Livro- o Segundo Modernismo Em Portugal

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Biblioteca BreveSRIE LITERATURA

O SEGUNDO MODERNISMO EM PORTUGAL

COMISSO CONSULTIVA

FERNANDO NAMORA Escritor JOO DE FREITAS BRANCO Historiador e crtico musical JOS-AUGUSTO FRANA Prof. da Universidade Nova de Lisboa JOS BLANC DE PORTUGAL Escritor e Cientista HUMBERTO BAQUERO MORENO Prof. da Universidade do Porto JUSTINO MENDES DE ALMEIDA Doutor em Filologia Clssica pela Univ. de LisboaDIRECTOR DA PUBLICAO

LVARO SALEMA

EUGNIO LISBOA

O segundo modernismo em Portugal

MINISTRIO DA EDUCAO

TtuloO Segundo Modernismo em Portugal

_______________________________________ Biblioteca Breve / Volume 9 _______________________________________

1. edio 1977 2. edio 1984

_______________________________________

Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Ministrio da EducaoDiviso de Publicaes

_______________________________________

Instituto de Cultura e Lngua PortuguesaPraa do Prncipe Real, 141., 1200 Lisboa Direitos de traduo, reproduo e adaptao reservados para todos os pases_______________________________________ Tiragem

3 500 exemplares Beja Madeira Lus Correia

_______________________________________ Coordenao geral _______________________________________ Orientao grfica _______________________________________ Distribuio comercial

Livraria Bertrand, SARL Apartado 37, Amadora PortugalComposio e impresso

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Oficinas Grficas da Minerva do Comrcio de Veiga & Antunes, Lda. Trav. da Oliveira Estrela, 10 - Lisboa Junho 1984

memria de Peter Coombs, amigo certo nos tempos bons e nos maus. Val

N DIC E

Pg. PREFCIO 2. EDIO................................................................. 8 I / ORPHEU E DEPOIS..................................................................... 9 II / O SEGUNDO MODERNISMO: A PRESENA .............. 22 III / BALANO DO MOVIMENTO................................................. 59 IV / POST-SCRIPTUM........................................................................... 73 Literatura viva................................................................................... 74 Carta aberta a: Adolfo Casais Monteiro, Joo Gaspar Simes e Jos Rgio ...................................................................................... 80 Carta a Adolfo Casais Monteiro, Joo Gaspar Simes e Jos Rgio............................................................................................... 81 REVISITAR OS MODERNISMOS ..................................................... 84 ANEXOS................................................................................................... 107 I / Notas ao texto................................................................................ 108 II / Algumas opinies crticas sobre a Presena ......................... 117 III / Cronologia da Presena............................................................. 129 IV / Lista de alguns colaboradores da Presena ........................... 130 V/ Alguma bibliografia sobre a Presena..................................... 131

Quand un homme de lettres na pas de parti ni de darme lui, et quil marche seul avec indpendance, cest bien le moins quon se donne le plaisir de linsulter un peu au passage Saint-Beuve, in Chateaubriand et son groupe littraire

PREFCIO 2. EDIO

Redigido em 1977, durante a minha estadia em Estocolmo e na ausncia de muitas referncias bibliogrficas indispensveis, o livrinho que agora se reedita sofreu necessariamente de vrias limitaes. Isso no o impediu, ao que parece, de receber um acolhimento lisonjeiro. Na presente edio limitei-me a ampliar a bibliografia, a corrigir uma ou outra gralha, sobretudo a gralha lamentvel da nota (38) e a juntar, em apndice, o texto integral de uma palestra por mim feita em Madrid, no dia 6 de Dezembro de 1983, na Fundao Juan March, intitulada Revisitar os Modernismos. Nele retomo, aprofundando-os ou matizando-os, alguns pontos fundamentais relativos aos dois modernismos portugueses. Pareceu-me que seria um fecho adequado e no repetitivo, respondendo, com alguma abundncia de argumentos, a alguns lugares-comuns em vigor no nosso meio cultural. Londres, Janeiro de 1984. 8

I / ORPHEU E DEPOISA vida breve, a arte longa (. . .)HIPCRATES, Aforismos

O apocalipse de 1914-1918 trouxe Europa o comeo da sua decadncia e, a alguns dos seus espritos mais privilegiados, a lcida conscincia dela: Ns-outras, civilizaes, sabemos agora que somos mortais, ecoar Valry1, numa das suas proclamaes emblematicamente inquietantes. O ano de 1914 ter sido o comeo de uma sombria viragem para o mundo ocidental. Para ns, portugueses, foi a vspera do comeo de um perodo literrio que ainda no acabou de terminar: o modernismo. Filhos perturbados e fascinados de Orpheu e de um Fernando Pessoa sorrindo eternamente em itlico, o que ainda hoje, em parte, somos todos ns ou, pelo menos, os melhores de ns. Dissemos: viragem; e seria este um termo adequado, se a eroso do uso lhe no tivesse, por demais, embotado as arestas. O Orpheu foi mais do que uma viragem: foi um abalo ssmico de uma tal intensidade e fulgor, que ainda hoje se lhe sentem os efeitos. O Orpheu foi mais (ou outra coisa) do que uma simples aventura literria, ainda que intensa e traumtica: foi um modo de viver e de morrer (morreu-se muito e depressa, como no mandou D. Sebastio, entre os homens do Orpheu), foi 9

um investimento total de um grupo de homens que ousaram ousar, uma misso impossvel, um apocalptico sondar ontolgico (Eduardo Loureno), uma dana da morte no fio acerado duma corda tensa, uma apropriao sistemtica do paradoxo como mtodo de apreenso do real mais fundo: Se queres ser profundo, dir um pouco mais tarde o presencista Jos Bacelar, herdeiro do Orpheu, aprende a pensar beira do paradoxo. 2 Os homens do Orpheu foram revolucionrios, no sentido em que Gauguin, com tanta finura quanta injustia, dizia: Em arte s h revolucionrios e plagirios. 3 No verdade, mas ilumina. O massacre metdico de toda uma juventude nas trincheiras europeias (reparai neste absurdo: uma guerra parada, uma matana imvel!), o recuo da razo, o triunfo fcil e sumptuoso das foras de violncia e morte, a traio, ltima hora, dos prprios partidos socialistas europeus, trouxeram, como consequncia, a morte da f nos deuses que, pouco antes, triunfavam: a cincia, a razo e o progresso. Os velhos matres penser esboroavam-se ao rs do desespero de quem antes os tinha venerado. Essa juventude perguntava um escritor francs, que tinha ela em 1914-1918? E respondia: Um Claudel que construia um novo gnio do Cristianismo para eles, que tinham deixado de acreditar; um Barrs, grande comediante que se tinha tomado a si prprio demasiado a srio; um Bourget, que vigiava, como mdico, os progressos da doena cerebral do sculo e nada construia; mestres que no passavam de pies coca-bichinhos e fastidiosos. O que ela (a juventude) pedia, antes de mais nada, era um objectivo que as foras dadas sua inteligncia aceitassem; na falta 10

desse objectivo, um emprego lcido da sua vida. 4 A cincia, de que tanto se esperava! A cincia, amiga e promotora do homem... Se ela, como tudo o resto, falira, ajudando a construir a tcnica mas no sendo capaz de construir, paralelamente, um homem moralmente apetrechado para manipul-la sem perigo de auto-destruio, se ela, portanto, falira, num mundo que rua, o antema dos herdeiros desiludidos e desapossados no iria poup-la: Amaldioo a cincia, essa irm gmea do trabalho, proclamar o surrealista Aragon: Conhecer! Desceste tu jamais ao fundo desse poo negro? Que encontraste l, que galeria na direco do cu? Pois bem, s te desejo um jacto de gris que te restitua finalmente preguia, que a nica ptria do verdadeiro pensamento... 5 Ao recuo da razo respondero os homens trados, empunhando as foras do irracional e do subconsciente: Os homens esto sempre contra a razo, quando a razo est contra eles, dizia Helvetius. lvaro de Campos, heternimo de Pessoa, reflectir a mesma desiluso, em termos de eloquente rejeio: Mandato de despejo aos mandarins da Europa! Fora. Fora tu, Anatole France, Epicuro de farmacopeia homeoptica, tnia Jaurs do Ancien Rgime, salada de Renan-Flaubert em loua do sculo XVII, falsificada! Fora tu, Maurice Barrs, feminista da aco, Chateaubriand de paredes nuas, alcoviteiro de palco da ptria de cartaz, bolor da Lorena, algibebe dos mortos dos outros, vestindo do seu comrcio! 6 O frenesi e a palhaada so quase sempre mscaras de um abalo profundo e sincero. A pardia serve para esconder a fundura do golpe e disfarar, com pudor, o 11

pathos. So jogos, dir mais tarde Jos Rgio (um profissional no exerccio exmio do cache-cache), mas so jogos srios e mortferos de dipo com a Esfinge. O paradoxo cultivado pela gerao modernista postmassacre um paradoxo de que se morre. Por isso Rgio, falando mais tarde da arte de S-Carneiro, referirse-lhe- apelidando-a de mascarada sincerssima.7 Os heris de Pirandello no debitam paradoxos; eles so, dolorosamente, a encarnao de um paradoxo grinant. Wilde faz sorrir; o italiano faz doer. Os fantoches de Pirandello desintegram-se, raciocinando. Shaw, dir lvaro de Campos, no passa de um vegetariano do paradoxo. Os aforismos de Pessoa, cortados, sangram: so de carne irrigada e vulnervel. H, nos pioneiros do modernismo, um programa meticuloso: desorientar, indisciplinar: Trabalhemos ao menos ns, os novos por perturbar as almas, por desorientar os espritos. Cultivemos, em ns prprios, a desintegrao mental como uma flor de preo. Construamos uma anarquia portuguesa. Escrupulisemos no doentio e no dissolvente. E a nossa misso, a par de ser a mais civilizada e a mais moderna, ser tambm a mais moral e a mais patritica. 8 Nada de optimismos gordurosos, consagrados a valores provavelmente falidos: Os optimistas escrevem mal, proclamar, com secura arrogante, o luciferino Valry. 9 Tentando analisar esta aproximao estridente e clownesca, Jacinto do Prado Coelho notar com finura: ao tentarmos compreender esse esprito de gerao, no devemos parar nos aspectos mais aparentes: a mistificao, a excentricidade; ou devemos procurar descobrir o sentido gravemente irnico que a prpria simulao, o prprio jogo literrio podiam ter, em Portugal como 12

noutros pases. O momento era de crise aguda, de dissoluo de um mundo de valores dissoluo que, alis, continua a processar-se. Os artistas reagiam ao cepticismo total pela agresso, pelo sarcasmo, pelo exerccio gratuito das energias individuais, pela sondagem, a um tempo lcida e inquieta, das regies virgens e indefinidas do inconsciente, ou ento pela entrega vertigem das sensaes, grandeza inumana das mquinas, das tcnicas, da vida gregria nas cidades. 10 Os homens do Orpheu, tal como acontecera com os da gerao de 70, sentem que em Portugal no se vive: E viver que impossvel em Portugal, dir Almada Negreiros, numa conferncia proferida em 1926. Enquanto o resto da Europa estrebuchava aps a hecatombe, Portugal adormecia. A literatura desacertava o passo e academizava-se a olhos vistos. Mais tarde, em 1927, num texto clebre, Jos Rgio far um diagnstico cruel desta literatura portuguesa do primeiro quartel do sculo XX: Em Portugal raro uma obra um documento humano, superiormente pessoal ao ponto de ser colectivo. O exagerado gosto da retrica (e diga-se: da mais sedia) morde os prprios temperamentos vivos; e se a obra de um moo traz probabilidades de prolongamento evolutivo, raro esses germens de literatura viva se desenvolvem. O pedantismo de fazer literatura corrompe as nascentes. Substitui-se a personalidade pelo estilo. (...) Assim se substitui a arte viva pela literatura profissional. E curioso: S ento os crticos portugueses comeam a reparar em tal e tal obra: Quando ela exibe a sua velhice precoce e paramentada. Regra geral, os nossos crticos so amadores de antiguidades. 11 Por isso Almada 13

