As palavras salvação e salvador também derivam desta mesma raiz. A Sálvia é primariamente usada como um sacramento religioso para cerimônias espirituais pelo povo Mazatecas do México e como remédio. As mulheres hispânicas rotineiramente utilizam as folhas em um chá para auxílio na eliminação de cólicas menstruais, muitas também mascam as folhas para alívio da dor ou para ação como um analgésico. Hispânicos e pessoas de descendência mexicana tem usado a Sálvia durante gerações e esta planta tem sido, e ainda é, uma parte maior da cultura mexicana. A Sálvia possui diversas propriedades que a tornam útil em psicoterapia: ela produz um estado profundo de autorreflexão, melhora a habilidade para recuperar recordações da infância, e fornece acesso a áreas da psique que são ordinariamente difíceis de serem atingidas. As pessoas que a usam medicinalmente, não a tomam com frequência. Ela não causa euforia, nem é estimulante. Não é uma droga social. Uma vez que ela aumenta a autoconsciência, não é útil como uma droga escapista. É uma erva medicinal natural. Há também organizações religiosas dentro do Brasil que utilizam a Salvia divinorum como um sacramento religioso. Eles acreditam que ela é uma planta que foi colocada aqui por Deus, não apenas para iluminar espiritualmente as pessoas, mas para curar nossas mentes, corpos e almas. Os membros adultos a utilizam medicinalmente e também ritualmente como um sacramento espiritual divino, que é atingido com reverência sincera e como proteção. O ato do cultivo é também uma parte maior deste ritual para a maioria dos seguidores. Muitas destas práticas e crenças possuem várias centenas de anos e são derivadas de práticas espirituais Mazatecas.

O interesse foi despertado e visitei o site Natureza Divina, o qual fornece plantas sagradas, raras e exóticas. Então o cogumelo de deus “me chamou”, resolvi comprar junto com o amigo Anderson (primeiro relato), a beleza da natureza se desnudou inteira, e desde então comecei um processo de aprendizado com o “sagradinho” como o apelidamos, procedendo assim com os relatos, sem a pretensão de publicá-los a princípio, mas surgiu uma amizade imprescindível; Rogério Di Girolamo é sem dúvida, o nome mais importante de toda essa história que culminou na ascensão espiritual e na produção deste livro. Ele é o idealizador da empresa Natureza Divina e também o responsável pelo cultivo, aprendizado e investimentos das plantas enteógenas, dedicando-se inclusive, inteiramente a esse lindo trabalho de proporcionar a expansão da consciência através da natureza, com todo o amor e cuidado que se faz necessário no caminho da luz.

A partir da segunda compra passei a mandar e-mails para o site pedindo informações, detalhes e curiosidades do cogumelo. De lá eles respondiam bem. Com a constante troca de e-mails, passei a relatar alguns momentos mais curiosos das sessões, embora nem soubesse com quem, exatamente, estava me comunicando e expondo as nossas experiências. Quando comprei o kit de cultivo (quarto relato), as

correspondências se intensificaram, tinha muitas dúvidas pela extrema fragilidade e excesso de exigências e cuidados dos fungos, então no contato com quem cultivava, evitou que a nossa tentativa (minha e da minha irmã) fosse um fracasso total. A partir daí nos “adicionamos” na rede social facebook, as conversas passaram a um teor menos profissional e mais afável, de forma que surgiu uma amizade maravilhosa.

Numa certa manhã agradável meu pai chamou para sairmos em busca de pastos de boi zebu (os psilocybe cubensis brotam no esterco desse animal), já que tinha chovido nos dias anteriores e o sol iluminava o dia (quinto relato), sem muito sucesso e meio desconsolados voltamos para casa. À tarde chamei os companheiros Kaki e Juan para tomarmos os “mal nascidos” reféns do cultivo caseiro e amador em minha casa. À noite recebi a notícia através da minha irmã Tainah, que haviam chegado do sedex, em meu nome, uma boa porção de cogumelos! Foi uma surpresa maravilhosa, sem dúvida, inesquecível. Rogério mandou esse presente divino, proporcionando momentos incríveis para várias pessoas citadas nos relatos seguintes e posteriormente sugeriu a ideia e já propôs o convite de publicar o livro dos relatos.

A admiração e o carinho só acumularam de forma que Rogério me deu o privilégio de conhecê-lo pessoalmente, quando decidiu tirar umas férias da empresa, e veio junto com o filho Caliel conhecer um pouco das praias do meu Estado RN. Tivemos a oportunidade especial de tomarmos “o sagrado” juntos, em Pipa (décimo relato). Antes de partir de volta a São Paulo, além da saudade, deixou-me uma boa quantidade de cogumelos para eu continuar com os relatos, e também bastante Sálvia, permitindo-me apresentá-la para algumas escolhidas pessoas queridas. Até meu pai ganhou algumas gramas do cogu, o que lhe deixou bastante satisfeito. Aliás, fomos todos felizes nesse emaranhado iluminado de histórias.

O contato assíduo com este fungo divino foi transformando minha vida de uma maneira radical. Cada etapa um aprendizado indispensável, fui entendendo o corpo, mudei a alimentação e me tornei mais saudável em todos os aspectos. Cortei a carne e o frango, diminui o doce, evitei refrigerantes, frituras e massas e passei a ingerir mais frutas e verduras. Fui conhecendo a alma, preferindo-a leve, contemplativa, silenciosa. Conhecendo o espírito, buscando serenidade, identificando os perigos do ego, e na profundidade da importância, vivendo o Amor internamente, sendo-O, de forma a expandir a ação de paz e a consciência da unidade pulsante do universo.

No decorrer dos relatos é possível passear pelas etapas do aprendizado. Deslumbre, beleza, magia, ensinamento, contatos espirituais, interação com animais inusitados, imagens “infernais” e até transes foram transfigurando minha percepção de vida, mundo e morte. Houve um período em que me tornei um pouco intolerante em relação às pessoas que estavam num nível de consciência menos privilegiado, mas acabei entendendo que ainda mais é preciso amá-las e mostrar-lhes, se possível, a verdadeira luz interior, onde Deus reside em cada um. É preciso muito amor para viver no caminho da verdade, muita fluidez para reconhecer a serenidade e ainda muito mais paciência para concretizar o amor e transitar tranquilamente pelas máscaras sociais que nos distanciam tanto da nossa verdadeira essência.

Como ensinar a amar senão amando? Apenas amando é possível expandir a luz da verdade e do amor. O caminho não é fácil, primeiro porque estamos muito identificados com os apegos da matéria, consequentemente, pelo medo do desconhecido, medo de sair da zona de conforto e costume, mas principalmente, porque para elevar o mínimo grau de consciência é preciso um trabalhoso preparado e pré-determinado de paciência. São raros os que conseguem, porque é um caminho constante, um processo de aprendizado, um estilo de vida.

O amor se concretiza na liberdade. O amor se concretiza na coletividade. O amor se concretiza quando toca o outro. O amor se concretiza no silêncio e na serenidade. Porque tudo isso é uma coisa só; é a resposta, é a verdade, é a luz. É a plenitude do espírito. Não há prazer sem dor, e esses sofredores tiveram a compensação de expandir. Atingir o outro é compartilhar o amor, e principalmente, ser AMOR. Aprender a amar é um processo mútuo e constante de muita paciência.

O mar espelha o céu, onde reina o sol, que por sua vez se multiplica quando refletido na imensidão reluzente da superfície da água. Que mistérios guardam esses deuses? A chave da sabedoria, pela serenidade e naturalidade de suas condições superiores. Não, eles não escondem as respostas, nós cegamos a percepção interna, onde a simplicidade atinge uma clareza inigualável e a resposta torna o próprio Ser, nítida, coerente, impessoal. Lúcida e verdadeira como a paisagem estampada em toda a parte; Natureza.

A Autora.

Parte I A experiência

“ Antes da minha alma falar, o amor, em mim, era um fio tênue, estendido entre duas estacas próximas. Mas agora, é uma esfera que começa onde termina e termina onde começa, e que

envolve todos os seres e se estende progressivamente até abranger tudo o que será. Antes da minha alma falar, eu via a beleza como labaredas trêmulas em meio a colunas

de fumaça. Mas agora, vejo a beleza até na fumaça negra e em todos os rostos e em todos os seres.

Minha alma instruiu-me e ensinou-me a escutar as vozes que não nascem nas gargantas

e nas línguas. Antes da minha alma falar, meus sentidos sofriam de constante perturbação, pois só ouvia os ruídos e os gritos. Mas agora, ouço no silêncio coros cantando hinos da eternidade e

proclamando os segredos do invisível.”

Gibran Khalil Gibran- Curiosidades e Belezas. “Parece extremamente improvável que a humanidade, de um modo geral, algum dia seja capaz de passar sem paraísos artificiais. A maioria dos homens e mulheres leva uma vida tão sofredora em seus pontos baixos e tão monótona em suas eminências, tão pobre e limitada, que os desejos de fuga, os anseios para superar-se, ainda por uns breves momentos, estão e têm estado sempre

entre os principais apetites da alma”

Aldous Huxley – As portas da percepção.

“Não há, portanto, nada a ser ganho, nem pelo universo nem pelo homem, através de originalidade e esforço individuais. Aqueles que se apegaram ao seu corpo mortal e a suas

afeições, necessariamente acharão tudo muito penoso, pois tudo para eles terá que acabar. Mas para aqueles que encontraram o ponto imóvel da eternidade, em volta do

qual tudo gira, inclusive eles próprios, tudo é aceitável da maneira como é, e pode ser vivenciado como magnífico e maravilhoso. O primeiro dever do indivíduo é,

portanto, simplesmente exercer o papel que lhe foi atribuído como o faz em o sol e a lua, as várias espécies animais e vegetais, as águas, as rochas e as estrelas

sem resistência, sem negligência, e então, se possível, orientar a mente de maneira a identificar sua consciência com o princípio contido no todo.”

Joseph Campbell – As máscaras de Deus

I- (um relato etnobotânico)

“A transformação interna radical e origem a um novo nível de consciência pode ser a única esperança real que temos na atual crise global causada pela dominância do paradigma

mecanicista ocidental.” Stanislav Grof

Eu havia comprado no final do ano passado. Chegou ao início de janeiro 2013, para partilhar ao máximo de pessoas possíveis as coisas boas da vida, chamei 4 próximas e cada uma tomou um grama (tinha apenas 5g.). Dias antes havia me preparado espiritualmente, emocionalmente e também costurado os detalhes do local e dia, para que absolutamente tudo estivesse a favor. Foi feita uma seleção de músicas boas, um preparo alimentar pré-ingestão, banho de ervas para espantar o cansaço. Meditações, orações, concentração e foco linguisticamente positivos. Separamos os panos e os incensos e fomos nos encontrar numa granja linda em Pium/RN, onde a natureza transborda em exuberância, e isso ajudou bastante.

Estava ansiosa e acabei excedendo-a em procurar a “lombra” em toda e qualquer imagem ou movimentação. Estávamos no rio e aproximadamente uma hora depois de ingerirmos a planta seca com água, calafrios internos confundiam calor e frio, depois uma ligeira visão de gigantismo. O rosto da minha irmã transfigurava num estreito longo e engraçadíssimo. Fiquei me perguntando o tempo todo se estava de fato, chapada. Porque apesar da leveza hilária e os lapsos sutis de mudanças visuais, me sentia extremamente lúcida. Uma sensação suave invadia discretamente a água, que se tornava mais viçosa, a areia formava desenhos perfeitos de tribais sob a lâmina transparente do rio que corria ainda mais espontâneo. Tudo fazia um sentido logicamente interessante. As plantas não precisam falar, os ventos não precisam preencher o tempo, todos comungam uns com os outros numa parceria elegantemente harmoniosa. Ali não pousava uma só angústia, dúvida, procura ou maldade humana. As ações eram tranquilas e puras; Pássaros, matas, céus, verdes, azuis, ventos, terras tornavam mais acessíveis, mais belos, cruelmente belos e complementares.

Observavam-nos a natureza inteira, nos viam nus, mesmo insistindo em nos vestir. O cenário inteiro era não só acolhedor e cúmplice, mas também conservava uma maturidade materna libertária de cuidado e amor. Tão gigante quanto o planeta suspenso no universo foi esbarrar na percepção emocionada de ver a grama respirar!! Lindo! Sim, elas respiram! A terra também respira, e junto ao ar uma sincronia de som imitando a transpiração natural da vida. Comecei a entender a natureza em sua unidade e divindade. Deus é natureza, sempre soube disso, mas depois do cogumelo digamos que a ideia tenha ficado mais palpável, mais coerente.

Havia uma pessoa de energia negra que desafiava o potencial da planta em toda etapa omitindo a mágica da coisa em vez de contemplar a beleza disposta ao redor. Sempre que eu me aproximava dela, aquela alegria artística sumia, parecendo mentira, dando lugar a uma tristeza feita de ilusão. Mas bastava me afastar, e a verdade espetacular voltava a deslumbrar minha retina.

Retornei ao banho de rio, desta vez sozinha, deitei a cabeça na água e vi uma luz muito forte sob minha cabeça. Foi rápido o suficiente pra me assustar e me deixar meio confusa. Depois nada. Enfim, percebia tudo, principalmente entendi a superioridade do fluxo natural pelo silêncio. Nós humanos falamos demais, e isso estraga tudo. No mais,

a paisagem parecia um quadro vivo, tão surreal quanto real, verdes incríveis, o céu lilás multicolor e maravilhoso, risos, paz, amor. Nuances de cores desconhecidas (na verdade mais fortes), e a sensação de ver por dentro a energia das pessoas. Experiência perceptiva muito aguçada, no mínimo transformadora.

Ao fim do dia (tomamos no inicio da tarde), voltamos para a casa com a melhor sensação do mundo. Uma lucidez estranhamente completa, um amor infantil e verdadeiro como se a vida se bastasse num instante. Comunhão de ser parte de um todo imenso e intransponível.

A única indignação era o fato de não haver percebido tais deslumbres antes, infelizmente matamos as possibilidades de vida fora do padrão pequeno, egocêntrico e banal dirigido pela sociedade. Por outro lado privilegiado, tivemos essa abertura acompanhada aos seres mágicos da floresta, e creio que tudo venha na sua hora...

No mais, palavras restringem as sensações e ninguém bem as conhece senão sentindo-as vivamente no próprio campo imaginativo e, portanto real.

A vida torna-se reveladora quando se está humildemente aberto às novas perspectivas, já que o mundo cético, cru, retrógrado sangra a infelicidade pobre das limitações.

Dessa forma ando flutuando em acompanhar as nuvens sem me importar com as coisas banais. Tudo é inútil. Apenas não o horizonte onde risca o mar. A harmonia deixa de acontecer quando há o primeiro conflito, mas é possível preservar em si a vontade pacificada de que o amor inunde a vista, o ouvido e a pele da humanidade. Não dá para escorar no tempo, já que ele é líquido. O futuro não existe, visto que ainda não houve. E assim seguimos a esperar o nada. Um fluxo contínuo...

II- (revelador!) “As árvores são nosso pulmão, os rios nosso sangue, o ar é nossa respiração, e a Terra, nosso

corpo.” Deepak Chopra

Depois da sutil e curiosa tarde em que tomei pela primeira vez o cogumelo de deus, fiquei com a sensação que havia de continuar o processo de aprendizado que aquela planta antiquíssima supunha revelar. Digo supunha, porque a ideia estava ainda um pouco superficial ou mesmo confusa. Eu havia atropelado na ansiedade e perdi a melhor parte. A presença de pessoas desconexas com a energia do lugar também havia atrapalhado a entrega, e ainda a pequena quantidade (um grama) ingerida.

Tão logo houve oportunidade compramos 15g. do fungo desidratado, reunimo-nos Eu, Gil e Tainah (as mesmas do primeiro ritual) com o meu pai David e o companheiro Juan. Embora alertasse aos dois iniciantes a importância de preparar-se corpo e mente, já que era uma experiência espiritual, apenas as três tínhamos dimensão de que quanto mais preparado estivesse, mais intenso o mundo maravilhoso e totalmente novo em que seríamos delicadamente conduzidos a vivenciar.

Fiz o máximo de concentração na semana anterior evitando carne animal, álcool, tabaco, doces e estresses. Mergulhei em meditação, orações e tranquilidade, o rio havia de fluir e eu tinha que estar tranquilamente preparada. Marcado para o sábado de manhazinha, a mesma granja que nos acolheu na primeira vez. Na noite anterior tomei um banho de ervas e tive um pressentimento estarrecedor. Havia de conhecer o paraíso. Dormi em paz comigo unido de amor ao mundo. Acordei cedo e feliz. Todos estávamos felizes. E absolutamente tudo fluiu.

Chegamos e preparamos o espaço: encher colchão de ar, cortar algumas frutas (tivemos a ideia de levar apenas frutas e água para alimentação), acender os incensos, estender os panos, preparar as doses proporcionais às condições de cada um, estabelecida anteriormente. Assim eu e Gil tomamos 3g, o restante do grupo tomou 2g. antes, porém, fizemos uma breve oração em círculo, agradecendo o momento tão especial e principalmente pedindo sabedoria e humildade nessa interação divina com a natureza. Não concluiu quinze minutos e algo havia se transformado. Sentia-me levemente bêbada, com vontade de dançar e derreter em risos. Eu, Juan e meu pai ficamos no rio, tudo era graça e entrega. Quando começou os calafrios internos, resolvemos ir nos juntar às meninas, sentadas no colchão, também começando a incorporar o espírito da coisa. Agora estávamos reunidos e o riso era solto, descontrolado e intrigante. Juan tentava tocar violão, meu pai tentava bolar um cigarro de rolo, eu, por algum motivo que não lembro, quis abrir meu celular. Tudo tentava inútil, já não comandávamos nossas mãos, éramos conduzidos a apenas desfrutar da felicidade plena e harmonia com o todo. Tanto que pedi ao meu pai para trocar a música que rolava no carro, logo pertinho de nós. Paul McCartney é sempre maravilhoso, mas de repente imaginei Pink Floyd e tive súbita vontade de curtir. Ele foi lá e não conseguiu tirar o cd. Nenhum comando do som obedecia a ele. O som tinha vontade própria e Paul foi o escolhido para continuar tocando, misteriosamente.

O colchão (já cheio por nós) inchava sozinho e sentíamos e víamos, ele surpreendentemente inchar sem qualquer auxílio de bomba, sopro ou nada. Sentia-me velhinha e podia perceber absolutamente tudo que os outros sentiam. Meu pai se emocionava com um azul na grama que ele não sabia explicar, e só ele via. Ele secava como eu e as minhas mãos idosas, feito uma folha se curvando espontaneamente ao cair morta. Gil parecia ter olhos maiores e de vidro, estava com uma expressão desconhecidamente compenetrada, preparando-se para uma possessão leve, dançante, mágica. Ela conseguia ver as rugas no meu rosto, minha clara expressão de velha. Juan estava enérgico, gigante, branquíssimo, ria e falava muito, dizia coisas engraçadas. Tainah descontraída, ciente e atenta a tudo que ocorria.

Estávamos em sintonia, uma cumplicidade enovelada no deslumbre de cada um. Os dois iniciantes pareciam mais susceptíveis a buscar, explorar aquele mundo transparente, lindamente inimaginável ou de longe, traduzido em palavras. Tudo era euforia explodida em risos coletivos, o estado de graça em que podíamos jurar não haver como melhorar, mais estávamos enganados. Descemos para o rio na alegria conjunta do amor verdadeiro. Tudo estava extraordinariamente mais lindo. Era mesmo o paraíso. Uma realidade tão nítida, tão pura, que tive a certeza que no mundo espiritual não cabe a ilusão do mundo físico, que conhecemos bem.

Juan havia desligado o som, antes de descer junto aos outros para o rio. Quando ele se afastou um pouco, o som ligou sozinho e tornou a tocar o cd que nunca findava, Paul McCartney. O espírito do cogumelo é quem fazia as honras e as horas, embora estas não se fizessem incomodar, de forma alguma, aliás. Eles seguiram ao rio e algo me deteve, porque ali eu não guiava absolutamente nada, apenas deslumbrava com privilégio de vivenciar o inefável. Então, olhando para a grama, eis que surge em minha frente frágil e certamente se comunicando, uma borboletinha laranja, pequena e parecia machucada. Ela rodopiou algumas vezes até pousar em minha mão. Fechei a mão com medo de perdê-la e corri até o rio para mostrar aos outros o presente que havia conquistado sem esforço. Era como se tivéssemos atravessado uma fase. A alegria eufórica deu lugar a uma felicidade plena, harmoniosa, perfeita. Não precisávamos conhecer o universo, porque ele já pulsava em nós. Não temia, não odiava, não havia problemas. Sinceramente me sentia Alice no país das maravilhas, podia ver cada detalhe, sentir cada partícula e me comunicar com tudo e qualquer ser. A água acomodava minha pele ao livre espiar dos pássaros, longe. Os coqueiros tão importantes criaturas, tão inteligentes, tão envolvidos com o vento. A borboleta destacava sua listra laranja na asa preta. Passeando entre meus dedos podia ver seu rostinho e também sua comunicação. Ela falava algo, sibilava, mas não haviam palavras formadas, era mais um dialeto tão simples que não somos capazes de compreender. Parecia pedir ajuda, tentei alisá-la e essa parte que toquei se dissolveu. A minha doce preocupação era vê-la bem, e ela parece ter entendido quando voou independente para uma pedra e começou a abrir e fechar as asas numa dança fluida, sincronizada e acolhedora. Também podia ser uma despedida, já que depois de um tempão dançando ela voou e não a vimos mais.

Íntima, a mata me chamava. A respiração era branda, o riso constante. A realidade era mais nítida do que nunca. Um portal infinitamente celestial, a água macia cobria até a barriga o nosso corpo sentado, era transparente e pude ver o peixinho encostando-se a minha perna. Sua boquinha parecia beijar-me várias vezes no mesmo ponto. Tudo era amor e infância dentro de mim. O rio transportava a vida e esta se deixava levar ... Tudo aquilo e eu éramos a mesma coisa.

Gil começou a movimentar o braço em volta da cabeça sem comandar o gesto. A dança vinha de dentro dela, totalmente possessa do espírito de flor. Eu apenas a entendia, quando me olhava com olhos de vidro e nada dizia, assim choramos por entendermos sem a necessidade de falar, porque não existe essa necessidade nem qualquer outra. Despoluídas do menor grau de veneno, nós vivíamos algo incomensuravelmente grande ao mesmo tempo simples, conjunto, fatalmente real. Gil já não falava, não era humana, e sim uma flor. Sentia um amor tão grande, que uma responsabilidade amável me fez interagir com ela de alguma forma. Encostei-me ao seu corpo e nos deixamos movimentar (sem sair do lugar, só mover-se) apenas pela correnteza. Ela estava livre, a sensação gigantesca de ser leve, solta, branda, meiga, indiferente à existência de qualquer sentimento ruim. Ela habitava um mundo paralelo que apenas eu e ela podíamos ver. E apenas ela poder ser aquele lugar, eu fui convidada a participar. Mergulhava no rio uma blusa que segurava e derramava a água em cima da cabeça de Gil. Era minha forma de expor o amor que sentia. A gratidão sem limite e o momento de tanta cumplicidade que só nós (tomamos a maior dosagem) parecíamos penetrar. Em paz mantivemos em companhia e ausência. Nada havia de ruim, maldoso, tedioso ou incapaz. Tudo era vento (nós também) amigo, calmo, feliz, leve, poético. Chegaram outras pessoas e dessa vez nada interferiu, ao contrário, pareciam incorporar naturalmente a interação. Eram três pessoas lindas; Olavo, seu filho Fabinho e a namorada Siara. Posso escrever mil páginas tentando verbalizar inutilmente. Uma experiência dessas não tem denominação. Tão íntimo que vai até a mais profunda capacidade de amar e silenciar, não apenas ver além da pele, além do muro, além da alma, mas ser a alma. Livre. Tão coletivo que é possível ver claramente a pulsação do universo inteiro como uma mãe maior, e tudo que habita(mos) a compõe como partes menores e não menos importantes. Na verdade não existe o importante, porque não há infortúnios. A morte inexiste, o ciclo é simples e generoso. Não existe falha, nem dor. E mesmo que houvesse dor, seria tranquilo, porque seria natural. No fim da tarde também na lembrança nos dias seguintes, uma sensação de paz enchia nossos corações de amor. O amor é mais que lindo, é completo, é natureza.

