Livro - Nelson Werneck Sodre a Coluna Prestes[1]

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Nelson Werneck Sodr

A Coluna PrestesAnlise e DepoimentosDigitalizao: Argo www.portaldocriador.org

Sumrio

ANLISE Situao Mundial Situao Nacional A Repblica Oligrquica A Ascenso Capitalista Irrompimento do Tenentismo Formao A Marcha O Latifndio A Misso Prestes A Ideologia Papel Histrico

DEPOIMENTOS Depoimento de Lus Carlos Prestes Depoimento do General Emdio da Costa Miranda Depoimento do Coronel Aristides Correia Leal

ANLISE

Ia em meio o ano de 1924 quando, tendo resistido na cidade de So Paulo, entre 5 e 27 de julho, ao assdio das foras do Governo, os remanescentes militares da segunda rebelio tenentista deslocaram-se para o Sul, para agrupar-se na praa de Catanduvas. O ano se aproximava do fim quando, em outubro, irrompia novo movimento tenentista, na regio missioneira. Cercados por foras governamentais muito superiores, conseguiram os revoltosos, ao comando do Capito Lus Carlos Prestes, romper, em audaciosa manobra, o referido cerco, deslocando-se para o Norte. Essas duas colunas, a que se originara em So Paulo e a que se originara nas Misses, encontraram-se no Sudoeste do Paran. No acantonamento de Santa Helena, a 14 de abril de 1925, era baixado o Boletim n. 1 do Comando da 1. Diviso Revolucionria, constituda pelo agrupamento daquelas duas colunas. Esse agrupamento ficaria conhecido, dentro de algum tempo, como Coluna Prestes1. As foras assim agrupadas praticaram extraordinrios feitos, que constituram episdios polticos e militares cuja pica grandeza permanecer, imperecivelmente, em nossa histria. Para compreend-los e glorificlos, como merecem, preciso situ-los no quadro da poca.

A ntegra desse documento histrico encontra-se em Loureno Moreira Lima: A Coluna Prestes (Marchas e Combates), 2. edio, S. Paulo, 1945, pp. 540/544.

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Situao MundialNo quadro mundial, estava em incio a etapa da crise geral do capitalismo. Tal incio foi assinalado por dois episdios de repercusso universal: a chamada I Guerra Mundial, que abalou a estrutura do regime e resultou em nova repartio das reas dependentes pelas naes imperialistas, e a Revoluo de Outubro, que abriu nova era na histria da humanidade e rompeu o monoplio de dominao capitalista no mundo. Com o ps-guerra, realmente, abriu-se a turbulenta fase, marcada, em todos os continentes, por crises sociais, crises polticas, crises financeiras, crises culturais, com a derrocada de velhos padres e valores e surgimento de novos. Era, conseqentemente, uma fase de transio, em que velhas contradies se aprofundavam, enquanto outras afloravam. A forma como aquelas crises se manifestaram variou de pas a pas, conforme as condies de cada um. De um modo geral, entretanto, possvel aceitar a distribuio das entidades polticas, no mundo, em trs grupos: 1) o grupo dos pases capitalistas (no importando a etapa a que tenham alcanado e englobando, assim, tambm os vencidos na guerra); 2) o grupo dos pases dependentes (isto , aqueles submetidos ao imperialismo, no importando a mudana de metrpole ou a existncia neles de formas embrionrias, iniciais, de capitalismo em alguns, mas dotados de autonomia poltica sob diversas formas); e 3) as reas coloniais, isto , aquelas que passam por nova repartio, s vezes, quanto s metrpoles, despojadas de autonomia, mantidas em atraso escravista ou feudal, ou mesmo em formas comunitrias tribais. No primeiro grupo, as crises provocam a ecloso de movimentos de rebeldia social, por influncia do regime sovitico, estabelecido na Rssia e dos regimes transitrios de socialismo, que repontam na Europa central e balcnica. A relao dialtica entre a Revoluo de Outubro e esses regimes evidente, e aterroriza a burguesia mundial. No segundo grupo, as crises se manifestam particularmente por abalos polticos, ruindo as formas vigentes, estabelecendo-se ditaduras transitrias, ao mesmo tempo em que se manifesta, em grande escala, a crise ligada monocultura e dependncia do comrcio exterior. De um modo geral, nesse grupo de pases, as relaes capitalistas tendem a alastrar-se, as formas pr-capitalistas se debilitam, a burguesia, em alguns, passa a ocupar, na rea poltica, espao mais amplo, disputando a participao no poder. Este, precisamente, o caso do Brasil. Nas reas coloniais, de grande diversidade, o quadro se apresenta heterogneo e confuso; no cabe aqui a tentativa de ver as suas linhas, ainda as mais gerais. Para concluir, em esquema pobre, como todos os esquemas nos pases que realizaram a revoluo burguesa, trata-se de defend-la da ameaa da revoluo socialista; nos pases em que predominam relaes pr-capitalistas, trata-se de desencadear a revoluo burguesa (j em condies e caractersticas muito diferentes da revoluo burguesa clssica); nas reas coloniais, trata-se de iniciar ou de impulsionar o longo e doloroso processo de neutralizao do tribalismo e da luta pela autonomia, ainda que em suas formas mais rudimentares.

Situao Nacional

Com todas as suas deficincias, o Censo de 1920 consegue retratar as grandes linhas da estrutura brasileira: registra a existncia de 648.153 estabelecimentos rurais, com a produo alcanando o valor de 275.512 contos de ris, e a de 13.336 estabelecimentos industriais, com 1.815.156 contos de ris de capital aplicado. Esses dados so expressivos, em si, mas devem ser ainda historicamente situados: 1920 o segundo ano aps o fim da I Guerra Mundial, que funcionar como barreira alfandegria acidental, obrigando-nos a produzir muita coisa antes importada: trata-se de um dos momentos iniciais da etapa de desenvolvimento industrial que ficaria conhecida como de "substituio de importaes". A populao brasileira, em 1920, mal ultrapassava os 27 milhes de habitantes (quadruplicara, em um sculo). A exportao, em volume, no alcanara um milho de toneladas (crescera oito vezes em um sculo); per capita, era de 35 quilos, a menor desde 1854. No sculo XX. enquanto a populao aumentara em mais de 2% ao ano, a exportao no chegara a aumentar 1%. A superioridade agrcola e de agricultura voltada para o mercado externo no era, entretanto, o elemento fundamental da estrutura de produo. O elemento fundamental era o latifndio. Ainda segundo os dados de 1920, havia, no Brasil, 463.879 estabelecimentos agrcolas (na verdade, no so agrcolas, mas rurais; agrcola, no caso, simples eufemismo), com rea inferior a 100 hectares, correspondendo a 9,9% da rea (rea total desse tipo de estabelecimento: 15.717.994 hectares, com rea mdia de 33,95 hectares); os estabelecimentos com rea entre 100 e 1.000 hectares, em nmero de 157.959, correspondiam a 30,6% do total da rea (48.555.545 hectares de -rea total do tipo, e rea mdia do tipo alcanando 307 hectares); mas aqueles que se enquadravam amplamente no conceito de latifndio eram apenas 26.318 isto , com rea entre 1.000 e 25.000 hectares cada, correspondendo a 59,5% do total da rea (94.668.870 hectares de rea total de latifndios, e rea mdia de 4.060 hectares). Assim, mesmo definindo o latifndio com extrema tolerncia, o Brasil rural, em 1920, tinha 60% do total de suas terras nessa categoria. Se considerarmos apenas as propriedades com rea superior a 5.000 hectares, havia 1.010 delas, em Gois; 741, em Mato Grosso; 395, no Rio Grande do Sul; 394, em Minas; 313, no Par; 287, no Amazonas; 191, em So Paulo; 167, no Piau; 130, na Bahia. Mesmo na rea agrcola em que as relaes pr-capitalistas estavam praticamente extintas, na poca a que nos referimos, e onde a acumulao permitiria sob as condies favorveis da suspenso de fornecimentos externos, quando da I Guerra Mundial, principalmente a transferncia de capitais da agricultura para a indstria, o latifndio predominava ainda, com os cafezais extensivos. Alguns ficaram clebres, e um ensasta, mencionando seus proprietrios, forneceu dados que lhes definiriam as dimenses: "O primeiro deles j era denominado o rei do caf em 1910, possuindo, nas suas 33 fazendas, em Ribeiro Preto e Sertozinho, 7.585.154

ps de caf; 8.000 colonos, que ocupavam 1.026 casas; e uma colheita anual de 250.000 sacas, nos anos bons, e de 200.000, nos anos mdios. A dos ingleses tem 4.000.000 de ps, em um s corpo, com estrada de ferro particular, etc.2". A abertura de novas reas, entretanto, servidas, inclusive, pela expanso ferroviria, altera o quadro tradicional, progressivamente. O desenvolvimento quantitativo da cafeicultura levando ao modelo monocultura-exportao comea a deparar, na poca a que nos referimos, obstculos muito grandes. O maior deles est na presso imperialista, isto , em fator que escapa ao controle da classe dominante brasileira, a dos latifundirios. A produo cafeeira declinara, em volume, realmente, comparados os decnios 1901-1910 e 1911-1920, de 130.600.000 sacas de 60 quilos para 120.500.000 ditas. Mas no em valor, pois ascendera, nos mesmos decnios, e respectivamente, de 4.180.000 contos de ris, ou 244.146 libras-ouro, para 6.446.400, ou 364.842 librasouro. O valor da saca crescera, em moeda nacional, de 32$005 para 53#496 e, em moeda internacional a inglesa, na poca de 1.87 para 3.03. Foram esses preos altos que estimularam a expanso territorial dos cafezais; no decnio 1921-1930 a fase turbulenta do Tenentismo o volume da produo cresceu para quase 140.000.000 de sacas, o valor saltou para quase 23.000.000 de contos de ris (ou pouco mais de 560.000 libras), com valor unitrio tambm ascendendo para 163$460, em moeda nacional, e 4.02, em moeda internacional3. Claro que essa euforia vai desabar, com a crise de superproduo e a crise cclica do capitalismo, em 1929, mas isso j outra histria. Se, em 1925, a produo fora de 24.000.000 de sacas e o consumo de apenas 21.600.000, j em 1929 a produo crescera para mais de 38.000.000 de sacas, mas o consumo ficara em 23.500.000 ditas. Em 1920, irrompe a crise mundial que vai afetar seriamente as estruturas econmicas dependentes: "Como pblico e notrio" informa jornal estreitamente ligado lavoura cafeeira "elementos das praas de Nova Iorque e Havre, secundados por algumas firmas de Santos... percebendo a deplorvel situao, em relao a recursos financeiros, derrubaram o caf de 13$000 para 8$000, por 10 quilos4." Os representantes polticos da classe dominante no esconderam sua revolta, diante da presso imperialista. Deputado paulista, em setembro, assinalava, na Cmara, que o mal do Brasil era "a hemorragia ou o escoamento de nossa vitalidade pelo canal do dficit contra ns, no balano geral de nossas contas internacionais". Acrescentava, com veemncia, que "os governos das naes defendem militarmente seus territrios, principalmente para se assegurarem a produo deles". Tocava direto no problema fundamental, para ele e para a sua classe: "No momento atual, o capitalismo estrangeiro est convergindo seus aretes destruidores contra nossa fortaleza principal o caf." Mostrava como, em agosto de 1919, a cotao do caf cru, tipo Santos, nos mercados norteamericanos, era de 19 centavos por libra; os comerciantes norteamericanos vendiam o caf torrado, entretanto, a 50 centavos; em2 3