comentava, na sua prosa nascente, espantada e cruel: Ns estamos precisamente naquele pedao da terra ibrica que sobejou do tamanho da bandeira espanhola. E por sermos desta terra e por termos seguido de aqui em todas as direces, somos conhecidos em todo o mundo como portugueses. 12 E, mais adiante, continuava: porm, sou o primeiro a reparar que vai ser grande a surpresa quando lhes disser a data a quantos estamos hoje. 13 Portugal, concluia o autor de A Cena do dio, que foi quem iniciou o mundo moderno, o nico pas do ocidente que no est la page. 14 Cinquenta anos antes, numa Lisboa igualmente entorpecida, Ea de Queirs fazia o inventrio de uma situao em tudo idntica: No uma existncia, uma expiao (...) Diz-se por toda a parte: o Pas est perdido! Ningum se ilude. Diz-se nos conselhos de ministros e nas estalagens. E que se faz? Atesta-se, conversando e jogando o voltarete, que de Norte a Sul, no Estado, na economia, na moral, o Pas est desorganizado e pede-se conhaque! Assim todas as conscincias certificam a podrido; mas todos os temperamentos se do na podrido. 15 Por outro lado, tomando o pulso literatura, o autor de Uma Campanha Alegre notava: Olhemos agora a literatura. A literatura poesia e romance sem ideia, sem originalidade, convencional, hipcrita, falsssima, no exprime nada: nem a tendncia colectiva da sociedade, nem o temperamento individual do escritor. Tudo em torno dele se transformou, s ela ficou imvel. De modo que, pasmada e alheada, nem ela compreende o seu tempo, nem ningum a compreende a ela. como um trovador gtico, que acordasse de um sonho secular numa fbrica de cerveja. 14

Fala do ideal, do xtase, da febre, de Laura, de rosas, de liras, de Primaveras, de virgens plidas e em torno dela o mundo industrial, fabril, positivo, prtico, experimental, pergunta, meio espantado, meio indignado: Que quer esta tonta? Que faz aqui? Emprega-se na vadiagem, levem-na polcia! 16 O tdio e a modorra minavam o pas e os homens de setenta reagiram como os do Orpheu, pelo escndalo e pela provocao. O escndalo que o aparecimento do Orpheu produziu no pblico comentar Almada, foi e ficou indito na vida literria portuguesa. Portugal leitor, de Norte a Sul, delirava de regozijo, exactamente como se cada portugus tivesse sido o achador daqueles loucos solta. Nem mais nem menos. 17 Mas nas gentes do Orpheu havia mais do que uma simples reaco ao tdio. O modernismo ergue-se como uma monumental agresso razo, ou quilo que se comeou, bem ou mal, a considerar como os fracassos da razo naturalista. O sculo XIX fora o sculo do optimismo, da confiana ilimitada na razo e na sua competncia para tudo explicar e resolver. O universo real fazia sentido: porque se aceitava que ele tinha uma estrutura coincidente com a do intelecto humano, isso o tornava perfeitamente penetrvel por este, sem qualquer deformao interpretativa. Isto dava portanto ao homem um poder, ilimitado em princpio, sobre as coisas que o rodeiam. 18 A fsica matemtica triunfava, o universo era slido, lgico, determinista, organizado para ser compreendido pelo homem, feito portanto sua medida. Venerava-se os poderes da razo naturalista e a perfeio inatacvel dos seus resultados, com a mesma beataria com que certos linguistas campeiam hoje o rigor cientfico da sua metodologia e a provinciana 15

pseudo-neutralidade da sua postura e das suas concluses. Por todo o lado grassava uma nova ameaa petulante, aquilo a que Gasset saborosamente chamaria o terrorismo dos laboratrios. 19 Esta ilimitada confiana no racional e no rigidamente causal, este investimento total na omnipotncia explicativa e descritiva do intelecto, apossa-se de todos os domnios. A prpria literatura reflecte este assalto iluminista, este fulgor clarificante: o desenvolvimento dramtico da prosa narrativa, por exemplo, segue uma linha de intriga clara e limpidamente causal. O plot convencional dos contos, novelas ou romances (Maupassant disso exemplo insigne), desenrola-se como se presumisse que a vida no despida de sentido, que o universo fundamentalmente racional e causal. O assim chamado plot absurdista de certos dramas modernos no faz tais presunes (...) 20 O plot, a intriga, a anedota, a histria, no sculo XIX, seguiam quase sempre uma linha climtica previsvel: exposio, desenvolvimento, climax, resoluo... O universo era claro, saudavelmente legvel, alegremente previsvel. O provisoriamente misterioso ou incompreensvel explicava-se adiante... O homem era parte desse universo e no iria constituir excepo: era objecto de estudo como qualquer outro, s havia que aplicar-lhe a bateria dos mtodos provados. O homem era tambm facilmente legvel e controlvel. A f na cincia tornava-se uma realidade social vigente e actuante. Comte, o instaurador da filosofia positiva, tem conscincia de uma enorme, definitiva importncia sua para o mundo, e comea sempre os seus livros com um ar vitorioso, saturado de gravidade inaugural, afirmar o filsofo espanhol Julian Marias. 21 O mesmo Comte que no hesitava em proclamar, em tom de 16

profecia arrogante: Hoje, pode assegurar-se que a doutrina que tiver explicado suficientemente o conjunto do passado obter inexoravelmente, por consequncia desta nica prova, a presidncia mental do futuro. 22 Esta alegria, este tom de enrgico desafio ao universo, esta petulncia matinal 23 que Ortega y Gasset detecta no discurso filosfico de Descartes, iro afinal desintegrar-se contra os apocalipses e os fracassos que o sculo XX vai comear a desvendar: A cincia, observa o filsofo espanhol, conseguiu coisas que a irresponsvel imaginao no havia sequer sonhado. O facto to inquestionvel, que no se compreende, de imediato, como pode o homem hoje no estar postado de joelhos ante a cincia, como diante de uma entidade mgica. Mas o caso que no est, mas at, muito pelo contrrio, comea a voltar-lhe as costas. No nega nem desconhece o seu maravilhoso poder, o seu triunfo sobre a natureza; mas, ao mesmo tempo, d-se conta de que a natureza s uma dimenso da vida humana, e o glorioso xito que a ela diz respeito no exclui o fracasso respeitante totalidade da nossa existncia. No balano inexorvel que , em cada instante, o viver, a razo fsica, com todo o seu parcial esplendor, no impede um resultado terrivelmente deficitrio. Mais: o desequilbrio entre a perfeio da sua eficincia parcial e o seu falhano para os efeitos de totalidade, os definitivos, tal que, em meu juizo, contribuiu para exasperar a des-razo universal. 24 Resumindo, de um modo um tanto brutal, mas justiceiro: a cincia ocupouse, com xito, de quase tudo, menos de tornar o homem capaz dela; isto , moralmente altura de manipul-la e de a utilizar no sentido de resolver, com eficcia, os problemas do prprio homem. O apocalipse de 191417

1918, com o total colapso da f na sagesse e na competncia do homem para preservar o seu prprio futuro superfcie do planeta, o afundamento na barbrie em que a psicose de guerra mergulhou tanto ser humano supostamente inteligente, precipitaram os mais firmes, os mais slidos e os mais racionais no desespero e no cinismo. Um testemunho impressionante e pungente do efeito que este naufrgio teve em alguns dos melhores crebros europeus encontra-se nesse livro cndido, gil e estimulantemente lcido que a Autobiografia de Bertrand Russell. A guerra, comenta o incmodo filsofo ingls, levara-me beira do cinismo mais descarado e eu andava a ter a maior dificuldade em acreditar que houvesse fosse o que fosse digno de ser feito. Tinha s vezes acessos de um desespero tal que passava um nmero seguido de dias sentado na minha cadeira, sem fazer absolutamente nada, a no ser a leitura ocasional do Eclesiastes. 25 E mais adiante: Embora eu no tivesse previsto nada de parecido com o desastre total que foi a guerra, a verdade que previ um bom bocado mais do que a maioria das pessoas. A perspectiva que eu tinha do futuro enchia-me de horror, mas o que me enchia ainda de maior horror era o facto de que a previso da carnificina parecia deliciosa a qualquer coisa como noventa por cento da populao. Tive que rever os meus pontos de vista sobre a natureza humana. Nesse tempo eu era totalmente ignorante da psicanlise, mas cheguei pelos meus prprios meios a uma viso das paixes humanas no muito diferente da que tinham os psicanalistas. Consegui chegar a esta viso numa tentativa de compreender o sentimento popular respeitante guerra. Tinha suposto, at a, que era bastante comum, entre os pais, amarem os filhos, 18

mas a guerra persuadiu-me de que isso era apenas uma excepo rara. Tinha suposto que a maioria das pessoas preferem o dinheiro a qualquer outra coisa, mas descobri que gostavam ainda mais da destruio. Tinha suposto que os intelectuais amavam frequentemente a verdade, mas ainda aqui descobri que nem dez por cento deles preferem a verdade popularidade. 26 No que a primeira guerra mundial tivesse afectado deste modo, directamente, os portugueses. A nossa interveno no conflito no foi profunda nem deixou atrs de si o vasto cortejo de traumatismos, cicatrizes e hemorragias que a Frana, a Alemanha e a Inglaterra tiveram que suportar. A inteligentzia e a sensibilidade portuguesas reagiram sobretudo por contaminao e induo do trauma que agrediu os pases mais directamente mergulhados no pesadelo e no consequente desmoronamento dos valores at a endeusados: Almada Negreiros, por exemplo, no Ultimatum Futurista, levava a provocao e a irreverncia at ao limite de fazer a apologia da guerra 27 (A guerra a grande experincia), no prprio momento em que o holocausto atingia o pinculo e lanava no auge da perplexidade e do desespero alguns dos melhores espritos europeus (Bertrand Russell, Romain Rolland, Stefan Zweig, Roger Martin du Gard, Paul Valry...). Mas tratava-se de surpreender, provocar, irritar o lepidptero lisboeta, acord-lo para um novo conceito de beleza, e todos os meios eram vlidos: A irregularidade, isto , o inesperado, a surpresa, o assombro, so uma parte essencial e caracterstica da beleza, tinha j afirmado Baudelaire, esse enorme anunciador do moderno, alguns bons pares de anos antes. 28 Eram mais do que uma parte essencial da 19

beleza, eram tambm, julgavam os modernistas, um ingrediente vital da estratgia para imp-la... Neste ltimo ponto, enganavam-se, contudo. As repetidas tentativas de acender a fogueira, em diferentes revistas publicadas: Orpheu (2 nmeros publicados, em 1915), Exlio (um nico nmero, em 1916), Centauro (1916), Portugal Futurista (1917), Contempornea (19221926) e Athena (1924-1925), no tiveram influncia marcante e profunda sobre o pblico em geral, no logrando impor-lhe os nomes mais significativos do primeiro modernismo portugus. O espectculo fora intenso e fulgurante, mas breve e, em muitos casos, mortfero. A aventura esgotara alguns dos seus actores: Mrio de S-Carneiro suicidou-se tout court; Raul Leal e ngelo de Lima suicidaram-se simbolicamente na loucura; Luis de Montalvor veio a morrer, em 1947, num trgico e estranho acidente, de automvel; Fernando Pessoa suicidou-se devagar, mas com eficcia, no quase-silncio do retiro, da nusea e dos copinhos de aguardente (que no matam, mas ajudam); Alfredo Guisado suicidou-se no silncio. Mas nem o devastador rescaldo chegou para impor, em termos de rentabilidade, a sinceridade do investimento feito... Por outro lado, a maior figura do primeiro modernismo, Fernando Pessoa, no chegou a publicar, durante todo o perodo que durou este movimento, um nico livro. Com excepo da sua estreia em livro, com Mensagem, aos elementos do grupo da presena que se vai dever o arranque da publicao da obra completa de Fernando Pessoa, a qual, neste momento, ainda prossegue. Os do Orpheu fulguraram, e recolheram logo ao ineditismo. Caberia aos homens do segundo modernismo ressuscit-los, valoriz-los, imp-los e, como diria 20

Eduardo Loureno, met-los dentro da Histria da Literatura, onde no tinham naturalmente nascido nem posteriormente tentado entrar.