Mil textos não verbalizam o que não há denominação. A mais profunda capacidade de amar é silenciar ver além da pele, do caso e da alma mais que isso, ser a alma. Livre. Leve e intensa. A pulsação do universo é íntimo e coletivo uma mãe maior em que habita(mos) até na morte. Aliás, a morte inexiste no sentido de fim o ciclo é constantemente simples e generoso a folha que seca não desfolha a árvore o pássaro que cai não desanuvia o céu a estrela morta não deixa de brilhar e nenhuma das coisas mortas deixam de acontecer as partes menores não são menos importantes na verdade não existe o importante, nem verdade porque não há infortúnios, nem mentiras. Não existe falha, nem dor, e mesmo se houvesse dor seria tranquilo, porque seria natural. O amor é naturalmente, uma recordação.

III- (emocionante!)

“Pratique o silêncio e você adquirirá um conhecimento silencioso. Neste conhecimento silencioso está um sistema computacional que é muito mais minucioso, muito mais preciso, e muito mais poderoso do que qualquer coisa que esteja contida nas fronteiras do pensamento

racional.” Deepak Chopra

Havíamos comprado 15g. do fundo na última sessão, relatada anteriormente. Sobraram 3g. e diferente das outras vezes, fomos apenas eu e meu pai David, poucos dias depois do último chá, para uma praia semi- deserta a qual chamamos prainha, em Cotovelo/RN. Dormi na casa dele e não houve tempo para preparação em evitar alimentos pesados ou algo assim, já que aconteceu de forma súbita a ideia de dividirmos. Acordamos cedo, passamos as gramas no liquidificador com água. Deu um copo cheio para cada um. Tomamos ainda na casa dele, e em seguida partimos até o local escolhido. Chegando ao alto da falésia podíamos ver a praia inteira. Respirar aquele infinito azul com o horizonte rente nos encheu de magia, respeito e amor. Ali seria o início do encontro e fizemos uma oração em agradecimento profundo e mais uma vez, concentrando energias para que tudo ocorresse calmo como o visual do lugar. Descemos por uma pequena trilha até a praia, e o caminho foi levemente adoçado por bichos e plantas e vento e brisa e harmonia, andamos de mãos dadas e absolutamente tudo nos fazia rir. Não saberia explicar a etapa das sensações como nas experiências anteriores, porque dessa vez, elas estiveram fundidas nas horas seguintes. Levamos apenas água e uvas roxas. Estendi uma canga na areia, incenso, um livro de reunião de poesias de Cecília Meireles e entre nós, o mar e as falésias imensas com uma vegetação ainda maior. Meu pai recitava os poemas do livro, e eu sentia absolutamente tudo que provavelmente sentia a poetisa ao escrever versos tão perfeitos. Até parecia que ela estava conosco, no mesmo visual e sentimento. Dois tipos de criação se consolidavam em nós: a ilha paradisíaca e a poesia delicada de Cecília.

O amor entre mim e meu pai era mútuo e interminável. Intenso e verdadeiro. Caminhava pela areia com a nítida sensação de gigantismo. Passamos horas no mar tranquilo, cantávamos e em cada música escolhíamos a quem iríamos dedicá-la. Meu pai constantemente agradecia a Deus pelo momento, hora em alta voz, hora inaudível. Eu agradecia em silêncio. Tudo era perfeição e harmonia.

Tivemos muito acessos de risos incontroláveis e gostosos. A realidade era pura, presentemente nítida. Conversávamos sobre qualquer coisa, ele me falava das cores dos sentimentos, que absolutamente tudo era bastante perfumado, acabava de perceber isso. A paixão, por exemplo, tinha cor de vermelho sangue. O nome trouxe um trecho de música, e a simples menção a palavra “sangue” deixava o mar agitado. Percebido isso, pedíamos águas tranquilas. Logo reinava o balançar despreocupado onde emergíamos os corpos ainda mais relaxados.

Um sargaço apareceu e ele esfregava-o contra o nariz com um prazer brando das delícias salgadas. O cheiro era realmente incrível. Deixei-me despejada a deriva daquela

imensidão que embora assustasse, não considerava medo. De repente um barulho estarrecedor parecido com um motor potente surgia e tomava o silêncio por completo. Meu pai me chamou nessa hora e eu levantei o corpo que boiava para sugerir que fosse um avião. Mas onde? Não era barulho de avião. Não havia nenhum vestígio de máquina pelo céu ao horizonte. O ‘motor’ ia aumentando e durou uns minutos embora tenha deixado um ar de eternidade na lembrança. Posso quase senti-lo ao lembrá-lo. Parecia um trovão e ecoava do universo. Não vinha de lá ou de cá, mas simplesmente surgia e se expandia na atmosfera. Era a voz de Deus.

Aquilo me causou um privilégio fenomenal. Apenas agradecia tão emocionada quanto encantada. E apesar da leve euforia que nos era aquele enunciado divino, nitidamente novo em audição, a tranquilidade só aumentava em nós.

E assim, naturalmente seguíamos os fluxos. Caminhando pela areia branca e fina da praia, sob o sol da manhã que não nos atingia, ao contrário, aconchegava, fomos em busca de “um tratamento de pele caríssimo que tínhamos ali, de graça”, encontramos argila branca e logo passamos um no outro, com o toque transbordando de carinho. Meu pai me olhava com tanto amor que uma lágrima de satisfação lhe escorria fácil. Ele falava da minha beleza com brilho e esplendor, ao mesmo tempo ria, falando com Deus que não merecia tamanha felicidade e privilégio. Eu sentia o mesmo amor pelo meu pai. Passei argila em suas costas com tanto cuidado e carinho que as mãos deslizavam sobre sua pele vermelha. Um gesto recíproco de amor.

Depois tiramos a argila do outro com a água rasa do mar. Ficamos com a pele mais macia e ali, partilhando daquele momento sublime, senti algo passar pela minha perna e de repente me assustei. Rapidamente percebi pela textura que só podia ser uma estrelinha do mar. Na mesma hora em que pensei e tentei procura-la tateando pelo mar, meu pai disse “olha quem está aqui”! A bolacha do mar havia chamado a minha atenção, na qual descuidadamente recuei, e agora se oferecia às mãos apaixonadas de meu pai. Ele beijava, cheirava, sussurrava elogios, e ela parecia responder. Todo seu movimento era, de fato, uma comunicação. Foi uma interação linda e uma amizade sincera. Voltamos onde estavam as coisas para tomar um pouco de água. Os passos eram tão leves, íamos abraçados e conversando qualquer coisa boa. Só nos cabiam coisas boas. Eu vestia a blusa dele e ambos nos sentíamos bem com isso.

De volta à água, olhamos em direção às falésias e uma casa já nos chamava a atenção há algum tempo. Do mar (também da areia, pois a casa ficava em cima e no meio da falésia), dava para ver apenas uma pequena parte dela: Um trecho do terraço frontal até o telhado na parte esquerda, ficando visível talvez uns quinze por cento da casa. Parecia um lugar encantado. Quem moraria ali, no alto de uma falésia, longe de tudo, com o visual rodeado de infinitos? Por várias vezes a casa nos chamava a atenção. Houve uma hora em que meu pai meio assustado mostrou, olha ali! Estava eu brincando de mergulhar feito uma criança livre e feliz, quando fiquei de pé para ver o que ele me mostrava. Incrível! A casa aparecia inteira, como se todo o mato e plantas imensas que estavam em sua frente, não existissem mais. Como é possível? Perguntava eu atordoada ao meu pai. Ele dava de ombros e dizia, pois é. Em seguida ria brandamente e tornava a agradecer. Era de fato, surreal. A mesma casa que desde cedo nos chamava a atenção, a mesma casa coberta onde só era possível ver uma parte do terraço e do teto, se mostrava totalmente inteira em detalhes para nós. Nunca saberemos explicar o que houve ali, mas foi muito real.

No minuto posterior a mata “surgiu” de volta e escondia a casa como no princípio. Foi um dos acontecimentos inexplicáveis que nos aconteceram.

O outro foi um “saco” branco que vi no céu. Lembrei-me do filme - Beleza Americana, a cena do saco plástico voando com as folhas; mas ali a coisa branca voava

muito alto e em velocidade constante. Meu pai ficou impressionado. Não pode ser um saco! Dizia ele, está alto demais! Além das nuvens. Mas podíamos ver e de fato, pela distância a velocidade era incrível. Voou por segundos até um ponto no meio do céu e sumiu. Simplesmente desapareceu. Ambos vimos e continuamos sem resposta lógica. Estávamos encantados com a realidade paralela que surgia.

Às vezes íamos até onde estava estendida a canga tomar água ou comer uvas. Meu pai desenhava com o dedo na areia, ou recitava os versos de Cecília. Atenta a poesia da vida, sentia o rosto poroso como a textura do chapéu de um cogumelo. Passava os dedos na bochecha e a impressão de tocar minha pele emborrachada era ainda mais forte e concreta. Sabia que estava encorpada daquilo, o que era estranho e só me fazia bem.

Olhei para o céu despretensiosa, e um rastro fino de nuvem se alongava numa reta perfeita a algum ponto, que terminava sem contexto, no fim do que não havia: Era um risco de nuvem no meio da imensidão do céu, com começo e fim apenas, perdido no azul de um dia claro com o sol do meio dia no outro lado.

O fim da manhã começava a nos puxar do paraíso. O sol começava a incomodar na pele, a fome ameaçava surgir e o cansaço do dia também nos faziam lembrar do tempo. Fomos a uns poços no fim da praia jogar os últimos punhados de água salgada no corpo para aliviar o calor. Comemos as últimas uvas um pouco sujas de areia, e tomamos os últimos goles da garrafa plástica de água. Embora a outra realidade começasse a renascer, nos sentíamos felizes pela manhã e toda a magia cedida a nós. Muita gratidão e amor ao criador, muita paz evidenciado no horizonte, no balanço do mar, nos pássaros harmoniosos do céu. Repetíamos conclusivos o quanto éramos privilegiados! E rimos e nos abraçamos por isso.

Em nenhum momento pudemos nos esquecer do “motor celestial” que havia surpreendido enquanto estávamos no mar. De vez em quando tocávamos no assunto, maravilhados. E então pedíamos com humilde sincera para ouvir novamente. Até que no final da manhã, quando silenciosos curtíamos as pocinhas d´água, o “trovão” surgiu da mesma forma anterior, com o céu completamente limpo, inclusive de nuvens, aumentando gradativamente o volume e a potência surreal. Eu olhava rapidamente de um lado ao outro do céu, desesperadamente curiosa tanto quanto emocionada, procurando de onde vinha aquilo. Foi realmente a coisa mais fantástica que nos aconteceu. Quando entendi que o som não vinha de lugar algum, ele ecoava pela praia inteira, de cima para baixo, ocupando toda esfera de ar, volume, tempo e visão. Olhamos para o outro, com aquele barulhão assustador e paterno, lágrimas e risos suspirados nos abrandavam ainda mais a alma e a sensação de contato divino. Era Deus, não sei explicar, mas tenho certeza que ouvimos ali, Sua voz.

Depois do emocionante acontecimento, voltamos para arrumar a bolsa, colocar uma roupa e seguir em busca de almoço. Logo no início da caminhada de volta, uma abelha chamou minha atenção no meio da imensidão branca de terra. Ela rolava de um lado para o outro sem se manter firme. Parecia pedir ajuda. Coloquei-a na mão e tentei ajudá-la a manter o equilíbrio. Ela pronunciava algo. Podia ver claramente sua boca abrindo e fechando no mesmo ritual da voz pronunciada, porém ininteligível. Minha tentativa era inútil. Meu pai delicadamente colocou-a em sua mão e tentou ajudar de alguma forma, mas a abelha agonizava com naturalidade a morte. Deixamos ela cumprir seu papel de natureza, e seguimos de volta. Encontramos uma pequena casa de palha, onde os pescadores guardavam seus apetrechos, tratavam o pescado e se reuniam para bebericar e conversar. Lá foi possível um banho de cuia, água doce e gostosa, aliviando o ardor da exposição intensa ao sol da manhã inteira.

De volta pela mesma trilha apareceu-nos um cavalo do diabo. Grande, preto, cheio de pompa, sobrevoava imponente e até charmoso. Do alto da falésia, no considerado ponto de partida, paramos para agradecer, fazer breve ressalva da beleza contemplada aos olhos, puramente, e as revelações fantásticas que continuam sem denominação, de tão perfeitas e inalcançáveis a dialetos humanos.

O mar estava com uma cor verde e uniforme por completo. Não havia nuvem alguma no céu e o sol esturricava em sua hora mais dramática. Do nada, uma faixa extensa escureceu no mar e movimentando-se rapidamente, como se um cardume realmente faraônico, viajasse sob a água. E ficamos nessa explicação. A beleza de tudo era extraordinária.

Abertos aos instantes seguintes, agora sem o efeito do cogumelo, embora serenos e felizes, encontramos um restaurante central de Cotovelo, descemos na praia onde tinham mesas e ali haviam garçons servindo, sentamo-nos numa sombra de árvore imensa e fizemos nossos pedimos.

A tarde inteira lembramos os detalhes intermináveis daquele dia, não mencionados, simplesmente porque cabiam ao momento e não tem explicação. Conversamos sobre seu passado, como ele havia conhecido minha mãe e as circunstâncias em que viveu na época. Rimos das pessoas que pareciam caricaturas, compramos cocadas de abacaxi e coco. Estava tudo muito delicioso e parecia completar a satisfação do atípico dia.

Meu pai ainda foi tomar um banho no mar e no rasinho deitou-se bolando de um lado ao outro de tanto rir. Eu ria da mesa, embora não soubesse de que exatamente. O fato é que só tínhamos motivos para rir e alto. As pessoas nos olhavam meio interrogativas, meio sérias, outras riam também sem entender. A tarde passou, encontramos alguns conhecidos, conhecemos outros. Pagamos a conta e voltamos para a falésia onde iniciamos a experiência e onde também a concluímos.

O céu parecia um arco íris largo e nítido. Estava muito diferente, muito colorido e forte. O sol tomava uma coloração cada vez mais vermelha, até escurecer aos pingos de brilhinhos que surgiam da escuridão acima do horizonte.

Entre o horizonte e nós, o mar e a falésia. Entre nós e o todo, um imenso respeito, gratidão, e luz, apesar da noite. Estávamos cansados, mas aquela força toda era um presente turbinado de emoção. Vida pulsando em nós. Nós pulsando o amor.

Quem melhor conserva as cores dos sentimentos senão os próprios sentimentos? Quero incorporá-los aos seres marinhos o sussurrar dos ventos e sua urgência espatulada, carinhosamente, a dedo todos são seres puramente perfumados; mas é a flor que quero incorporar na dança sutil da borboleta; ela sibilou ao meu ouvido um segredo tão forte quanto inaudível quero incorporar a flor, mas sem tornar meus olhos de vidro, sem interferência humana ser apenas uma flor de qualquer lugar para que o beija-flor viesse, vez por outra, cumprimentar o dia e torná-lo tão belo feito os feixes de raios amarelos que o sol decora a grama e as camadas de terra. Quero incorporar a terra porque ela há de me incorporar; e renovar meus termos quando estiver longe do meu caderno cairão meus versos por terra e não poderei mais salvar as abelhas.

O dia de hoje foi extraordinariamente diferente, coisa rara tanto que me convenço a não relatar, detalhadamente, neste diário hoje vivi por trinta e três anos e o que tenho a dizer daria um livro na mesma intensidade é inefável Porque quanto mais compreendemos mas devemos calar. Quem acreditaria em nós, senão nossa consciência da realidade? Quem acreditaria no objeto branco e veloz voando tão alto, e o trovão em pleno sol acolhido o calmo tom de Deus em nossa humilde companhia? É preciso calar para entender o silêncio mas que isso, é preciso ser o silêncio.

Não te lembras das coisas tão mágicas nos foram gratuitamente reveladas porque o valor é o que se é, (não o que se compra) em nenhuma delas possuía a voz humana tampouco tropeçavam na vaidade porque se bastavam deslizavam com serenidade sobre nossas almas atadas a imponência do mar nos permitia o deleite no embalo de águas tranquilas e se falássemos sangue, logo elas se agitavam e nós cantávamos dedicando a canção aos seres da terra expulsando para nunca os problemas da gente é preciso calar às lições da natureza e ao provável pulsar do universo.

IV- (primeiro cultivo e outros contatos)

“Na mesma medida em que uma mudança evolutiva da consciência constitui um

requisito vital para o futuro do mundo, o resultado deste processo depende da iniciativa de cada um de nós.” Stanislav Grof

Compramos, eu e minha irmã, um kit de cultivo e seguindo minuciosamente as instruções do manual, no qual ficou claro que as exigências desses seres são meticulosas, além, claro, da imprescindível dedicação, muito cuidado e amor. Esterilizar tudo que de alguma forma entrasse em contato com as mini estufas, pôr no forno por trinta minutos as bandejas, ver os dias de aguar (água filtrada), não expor diretamente ao sol, porém, escolher um lugar iluminado, temperatura adequadamente mediana e não mudá-los de lugar são apenas algumas precauções para que não contamine o solo e nem os estresse e assim, evitando que estraguem. Alojados no quarto da minha irmã, ocorreu mais ou menos como o prevenido: Conseguimos colher no primeiro ciclo 7 cogumelos de uma bandeja e 5 da outra. No segundo ciclo colhemos um número semelhante, que supostamente foram pouquíssimos. Retirado do solo, é preciso ressecá-los em uma meia e colocá-la atrás da geladeira (essa é a forma mais simples e caseira) para poder conservá-los melhor no congelador até o dia do consumo. Como são seres extremamente seletivos, qualquer detalhe ou desarmonia pode colocar tudo a perder. A alta temperatura da minha cidade, a inexperiência de ambas, a cobrança de algumas pessoas que esperavam ansiosas demais, a dificuldade de manter uma boa luminosidade solar no quarto, e as desavenças familiares, a qual eles presenciaram, e ainda, algum possível erro no processo de desidratação, talvez tenham sido alguns dos motivos do fracasso sensorial no consumo dos cogumelos das duas primeiras colheitas. Meu pai, eu, minha irmã Tainah, os já conhecidos Gil e Juan, e uma grande amiga e pessoa linda Kaki, a única que iniciaria a experiência naquele dia. Nós tomamos, como anteriormente, seguindo os mesmos procedimentos: Contato com a natureza, oração, alimentação preliminar saudável e principalmente, a humildade de quem reconhece as quão ínfimas partículas somos, em busca de alguma conexão e aprendizado. Ninguém, porém, sentiu nada. A leve frustração nos fez procurar os motivos deles, por não terem se apresentado a nós. Várias opiniões e no fim concluímos não adiantar em nada investigar, já que a personalidade deles está acima do entendimento humano, o que os torna ainda mais interessantes. De toda forma, depois do trabalho que eu e minha irmã tivemos somado à ausência de efeito, meio que desacreditamos um pouco no nosso potencial de efetuar um cultivo tão delicado, principalmente minha irmã que não os queria mais em seu quarto. Assim, eles se mudaram para o meu quarto, providenciei uma luminária de mesa, para que pudessem receber luz a noite e segui aguando, dia sim dia não, como mandava o manual. Não tardou para que o terceiro ciclo começasse a aparecer para a felicidade minha e esperança geral. Passei quatro dias fora e deixei-os aos cuidados de Tainah, que deveria recolher os cogumelos adultos e proceder com a desidratação. Ela, porém, por algum

motivo não o fez. Quando cheguei de viagem fui correndo checar e eles estavam bem mais que maduros; totalmente escuros. Foram em média 15 cogumelos das duas bandejas, uns menores, outros maiores, mas todos pretos. Colhi cuidadosamente, pus atrás da geladeira dentro de meias durante 24 horas, em seguida congelei. Após consultar fontes seguras e conhecedoras dos fungos, fui orientada a não consumi-los, já que eles haviam esporado e provavelmente estavam contaminados ou mortos. Segui meus sentidos e permaneci com eles a espera de um dia propício e sem qualquer combinação para que a naturalidade dos fatos nos guiasse até o encontro com eles, que sentia eu, aconteceria. Então num sábado de Junho de 2013, fluía toda a chance de um encontro agradável no Bosque dos Namorados, um Parque Ecológico em Natal/RN. Cinthia, uma grande amiga de alma pura me chamou ao parque, fazia algum tempo que queríamos nos encontrar. Coincidentemente Tainah havia marcado no mesmo espaço com um casal amigo- Wilza e Question- já conheciam os cogus - para se encontrar e passar a tarde juntos. Foi então quando um estalo me fez agir. Pesquisei rapidamente na internet os riscos de consumir os cogumelos estragados, e não encontrando nenhum relato sobre casos letais preparei-os prontamente com suco de cajá. Caso não surtisse efeito, tanto pela experiência anterior, quanto pela contaminação, fiz ainda um brigadeiro de cannabis, na possibilidade de forjar a realidade entediante do mundo físico, este dominado pela individualização do ser e consequente perda de sentido natural de interação com a natureza. Convidei Juan e fomos todos juntos sem a ansiedade e preparos anteriores e felizes pelo encontro casualmente, tão raro, já que a rotina atarefada da maioria segrega e dificulta tais momentos. Chegamos ao Parque das Dunas pouco depois das duas da tarde. A exuberância natureza do lugar e a leveza das conversas acolhia em nós, desde já, uma posição de privilégio e aventura. Fomos a um espaço mais reservado, perto de uma trilha, onde costumamos ficar, estendemos as cangas ao chão, acendemos alguns incensos, distribui os copos que havia levado, enchi todos com o ‘suco cogumelado’ e após um brinde de alegria, humildade e homenagem, tomamos: Tudo era propício a esse encontro mágico. Quase imediatamente sentia-me diferente, meu corpo se preparava para receber aquele espírito. A estranheza inicial quase chega a ser um incômodo. Deitava no chão para concentrar e deixar livre o caminho da possessão. Ali já não era apenas eu. E mesmo um pouco tonta, estava agradecida pela apresentação. Tainah, Juan, Wilza e seu companheiro decidiram sabiamente, fazer a caminhada pela trilha do parque. Eu e Cinthia permanecemos sentadas na canga. A realidade se transforma de uma maneira tão sutil que nos é impossível entender como. Nada é alucinação, por ser fato, tato e sentido. Amor. Era a primeira vez de Cinthia, que antes bastante temerosa, experimentava agora a sensação mais sublime e completa de paz. Caminhamos de braços dados nos arredores e conversamos baixinho, de tanto amor que as palavras adquiriam. Observávamos a floresta, sentíamos suas infinitas energias e vidas. Ela via cogumelos gigantes entre as árvores. Eu dizia maternalmente, como quem compartilha uma verdade: “está vendo como não tem como descrever? O cogumelo é isso... é natureza, é amor, é Deus.” ela concordava calmamente, semblante leve de criança, olhar desarmado de anciã. Minha amiga estava plena, aconchegada no âmago por uma ancestralidade poderosa de energias. Andávamos lado a lado quando ela sentia-se em seu quintal, não apropriada no sentido físico de possuir algo, mas fazendo parte de tudo aquilo sem explicação,