Edgard Carone: A Repblica Velha (Instituies e Classes Sociais), S. Paulo, 1970, p.32. Os dados so de A. Taunay: Pequena Histria do Caf no Brasil (1827-1937), Rio, 1945, p. 548. 4 O Estado de S. Paulo, 31 de agosto de 1920

junho de 1920, o caf cru caiu a 14 centavos, sofrendo o Brasil prejuzo de quase vinte dlares em casa saca de caf exportado (saca a 132 libras). Como a safra de 1920, no Brasil, atingira 11 milhes do sacas, nosso prejuzo total correspondia a 218.000.000 de dlares, ou, em moeda nacional um dlar valendo, ento, 5$3O0 a 1.154.000 contos de ris, ou 60 milhes de esterlinos, que dizia "a ganncia comercial estrangeira tira audaciosamente do bolso indefeso da Ptria brasileira5. As crises cclicas do capitalismo refletiam-se, naturalmente, nas estruturas econmicas dependentes, comprometendo ou retardando a acumulao interna e contribuindo, assim, indiretamente, para prolongar a vigncia de relaes pr-capitalistas e, conseqentemente, a vigncia das estruturas polticas oligrquicas. Numa economia de exportao de produtos primrios, as crises cclicas do capitalismo exerciam considervel influncia. Apesar dos dficits na troca externa de mercadorias, entretanto, a acumulao interna ascendia: o dficit de 1920, nessas trocas, foi superior a 300.000 contos de ris. Mas, computados algebricamente os resultados alcanados entre 1913 e 1920 o perodo da I Guerra Mundial largamente abrangido o saldo a nosso favor foi superior a 2.000.000 de contos de ris. A estrutura econmica brasileira assinalava, assim, significativas mudanas, a mais ostensiva sendo a do desenvolvimento industrial. O valor da produo industrial, entre 1914 e 1919, triplicara, em termos nominais; duplicara, em termos ponderados. Os produtos industriais comeavam at a figurar na pauta da exportao: a percentagem foi de 0,9%, em 1913; passa a 3%, em 1915; a 6%, em 1916; a 16%, em 1917; a 29%, em 1918. Encerrado o perodo da guerra, comeam novamente a cair: em 1919, correspondem j a 12% apenas. Entre 1914 e 1920, haviam surgido quase 6.000 novos estabelecimentos industriais. A crise de 1920 paralisa, transitoriamente, esse avano. Nesse ano, h 13.336 estabelecimentos, ocupando 274.514 operrios. crise de 1920, sucede-se a de 1924. A situao mundial, finda a guerra e seus efeitos, pressiona para retorno ao quadro antigo. Mas, agora, claro, em novos termos: "Porm a poltica deflacionria de Artur Bernardes (1924) e a de Washington Lus, a partir de 1926, junto com a valorizao do caf, permitem a estabilidade da moeda e facilitam a importao de produtos estrangeiros: em certos momentos, a importao de produtos manufaturados aumenta de tal maneira que ameaa a produo nacional6." O avano imperialista, aps a pausa da I Guerra Mundial, opeCincinato Braga, discurso na Cmara dos Deputados, em 11 de setembro de 1920, in Problemas Brasileiros, 3.a edio, Rio, 1948, pp. 289/322. Braga acusava os Bancos estrangeiros de se instalarem no Brasil "quase sem realizao de capital", negociando, assim, "mais com o nosso capital do que com o deles". Relacionava assim os pagamentos que deveramos fazer no exterior: "a) os juros e amortizao da dvida pblica e despesas do Governo Federal, em seus diversos ministrios: b) juros e amortizao das dvidas dos Estados e dos municpios e despesas ouro dos respectivos governos; c) juros e amortizao da dvida externa do Distrito Federal; d) faturas de mercadorias entradas por contrabando; e) juros e amortizao do capital estrangeiro colocado no Brasil em estradas de ferro, em empresas de eletricidade, em aes de Bancos estrangeiros, em empresas de portos, em companhias de seguros, em capital de casas comerciais estrangeiras etc; f) passagens e fretes sobre navios estrangeiros; g) remessas de imigrantes, etc." Note-se que tal anlise, de atualidade indiscutvel, data de mais de meio sculo, e foi realizada, por representante da classe dominante, em determinada conjuntura, mostrando o nvel de conscincia do problema da aliana entre o latifndio e o imperialismo. Veremos, adiante, como esse nvel de conscincia era reduzido, entre os representantes da pequena burguesia. 6 Edgard Carone: op. cit., p. 80.5

ra-se em escala diferente, agora. O interesse em ferrovias, transporte urbano, terras cede lugar ao interesse pela eletricidade e outros servios urbanos, mas tambm pela indstria, ainda que em formas rudimentares e produtos de consumo: remdios, cimento, alimentcios, txteis. Em 1922 quando o Tenentismo faz a sua tempestuosa irrupo o governo brasileiro concede favores a investimentos estrangeiros em ferro, na linha em que vinha insistindo a Itabira Iron. Agora so a Belgo-Mineira e a Anglo Brasileira Iron and Steel Syndicate. No setor da eletricidade, de que a Light fora pioneira, inicia-se a compra das pequenas e dispersas empresas nacionais e, ainda no decnio do Tenentismo, a Electric Bond and Share aparece, operando sob o pseudnimo de Empresas Eltricas Brasileiras. A entrada de capitais estrangeiros, entre 1919 e 1922, no total, ascende a 404 milhes de libras esterlinas; a sada chega a 437 milhes, um tero dos quais representa servio da dvida externa. Para cobrir os sucessivos dficits oramentrios do decnio 300.000 contos, em 1920; 400.000 contos, em 1921; 450.000, em 1922 a classe dominante, pelo seu governo, continuou a utilizar o velhssimo recurso dos emprstimos externos: em 1921, tomou o primeiro emprstimo em dlares 50 milhes, prazo de 20 anos, juros de 9%, condies pesadssimas. Em 1922, repetiu a operao agora com 25 milhes de dlares, prazo de 30 anos, juros de 7%. Em 1927, outra operao mais 41 milhes e 500 mil dlares, baixando os juros a 6%, mas complementando tudo com a tomada, mesma taxa, de 8.750.000 libras esterlinas. Ora, 1920 , precisamente, o ano da crise: a importao excede a exportao; o balano de pagamentos tambm deficitrio; o cmbio comea a cair em ritmo acentuado; as emisses passam a ser contnuas; as reservas metlicas internas diminuem. As ameaas partem de todos os lados. De fora, por exemplo: "Quanto ao nosso comrcio, h um fato sintomtico: em 1920, pela primeira vez, um dficit na balana comercial com os Estados Unidos. Este fato vai provocar o agravamento da crise: os bancos estrangeiros, a pretexto da situao de agosto de 1919, paralisam os emprstimos, que resultam em acmulo de numerrio em seus cofres; com o problema do dficit em dlares, os bancos adquirem todas as reservas disponveis para, depois, especularem com elas. assim que, cotado em 3$600 no primeiro semestre de 1920, o dlar vale mais de 4$900, em agosto do mesmo ano. A alta de conseqncias graves para o custo de vida7." E de dentro, tambm: "Em setembro e outubro de 1920, poca de fim de safra, o comrcio e as classes produtoras reclamam contra a falta de numerrio e de medidas governamentais. Os bancos, que ganham com a especulao do dlar, continuam retrados e desinteressados em acudir a praa. O governo, que emitira 50.000 contos para acudir as fbricas de tecidos, empresta-lhes somente 1.250 contos, nas suas necessidades oramentrias e no pagamento de seus credores, com os quais estava atrasado8." Como, nessa fase, a economia de exportao est em dificuldade, opera-se um movimento de transferncia de capitais da rea agrcola para a rea industrial, mui7 8

Idem, p. 121. Idem, p. 121.

to mais rentvel ento. A situao financeira pode ser aferida pelo depoimento do presidente Epitcio Pessoa: "Quando assumi o Governo, em 1919, era tal o estado do Tesouro que, ao aproximar-se o fim do primeiro ms, verifiquei com terror que no tinha com que pagar a tropa e o funcionalismo pblico9." A terceira dcada do sculo, pois a do Tenentismo assinala o incio da derrocada da velha estrutura econmica brasileira, aquela que, apesar da Abolio e da Repblica, era simples continuao da que ancorara na fase colonial. A capitalizao atingira dimenses razoveis, enfrentando resistncias pr-capitalistas. A I Guerra Mundial permitira com o imperialismo entregue a um de seus misteres especficos considervel avano industrial. A economia monocultora e exportadora apresentava claramente suas deficincias. Cobrindo esse fundo estrutural, as instituies polticas, aparentemente firmes e at dotadas de eternidade, estavam abaladas e correspondiam a uma velha forma tentando disfarar o contedo novo, mas j no alcanando os seus fins, descambando para o descrdito ostensivo que anunciava mudanas turbulentas. O Tenentismo seria o sintoma mais srio dessas mudanas.

9

Epitcio Pessoa: Pela Verdade, Rio, 1924, p. 13.

A Repblica Oligrquica

Superada a fase inicial, que permitiu o reagrupamento das foras cindidas com a liquidao da monarquia, a classe dominante brasileira conseguiu estabelecer a estrutura poltica que lhe convinha, apesar de todas as claras imperfeies que sempre apresentou e at de sua instabilidade, quase sempre ardilosamente disfarada. O aparelho de Estado que a Repblica Velha montou com algumas dificuldades, particularmente as iniciais o florianismo foi a maior delas serviu, no fim de contas, como exemplo modelar do grau de relao dialtica entre o regime republicano clssica expresso do domnio burgus, isto , do capitalismo plenamente definido e a realidade de estrutura predominantemente prcapitalista, isto , de capitalismo incipiente. preciso no esquecer que aquele aparelho de Estado cujo incio pode, sem dvida, ser assinalado, na passagem do sculo, com a "poltica dos governadores" de Campos Sales, e tambm com o seu funding loan comeava a funcionar quando mal havia decorrido um decnio sobre o fim do escravismo em nosso Pas. Confundir franquias democrticas consagradas na letra constitucional, por exemplo quando o legislador procurava recortar ao molde burgus a nova roupagem constitucional com a dura realidade do domnio das oligarquias e isto que vigorava de fato seria demonstrao de grave e irremedivel ingenuidade. O Estado, no Brasil, no pode ser visto, historicamente, segundo os textos constitucionais, mesmo considerando com grande ateno e aguda anlise os debates parlamentares das diversas constituintes. No h sequer paralelismo entre o vulto e a sombra. Dois so os dados fundamentais, que permitem aferir da realidade institucional brasileira, nos quatro decnios da Repblica Velha. Primeiro: o poder federal detido por reduzido grupo de polticos, que define as linhas gerais da legislao, isto , os rumos da administrao pblica, e escolhe os executantes (presidentes, governadores estaduais, parlamentares, juzes, chefes militares). Segundo: nos seus domnios, e enquanto obedientes aos seus superiores polticos, na hierarquia, os governadores nos Estados, como os prefeitos, nos municpios, so senhores absolutos, com poderes majestticos. Trata-se, aqui, das linhas gerais e da regra; h excees, e conhecidas: s vezes o mandatrio um e o detentor do poder outro, mas sempre por acordo10.10

"As constituies estaduais do aos municpios completa liberdade administrativa e financeira; a autonomia permite s Cmaras controle total das rendas e verbas, o que as leva comumente ao uso pessoal desse dinheiro, tanto em obras particulares como em benefcio dos seus simpatizantes. A nomeao do chefe de polcia depende, tambm, dos grupos no poder: o apoio do governo estadual permite que eles indiquem o seu candidato, o que lhes possibilita o domnio de todos os trunfos, sendo seus desejos facilmente realizados, ao mesmo tempo que a polcia pressiona a oposio. Finalmente, as tentativas de dominar os cargos judicirios completam o quadro: os juzes vitalcios tm seus lugares garantidos, o mesmo no se dando com os juzes temporrios. comum os coronis fazerem presso para a remoo daqueles, que pretendem exercer sua profisso com imparcialidade; em geral, h aquiescncia e identificao dos juzes com os poderes dominantes. O crescente aumento de domnio do coronelismo, aliado a uma limitao dos poderes dos governos federal e estadual, facilita a crescente autonomia local: sabe-se da existncia desses verdadeiros estados, mas a sua ligao com aqueles dois poderes e os acordos de proteo mtua fazem com que certos atos extralegais subsistam tranqilamente durante a Primeira Repblica. A cunhagem de dinheiro particular um exemplo: em 1924, a Mate Laranjeira que, nessa poca, pertencia aos Murtinho e a argentinos, fabrica as suas 'notas novinhas... puro estilo Banco do Bra-