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II / O SEGUNDO MODERNISMO: A PRESENA

Seul lart magre, parti de linquitude, qui tende la srnit.ANDR GIDE

O primeiro nmero da revista presena apareceu no dia 10 de Maro de 1927, na cidade de Coimbra, com um subcabealho que indicava tratar-se de uma Folha de Arte e Crtica. Os directores e editores da revista eram Branquinho da Fonseca, Joo Gaspar Simes e Jos Rgio. A revista comeou por ser quinzenal mas, a partir do quarto nmero, deixou de respeitar-se a periodicidade inicial. No entanto, com maior ou menor regularidade, ela foi saindo durante 13 anos, at Fevereiro de 1940, data da publicao do ltimo nmero (editaram-se, ao todo, cinquenta e seis, isto , uma mdia de cinco por ano). Nesse primeiro nmero, sado fez h pouco cinquenta anos, Jos Rgio, que publicara dois anos antes os Poemas de Deus e do Diabo e tinha, incontestavelmente, um grande ascendente intelectual sobre os seus companheiros de tertlia, assinava um artigo programtico que, em termos de grande abertura, indicava as linhas de fora orientadoras da revista: Em arte, vivo tudo o que original. original tudo o que provm da parte mais virgem, mais verdadeira e mais ntima duma personalidade artstica. A primeira 22

condio duma obra viva pois ter uma personalidade e obedecer-lhe. Ora como o que personaliza um artista , ao menos superficialmente, o que o diferencia dos mais, (artistas ou no) certa sinonmia nasceu entre o adjectivo original e muitos outros, ao menos superficialmente aparentados; por exemplo: o adjectivo excntrico, estranho, extravagante, bizarro... Eis como falsa toda a originalidade calculada e astuta. Eis como tambm pertence literatura morta aquela em que um autor pretende ser original sem personalidade prpria 29. Neste texto invulgarmente firme, Rgio interligava, com subtileza, dois conceitos: o de originalidade e o de sinceridade. A literatura no original, isto , no nascida da parte mais virgem, mais verdadeira e mais ntima de uma personalidade artstica, cedo se mostrava como aquilo que era: uma obra no profundamente necessitada, no sincera, um tronco morto, uma retrica sedia. Era o caso de quase toda a literatura portuguesa publicada no primeiro quartel do sculo XX. Esse ponto era explcita e eloquentemente sublinhado no texto de Rgio: Pretendo aludir nestas linhas a dois vcios que inferiorizam grande parte da nossa literatura contempornea, roubando-lhe esse carcter de inveno, criao e descoberta que faz grande a arte moderna. So eles: a falta de originalidade e a falta de sinceridade. A falta de originalidade de uma literatura contempornea est documentada pelos nomes que mais aceitao pblica gozam. triste mas verdade. Em Portugal, raro uma obra um documento humano, superiormente pessoal ao ponto de ser colectivo. O exagerado gosto da retrica (e diga-se: da mais sedia) morde os prprios temperamentos vivos; e se a obra de um moo traz probabilidades de prolongamento evolutivo, raro esses 23

germes de literatura viva se desenvolvem. O pedantismo de fazer literatura corrompe as nascentes. Substitui-se a personalidade pelo estilo. (...) Assim se substitui a arte viva pela literatura profissional. E curioso: S ento os crticos portugueses comeam a reparar em tal e tal obra: Quando ela exibe a sua velhice precoce e paramentada. Regra geral os nossos crticos so amadores de antiguidades. 30 (os itlicos so nossos). Quando hoje se rel o programa da presena, at pelo que ele tem de amplo e pouco claramente circunscrito (nele cabia, nem mais nem menos, qualquer obra com algum interesse...), torna-se difcil compreender algumas das variadas e, nalguns casos, muitssimo barrocas acusaes de que a revista coimbr veio a ser alvo: subjectivismo, umbicalismo, esteticismo, ahistoricismo, individualismo, pessoalismo, psicologismo, formalismo, intemporalismo, eternismo, torre-de-marfismo... (Por vezes carregava-se um pouco no sal e aludia-se a esteticismo fechado ou a umbilicalismo trgico). Raramente um movimento literrio ter desencadeado, em Portugal, uma to florida panplia de qualificativos redutores! Ao ponto de se pensar que, se a presena no tivesse existido, teria sido preciso invent-la... Definir, sempre limitar. Definir de modo deliberadamente redutor como, muitas vezes, se fez apenas propor, como descrio do objecto que se visa, uma caricatura de uma sombra. um acto de des-leitura, cometido sem inocncia. Os textos programticos da presena so claros, desde o primeiro nmero; o que nem sequer excluir algumas justas observaes e reservas que se lhe possam fazer, como so, at certo ponto, algumas daquelas to civilizadamente articuladas! que lhe fez, ao longo dos 24

anos, Eduardo Loureno. Mas os textos, as intenes e, no pouco frequentemente, os actos crticos, so, repetimos, muito claros. Quando por exemplo se diz (e disse-se vezes sem conta) que foi esse esteticismo que isolou a Presena das inquietaes da vida, faz-se, por um lado, um uso abusivamente limitado do significado de vida (o amor depravado, as escavaes freudianas, o subjectivismo doentio, o egocentrismo agudo feito de isolamento, de solido, de impotncia de amar, de megalomania 31 so tambm parte integrante da vida), por outro, passa-se ao lado das verdadeiras intenes e, dos textos publicados. Logo no n. 9 da revista Presena, de Fevereiro de 1928, no clebre manifesto intitulado Literatura livresca e literatura viva, Jos Rgio como que antecipadamente se defendia deste tipo de acusao, em termos de inexcedvel eloquncia: Quer isto dizer, perguntava, que as preocupaes de ordem poltica, religiosa, patritica, social, tica, ho-de, forosamente, ser banidas da Obra de Arte? De modo nenhum. E quem dir que tais preocupaes so banidas da obra de um Dostoiewsky, ou dum Ibsen, dum Strindberg ou dum Pirandello, dum Gide ou dum Shaw, dum Claudel ou dum Gorky, dum Antero ou dum Tagore? O Artista homem e na sua humanidade que a Arte aprofunda razes. As obras de Arte mais completas podem ser, mesmo, aquelas em que mais complexamente se agitam todas as preocupaes de que o homem vtima... gloriosa vtima. E a paixo poltica, a paixo patritica, a paixo religiosa, como a paixo por uma ideia ou por um ser humano podem inspirar grandes e puras Obras de Arte. Mas... entendamo-nos: O que ento inspira a Obra de Arte a paixo; e uma paixo 25

considerada infamante ou uma paixo considerada nobre podem da mesma forma inspirar Obras elevadas sob o ponto de vista que nos interessa: esttico. O ideal do Artista nada tem com o do moralista, do patriota, do crente, ou do cidado: Quando sejam profundos e quando se tenham moldado de uma certa individualidade, tanto o que se chama um vcio como o que se chama uma virtude podem igualmente ser agentes de criao artstica: podem ser elementos de vida de uma Obra. No sei se deveria ser assim mas assim 32. Este firme arrimar-se a uma viva qualidade artstica que nada exclui do que ao homem diz respeito, ser, ao longo dos anos, pisado e repisado, quase at nusea (mas com poucos efeitos visveis nas reaces dos usuais comentadores da histria literria). No ensaio que, em 1938, dedicou a Antnio Botto e o Amor, voltaria carga: Mergulhe em que mergulhar as suas razes, a arte realiza sempre, e pelos seus nicos meios enquanto arte, esta espiritualizao do homem. E no seno em virtude desta moralidade intrnseca da arte que as paixes infamantes e os vcios, as ideias falsas e o egosmo, as inclinaes doentias e todas as misrias da humanidade se redimem atravs da viso do artista que deles prprios se nutre como homem. Outra moralidade no devemos pedir obra de arte como obra de arte. Ora assim como pode servir a moral mas livremente, espontaneamente, involuntariamente, com seus prprios meios e por determinao da sua prpria natureza, assim pode a arte servir a religio, a filosofia, a cincia, a sociologia, a poltica. S assim, porm. E eis o que nem sempre satisfaz certos manacos da aco imediata, e outras espcies de manacos. Estes no podem perdoar arte a independncia que ela afirma at quando serve: Dir-se-ia 26

odiarem tudo o que se liberta da escravido a que eles prprios se condenam. 33 Nesta ilimitao exigente que Rgio e os seus companheiros da Presena viam como a caracterstica inerente da obra de arte vlida, nesta aproximao ampla e generosamente plurifacetada (o objecto artstico poliedricamente rico), estava prodigiosamente presente a grande sombra tutelar de Flaubert: Du temps de La Harpe, dizia ele, numa carta a George Sand, on tait grammairien; du temps de Sainte-Beuve et de Taine, on est historien. Quand sera-ton artiste, rien quartiste, mais bien artiste? O connaissez-vous une critique qui sinquite de loeuvre en soi, dune faon intense? 34 Num texto publicado em 1944, no jornal O Primeiro de Janeiro, Rgio resumir de modo lapidarmente emblemtico o programa englobante que fora, a seus olhos, o da Presena: personalidade do artista-criador nada probe a presena seno que se falseie; nada impe seno que se revele. 35 E, de novo, em 1956, no suplemento de Cultura e Arte, de O Comrcio do Porto: O que sucintamente acabmos de expor nos poder, desde j, sugerir como a crtica da presena viria a ser fundamentalmente compreensiva, ou visando compreenso. Aceite o homem em toda a sua complexidade infinita, aceites todas as formas de expresso desde que eficientes, decerto estava a crtica da presena menos sujeita a uma ridcula, a uma estpida posio que, para cmulo chega actualmente a merecer aplausos: a da quase sistemtica oposio do crtico ao criticado; a duma pobre, mesquinha, domstica, particular bulha entre os dois. (Os itlicos so nossos). Outra das vantagens de se recorrer aos textos de preferncia a seguir-se passivamente o rasto das lendas e 27