compartilhada de vida dentre o universo inteiro de pulsação e interligação. Passamos a chamar a imensidão de árvores antigas de “nosso quintal” tão em casa nos sentíamos. Completamente a vontade. O céu estava meio nublado desde cedo, mas deu para perceber quando o sol se despedia deixando o lugar mais escuro e não menos belo. Fiz um cigarro natural e chamei Cinthia para recebermos o pessoal, que devia estar voltando, na entrada da trilha. O imensurável amor e gratidão que sentia só me impulsionavam a encontrar os outros e abraçá-los, exposta dos sentimentos mais purificados. Nesse momento Cinthia hesitou um pouco, já que todas as bolsas estavam ali, em cima da canga e entregue aos nossos cuidados. Insisti, coisas são só coisas, e nada podia nos atingir, estávamos protegidas, disso tinha convicção. Ela olhou um ponto qualquer, atrás de mim, sorriu e concordou em ir. No caminho ela contou que ali pertinho estavam dois lobos, guardando nossas coisas. Na entrada da trilha ela falava dos seres da floresta como se sentisse-os. Falava de bruxa e de como se sentia uma. Os lobos do bem, a bruxa do bem, os moradores da floresta, o sentido íntimo da vida. Logo avistamos Juan descendo a trilha, feliz, agradecido, entusiasmado e amoroso. Abraçamo-nos os três e ficamos em silêncio a escutar a orquestra incansável da mata, do vento, do tempo, dos seres todos. Em seguida vieram o casal e minha irmã Tainah. Compartilhamos o cigarro aos risos descontrolados, numa cumplicidade perfeita. Cinthia visivelmente a mais incorporada, falava brandamente e sem parar. Sentia tudo, era velha e sábia. Deslumbrada e ao mesmo tempo, íntima da coisa. Eles contaram da trilha; Que pareciam estar num filme. Tudo era graça e harmonia. Um caminho lindo onde encontraram vários tipos de cogumelos, Juan, inclusive, pôde ver um deles respirando. Em uma bifurcação encontraram uma planta ramificada de galhos. Um galho central balançava com força e sem parar, como se tentasse uma comunicação, os outros galhos contrastavam permanecendo imóveis. Quando um deles aproximava a mão, o movimento do galho ia diminuindo até parar. Bastava afastar-se e o galho voltava, insistentemente a balançar. A conversa nos rendia risos. Juan reclamava as vozes nossas, quando já tinha o som das folhas, dos bichos, dos passos a sentir e perceber. A magia nos envolvia em total respeito e amizade. Éramos uma família na dádiva suprema do encontro. Voltamos juntos ao “nosso jardim” e lá permanecemos até escurecer, alguém lembrou que às 18 horas fechava o parque, e de onde estávamos talvez não pudessem nos ver. Ótimo, ninguém queria sair mesmo dali. Eu e Cinthia demos mais uma volta pelo “nosso quintal” para nos despedirmos. Os demais conversavam alegres e abasbacados sobre os milagres que presenciaram na trilha, nós ao contrário, estávamos mais contemplativas, internamente serenas, reconhecendo a grandeza da experiência. O casal teve medo de que ficássemos trancados pela noite toda e resolvemos ajeitarmo-nos, embora o corpo pedisse para ficar. Seguimos ao portão de saída quinze minutos depois do horário de fechar. O policial da guarda nos olhou enviesado. Algumas pessoas caminhavam e nós ríamos do vento. Estávamos apenas na metade do efeito. Compramos água de coco em abundância. Estávamos saciados da sede, da doçura, com toda a graça. Cinthia tomou seu rumo. Nós fomos de carro em busca de algo para comer. Acredito que essa fome tenha sido psicológica, já que a presença do cogumelo de Deus é completo e estamos tão atrelados às necessidade mundanas que simplesmente deixamos de nos sentir, tal qual como somos. Escolhemos um supermercado pela variedade de opções e comodidade da localização. Ondas de paz vibravam dentro de mim, era como se estivesse dentro de uma bolha de luz e proteção. Durante o caminho fomos conversando sobre a magia do dia, explosões coletivas de risos e tudo seguia

abençoadamente perfeito. Chegando ao supermercado, encontrei dois amigos: Luciano, iluminado ser e Rodrigo, alma boa e olhos azuis. E foi olhando dentro de seus olhos, que vi claramente a bandeira do Brasil. Mostrei aos outros, encabulando sem querer o garoto. Era impressionante, todas as cores da bandeira, inclusive os pontinhos brancos. Eles foram embora e nós adentramos no estabelecimento em busca de comida. Eu ia com Tainah, o casal atrás de nós e Juan perdemos de vista. Simplesmente o local estava dominado por ETS. Pessoas esdrúxulas sobressaltavam suas feiuras. De todos os lugares surgiam figuras estranhíssimas, nos encurralando e impedindo que andássemos normalmente. Era divertido, porém irreal. Uma senhora meio anã com uma roupa hiper diferente, duas mulheres que pareciam casquinhas de sorvete andando. Quatro homens terrivelmente ‘monstrificados’. Aonde olhássemos, por onde andássemos, esbarrávamos com os esquisitos seres. Havia uma senhora estática muito branca, com olhos de sangue me olhando enraivecida, mostrei amedrontada à minha irmã. Foi a gota d´água! Tainah estarrecida gritava repetidamente “eu não to entendendo nada!”. Não teve jeito de entender, sob efeito do cogumelo estávamos sensíveis para ver além do corpo, víamos as áureas. O cogumelo nos expulsou daquele ambiente hostil. Saímos como que fugidos enquanto o segurança do local rodeava em vigília a nós, completamente estranhos a eles. Estávamos “acordados” enquanto os outros “dormiam”. É o estado de lucidez que nos permite o cogumelo. As portas da percepção abrem por infinitas vias. O contato com ambientes carregados pode acarretar numa “bad trip”, porque a alma e a verdade de cada coisa ou pessoa ficam visíveis e acessíveis demais a nós, quando possuídos por estes seres enigmáticos. Saímos do local meio contaminados pelo acontecido. Foi engraçado, mas não o suficiente para manter o mesmo amor e harmonia que sentíamos na mata. Procuramos outro lanche, mas a magia singular que envolvia os cinco tornou-se densa quando Question, que dirigia o carro, se irritou com a indecisão de próximo local. A chateação dele, claro, foi sentida por nós. Ficamos em silêncio. “Qualquer lugar” a pressa e tensão nos fez optar. Chegamos num carrinho de cachorro quente e eu não quis comer. Os demais comeram, eu não via sentido naquilo. Terminado o lanche, fomos na casa do amigo Olavo, que lá estava com Gil, sua namorada e minha amiga. Contamos felizes a experiência daquele dia e as ondas de paz ainda se faziam sentir em mim. Estava plena, agradecida e suave. Apesar dos ínfimos contratempos que passamos sei que tudo, absolutamente, faz parte do aprendizado.

V ( última colheita e uma surpresa) “Através dos passos alternados de perda e ganho, silêncio e atividade, nascimento e morte, eu

trilho o caminho da imortalidade.” Deepak Chopra

No texto anterior falei sobre o kit de cultivo que comprei e também a respeito das três primeiras colheitas. O quarto e último ciclo brotou, e repetindo o mesmo procedimento, colhi-os antes de ficarem pretos, pus numa meia atrás da geladeira durante um dia para desidratar, e finalmente congelei a esperar a hora de tomar. Não comentei com ninguém sobre isso.

Nessa sexta feira pela manhã meu pai me ligou chamando para fazermos uma procura de terreno onde tivesse boi zebu, como havia chovido dias anteriores, e no site os cubensis estavam fora de estoque e também amanheceu com sol, era possível que em pasto do boi, nas fezes deles, encontrássemos os cogumelos. Foi difícil encontrar informação, mas em São Gonçalo encontramos o tal pasto, e perguntamos aos trabalhadores do local, explicando-nos pesquisadores do fungo, fomos informados que outras pessoas procuravam o mesmo local para colher cogumelos.

Certos de que tínhamos grande chance de encontrá-los, entramos no mato em busca das fezes brotadas. Pisamos em ortiga, botamos os pés na lama e até encontramos cogumelos, porém sem o anel abaixo do chapéu, que caracteriza a substância sagrada. Enfim, voltamos para casa um pouco desiludidos e sem cogumelos.

À tarde marquei um encontro com a grande amiga Kaki para nos rever, conversar, matar a saudade. A ideia de levar a última safra de cogumelos me veio espontânea, telefonei para algumas pessoas; Gil, Cinthia e Juan, e convidei-os para o encontro sem falar nada a respeito do cogu (inclusive a Kaki). Queria que fossem apenas as pessoas que tinham de ir, além de que ainda corríamos o risco de não fazer efeitos, já que o cultivo feito por uma amadora não fora tão eficiente anteriormente.

Apenas Juan topou e fomos os três a uma praia turística de Natal-RN, Ponta Negra. Escolhemos um espaço menos movimentado e ainda assim havia um fluxo contínuo de pessoas. Eram pouco mais das três da tarde e fizemos um brinde com os copos cheios que eu havia levado: cogumelos com polpa de abacaxi.

Passados alguns minutos, talvez meia hora, comecei a sentir uma inquietação interna. Kaki teve fortes acessos de risos, e nós acompanhávamos, era engraçado. Eu sentia uma espécie de puxão no meu estômago, de forma que minha boca abria involuntariamente. Não chegava a ser ruim, era apenas estranho, como se fosse vomitar a qualquer instante. Ou ainda, mais provavelmente, uma possessão interna acontecendo.

Tive ligeiros acessos de gigantismo, muito riso compartilhado por Kaki e Juan, e a sensação de amor e paz, como se o universo abrisse os braços a nos acolher.

O céu estava fantástico, muitas cores e com uma vivacidade diferente. Anoiteceu e Juan foi correr pela praia, chamei Kaki para ficarmos perto do mar, meu amor por ela era ainda mais intenso. Olhei para o céu e uma estrela se movia rapidamente, considerada a altura em que se encontrava. A estrela ia e nós admiradas constatávamos que não tinha como ser um avião. Seu voo era rápido e constantemente diagonal, em um determinado ponto, antes do morro do careca, onde não havia nuvens que pudessem cobrir o ser brilhante, ele foi diminuindo a intensidade da cor e sumiu. Simplesmente sumiu. Aquilo aconteceu bem na nossa cara e não sabíamos explicar como.

Agora ondas de paz percorriam meu corpo. Maravilhosa sensação de leveza. Caminhamos pela areia e falávamos brandamente, com muito amor. O cogumelo se despedia de Juan e Kaki, em mim porém , permanecia ativo e presente. Fumamos um cigarro que não fez efeito. Porque a plenitude é tão real e completa, que nada mais se necessita.

Estávamos voltando para casa quando meu telefone tocou. Como um complemento da felicidade intensa, minha irmã do outro lado da linha, me noticiava a chegada de cogumelos na minha casa, via sedex. Fiquei extasiada com a surpresa. Meu amigo Rogério, o responsável pelo cultivo do site Natureza Divina, havia mandado para mim este presente. Foram dezoito gramas e minha alegria não tinha fim. Lembrei que de manhã não tínhamos ido, eu e meu pai, procurar a toa. O universo providenciou dessa forma linda o melhor presente que recebi e eternamente serei grata a ele.

Kaki ficou na sua parada de ônibus e eu e Juan seguimos para a nossa. Eu estava realmente plena, verdadeiramente em transe. Um estado espiritual quase impossível de descrever, infinitamente bom. Conseguia sentir Juan e ele parecia estar um pouco irritado comigo. Talvez pelo meu estado meio letárgico eu não dava muita atenção ao que dizia, eu parecia longe para ele, mas na verdade eu estava tão dentro do instante, mas tão dentro, que a mesma realidade me era mais nítida que tudo.

Não me chateei com a sua visível irritação. Sentia amor e nada abalaria aquela fortaleza. Fomos para casa silenciosos. De vez em quando eu ria lembrando-me de Rogério e do presente que me esperava em casa.

Assim que cheguei, tomei um banho e liguei para meu pai. Ele estava muito a fim de tomar novamente e pensei que meu presente havia de ser compartilhado com outras pessoas, de forma a proporcionar a mesma alegria que Rogério havia me proporcionado. Falei a ele que nossa saída pela manhã em busca do sagradinho não havia sido em vão, porque eu daria a ele cinco gramas de presente. Ele logo se empolgou e quis marcar para o dia seguinte de tomar nós dois. Recusei a oferta, ainda estava degustando os ensinamentos da experiência atual.

Sugeri que Juan fosse com ele, já que amigos se complementam. No dia seguinte eles foram para a prainha de Cotovelo-RN e tiveram a aparição de inúmeros iguanas, de variadas cores e uma linda história para contar.

Eu guardei as outras gramas já com algumas pessoas em vista para fazer o convite. Entre elas, uns que nunca tomaram e outras já experienciadas. Meu pai e Juan foram os primeiros contemplados com o presente. Posteriormente convidaria Berna, um grande amigo de aura iluminada, minha tia Suzy, uma pessoa especialíssima de coração purificado, e Juliano, outra grande figura na minha vida. Separei ainda algumas gramas para Cinthia, Gil, Tainah e Kaki, todas conhecidas do cogu. Falarei no próximo relato, a experiência mais intensa com Berna. Até aqui, fica o ensinamento principal do fungo: absolutamente tudo existe e está conectado, tudo é amor.

VI- (Intensamente lindo!) Para ver o mundo em um grão de areia e céu em uma flor selvagem: Segure o infinito na palma

de sua mão e a eternidade em uma hora William Blake

Berna era uma das pessoas especialíssimas que eu havia planejado presentear com a experiência do cogumelo mágico. Em oportunidades anteriores, por motivos diversos, não aconteceu de ele poder participar. Neste quinta feira de manhã estava preparando o banho do meu cachorro, quando recebi a visita, sempre bem vinda, do meu amigo Berna. Conversamos e falei a ele sobre o presente que havia ganhado (18g. de cogumelo cubensis), e também da minha intenção de que ele tomasse, já estava destinado. Ele me confidenciou estar um pouco conflituoso em relação a dúvidas, pensamentos, problemas, enfim, as coisas da vida que todos passamos. Falei a ele que não tinha pressa, no dia que acontecesse, era porque tinha que ser, e ainda que o cogumelo podia dar respostas a ele. Então, com toda tranquilidade do mundo ele propôs tomarmos naquele dia. Respondi que sim, não havia problema algum. Desmarquei o compromisso de levar a sobrinha ao circo, convidei-o para almoçar e preparei a bolsa com roupas para frio, incenso, frutas, água e claro, o cogumelo. Almoçamos soja e dispensamos o frango e a carne que havia. Ele mora a poucos minutos da minha casa e tinha que passar lá para uma breve arrumação, já que seus tios chegavam de viagem no dia seguinte e a casa estava uma zona. Já na proposta coletiva de harmonização, me propus a ir com ele para ajudar, assim ganhamos a companhia um do outro e também tempo. Eram quase três da tarde quando saímos da sua casa, de moto, rumo à prainha de Cotovelo-RN. Levei três gramas com suco de abacaxi, de forma que deu dois copos para cada um. Chegando ao topo da falésia onde o visual já proporciona um presente incrível, enchemos os copos e brindamos “que o cogumelo lhe traga respostas” falei. Berna estendeu o brinde dizendo “a nós”. Dali descemos por uma trilha até a praia. Semi-deserta, apenas um senhor desfrutando do mar, alguns barcos em pesca e nós, sentados na frente de um barquinho em descanso na areia, onde vimos o cadáver de um peixinho dentuço, o qual me identifiquei bastante, haviam também alguns siris meio arredios. Ficamos conversando, rindo com os dentões do peixinho morto, e admirando o céu, que estava lindamente vermelho. Enterrei o peixe e em poucos instantes sentia-me estranha, o corpo tremendo fortemente por dentro, como se o fluxo de energia interno estivesse em total alvoroço. Neste momento chegavam do mar dois pescadores e o barquinho que eles iriam guardar na areia. Berna foi ajudar. Eu não tive condições de ir porque mil coisas já estavam acontecendo comigo. Deitada na areia, olhando para o céu, tentando concentrar e ficar numa boa com aquelas inexplicáveis sensações. Vi entre o céu e terra uma espécie de fractais de cristal, alinhando todo o espaço como se fosse uma energia, não sei explicar em detalhes porque foge a qualquer vocábulo conhecido, era como uma tela delicadíssima e perfeitamente desenhada. Ao lado, a poucos passos, Berna conversava com os pescadores enquanto minha cabeça tentava assimilar tanta informação nova e organizar a confusão de imagens, também novas. Tomei fôlego, me levantei e fui caminhar pela beira da falésia, onde existe uma vasta e íngreme vegetação. Encostei a mão na falésia e

ela ficou da mesma cor da falésia, como um camaleão. A natureza inteira se desnuda a você, causando deslumbramento, mas também um forte estranhamente, já que ali fica claro a soberania suprema que nunca antes havia sido revelada de forma tão verdadeira e intensa. Então, tentarei focar no relato as coisas menos subjetivas, pelo fato não só de terem sido infinitamente reveladoras, mas exatamente por serem fora do encaixe de qualquer adjetivo ou classificação literária. Qualquer palavra, classificação ou descrição restringem. Voltei meio embriagada ainda pela pulsação interna onde estavam nossas coisas e Berna não demorou. Sentou-se ao meu lado e falei que várias coisas já me aconteciam, rimos bastante, porque com ele também não era diferente. Estávamos numa realidade diferente de todos, porém, realíssima. O vermelho do céu era fantástico. Abriam-se entre a nuvem imensa e vermelha buracos roxos, verdes, amarelos, azuis, rosas. Nunca tinha visto nada parecido. Tive breves sensações de estar gigante, fiquei completamente cor de rosa num momento, ele me viu também dessa forma, eu o via todo em composição do corpo por dentro, com toda a pureza de sua alma. Os cachos dos cabelos dele eram perfeitos, mais que perfeitos. Ele jogava capoeira na areia e cada movimento era lindo e espontâneo. Ele foi caminhar pela praia, agora totalmente deserta, eu fui atrás. Em alguma rachadura entre a vegetação da falésia, ele foi subindo até esbarrar numa teia de aranha, a qual destruiu, logo pediu desculpas. Subi em seguida e vi Berna abraçado numa rocha claramente emocionado, dizendo “ Há quanto tempo! Que saudades!” e me apresentou a rocha como sua amiga. Foi um reencontro fantástico e resolvi subir até onde tinha caminho. Ele desceu para a praia e lá do alto da falésia eu ouvia seu pensamento, com sua voz mesmo, chamando pelo filho Pietro. Aquelas subjetividades todas (vamos chamar assim) sem denominação, dançavam pelos meus pensamentos. Senti necessidade de descer e o que vi foi inesquecível! O marzão verde uniforme, o silêncio das quebras das ondas do mar, o céu lindamente vermelho, o sol aberto entre nuvens mais escuras, se pondo e penetrando seus raios brilhantes de ouro em nós. Ficamos em silêncio, lado a lado, sentindo a pele, a presença, o pulsar do outro na beira do mar, tudo era paraíso, uma beleza estonteantemente expansiva. O momento do por do sol foi indubitavelmente, o mais inesquecível. A comunhão era plena, o amor verdadeiro, o presente real. Magnífico! Berna olhava para tudo e perguntava extasiado “que dia é esse? que céu é esse? Que dia é hoje?” Eu não sabia, apenas um presente a nós, e apenas nós estávamos vendo. Um imenso privilégio, no mínimo. Então ele mesmo chegava a uma conclusão “ O céu está em festa, é isso!”. E sentia vontade de chegar na cidade, abraçar as pessoas e levá-las àquele plano em que estávamos. Calmamente falei a ele que era exatamente o que eu estava fazendo, e também nem todos estão preparadas para essas respostas. Aquilo tudo era para nós. Porque nós estávamos lá e vimos. Estávamos boquiabertos com tanto esplendor. A gente fica querendo entender como não via essa realidade antes. Porque é a mais nítida verdade da vida, com toda sua simplicidade e enigma. Ele gritava, pedia para as pessoas olharem o céu, estava transtornado de tanta alegria. “O céu está em festa!” repetia empolgadíssimo tanto quanto convicto. Era verdade. Tudo limpo de tanta verdade. Transparente de leveza. Fui tomar um banho no mar, maré cheia, água aconchegante e envolvente, as nuvens dançavam para mim, eu boiando emocionada com o espetáculo. Cores, movimentos, amplitude. De repente me deparei com um mini arco-íris rosa, uma nuvenzinha puxava e segurava cada lado dele. Gritei para Berna que estava na areia, ele já estava admirando.

De todos os lados havia beleza e o nosso deslumbramento quieto; O mar me embalava e ia aos poucos, indicando a hora de sair. Convidei meu amigo para entrar, ele não quis. Fiquei mais um pouco pensando se aquilo tudo era mesmo real. Questionava se não estava sonhando ou tinha morrido e estava no paraíso. Como uma resposta, senti um beliscar no meu pé. Imaginei ser um siri e sai imediatamente da água. Sangrava um pouco, ardia levemente, a noite foi chegando discretamente, o frio bateu. Hora ficávamos em silêncio, cada um dialogando com seus pensamentos acerca de tudo em que estávamos envolvidos, hora conversávamos. Berna entendia que no fundo todas as pessoas estão buscando exatamente o que tínhamos ali, presentemente acontecido; “todos, sem exceção, que estudam, trabalham, todos estão querendo isso aqui, mas como vocês estão longe! Por esse caminho, estão realmente longe”. Eu entedia a eternidade. Ele via pessoas nas nuvens, seres de nuvens, enquanto o céu dançava para mim. Berna encontrava no cogumelo a chave de entrada para a flor de lótus, onde residem as mil personalidades do homem, eu também sentia e colecionava instantes. Mil pessoas, um milhão de vidas que nos esquecemos de conhecer. Estavam por toda a parte porque todas existem e são feitas de amor. A noite agora era absoluta. Agasalhamo-nos com roupas de frio, estendemos uma canga na areia, tomamos água, deitamos. Eu amava profundamente. A empatia com o peixe, o reencontro com rocha, a dança das areias e das luzes, o arco-íris rosa trazido pelas nuvens, a maravilhosa recepção do sol, o som contínuo do mar, os pássaros escondidos cantando, o vento bailando com a vegetação. Todas as pessoas amadas, lembrada por nós, silenciosamente. A paz abrandava a euforia dos nossos espíritos maravilhados. Meu pé ardia e latejava um pouco para me lembrar de que o paraíso existe, mas tem suas adversidades. Berna tocou no corte e o alívio foi imediato. Depois voltou a doer, mas não incomodava. O que estava ali em mim era tão pleno que nada diminuía a perfeição. Estrelas começaram a surgir como explosões de purpurinas. Elas abriam espaço na nuvem negra e se mostravam a nós. Umas dançavam, outras pulavam, outras apenas se moviam. Uma movimentação intensa no mundo estrelar. Um show pirotécnico natural direcionado a nós, e a todos que buscávamos em pensamento. Ainda ficamos deitados pela noite, Berna parecia roncar mas não dormia, enrolei-o com um lençol e fui caminhar pela praia escura e deserta. Chorava agradecida à vida, por estar no mais completo estado de entendimento com o mundo. Esta mesma conexão distanciada pelo controle e ganância humanos, pelos anos de contínuo isolamento tecnológico, pela superioridade que o homem julga ingenuamente ter, de forma a ignorar tudo ao ser redor, quando a natureza reina belamente em tudo e por todos, uma mãe generosa e amável. Enfim era a filha da mãe universo, parte inteiramente ligada ao todo. Voltei onde repousava a beleza personificada em homem. Berna e Eu fomos cúmplices do dia em festejo eterno. Eram pouco mais das oito da noite, sentíamos o cogumelo se despedindo e permanecemos em estado de harmonia. Um barulho forte soava atrás de nós como se tivesse caído algo pesado da vegetação. Fiquei atenta e não vi nada. A sensação de estar sendo observada era nítida. Falei que não estávamos mais sozinhos e ali não era uma pessoa, apenas disso tinha certeza e nada mais. Levantei e cheguei perto, atrás do barquinho que guardava nossas bolsas, e vi na névoa escura da noite algo pulando para dentro da vegetação. Parecia uma iguana mas era arredondada. Parecia mesmo uma arraia azulada, mas não deu para ver bem. Era tarde e entendemos o recado do bicho. Hora de partir. A natureza foi muito fofa conosco. O cogumelo nos guiou com imensa generosidade a uma ilha de beleza, infinito e amor.