Claro est que uma estrutura institucional dessa natureza valendo o poder de fato e no o direito escrito tem como primeiro cuidado, por sua intrnseca artificialidade, resguardar-se. Da a caracterstica de ser toda e qualquer oposio, e ainda a simples divergncia, quando em problema essencial, vista como imperdovel traio, condenada ao extermnio. O sentido de traio corresponde ao dado, que a realidade apresenta, de se confundir o pessoal e o pblico na mesma figura: o poder no visto como mandato, mas como direito privado. Uma superestrutura assim atrasada que, entretanto, fica disfarada, embora apenas formalmente, por leis e normas de acatamento universal desde a revoluo burguesa no mundo, corresponde infra-estrutura definida no latifndio escravista, h alguns lustros apenas cuja forma de produo monocultura e exportadora. O latifndio monocultor , na economia dependente, associado intimamente ao imperialismo, particularmente interessado, at o momento de que nos ocupamos, nas formas ainda rudimentares de sua explorao: a comercializao desigual e o endividamento, mal esboando aquela que, adiante, assumir gigantescas propores: o investimento. A expresso mxima do poder do latifndio est na capacidade de recrutar e manter foras armadas alm das polcias militares estaduais, algumas com organizao, efetivos e eficincia de verdadeiro exrcito11: "De norte a sul do Pas, do incio ao fim do perodo, os coronis mantm tropas para combates e afirmao de seu poderio: hierarquicamente, as posies da oficialidade correspondem s suas posies civis. [...] As lutas contra os governos constitudos so freqentes: logo que a Junta Governativa toma conta do poder, na Paraba, em 1889, o Coronel Cunha Lima rene mais de mil homens para combat-la. Campos Sales, Alfredo Ellis e elementos do Partido Republicano Paulista levantam tropas de agregados para derrubar o governo de Amrico Brasiliense, em So Paulo, em 1891. Gumercindo Saraiva inicia a resistncia armada contra Jlio de Castilhos (1893), levantando homens de suas coxilhas. Em 1906, Generoso Ponce toma Cuiab, depe e mata Tot Paes, apesar da oposio de Rodrigues Alves. Na revoluo do 1914, os jagunos do Padre Ccero atacam Fortaleza e derrubam o governo de Franco Rabelo. Em 1920, Horcio de Matos e outros coronis avanam em direo a Salvador, para depor o governador Antnio Moniz [...]. Em 1911, o Coronel Bento Xavier ataca a cidade de Nioac (Mato Grosso); em 1913, realizam-se combates entre coronis da regio e cidade de So Francisco, em Minas Gerais; os coronis da zona de Araguaia guerreiam entre si e depois lutam contra as foras do governo estadual (1925). O caso de Horcio de Matos o mais sintomtico destas lutas particulares, e a longa lista das guerras no Cear enche toda a sua histria republicana12."

sil'. Em Lavras Diamantinas, Bahia, d-se o mesmo, em 1927: ' falta de moedas divisionrias, Horcio de Matos lana mo de um recurso original: faz emisses, impressas, de vales coloridos dos mais diversos valores, que passam a correr pela chapada inteira e so trocados, nas feiras livres, como um novo papel-moeda, mais valioso do que mesmo o dinheiro do Governo.' " (Edgard Carone: op. cit., pp. 253/254). 11 Nelson Werneck Sodr: Histria Militar do Brasil, 2.a edio, Rio, 1968, pp. 222/223. 12 Edgard Carone: op. cit., pp. 254/255. Sobre as lutas e organizaes militares do latifndio, a bibliografia extensa. Vale mencionar: Otaclio Anselmo: Padre Ccero, Mito e realidade, Rio, 1968; M. Rodrigues de Melo: Patriarcas e

A relao dialtica entre a realidade do latifndio, com o poder dos chefes locais, e a fico legal, com os seus dispositivos democrticos, est espelhada no que se refere ao problema eleitoral: "Assim, o controle do coronel total, no seu municpio ou zona. [... ] O termmetro da sua afirmao regional est na manifestao popular pelo voto. atravs deste que ele mantm seu prestgio e pressiona para obter favores necessrios para continuar a dominar internamente. No regime representativo, a sua fora o nmero de votos que pode fornecer ao candidato: da a relao existente entre votar no candidato a um cargo executivo governador ou deputado e os favores recebidos: empregos pblicos, verbas para obras, controle sobre a polcia local etc. Maior quantidade de votos significa maior poder, mais favores e maiores imposies13." No importa a lei eleitoral vigente; o que importa a fora do representante do latifndio14. As possibilidades de oposio ou divergncia, por isso mesmo, so mnimas. As eleies so farsas ostensivas. Conhecido chefe poltico achava que a mentira das urnas era "o pior mal, a maior desgraa que tem infelicitado a Repblica". Conhecido o esforo dos chefes tradicionais "em multiplicar eleitores iletrados, para se elegerem"15. Barbosa Lima, em 1906, vituperava, na Cmara Federal, as comisses apuradoras, que "se transformam em verdadeiras prostitutas"16. A propsito de pleito presidencial disputado via de regra, no havia candidato de oposio e, conseqentemente, no havia disputa o de 1910, um ensasta esclarece que ele se processou "no meio de um movimento pendular, que ia da fraude compresso e da compresso fraude17." O candidato derrotado, Rui Barbosa, dele diria: "o poder pesou com mo de ferro sobre as molas da fora e a fraude envidou recursos de prostituio do voto inauditos18." Os detentores do poder os federais, estaduais e municipais dispem de instrumentos que lhes permitem assegurar o pleno domnio das oligarquias que representam o latifndio19. As eleies chamadas a bico de pena no admitiam surpresas. Essa estrutura eleitoral no apresentava brechas e caracterizava o regime: "Espessa trama de cumplicidade cobriu o cenrio poltico; convertera-se a vida pblica num jogo de cpula, de que s participavam os iniciados, as oligarquias ostensivas ou apenas disfaradas. Rui Barbosa a diagnosticou como 'troca de atribuies e uma cesso mtua de garantias', em que 'um grupo de exploradores privilegiados' recebia do Presidente a mais 'ilimitada outorga', colocando-se passivamente a servio do Catete

Carreiros, Rio, 1954; Walfrido Moraes: Jagunos e Heris: a Civilizao do Diamante nas Lavras da Bahia, Rio, 1963; e o clssico: Rui Fac: Cangaceiros e Fanticos, Gnese e Lutas, Rio, 1963 13 Edgard Carone: op. cit., pp. 252/253. 14 A legislao eleitoral republicana pode ser estudada em Edgard Carone: op. cit., pp. 291/295; e, em detalhes, em Colares Moreira: "A Cmara e o regime eleitoral no Imprio e na Repblica", in Livro do Centenrio da Cmara dos Deputados, Rio, 1924, pp. 13/73, II. 15 A. A. de Melo Franco: Um Estadista da Repblica (Afrnio de Melo Franco e seu Tempo), Rio, 1955, pp. 372/373, I. 16 Idem, p. 493, II. 17 Idem, p. 612, II. 18 Idem, p. 614, II. 19 Victor Nunes Leal: Coronelismo, Enxada e Voto: o Municpio e o Regime Representativo no Brasil, Rio, 1948, p. 292.

as situaes estaduais20." Com todas essas deficincias, deformaes e falsidades, os episdios eleitorais eram momentos propcios revelao, clara ou disfarada, das crises e contradies. A forma que o contedo assumia, a cada momento, podia mudar, e mudava. Com freqncia, tomava-se o fenmeno no caso geral, a divergncia partidria ou apenas de opinio pela essncia. Quanto mais importante o pleito, entretanto, se fugia regra dos candidatos sem oposio e isso foi excepcional a observao menos apaixonada ou menos viciada pela aparente lgica fatual do que aparecia superfcie, podia encontrar sintomas importantes da deteriorao do regime, sintomas que denunciavam, no nvel poltico, as contradies de uma sociedade em mudana. A viso superficial, entretanto, cegada pela repetio dos eventos e dos resultados (a vitria absoluta do governo sobre as dissidncias, por exemplo) no aprofundava a anlise. Parecia que o regime fora dotado de eternidade. As ocasies em que a aceitao passiva foi quebrada e aqui a referncia cabe apenas ao plano das eleies diretas, aos casos de consulta popular, ainda que isso possa ter sido simples eufemismo assinalaram crises, e essas crises, por transitrias que tenham sido, eram importantes como sintomas. Foi assim em 1909, quando Rui Barbosa enfrentou a locomotiva oficial, na campanha que ficou conhecida como Civilismo. S o ttulo j indicava o propsito inconsciente do disfarce da realidade: Hermes no era mau, enquanto candidato, por ser militar; Rui no era bom, enquanto candidato, por ser civil. Nesse contraste superficial, de que se originou o ttulo da campanha, o essencial ficava sonegado. O fenmeno teve repetio, sob outras condies, em 1919. Novamente a oposio denunciaria as mazelas do regime. Supor que essas campanhas, separadas por um decnio, no deixassem sinal algum, conseqncia alguma, apenas porque a oposio fora derrotada, como era de praxe, era prova de ingenuidade. Na luta poltica, tudo representa alguma coisa, tem um preo, ocupa um lugar, exerce uma funo. Pode ser de reduzidas dimenses, mas ser o somatrio de fenmenos de reduzidas dimenses tomado cada um isoladamente que operar as alteraes qualitativas que, entre os seus aspectos formais claro que elas valem pelos essenciais alinham a caracterstica da aparncia fcil, ao alcance da mera observao. A sucesso de 1919 era diversa, sob numerosos aspectos, da de 1909; entre elas ocorrera a I Guerra Mundial; entre elas irrompera a Revoluo de Outubro. O mundo era outro. O Brasil era outro. O que os menos atentos guardaram dela, entretanto, foi o que a marcara como repetio da anterior: a fcil vitria do regime poltico das oligarquias.

20

Hermes Lima: "Federalismo e Presidencialismo", in Revista Brasileira de Estudos Polticos, n. 7, novembro, Belo Horizonte, 1959, p. 86.