dos lugares comuns (praticamente s h vantagens em se adoptar uma atitude destas, embora o preo, em trabalho, seja indubitavelmente elevado!), o ar fresco de surpresa e descoberta que no raro nos acolhe. A crtica da presena tem frequentemente, j o dissemos, sido acusada de um formalismo ou esteticismo rgido, fechado, trgico, algidamente remoto em relao a um algo a que se chama vida. presena interessaria sobretudo a forma... J vimos o desmentido caloroso e empenhado que alguns textos de Rgio (seleccionados de entre material de diferentes perodos) do a este tipo de assero. No fiquemos por aqui. Joo Gaspar Simes usualmente tido pelo crtico oficial da presena. Descontando o que tal qualificao possa ter de incomodamente oficioso, a verdade ter ele sido a personalidade presencista mais sistematicamente empenhada (e sobretudo nisso empenhada) numa actividade crtica de avaliao, seleco, interpretao, promoo e saneamento da coisa literria que, pelo seu volume, continuidade e durabilidade, encontrar poucos pares na nossa Histria Literria (com altos e baixos, carecendo de uma slida cultura filosfica que o defendesse contra alguns srios deslizes em que ocasionalmente cai 37, com bases tericas de uma flagrante fragilidade, Joo Gaspar Simes , ainda assim, pela independncia de que sempre fez gala, pela coragem aqui ou acol minada por uma susceptibilidade de mau conselho , pela intuio quase sempre certeira, pela persistente tarefa de uma omnipresente e incmoda vigilncia focada sobre o estado da repblica das letras, uma figura que no poder ser esquecida na Histria Literria Portuguesa do ltimo meio sculo). Vejamos pois, a seguir a Rgio, que 28

a mais importante personalidade total que a presena revelou, o que teve a dizer Joo Gaspar Simes, o crtico mais em evidncia e mais sistemtico do movimento, que pudesse legitimar a acusao de formalismo ou de esteticismo feita ao grupo. Logo no n. 6 da revista (18 de Julho de 1927) publicava o autor de O Mistrio da Poesia, um artigo intitulado Depois de Dostoiewsky. Nesse texto, e logo no comeo, assim define ele a importncia do romancista russo: Em Dostoiewsky tudo vivo. A contribuio mais extraordinria com que o escritor russo acorreu salvao da novela ocidental, foi precisamente uma contribuio vital, biolgica. 38 (Os itlicos so nossos). Independentemente das reservas que se possam pr ao sentido que a palavra biolgica ali possa ter, do que no restam dvidas de que se no faz uma defesa dos valores formais da arte do autor dos Karamazov 39. E para que no haja, a este respeito, qualquer dvida, G. Simes esclarece, logo a seguir, o seu ponto de vista: Desde Chateaubriand que se introduzira na novela francesa , consequentemente, na europeia o estilo, isto , o culto da forma pela forma, clara negao das mais caractersticas qualidades novelsticas: simpatia humana, perseguio exaustiva das pulsaes mais vivas de cada corao e total olvido de si prprio. Quer dizer, dum procedimento objectivo, externo, caram os novelistas num subjectivismo formal em tudo contrrio boa conduta dos criadores de microcosmos que outra coisa no devem ser as verdadeiras novelas. E introduo simples do estilo na criao novelstica, passou novela a sofrer de todos os males que a insistncia do escritor sobre a sua matria plstica a lngua ocasionou. 40 (Os itlicos so nossos). E mais adiante, repisando, para no ficarem dvidas sobre o que considera mais importante, na fico: 29

Ora o que mais peculiariza uma novela o fundo o subsolo humano que assenta a sua engrenagem cosmolgica. 41 (O itlico nosso). Cremos que os extractos acima dados, com os quais no precisamos sequer de estar de acordo (e de facto no estamos: h, numa boa novela ou romance, muito mais do que o fundo...), so abundantemente suficientes para demitirem, de uma vez por todas, a tendenciosa acusao de formalismo esterilizador que pertinazmente tem sido feita aos presencistas. Pois no vai Gaspar Simes at ao ponto de tentar reduzir o valor exclusivo da forma, falando pejorativamente de subjectivismo formal? 42 E no considera tambm que um dos ingredientes da arte romanesca o total olvido de si prprio de que o romancista deve ser capaz? E no se opor este olvido ao to decantado subjectivismo? Ainda no mesmo artigo, alude Joo Gaspar Simes, depreciativamente, a Flaubert, nos termos seguintes: Se repararmos em Flaubert, encontrar-nos-emos com o mais perfeito exemplar dessa degradao. As suas obras so verdadeiras arquitecturas em que o material construtivo formado por um poderoso talento plstico, e em que a parte realmente humana to diminuta e to rgida que apenas alcana comunicar-senos merc dessa plasticidade e dessa rigidez estaturia!43

Este texto tem um duplo interesse: por um lado, refora, de modo quase eloquentemente polmico, o ponto que temos vindo a expor; por outro, na medida em que frontalmente se ope proclamada, fascinada e pertinaz admirao de Rgio pela arte romanesca de Flaubert, mostra, de modo dramaticamente impressionante, que a presena esteve muito longe de ser 30

a academia rigidamente monoltica que dela quiseram fazer alguns detractores primrios. As ideias circulavam livremente e livremente se opunham, at entre os seus dois principais directores... Se, por fim, sondarmos a este mesmo respeito, os textos de Adolfo Casais Monteiro, que veio a ser, com Rgio e Simes, director da presena, a partir de 1931, concluiremos que tambm no por aqui que se achar apoio para o apodo de formalismo que tem sistematicamente perseguido o grupo de Coimbra. No n. 17 da revista, de Dezembro de 1928 (altura em que era j colaborador, mas ainda no director), Casais Monteiro, num texto Sobre Ea de Queiroz, faz esta afirmao de clareza meridiana, quanto s suas intenes: Julgar uma obra pelo critrio de perfeio ao menos pelo critrio de perfeio clssica a que estamos afeitos equivale a conden-la; perfeio uma palavra desqualificada, desde que se descobriu, no homem como na natureza, um perptuo jogo de contrastes e de antteses. 44 (O itlico do prprio Casais Monteiro). E, adiante, acrescenta: por esta nova escala de valores usados nos Maias que Ea atinge, quanto a mim, a sua verdadeira medida. Antes pode ser tudo o que quiserem, menos humano; quer dizer, quanto a um mdulo, o do ideal do romance realista, os seus primeiros romances so quase perfeitos; quanto a um ideal, o verdadeiro ideal da arte antiformalista, os Maias um livro extraordinariamente mais belo 45 (Os itlicos so nossos). Cremos que, em termos de rejeio de uma arte puramente formalista, dificilmente se poderia ser mais eloquente... at ao ponto de se cometer o indesculpvel erro de avaliao crtica que tomar Os Maias por um verdadeiro ideal da arte antiformalista (a 31

fuga ao modelo do romance francs e a aceitao do modelo do roman-fleuve ingls no fazem de Os Maias um romance formalmente imperfeito.) Por outro lado, tambm no devemos, a partir daqui, precipitar-nos a concluir que os valores formais no eram tidos em conta por Casais Monteiro ou por Gaspar Simes: todo o exerccio da actividade crtica destes dois importantes crticos explcito testemunho do contrrio (a coragem com que ousaram separar o trigo do joio, em termos de exigncia esttica, por alturas do advento do neorealismo, um exemplo entre muitos). Num livro publicado no Brasil, em 1961, Clareza e Mistrio da Crtica, Casais Monteiro diz, por exemplo, em certo ponto: J se tem visto fazer um grande elogio duma obra, para no fim, em rpidas linhas, se reconhecerem as deficincias do seu estilo. Aprecia-se a verdade da anlise, ou o valor social dum romance, para se acabar por confessar que est mal escrito, ou a intriga frouxa, ou a construo desequilibrada. Ora, num tratado de psicologia ou de cincias sociais, semelhantes deficincias podem ser perfeitamente secundrias, quando tais obras so susceptveis de as ter pois que, por exemplo, no h perigo de se acusar de ser falsa a intriga dum tratado de economia poltica, e, embora isso seja desagradvel, a falta de estilo dum estudo psicanaltico no afecta o seu valor intrnseco. 46 (, no entanto, este mesmo Casais Monteiro quem, ao citar os romances de maior nomeada do sculo XX, coloca, ao lado das indiscutveis obras-primas que so A Montanha Mgica, la recherche du temps perdu e Ulisses, o inepto, informe e mal estruturado Jean Christophe, de Romain Rolland. Aqui parece-nos tratar-se menos de uma lcida aceitao do impuro romanesco do que de um claudicar do sentido 32

crtico, de resto quase sempre to agudo, no autor de O Romance e os seus Problemas...) Voltando por fim a Rgio, no gostaramos de deixar passar em claro uma carta sua dirigida ao seu camarada Joo Gaspar Simes, em 1927, e por este h pouco revelada. Nela, a propsito de uma leitura que andava, por essa altura, a fazer, de Dostoiewsky, comentava: Tentando j falar como crtico, O Idiota parece-me dos livros mais brbaros, menos construdos, do Autor, mas talvez um pouco por isso mesmo dos mais completos, complexos e originais. Todo ele est cheio de alma e at da vida de Dostoiewsky... 47 (O itlico, em por isso mesmo, nosso). Parece-nos que Rgio, com toda a sua argcia e finura crticas, se enganava singularmente ao articular a originalidade e complexidade do romance russo com a suspeita de desarrumo e barbrie... Dostoiewsky era um singular arquitecto, do romance, que sabia pr o leitor em constante situao de perplexidade perante a escorregadia indefinio psicolgica dos personagens. Simplesmente, a opacidade e o aparente mistrio destes so-nos dados por intermdio de uma tcnica muito clara, muito concertada, muito pensada e muito arguta tcnica que a Rgio, e aos outros crticos da presena ter porventura escapado. Seja como for, damos este texto como exemplo, apenas por ser sintomtico da completa ausncia de fanatismo formalista entre os homens que, em 1927, apareciam a exigir, no uma literatura formalmente perfeita, mas sim, e muito decididamente, uma literatura viva, surta de personalidades de uma originalidade inevitvel 48, uma literatura que deveria propor-se como grande meio de

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exprimir, expandir, comunicar o que em parte (...) parecia transcender a literatura. 49 Quem eram os homens que se juntaram volta da presena, que influncias os dinamizavam, em que subsolo mergulhavam as suas razes culturais? Nascidos quase todos volta de 1900 (Adolfo Casais Monteiro, mais novo, e de 1908 e Adolfo Rocha de 1907), eram, pelo menos, numa boa dezena de anos mais novos do que Fernando Pessoa (1888-1935). O perodo da sua estada em Coimbra cobre os anos que se seguiram imediatamente I Guerra Mundial. Por essa altura, dominava os horizontes literrios europeus o grupo da Nouvelle Revue Franaise, na qual brilhavam os nomes de Andr Gide (o contemporneo capital, de que falava um dos seus pares), Jacques Rivire, Paul Valry, Jean Cocteau, Marcel Proust, Paul Claudel, Albert Thibaudet, conjunto que, no sem perfdia, era conhecido, nos meios artsticos parisienses, por la bande Gide... Num testemunho de que mais tarde far anteceder as suas Oeuvres Compltes, Roger Martin du Gard, um dos espritos mais honestos, equilibrados e precisos de todo o grupo, referir-se- assim ao agrupamento que veio a conhecer, em 1913, ano da publicao do seu romance Jean Barois: A falange da N. R. F. oferecia-me, de repente, uma coisa muito diferente: uma acolhedora famlia espiritual, cujas aspiraes e pesquisas eram semelhantes s minhas, e na qual eu podia ter lugar sem nada alienar da minha independncia de esprito, porque nada havia de menos doutrinrio do que este livre agrupamento de amigos, muito especiosamente qualificado de capela por aqueles que os julgavam de 34