O dia foi transformador, a tarde linda, a noite espetacular. Relato algum pode chegar perto da grandeza vivenciada, sentida, real. Uma harmonia sem limites, um amor grandioso, uma luz explícita, uma beleza de cada ínfimo detalhe, um horizonte aberto a nós, e nós humildemente agradecidos pela ocasião.

VII- (Um encontro com Deus e uma nova identidade espiritual)

"Quando experimentamos essas dimensões que estão ocultas à nossa percepção diária, percebemos, de maneira direta e irrecusável, o caráter divino da existência"

Stanislav Grof

Hoje senti vontade de chorar. Depois da experiência com Berna não fui mais a

mesma pessoa. Indubitavelmente algo se transformou em mim. Nas noites seguintes pouco dormi. Entrar em mundo paralelo e conhecer seus seres modifica a percepção de mundo que havia antes tão limitado. Conheci outras formas superiores de vida e posteriormente me tornei uma delas. Mas esse estado sábio que me foi resignado, somente é possível através do cogumelo, porque Ele é a alma de Deus e usa a consciência como instrumento para mostrar a resposta muda e fantástica da vida e de tudo que lhe constitui imensamente. Havia pensado uma seção de cogumelos apenas com as mulheres. Minha irmã Tainah estava realmente precisando de ajuda espiritual divina. Deixei Kaki (seria sua segunda experiência) e Gil (terceira vez, assim como Tainah) de sobreaviso. Pensaríamos num lugar conveniente e faríamos o encontro, as quatro, com a velha maturidade de entender o aprendizado e a humilde vontade de reencontrarmos o sagrado. Meu pai sempre ansioso para tomar novamente, ligou sugerindo que tomássemos naquele sábado. Ele havia convidado seu amigo Dênio para provar e estavam já de combinação para irem à prainha de Cotovelo-RN, mesma em que tomei anteriormente com Berna. Como coincidiu com o encontro com as meninas, e não tínhamos transporte disponível, ajeitamo-nos e fomos todos apertadinhos no carro do meu pai. Tainah levou a filha de apenas um aninho (minha sobrinha Anauá). Partimos rumo à prainha semi deserta e já conhecida nossa. Antes preparei com suco de tangerina 9 gramas dos sagradinhos, de forma que cada um tomaria 1 grama e meia. Chegando ao topo da falésia onde a natureza não economiza em exuberância, enchemos os copos, eram pouco mais das duas da tarde e meu pai fez uma breve oração. Ele pediu luz e amor, risos e harmonia e também que a natureza se mostrasse. Eu tenho um pouco de dificuldade de digerir e fui, como sempre, a última a esvaziar o copo. Descemos pela trilha até a praia, atravessamos as pedras e a fúria da maré cheia que quebrava nas pedras. Chegamos à ilhota a qual chamamos prainha, depositamos nossas bolsas num barquinho “DEUS É AMOR” e logo o costumeiro incômodo inicial manifestou-se em todos.

Sentada na areia uma espécie de sonolência confundia meu corpo com um forte tremor interno. Já muitas revelações mostram-se nos pensamentos e é preciso concentrar para não partir. O corpo deitado não reagia a qualquer vitalidade. Letárgica, olhando para o céu maravilhoso, vi novamente a renda energética sob as nuvens. Como se fossem infinitas flores minúsculas e em fractais. Gil ao meu lado, tinha o rosto desfigurado, mais largo e branco. Podia ver também Kaki por dentro da pele. Haviam umas veias pretas perto de sua boca e uma mancha escura ao redor dos olhos, possivelmente pela contaminação da nicotina, pois ela fuma exageradamente. Seu semblante era perdido e até um tanto sinistro. Seu rosto também estava mais largo e não me parecia feliz.

Havia um casal e uma criança desfrutando o lugar, mais ou menos perto de nós. Meu pai boiava no mar vendo de olhos fechados uma mandala perfeita na cor vermelho tornando-se alaranjado. Tainah mantinha a filha nos braços e não percebi modificação nela. Ao meu lado Dênio parecia não sentir-se bem. Eu não o conseguia ver internamente, estava bloqueado por um escudo de orgulho e suas infelizes potencialidades.

Tentei alertá-lo anteriormente sobre a importância de se estar preparado para tal experiência ancestral. A mente, a alma, o corpo e os princípios como humildade para receber sabedoria e paciência das virtudes, devem estar brandamente vivenciados. Tomar cogumelos não é a busca de sair da realidade, mas o portal de entrada para a verdadeira realidade. Não é um paliativo para esquecer as amarguras ou ativar as doçuras da vida, mas ser a vida. Não é algo recreativo para ter visões alucinógenas ou rir como em efeitos de drogas, é ser o riso e a lágrima espontaneamente emocionados. É o encontro realíssimo com Deus. Enfim, ele fez pouco caso das minhas recomendações de interiorizar-se, evitar alimentos pesados, orar e concentrar, principalmente se desfazer de sentimentos ruins e saiu de casa para a sessão após uma briga com a esposa, e não estando preparado para entrar no mundo dos seres mágicos, teve uma bad trip e quis ir embora.

Podíamos ver a feiura de seu semblante, os olhos pareciam saltar coléricos, a testa aumentada e as sobrancelhas frisadas lhe exteriorizavam uma névoa densa de negatividades. Ficou assim por algum tempo e por fim, depois da insistência de meu pai e da impossibilidade de sair dali sozinho, acabou voltando atrás e por sorte, desfrutou das maravilhas oferecidas com toda a graça e transparência que a natureza oferecia gratuita e graciosamente.

Gil agora parecia uma índia e assim sentia-se: belamente genuína. Ela me via velhinha, com a pele do rosto toda enrugada e eu me sentia exatamente antiga. Meu pai voltava do mar rindo muito e agora possuía uns olhos azuis, que nunca foram seus. Kaki e meu pai fumavam cigarro. Nesse estado o corpo desprendido de necessidades não hesita diante os desejos. Por pura mania e identificação, a fumaça constante e desnecessária era absolutamente a única coisa que incomodava, porque não fazia parte. Passado o desconforto inicial de transformação, levantei-me e fui caminhar com a sobrinha Anauá nos braços. Eu tinha a pele muito vermelha e com a mesma textura úmida do chapéu do cogumelo, de forma que me sentia em total possessão. O meu passo era mais leve como se não carregasse um corpo. Então percebi que a vida carnal, feita de ossos, órgãos e pele carrega o martírio do próprio peso, além da vaidade que lhe exige a carcaça, o ego que mantém a ilusão e a máscara inconveniente da impossibilidade de domar os fatos. A frustração é inevitável. Passei pela família estrangeira que curtia o dia de sol. As duas crianças se interagiam, e tentei trocar algumas palavras gesticuladas com a mãe do bebezinho. Segui até adiante onde estava meu pai, perto da abertura da falésia a qual Berna havia tido um reencontro com uma rocha. Entreguei Anauá ao seu avô e enfrentei a subida íngreme sem qualquer dificuldade. Estava ávida, atenta e tranquila, abracei a rocha apaixonadamente, senti sua presença em meus braços abertos e lembrei-me bastante de Berna, desejei que ele estivesse lá. Conversei alguns silêncios com a rocha, pedi desculpas por não a ter abraçado na ocasião anterior e sorri feliz e correspondida.

Estava suave e me sabia saudável e extremamente linda. Meu pai lá de baixo me admirava com esplendor. Dizia a minha sobrinha sobre a beleza da tia, e a linda menina me mandava beijos. Uma música vinda de dentro da mata ao lado me instigou a subir até onde fosse possível. A orquestra era sutil e diferente da música humana. Sentia-me em casa e permaneci ainda mais atenta aos sons, pareciam provir dos ventos. Uma força

macia puxou meu corpo suavemente, deitando-o na areia. Não fiz objeções e quando a força puxou também minha cabeça, relaxei na terra vermelha e sorri. A areia envolvia meu corpo e umas ondas quentes na terra passavam pela pele aconchegando e massageando a alma. Havia os barulhos das pessoas na praia, das ondas constantemente quebrando, do vento comungado com as plantas, tudo era melodia, mas o som que vinha da mata eu me concentrava para ouvir. Escutei vozes animadas e entendi que estava acontecendo uma festa. Às vezes a música parava e as vozes silenciavam, em alguns segundos já era possível ouvir claramente a sintonia animada da festa dos seres da mata. Quis participar, procurei um caminho e não me foi permitido o convite; aceitei relaxada a condição de deixar fluir. De repente senti uma pressão por debaixo da terra como se algo quisesse se desenterrar, aconteceu novamente, achei engraçado e resolvi descer.

Na praia agora tinham inúmeras pessoas surgidas de onde ninguém percebeu. O céu lindo se revelava em cores intensamente esfumaçadas. O mar recuou bastante e até o final do dia permaneceu acuado, calmo e majestoso. Voltei saltitante para onde estava meu pessoal e, cheia de amor contemplei a todos. Sorria a todo instante porque me sentia uma entidade líder, detida de toda a sabedoria e compreensão. Era um sorriso brando e conciso.

Gil me chamou para perto dela, disse que precisava da minha energia leve. Joguei-me ao seu encontro transbordada de um amor maior, bem maior que eu. Ela me abraçou e seu corpo parecia derreter-se em meus braços. Falou que eu tinha razão quanto a estarmos dentro da flor de lótus, porque viu as flores místicas abertas na imensidão do céu. Reconheci “florzinha” (na segunda vez em que tomamos o cogumelo, Gil incorporou um espírito no qual fazia do seu corpo movimentos de flor) em seus olhos de vidro e exclamei entusiasmada; “Florzinha, você voltou!” Mas Gil estava pálida. Dei-lhe água e a tranquilizei com uma propriedade incrível de quem sabia exatamente o que estava por vir.

O mundo em que estávamos não era o mesmo que crescemos habituados. Uma abertura no mundo carnal para a vida dos seres mágicos expande uma verdade longe de qualquer denominação linguística. Atingia meu nirvana com um xamã de sacerdotisa. Conheci os seres de nuvens, de pedras, de areia, de ar. Reconheci a soberania do mar, do sol, da lua e das montanhas e falésias. Tudo é vivo e essa descoberta desencadeia mil pensamentos tão claros quanto irreconhecíveis. Tão desnudos e incontestáveis quanto surreais e raros. Tantas respostas absorvidas e estampadas no silêncio, e ainda obscurecidas pela ruína da humanidade, que se espalha como uma praga, cada vez mais perdida entre concretudes, construções e certezas inúteis. Lembrei-me que ainda não tinha entrado no mar. Fui e havia uma deusa remando num caiaque. Uma sereia de biquíni, em pé e totalmente ereta. Tinha o corpo perfeito, o cabelo curto e era extremamente bonita, chegando a traspassar uma luz com toda naturalidade e brandura de passar. Em seguida chegou uma lancha com três pessoas e um som, parou perto de onde eu estava; uma loira também muito bonita, elegante, vestida de branco, e dois homens. Tinha um grupo de pessoas no extremo da ilha, em harmonia visivelmente bem resolvida. Estavam em círculo e jogavam água para cima, a linda mulher do caiaque que se chamava Ana (meu pai perguntou a ela e depois falou que sua beleza encantava a todos) desapareceu. Em vez dela, um homem não provido de menos beleza surgiu. Hora estava de bermuda xadrez, hora de sunga. Da mesma forma, velejando tranquilo o caiaque, tinha algumas tatuagens e o corpo jovialmente bem definido. Eu boiava e vi o céu bem pertinho de meus olhos, quase dentro. Era como se tivesse descido, ou melhor, aberto a mim. Éramos só eu e o céu, com toda sua

imensidão azul de infinita beleza. Depois me pus a brincar e rodopiar na água como uma criança no auge da felicidade.

Kaki chegou perto e quando olhei para onde o sol se põe, uma luz intensa se escondia atrás de algo, de forma que fomos entrando no fundo sem perceber em busca da misteriosa luz. Chegamos num ponto alto do mar, extremamente fundo e vimos a coisa mais linda brilhando entre o céu de cores. O sol estava deslumbrante e as nuvens eram todas feitas de seres. Pude ver claramente que ali existem vidas. As nuvens são seres vivos, bem como o sol e o mar, são deuses. De repente me dei conta de um fato inédito: Minha amiga Kaki não sabe nadar e nunca passa do rasinho. Porém ela estava ali comigo, e nós não fazíamos esforço algum, porque na verdade estávamos flutuando. Inexplicável! Nosso corpo sem qualquer movimentação na perna ou braços, livres como num voo, submerso naquela água toda que nos acolhia. Meu corpo girava sem que eu comandasse nada. O sol expandindo seus raios a todos os lados, as cores do céu. Abordei o belo homem que passava pertinho de nós em seu caiaque, “você está vendo isso, esse sol, esse céu?”. Não conseguia ver seu rosto, porque não havia. Era uma luz que me cegava, não enxerguei da sua face senão essa luz e ele passou sem responder, tão misteriosamente como tudo, e ficamos ensimesmada com a estranheza, além de encantadas com o universo. Principalmente era muitíssimo engraçado o fato de estarmos no fundo vendo o pessoal longe na areia, inacreditavelmente flutuando. Dênio e meu pai tentaram se aproximar e ficaram impressionados com a profundidade em que estávamos, explicamos que não era nós quem nadávamos, mas a sensação de estar levitando era fato indiscutível. Eles não conseguiram se aproximar tanto e voltaram para o raso, nós rimos muito com gratidão e respeito.

Depois de desafiar a gravidade do mar, viemos para mais perto de onde estava meu pai. Nós brincávamos e cantávamos festejando a estadia na casa de Deus. A lancha continuava lá, pessoas surgiam felizes, depois sumiam. Eu e kaki brindávamos a vida! O sol escandalizava de energia viva e beleza indescritível. Virei-me para ver o céu do lado oposto ao sol e tive um susto que me fez arregalar os olhos de assombro. Emudeci. A lua cheia branca imensa, em plena luz do dia! Todos gritaram abasbacados. Que falar nesses momentos? Tentar encontrar explicação não surtirá efeitos. Afobar-se no próprio entusiasmo é como duvidar da mágica naquilo que é natural. Depois ela sumiu e reaparecia quando bem entendia. Era perfeita!

Sai da água porque Gil ao longe e sozinha, não se sentia bem. Eu sabia exatamente o que estava acontecendo com ela. Mas quem vê e sente a vida se esvaindo se angustia pela representatividade da morte. Ela sentia sua alma saindo pelos poros de forma que a consciência estava intacta, acordadíssima, enquanto o corpo padecia feito uma carcaça enferrujada pela ação do abandono e medo; “meu coração está parando, estou com medo de morrer!” me dizia com mais preocupação do que dor. Eu sorria brandamente para acalmá-la com o meu espírito. “Você não vai morrer, não agora. Florzinha quer se apossar de você, pare de lutar e deixe o cogumelo te guiar”. Não sei explicar o instinto sábio mas era o meu papel, minha função auxiliá-la. Ali, naquele tempo e espaço eu incorporava um xamã de sacerdotisa. As instruções e procedências eram naturalizadas em mim sem que eu soubesse como. Era como se tivesse num estado de personalidade superior que desconheço. Meu andar era diferente, mais pausado e firme. Minha voz era diferente. Uma propriedade de linguagem e incontestável argumento, eu de fato, compreendia tudo. Vi que Gil estava sem energia porque lutava, suas forças se esvaiam, seu semblante esverdeava. Chamei-a para pegar os últimos resquícios de energia do sol que se punha totalmente em breve. Coloquei a mão sobre sua testa e apenas respirei profundamente. Foi rápido, preciso e verdadeiro. Não pedi nada, emanei toda a calma de meu espírito para contaminá-la de brandura. O amor era o

remédio mais sutil para fazê-la viver e acalmá-la. O seu corpo estava sendo apossado e logo ela ficou leve, dançando atipicamente mística, florzinha dança surreal porque não tem membros. E Gil foi a escolhida para receber seu espírito brincalhão e talentoso.

Gil não comandava um só gesto, um só passo. Era nítido que o movimento involuntário lhe causava a mais completa sensação de liberdade. Fiquei feliz ao vê-la dessa forma, agraciada pela sintonia. Girava entre as muitas pedras com uma habilidade infalível. Às vezes entrava no mar, mas a onda a fazia girar o corpo e sair da água. Era espontâneo e engraçadíssimo. Ali também seu sorriso era diferente, sua gargalhada, seu olhar, seu “andar” bailarino. Definitivamente não era ela, embora participasse ativamente da performance transcendente e fantástica. Todo seu momento ruim foi proporcionalmente compensado. O sol se despediu, a lua iluminou de vez. O céu meio roxo, o mar recuou muito deixando um imenso pedaço de areia para nós. A ilha dos sonhos estava mais paradisíaca, deslumbrante, irreal, sublime, incrível! A lancha continuava lá, sem as pessoas que sumiram, com uma luz azul acesa. Apareciam grupos de pessoas felizes, desfrutavam do mar, e depois sumiam sem que víssemos de onde vinham ou para onde iam. Se aquelas pessoas eram reais, não sei. O que posso dizer é que estávamos em um plano espiritual elevado, estávamos dentro da flor de lótus, na casa de Deus. Dessa forma tudo é real, um convite do cogumelo para nos mostrar que a harmonia e o ideal não esbarram em limites lógicos. Depois, pensando friamente, creio que aquelas pessoas estavam na verdade, mortas. No sentido mais iluminado, claro.

Meu pai tinha crises de risos estridentes e bolava no chão, quase sufocado de tanto rir. Tainah carregava a filha que dormia em seus braços e repetia extasiada “ Eu não preciso de nada! Entendi tudo, você está vendo? Nós não precisamos de nada, hoje é o dia mais feliz da minha vida, eu estou completa e muito feliz mesmo” Dizia freneticamente com um sorriso sinceramente largo, estava linda e se sentia linda. Kaki também estava empolgada sem entender tanta beleza, tanta magia. Eu dizia as duas sem excesso de alvoroço: “É para nós, tudo isso é um presente, vamos desfrutar!”.

Pela primeira vez deixava de ser observadora para ser moradora e líder espiritual. Assim me sentia porque estava incorporada de uma grandiosidade sábia. Eu tinha a maturidade de conhecer a todos, sem que falassem nada. Os seres superiores se comunicam em melodia e silêncio, porque estão tão atrelados que não se distanciam. Era curandeira, conselheira, mãe e detinha um poder que nunca sonhei conquistar. Fui caminhando sozinha pela praia em agradecimento emocionado e claro, totalmente purificada de existência. Estava na casa de Deus, tinha uma intimidade infinita com Ele, e uma propriedade maternal genuína de cuidado com tudo. Ouvia um som que vinha de dentro da vegetação da falésia, pássaros passavam cantando, o vento uivava e o mar completava a orquestra. Tudo era música e sincronia. Beleza e perfeição. Uma árvore branca lá em cima da falésia me chamava a atenção com sua vivacidade, sinuosidade e imponência.

Fui caminhando um passo lento e desarmado para perto da falésia e algo me chamou no chão. Tinha apenas um traço na areia, porém sabia que havia uma vida ali, podia sentir sua energia. Meu pé involuntariamente fez outro traço na areia. Surpreendeu-me delicadamente o surgimento de um rosto que concretizava a sensação de ter uma companhia ali, na minha frente e na areia. Sentei-me numa pedra de frente para o rosto e conversamos sem trocar palavras. Meu pai chegou perto, apresentei aquele ser de areia e ele ficou impressionado com a beleza da obra e principalmente a semelhança com o traço de Picasso. Ele é artista plástico e dizia incrédulo “ Foi Picasso quem desenhou esse rosto! Um belo e perfeito retrato cubista” . Expliquei a ele que nem

Picasso nem Eu, mas um ser vivente e mágico daquele mundo lindo onde reina tranquila a natureza. Passamos a mão na terra e o rosto não se desfez, era muito vivo. A lua alta e cheia, branca e redonda, linda e misteriosa iluminava cinematograficamente a praia. Ao redor dela o céu roxo e no fim da falésia uma mini cidade iluminada. As luzes dançavam e o reflexo na água do mar reluzia. Agora erámos só nós e um casal distante. A lancha abandonada no mar que a pouco tínhamos bem na nossa frente, sumiu. Ninguém soube explicar, ninguém entendeu como. Minha irmã chorava sem perceber, a emoção era intensa e a felicidade verdadeira. Mas nem todos pareciam tão entendidos acerca daquele presente maravilhoso.