A Ascenso Capitalista

Ora, um dos sintomas mais importantes que as crises sucessrias revelavam quando as eleies ultrapassavam, particularmente em mbito nacional, a simples consagrao dos candidatos oficiais era a ruptura do ainda aparente monolitismo da classe dominante latifundiria. As dificuldades para distinguir a ascenso burguesa, no Brasil, esto ligadas, de um lado, e essencialmente, lei do desenvolvimento desigual, que fixa tal ascenso na etapa histrica, em mbito universal, de vspera ou incio da crise geral do capitalismo; e, de outro lado, e aqui formalmente, sua dupla origem, no ventre do latifndio e na rea do capital comercial, rea em que se iniciaram, em grande parte, os elementos oriundos da imigrao. o que, inclusive, contribui para os traos complexos e por vezes aparentemente contraditrios da referida ascenso: a confuso, na mesma pessoa e, em alguns casos, na mesma organizao, do senhor de terras latifundirio, do banqueiro, do comerciante, do industrial, ou de suas atividades. Pretender acompanhar a formao e a ascenso de uma classe no caso, a burguesia brasileira atravs dos traos meramente biogrficos de alguns de seus representantes erro crasso, que confunde o indivduo com a sociedade. Mais do que isso: confunde o particular, o geral e o universal21. A idia de mudana, particularmente no plano poltico, corresponde plenamente idia de mudana na ordem material, a mudana que a emerso de relaes capitalistas j amplas em relao ao recente passado escravista e s formas feudais e semifeudais ainda vigentes no interior estavam a exigir e que se refletiam em todos os campos. Um dos protagonistas polticos mais destacados define, com certa clareza, as necessidades novas, que a ascenso burguesa acarreta: "At agora, a Repblica tem vivido, idealmente, presa concepo da ordem; mas preciso pensar tambm no progresso das idias e das instituies. Sem o progresso renovador dos princpios e dos mtodos de ao, a ordem uma abstrao inconcilivel com a biologia social. Vivemos a defender a ordem e a ordem cada vez mais precria. Mas o nosso lema no s ordem mas tambm ordem e progresso. Onde o progresso nas nossas instituies polticas?"22 Mas esse progresso exige cuidados: "Os fundadores do regime, por certo, no haveriam de adivinhar as conseqncias da guerra mundial. O bolchevismo, o fascismo, o sentido econmico das frmulas polticas, a sublevao das massas em estado de fermentao tudo isso paisagem de nossos dias23." No Brasil continuava o analista havia dois partidos: o reacionrio e o liberal, para aquele, o problema social era um simples caso de polcia; para este, era preciso defender "justas reformas, necessrias mesmo aos olhos de qualquer inteligncia esclarecidamente21

Erro comum na historiografia brasileira, de que pode servir de exemplo o trabalho de Bris Fausto: A Revoluo de 1930: Historiografia e Histria, S. Paulo, 1970. 22 Lindolfo Collor: carta a Getlio Vargas, de 12 de agosto de 1929, in Hlio Silva: 1926. A Grande Marcha, Rio, 1965, p. 448.. 23 Idem, p. 447

conservadora". Havia perigos, entretanto: "No meio desses dois partidos, que existem de fato e cuja existncia independe de nossa vontade, agita-se a ameaa subversiva da ordem que, assim no tomem os homens pblicos a necessria providncia, acabar vencendo fatalmente." O fascnio da ordem, o receio do emprego da violncia, e, no fim de contas, o temor de classe s mudanas tidas e batizadas como subversivas aglutinavam a velha classe latifundiria e a nova classe burguesa. Era preciso mudar, mas com as cautelas devidas, sem perder as rdeas: "Alis, como sempre ocorre, essa transformao da mentalidade de classe coincidia com outras mutaes, de carter econmico, que se verificam no pas. [... ] A industrializao, embora incipiente, a imigrao, a urbanizao e outros fatores exigiam possibilidades maiores de interveno nas decises polticas, o que s se poderia dar com o aparecimento de um sistema eleitoral que assegurasse garantias de autenticidade ao sufrgio. Isto implicaria, porm, a morte da poltica dos governadores, baseada no patronato eleitoral e, portanto, a morte de todo o sistema poltico vigente24." Era um sistema precrio, que simulava fora pela ausncia de resistncias organizadas. Ele no teria condies para resistir s mudanas: " desorganizao do comrcio exterior, que sobreveio, em conseqncia do conflito; ao desequilbrio das finanas pblicas pela reduo dos ingressos alfandegrios", da "no cessarem mais to cedo as emisses vultosas de papel-moeda inconversvel, com todos os seus efeitos nefastos: a desvalorizao monetria, o encarecimento da vida", ao mesmo tempo em que entrava em crise a "produo cafeeira, o grande setor da nossa economia, que mal sara da crise de poucos anos atrs", e aps o colapso da produo da borracha, aps seus altos ndices de valor, enquanto a indstria se expandia, as foras econmicas s deslocavam. Da os efeitos na ordem poltica: "o antigo equilbrio, obtido nos primeiros anos do sculo, e conservado at ento, vai se desfazer" e "o sistema deixar de funcionar normalmente, como dantes, e aparecem as primeiras grandes dificuldades". Da a anomalia aparente: "a Repblica Velha degenera nessas ditaduras maldisfaradas que foram os governos dos presidentes Epitcio Pessoa e Artur Bernardes"25. Para os mais apaixonados, a estrutura poltica ser uma "horda sinistra, que dilapida e envilece a nacionalidade, com a pertincia inconsciente das toxinas que envenenam e destroem os organismos expostos sua ao"26. A burguesia ascensional no tem condies para empreender a tarefa de derrocar a estrutura poltica velha: est, de um lado, profundamente comprometida com o latifndio, e, de outro lado, temerosa do proletariado, que comea a crescer e a se organizar e cujas manifestaes de crescimento e de organizao a assustam. A classe operria brasileira, que a ascenso capitalista coloca no palco, paralelamente ao aparecimento da burguesia, comea a manifestar-se, praticamente, desde os fins do sculo XIX, mas o seu peso ainda pouco significativo. O recenseamento de 1920 assinala a existncia, no Estado de So Paulo, de 136.135 operrios brasi24 25

A. A. de Melo Franco: op. cit., p. 1.053, II. Os trechos aspeados so do prefcio de Caio Prado Jnior a Loureno Moreira Lima: op. cit., pp. 12/13. 26 Loureno Moreira Lima: op. cit., p. 35.

leiros e 93.130 estrangeiros; estes preponderam na capital. A contribuio da imigrao acompanhada, justamente a partir de 1920, pelas levas oriundas do campo, com os deslocamentos dos nordestinos como fluxo principal. A distribuio da massa operria desigual e as indstrias que os empregam em grande nmero so poucas. As condies de trabalho, por isso mesmo, so muito ruins e as lutas operrias permanecem, por largo perodo, apenas no plano reivindicativo. Mesmo assim, as dificuldades so grandes, pela presena do exrcito de reserva: a jornada longa; avultado o nmero de mulheres e menores. As formas de organizao, conseqentemente, so precrias: comeam, quase sempre, pelas ligas operrias; evoluem, depois, para as sociedades de resistncia; os sindicatos aparecem tarde e atuam fracamente. A origem camponesa da parcela de imigrantes, como da parcela nacional, e a ausncia de passado de classe fazem com que o anarquismo aparea como fora dominante na classe operria brasileira. Nem mesmo os grandes movimentos de massa, como os que ocorreram entre 1917 e 1919, neutralizam a estria anarquista predominante. A luta contra a guerra e a solidariedade Revoluo de Outubro ainda encontra irmanados comunistas e anarquistas. Pequenos ncleos de tendncia mais objetiva, dispersos em algumas cidades, renem-se, a 25, 26 e 27 de maro de 1922, em Niteri, com a presena de um representante da Internacional Comunista na Amrica do Sul, e surge o Partido Comunista, totalizando, ento, 73 membros, que sero estimados em 250, no fim desse mesmo ano, ascendendo a 300, em maio de 1923, e a 500, em 1927. Trata-se, na poca, pois, de uma organizao dbil, que cresce devagar, exerce influncia reduzida na massa operria, profundamente viscerada de anarquismo, cuja filiao IC vai aceitar, adiante, com alguma dificuldade. Essa debilidade inicial e compreensvel: a classe operria brasileira est na infncia, sua origem camponesa representa considervel fator de retardo, o anarquismo atrasa as formas de organizao e a continuidade delas. A crise sucessria de 1922 iria deflagrar um processo turbulento, em que os traos da ascenso capitalista apareceriam, disfarados quase sempre nos episdios virulentos do plano poltico. A fundao, por foras dissidentes, em 1921, da Reao Republicana fazia ressurgir, mas agora em condies mais graves, o problema da eficcia da oposio em face da onipotncia da estrutura tradicional que mantinha o poder. As eleies de 1. de maro de 1922 dariam como vitorioso, realmente, o candidato oficial. Ante esse resultado, que a ningum poderia surpreender, restava oposio a tarefa, j sancionada pela prtica, de retrair-se e recompor-se com a situao, restabelecendo a estagnao do monolitismo anterior. Mas, agora, entretanto, embora a manobra fosse iniciada, com o xito costumeiro, as condies haviam mudado muito e permitiriam, em torno de episdio de detalhe, que aflorassem as contradies que vinham minando as estruturas tradicionais. A campanha presidencial fora violentssima, servida por uma imprensa que fixara no fato partidrio a sua matria de interesse mximo, o que lhe permitia alcanar crculos amplos de leitores. Entre os problemas e iniciativas levantados por essa imprensa cuja influncia na opinio era grande estava aquele que seria a centelha de prolongada luta poltico-militar, luta que cobriu o decnio 1920-1930, e se-

ria encerrada, e militarmente tambm, por fora de outro episdio de sucesso presidencial. A 28 de dezembro de 1921, realmente, assemblia realizada no Clube Militar tomava a deciso por 493 votos contra 20 de concluir pela autenticidade de carta atribuda ao candidato oficial, contendo pesadas injrias aos chefes militares. A carta era falsa como era fcil deduzir e logo foi confessado pelos autores mas a anlise da crise segundo essa viso lgico-formal no esclarece em nada a significao do caso.

Irrompimento do Tenentismo

Poltico de natural reservado, o candidato oficial, ao longo da campanha sucessria, foi vtima de uma das mais terrveis campanhas difamatrias a que o pas j assistiu. Nessa odiosidade concentrada, entretanto, o que o observador desatento no via era justamente a sua razo aquilo que justificava e explicava a sua aparente sem-razo: a concentrao em um homem, um poltico, o representante das foras oficiais e tradicionais, de toda a amargura de tantos lustros de farsa poltica, a farsa a que as oligarquias, o latifndio, haviam reduzido o regime republicano. Um historiador explica assim o fenmeno,, tomado por muitos como a essncia: "As tortuosidades, as curvas, os ziguezagues que o desenvolvimento fatual da Histria segue, e que tanto desesperam os que desejam para ela a clareza lgica de uma pura, mostravam, assim, que uma campanha sucessria em que as foras polticas dominantes e tradicionais se haviam cindido sendo idnticas em tudo e por tudo, inclusive nos programas que, alis, importavam pouco estavam se transformando, pela interferncia de outras componentes a da imprensa e a militar, sobretudo, estreitamente ligadas na arrancada para transformaes de que no se davam conta os prprios protagonistas. E isso, evidentemente, nada tinha a ver com as qualidades pessoais dos candidatos. Um dos aspectos mais curiosos do problema estava, precisamente, em que um documento falso, forjado para fins inconfessveis, deflagraria o idealismo, na verdade puro, da mocidade militar, em mpetos de rebeldia que, apreciados luz fria, exterior e formal da lgica, constituam atos flagrantes e caracterizados de indisciplina. Porque, no fundo, a deteriorao da estrutura poltica dominante, por fora do avano das relaes capitalistas a que ela j no satisfazia, era gritantemente denunciada pela ruptura do conformismo do aparelho militar. Nessa ruptura, impulsionada pela vanguarda pequeno-burguesa, a imprensa teve papel relevante e positivo, quaisquer fossem os aspectos negativos fatuais que surgissem, como surgiram, aqui e ali. O que se anunciava, no fim de contas, era o prximo fim de uma estrutura poltica obsoleta: esse fim no poderia ser alcanado por via eleitoral, porque tal sada estava fechada pela natureza mesma da dominao daquela estrutura; s poderia ser alcanada pela violncia. No caso, a violncia militar pequeno-burguesa27." Mas, como quase sempre acontece, a anlise apresenta um processo, no nvel fatual, que o da superfcie, que o do fenmeno, que o da forma, e outro processo, no nvel da conscincia, isto como os prprios protagonistas o julgam e julgam as suas aes, os seus ideais, os seus objetivos. Como, na vida, tudo acontece na rea das relaes tudo est relacionado com tudo geralmente impropriedade acoimar de baixo nvel de conscincia das personagens, nos movimentos de certa envergadura: esse nvel est em correspondncia e em relao dialtica com o mundo objetivo que27

Nelson Werneck Sodr: Histria da Imprensa no Brasil, Rio, 1966, pp. 413/414.

o cerca, que condiciona os eventos e at influi em sua seriao. O que se pode afirmar do Tenentismo, em suas etapas iniciais at 1926, vamos dizer que se mantm, predominantemente, no mbito de um reformismo pequeno-burgus, que divaga em formulaes ou que se repete, mas no se renova. O inconformismo militar, alis que no foi especfico do caso brasileiro, mas aqui se apresentou, na forma do Tenentismo, dotado de caractersticas especiais correspondeu aos abalos nas velhas estruturas coloniais ou dependentes, e foi a forma possvel de contestao ao que elas representavam. Aqui, inequivocamente, anuncia o avano do capitalismo: o reformismo tenentista expresso poltica da pequena burguesia brasileira, vanguarda aguerrida da ascenso burguesa. Vanguarda possvel, naquela fase histrica da vida brasileira, quando outras camadas ou agrupamentos da pequena burguesia clero, estudantes, camponeses no apresentavam as mesmas condies, como ocorreu em outros pases. O inconformismo militar no era novo aqui. Suas primeiras manifestaes datam do Imprio; a Abolio e a Repblica so as mais importantes; o florianismo ser uma de suas expresses mais ntidas. Sob o domnio das oligarquias, tais manifestaes se repetiram, isoladamente, esporadicamente. A partir da crise poltica ligada sucesso presidencial de 1922, entretanto, elas apresentam, pela seqncia, pela gravidade, pela repetio a curtos intervalos, pelo vulto das foras empregadas, aspecto particular. Da essa fase de inconformismo militar de qualidade nova ser conhecida como Tenentismo. Sua expresso mxima ser a Coluna Prestes.