fora 50. Como a N. R. F., a presena vir a ser tambm um livre agrupamento de amigos, sem nada de doutrinrio; como a N. R. F., vir a ser apelidada de capelinha fechada por aqueles que a julgariam de fora. A Histria repete-se. O grupo da N. R. F. nada tinha, realmente, de uma academia fechada e dogmtica. Como mais tarde, a presena, repetimos, o seu programa caracterizava-se pela ausncia de fronteiras. No era um grupo doutrinrio; no propunha uma ideologia. Num texto que dedicava memria do seu amigo scar Wilde, Andr Gide anotou uma observao que o dramaturgo irlands um dia lhe fizera: H duas espcies de artistas: uns trazem respostas, os outros fazem perguntas. Convm saber se se pertence aos que respondem ou aos que perguntam; porque aquele que pergunta, no nunca aquele que responde 51. A gente da presena, como a da N. R. F., era mais inclinada a perguntar, do que a responder. Para eles, a funo da arte era pr bem um problema, mais do que resolv-lo. Em arte, observava Gide, no h problemas de que a prpria obra de arte no seja a suficiente soluo. Concluir, excedia o pelouro e a competncia do artista: O pblico, hoje em dia, diria Gide prefaciando o seu romance, O Imoralista, j no perdoa que o autor, depois de pintar a aco, no se manifeste a favor ou contra; mais ainda, em pleno desenrolar do drama, quer que ele tome partido, que se pronuncie francamente por Alceste ou por Filinto, por Hamlet ou por Oflia, por Fausto ou por Margarida, por Ado ou por Jeov. No quero afirmar, claro, que a neutralidade (ia dizer: a indeciso) seja a marca de um grande esprito; mas creio que a muitos dos grandes espritos repugnou bastante... concluir e que o facto 35

de bem expor um problema no pressupe que ele j esteja resolvido 52. Digamos, de modo resumido e brutal, que o artista, segundo o cdigo librrimo da presena, no aceitava mandatos externos: acolhia apenas os que livremente escolhia por convirem ao seu gnio prprio. Cada artista era pois livre de seleccionar as cadeias e as condicionantes que lhe permitissem dar o melhor de si: nada mais oposto, num programa assim delineado, ao estreito e asfixiante esprito de escola. Por isso, os homens da presena, ao recuperarem, divulgarem e promoverem os companheiros mais velhos do primeiro modernismo, faziam-no sem esprito de academia fechada ou de cenculo reservado: ...nunca o autor [Rgio], observar um dia o poeta dos Poemas de Deus e do Diabo, falando em seu nome, nunca o autor abraou o Modernismo seno como livre Academia de criao librrima. Nunca outra lei aceitou no Modernismo, nem nenhuma escola ou corrente modernista se lhe imps crtica ou dogmaticamente. Por criadores individuais teve sempre as grandes personalidades modernistas que o apaixonaram. S por um Modernismo assim aberto lutou na presena e tem continuado a lutar at hoje: pela liberdade que pertence a cada artista original de forjar ele mesmo, e para si mesmo, as suas leis ou evases. Melhor: de se no submeter seno aos limites, regras, fugas, caracteres a que o submeta a sua prpria natureza humano-artstica. A substituio de uns dogmas estticos por outros (e pouco importa que a uns chamem tradicionais e a outros modernos ou modernistas) no lhe interessa. 53 (Este ltimo itlico nosso). Esta submisso do artista sobretudo s leis do seu prprio gnio, fora j um dos dogmas de Flaubert que teve, pelo menos em Jos Rgio, uma decisiva 36

influncia: Ou plutt lArt est tel quon peut le faire: nous ne sommes pas libres. Chacun suit sa voie, en dpit de sa propre volont, dizia o autor de Madame Bovary, em carta sua amiga George Sand 54. Outro dos autores da presena, um articulado e profundo ensasta e pensador aforstico injustamente esquecido, Jos Bacelar, repisar a mesma tecla: Ora um dos seus [dos polticos] manejos aliciantes mais insistentes consiste justamente em chamar o artista vida. Vejamos porm com cuidado o significado que a isto se pode dar. (...) O artista s deve seguir um caminho: aquele que o seu gnio interior lhe impe. Acontece, porm, esta coisa extraordinria: que estes caminhos so e sero sempre de uma variedade infinita. 55 O grupo da N. R. F. oferecia, pois, um leque de sugestes exemplares: defesa da originalidade e do gnio interior do artista, com o corolrio da preservao da sua liberdade interior, sinceridade, com todas as harmnicas que a perturbam, tnica nos valores especficos da arte (em arte as solues visadas so solues estticas e no outras o artista humilde em relao s suas competncias), coragem municiada numa hbil estratgia de avano e recuo (a coragem importante, mas durar no o menos...), curiosidade por culturas diversificadas e alheias (no ter medo das influncias que reforam os fortes e anulam os fracos) e, por fim, desejo de uma arte viva (Gide referir-se-ia ao mundo fechado e sufocante das academias simbolistas, acusando-as pela sua falta de curiosidade e de lan, pelo seu pessimismo corrosivo e pela sua resignao): uma arte alimentada por um tumulto interno sabiamente contido por uma disciplina eficaz. Vemos, por aqui, que nenhuma destas sugestes passou despercebida aos 37

homens da presena vindo at a tornar-se os leitmotivs recorrentes de um discurso esttico singularmente articulado, repetido, frequentemente clarificado e magnificado e, pelo que toca aos adversrios, distorcido, reduzido, caricaturado e at aconteceu! lido de pernas para o ar... O grupo de Rgio, herdando a loucura e o tumulto dos homens do Orpheu, entendeu, por outro lado, resistir e durar; loucura e fria (componentes activas de uma macbethiana vida explosiva e sem orientao), iriam eles impor um algo que lhes resistisse e as domesticasse: uma disciplina, uma resistncia: A arte, dissera Gide, est to distante do tumulto como da apatia 56. Pelo menos, uma certa arte. A um curto e devastador perodo de tumulto, pateada e arruaa, h que suceder um perodo de absoro do vendaval. A disciplina exercida sobre o vazio no classicismo academia. Mas o sistemtico tumulto, sem nada que lhe resista, acaba tambm por no encontrar ponto de apoio para as energias que desencadeia o apocalipse sem herdeiros. A loucura torna-se fecunda quando segregar uma razo que a contenha e aproveite: Les choses les plus belles, dissera tambm Gide, sont celles que souffle la folie et qucrit la raison 57. Por isso os homens da presena aceitaro algumas normas, algumas condicionantes: so constrangimentos livremente recebidos, traves conscientemente assumidos, disciplinas fecundas e que eles fazem questo de tornar estimulantemente produtivas. Um obstculo saudavelmente assumido pode transformar-se num desafio euforizante: Le grand artiste est celui quexalte la gne, qui lobstacle sert de tremplin 58. Rgio costumava dizer que acarinhava a ideia de escrever um ensaio intitulado A cadeia da 38

rima, com o qual pretenderia demonstrar que a rima ou qualquer outra condicionante aparentemente limitadora de liberdade tinham, no fundo, para o artista verdadeiramente criador, o efeito contrrio: ao tentar acomodar-se dentro dessas limitaes artificialmente impostas, o poeta acabaria por encontrar solues mais interessantes e fecundas do que aquelas que eventualmente acharia se trabalhasse em plena liberdade... A dificuldade acirra o engenho e refina a soluo. A rigidez do protocolo magnifica a perfeio do salto. A limitao opressora liberta energias insuspeitadas. 59 Os escritores da presena no esconderam nunca a dvida que ficaram a ter no s para com o grupo da N. R. F., mas tambm para com alguns mestres do sculo XIX, alis criticamente valorizados por este ltimo grupo (entre eles, Dostoiewsky, de que Andr Gide faria uma leitura profunda e subtil). Os presencistas, na esteira de Gide, no receavam as influncias. Nos verdadeiros criadores, a influncia nada cria, simplesmente desperta, dissera-o o mestre dos Prtextes: Aqueles que receiam as influncias e delas se esquivam, fazem a tcita confisso da pobreza da sua alma. Nada de muito novo haver neles a descobrir, visto que relutam prestar a mo ao quer que possa guiar-lhes a descoberta. 60 Dotada de uma forte e decidida personalidade, a um tempo criadora e crtica, a presena ia revelar-se altura de uma tarefa que o Orpheu iludira. O primeiro modernismo oscilou entre acirrar e ignorar o chiadstico pblico nacional de que falava Eduardo Loureno. Por outras palavras, o Orpheu no mostrou possuir vocao 39

pedaggica. Pessoa, Almada, S-Carneiro, atropelavam e fugiam, sorrindo em itlico. Os bardos rficos apossaram-se do pblico como quem pratica um estupro chocarreiro. Veio a caber ao grupo coimbro conquistar, atravs de uma meditada dialctica persuasiva, um pblico, primeiro traumatizado, depois esquecido. O fogo de artifcio do Orpheu perdera-se, como j vimos, queimado na violncia do prprio fulgor. H na magia profunda desta gente, neste guignol desmedido, uma brutalidade, uma brusquido, que se autoliquidam a curto prazo. Foi preciso chegarmos a uma gerao que no temia ser inteligente e cautelosa, para que os loucos de ontem se convertessem nos mestres de hoje: A imaginao imita; o esprito crtico que cria, insinuava o prfido Wilde. Em termos de pblico, o Orpheu foi uma inveno da presena: que o construu e astutamente plebiscitou. Assim, a gerao da Presena, resumir Casais Monteiro, coloca-se, desde o incio, na esteira de uma revelao anterior e, em vez de reivindicar louros para si, pede-os, exige-os, para as grandes figuras que tinham criado, por altura da primeira guerra mundial, uma nova viso da literatura, e aberto novos horizontes aos seus meios de expresso. Este aparente passo atrs, que na realidade um passo em frente, pois reintegra no seu devido lugar valores que tinham permanecido, por assim dizer ocultos, e sem eco, faz da presena, dentro em pouco, o ponto de convergncia de todas as tendncias modernistas, que at ento s tinham tido expresso atravs de fugazes publicaes a comear nos dois nicos nmeros do famoso Orpheu , ou atravs de outras, mais duradouras, mas de carcter literariamente ambguo,