Duvidei que alguns estivessem no mesmo paraíso em que eu estava, porque não compreendia suas atitudes ainda tão atreladas ao egoísmo e ânsia humanos, sem perceber que pensar em todos é manter o equilíbrio da vida e a felicidade plena só é possível se houver sintonia entre o todo. Dênio caçoava diante a estranheza do movimento de Gil. Meu pai compartilhava em explosões de riso, embora não houvesse maldade nisso. Mas também havia pouca compreensão e respeito. Kaki e meu pai fumavam cigarro mesmo por mania. Poluía a casa dos seres puros sem interessar-lhes o incômodo alheio e sem dar-se conta disso. Dênio sentiu fome, também pelo costume humano de preencher o vazio interno, e procurou em nossas bolsas a comida que ele não havia levado. Tinha algumas frutas destinadas a Anauá, encontradas e digeridas por ele. Mais uma vez eu deixava de entender as pessoas, porque estávamos plenos e a fome simplesmente não existe, nem a sede, nem a vontade de banheiro, porque já somos saciados neste lugar sagrado. O lixo que fizemos até o fim do dia não foi recolhido porque “o papel dos pescadores é recolher”. Voltei lá e pus o lixo na minha bolsa. E o nosso papel, qual é? Questionava-me entristecida pela falta de coletividade e excesso de egocentrismo que insiste em perseguir até mesmo as pessoas mais inteligentes. Desfrutar cada milagre daquele dia, deslumbrar inesquecivelmente de tanta beleza, entrar numa sintonia tão bem feita onde vivem seres da floresta, seres de nuvens, seres de areia, seres de todas as energias; do sol, vento, mar, falésia, lua, horizonte... Tudo é vivo, mas a nossa consciência é meio arrogante, restrita e voltada aos próprios interesses insignificantes. Meu pai dizia que o cogumelo é a melhor coisa do mundo e chamava para irmos embora, pois tinha um compromisso com o “caminho da graça” (grupo no qual se reúnem para discutir assuntos relacionados à bíblia e a vida, sem a máscara religiosa), e eu dizia a ele; “ Estamos no caminho, na verdade e na vida. Não tem lógica sairmos daqui porque seria como recusar um presente divino, e nada pode ter mais importância do que isso”. Dênio também desejava partir porque ainda tinha fome. Não entendia o porquê da pressa já que estávamos na eternidade Ambos, porém, se entusiasmavam com a possibilidade da próxima vez. As mulheres, ao contrário, estavam sem nenhuma limitação de tempo ou uma mínima vontade de sair dali. Estar num momento como este em que vivemos além de ser um privilégio inestimável e milagroso, é também a essência da vida. Pensar na próxima etapa com um teor de ansiedade simplesmente nega e anula o instante presente. O real, o certo e palpável aos olhos. Não entendia como eles conseguiam desviar a atenção da graciosidade da verdade para o amanhã, que não existe. Quando se vive apenas não é preciso buscar nada, porque a sucessão de tempo é uma consequência mágica e providencial. Kaki não se cansava de maravilhar-se com tudo. Tainah estava linda, leve e muito agradecida. Era o dia mais feliz de sua vida. Gil continuava dançando magicamente e sem comando próprio, sua sensibilidade absorvia o dinamismo do lugar. Fomos enfim embora, a contra gosto das mulheres, mas eu estava plena, preenchida de graça e privilégio. Carregava a leveza da sabedoria e o doce mel da

humildade. Entramos na trilha de volta ao carro e não conseguia não olhar para trás. Lá estava ela, a ilha sagrada iluminada por uma lua sem limites de poder e banhada por um mar gentilmente soberano. Algumas estrelas surgiam na noite e eu via as mesmas pequenas explosões de purpurina com infinitos seres azuis, parecidos com estrelas minúsculas. A onda se formava no rasinho, e antes de quebrar contra a areia, ficou dourada, como uma faixa horizontal de ouro. Reluzia e apenas eu via. Quando tentava mostrar a minha irmã que seguia a meu lado na trilha, a onda se quebrava e o dourado se desfazia junto.

Estive na eternidade e conheci o paraíso; Agora entendo a morte, que não se diferencia da vida. Os desejos mundanos são pura ilusão para encobrir o vazio da desconexão do Ser. A busca é sempre para tornar suportável a si mesmo. Ela limita o indivíduo a ignorar o instante, o presente. A ansiedade também. São todas ferramentas da ilusão, e nada importa porque não precisamos precisar. A natureza tem tudo, porque é tudo. Não precisamos de absolutamente nada, somos plenos no amor e parte do universo perfeitamente sincronizado na luz fluida de Deus: Uma verdade potencialmente soberana!

Universo Paralelo O silêncio, a música, a interação, a contemplação. Absolutamente tudo se sincroniza, porque tudo é amor. Há uma movimentação surpreendente no mundo marítimo e toda superfície esconde uma intensa potencialidade: A putrefação que aduba a terra, o singular mundo estrelar, o submundo dos mundos a incrível naturalidade dos ciclos. Tudo é amor. A flor, o pasto, o boi, o cuidado a crudelíssima nitidez das pedras compartilha a real imponência das montanhas. As pétalas que voam, borboletas a nascente, a geleira, o mangue, o deserto, a capacidade de pulsar. Tudo é amor. Em cada partícula invisível há vida a vida é plena em transformação e o homem quando se nega à própria natureza não se permite amor. O sol na chuva, a beleza de todas as coisas que já são, se mostram incansavelmente a cada instante de forma a transcender ao tempo. E por isso não amadurece, visto que é soberano porque é espaço, é imagem Porque é. Simplesmente. Sem perguntar a quem, sem revidar nem detestar nem planejar, o amor ecoa como uma trovoada e expande magnificamente de cima para baixo (de dentro para fora) Tudo é amor. O cardume é sempre nômade? Como pouco se percebe a divindade da água?

O passado do céu é permanecer céu? de onde veio as areias, até onde se estendem? e o exuberante verde que rastejam as iguanas? Ah, se não fosse tudo repleto de cor no amor havia menos sentido. Felicidade tem mais haver com brandura. Fora da ilusão há verdade. A diversidade de peles, texturas, aromas, infinitas vidas invisíveis, discretas, sensatas, calmamente acontecidas na surpresa imprevista da vida. Todos os mundos se cabem, porque existem; são complementos, são partes e é o todo (todas as frutas são primas?) tudo se faz família! Os esporos voam. A água engravida. O sol dá a luz. Até a lua é luz. E alcança tudo. Tudo é dor. Mas a dor compensa o amor. Sejamos nítidos como a expansão da praia livres como o fluir do rio, e o bater de asas sejamos, apenas sejamos! Serenos, transparentes, em desarmados silêncios Porque a paz é inteira e a vaidade é uma arma e nenhuma arma pode fazer bem ao homem. Não existem necessidades, já que somos todos supridos a natureza se serve de si mesma e o banquete está sempre posto. O universo inteiro e sua inexplicável variedade Pulsa. Pulsa e pulsa, ciclicamente; Isso é amor. Pura originalidade.

O nirvana Quanto mais fraco sinto meu corpo mais perto a iluminação espiritual irá alcançar minha alma. Ela brinca na leveza da praia, porque a sabedoria vem de onde nasce a areia. Estar no mundo de carne e osso é a mesma ilusão do estar vivo, carregar um corpo traz consigo um peso e nota-se timidamente seu martírio: A vaidade que lhe necessita a carcaça e a máscara do orgulho por não domar os fatos; tão frustrante! Quando não, a alma busca paixões de nuvens e movimento de rosas, mas as nuvens são seres superiores e não querem saber disso, e as rosas dançam em comunhão com o lótus sem também interessar-lhes nada. O que me faz permanecer aqui? meus pés são gaiolas e eu só desejo partir. O risco constitui o fluxo e a consequência é tornar-se a mais amável das vidas. Estou apaixonada pelo céu breve serei correspondida?

Melhor conviver na amplidão da simplicidade se pudessem ver adentro saberiam que as mãos secam ao atravessar o amadurecer murcham sem qualquer vaidade como uma folha vencida. Se abrissem perspectivas, veriam mais movimento e criatividade embaixo da água (onde não alcançaremos nunca) Se transcendessem às futilidades, a harmonia viria a tona nas vestes mais relaxadas sem adornos para suprir fraquezas antes fomos dignos de enxergar na superfície o medo abdicou-se do deslumbre diante o misterioso uivo da trovoada.

VIII- (Um passeio pelo inferno!)

“ E quem não vê os anjos e os demônios no bem e no mal que lhe traz a vida, priva sua mente

de conhecimentos e sua alma de sentimentos.” Khalil Gibran- Asas partidas.

“Nem tudo são flores” e é com essa verdade clichê que inicio o infeliz relato. O dia anterior foi sem graça e um tanto frustrante. Quarta-feira, último dia do

mês de Julho, minha grande amiga Kaki me ligou e a convidei para passar em minha casa, seu celular tinha ficado comigo desde a última sessão de cogumelos, quando conhecemos o paraíso. Também ainda não tínhamos conversado a respeito do maravilhoso dia em detalhes individuais. Ela chegou perto das duas da tarde, fumamos, conversamos e enfim, pela falta de perspectiva do dia resolvemos sair para qualquer lugar, dar um passeio. Durante o despretensioso banho pensei “porque não?” ainda tinham alguns cogus que ganhei do amigo Rogério, o qual sou eternamente grata, e já há alguns dias pensava em tomar com Berna novamente, mas ele não apareceu nem deu notícias. Só me restava um pouco de receio pelo meu estômago, que há três dias não andava bem (embora eu tivesse evitando alimentos como carne e frango), incomodava o inchaço.

Enfim, falei da ideia súbita que tive a Kaki, ela se animou toda, e ainda um pouco na dúvida resolvi pensar positivo, relaxar e preparei apenas 2 gramas para as duas, com suco natural de maracujá e logo estávamos no ônibus em direção a Praia de Ponta Negra-RN, ponto turístico da cidade que se encontra atualmente em ruínas. Não preferíamos este lugar, mas fomos de certa forma pela possibilidade viável a nós, e a facilidade (opção) de locomoção pública.

Era fim de tarde quando chegamos à praia. O sol estava perto de se por, o céu era limpo e com nuvens fragmentadas. Tomamos o suco, cada uma um copo, numa pedra em frente ao mar. Na oração pré-ingestão pedi a cura e alívio para meu estômago, e ainda muito amor. Kaki completou pedindo luz e paz. Depois caminhamos a procura de um lugar menos movimentado e mais tranquilo.

Estendemos uma canga na areia, sentamo-nos e a conversa fluía naturalmente. Em poucos minutos os já conhecidos incômodos iniciais apareceram e relaxamos a esperar a superação. O céu estava repleto de cores lindas com dégradés de roxo, verde, azul e rosa. Poucas pessoas caminhavam pela praia. Alguém praticava kitesurf no mar. Eu sentia muito frio. Um aglomerado de pensamento se faziam claros na minha cabeça, todas as respostas num só silêncio. Sobre esta verdade, porém, me abstenho de explicar pela falta de palavras a alcançar certas dimensões inefáveis, pelo mesmo motivo: qualquer denominação aprisiona, limita o sentido da coisa.

As nuvens se transformavam para nós, Kaki ao meu lado sorria maravilhada com a beleza de tudo. Eu ainda sentia muito frio, de forma que pus o casaco que havia levado, enrolei-me com um lenço grande e ainda foi preciso ela me ceder o seu casaco, porque o frio que havia em mim não era normal. Fiquei toda encurvada e me sentia extremamente velha, já em posição fetal, frágil e desamparada num asilo à beira da morte. Ela me olhava e dizia “amiga, você está tão velhinha! Tão pouquinha!”. Sabia o que ela via, porque eu sentia na pele enrugada e ossos travados pela idade avançada. Não conseguia sequer levantar a cabeça, apenas os olhos fora dos panos para ver as

cores do céu com o sentimento lúcido e tranquilo da iminência do último suspiro. Tudo aquilo era o prenúncio de algo terrível que viria.

Depois de um longo tempo encolhida e quase com hipotermia, resolvi enfrentar o frio e tentei caminhar pela praia. O vento era forte e meus passos não seguiam o seu curso normal. Parecia bêbada sem controle nos pés. Voltei para onde estava Kaki e logo acima, homens que trabalhavam num hotel descansavam e nos observavam. Lá de baixo podia ouvir suas risadas e as conversas escarnecidas a nós. Caçoavam da gente. Chamei -a para procurarmos outro lugar onde as pessoas não incomodassem tanto. Rapidamente pegamos as coisas e saímos.

O vento agora era quase um ciclone, o céu escureceu de repente e o horizonte não se via mais, era uma névoa densa. Foi difícil caminhar contra o vento forte, tínhamos que fazer um esforço grande e a sensação era de medo. Uma nuvem grande e pertinho de nós se destacava com sua monstruosidade; Parecia um peixe enraivecido querendo nos engolir. Seu olho e a expressão de ataque eram nítidos. O céu estava apocalíptico. Não fazia duas horas que havíamos tomado, mas naquele momento quis ir embora. Kaki tentou suavizar me pedindo tranquilidade. Não só estava com pensamentos bons, como de forma alguma havia imaginado uma viagem ruim. Rogério havia me alertado: Uma hora a coisa pega! Minha vontade não era de fuga, mas de buscar a paz e alegria que temos em nós. Não teve jeito, não tinha para onde ir, se havíamos começado, era preciso ir até o fim.

Passamos por um casal na areia com um Pit Bull preto e ameaçador, também colérico. Kaki teve um susto e seguimos adiante concentrando para ignorar a hostilidade que havia em volta, integrado no local. O peixe continuava lá na nuvem, e quando olhávamos não tinha como não escapar um grito espontâneo e assustado. Ríamos também, porque é bem próprio da nossa história e personalidade rir nos momentos mais esdrúxulos e sem saída. Sentamo-nos no meio da escada que chega até o calçadão da orla. A escuridão e o vento denotavam um ambiente sombrio. Mal sentamos e o casal vinha subindo com o cachorro imenso. Resolvemos subir até a orla e de lá não voltamos mais para a areia.

Dois casais se enamoravam em lugares distintos e nós completamente desorientadas, trocamos algumas palavras para tentar resolver a nossa questão. Mais uma vez quis ir embora, Kaki ponderou: Para onde iríamos se estávamos no auge do efeito? Ela tinha razão. A parada de ônibus era distante e ainda assim, não havia refúgio para nós. A única chance então era caminhar até encontrar qualquer cantinho receptivo, acolhedor e seguro. A caminhada foi longa e a esperança de encontrar tal lugar foi morrendo a cada passo. O corredor escuro, deserto, quando pior passavam homens feios e asquerosos, como bêbados fracassados e alguns mal intencionados falavam qualquer coisa para nós em tom de abordagem, passamos com os braços entrelaçados na fé absoluta de que sairíamos ilesa do terrível dia. Nesse momento pensei no salmo 23:4; “Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam.” O calçadão nunca foi tão longo. Sentíamos medo e vontade de encontrar logo um espaço para descansar que não fosse hostil. O cogumelo havia nos mostrado o paraíso por vezes e agora nos apresentava o inferno. Do mar pouco se via, estava furioso e agitado com a ventania. O céu era denso e o clima tenso. O perigo era constante e a energia armada. As nuvens eram negras e o frio (que geralmente amo) não era nada acolhedor. Passamos por várias pessoas que caminhavam, outras apenas estavam lá como uma assombração. Vimos muita gente feia, estranha e alguns deficientes físicos. Muitos homens, poucas mulheres. A cor predominante do inferno, além do preto cinza é

o vermelho. E eu realmente não me identifiquei com aquele mundo que nos deprimia, mesmo quando tentávamos disfarçar.

O cartão postal da cidade recentemente abandonado pela prefeitura, retoma agora as obras de reparo. O calçadão está praticamente sendo refeito. Homens trabalham de farda vermelha na areia com máquinas imensas (escavadeiras) na qual puxam pedras também enormes. O barulho era insuportável. Em alguns pontos o abismo de um lado, abandono do outro e no meio, onde pisávamos, sequer havia passagem e tínhamos que improvisar costurando por cima da terra. Era tanto material entulhado e arames e cercas que poluíam a visibilidade já angustiada pela ruína do lugar onde outrora, foi cenário de muitos romances e histórias marcantes, ao menos para mim. Realmente triste.

Encontramos três gatinhos pequenos e lindos, a única maravilha da noite. Um preto, um tigrado e um branquinho, todos do mesmo tamanho e bastante peludos. Estavam ali abandonados, miando e sem saída. Kaki segurou o branco e pus os outros dois aninhados nos meus braços. No escuro trecho um milhão de vagalumes, mas amedrontadas pela obscuridade do resto, não demoramos na contemplação. Levamo-los até um espaço mais movimentado onde há uns dois restaurantes e mais iluminação. Mas isso não significa que estivesse menos desagradável. Tocava uma música ruim, misturado ao som estrondoso das máquinas e pedras na praia. Homens feios circulando de vermelho nos olhavam como se quisessem nos engolir. Sentamos um pouco e beijei, agarrei bem como felícia, os gatinhos fofos. Kaki acendeu um cigarro e mais uma vez tentamos resolver a situação: Procurar um banheiro e acima de tudo, um lugar de energia boa onde pudéssemos repousar o espírito.

Sem chegar à conclusão alguma, por falta de possibilidades também, resolvemos seguir caminhando em busca de abrigo e luz. Olhamos uma para outra, com o leve pesar de deixar aquelas coisinhas lindas e nos despedimos deles. Eles pularam dos nossos braços para o chão. Um homem feio e barrigudo se aproximou e nos disse que levássemos os gatos, pois “eles vão colocar bola pra esses bichos morrerem, porque causam doenças nas pessoas”, não gostei do seu tom, muito menos da informação. Pedi por favor, que não fizessem nada com os inocentes, falei que não podíamos fazer nada, os gatinhos já estavam lá e apenas os trouxemos de um ambiente mais escuro, eles queriam explorar o espaço e não quiseram vir conosco e ainda, que a praia é o habitat deles já que provavelmente nasceram ali. O homem resmungou e nos culpou de ter jogado os felinos lá.

Os homens chegam sem permissão, se apossam do que é livre e natural, destroem tudo com seus entulhos e com toda ignorância do mundo, se acham no direito de matar os animais como se não bastasse ter destruído seus lares.

Enfim saímos tristes e envergonhadas com a humanidade desumana. O que sentíamos era provavelmente, o sentimento dos gatos: A feiura do espaço, o abandono, a hostilidade e a falta de liberdade de se locomoverem. Fomos em direção ao morro do careca e passando pela orla de maior movimentação turística, vimos carros com expressões ruins, lixo, coisas mal feitas, enferrujadas, mais pessoas feias e infelizes, ruídos e nosso desespero silencioso. Como já passamos por histórias! Comentava com Kaki, ao menos tínhamos uma à outra. Uma amizade complementar e necessária. Podíamos enfrentar tudo porque estávamos juntas, de mãos dadas pensávamos sempre positivo, com fé no coração e amor na alma. Por alguma razão desconhecida tínhamos que atravessar o inferno de espectadoras, sem obviamente, fazer parte daquilo.

Foi difícil encontrar banheiro. Sequer calçadão havia mais, de forma que tivemos que atravessar para a rua dos restaurantes turísticos. As expressões das pessoas que jantavam, gostaria de esquecer. Falei para Kaki que tínhamos entrado no mundo dos fracassados. É preciso conhecer todas as realidades para escolher um caminho.

Sabíamos internamente o quanto não queríamos voltar ali. Depois de andar bastante entramos numa vendinha e fomos direto ao banheiro. Trancadas, nós rimos de tudo porque era melhor do que chorar. Fazer o quê? No fundo era engraçadíssimo pelas situações que a gente já se meteu. Essa seria mais uma para a coleção. Quando saímos, a dona do estabelecimento reclamou porque não avisamos que iríamos ao banheiro. Pedi desculpas, comprei uma água e um doce, e voltei ao calçadão onde Kaki me esperava numa mesinha branca de plástico.

Um hippie meio velho nos perguntava de onde éramos. Somos daqui mesmo, dissemos. Ele falou que era do Rio Grande do Sul e havia vindo para o RN. No mais, não dava para entender o que queria de nós, oferecemos brigadeiro, ele aceitou. Depois insistiu para que víssemos seu artesanato. Agradecemos rapidamente e saímos atordoadas com a estranheza de tudo. Não tinha mais para onde seguir, não queríamos voltar pelo corredor escuro. Retornei uma ligação perdida da minha irmã e ela chorava tanto que nem conseguia falar. O fim da picada, hora de partir mesmo! Subimos uma ladeira imensa e andamos mais um bocado até a parada de ônibus. Tentávamos relaxar para atrair coisas boas, mas o lugar não era propício. Na avenida na qual atravessamos havia um gato atropelado. Não quis olhar. A demora do ônibus e o nosso silêncio pelo caminho.

Dessa vez não nos sentíamos privilegiadas. O cenário terrível que atravessamos lembrou-me um filme – Constantine, quando o personagem principal conhece o inferno. Atravessar o paraíso e o inferno não é viável para todos. Dante Alighieri também devia ter tomado cogumelos, comentamos com bom humor... Até as duas bananas que havíamos levado se estragaram na bolsa de Kaki! Quando estávamos descendo do ônibus achei um celular no banco ao lado, peguei-o e logo o devolvi ao banco. Depois de tudo não tinha a menor pretensão de possuir qualquer objeto de ninguém. Não queria carma e nem acúmulo de energias alheias. A carga material é tão forte e nem percebemos. Apegamo-nos às coisas, e coisas não passam de coisas. Fica-se então na superficialidade das convenções e embalagens, deixando de ver além, a vida.

Não me arrependo de ter saído de casa neste dia. Até então as experiências com o ‘sagradinho’ haviam sido de luz e belezas. Conhecemos o outro lado da moeda, porque ele também existe. Apesar de tudo fizemos uma oração em agradecimento por estarmos ilesas e protegidas. Ainda vimos um rosto na nuvem bem parecido com o rosto de areia, da experiência anterior na prainha, a qual me pai associou a um desenho cubista de Picasso. Kaki foi para sua casa visivelmente desmotivada. Depois soube que aquele mesmo dia tenebroso também não havia sido bom para algumas pessoas do meu convívio. Talvez estivéssemos mesmo interligados de alguma forma. O mundo é formado de energias e qualquer desequilíbrio influencia na composição harmônica geral.

Dormi bem e não tive pesadelos. Acordei leve e agradecida. Na manhã do dia seguinte recebi uma mensagem linda de Kaki que só fortaleceu nossa amizade. Quando estive no paraíso tive que voltar para o mundo carnal dos homens, o que causou um desânimo e tédio nos dias seguintes e uma imensa vontade de partir, já que ali era a casa celestial dos mortos. Agora que estive no inferno, os dias seguintes se faz o oposto; Acordo e ao abrir a janela vejo o sol brilhando, o vento balançando a doce melodia das plantas. Pássaros em liberdade e harmonia me fazem suspirar de gratidão e glória. Estamos vivas e em paz. O amor não se desprendeu de nós, ao contrário, amadureceu sobrevivido a mais um estágio do caminho. Temos a íntima certeza de que somos puras de espírito, porque não desejamos mal nenhum. Toda a experiência é válida se o amor permanece iluminando até nos bueiros mais inóspitos da terra.

Transcender Enquanto imaginam que me afogo na infelicidade da frustração reconheço meu caminho incompatível à multidão e observo tranquila a nuvem que vive sem pressa e sem reparos. Tenho aprendido com o céu esse estado alheio e sua convicta posição. Enquanto pensam que não conquistei concretudes, vivo em amor profundo que me faz abraçar o mundo. Tenho vivido com o mundo, suas diversidades e as verdades incontestáveis. Enquanto julgam que minha solidão é triste, ingrata e descabida fico na felicidade compartilhada e o coração preenchido das mil companhias. Tenho entendido com o silêncio - ele tanto diz!-a não desperdiçar palavras nem perder o foco que dão sentido e contemplação às vidas. Enquanto me apontam cansada dos fardos dos anos descanso da busca incansável das respostas porque o passado é inviolável e a irrealidade do tempo não possui chaves de entrada. Tenho ouvido da velhice não pesares nem temores ou doenças, mas o som da eternidade, que boceja suave sob seu posto antigo. Enquanto me veem soberba, indistinta enclausurada nas paredes inférteis sufocantes da repressão e obrigação, me desfaço da vaidade fútil da auto afirmação e vivo escoada no fluir do rio; Tenho conhecido os seres que voam onde o tempo e espaço não tem limites.