Formao

A 5 de julho de 1922, no Rio de Janeiro, rebelaram-se, como parcelas de extensa conspirao militar, o Forte de Copacabana e a Escola Militar. Esta, depois de marchar do Realengo s orlas da Vila Militar, foi a detida, voltando ao seu quartel. Na fortificao, cercada e condenada derrota, a guarnio, um punhado de bravos, reunidos particularmente pela ao enrgica do Tenente Antnio de Siqueira Campos, decidiu-se pelo sacrifcio, para mostrar "ao Exrcito transviado, que o de hoje, o caminho da honra e do civismo"28. O episdio, que no chega a durar um dia inteiro, abala o Pas, com eco profundo nas Foras Armadas. Aparentemente, as instituies permanecem com a estrutura intacta. Longos processos, prises, fugas, novas conspiraes conspirao permanente , na verdade, o que acontece dividem os militares. O Governo mantm, por quatro anos, sem interrupo, o estado de stio. Dois anos depois, exatamente a 5 de julho de 1924, surge a rebelio militar comandada, na cidade de So Paulo, pelo General Isidoro Dias Lopes. , agora, episdio de indisfarvel gravidade, pela extenso das foras comprometidas e pela daquelas que realmente participaram do levante e dominaram a segunda cidade do Pas, ao tempo. Os revoltosos resistiram at 28 de julho; a cidade foi bombardeada; pereceu o Capito Joaquim Tvora, figura eminente do movimento. Mas, ainda nesse caso, as esperadas adeses no se verificaram e os revoltosos abandonaram So Paulo, em retirada organizada: impedidos de ocupar Trs Lagoas, prosseguiram para os sertes do Paran, instalando-se, de Guara Foz do Iguau, contando com um efetivo de cerca de 3.000 homens. Os acirrados combates que travaram, ento, com as foras governamentais, muito mais poderosas, ficaram conhecidos como Campanha do Paran e Campanha do Contestado, ocupando o segundo semestre de 1924 e o primeiro trimestre de 1925 quando, a 27 de maro, parcela importante das foras rebeladas foi obrigada a capitular, em Catanduvas. A situao, em 1924, entretanto, diferia radicalmente daquela apresentada em 1922, quando os rebelados s haviam encontrado adeso em tropas de Mato Grosso, adeso distante e desafortunada. A 28 de outubro de 1924, enquanto as foras que se haviam retirado de So Paulo combatiam, no Sudoeste do Paran, irrompera, na regio missioneira do Rio Grande do Sul, com centro de gravidade em Santo ngelo, o levante comandado pelo Capito Lus Carlos Prestes, com adeso de foras irregulares, na regio serrana, comandadas por Leonel Rocha. Em fins de dezembro, em audaciosa manobra, Prestes rompia o cerco de So Lus, deslocando-se, com cerca de 1.500 homens, para o Norte, operando, na Campanha do Contestado, j reduzido a 800 combatentes. Ao transpor o Iguau, Prestes foi informado da queda de Catanduva: marchara mais de 100 lguas, enquanto os remanescentes paulistas retraam-se para as margens do Paran. O encontro das duas colunas ocorreu a 11 de abril de 1925. Em carta dirigida ao Marechal Isidoro Dias Lopes, chefe da insur28

Palavras do Tenente Eduardo Gomes.

reio, o comandante da coluna missioneira deu contas do que ocorrera: "Infelizmente, no pude aqui chegar com os 1.500 homens com que sa de So Lus. [...] Tivemos que lutar mais com a fraqueza e o desnimo de certos companheiros do que com o prprio inimigo, pois este, com a rapidez dos nossos movimentos, ficou impossibilitado de fazer a mais insignificante das perseguies." Pedia recursos, em armas e munies, pois contava com excelentes quadros. Seus soldados estavam "acostumados a avanar contra o inimigo quase desarmados". Desde que supridos, seriam imbatveis. Se conseguisse arm-los, saberia o que fazer: "Desde j peo a necessria licena a V. Excia. para que, armado, possa movimentarme." Da a idia fundamental: "A guerra, no Brasil, qualquer que seja o terreno, a guerra de movimento. Para ns, revolucionrios, o movimento a vitria." No era uma idia, apenas; era o meio que visava determinado fim: "Com a minha coluna armada e municiada, sem exagero, julgo no ser otimismo afirmar a V. Excia. que conseguirei marchar para o Norte e, dentro em pouco tempo, atravessar o Paran e So Paulo, dirigindo-me ao Rio de Janeiro, talvez por Minas Gerais." Adiante, a esperana que sempre arrimou os feitos do Tenentismo: "Marchando, engrossaremos a Coluna"29... Assim, a longa marcha se destinaria, essencialmente, a estimular todos os inconformados, acolhendo-os em suas fileiras. Destinavase a constituir a vanguarda das massas que entrariam, triunfalmente, na capital e derrocariam o regime. Na Foz do Iguau, a 12 de abril, realizou-se a conferncia, presidida pelo Marechal Isidoro Dias Lopes, cujas figuras destacadas seriam Miguel Costa, comandante da coluna paulista, com 1.300 a 1.400 homens, e Prestes, comandante da coluna gacha, com 800 homens. A situao, minuciosamente analisada por todos, era gravssima; a idia predominante, fortalecida com a queda de Catanduvas, era a de emigrar. Prestes defendeu com vigor a proposta que apresentara antes e por escrito: sua coluna no emigraria nem abandonaria a luta. Havia um problema grave, de incio: romper o cerco imposto pelas poderosas foras que comprimiam os revoltosos contra a fronteira. As duas colunas iniciaram o reagrupamento, apesar do cerco, e reuniram-se nos arredores de Porto Mendes. Triunfara a idia de Prestes. Tratava-se, agora, de romper o cerco. No acantonamento de Santa Helena, a 14 de abril de 1925, ficava constituda a fora que passaria Histria como Coluna Prestes. Miguel Costa assumira o comando de todas as tropas, a 10. O rompimento do cerco foi alcanado, por iniciativa singular: prestando todas as homenagens soberania do pas irmo, as foras revolucionrias transpuseram o rio Paran e cortaram o territrio da Repblica do Paraguai, de Porto Adela, onde desembarcaram a 27 de abril, divisria da serra do Maracaju, a 30 desse mesmo ms, atingida aps marcha de 120 quilmetros. A Coluna, inicialmente composta de dois Destacamentos o do Rio Grande e o de So Paulo foi reorganizada, adiante, para evitar o divisionismo da diversidade de origem: Prestes deixou o comando do Destacamento que trouxera do Rio Grande, para ser o Chefe de Estado-Maior da Coluna.

29

A carta de Prestes est reproduzida, na ntegra, em Loureno Moreira Lima: op. cit., pp. 107/111.

A Marcha

A vanguarda da Coluna entrou em Mato Grosso a 30 de abril de 1925. Ocupou Patrimnio de Dourados e, dois ou trs dias depois, Porto Felicidade e Campanrio. A 11 de maio, o QG se estabelecia em Ponta-Por, ocupada dias antes. At a os combates vinham sendo travados contra a cobertura das foras legalistas, sempre batidas e em retraimento. Marchando para o Norte, os Destacamentos cruzaram a ferrovia da Noroeste e, logo depois, a l0 de junho, reuniram-se nas cabeceiras do rio Camapu. Nesse estacionamento, ficou decidida a reorganizao da Coluna. Enfrentava, agora, destacamentos governistas bem-dotados de efetivos e suprimentos, inclusive meios de transporte. Tratava-se de manobrar, com base no movimento, travando combate apenas quando em condies favorveis, e sempre se valendo disso para conseguir armamento e munio. A travessia de Mato Grosso, da serra de Maracaju, na fronteira com o Paraguai, serra de Santa Marta, na divisa com Gois, foi feita em 53 dias. Em Gois, a Coluna deslocou-se para o Norte, no divisor entre o Tocantins e o Araguaia. Na altura do paralelo 15, infletiu para Leste, entrando em Minas, devassando o seu territrio at as barrancas do So Francisco, passando o Carinhanha e, atravs de trecho deserto da Bahia, regressando a Gois, para atingir, a 28 de outubro, Porto Nacional. Em novembro, a Coluna entrou no Maranho e cortou esse Estado de Oeste para Leste, at Flores, diante de Teresina. De So Lus, no Rio Grande do Sul, a Carolina, no Maranho, a Coluna percorrera 1.130 lguas. Depois de ameaar Teresina, as foras de Prestes atingiram Triunfo, em Pernambuco, a 11 de fevereiro de 1926, cobrindo 207 lguas em 33 dias. No dia 20, na vila de Riacho, Prestes foi promovido a General. O Piau fora atravessado, de Floriano a Natal. A 26, a vanguarda penetrou no Cear e nesse Estado marchou 75 lguas. A 3 de maro, era atingida a divisa do Rio Grande do Norte; a 5, depois de percorrer 12 lguas nesse Estado, chegava divisa com a Paraba, cortando o Estado, para atingir Pernambuco, na regio da serra da Baixa Verde, depois de percorrer 55 lguas na Paraba. A 24, a Coluna transpunha o So Francisco e entrava na Bahia, depois de rpida manobra: "Descreveu, assim, um arco de 23 lguas atravs das caatingas, por veredas terrveis, com atoleiros quase intransponveis, acossados por uma chuva torrencial e fazendo marchas noturnas, com etapas dirias de 13 lguas30..." A Coluna entrara no Maranho, em novembro de 1925, com cerca de 900 homens. Chegava Bahia com perto de 1.200. Transps a chapada Diamantina e, a 19 de abril, entrou em Minas, como manobra destinada a atrair as foras adversrias e permitir o retorno Bahia. Era a manobra que se celebrizou como "lao hngaro", que demandou mais de 100 lguas de marcha. A 27 de abril, na fazenda Umbuzeiro, a Coluna comemorou um ano sobre a transposio do rio Paran, em Porto Adela.30

Loureno Moreira Lima: op. cit., pp. 270/271.