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como a Contempornea, e sem que nenhuma delas exercesse aco crtica sistemtica. 61 Tem-se por vezes pretendido salientar, na presena, com intuitos um tanto disfaradamente pejorativos, a supremacia da faceta crtica sobre a faceta criadora. Cremos que j tempo de se acabar com esta falsa antinomia, que visa opor dois tipos de discurso que na realidade se no opem. Sem irmos mais longe, recordaramos Nietzsche, que chamou a nossa ateno para o facto de que a obra de arte emerge, no tanto do milagre de uma imaginao criadora, como do poder do julgamento que escolhe, ordena e tria os elementos de que a obra se forma. A verdadeira crtica um discurso vivo e criador sobre objectos tambm vivos que so os livros e nisso no difere da poesia ou da narrativa. Dizer que a presena foi mais crtica do que criadora s pode ter um sentido de ligeira diferenciao, quase especiosa, mas, em todo o caso, sem componente pejorativa ou redutora. Textos de Barthes ou Steiner em nada ficam a dever, em termos de investimento criador, ao melhor dos textos sobre que tecem os seus discursos de tessitura musical (de a que tanto autor lhes resista eles instalam-se decididamente no terreno do criticado, envolvendo-os num discurso que os continua e magnifica) 52. Outras duas influncias determinantes, pelo menos entre alguns elementos da presena, foram as de Freud e Bergson (sobretudo em Gaspar Simes; Rgio, embora de modo complexo, e apesar de sensvel ao folhetim psicolgico de Proust que muito admirava tendia a afastar-se da magia do discurso bergsoniano, para se 41

aproximar, sedento e seduzido, da claridade de Antnio Srgio: o autor de El-Rei Sebastio considerava as objeces de Srgio filosofia de Bergson como razo suficiente para fazer do autor dos Ensaios uma glria internacional, se no fora o problema da lngua...) , na realidade, Joo Gaspar Simes quem sobretudo justifica a afirmao frequentemente feita de que a presena deu primazia intuio sobre a razo. verdade, no que diz respeito ao crtico mais sistemtico do movimento. Mas uma assero difcil de sustentar, se aplicada, por exemplo, a um Jos Rgio, a um Jos Bacelar ou mesmo a um Adolfo Casais Monteiro, mas s at certo ponto no caso deste. Em Rgio, sobretudo, e cremos que foi ele o mais articulado terico do grupo a capacidade de anlise e de teorizao so invulgares e no s em criadores literrios. Quem leu os textos ensasticos do autor de Em torno da expresso artstica (e, pelo que frequentemente se escreve, fica-se com a impresso muito ntida de que poucos os leram de facto), quem conviveu com ele longamente, colheu a inesquecvel impresso que, por vezes, tambm d Marcel Proust, de uma organizao intelectual perfeitamente compatvel com uma carreira de cientista. A famosa cautela intelectual com que tanto se tem agredido o autor de Benilde, e que ele humildemente exibia, o receoso avanar de uma proposio mais generalizante, a reserva perante uma hiptese mais ousada, a sua to peculiar estratgia de avano e recuo, de prudncia e expectativa, de receosa aproximao, de conscincia de um erro provvel, tudo isto, que tanto tem chocado os nossos literatos destemidamente afirmativos e dogmaticamente cientficos, so, no fundo, ingredientes tpicos de uma verdadeira 42

metodologia cientfica de que os nossos cientficos vivem afinal to distrados. Embora qualquer livro elementar de introduo cincia o possa tambm dizer, transcrevemos aqui, com gosto, e a propsito, este pequeno pargrafo de um texto clebre, de Bertrand Russell: Embora isto possa parecer um paradoxo toda a cincia exacta dominada pela ideia de aproximao. Quando algum nos disser que sabe a exacta verdade acerca de alguma coisa, podemos com segurana inferir que se trata de um homem inexacto. (...) caracterstico destas matrias nas quais algo se sabe com excepcional exactido, que, nelas, todo o observador admite, como provvel, estar errado e sabe pouco mais ou menos quo errado provvel que esteja. 63 Por outro lado, continua o autor de The Analysis of Matter, em matrias em que a verdade no averiguvel, ningum admite que haja a mais ligeira possibilidade que seja do mais nfimo erro nas suas opinies. 64 Divertiu imenso a galeria a triste boutade de Jos Rodrigues Miguis, ao dizer de Rgio, um dia, que este era um dos mais prudentes autores da nossa literatura: como no se referia, por certo, s atitudes cvicas que Rgio nunca hesitou em tomar, nem coragem de outra ordem exibida com a publicao de um romance como o Jogo da Cabra-Cega, nem coragem (e bem rara) que sempre ostentou em no ter nem partido, nem exrcito privado (o que o tornava fcil e corajosamente vulnervel ao insulto de passagem e, com ele, os seus camaradas da presena), cremos que Rodrigues Miguis se quereria referir, precisamente, lenta e caracterstica cautela com que Rgio se movia nos seus textos crtico-ensasticos. Se assim , teramos ento que sugerir a Miguis que extrapolasse a boutade agressiva ao extremamente 43

cauteloso Antnio Srgio (todo o verdadeiro ensasmo se articula em termos de desconfiana construtiva e toda a verdadeira cincia s se constri em termos de deliberada falsificao 65, isto , de tentativa de demonstrao acelerada da falsidade das prprias hipteses que sucessivamente se vo avanando...) e a todos os textos dos verdadeiros ensastas de todos os tempos. O esprito dogmtico de muitos dos nossos literatos realmente mais sonoro e de mais efeito, mas nisso, precisamente, que o ensasta Jos Rgio foi um caso deveras singular e no necessariamente para pior. Por outro lado, ao dizermos de Gaspar Simes que era um crtico sobretudo intuitivo, tambm no estamos a fazer um juzo sistematicamente redutor: pretendemos apenas caracterizar um tipo de mentalidade, com tudo quanto tem de positivo e de limitado. Nisto, de resto, creio estar G. Simes na boa companhia de um dos mais penetrantes espritos crticos modernos que sobretudo se distingue por um grande fulgor intuitivo: Andr Gide. Deles, dir-se-ia que possuem, em grau menos elevado, a faculdade de definir e de analisar. Por outro lado, desde que um problema lhes capta a curiosidade intelectual, a ele se entregam com entusiasmo e, no raro, com fulgor. Nesta medida, algumas das intuies do autor de O Mistrio da Poesia marcaram data: referiria, por exemplo, algumas das suas pginas fulgurantes sobre Os Maias e sobre O Crime do Padre Amaro, no seu livro indiscutivelmente importante dedicado a Ea de Queiroz 66. Nestes textos perdurveis encontra-se, de modo vincado, a presena invasora de Freud, com tudo quanto tem de estimulante, perigosamente engenhoso e, s vezes, escorregadio. 44

Os jovens que em 1927 se reuniram em volta da presena andavam, em mdia, volta dos vinte e cinco anos e tinham, j antes, ensaiado o seu voo, com outros empreendimentos. Entre 1923-1924 apareceram, em Coimbra, seis nmeros da revista Bysancio, incluindo colaborao de Jos Rgio (sonetos e textos de prosa narrativa), Alexandre de Arago, Vitorino Nemsio, Antnio de Sousa, Alberto Martins de Carvalho, Joo dAlmeida, Fausto Jos dos Santos, Vasco de Santa Rita, etc. Conforme sublinha Fernando Guimares 67, sentese ainda muito forte, nesta revista, a influncia do simbolismo, apesar de se ler num artigo de apresentao, da autoria de um dos dirigentes: Bysancio no significa de nenhum modo a sistemtica excluso da paisagem natural e formas nacionais pelo mrmore dos cenrios recompostos e nostalgia de poentes demorados e doentios. mais um smbolo esttico de unio do que uma resultante comum. Mais um emblema, espcie de divisa herldica, que nos abstm da poluio mas no restringe. Quase pela mesma altura (1924-1925) aparece uma outra revista, tambm em Coimbra: Trptico, dirigida por um grupo heterogneo, do qual faziam parte Afonso Duarte, Antnio de Sousa, Branquinho da Fonseca, Campos de Figueiredo, Guilherme Filipe, Joo Gaspar Simes, Alberto Van Hoertre de Teles Machado, ngelo Csar e Vitorino Nemsio. Alm destes, nela colaboraram ainda Teixeira de Pascoais, Lus Guedes de Oliveira, Jos Rgio (que nela fez inserir o trecho em prosa Maria de Magdala, captulo de um romance de extraco flaubertiana), Aquilino Ribeiro, etc. Um dos 45

seus directores, o ento juvenil Gaspar Simes, notar mais tarde, fazendo a histria desses tempos literrios, que nas suas pginas [de Trptico] que outra pliade de gente coimbr, alguma dela j madura esse o caso de Afonso Duarte , movida pela paixo de dois jovens, revela, por um lado, velhos sonhos, e, pelo outro, uma imatura vocao literria. Nove nmeros vm a lume dessa revista que tira o seu nome das seis pginas em que impressa na disposio grfica de trptico. Arte, poesia, crtica o trplice programa da publicao. Nela se acolhiam consagrados de facciosa ideologia e de exclusivismo erudito. Como puderam conciliar em to apertado espao gentes de to oposta natureza um enigma a que facilmente responde a extrema juventude dos seus dois principais esteios, um com dezanove anos Branquinho da Fonseca , o outro com vinte e um o autor destas linhas [G. Simes] 68. Foi a partir das personalidades reunidas em torno destas duas revistas que veio a sair, em 1927, o principal ncleo de colaboradores e os trs primeiros directores da revista presena, cujo primeiro nmero veria a luz, como j dissemos, em 10 de Maro de 1927 (nesta data, Joo Gaspar Simes, um dos elementos fundadores, codirector e um dos mais activos e influentes colaboradores ao longo de toda a vida da revista, estava fora de Coimbra na Figueira da Foz e s regressaria cidade universitria em Outubro desse mesmo ano). Parece no restarem dvidas, atravs de vrios; depoimentos de camaradas de tertlia, ter sido Jos Rgio, j nessa altura, a personalidade mais destacada do grupo e a que sem dvida maior influncia exerceu na orientao da revista. O prprio Gaspar Simes 46

lisamente o reconhece: Mais velho dois anos do que eu e quatro do que Branquinho da Fonseca, o autor dos Poemas de Deus e do Diabo, que vinha de imprimir, nos prelos de Vila do Conde, sob o seu prprio nome Jos Maria dos Reis Pereira uma famosa dissertao de licenciatura, disfrutava sobre ns o ascendente da idade e da bagagem que recebera nos seus estudos da Faculdade de Letras. certo que a certas positivas vantagens de ordem cultural ou escolar se associavam excepcionais qualidades de inteligncia e uma precocidade particularmente revelada nas lides da crtica. Jos Rgio, alm da personalidade evidenciada nos seus versos, afirmava uma aptido intelectual tanto mais extraordinria quanto era certo encontrar-se de acordo com manifestaes de arte e literatura menosprezadas pelos espritos com quem ns, jovens, tnhamos at a mais intimamente privado. De facto, enquanto Vitorino Nemsio, meu condiscpulo algum tempo na Faculdade de Direito, permanecia voltado para Anatole France e Aquilino Ribeiro (...), o poeta dos Poemas de Deus e do Diabo vivia no culto de Dostoiewsky, de Andr Gide, de Marcel Proust, de Apollinaire, considerando a gerao do Orpheu por essa altura sobrevivente nas pginas da Athena, uma gerao de verdadeiros mestres. 69 E acrescenta: O meu encontro com Jos Rgio foi decisivo para a minha vida literria. Se em mim havia a percepo dos valores artsticos que viriam a ser a base esttica da nova gerao, o certo que os meus poucos anos, a minha nula precocidade, o isolamento a que estivera votado durante o tempo em que sondara a profisso comercial (...) e a infeliz matrcula num curso cuja matria me repugnava no tinham sido favorveis a uma consciencializao de gostos e preferncias latentes 47

no meu subsolo intelectual, A aproximao com Jos Rgio tornou-se-me, por conseguinte, capital. Embora j me tivesse passado pelas mos o Crime e Castigo, de Dostoiewsky, e scar Wilde, DAnnunzio, Nietzsche, Ibsen, figurassem na minha pequena biblioteca, autores que Rgio considerava, o certo que nem Proust, nem Gide, nem Apollinaire, nem Max Jacob, nem Jean Cocteau, mestres das novas tendncias literrias, l tinham ainda o seu lugar. A pintura moderna j ns da Fonseca e eu a admirvamos. Trptico escandalizara Coimbra com os seus desenhos modernistas. A verdade, porm, que em literatura, eu, pelo menos, ainda no descobrira os autores modernos. 70 E conclui, numa inequvoca homenagem de gratido ao excepcional companheiro e argonauta de aventuras estticas e outras: Foi com Rgio que comecei a admirar os mestres que vieram a ser os nossos deuses tutelares. 71 [Note-se, entre parntesis, que a posio de Jos Rgio, em relao obra e personalidade de Gide, ir-se- tornando gradativamente mais reticente e at... desconfiada. Enquanto a sua admirao por Marcel Proust se mantm intacta ou vai at aumentando, com Gide d-se um evidente arrefecimento: Rgio, reconhecer-lhe- sempre a finura crtica, a argcia intelectual, a seduo da escrita; mas ver nele, menos e menos, um exemplo de verdadeiro criador profundo e fecundo.] A presena vai trazer uma outra contribuio: em vez de falar sobretudo e especificamente de literatura, tratar, de modo mais geral e mais totalitrio, de arte: De facto, sublinha ainda Gaspar Simes, por ento que se tornam mais ntimas as relaes que tacitamente sempre haviam existido, de resto, entre as artes plsticas 48