IX - Paciência para alcançar a serenidade da alma e a subjetividade dos transes-

“Aquela que é dita a ego-morte aproxima-se de ti. Lembra-te: Esta é a hora da morte e do renascimento; Tira vantagem desta morte temporária para obteres o estado de perfeito

Esclarecimento. Concentra-te na unidade de todos os seres vivos. Agarra-te à Serena Luz. Usa-a para alcançares entendimento e amor.”

A experiência psicodélica- livro tibetano dos mortos- Timothy Leary

Depois do passeio pelo inferno entendi ainda mais a importância de escolher o lugar com pouca interferência humana, tranquilo e natural; também quem irá participar e seus objetivos; não devem ser ávidos, nem fúteis, como quebrar o tédio ou buscar diversão. A expansão da consciência exige o mínimo de equilíbrio interno além do respeito e humildade diante da imensa sabedoria da natureza. É um preparo corporal-espiritual lapidado lento e a todo instante. Portanto não se deve banalizar a experiência já que qualquer ponto negativo pode influenciar ou inibir o aprendizado do fungo. Deixei algumas pessoas especiais (que tem o mínimo de conhecimento da luz e respeito à natureza) de sobreaviso; eu tinha os cogumelos e queria experenciar com elas. Bastava proporem um dia bom, um lugar adequado e o resto fluiria. Em contrapartida meu pai, que também tinha algumas gramas, me ligava todos os dias chamando para tomarmos juntos. Como a experiência anterior havia sido delicadamente desagradável, reforcei ainda mais o foco da minha busca: A conexão divina, a serenidade da alma, o sentido do amor, e a paz interior. Então, sentia que meu pai não tinha a mesma vibração que eu e isso poderia atrapalhar um pouco a minha meditação. Pois bem, as pessoas nas quais haviam feito o convite não se manifestaram. Meu pai me ligou mais uma vez e então já não tinha como negar o encontro. Era uma quinta feira de Julho, convidei Juan e tive que fazer um esforço imenso para concentrar-me e não deixar as coisas externas incomodarem tanto. O caminho foi um teste de paciência e talvez pela provação, em troca, recebi um presente maravilhoso e entrei em transe por diversas vezes durante a sessão. Tentei escolher um local que ainda não havíamos tomado, depois de alguns argumentos, meu pai acabou convencendo que a mesma prainha de Cotovelo-RN era de fato a melhor opção. Uma praia paradisíaca, pouco acessível e menos frequentada, além das falésias recheadas de vegetação em frente ao mar maravilhoso, fundido no horizonte. No caminho para o local, enquanto tentava focar meu objetivo de serenidade e estado de não pensamentos, meu pai falava muito, cantava alto e ria de coisas que não me surtiam a menor graça, ao contrário, me entediavam e distante a sensação de harmonia geral do grupo. Pior, fumava dentro do carro, embora pedisse que não, me deixando sufocada com sua ansiedade, egoísmo e fumaça fedorenta. Juan faltou o trabalho e ao telefone minuciava mentiras para justificar o descompromisso. Tudo aquilo me afetava bastante, ia contra a proposta de verdade e respeito diante o sagrado que nos entrega à beleza de maneira tão desarmada e nos faz ver o quanto somos egoístas e fracos, espiritualmente.

Meu pai estacionou um pouco afobado, fez uma breve oração, ainda sentado do banco de motorista, de forma que estávamos de costas para Juan, este logo desceu do carro envolvido na mentira que não convencia ao celular. Meu pai pegou a taça que

havia levado, perguntei por que não tomaríamos no alto da falésia, como fazíamos sempre, de frente para o deslumbre da visão abrangente do lugar, mas ele balbuciou alguma coisa a respeito da taça de vidro que deveria ficar no carro, e logo derramou uma quantidade do suco de cogu e tomou sem esperar a reunião, em seguida entregou-me a taça com a mesma quantidade e tomei, e em alguns minutos, quando Juan desligou o telefone meio desconfortável com a situação em que estava envolvido de mentiras, tomou sua parte. Apenas 1g. para cada um. Faltou coletividade, prática essencial para o aprendizado no Amor.

O cigarro, a ânsia, a mentira, o egoísmo, a falta de concentração, a necessidade fútil de preencher o ego, chamar a atenção, tudo aquilo me distanciava do estado de espírito que tentava esforçada e paciente, captar na alma. Eu estava em um caminho individualmente determinado; Juan e principalmente meu pai, estavam presos ainda no mundo físico da ilusão. Nesse momento tive que fazer um esforço imenso para não sair dali correndo, porque já tinha iniciado e não podia, de forma alguma, fugir das adversidades que são parte fundamental do aprendizado: Manter a tranquilidade. Nada é como projetamos porque do contrário não aprenderíamos a ter jogo de cintura com as diversas etapas e o controle é mais uma ilusão do ego. É preciso trilhar o caminho com sabedoria, assim haverá verdade em toda e qualquer circunstância que a vida nos propuser. Passamos pelo portão que dá acesso a trilha, na qual se chega à prainha, bastante desarmonizados. Eu hesitava em fugir para dentro da minha solidão, não queria nada que pudesse interferir minha paz e, no entanto, até então, só havia tido desencanto com as atitudes incompatíveis dos que estavam comigo. Não tinha jeito, já havia tomado, não tinha como buscar outro lugar ou voltar atrás sem causar problemas maiores. Então firmei o exercício mental do auto controle e encontrei na paciência a luz do entendimento e o aconchego da serenidade. E assim seguimos cada um na sua, até a praia que contrastava com a pressa das coisas feitas de qualquer forma, e confirmou o convite a uma viagem mais individual. A praia estava mais linda do que nunca; maré baixa, o céu límpido, extenso, o mar muito calmo, o lugar completamente deserto. Diminui o passo de forma que fiquei atrás sozinha e mais a vontade, livre de espírito. Quando vi a espetacular paisagem em que estava não pude deixar de agradecer o privilégio e sorri internamente na certeza de que o dia seria revelador e pacífico. Entendi ali que estamos exatamente aonde queremos, porque buscamos.

Não tive os incômodos iniciais, sentei-me numa sombra perto das falésias, meu pai ao longe no mar, Juan caminhou para um lugar ainda mais remoto. Cada um encontrando a si mesmo, ao menos era o que eu estava fazendo desde o inicio. Fiquei em posição de meditação, olhei de viés para me certificar que não seria interrompida e respirei calmamente com o pensamento completamente vazio e a alma leve. As nuvens se movimentavam formando desenhos. Em todo o espaço de ar eu via caleidoscópio, como uma teia imensa perfeitamente desenhada em flores de lótus, pequeninas e poderosas. Nesse momento de despretensão ou qualquer peso o transe aconteceu e sobre esse lado de lá, é impossível descrever, menos pela subjetividade inefável das revelações que pela falta de vocabulário existente nesse plano.

Como as palavras limitam a essência, me limito a não tentar descrever os transes, apenas deixo claro que estar nesse estado de consciência é como ver ruir tudo que até então havia, e abrir-se para uma nova possibilidade de ser Vida. Estive com entidades divinas, vi seres, senti a vibração do universo, verdades me foram reveladas. Ao longo dos relatos esmiuçarei sobre esses elementos sábios da simplicidade da natureza. Estive no universo espiritual de Buda, totalmente desassociado de qualquer

apego. Entregue na plenitude serena da vida. Um momento totalmente liberto do ego. Uma sensação indescritível. Meu pai vinha saindo do mar, em direção onde eu estava. Tornei a concentrar para não sofrer com a interferência. Ele puxava toda a atenção para ele, falava muito e tentava controlar uma situação naturalmente livre. Era de certa forma um desrespeito com a privacidade do outro, mas também uma fraqueza claramente revelada, atrelada ao egoísmo; a carência. Durante toda a sessão aquela condição espiritual limitava meu pai. Ele ainda não estava pronto para a entrega da alma porque a máscara das superficialidades não permite enxergar a profundeza do além-físico. Ele não podia se ver por dentro, por puro medo do desconhecido. Passamos a vida inteira nos apegando a conceitos no qual nos identificamos, afunilamos a sabedoria da fluidez e bloqueamos as novas possibilidades de pontos de vista. Tudo autoafirmação para preencher um vazio que só aumenta. O vazio das coisas sem sentido, do falar por falar, sem alma, sem amor. O vazio da vaidade, a necessidade de estar em evidência para os outros, por puro medo de estar em evidência para si. Não é preciso se mostrar quando já se é.

Havíamos comprado algumas frutas no mercado de Pium; maçã, laranja, uva... Eu estava no mar boiando e vendo a maravilhosa amplitude do céu quando me pai mais uma vez me interrompeu com o susto da sua presença abrupta, me oferecendo um pedaço de laranja. Não, não tinha necessidade alguma. Pouco tempo depois a mesma coisa aconteceu, recusei novamente. Na terceira insistência, eu estava dentro de um transe. Ouvia sua voz chamar meu nome muito longínquo. Eu estava transformada na essência, numa sensação plena de bem estar, leveza e conexão com o universo. Meu espírito, não sei explicar como encontrou-se com o espírito de uma grande amiga Cinthia, que naquele momento, se encontrava em coma induzido devido a uma crise de Lúpus em Brasília. Houve bastante contato com seres, e ao mesmo tempo estavam todos dentro de mim. O momento era de total entrega e entendimento. Mas alguém insistia em chamar meu nome. Quando enfim despertei do transe, meu pai me olhava quase com súplica, com um pedaço de laranja na mão “Shauara, aceite por favor.” Falei que estava satisfeita, realmente não queria. Ele não se acalmou, como se lhe incomodasse o meu autocontrole. Ele disse que das duas vezes anteriores que havia me oferecido a fruta e eu recusei, a laranja ficou ruim na hora. Tinha a certeza de que se eu aceitasse, ele poderia comer o resto da laranja, porque assim não ficaria ruim. Aceitei o pedaço a contra gosto pelo cansaço da insistência e mal pude mastigá-la, não que estivesse ruim, mas o meu estado de leveza não pedia a ingestão de absolutamente nada. Depois ele falou que de fato a laranja na qual aceitei um pedaço tornou-se toda doce e macia em seu paladar. Juan ficou a maior parte do tempo sozinho. Parecia compreender o silêncio e a observação. Contemplava a beleza de tudo imerso em suas revelações. Fiz uma caminhada pela areia quase beirando as falésias, na tranquilidade da não existência do tempo. De repente um barulho me fez ver o momento exato da queda de um animal. Ele me espiava de cima da falésia e caiu na base íngreme da argila. Olhei para o iguana, cumprimentei-o e pedi licença para sentar “posso ficar aqui?” perguntei duas vezes e observei seu semblante que me respondia positivamente. Sentei-me numa pedra bem de frente para ele. Era lindo, de um verde exuberante e compartilhei sobre sua beleza. Estávamos em harmonia, conversamos em silêncio de mútuo entendimento. Até que olhei para o lado e lá vinha novamente meu pai. Outro esforço para não ficar tensa pela invasão dos momentos. Ele se aproximou do bicho que se sobressaltou um pouco. Seus olhos ficaram atentos e temerosos. A mesma invasão que eu sentia era como se estivesse de dentro do mundo do iguana, vivendo a sua natureza sem perturbar ninguém e, no entanto sofria abordagem. Ficou um pouco agitado e tentava voltar para a parte superior da falésia.

Meu pai quis ajudá-la a voltar. Eu via claramente que o animal não precisava de ajuda alguma, estava na casa dele e tinha a liberdade da fluidez. Não queria ser invadido, nem forçado a nada. Meu pai não enxergava dessa forma e forçou a barra, mais uma vez, como se precisasse mostrar ao próprio ego que tinha algum poder de ajudar, quando na verdade, o animal não pedia ajuda alguma. Ele puxou o galho de cima da falésia e empurrava na cara do bicho, que virava rispidamente numa expressão tensa de desagrado. Eu me incomodava com a agressividade do mal entendido e insistia para que ele parasse e deixasse-o em paz. Ele, porém continuou. O iguana lançava seu poderoso rabo como uma chicotada de defesa. Era óbvio o incômodo desnecessário e cruel que meu pai causava nele. Sai de perto pela angústia do medo transparecido pelo belo réptil, e porque já não suportava o comportamento infantil de meu pai. Voltei orando pelo iguana, o sentimento de cumplicidade me fazia desejar fortemente que ele ficasse bem. A nossa interação havia sido significativa, embora breve. Eu o entendia, mais que isso, podia senti-lo. Sentei-me longe e voltei a concentrar a mente na leveza da respiração. Puxava o ar pelo diafragma e canalizava a paz no umbigo, que tratava de fluir leveza pelo corpo todo através do próprio ar interno. Já quase sentia a alma elevar e transcender o plano quando vinha meu pai, caminhando meio cabisbaixo em direção a mim. Sentou-se ao meu lado e disse que tinha ajudado o iguana a voltar para cima da falésia. Respondi sem entusiasmo “que bom” e tornei ao silêncio. Ele esperou que eu perguntasse algo e vendo que não me interessou detalhes, começou a falar que iguanas perdem o rabo em algumas situações e depois conseguem regenerar. Achei o papo um pouco estranho e quis saber o que ele me escondia. Acabou confessando que o iguana verde caído havia desmembrado seu rabo e pulado de volta com agilidade. Fiquei chocada e perguntei o porquê de tamanha agressão. O nível de estresse que meu pai causou no bicho o fizera chegar ao auge da tensão e por impulso de proteção soltou o rabo e pulou de volta a falésia. Quis saber prontamente “qual foi a sua ajuda?”. Ele respondeu meio envergonhado “ela conseguiu voltar”. Fiquei injuriada! Como assim? O fim foi alcançado sem importar-lhe o meio.

Imagina chegar pessoas que você não conhece em sua casa, que sequer convidou, sem importarem saber se você está disponível para recebê-las, usufruírem do seu lar, da sua comida, do seu espaço. Deixar tudo sujo, enfiar coisas na sua cara, causar pânico e terror na sua harmonia, sujar tudo e ir embora arrancando um pedaço de você, da sua paz? É a mesma ausência de noção e respeito que infelizmente meu pai havia feito sob a intenção imprudente de se julgar no direito da interferência imposta. Não podia acreditar no que aconteceu e mais uma vez trabalhei com a paciência de respirar fundo, fechar os olhos e respeitar os níveis de consciência de cada um. Voltei lá e encontrei seu rabo. Tive muita vontade de chorar e pedi desculpas com toda a força e sinceridade do meu coração para que o pedido chegasse até o belo animal, e o confortasse de alguma forma.

Caminhei até onde estava Juan, embaixo de uma pequena árvore, numa sombrinha providencial, e sentei-me ao seu lado. Comecei a sentir o início do chamado para o transe, sentei na sua frente para apoiar meu corpo e deixei que a cabeça caísse sobre seu peito. Já não era eu nem tinha força para o movimento desse mundo. A cabeça balançava de um lado ao outro, apoiada no peito dele. Eu não controlava o gesto. Via tudo em energia, de forma que a imagem da praia ficou em segundo plano, em meus olhos um véu energético meio branco, meio transparente, a sensação de deslumbre e agradecimento com aquele maravilhoso momento. Logo vertiam lágrimas sobre a face, sem esforço algum, apenas sentia molhar levemente meu rosto como uma massagem, doce de tanta infância e pureza, como um voo de encontro ao sol na mais perfeita sensação de iluminação espiritual. Foi um choro de libertação, de mudança, de

espontaneidade, de recompensa, de amor, de emoção plena, de agradecimento, de humildade, de entendimento, um encontro com o Supremo. Quando voltei do transe, vi Juan chorando muito. Era desarmado e profundo. Um choro esforçado como se tentasse acarinhar uma dor. Como se aplumasse a alma e limpasse o coração. Ali, ainda bastante emocionado me falou que chorava porque havia presenciado meu transe e viu toda a luz que me envolvia. Viu a forma mais pura que tive o privilégio de alcançar. Falou-me o quanto eu era especial e o quanto ele se sentia impuro diante minha sinceridade. Fiquei verdadeiramente suave com sua percepção sentimental das coisas puras. Feliz, porque pela primeira vez Juan estava totalmente centrado em seu aprendizado, encarando a si mesmo, enfrentando a verdade do próprio defeito quase natural humano egoísta. Ali ele me disse que na última sessão dele com os cogumelinhos, quando pensava em mim, meu rosto sempre aparecia rodeada por borboletas. Foi um momento extremamente bonito.

Voltei ao mar, para me tornar um ser marítimo de tão bem que sentia deslizando nas subjetividades da água. O mar envolvia meu corpo balançando-o de forma a fazê-lo dançar. É o máximo do desapego ao controle do corpo. Não controlava nada, nem prendia, nem movimentava, mas estava sendo conduzida, de dentro para fora, àquele ritmo que parecia mais um ritual de libertação. Novamente senti o chamado para mais um transe, olhando para dentro e além do caleidoscópio de energia no céu, vi vários rostos, entidades espirituais divinas, que surgiam e se transformavam. Numa das mudanças de faces, vi a minha própria face, lá no alto do céu, bem no centro minúsculo de uma florzinha de lótus, dentre as infinitas que cercavam todo o espaço. Era como se tivesse dentro da parte interior dos meus olhos e ao mesmo tempo vendo-os na distante direção do céu; eu energia encarando o eu corpóreo. Todas as sensações num só sentimento de plenitude. Um esvaziamento de buscas e a verdade estampada da luz gratuitamente em minha retina. Uma vibração paralela onde havia muita paz e principalmente formada de luz; nítida, infinitamente bela e necessariamente viva. O sol ainda nem se punha e meu pai que fumava muito, pedia para ir embora. Algo dentro dele mesmo o incomodava. Dava para ver claramente. Não é de qualquer forma que se prepara para uma experiência dessas. Uma planta de poder guarda em si os segredos dos homens e revelam a indescritível inteligência da natureza. Banalizar a coisa é também um ato egoísta de não respeitar as outras vidas e o não enfretamento consigo mesmo. Para desprender-se do peso é preciso reconhecer os próprios defeitos, não negá-los. Para ser puro é preciso entender-se pequeno e se dispor inteiro para o bem coletivo. Meu pai teve crises de risos nas sessões anteriores e agora ria quase com dificuldade. Seu passo não era espontâneo e as coisas que saiam de sua boca pareciam forçadas, demonstrando insegurança. É muito difícil relatar sobre essas impressões e atitudes do meu pai. Mas também não posso negar a sinceridade que firmei comigo mesma ao escrever os relatos. A proposta é viver na verdade. Sempre tivemos uma cumplicidade muito forte justamente por nos entendermos e nos reconhecermos no outro. Agora, porém, nossos entendimentos se distanciavam. Vibrações distintas. Encontrei um sentido de vida e respeito ainda mais a Natureza pela grandeza e sabedoria. De forma que entendo a importância da cautela em tomar qualquer atitude que possa desarmonizar o todo. Ele estava ansioso e inquieto, queria ir embora. A poluição da fumaça constante de seu cigarro quase me irritava. Quase, porque dentro de mim um amor imenso me fazia entender suas atitudes desastrosas. Por mais que usemos maquiagens para aparentar ou compensar a essência não deixa de revelar o estado de consciência da pessoa. É implícito para alguns e outros veem claramente. Quando não se está bem, a primeira

perda é a serenidade. A agonia e a ânsia só evidenciam uma enorme falta. Não há disfarces para a alma. Com todos os contratempos a experiência foi transcendental e maravilhosa. Firmei no meu silêncio a calma para prosseguir no aprendizado. Sinto-me cada vez mais privilegiada pelos acontecidos e a cada nível nunca mais sou a mesma. Morre sempre um pouco de mim, um pedaço apodrecido do ego. Entendi que viver no Amor é uma escolha de conviver incessantemente com a paciência.

A diversidade de cores do céu velhíssimo indiferentemente sobre-humano não emociona. O aparecimento e sumiço do solidário vento não concentra, não atrai dúvida ou cumplicidade. A formação das ondas, o perfume das rosas as transformações sábias advindas do poder de determinadas plantas mágicas em nosso espírito; o desprendimento, a percepção, o experimento, a sabedoria nada disso convence, nem desperta interesse. É bom preparar o espírito, manter calma a mente perceber o interior do corpo quando pede ajuda mas ninguém o sente.

IX (O mesmo espaço com outra vibração energética.)

“ A beleza se exprime numa língua celestial mais próxima do silêncio do que das vozes produzidas pelos lábios, uma língua que congrega todas as melodias humanas e as transforma num sentimento mudo, como o mar atrai para suas silenciosas profundezas todos os rios do

mundo”

Khalil Gibran- (Asas Partidas)

O amigo de São Paulo, idealizador do site Natureza Divina e responsável pelo cuidado e cultivo dos cogumelos sagrados, resolveu conhecer um pouco do Nordeste e trouxe seu filho Caliel para passear na cidade do sol, ficando eu a responsável por apresentá-los às belezas naturais do Estado. Passamos pelas praias de Genipabu, Ponta negra, Cotovelo, Tabatinga, Búzios, Barreta, Pirangi, Tibau do Sul e finalmente Pipa, onde vivenciamos a primeira experiência com o cogumelo juntos; e o inusitado fato de ambos ter espiado o “lado de lá”, o mesmo espaço com outra vibração energética, no qual chamamos morte. Antes quero ressaltar a importância de Rogério em todo o processo de aprendizado pela maravilhosa dedicação empregada aos sagradinhos, depois minha admiração ainda mais se intensificou com sua bondade de espírito e de imediato, já nos tornamos grandes amigos. Em sua estadia na minha cidade de uma semana, convivendo e viajando pelas praias daqui, conversamos sobre um universo de coisas, literalmente, porque sua carga de experiências e informações é absurdamente maior que qualquer apreciador e pesquisador de plantas enteógenas. De forma que amadureci muito e creio tê-lo feito o mesmo também.

Já estávamos há dois dias na praia de Pipa. Um lugar enérgico, rodeado de pessoas bonitas. Turístico e extremamente rústico. Fazia quatro dias que os dois aterrissaram em Natal e ainda não tínhamos tido oportunidade de tomar o cogu, essencialmente por causa do seu amado filho, que ainda com cinco anos exige cuidado e atenção total. Nesta tarde de sexta, Rogério intencionou a possibilidade e achei que não teria problema algum tomarmos um graminha e sem muitas combinações descemos no restaurante Garagem, compramos um suco de maracujá, pedimos dois copos descartáveis, dividimos e seguimos caminhando em direção a praia baía dos golfinhos, a vinte minutos dali. Toda a praia de Pipa é composta por falésias imensas, indo de uma ponta a outra. Aglomerações de pedras ao longo do caminho e pocinhas naturais formadas na maré baixa. Ao chegarmos procurei logo sentar porque o efeito em mim já borbulhava internamente, uma agitação vinda do estômago, falei que ali tinha muita gente, na verdade estava sentindo a energia de todas as pessoas que se espalhavam pelo espaço, curtindo ainda os últimos minutos de sol. Fiquei sentada, quietinha, tentando concentrar na respiração e posteriormente em transe, um estado maravilhoso onde estive dentro do campo energético da praia, porque posso ver além da material e física paisagem, indescritivelmente energia, muito bem desenhada e totalmente harmoniosa. Permaneci assim por umas duas horas e focarei aqui, apenas os aprendizados e as claras perspectivas que o universo me mostrou. Achava a vida um martírio. Transcender me levou a ver que não posso estar harmonizada negando minha condição atual de corpo. Passei anos com a certeza de que o ‘estado de vida’ é carregar um corpo feito peso, uma penitência, o pagamento dos

pecados intrínsecos na raça; mas não nos distinguimos, somos na verdade energia. É um estado que precisamos passar e assim sendo é covardia e fraqueza se opor à nossa natureza humana; primeiro porque sentir-se superior por ter acesso à ‘verdade’ foge do próprio princípio da verdade, que é o Amor. Segundo porque estamos negando a nós mesmos já que somos neste instante, condição de pessoa. Terceiro porque se é real a incumbência precisamos cumprir alguma missão. Descobrir qual é consiste no aperfeiçoamento do dom, da percepção e da sensibilidade.