Em maio, a Coluna entrava nas Lavras Diamantinas. Para abandonar a regio, infestada de foras irregulares que acossavam a Coluna, a tropilha de jagunos do latifndio, Prestes decidiu passar margem esquerda do So Francisco. Preliminarmente, era preciso fazer com que aquelas foras deixassem as margens e os acessos ao grande rio: foi a manobra, descrevendo grande curva, de 245 lguas de marcha, que demandou 32 dias, consumindo todo o ms de junho, que repetiu aquela antes executada e que ficara conhecida como "lao hngaro" Na tarde de 2 de julho, a Coluna preparou a transposio do So Francisco, realizada no dia seguinte, entrando, novamente em Pernambuco. A Bahia fora invadida em fins de fevereiro e as operaes nesse Estado consumiram quatro meses, enfrentando foras calculadas em mais de 30.000 homens, e perdendo pouco mais de 200. A 11, a Coluna estava, novamente, no Piau. Um ms depois, regressava Bahia, na regio de Buritizal. A 19 de agosto, penetrava em Gois, transpondo a zona do Jalapo. Em setembro, os Destacamentos revolucionrios estavam ainda na regio Norte desse Estado, passando, na segunda quinzena, chapada dos Veadeiros. A 1. de outubro, um desses Destacamentos fez uma demonstrao, ameaando o Tringulo Mineiro e permitindo ao grosso da Coluna passar a Mato Grosso. A 22, ela estava reunida em Coxim. Seu efetivo era, agora, de menos de 600 homens, praticamente desarmados e desmuniciados. Cumpria reexaminar a situao e tomar novas decises. Ficou estabelecido que se consultasse o Marechal Isidoro Dias Lopes, no exlio, relatando a situao e sugerindo opes. Os elementos designados para essa misso seriam escoltados por um piquete de 30 combatentes escolhidos, que lhes assegurariam condies para atravessar at a fronteira paraguaia e passar Argentina. O Destacamento comandado por Siqueira Campos daria cobertura quela reduzida tropa, atraindo a ateno das foras governistas agrupadas em torno de Campo Grande. Enquanto isso, a Coluna faria uma diverso, pelo norte de Mato Grosso e sul de Gois, aproximando-se da fronteira boliviana, na regio de San Mathias, onde aguardaria as decises do chefe exilado. A 25 de outubro, cada um desses elementos tomou destino. O grosso da Coluna deslocou-se para leste, a 11 de novembro, atingindo o garimpo Caununga e, no dia seguinte, o de Garas. A 17, entrou pela quarta vez em territrio goiano, retrocedendo, a 10 de dezembro, para o Mato Grosso, depois de percorrer, at a divisria entre esse Estado e o de Gois, desde a sua partida da regio de Coxim, 132 lguas. A 11 de dezembro, foi encetado o ltimo lance da grande marcha em direo fronteira boliviana, na regio combinada. A 30, no lugar Itaimb, o piquete que escoltara os elementos de ligao com o Marechal Isidoro Dias Lopes se reincorporou Coluna. Esta, a 8 de janeiro, transps o rio Paraguai, no vau da Varjaria. A 10, deu incio extraordinria transposio do pantanal e, a 15, transps o Sepotuba, para atingir, a 28, a margem esquerda do Jauru, transpondo-o a 29. A 3 de fevereiro, depois de trs lguas de marcha, entrou na Bolvia, indo acampar na fazenda Capim Branco. O Destacamento de Siqueira Campos, ao separar-se da escolta a que dera cobertura, avanara para nordeste, realizando, em cinco meses, o fulgurante raide de 1.500 lguas, traando amplo crculo

em torno de Cuiab, penetrando depois em Gois, invadindo o Tringulo Mineiro, para, no longo lance final, atravessar o sul de Mato Grosso, internando-se na Repblica do Paraguai, na regio de Bela Vista. Tendo iniciado com 80 homens a sua misso e perdido a metade, conseguira algumas adeses. Siqueira Campos passou a nado o rio Estrela, prximo a Bela Vista, para deixar o Brasil. A Coluna entrou na Bolvia com 620 homens; restavam-lhe noventa fuzis, quatro metralhadoras, quase todo esse armamento descalibrado, e cerca de oito mil tiros. Percorrera 25.500 quilmetros, segundo uns, entre os quais Loureno Moreira Lima; 36.000, segundo Prestes31. Estes, evidentemente, os dados quantitativos. Gigantescos, mesmo enquanto tais. Mas a qualidade que definiria a marcha da Coluna como feito militar e poltico de extraordinrias dimenses. As dificuldades naturais, por si ss, representavam obstculo continuado. As referncias do cronista, em seu pico relatrio, so constantes32. Assim na Pedrinha: "Grande parte da tropa j estava a p e o passadio era pssimo, por falta de recursos33". Assim na caatinga que revestia a serra do Encaibro: "A tropa estava quase toda a p e desprovida de mantimentos, tendo que fazer aquela marcha numa regio pauprrima e devastada pela enchente34." Assim na passagem margem esquerda do So Francisco: "A Coluna perdeu nessa campanha duzentos e tantos homens, entre mortos, prisioneiros, extraviados e desertores, ficando reduzida a novecentos combatentes, no mximo, mal-armados e pessimamente municiados. A maior parte dessas perdas se verificou nas potreadas, contra as quais se encarniaram os adversrios, armando-lhes emboscadas terrveis35."31 32

Idem, p. 498. Idem, p. 312. 33 Idem, p. 342. Antes de insistir nas referncia ao livro de Loureno Moreira Lima, convm situ-lo: trata-se, sem qualquer favor, de um clssico das letras histricas e, talvez com mais propriedade, das letras militares brasileiras. No existissem razes bvias o obscurantismo, a incultura, a ausncia de democracia na cultura nacional e ficaria incompreendida a anomalia aparente de uma obra desse valor permanecer desconhecida, praticamente, das novas geraes de leitores, do grande pblico, em suma. A segunda edio, com ligeiras alteraes em relao primeira, de Pelotas esta, de 1945, significando, portanto, que a obra est sepultada h mais de trinta anos. Seu valor, no entanto, equivale, sob certos aspectos, ao de Os Sertes, de Euclides da Cunha; sob outros aspectos, ao de A Retirada da Laguna, do Visconde de Taunay. Dia vir em que o seu lugar, no nvel desses clssicos, ficar marcado. A razo do esquecimento em que jaz est ligada, evidentemente, ao seu contedo poltico. 34 Idem, p. 349. 35 Idem, p. 371. Aqui cabe definir o que significavam as potreadas. Ainda aqui, indispensvel voltar obra de Loureno Moreira Lima: "Ao entrarmos em Mato Grosso, comearam a melhorar as nossas condies. A quantidade imensa de gado, mate e outros recursos ali existentes, forneceram boa alimentao queles homens que, h tanto tempo, passavam miseravelmente. Alm disso, principiamos a vestir, calar e montar a tropa. As paisagens daqueles campos maravilhosos, que se desdobravam como um mar inteiramente verde, coberto por um cu sempre azul, e aquela temperatura de primavera reconfortavam a alma da nossa falange, aps tantos dias de sofrimento. Ali teve incio a epopia das potreadas, pequenas patrulhas de cinco a quinze homens que se afastavam para os flancos, a fim de arrebanhar animais, e que se tornaram esplndidos exploradores. Os potreadores se distanciavam, muitas vezes, trinta a cinqenta lguas do grosso da Coluna, devassando grandes reas, descobrindo o inimigo onde ele se achava, incomodando-o e trazendo-o sempre em sobressalto, na incerteza da nossa direo. A audcia dos potreadores no encontra nada que se lhe compare. Entravam em vilas e cidades, das quais se apossavam regressando passados muitos dias, levando-nos cavalhadas que arrebanhavam, combatendo e perdendo companheiros, mas sem nunca desanimar. Foram incalculveis os atos de herosmo praticados anonimamente por eles, na vastido das nossas selvas. A notcia das suas correrias audaciosas povoava a mente supersticiosa dos nossos sertanejos, envolta numa nuvem de lendas e de sonhos. Ao se separarem da Coluna, eles eram informados da direo da marcha, para que a pudessem alcanar. Houve potreadas que no mais regressaram, aniquiladas pelo inimigo. Outras percorreram centenas de lguas, at nos encontrar" (idem, p. 13). O abastecimento repousava nas potreadas, mas o consumo repousava nos foges: "Chamvamos 'foges' aos agrupamentos de companheiros, inclusive os bagageiros e ordenanas, para as refeies em comum" (idem, p. 151). Potreadas e foges constituem caractersticas das operaes da Coluna Prestes.

Assim na travessia do pantanal, rumo fronteira boliviana: "Os animais desapareciam, dia a dia. [... ] Dentro de pouco tempo, porm, a Coluna estava a p e sem recursos, alimentando-se de palmitos e dos poucos bois que lhe restavam para as montadas, sem ter sequer um pouco de sal para temperar a carne. Essa marcha era feita, muitas vezes com gua pelos peitos e, em certas ocasies, a nado, quando se deparava com algum coricho. Descansava-se, trepando nas rvores. Quase todos estavam descalos e mais ou menos nus. Quando a Coluna chegou Bolvia, vi muitos companheiros embrulhados em trapos de cobertores, que mal lhes encobriam as vergonhas, e inmeros vestidos com vagos farrapos, que tinham sido calas ou ceroulas36." Assim, ainda nos preliminares, com a coluna trazida por Prestes da regio missioneira: "As dificuldades cresciam, cada soldado se alimentava de pinho assado37." Assim com o raide de Siqueira Campos, desde a regio de Coxim: "Foi uma spera caminhada de cento e dois quilmetros, em areal sem fim38." Para manter a unidade e o valor combativo da Coluna caracterstica que a definiu como fora militar, distanciando-a infinitamente da fisionomia de simples bando armado havia necessidade de inquebrantvel esprito de luta e de severa disciplina. As deseres no eram coibidas, nem havia como: quem queria desistir, podia faz-lo, no momento em que quisesse. As punies, que chegaram ao nvel das expulses, marcavam aqueles que abusavam da fora ou empregavam a violncia contra civis ou se apropriavam dos bens destes; o documento que regulava as requisies era modelar. Os quadros de comando eram de excepcional valor e jamais deixaram de dar exemplos que a tropa admirava at os limites da venerao. Os episdios de herosmo constituam o cotidiano. Agerson Dantas, farmacutico na vida civil, elevado, por sua bravura, a 1. tenente, ferido no brao esquerdo, em Imburanas, e promovido a capito, combatia, apesar das ordens em contrrio, devido ao seu estado de sade: "Fez o resto da campanha com o brao quebrado e a ferida aberta, andando a p lguas e lguas, quando no havia cavalos". Voltando ao comando de um esquadro, a pedido seu, "desfechou formidvel ataque ao flanco do inimigo, avanando por dentro da mata, frente da sua tropa, sem chapu, descalo, em mangas de camisa, levando apenas um revlver na mo direita39. Modesto Laffayette Cruz "resolveu tomar de assalto os caminhes do inimigo que, armado de metralhadoras, nos fazia grande mal. Reunindo os seus homens, Modesto avanou contra o adversrio num arranco admirvel de herosmo, afrontando impvido o fogo terrvel que lhe era dirigido e caindo morto, gloriosamente, frente dos seus comandados40. Hildebrando de Oliveira era outro tipo cavalheiresco e bravo: "Estava ao seu lado, quando ele caiu morto, um filho, de 17 anos de idade. Ao ver o pai morto, o jovem Oliveira retirou as armas que ele conduzia e continuou a combater calmamente at esgotar a munio41. Havia os annimos: "Perdemos apenas um36 37

Idem, p. 493. Hlio Silva: op. cit., p. 74. 38 Idem, p. 100. 39 Loureno Moreira Lima: op. cit., p. 116. 40 Idem, p. 167. 41 Idem, p. 226.