e as artes literrias. Um filsofo como Alain, escrevendo o Systme des Beaux Arts, consagrava essas segundas npcias da arte e da literatura, desavindas em grande parte do realismo para c. 72 E acrescenta, no mesmo trecho: E assim que o homem, com toda a sua complexa trama de razo e instinto, de alma diurna e alma nocturna, entra na expresso artstica literatura, pintura, escultura, msica, teatro, cinema, este, ento em pleno ritmo ascencional no plano do silncio, o seu mais legtimo plano , com a soma global das suas virtualidades visveis e invisveis, naturais e sobrenaturais, conscientes e inconscientes. 73 A revista inclui, de facto, um vasto espectro de preocupaes e realizaes, anunciadas, de resto, pelo toque de clarim do primeiro artigo programtico de Jos Rgio: alm de poesia, publica peas de teatro (Branquinho da Fonseca, Jos Rgio, Almada Negreiros, Raul Leal), contos ou excertos de romance, artigos sobre cinema (da autoria de Jos Rgio e de Manuel de Oliveira), artes plsticas (Jos Rgio, Diogo de Macedo, e Antnio de Navarro), msica (Fernando Lopes Graa: Com ele entra o gosto melmano nos arraiais da gerao 74), literatura, filosofia e ensaio (Delfim Santos, Jos Marinho, Raul Leal, Mrio Saa, Jos Bacelar, Jos Rgio, Joo Gaspar Simes, Adolfo Casais Monteiro, Albano Nogueira, Guilherme de Castilho, etc.). A partir do n. 4, comea a publicar, nas suas pginas, textos dos futuristas: Raul Leal, Mrio Saa, desenhos de Almada Nogueiros, poesias de Fernando Pessoa, lvaro de Campos, Mrio de S-Carneiro: Aos jovens de Coimbra juntavam-se os mestres de Lisboa. A coeso estava feita, 75 notava Gaspar Simes, logo acrescentando: Agora restava proceder ao trabalho 49

mais importante a reviso de valores que fixaria, de uma vez para sempre, a posio crtica da folha e, consequentemente, da gerao, no quadro das categorias literrias nacionais. 76 Durante o perodo, extraordinariamente longo, de treze anos (longo para uma revista com as caractersticas que tinha a presena), o grupo coimbro vai pr no seu activo um impressionante leque de realizaes: ressuscita, impe e consolida a gerao do primeiro modernismo, metamorfoseando os seus componentes de clowns em mestres (num arrazoado lrico de 1928, Rgio atira ao leitor, provavelmente perplexo, esta amostra de apologia do futurismo, dando-a como excitante a que [ele] pense [...] e julgue [...]: O Futurismo exige a liberdade das palavras! proclama a pintura simultnea! magnifica o lirismo da fora, da sade brutal, da alegria animal, da velocidade, do sol! O cubismo descobre novas harmonias de cores, novas arquitecturas de linhas, novos jogos de volume refaz o mundo pela cabea dos cubistas! O expressionismo desencadeia sobre a natureza todos os sonhos, febres, nsias e tormentas do homem interior. O Dadasmo declara desprezar a Arte, reduzindo-a revelao espontnea do homem primitivo. O ultra-realismo, afasta toda a realidade realista! Mas teorias sucedem-se, combatem-se, negam-se, aniquilam-se, satirizam-se nascem num dia, morrem num ms... Todas as construes dogmticas, todas as afirmaes generalizadoras ruem. 77); um pouco na esteira do Julien Benda, da Trahison des clercs, luta com uma coragem que os seus principais colaboradores mantero pela vida fora, contra todas as formas de servilismo intelectual, contra o compadrio de partido 78 ou de 50

capela 79, que infestava as letras nacionais (Cada faco poltica e cada capela dispunha dos seus padroeiros, tinha os seus devotos, dir mais tarde Joo Gaspar Simes 80.); prope e consagra um ncleo de poetas, romancistas, contistas, dramaturgos, que renovam o cenrio das letras nacionais, atravs de uma curiosidade viva pelo homem (e no s psicolgica...): Branquinho da Fonseca, Miguel Torga, Irene Lisboa, Jos Marmelo e Silva, Vitorino Nemsio, Edmundo de Bettencourt, Antnio de Navarro, Olavo dEa Leal, Pedro Homem de Melo, Saul Dias, Francisco Bugalho, Carlos Queirs, Fausto Jos, Alexandre de Arago, Antnio Botto, Alberto de Serpa...; cria as edies presena, para as quais o autor entrava com o dinheiro e a revista com o prestgio gradativamente crescente e cobiado (exemplos de edies presena: Posio de Guerra, de Branquinho da Fonseca, Biografia, de Jos Rgio, Temas de Joo Gaspar Simes, ...mais e mais, de Sal Dias, Amores Infelizes, de Joo Gaspar Simes); mostra um interesse vivo e crtico pelo cinema, como arte, desde o primeiro nmero: Foi ela, nota Gaspar Simes, a primeira revista de artes e letras que em Portugal concedeu ao cinema honras de verdadeira arte. 81 (Logo no primeiro nmero da revista, Rgio afirma convictamente: Hoje o Cinematgrafo j Arte. J cita Obras-Primas. J tem artistas habilidosos, talentosos ou geniais. J lcito, pois, tentar definir a Arte dum Mosjoukine como se tenta definir a dum Poeta ou dum Pintor. 82); comea a publicar uma srie de Tbuas Bibliogrficas dedicadas aos corifeus do modernismo (SCarneiro, Pessoa, Raul Leal, Mrio Saa, Antnio Botto, Almada Negreiros); a propsito de uma homenagem oficial prestada em Coimbra ao poeta menor Antnio 51

Correia de Oliveira, a revista publica um comentrio spero e inquisitivo, sobretudo por se ter a Universidade associado s elebraes, decretando feriado 83; publica Cartas Inditas de Antnio Nobre, os Indcios de Oiro de SCarneiro, estabelece, graas aos bons ofcios de Casais Monteiro, uma efectiva e no oficiosa aproximao com escritores brasileiros de vulto, que se tornam colaboradores da presena; agride com coragem e coerncia, em relao sua filosofia esttica de sempre, a poltica de dirigismo cultural do Estado Novo; abre-se a colaboradores que, num futuro prximo, mudaro de campo, passando a defender valores de arte menos compatveis com o alegado individualismo e formalismo presencista: Joo Jos Cochofel, Mrio Dionsio, Fernando Namora... Organiza exposies de pintura, concertos e conferncias literrias. 84 Polemica com O Diabo, v crescer o seu prestgio na razo directa, ora de uma hostilidade simplesmente mesquinha, ora de uma inevitvel oposio esttico-ideolgica que os tempos tambm promovem e, em parte, justificam: Colaborar na Presena era a suprema honra para cada jovem que surgia na Lusa Atenas..., dir Antnio Ramos de Almeida, um dos crticos do neo-realismo. 85 O prestgio tem o seu preo: volta da presena comeava a rondar o inevitvel cortejo compsito de malcias, invejas, calnias e, tambm, de um genuno desejo de emancipao e evoluo. Comea-se a falar em academia, em anquilosamento, em reaco... Estamos em 1935. J cinco anos antes se dera uma ciso interna dentro do grupo presencista: numa carta de 16 de Junho de 1930, Adolfo Rocha (Miguel Torga), Edmundo de Bettencourt e Branquinho da Fonseca invocam um pretexto nebuloso e afastam-se da revista. 52

O pretexto dado era ridculo e mal articulado: a perspectiva dum tipo nico de liberdade que os signatrios imputavam como destino inevitvel de quem continuasse amarrado ao grupo, facilmente desmentvel pelos actos e pelos textos. O incidente tem, em si, pouca importncia, em termos de histria da literatura, ao contrrio do que pensa Gaspar Simes 86 (que, de resto, o analisa em termos de miudezas psicolgicas de comportamento humano); mas significativo como indicao, em escala menor e interna, do que ir dar-se, em escala maior e mais visvel, no muito tempo depois. A emancipao de Torga, Branquinho e Bettencourt, a nvel de histria de mestres e discpulos, pura petite histoire sem grandeza e sem verdade; mas, a nvel de uma genuna inquietao de quem visa respirar outros ares e abrir-se a outras preocupaes, um sintoma ominoso e um sinal que convm ler com ateno e simpatia. Em 1935, os sinais so mais abundantes e mais evidentes. Rgio reage: natural que no decorrer de nove anos a presena tenha variado um pouco os seus pontos de ataque, os seus campos de guerra, os seus estilos de luta, as suas preocupaes de pormenor. Ou sereis vs, prezados camaradas, vs os dinamitistas, vos os avanados, vs os desempoeirados de esprito, (pois com outros defuntos no gasto eu cera...) que a um tempo acusareis a presena de estar parada e de no ter parado?! No, decerto. Inconsequncias e limites desses, tm-nos aqueles espritos retrgrados contra os quais todos ns vimos lutando... Para quem der presena o indispensvel mnimo de simpatia e compreenso, aparecer natural que ela tenha evolucionado um pouco durante os seus nove anos de existncia, sem deixar de essencialmente 53

continuar sendo o que sempre foi. E aparecer natural que, por vezes, os seus nmeros sejam desiguais, uns melhores outros piores, uns com mais versos outros com mais pancada, uns com mais prosa artstica outros com mais prosa crtica, uns com colaborao de A e B outros j sem a colaborao de A e B... So vicissitudes da vida de qualquer revista, sem atravessar as quais nenhuma revista vive: mormente uma revista portuguesa deste gnero. Dai-vos ao trabalho de confrontar os primeiros nmeros da presena com os mais prximos: Se nada vos cega, tereis de verificar que no evolucionou para pior. Agora, que a presena no o que poderia ser?, que tem muitas deficincias?, que no atinge o ideal? Oh! plenissimamente de acordo! Quer isso dizer que seja um cadver? No... ningum se incomoda com as doenas de um cadver. Quer dizer que se pode fazer melhor? Quer. Pois bem: fazei vs aparecer uma revista superior presena. Dai-lhe uma expanso como a presena nunca teve. Descobri-lhe colaboradores que a presena nunca descobriu. Abri-lhe horizontes que a presena nunca sonhou. Alimentai-a com sacrifcios que a presena nunca nos mereceu. Erguei-a a um plano de sonho e combate que a presena nunca indicou. Assegurai-lhe uma existncia a par da qual nada sero os trabalhados nove anos da presena... (Vs tendes razo! O que a presena para o que h a fazer? Fazei, prezados camaradas! Fazei!) E depois de ter alado a sua taa a esse triunfante rival, presena morrer contente. Ora at l no deveis esbanjar energias que vos viro a ser necessrias: no deveis incomodar-vos com a presena da nossa presena. Dai-nos licena de humilde e provisoriamente existir. 87