Antes preocupava apenas com a saúde da mente; em buscar através dela a paz interior, mas o corpo é objeto indissociável, já que em seu interior reside a essência divina. Estava duelando dentro de mim, apontando culpa aos homens que fizeram guerras, quando na verdade, faço parte porque sou também “homem”. Não é preciso julgar nem sentir remorso ou culpa. Essa é a limitação que precisamos vencer; as máscaras desnecessárias criadas pelo perigosíssimo ego. É preciso caminhar tranquilo e sincero, aproveitar as belezas da vida, o brilho e a alegria sabendo que não há prazer sem dor, pois eles comungam juntos na estrada do eterno instante, que consiste no aproveitamento do meio, sem necessariamente qualquer ânsia para alcançar o fim, porque não há fim. Agora entendo que corpo é necessariamente parte do caminho, um instrumento, mas também parte dentro do funcionamento cíclico e naturalmente reciclável através da terra. O sol finalmente se pôs e a noite reinava absoluta e estampada. Rogério brincava com o filho e eu presenciava o esvaziamento total daquela praia, a pouco tão habitada. Era realmente deslumbrante a beleza do lugar, tanto que não cabe em palavras, pois transbordaria. Em alguns poucos momentos trocamos palavras, certificando-nos mutuamente se estávamos bem. Na maior escala de momentos estive totalmente voltada para dentro de mim, expandida na unidade do universo através da consciência e da nova etapa de visão e percepção que o cogumelo, graciosamente, me ofertava.

Aqui, a difícil missão de organizar o pensamento e discorrer sobre cada partícula de denominações antes tão sólidas, caídas por terra. A humanidade em toda sua correria anda de costas para a luz da verdade, no mundo enclausurado da caverna de Platão. Olhar para a luz é uma questão de coragem, ainda mais de preparo físico, psíquico, espiritual. Um processo de aprendizado e verdadeira qualidade e conexão de vida. A maioria foge (de si) da serena luz existente em cada um, não pode se encarar porque está acostumado com a mentira confortável social, física. A verdade é ainda mais confortável, mas como saber se o medo do desconhecido torna desespero, apatia e fuga? A humanidade caminha oposta à verdade porque foi coagida, desde o nascimento, por uma força negativa poderosa a ficar preso aonde não importa, sem visão, sem as respostas que estão tão visíveis, mas não se pode ver com olhos vendados.

Alguns privilegiados conseguem espiar, viver a verdade, isso é; nadar contra a corrente da multidão, que robotizada, é programada a não enxergar perspectivas. Essas raras pessoas se preparam, se esvaziam e se encontram. Uma minoria ainda mais estreita alcançou a iluminação espiritual; como Jesus, Gandhi, Buda. A compensação do prazer é diretamente proporcional à dor, por isso sofreram e gozaram na clareza da verdade para a libertação do ego e, entendendo a vida, compartilhando a libertação vivendo o amor.

O ser humano busca preencher um vazio em vez de esvaziar o lixo e deixar fluir. Demoramos a entender que não há possibilidades de controlar nada, ainda menos de impor vontades ao mundo. Gera frustração, ansiedade, sofrimento. As pessoas que julgam precisam preencher o ócio com qualquer tolice. O eterno instante é o agora. É a vida. O processo pautado na incerteza; o medo do desconhecido é a causa da incerteza. Quando se elimina o medo, a tranquilidade se apodera e o resto flui. Enquanto se

comete atitudes egoístas sem perceber é por fraqueza de percepção. E quando se toma consciência disso e se mantém no mesmo falso escudo, é fraqueza de amor próprio.

É tão fácil ler isso nas pessoas! Arrogância ou ingenuidade julgarmo-nos superiores aos animais, às plantas, ao vento? Deveríamos ser todos uma única sintonia porque somos parte do todo. Mas nós falamos, julgamos controlar, denominamos, limitamos. Nós acumulamos e desejamos. Nós nos apegamos e inflamos o ego, deixando-o maior inclusive que nós. Somos vítimas da massificação contaminada pelas regras rígidas e controladoras que oprimem e limitam a consciência por ser claramente, a melhor forma de escravizar (o eterno jogo do domínio). Sim, é lamentável o julgar, porque navegamos no mesmo mar. É preciso romper com as imposições e expandir a mente para conexão com o cosmo. O inteiro, a mãe pulsante que abriga todos os mundos. E todos os mundos a compõem.

Como somos fracos! Como somos previsíveis! Como somos bobos! As montanhas, as areias, as nuvens, os ventos, os mares, os bichos, as águas não precisam falar para se entenderem, vivem em sintonia porque não possuem ego. Quanto mais falamos menos entendemos. É preciso o ócio para obter esclarecimento. É preciso pensar no outro para cuidar de si. A felicidade não é uma utopia, ela está no compartilhar dos momentos. Na esmola existe o ego-doador e o pedinte comiserado. Não há harmonia, nem verdade na intenção. O amor é preciso compartilhar, não o dinheiro.

O dinheiro é quem talvez esteja no ponto mais distante da verdade. É também a causa das maiores barbáries da história humana. Guerras, a grande prova de nossa ignorância. O dinheiro também é uma criação do ego. A busca por ele torna assaltante e assaltado numa mesma adrenalina de negatividades. Não perdemos nada porque nada possuímos. Possuir é uma ilusão que nos faz miseráveis escravos do próprio ego.

Aliás, ego é o grande vilão e fonte de todas as limitações e sentimentos negativos que nós criamos e damos vida em nós. O demônio que sopra aos nossos ouvidos o tempo todo. Dele provém a raiz maléfica das sensações ilusórias e consequentemente, distantes da verdade. Oposto à serenidade e leveza; o orgulho, a vaidade, a insegurança, o pânico, a traição, a mentira, o medo, o egoísmo, a intolerância, a arrogância, o julgamento, a violência, a carência, tudo isso provém do ego. O apego, a superficialidade do consumo, a inveja, a raiva, a decepção, a vingança, tudo é ele quem controla dentro de um escudo individualmente iludido.

A sociedade controla. A televisão domina. A religião escraviza. Somos obrigados a seguir suas regras e conceitos, quando na verdade nascemos livres e cada consciência é um ponto de partida, e é também um mundo em constante interação. Um mundo (geralmente) não compreendido, caso não seja conivente com as leis dos homens. Sofri para entender que ser sincero e liberto das máscaras sociais é subversivo demais ao mundo, portanto mais cômodo marginalizar a originalidade e denominá-la de loucura.

Rogério me abraçou e agradeceu o momento, falei que não tinha o que agradecer já que compartilhávamos da mesma magia, mais um presente maravilhoso do universo. O efeito em mim estava realmente forte, como nunca antes. Depois li no livro Tibetano dos Mortos, que ao tomar cogumelo novamente, continua a “viagem transcendental” de onde parou, não importando tanto a quantidade (só tomamos um grama cada um!), e assim sucessivamente. Parece que na minha retina havia um véu meio branco, meio transparente onde absolutamente qualquer ângulo em que olhasse, sobrepunha a tudo, de forma que a “visão” para coisas físicas- digamos assim- estava comprometida. Aquele paredão de energia tinha uma forma totalmente harmonizada, e umas faixas de luz resplandecente, viva, reinando como uma manifestação divina.

Passados umas duas horas, já bastante escuro, Rogério chamou para irmos voltando à pousada, o filho precisava jantar. Olhei mais uma vez as falésias gigantes, onde mil rostos se espalhavam nas suas peculiares expressões. Algumas pessoas lá longe (atrás do véu esfumaçado de minha retina) caminhavam em direção a nós. Eu me esforçava para ver, mas o véu cobria tudo de energia. Apenas via umas manchas pretas que pareciam correr em efeito “câmera acelerada”. Achei engraçado e ainda vi quando o grupo entrou no mato da falésia em um caminho, muito provavelmente, oculto. Quando saímos da ilhota, voltando pela praia, o véu nos meus olhos foi diminuindo e a conformada e curiosa sensação de conhecer “o lado de lá” se apoderou em mim, depois fiquei sabendo que ele teve a mesma nítida experiência de morte.

Voltamos quase em silêncio e totalmente contemplativos. Rogério trazia o filho no ombro, e os dois conversavam intimamente. Paramos num determinado ponto para descansar, deitei na areia gélida da noite. Todo o universo desnudo e fundido à minha consciência, naquele momento, completamente esclarecida. Quando chegamos à entrada de estrada para subir até o centro de Pipa, um restaurante a beira-mar tornava tudo ainda mais surreal: era absurdamente preenchido de luzes coloridas e de variados tipos. Havia muitas pessoas se divertindo e uma música agradavelmente dançante. Admiramos por alguns instantes e seguimos até a pousada. O contato mais concreto da cidade diminuiu o efeito, porque perde um pouco o sentido de natureza. E as coisas construídas são percebidas como artificialidades.

De volta a pousada, lugar harmoniosamente arborizado e lindo, tomei um delicioso banho quente, escolhi uma boa roupa e me sentia plenamente feliz. Rogério se preparava com o filho e resolvi sentar na grama, embaixo de uma árvore antiquíssima de tronco muito largo, para desfrutar daquela paz. Os pensamentos dançavam na minha mente e o corpo reagia da melhor forma possível, era visível a positividade no semblante, no gesto suave, na voz amorosamente macia. Alguns ensinamentos ficam esquecidos quando o efeito do fungo passa, justamente para que sejam trabalhadas no silêncio, paciência e força de vontade. Mas ali sozinha entendi que o maior ensinamento é viver com concentração e passar pelas adversidades sem reclamar, culpar ou enraivecer. Absolutamente tudo tem um sentido de ser, alcançar esse entendimento torna a vida mais leve e melhor se compartilha a paz.

Depois fomos jantar sushi e logo voltamos para descansar. Quando chegamos ao quarto havia duas crianças, netos dos donos da pousada, que rápido se entrosaram com Caliel. Era muito bonito ver os três brincando. Rogério estava serenamente satisfeito, feliz com a alegria do filho. Eu deitei na rede e fiquei lendo Drummond. Tudo estava na mais perfeita harmonia.

A noite intensificou o cansaço pelo dia de sol e brincadeiras, e o pequeno Caliel adormeceu. Eu e Rogério fizemos um cappuccino e fomos fumar na cadeira da piscina onde conversamos longamente sobre diversos assuntos, especialmente, a experiência do dia e as nossas visões e aprendizados. Estávamos extremamente agradecidos pela companhia um do outro e pelo imenso privilégio da vida. Chegamos à conclusão que o compartilhar é mesmo onde a felicidade se concretiza. Dessa forma a missão de expandir a consciência no amor era nossa. Ele no delicado trabalho de cultivo, investimento e consequente disposição às pessoas que buscam, mesmo sem dar-se conta, o sentido de tudo. Eu com o dom da poesia, contava com a ferramenta da escrita para documentar os encontros divinos, de forma a atingir os leitores com o esclarecimento que obtive através da observação contínua, e claro, em ambos os casos, a essência de amar ao próximo no magnífico caminho das transformações.

X- (Pouco deslumbre pela intimidade com a sensação.)

“ Se as portas da percepção se desvelassem, cada coisa aparecia ao homem como é, infinita. Pois o homem se enclausurou a tal ponto que apenas consegue enxergar através das estreitas

frestas de sua gruta”

O casamento do céu e do inferno e outros escritos- William Blake.

Fazia mais de um mês que havia tomado a última vez com Rogério em Pipa. Desde então havia me preparado permanentemente para reconhecer a luz interior, o caminho do autoconhecimento e a leveza de espírito. Foi um processo de vida nova, menos alimentos agressivos e uma rigorosa atenção aos perigos do meu ego: Uma vez conectada com a rede harmoniosa da nossa verdadeira essência, vi claramente o quanto o ego nos distancia dela. O ego nos faz criar ilusões nas quais a própria vítima ensimesmada é cega. De forma que sentir medo, raiva, ciúmes, desejos e tantos outros sentimentos presentemente vividos se instalam dentro de nós e vai adoecendo o corpo e a alma. Percebê-lo assim, como não fazendo parte de mim, evito chagas internas (que também exteriorizam no corpo) e me mantenho melhor em autocontrole. Essa adaptação lenta e trabalhosa, mas também muito interessante, é compensada pelo estado em que todas as pessoas procuram: A paz. A serenidade. O amor. A vida plena. A essência. A verdadeira felicidade!

Eu já vinha na constante do fluxo para a espontaneidade guiar até a oportunidade, também havia recebido (no olfato) um convite: o cheiro forte de cogumelo, uma semana antes, quando fazia um suco de maracujá na casa do amigo Teo. O dia seguinte do meu vigésimo sétimo aniversário era um domingo, e Teo me ligou sugerindo uma praia. Ele nunca havia tomado mas há algum tempo mostrava interesse em provar. Eram quase duas da tarde e fiquei empolgadíssima com a ideia de tomarmos naquele dia, tudo conspirava bem. Chamei Juan e fomos os três.

Na semana antecedente muito confabulamos a respeito da saudade e até certa necessidade de tomar novamente. Tainah, Gil e Kaki pareciam especialmente interessadas. Durante as conversas me limitava em dizer que estávamos munidas, mas não podia ficar sempre sozinha na organização do dia, trabalhava individualmente pensando no coletivo e assim disponibilizei a oportunidade, bastava que propusessem o dia para a participação. Quando confirmei com Teo o dia parecia perfeito para todos. Falei para minha irmã Tainah sobre a praia, tão entusiasmada e feliz, e ela nem pareceu sobressaltar-se ao convite, ao contrário, me olhou meio entediada e deixou escapar um leve desinteresse por meio de uma desculpa qualquer. Liguei para Olavo que prontamente negou a mínima pretensão de provar. Falei com Gil, parecia contagiada pelo mesmo marasmo de preguiça, falou que estava lendo e desejou que tivéssemos uma boa “trip”. Kaki sequer atendeu ao meu primeiro telefonema e uma hora depois, quando enfim atendeu, com a voz ainda mais embargada de indiferença, falou simplesmente que iria dormir e não deixou nenhuma abertura para insistências, também não estava disposta a fazer isso já que a reação em cadeia me pareceu que a facilidade do acesso ao cogu causou, consequentemente, uma desvalorização a até banalização do ritual. A princípio fiquei um pouco desapontada com o desânimo das três, anteriormente tão interessadas, mas logo entendi que tudo acontece com algum propósito. A

consequência da escolha delas foi deixar de participar de um momento eterno, no qual eu, Juan e Teo desfrutamos, fantasticamente.

Teo parou o carro na feirinha de Pium-RN e compramos algumas frutas (laranja crava, uva roxa, banana...) e tomamos água de coco para substituir o almoço. Mais a diante estacionamos em Cotovelo, e em cima da falésia, onde a vista contempla uma exuberância de estremecer a emoção, coloquei dois gramas de cogumelo triturado para cada um com água mineral; brindamos, fiz uma breve oração de agradecimento e tomamos. Seguimos a mesma trilha até a prainha, lugar já adotado para os encontros pela beleza e privacidade.

Havia alguns pequenos grupos de pessoas, todos em descontraída harmonia. Despejamos nossas bolsas sobre a canga. Fazia dias que ansiava pelo encontro sagrado com o mar, logo entrei nele. Não sei quanto tempo fiquei brincando, boiando, em estado de não preocupação, já que não existe problema algum na vida. Nessa libertação de parâmetros sociais ou qualquer outra tolice, o entendimento se faz claro e todas as incessantes perguntas do mundo são respondidas de forma surpreendentemente lógica, daí se conhece a mais completa lucidez, tão simples e dentro, ao mesmo passo que torna ‘inacessível’ a maioria (cega, adoecida e encarcerada), porque a verdade é desvestida de conceito, filosofia ou moral, de preconceito, restrição ou julgamento. Essa lucidez é tão forte que o espaço, tempo, vida e morte tornam uma só essência, cíclica, magnífica e absolutamente esclarecedora!

Depois de longos instantes (conversas internas e externas com o céu, um bilhão de aspectos indizíveis) sai do mar e me deitei na areia. Sentia toda a vibração vital e fluxo do sangue na mesma extrema velocidade em que tremia meu corpo. Na região do estômago uma força centrava poderes umbilicais de estar ligada diretamente no todo. Eu ria, me deliciava com a sensação de me ser por tão completo, que era como uma aparição de ausências, ou quem sabe, um conjunto de deuses que tomavam propriedade do meu corpo e mente. Começava a possessão e eu me entregava totalmente sem medo ou apego. Concentrei ao máximo, respirei brandamente pelo diafragma, juntei minhas mãos e não tardou a acontecer o transe. Lá estava em minha retina a rede caleidoscópica em forma de flores e energia. Eu entrava nas formas e luzes facilmente, é o estado da meditação atingida sem qualquer técnica. Teo ao meu lado, deitado na areia com as pernas cruzadas em lótus, tinha um aspecto brando e ainda mais bonito. Algumas pessoas passavam, podia sentir que me olhavam curiosas ou julgadoras, mas eu apenas ria com amor, elas não faziam ideia do quanto eu as amava, estava livre e não me preocupei em momento algum com a exposição da minha felicidade.

Juan esteve a maior parte do tempo sentado na canga, sozinho. Fui caminhar com Teo em busca da subida da falésia, aonde geralmente vou me encontrar com o silêncio. Algumas pessoas se divertiam em família, e dois casais em lugares distintos se enamoravam. Chegando ao local conferi que não havia mais como subir. A transformação e erosão natural deixou um muro alto de terra no inicio da falésia, de forma que impossibilitou a subida. Sentamo-nos perto dali, tinha uma irresistível vontade infantil de pular, dançar, correr pela areia. Abracei a falésia longamente, passei sua argila no corpo e rosto, ria demasiadamente com Teo, justamente porque ele ria de mim. Dizia que eu era engraçada e concluía: “você está certa, seja feliz!”. Meu sorriso não cessava, meu passo não controlava, corria ciranda pela praia, numa felicidade ingênua de ser a dona do mar.

O sol já ia se despedindo e fomos à busca dos últimos raios. Estranhava meu andar que agora não coordenava mais. Desde que senti o tremor imenso pelo corpo deixei a possessão acontecer sem qualquer sentimento de apego, vergonha ou medo. Simplesmente aceitei privilegiada. Agora algo estava em mim e as pernas começavam a

andar em curvas curtas, depois de outras maneiras atipicamente humanas e engraçadíssimas. Não saberia fazer de novo se assim o quisesse. Porque repito, ali não era apenas eu. A consciência era minha, o corpo também. Mas o espírito tinha se elevado a um ponto transcendente de poderes. Toda a ancestralidade da vida humana pulsava de forma quase aterradora, mas não havia angústia, apenas uma forte sensação de que o tempo não existindo torna “passado” vivido ali, no instante eterno.

Fui tirar a argila do corpo e me sentia leve e plena. Antes pedi permissão ao mar e entrei cuidadosamente humilde. A pele incrivelmente mais macia. A água embalando meu corpo a dançar. Boiei por um longo momento e a imensidão do céu se apresentou a mim com a única paisagem existente no tempo-espaço. Um belo pássaro passou voando lentamente, em cima dos meus olhos vidrados, com os detalhes que conseguia ver da sua composição. Juan entrou seguindo para o fundo do mar, quis ir com ele mas a água me impedia, me empurrava para o raso, enquanto levava-o ao oposto. Assim fomos distanciados pelo mar, mas ríamos daquilo porque era no mínimo diferente, sermos comandados e guiados pela vontade das ondas.

A noite foi acontecendo suave e o último grupo de jovem saia em harmonia. Não conseguia parar de andar. Ria muito porque era hilário não ter o comando natural do próprio corpo. Andava em círculos, passava pelos meninos e dizia “olha! Não sou eu que tô fazendo isso!”. Eles não se impressionaram comigo, entendíamos o outro. Estavam deslumbrados em suas descobertas; é maravilhoso saber que a vida é um milagre inexplicável e infinito.

A noite sem lua declarava a infinidade de suas estrelas. Algumas pulavam, outras dançavam e até piscavam para mim. Ancestralidade, tempo, morte, vida, tudo isso era eu. Estava radiante embora serena. Nada me deslumbrava tanto com nas sessões anteriores, porque já me sentia íntima daquela sensação. Estava bastante escuro e resolvi trocar o biquíni por uma roupa seca que havia levado, embora não sentisse frio ou necessidade alguma. Teo estava do lado esquerdo da praia e eu só conseguia ver sua sombra longe, Juan estava do lado oposto. Então tirei o biquíni, me senti tão bem que resolvi andar um pouco nua pela praia. A sensação de pureza, liberdade, privacidade e naturalidade me deslizavam sobre os próprios passos a uma terna existência de céu e me privava de qualquer malícia ou julgamento alheio, pois não havia qualquer suposição de maldade ou comprometimento do juízo ou qualquer coisa que valha. Simplesmente transcorria como uma pluma pelo paraíso, um lugar onde não habita regras ou conceitos, nem ilusões ou criações humanas. Fui em direção a Juan, que estava sereníssimo tocando os pés no rasinho do mar. Abracei-o e ele sequer me percebeu nua, tão puro era o sentimento de tudo.

Teo se sentia feliz e queria esperar o sol nascer. Falou que as pessoas tinham que procurar “aquilo ali, a conexão” e eu argumentei que não devíamos procurar nada, apenas Ser, porque a procura é na verdade uma fuga do que já está ali. Juntamos nossas coisas e Juan comentou sobre o lixo excessivo que produzimos e a quantidade de coisas que carregamos numa inútil mania de acúmulos e a ilusão de estarmos preparados para o que vier. O cogumelo deixa claro que não precisamos nos preparar para algo que criamos, ou supomos. Não controlamos, não necessitamos acúmulos. Tudo é provido sem que percebamos, mas pelo medo da falta acabamos por “inchar” com coisas descartáveis. E coisas são só coisas.

A juventude expandia de nós uma magia, uma alegria sem fim. Voltamos por uma trilha diferente da que viemos e em algum ponto não havia como seguir. Estávamos em clima de festa e não nos abalamos com isso, na verdade qualquer obstáculo era também um divertimento. Então fizemos uma pequena escalada, nos

ajudando e conseguimos voltar ao local de partida, o alto da falésia onde fizemos o brinde.

Sentamos para contemplar ainda o visual, conversar sobre o aprendizado individual e concretizar a eternização daquele sentimento divino que tomava a todos. Teo falou sobre a beleza de Juan. Os semblantes desarmados, destituídos de qualquer problema. Juan comentou maravilhado que andou no mar, imediatamente os lembrei de quando eu e Kaki flutuávamos em baixo da água do mar (estávamos bastante longe da costa), como se um bloco se solidificasse sobre nossos pés, e não tínhamos que fazer qualquer esforço para nos manter no fundo (ler relato VII). Agora era Juan que vivenciava aquele milagre. Teo se lembrou das pessoas que amava e desejou que conhecessem aquela luz. Falou ainda dos acontecimentos que são e estão (a degradação humana) incluindo as guerras, dores e doenças fazem parte de um aprendizado, de uma totalidade.