soldado, que morreu bravamente. Essa morte foi uma felicidade para aquele homem, que vinha sendo martirizado por um horrvel cncer, que lhe devorava a boca. Havia muito, era notado que ele, em todos os combates, conservava-se sempre de p, inteiramente exposto ao fogo do inimigo, como se procurasse a morte, para pr fim aos seus sofrimentos42." Outros sobreviveram pelo apelido: "Entre os soldados feridos, estava o de nome Z Vivo, bravo voluntrio maranhense, que recebeu uma bala numa das pernas, ficando aleijado. Esse homem andou muito tempo numa padiola, montando depois. Arranjou umas muletas, para poder se mover, quando apeava. E assim fez o resto da campanha, entrando, afinal, na Bolvia. Apesar de inutilizado, Z Vivo prestava servios, porque fazia questo disso. Encontrei-o, muitas vezes, de sentinela, sentado dentro do mato, por no se poder manter de p, com a arma sobre as pernas e as muletas de lado43. Havia faanhas que lembravam os racontos medievais, como a do Tenente Olmiro Soares de Oliveira, quando conseguira fugir da barraca em que dormia e que partilhava com um capito que o aprisionara: "Esse capito tratara-o bem. Na madrugada em que ele fugiu, o capito dormia ao seu lado. Ele lhe tirou o revlver e ps-se a caminho. Passado algum tempo, resolveu voltar, a fim de restitu-lo ao seu dono, por considerar uma indignidade desarmar daquela forma um inimigo que procedera, a seu respeito, com a maior camaradagem. Retrocedeu, arriscando-se a ser descoberto, colocou o revlver de onde o retirara e atirou-se a p, pela noite adentro, sem nenhuma arma para a sua defesa, andando quinze lguas at nos alcanar44." A resistncia ao sofrimento e a todas as formas de adversidade era comum: "Ferido gravemente, Tertuliano foi conduzido em padiola at Pernambuco, onde faleceu, suportando aquele imenso martrio durante quase dois meses45. Outro exemplo, nesse sentido, foi dado pelo Tenente Apolinrio Pinto: "Ele ficou aleijado, no mais podendo combater. Assim nos acompanhou, at entrarmos na Bolvia, onde chegou com o ferimento ainda por cicatrizar e do qual se extraam, de vez em quando, pequenos pedaos de osso esmigalhado, padecendo, num longussimo martrio de mais de um ano, conduzido durante muitos meses em padiola e, mais tarde, a cavalo, de Pernambuco a Minas e deste Estado Bolvia atravs da Bahia, Pernambuco, Piau, Gois e Mato Grosso46." A bravura era comum: "Ao se dar aquele encontro, manteve-se de p, inteiramente exposto, fazendo face ao inimigo, apesar de Miguel Costa lhe haver ordenado que se deitasse, batendo-se at cair morto, depois de ter batido quatro adversrios47." Deste, nem o nome ficou. Mas ficou o de um negro velho, Tio Balduno, veterano das lutas de 1893 no Sul, que acompanhava, desde o Rio Grande, o seu jovem patro, Dr. Pinheiro Machado, e que se sacrificou, dando cobertura quele, cercado de inimigos, ordenando-lhe: "V simbora, guri, qui eu vou intrever

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Idem, p. 248. Idem, p. 256. 44 Idem, p. 285. 45 Idem, p. 339. 46 Idem, pp. 266/267. 47 Idem, p. 411.

essa chimangada. E bateu-se at morrer48." Da as lendas que comearam a aureolar os feitos da Coluna e corriam de boca em boca, de ouvido em ouvido, por todo o Brasil, e que foram recolhidas aos ABC e s narrativas e cantares dos violeiros sertanejos. A primeira teve sua origem ainda na travessia do territrio paraguaio: "A Diviso apresentava um aspecto de misria. Soldados e oficiais estavam descalos e quase nus, cobertos de trajes imundos, com longas barbas e cabeleiras desgrenhadas, caindo-lhes sobre os peitos e os ombros. Muitos soldados eram imberbes, o que os fazia confundir com mulheres. Eram rapazes de doze a vinte anos, vindos do Sul. Disso nasceu a lenda de conduzirmos centenas de raparigas que se batiam com extrema bravura. Os matutos acreditavam que os nossos valentes 'guris' fossem destemidas amazonas gachas49." Outra lenda corrente era a respeito da munio usada pela Coluna: "Talvez tivesse chegado ao conhecimento desse nosso correligionrio a lenda que corria entre os matutos, de possuirmos uma mquina porttil para o fabrico de balas e por isso ele considerasse suprfluo atender ao nosso pedido50." As lendas fugiam a qualquer limite de verossimilhana: "Em Porto Nacional, o povo acorria curioso para ver a princesa Isabel, que viajava conosco, conforme se espalhou51." Outra, em Gois, versava sobre o aparecimento, em Pontezinha, de um padre, que celebrara missa e aconselhara os ouvintes do seu sermo a auxiliar a Coluna, pois seriam recompensados 'dali a quatro anos', e nunca mais fora visto; esse padre seria, segundo a lenda, nada menos que o prprio Marechal Isidoro. Em zona diversa de Gois, moradores da barranca de um rio se espantaram quando um oficial lhes perguntou pelas canoas, para a travessia, "porque lhes haviam dito que atravessvamos os rios sem nos utilizarmos de embarcaes"; acreditavam, tambm, segundo o cronista, que "s comamos as partes dianteiras do gado para andarmos mais depressa"; criam, piamente, que Prestes era adivinho, por isso a Coluna no podia ser batida: "sabia sempre onde estava o inimigo e estava prevenida de suas intenes52." No Maranho, os sertanejos acreditavam que os soldados da Coluna no podiam morrer, mesmo quando atingidos pelas balas; diziam que uma preta feiticeira, antes dos combates, "fechava o corpo dos revolucionrios, imunizando-os contra as balas53".

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Idem, p. 268. Idem, p. 130. 50 Idem, p. 170. 51 Idem, p. 199. 52 Idem, p. 194. 53 Idem, p. 218.

O Latifndio

Em momentos diversos e lugares os mais variados, a Coluna enfrentou foras regulares, do Exrcito; em alguns casos, essas foras alcanaram efetivo considervel, dotadas de copiosos meios, de slida estrutura, de comando bem-constitudo. Mas possvel dizer que, no conjunto, as que, de fato e continuadamente, a combateram foram as foras irregulares, a tropa do latifndio. Em certos casos, com a ajuda ou em aliana com as polcias militares estaduais; em outros, sob comando militar; na maioria, conduzidos os jagunos pelos prprios latifundirios a quem serviam. O latifndio sentia a ameaa que a Coluna representava. Seu combate, pois, e a forma de que se revestia, raiando sempre a crueldade mais desmedida, era conseqente. Longamente, o latifndio gerara a organizao militar que o serviria: "Tais acontecimentos viriam revelar, entretanto, a forma nova de organizao militar irregular de que as oligarquias lanavam mo, e que substituiria a velha tropa da Guarda Nacional, que haviam utilizado tanto, em outros tempos: os bandos de jagunos, recrutados em regies em que predominavam absolutas as relaes feudais. Num vale mido do Cariri, prximo velha cidade do Crato, comea a surgir o cenrio social de drama peculiar s reas feudais brasileiras. Ali se estabelecera o padre Ccero Romo Batista, com enorme ascendncia sobre uma populao em que o misticismo disfarava as condies de misria e de abandono. Essa gente, que se acumulava por fora de suas necessidades, era material humano fcil de conduzir, de que lanava mo o chefe local, aqui e ali, e chefes outros, para resolverem, pelo trabuco, as suas rivalidades polticas. Foi essa a matria-prima de que se valeu Floro Bartolomeu, para liquidar o governo de Franco Rabelo. Na Bahia, na regio diamantfera, em torno de alguns chefes locais, entre os quais se destacaria, desde cedo, a figura de Horcio de Matos, em conseqncia das mesmas condies, surgiram foras irregulares tambm poderosas, cujo papel, nos acontecimentos polticos da poca, foi destacado. Em todo o interior, assim, o latifndio gerou a sua fora militar, e dela se serviu amplamente54." H uma associao ntima, pois, entre as oligarquias estaduais que so a forma poltica e social do latifndio e esse tipo de organizao militar: "As oligarquias estaduais, representando a organizao do latifndio, acompanharam essa evoluo, com as medidas correspondentes. Nos Estados economicamente poderosos, constituram foras policiais organizadas como pequenos exrcitos; nos Estados economicamente fracos, armaram os prprios exrcitos privados dos latifundirios. Sobre esses dois suportes que assentou o combate aos revolucionrios tenentistas, desde que estes empreenderam a arrancada pelo interior, com a Coluna Prestes. Enquanto as foras regionais, estaduais, privadas caracterizam, assim, a tradio oligrquica, o poder do latifndio, a fora do atraso, o sentido conformista, limitado, regional, o Tenentismo comea a re54

Nelson Werneck Sodr: Histria Militar do Brasil, 2.a edio, Rio, 1968, p. 193.

presentar a renovao, o impulso burgus, a fora do avano, o sentido inconformista, amplo, nacional55." o que confirma o levantamento histrico, da poca at hoje: "Mas Floro Bartolomeu, como tantos outros chefes sertanejos, psse disposio do Governo. Recebeu dinheiro para formar batalhes de romeiros e enfrentou a Coluna Prestes. Os seus homens eram cangaceiros, bandidos da pior espcie, inclusive o grupo de Lampio, que recebeu armamento do Governo, que saqueou os sertes, enquanto a imprensa governista atribua aos legionrios da Coluna as atrocidades e os crimes praticados pelos cangaceiros de Bartolomeu56." O mesmo autor confirma, adiante, as organizaes mistas: "Decepcionado com Pedro Dias, o Governo apelou novamente para o General Mariante, que aceitou o comando da tropa, inundando a plancie goiana com milhares de soldados do Exrcito e das polcias de So Paulo e Minas, auxiliados pelos cangaceiros de vrias procedncias, trazidos pelos coronis aliados do Governo57." O latifndio no distinguia seno os fins, os meios pouco importavam: "Quando Prestes ainda estava em Floriano, apareceram-lhe uns fazendeiros pernambucanos, que se ofereceram para levantar numerosos voluntrios, sob condio de lhes ser permitido 'liquidar os seus inimigos pessoais'. Prestes recusou a oferta e os fazendeiros voltaram decepcionados para suas terras58." E havia oferecimentos curiosos: "Serviu-nos de vaqueanos, na Paraba, um primo de Lampio, que se ofereceu a Prestes para ir convidar esse bandoleiro a se reunir Coluna, o que foi recusado59." A regra era, entretanto, o combate sem quartel das foras irregulares do latifndio Coluna, assumindo formas variadas: "No Piau, como aconteceu nos outros lugares por onde passamos, formaram-se, nossa retaguarda, bandos de ladres, que saqueavam os povoados abandonados, praticando toda a sorte de tropelias. As tropas bernardescas, por sua vez, tambm arrasavam as propriedades e cometiam as maiores violncias contra os habitantes, furtando, roubando, incendiando, estuprando mulheres e matando os homens com ferocidade inaudita60." Alm dos saques, as foras do latifndio acossavam a Coluna: "Bernardes mobilizou todo o cangao nacional, do Sul ao Norte, e dos seus mais faanhudos chefes fez oficiais da reserva do Exrcito. E, assim, esses egressos das cadeias, tipos repugnantes de assassinos, ladres e estupradores, vem os seus nomes figurando no Almanaque do Ministrio da Guerra, quando deviam ser inscritos nos livros das penitencirias61." Eram bandidos mesmo e, por vezes, organizados como tais: "Soubemos, mais tarde, que esse ataque fora feito pelo grupo de Lampio que, assim, uma segunda vez se encontrava conosco, tendo sido a primeira logo em seguida nossa invaso nesse Estado, quando uma potreada nossa surpreendera e debandara o grupo desse cangaceiro, numa fazenda