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A reaco de Rgio era firme, articulada, maliciosa sem baixeza, e constitua um desafio construtivo. Era j o famoso e saudvel: Dmolissez-moi! [Et faites-mieux!] que anos depois Antnio Srgio atiraria face de Antnio Jos Saraiva e do seu grupo... A verdade, porm, que a sua lucidez pressentia que um vento de inquietao e renovao gradativamente mais forte comeava a soprar. Em carta a Joo Gaspar Simes, de 21 de Maro de 1936, Rgio observa: Uma gerao comea a mexer-se contra ns, certo mas contra o que em ns melhor s pode mexer-se pelo que nela pior. O resto... so defeitos dela e nossos. O resto o inevitvel fluxo e refluxo das geraes, o jogo das paixes melhor ou pior disfaradas, a luta dos interesses e o struggle for life, a histria de sempre o movimento cruel e fecundo. Erguer-se-o vrios contra ns, como ns nos erguemos e ergueremos contra vrios... Mas v cada um de ns fazendo o mais e o melhor que pode, v cada um de ns procurando atingir o seu instante de eternidade, que acima do movimento temporrio h qualquer coisa de eterno. 88 Denunciando embora o que haveria de mesquinho ou demasiado humano em certos ataques, Rgio era forado a reconhecer no horizonte o inevitvel fluxo e refluxo das geraes e, mais do que isso, o movimento cruel e fecundo... Os primeiros ataques partiro simultaneamente do semanrio lisboeta O Diabo e da revista portuense Sol Nascente. Nem todos so articulados de modo convincente. At muito mais tarde, certa crtica neorealista (no toda, felizmente) continuar a mastigar chaves esvaziados de contedo, aludir a imobili[zao] num intelectualismo sem sada (no se sabe bem o que isto seja), a princpios caducos 55

(quais?), a uma literatura confinada em si prpria (quando defendeu a presena tal coisa?), a anlises minuciosas sem outro objectivo alm dum esteticismo estril, a um individualismo estetizante... Mas, para alm deste estrebuchar lingustico e desta gaguez filosofante, algo de genuino e forte e voluntarioso comeava a emergir. Alguns dos melhores e mais articulados representantes da corrente neo-realista reconhecero o servio, prestado pela presena, til pela agitao provocada, pelo seu esforo de arejamento, pela hostilidade a um intelectualismo amorfo 89, mas notaro que o horizonte respiratrio dela no podia j corresponder s realidades instantes de um mundo que acabava de ser experimentado na guerra de Espanha para mergulhar numa outra guerra ainda mais reveladora da urgncia de certos problemas e do quanto todo o homem neles participava. 90 A presso envolvente acabaria por ter repercusses internas. Reagindo embora, o grupo, geograficamente dividido, enervado por razes mltiplas (de que o apocalipse internacional pendente e, em Espanha, j ensaiado, no devia ser pequeno factor), usado e tenso por treze anos de resistncia ao desgaste financeiro e usura que a independncia inevitavelmente segrega, desapoiado dos partidos e exrcitos particulares a que aludia SainteBeuve e portanto vulnervel ao insulto de passagem, a presena estava merc do primeiro incidente interno que a viesse definitivamente desagregar. O incidente surgiu sob a forma da publicao, no ltimo nmero da revista, de um texto de Gaspar Simes, Dilogos inteis. Casais Monteiro, co-director da revista, desde 1931, aps a dissidncia, considera-os reaccionrios e escreve uma resposta que Rgio se recusa a publicar na 56

revista, do mesmo passo que mostra, em relao ao seu camarada, uma atitude mais conciliatria do que aquela que desejaria Gaspar Simes. A ciso estava consumada. Francisco Bugalho, dedicado amigo do grupo, tenta salvar a revista. Mas Rgio sentia-se cansado e atrado por outro tipo de tentaes, a menor das quais no era a sua obra pessoal. Um grupo de autores aderentes do movimento rival e ascendente neo-realismo ainda dirige aos trs directores da presena uma nobre carta de incitamento a que se no deixe morrer uma reviste que sempre tinham visto defender pena de cada um dos seus directores a seriedade e sinceridade artsticas acima dos conflitos pessoais e das escolas literrias. Tentativa idntica fez um grupo de escritores mais ligados a presena: Guilherme de Castilho, Jos Marmelo e Silva e Joo Campos, que amargamente comenta: Um ideal comum de beleza, lucidez, amplificao, cultura no conseguiu vencer, parece, os desencontros pessoais e conflitos particulares de todos ou de alguns dos seus directores. 92 Era verdade; mas no era toda a verdade. Havia tambm uma histria de cansao e de usura nervosa. E no se podia dizer que a influncia da presena cessara com o desaparecimento fsico da revista. Noutros lados, Rgio, Casais, Gaspar Simes, Castilho, Nogueira (Albano), Bacelar, iriam fazer sentir a influncia do seu magistrio de independncia crtica. Agora, ainda mais desarmados. Muitas vezes, legitimamente vulnerveis. E, sobretudo, a obra criadora de alguns iria deixar uma marca perdurvel na superfcie visvel de histria literria portuguesa: uma obra de audcias dominadas, de aventura que uma ordem vigilantemente policia, de prudncias meticulosamente subvertidas, de superfcies

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que, as vezes, tranquilamente escondem a fundura dos abismos.

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III / BALANO DO MOVIMENTOPour bien juger, il faut sloigner un peu de ce que lon juge, aprs lavoir aim.ANDR GIDE

Para bem se julgar preciso que um certo afastamento se suceda a um certo amor. Amor que implica ateno: no h mesmo amor possvel que no se alimente de uma ateno minuciosa. Amador aquele que repara. A morte do amor comea com um gesto de distraco, do mesmo modo que o seu nascimento comeara com o gesto de um olhar. O bom juzo s pode resultar de uma ateno que existe ou j existiu. Ateno que, no caso da literatura, no pode seno levar ao conhecimento dos textos. Por isso DAnnunzio considerava a ateno como a maior homenagem que se podia prestar a um artista. Entre ns critica-se muitas vezes de ouvido e os lugares comuns sem qualquer fundamento vo passando, com alegria, de mo em mo. Poucos movimentos literrios em Portugal tero suscitado um tal acervo de ides reues (que se foram refinando ao longo da cadeia...) como o do grupo da revista coimbr. Creio ter sido Rilke quem afirmou que a reputao de um homem o resultado da soma de todos os malentendidos correntes que circulam acerca dele... A reputao da presena (at mesmo entre certos crticos de boa vontade e no duvidosa inteligncia) tem sido frequentemente o resultado acumulativo de 59

malentendidos que se foram herdando sem que ningum os fosse verificar. O primeiro dos preconceitos que tem impedido, logo arrancada, uma viso clara do presencismo tem sido o do suposto monolitismo do movimento; monolitismo que, alis, se visiona duplo: o que confunde as personalidades do grupo umas com as outras e o que confunde um programa terico que se prope vasto, aberto e englobante, com algumas criaes particulares de alguns dos seus mentores. Os romances ou contos ou novelas dos narradores da presena podero ser (se o forem) sobretudo psicolgicos, mas nada no programa presencista valoriza sistemtica e prioritariamente o romance psicolgico e muito menos exclui o romance simblico, ou mtico, ou potico, ou social... E isto claro e firme desde os primeiros textos manifesto do projecto presencista o que de nada lhe valeu: o psicologismo da presena, suposto ou real, tem sido uma das btes noires do grupo de vinte e sete, desde a sua criao at aos dias de hoje. Tambm de nada valeu que a obra de Rgio fosse muito mais do que uma mera (mera, porqu?) aventura psicolgica, como pouco tm ajudado a destruir a legenda os ingredientes mticos e simblicos que minam e perturbam as estruturas aparentemente claras dessa extraordinria novela de Branquinho da Fonseca, que O Baro. Algumas novelas de Marmelo e Silva entram com desenvoltura pelo ventre do mito e O Prncipe com Orelhas de Burro ou A Salvao do Mundo ou Jacob e o Anjo (ou mesmo Benilde) pouco tm que ver com realismo psicolgico. Por outro lado, se Gaspar Simes se mostra aparentemente combl com o seu investimento total no universo da arte, Jos Rgio repetidamente afirma, 60

ou pela boca dos seus fantoches, ou directamente pela sua, que fazer disso [da vida de escritor] uma profisso (...) havia de [lhe] parecer pouco. 93 No seu ltimo livro publicado, Confisso dum Homem Religioso, muito embora considerando a arte uma absorvente distraco do homem, vai dizendo que outra a suprema finalidade da vida. 94 E fora j, ao longo dos anos, martelando, nesse retocadssimo e nunca inteiramente fechado posfcio aos Poemas de Deus e do Diabo, a ideia de mundos que lhe pareciam transcender a literatura. 95 O que nada disto impediu de ter um crtico de boa f, inteligente e generoso, como Mrio Sacramento, afirmado, com vigor, que a presena declarara ser a arte o fim suficiente da vida humana. 96 Eduardo Loureno, com toda a sua perspiccia analtica, cometeu um erro idntico ao afirmar: Nisto reside a marca da sua [da presena] gerao e o seu carcter genrico. A Presena foi a gerao mais literariamente consciente das geraes literrias portuguesas. A mais literria tambm, aquela para quem a literatura forma de vida e no uma de entre as possveis, mas a forma superior da vida. No censuramos, nem elogiamos. Verificamos apenas. 97 Ora Rgio e trata-se do mais destacado e influente teorizador e criador da presena no se cansou de afirmar o contrrio. Para ele, a literatura, o convvio literrio, a vida literria no eram de modo nenhum a plataforma ltima que assintoticamente visava. Mas havia um problema de integridade artstica a resolver (mais ainda do que de sinceridade que, nele, violenta mas complicada): enquanto artista, isto , enquanto fazedor de arte, Rgio entendia que nada devia pr acima desse dever de integridade que visa o equilbrio interno de todas as partes constituintes da obra. 98 Aludindo ao 61

misticismo de Tolstoi que, em algumas das suas obras da ltima fase, se sobrepe a tudo, minando-lhes a harmoniosa construo, Rgio comentava, mau grado a sua inesgotvel admirao pelo romancista russo: Sempre o objecto da expresso de cada artista foi, , ser, ele prprio, ou o mundo atravs dele. Como no exprimiria, ento, o mstico artista o seu misticismo? A possvel fora da sua expresso artstica ser filha da sinceridade da sua posio mstica, da profundeza dos seus sentimentos; exactamente, por exemplo, como a fora da expresso artstica do revolucionrio (qualquer que seja) ser filha do fervor das suas aspiraes e sinceridade das suas convices, etc. Mas como artista que o mstico ento exprimir o seu misticismo; no como mstico: pois na medida em que se exprime como artista deixa de se exprimir como mstico, e na medida em que se exprime como mstico deixa de se exprimir como artista. Eis um dos conflitos de Tolstoi, por exemplo. 99 Pois na medida em que se exprime como artista deixa de se exprimir como mstico eis a chave do comportamento exemplar que Rgio propunha e que, fora de qualquer dvida, ele prprio adoptou: pendendo embora, visivelmente, para preocupaes que lhe, parecia transcender(em) a literatura, enquanto artista, agia como artista e no como delegado de outros mandantes, ainda que supremos. Como o Becket de Anouilh que, enquanto sacerdote, vestia a honra de Deus (que alis desconhecia) contra as ambies do amigo (que de resto amava), os presencistas, enquanto sacerdotes de uma arte que juraram servir, no punham preocupao nenhuma acima da que lhes causava a solidez do edifcio que iam construindo. Mas s enquanto artistas: o que nada nos permite deduzir sobre o que era, para eles, o mais 62

profundo significado do ofcio de estar vivo. No h dvida que viam na arte uma das formas possveis de salvao mas dizer que ela era a nica ser penetrar abusivamente em domnios que muitos deles deixaram deliberadamente fechados curiosidade biografista. Quando Rgio, por exemplo, nos ltimos versos da Sara Ardente