Foi no contexto de totalidade Universal, onde somos igualmente importantes, que voltamos para casa numa harmonia descomunal. Teo dirigia e a música do carro nos fazia cantar em coro e dançar. Viemos conversando sobre as impressões de cada um. Paramos na casa de Teo e um a um, tomamos um banho delicioso. A água é mística, magicamente viva! Depois cada um retornou às suas casas para uma noite tranquila de sono. E a certeza divina de quão privilegiados somos pela experiência divina.

XI (Pequenas experiências e algumas ressalvas acerca delas.) “ Podemos acumular informações sobre experiências, mas nunca as próprias experiências. Da

família à nação, cada grupo humano é uma sociedade de universo insulares.”

Aldous Huxley- (As portas da percepção). O tempo foi passando e mudei completamente minha alimentação e também

hábitos. Comecei a evitar comidas industrializadas, aboli definitivamente os refrigerantes, tenho amenizado o açúcar. Passei a achar o álcool extremamente desinteressante, sujo, patético. Tornei-me mais branda, mais centrada, mais feliz. Ficou claro a banalidade de tudo que até então vivia, almejava e procurava. O mundo no sentido social visto por cada um, formando uma teia de ilusões, obrigações e mentiras. O cogumelo foi meu divisor de águas, primeiro passo para uma evolução espiritual, vivência divina em constante estado de resignação ao aprendizado.

Vivi outros contatos (não relatados anteriormente) com o cogumelo. Foram doses menores, situações mais discretas e circunstanciais. Chega-se a um ponto em que não há muito que dizer, principalmente pela subjetividade das sensações. O cogumelo não se mostrou em todos os encontros, houve ocasiões em que ele se ocultou de alguém ou todos. Houve também as desconexões, as banalizações e transes incríveis. Apenas uma vez tomei o cogu à noite, numa acampamento em Zumbi/RN, junto com os amigos Kaki, Teo, Gil e Juan; havia uma fogueira e estive profundamente internalizada (incorporada) em mais um transe de maravilhas, onde todos testemunharam.

Tomei novamente com Berna. Convidamos o amigo em comum Pablo Eleutério. Não foi uma experiência incrível por alguns motivos; fomos à praia de Ponta Negra (a mesma do relato infernal), Pablo havia combinado com a namorada sem nos avisar. Quando chegamos, ela nos esperava tomando uma cerveja e fumando cigarro. Não tinha nenhuma experiência com enteógenos, portanto a entrega não pôde ser intensa, para ninguém aliás. O álcool é um bloqueio, uma inquietude totalmente avessa à serenidade de encontrar a si, uma fuga. Enquanto caminhávamos os quatro em direção a um local mais deserto da praia, tive que fazer um controle forte de pensamento para não me deixar levar pelo desconforto da situação. Fui imprudente com a preparação do espaço e do grupo, e me arrependi de estar ali. Mas já não havia o que fazer e tentei esquecer a banalização diante a importância do encontro com os sagradinhos. Berna era meu cúmplice de pensamento, ele entendia tudo o que se passava e me confortava sem dizer palavra. Ficamos ainda mais unidos. Os outros dois pareciam indiferentes a tudo. Paramos num local distante, sentamos, formulei algumas informações e tomamos. O efeito foi mais evidente em mim. Fiquei andando pela praia escura sem controlar meus passos e movimentos. Ria muito da estranheza de ser comandada por uma força interna, brincalhona, engraçadíssima. Berna e Pablo sentiram um bem estar, mas nada muito além. A menina foi embora pouco tempo depois.

No segundo dia que Rogério chegou a Natal, fomos até a prainha de Cotovelo encontrar com meu pai, sua companheira Jábene, minha irmã e sobrinha, entre outras pessoas. Meu pai tinha preparado uma quantidade razoável para todos, tomei apenas uma pequena dose e o efeito foi muito suave. Vi um casal de aves do paraíso. Outra ocasião menos significante, tomamos meia grama cada um; eu, o amigo Olavo, sua companheira (a já conhecida dos relatos, Gil) e kaki. O efeito bateu mais em Gil, que

concentrada, teve os primeiros movimentos incorporados de ‘florzinha’. Mas também tudo muito discreto, quase imperceptível.

Tivemos mais duas ocasiões na prainha de Cotovelo; eu, Tainah, o amigo Nhauan, Juan, e a companhia de minha linda sobrinha Anauá. Muita suavidade desse encontro, mas nada de tão extraordinário. E por fim, no mesmo lugar, levei um grama para cada um – Eu, Tainah, seu (ex) namorado Girlian e meu grande amigo Wagner. O efeito não bateu em ninguém. Os homens estavam inseguros e temerosos. Girlian estava até nervoso, nunca havia tido experiência com nenhum enteógeno, enquanto Wagner teve uma experiência com o cogumelo não muito agradável, há alguns anos, quando tomou e foi a um show de reggae. Talvez o medo deles tenha bloqueado o efeito a todos, porém tivemos um dia muito agradável, realmente harmonioso. Em algum momento fomos os quatro para o local mais plano e distante da prainha, ficamos sentados meditando e depois fizemos yoga. Foi maravilhoso!

Também tive experiências bastando a concentração e quietude. Projeções astrais e meditações espontâneas sem ter ingerido qualquer substância. Numa delas vi Shiva (um dos deuses supremos do hinduísmo). Em outra meditação noturna vi o ‘terceiro olho’, luzes dançantes e a incrível sensação de flutuar numa vibração completamente espiritual, sem identidade ou denominações conhecidas. Em todos os casos estava com o espírito e corpo leves, a mente ainda mais tranquila, resignada. Tenho visto vultos de luz, tido estalos de sabedoria e necessidade da solidão e silêncio.

Conheci a alimentação prânica (alimentar-se da energia vital ou prana) num interessante e breve tempo de limpeza espiritual e corporal. Fiquei três dias sem comer e sem beber nada, e ao fim do 3° dia não conseguia dormir, estava com uma sede quase mortal e tomei um copo de suco de limão sem açúcar. A decadente tentativa foi devido ao ambiente familiar e social (por seus naturais conflitos), pois para viver uma experiência desse tipo é preciso toda a harmonia de um lugar silencioso, em contato direto com a natureza.

Aprofundei-me no yoga (Yoga vem do sânscrito e é originária da raiz verbal "yuj", que significa unir, integrar e totalizar. Tem como objetivo principal despertar a sensação de êxtase -bem-estar- por meio da integração do ser através de técnicas de respiração -Pranayama- posturas e movimentos físicos –asanas-, além da meditação) como uma forma de viver mais consciente de meu corpo e mente, passei a praticar diariamente.

Tomei lisérgicos (LSD, composto cristalino, que ocorre naturalmente como resultado das reações metabólicas do fungo Claviceps purpurea) e em todas as ocasiões era como se estivesse ingerido o cogumelo, pela semelhança das sensações e a forte verdade de continuar o processo de encantamentos e aprendizado. Vou relatar no próximo capítulo apenas superficialmente algumas curiosidades das diversas ocasiões com o LSD.

XII- (Lisérgico- Outra substância e o mesmo contínuo plano espiritual)

"“Certamente depois de experimentar com LSD minha vida mudou, eu abri meus olhos, eu tenho imensa calma e paz, relances de consciência realmente inimagináveis para a consciência comum, eu sofro de uma lucidez como alguém que tenha tentado sabe, o que eu faço bem na

vida É uma das coisas que eu encorajo o meu dia, ter o conhecimento do Outro Transcendente e tenho certeza insensato, estranhamente sã o suficiente para dizer que eu amo ser louco; louco, olhando para as nuvens, andando, rindo, apenas louco para o mesmo ato de "fazer" que é em si uma delícia profunda. Nestes modos maravilhosos não tenho dúvida de que podemos criar uma nova humanidade, um verdadeiro despertar e que não é muito difícil, você só precisa de amor, o amor infinito que todos os seres são dotados pela graça Ele. O LSD me deu a sensibilidade a me aceitar como eu sou e melhorar, melhorar, melhorar, com o imenso prazer que é estar aqui na

paz celestial" Albert Holfmann

A primeira vez em que tomei o doce (obtido a partir do ácido lisérgico, que se

encontra na ferrugem das gramíneas – um fungo que se desenvolve no centeio e outros grãos) ainda não conhecia o cogu. Foi no carnaval de 2012 numa granja absolutamente linda e tranquila, eu e apenas quatro pessoas. Tomamos o lisérgico e em pouco tempo me sentia muito estranha, enquanto todos pareciam indiferentes a qualquer mudança, tive uma reação inquietante inicial, não sabia o que estava acontecendo, mas não me sentia bem e fui sentar embaixo de uma árvore bonita e frondosa. Tentei concentrar, respirei lentamente e melhorei. Depois tudo fluiu muito belamente. O grupo fazia churrasco, conversa e fumava erva. Eu não sentia vontade de nada daquilo. Peguei minha máquina fotográfica e passei o dia inteiro me divertindo com a interação daquele espaço mágico, cheio de vida. Foi uma parceria com a arte da fotografia, captar toda a beleza do lugar era simplesmente magnífico.

O espaço ajudou muito, parecia que tinha saído de um conto de fadas, a granja era imensa e perfeitamente arborizada. Raramente entrei na casa para ir ao banheiro ou tomar água, em algum desses momentos passei em frente a um espelho e parei. Meu rosto não tinha mais a pele externa, conseguia ver o que havia dentro, por debaixo da pele. Era um pouco assustador, porém tão natural que não contive o riso. Não sentia fome, não queria comer, embora o pessoal insistisse. Tentei interagir com o grupo que conversava animadamente. Olhei para o prato de arroz com pedaços de carne em cima da mesa e simplesmente a comida se mexia como se fossem larvas. Achei engraçado e permaneci sem comer, não sentia fome alguma. Apenas ingeri algumas frutas colhidas ali, das saudáveis árvores do lugar. O dia foi lindo, mas o surpreendente estava por vir. No início da noite tive o melhor presente. Deitei na grama e fiquei admirando o céu. Num estalar de dedos o céu e eu estreitamos distância e pude ver toda a movimentação que acontece sem que percebamos a olho nu! Uma harmonia incrível de luzes, as estrelas se movem em conjunto. Satélites, cometas, planetas, poeiras, não sei distinguir cada um desses, mas nada foi mais incrível que assistir a esse espetáculo celestial com tanta proximidade.

Alguns meses depois desse carnaval, conheci o cogumelo. Viajei por espaços inimagináveis e indescritíveis, relatei neste livro com a sincera tentativa de verbalizar as experiências. Depois tive oportunidades de tomar o LSD novamente e o efeito era praticamente igual ao sagradinho. Para mim era como se estivesse tomado o fungo, como uma continuação de aprendizado. Tomei o doce na prainha (a mesma dos

sagradinhos) com um amigo e fiquei mais de quatro horas ininterruptas no mar, dançando, boiando, vivendo. Visões de fractais, esclarecimentos acerca de tudo, leveza.

No réveillon de 2013 para 2014 acampei com mais três pessoas na Lagoa Encantada/PB. Dividi uma quantidade pequena com apenas um dos companheiros e o efeito foi bem mais forte em mim. Não conseguia sair da lagoa. Meu corpo dava espasmos espontâneos, sentia um prazer infinito na alma, no corpo, no todo. Eram múltiplos orgasmos que duraram horas, as expressões do meu rosto confirmavam isso. A tarde pratiquei o yoga à beira da lagoa e foi formidável A noite ficamos todos observando o céu. No lugar não havia intervenção de luz artificial, fato que evidenciou a sublime e inacreditável beleza das estrelas.

No último dia do ano de 2014, na mesma granja da primeira (e outras) vivências fomos passar o dia em Pium. Jady, Marcel, o filhinho de ambos Éon, Juan, Eu, minha irmã Tainah e sua filha Anauá. Chegamos ao início da tarde e nos acomodamos. Tomamos eu e Tainah sem que os outros soubessem. Apenas Juan estava sabendo porque pedimos para ele ajudar com a pequena Anauá. Foi instantâneo. Não tive os incômodos iniciais. O tempo infinito nos incorporou de uma maneira fenomenal! Tainah conheceu a desintegração do corpo e a sensação de ser parte de um todo feito de luz. Ficamos algumas horas na granja, mas a sensação em mim e em Tainah, era que ali vivemos anos, muitos anos inesquecíveis e mágicos.

Acordei inspirada numa sexta chuvosa e senti de tomar um doce, pela primeira vez, em casa. A principio senti uma tontura e vomitei. Pus um mantra tibetano no ‘repete’ que tocou a manhã inteira. Depois, de joelhos olhando a chuva pela janela, chorei copiosamente repetindo “é claro que os milagres existem” ali, eles me foram revelados. Tive outros contatos com o doce e em todos eles, a mesma sensação de incorporar meu deus interior, despertando poderes de meditação, conhecimento, paz plena, tempo infinito e a conexão com o todo.

Parte II O aprendizado

“ Na verdade nasci com meu destino. Ser sábia. Ser filha dos meninos santos. É que os

cogumelos são santos, dão sabedoria. A sabedoria é a linguagem. A linguagem faz com que moribundos voltem à vida. Os doentes recuperam a saúde quando escutam as palavras dos meninos santos. Não há mortal que possa ensinar essa linguagem. Eu curo com a Linguagem, a Linguagem dos meninos santos. Em mim não há bruxaria, não há raiva, não há mentira. Porque não tenho sujeira, não tenho pó. A doença sai se os doentes vomitam. Vomitam a doença. Vomitam porque os cogumelos querem que o façam. Se os doentes não vomitam, eu vomito. Vomito por eles, e desta maneira o mal é expulso. Os cogumelos tem poder, porque são a Carne de Deus. E os que crêem saram.”

Maria Sabina

“ Não queremos ser governados pelos medos do fundamentalismo cristão, ou pela

superficialidade do cientificismo, ou pelo sombrio vazio espiritual do materialismo. Nós queremos nos conectar primeiro com nossos corpos, e através dos nossos corpos com o planeta É disso que os alucinógenos, as plantas psicoativas e as substancias psicodélicas se tratam.”

Terence McKenna

"Quando o homem saiu de seu passado difícil, houve uma fase evolução do conhecimento em que a descoberta de um fungo, ou talvez fosse um andar superior com propriedades milagrosas, foi uma revelação, um verdadeiro detonador para a sua alma,

despertando sentimentos de temor e reverência, bondade e amor, ao mais alto nível que o homem é capaz de alcançar. Uma simples planta abre as portas, libera o inefável, traz o êxtase. Não é a primeira vez na história da humanidade que as formas mais humildes de vida dão a luz ao divino. Por mais desconcertante que seja, a maravilha que anuncia merece ser ouvida pelos

homens." Gordon Wasson

Conclusão (embora nada se conclua)

“Dizem que o que todos procuramos é um sentido para a vida. Não penso que seja assim. Penso que o que estamos procurando é uma experiência de estar vivos, de modo que

nossas experiências de vida, no plano puramente físico, tenham ressonância no interior do nosso ser e da nossa realidade mais íntimos, de modo que realmente sintamos o enlevo de estar vivos.”

Joseph Campbell

O cogumelo é um processo, não uma conclusão. É um ser a ser incorporado, literal e espiritualmente para eliminar as barreiras dos olhos e reconectar-se, com toda a generosidade, à essência central do cosmo; a pulsação divina, a vida em sua mágica dança. A compreensão de si e consequentemente do outro. O autoconhecimento que leva ao altruísmo, ao equilíbrio e à serenidade.

Há uma náusea inicial causada pelas próprias fraquezas, essa característica vem do ego: tentativa de controle, medo, insegurança ou qualquer seja o adjetivo, negativo ou positivo, será evidenciado pela ação do sagrado de limpeza e aprendizado. O medo é uma fraqueza do ego que restringe a ação do cogumelo. São seres da mais avançada sabedoria, para aprender o ensinamento é preciso entrega, desprendimento, foco. Mas principalmente o preparo físico, mental e espiritual. Não pode ser tomado para se divertir num dia legal, isso é superficial frente à grandeza do tal encontro. Portanto é preciso um preparo. Não é algo recreativo, mas um passo para o autoconhecimento, o universo inteiro em todo seu interior e exterior no deslumbre da descoberta de si mesmo e a vivência com a eternidade.

Tudo aquilo que se pensa, e até que se sente é uma projeção, nunca a realidade. Sabendo disso creio que a concentração no instante, com toda contínua dança, é a melhor forma de viver na verdade e também de evitar sofrimentos. Penso, por exemplo, em alguém com a ternura da paixão daquele momento, sem projetar o amanhã. O agora tem sempre uma infinidade de coisas pulsando ainda não vistas. É inútil se prender à dor do passado ou temer o futuro, porque o movimento do mundo é constantemente no presente.

Passei a vida inteira ouvindo que Deus está lá longe, no céu. E, no entanto, vê tudo. Deus é a consciência em cada ser, o potencial de Luz a ser desenvolvido, o projeto de Amor a ser revelado em cada ato e pensamento. Deus fica oculto na ignorância da alma. Na arrogância do ego. Na violência, mentira e escuridão só há inferno. Quem fica longe da própria consciência? Nós criamos e escolhemos os caminhos. Deus não está longe, mas enraizado. Cuidemos das raízes da terra, e fiquemos quietos, concentrados na pulsação cá dentro, mundo afora.

O problema é que julgamos saber demais, falando além da conta, defendendo conceitos; mas há sempre uma grande contradição em tudo. A certeza é falha. A vida não é estática, não tem que se enquadrar em conceitos. A vida está acontecendo agora, um caminho percorrido no instante. Não podemos saber de nada, a vida é quem sabe! Devemos seguir a estrada na observação, no aprendizado, no silêncio, na escuta, na contemplação. Apenas ser. Deixar ser.

No fundo de cada um, existe de fato, a solidão. Podemos encarar com tristeza, se apegados à ilusão mundana, mas se focarmos, concentrarmos e silenciarmos um pouco, dá para sentir que Deus é a luz dentro de nós, ou seja, não há o que procurar, nem perguntar. Há dois tipos de pessoas: as que nasceram para serem compreendidas, e as

raras, que têm o dom de compreendê-las. Se você recebeu o dom, então não sofra, não se indigne diante às dificuldades; apenas seja Amor e nada mais precisa ser feito. O Amor expande compreensão.

A extravagância das coisas insanas, abomináveis e absurdas me deixa no limiar da minha própria razão: as pessoas não conseguem ver a vida, a luz, a incrível potencialidade do sol, da lua, do mar, da chuva. Estão cegos e virtualmente perdidos nas eternas informações inúteis que consomem o tempo todo. As pessoas somos nós. Quando falamos de alguém, falamos de nós mesmos. Cada cabeça é um universo em extinção, cada um no seu tempo, no seu caminho. Somos todos capazes de ver nosso universo próprio, desafio é conseguir sair de si, do ego e ver o outro. Aprender com o outro, compartilhar os caminhos. Ensinar e aprender, onde a dualidade se encontra e torna uma coisa só: vida e morte é o mesmo presente.

Somos apenas uma ínfima parte do espetacular e inefável Todo. Há sempre uma beleza a descobrir, há uma movimentação incrível abaixo da superfície, mas fomos ‘programados’ a ver apenas a superfície. O deus Sol pulsa fora da caverna. Nada se sabe quando o aprendizado é constate. Todos os dias vejo o céu e me espanta o milagre indescritível da beleza. Sinto-me completa e soberanamente parte, embora ínfima, de todo o esplendor da pulsação divina.

Toda idealização é perfeita para criar a decepção. Não se pode decepcionar-se com o outro, mas apenas consigo, com a perspectiva que foi criada, o outro não tem a menor obrigação de se encaixar. Cada um vive em seu caminho. Compartilhemos os caminhos sem tentar enquadrar ninguém em conceitos, nem julgar, nem se apropriar.

Todos os mundos existem, infernos e paraísos estão na nossa consciência, são reais e verdadeiramente sentidos. Pessoas que matam e ferem são as maiores vítimas, aprisionadas num negro véu de pensamentos. Elas precisam de amor, apenas. O agressor é ainda mais agredido, internamente, onde a vida realmente acontece. Somos todos responsáveis uns pelos outros, porque somos todos irmãos, parte de um todo mágico, onde tudo reverbera. Qualquer ação ou sentimento reflete e emana, em constante transformação. É preciso viver os sentimentos bons, para extravasar conforto às almas, para nos construir cada vez melhor, com serenidade e harmonia.

O outro é uma ilha. Cada um vive um universo e é impossível decifrar até a si, já que somos feitos de circunstâncias. Tudo que acontece tem um motivo de ser, e a dor transforma, amadurece. De toda forma perdemos alguém, construímos alguém e assim a vida segue. Felicidade não está no outro, mas em si, no reconhecimento silencioso de cada ser. Há muito mais magia onde pouco percebemos. Enfim, valorize-se e a felicidade transbordará de toda a parte. O universo conspira.

A realidade nada mais é do que uma interpretação; sutil revelação do que está cá dentro. Sacudir a poeira dos pés, guiar os passos, respirar lentamente para permitir-se à tranquilidade, mesmo em meio ao turbilhão. É possível controlar as águas, desde que se esteja sempre limpo. Se o tumulto está sendo criado pelo ego, é importante discerni-lo, pois ele se apossa de nós como se fosse parte, e engole a possibilidade de enxergarmos além do palmo a frente. Tudo mais transcorrerá na sábia lentidão dos anos, que dura um lapso de segundo, décadas de eternidade. A primeira caminhada começa ainda no escuro e tropeça a cada encontro, noutros destinos. Quantas marés nos atravessam as vísceras, nos afogam de súplicas e depois emergem as emoções e alegrias? Festejar o que não nos falta, em vez de reclamar daquilo que falta. Dividir o que nos sobra para manter o equilíbrio, oscilar necessidades, dar as mãos e oferecer os braços. Tudo para não estar farto de convivência, mas apto a prolongar-se satisfeito de ausência.

Apesar de ser um nome meio banalizado pelo uso constante, com mil interpretações diferentes, o amor é a própria essência da vida. Quando falo da essência, me refiro ao interior de cada vida, onde reside o fim de todas as perguntas e dúvidas que nos acompanham e nunca são respondidas com clareza. É onde a vida faz sentido, porque não deixa de acontecer, apenas se transforma constantemente. O amor verdadeiro é o Universal. Não tem nada a ver com esse egoísta da carne. Não tem nada a ver com ego. O amor verdadeiro é a essência que move a vida Universal. Felicidade não mora ao lado, mora dentro, no mais profundo silêncio de cada ser.

Descobrir a si mesmo é uma viagem interna onde se admira a grandeza da vida, a incrível pulsação sincronizada do mundo com todos os seres. Aí está todo o segredo do Universo. A arte de ser feliz provém do trabalho da consciência, reconhecimento da gratidão e expansão do Amor. Eis o grande desafio do ser humano: conhecer-se para revelar-se.

Sim, ele está dentro de nós, mas alcançá-la não é preciso fazer absolutamente nada. Nem procurar, nem consumir, nem se torturar, nem desejar, ou acumular. Basta que se faça silencio e desapego. Que se destitua de todo e qualquer preconceito, e não se perceba superior nem inferior, somos todos parte de uma rede única pulsando. Há um universo de paz em nossos corações. Namastê!