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Idem, pp. 213/214. Hlio Silva: op. cit., p. 83. 57 Idem, p. 85. 58 Loureno Moreira Lima: op. cit., p. 221 59 Idem, p. 271. 60 Idem, p. 221. 61 Idem, p. 245.

onde ele acampara62." Ou apenas para servir aos senhores: "Entretanto, pouco antes da nossa chegada, um troo de jagunos, assalariados pelo Governo, se apossara do povoado, com o intuito de nos agredir, como realmente fez63." O cangao estava mobilizado em todo o territrio nacional: "Horcio dizia mais que todo o seu cangao estava em armas, inclusive os seus lugares-tenentes Renovato e Manoel Alcntara; que, em Brotas, o povo tomava as estradas e, de Lenis, avanava uma grande fora. No foi, pois, por falta de tropa que se movimentasse que Bernardes no nos conseguiu esmagar, na Bahia, onde ele concentrou cerca de vinte mil homens, entre Exrcito, polcias do Rio Grande do Sul, So Paulo, Bahia, Alagoas e Piau, e cangaceiros. Horcio organizou um batalho de perto de 800 homens; Ablio Volney e Franklin mandavam, cada um, 400; Granja, 300; alm de outros e inumerveis guerrilhas de jagunos, algumas de cem homens, que nos agrediam, quase diariamente, de dentro das caatingas, nos desfiladeiros, por detrs das penedias, numa fria satnica, sem contar as foras acumuladas ao norte de Minas Gerais64." Assim era, pois, em todas as regies: "A jagunada redobrou a violncia dos seus ataques, desde que penetramos na regio das Lavras Diamantinas, especialmente contra as potreadas65." Ou: "O Destacamento Siqueira, que ficara em Tabuleiro Alto, como retaguarda, foi atacado, tarde, por numerosa tropa inimiga, constituda pela jagunada de Franklin, Volney e polcia baiana66." E assim foi, at que a Coluna se internasse na Bolvia. Claro que cangaceiros, jagunos, bandidos de todas as categorias s poderiam utilizar mtodos que os caracterizavam. Em Pianc, Tia Maria, preta velha que acompanhava a Coluna desde o incio, como cozinheira, foi surpreendida; "A polcia paraibana, que ali chegou aps a nossa sada, encontrando a pobre preta, sangrou-a cruelmente, no cemitrio, obrigando-a, antes, a abrir a sua prpria cova67." Em Amarante, a crueldade foi contra a me do Capito Manoel Mendes de Morais: "Os bernardescos, no podendo exercer vingana contra o nosso companheiro, exerceram-na contra a sua velha me, uma senhora viva, de mais de sessenta anos de idade, surrando-a ferozmente, queimando a sua casa e destruindo os poucos haveres que ela possua68." Em Pianc, novamente, "a enfermeira e o jovem irmo, de 17 anos, do Tenente Agenor Pereira de Sousa, que ali ficara, por estar ferido, foram brutalmente degolados"69. Um sargento, que ficara em So Joo do Paraso, surpreendido ali, "foi aprisionado e surrado diariamente, at vomitar sangue"70. Em Minas, certa vez, "um grupo de jagunos atacou a cacete o soldado Sebastio Barbosa, do 4. Destacamento, que veio a falecer, algum tempo depois, em conseqncia da agresso de que foi vtima"71. Em62 63

Idem, p. 271. Idem, p. 279. 64 Idem, p. 293. 65 Idem, p. 335. 66 Idem, p. 351. 67 Idem, p. 185. 68 Idem, p. 222. 69 Idem, p. 300. 70 Idem, p. 308. 71 Idem, p. 310.

Floriano, a Coluna recebeu notcia triste: "Ali soubemos terem sido vilmente assassinados numa cadeia do Maranho, onde se achavam presos, por se haverem extraviado, quando passamos nesse Estado, o enfermeiro Osvaldo, nosso companheiro desde So Paulo, e um soldado cujo nome ignoro72." Na regio dos garimpos, outra notcia, do mesmo tipo: "Um piquete, que mandamos ao povoado Patrimnio, soube, ali, haver a polcia paulista assassinado, dias antes, na cidade de Rio Verde, um moo, residente na mesma, pelo fato de ter declarado simpatizar com a Revoluo73. No era nada demais: "Era costume dos legalistas assassinarem os nossos companheiros que aprisionavam74." A crueldade era cotidiana: "Uns trinta rapazes cearenses, que chegaram a essa vila, sob a chefia de Alfredo Sobreira, para se reunirem Coluna, tendo sido batidos e aprisionados pela polcia paraibana, que ali estava, foram todos sangrados, salvando-se Sobreira, que se nos reuniu, em Pernambuco, ao voltarmos da Bahia, por haver comprado, pela quantia de quinhentos mil ris, o sicrio designado para o executar75." Herclides Pinto, morto em combate, teve sua sepultura aberta, sendo o corpo entregue aos urubus76. Em Pernambuco, no povoado Ramada, os legalistas atacaram a padiola que conduzia o soldado Paulo Roberto, que se atrasara, matando-o e ferindo os que o transportavam77. Como coroamento, autoridades de San Mathias, aps a internao da Coluna, indo a So Lus de Cceres, viram, nas mos de um cangaceiro das foras de Franklin de Albuquerque, "um rosrio de orelhas cortadas por esse bandido aos cadveres dos nossos companheiros mortos em combate"78.

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Idem, p. 382. Idem, p. 439. 74 Idem, p. 255. 75 Idem, p. 259. 76 Idem, p. 262. 77 Idem, p. 254. 78 Idem, p. 504.

A Misso

Essa longa marcha, pontilhada de sacrifcios e de herosmo, foi encarada, desde o incio, como cumprimento de determinada e irrecorrvel misso, como a nica forma de assegurar a continuidade do processo revolucionrio, tal como o concebiam os protagonistas da poca. Um ensasta viu bem o problema, definindo-o, a breves traos: "A marcha, empreendida atravs do Brasil, no era uma retirada militar, nem tinha um plano guerreiro. Destinava-se a manter acesa a chama revolucionria. Tornou-se o grande assunto da imprensa e dos lderes da oposio79." O seu grande cronista confirma: "O nosso fim imediato era manter a Revoluo em armas e propag-la por todo o territrio nacional80." Marchando, a Coluna iria despertando levantes e recebendo adeses engrossando, crescendo, em suma: "Contvamos arregimentar voluntrios nesse Estado, no s pela influncia dos elementos que ali se diziam revolucionrios, como tambm pelo esprito belicoso de sua populao. [...] Uma vez fixados nesse Estado ameaaramos Minas, Esprito Santo, Gois, e o Nordeste, onde se dizia haver grandes simpatias pela nossa causa81." Mesmo diante dos parcos resultados diretos da marcha, parecia ao chefe supremo, no exlio, o Marechal Isidoro, que a misso deveria continuar a mesma: "Diante de tudo isso, peo Coluna, pois no me julgo com autoridade para ordenar a quem tanto batalhou, que permanea em armas durante algum tempo mais, caso possa faz-lo sem o risco de se sacrificar, a fim de manter aceso o facho sagrado da Revoluo, at que o Rio Grande volte luta82". Diante da derrota das tentativas nas zonas urbanas, dos levantes de quartis, cumpria adotar outra forma de luta. o que os revolucionrios paulistas verificam, quando so compelidos a abandonar a grande cidade em que estavam sendo cercados: "Diante disso, s lhe restava retirar, procurando localizar-se num ponto de onde pudesse prolongar a luta com probabilidades de xito83." Destaque-se, nessa deciso do Marechal Isidoro Dias Lopes, dois pontos: prolongar a luta, como primeiro; procurar probabilidades de xito, como segundo, conseqente e derivado. Da a escolha do interior, depois j no um ponto, mas o movimento a fim de "manter acesa a chama da Revoluo". Da a conduta que a Coluna sustenta, para definir os seus propsitos, de forma direta, e atrair a simpatia dos desafortunados e dos perseguidos: "As famlias, mesmo as dos nossos adversrios, foram sempre tratadas com urbanidade, sendo severamente punidos os que as desrespeitavam84." Mais do que isso: "Nunca destrumos as reparties pblicas e apenas inutilizvamos os troncos, gargalheiras e correntes que encontrvamos nas cadeias e as horrveis palmatrias que existiam nas escolas para o esbordoamento das crianas. [... ] Os cartrios, mes79 80

Hlio Silva: op. cit., p. 379. Loureno Moreira Lima: op. cit., p. 149. 81 Idem, p. 181. 82 Idem, p. 471. 83 Idem, p. 61. 84 Idem, p. 138.

mo os criminais, no foram queimados. Os documentos que destruamos publicamente eram os livros e as listas de cobrana dos impostos para livramos o povo, pelo menos por algum tempo, das extorses do Governo85." No norte de Gois, Loureno Moreira Lima foi encarregado de examinar autos de determinado processo, quando "um pobre velho queixou-se de que o chefe poltico pretendia tomar o seu stio, por meio de uma ao possessria, quando ele o possua mansa e pacificamente, por si e seus antepassados, havia mais de cem anos". O juiz esclarece o cronista "era um suplente leigo, filho de tal chefe". Conclui: "Mandei buscar os autos, li-os atentamente, e, verificando tratar-se de uma grossa patifaria, queimei-os, no tendo, entretanto, o referido chefe sofrido o menor desacato86." Em outra oportunidade, a conduta teria de ser repetida: "O capito Siqueira, delegado da vila de S. Jos do Duro, fizera um inqurito de tal natureza e o juiz um sumrio to pouco srio que eu comuniquei a Prestes no poder ser tomado em considerao aquele processo, por nenhum magistrado digno, e nem sequer o devamos mandar publicar, sendo prefervel jog-lo fora, o que foi feito87." Os episdios eram os mais diversos: "Estava preso, numa corrente, na cadeia pblica, um preto, acusado da prtica de um homicdio. Absolvido pelo Jri, contra ele fora lavrada sentena condenatria de trinta anos de priso celular, por se achar o juiz inteiramente embriagado. E, como o seu advogado no houvesse apelado da inqua deciso, jazia encarcerado havia onze anos, tendo passado os sete primeiros num tronco e os quatro ltimos naquela corrente. [... ] Gois a terra dos troncos, gargalheiras e palmatrias. "Esses instrumentos de torturas povoam as suas cadeias. Destrumos quantos deparamos, bem como as palmatrias existentes nas escolas pblicas88." Adiante, outra espcie de reparao: "Nessa ocasio, mandamos queimar os livros e as listas relativos cobrana dos impostos, verdadeiro auto-de-f, praticado como protesto s extorses que o fisco oligrquico exerce sobre o povo escravizado89." As questes de propriedades eram as mais comuns: "A recebemos inmeras queixas das violncias praticadas por esse chefe contra os seus adversrios polticos, entre outras a de haver mandado propor uma ao possessria contra um velho residente nessa vila, a fim de se apoderar da propriedade que lhe pertencia, o que me levou a queimar os autos respectivos90." E a tarefa saneadora, essa limpeza das estrebarias de Augias do latifndio, assumia, por vezes, aspectos pitorescos: "Foram postos em liberdade trinta e tantos presos que encontramos na cadeia. Assim procedamos sempre porque muitos desses indivduos eram vtimas de perseguies de toda natureza e outros estavam detidos, havia longo tempo, sem que os seus processos tivessem sido ultimados, pela morosidade incrvel da justia, e, tambm, por esprito de eqidade, pois era profundamente injusto manter em custdia esses miserveis, quando os85 86

Idem, p. 139. Idem, p. 139. 87 Idem, p. 140. 88 Idem, p. 199. 89 Idem, p. 207. 90 Idem, p. 215.

mais ferozes criminosos viviam soltos, ocupando altas posies polticas e sociais91." As normas de condut