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Outros tempos,
novas poesias.
Obra publicada pelo Programa “CATALÃO EM PROSA E
VERSO”, instituído pelo Município de Catalão através do
Decreto nº 1.978, de 30 de abril de 2008, alterado pelo
Decreto, nº 1.433, de 24 de maio de 2010. Seleção dos
trabalhos publicados sob a responsabilidade da Academia
Catalana de Letras.
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Préfácio: (colocar onde for melhor na disposição do livro)
Considero de extrema responsabilidade fazer a apresentação de um livro com tamanha qualidade e lirismo, quanto esta obra gestada por Ivan Corrêa.
Sua poesia flui naturalmente, assim como uma conversa ao pé da orelha ou no escuro da escada. E por fluir naturalmente, torna-se mais verdadeira e mais consistente.
De uma doçura ímpar e intimista, as palavras vão se entrelaçando, grafando no papel pérolas cintilantes que iluminam
a alma. “Legítimos são os poemas e poesias que vão ficando
esparramados pelo caminho que percorro”, “Sei que meus
poemas não causam tempestades”são denotações irrepreensíveis pelo alto grau de sublimação que o poeta sugere em sua metapoesia despretensiosa e casual, como dito antes, feito conversa ao pé da orelha. Afinal, quem não sente o cheiro de primavera na boca da pessoa amada, como em “Se você surgisse e beijasse de leve o meu rosto a estação do amor ficaria em nós para sempre”?
Seus poemas trazem não apenas o cheiro da estação do amor, mas a própria estação, com seu cheiro, seu brilho, seu gosto... seu gozo. E o melhor é que nem precisam palavras para traduzir seu poema. Aliás, poemas assim a gente não traduz; apenas sente através da vibração da alma e do pulsar do coração.
Ivan Corrêa consegue, sem muito esforço, mas com magnânimos méritos, a dádiva de conceber poemas ímpares, pois todo poema, segundo ele “tem de ser ímpar”, “tem que flamejar mais que
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vestes brilhantes”. O melhor de tudo é que tais vestes adornam sua poesia com a simplicidade dos lírios de Salomão e com a apoteótica imagem de um ipê casualmente parido no cerrado.
“Tenho em mim um poema solto, bradando em idiomas desconhecidos.”
E precisa ser mais que isso? O que se faz ufano encarrega-se de se perder num barulho imenso de tempestade anunciada, tenebrosa e, portanto, mal vinda. E poema bom é aquele que agrada aos olhos e aquece o coração, mesmo que o poeta insista em dizer que seus poemas “não causam tempestades”.
Que venha sobre nós esta tempestade de sensações gostosas e essa enxurrada de lirismo que esta obra produz “com engenho e arte” de simplesmente ser poeta... poeta, simplesmente!
Paulo Pazz
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OUTROS TEMPOS,
novas Poesias
Catalão, 2010
Orelhas do livro: DADOS BIBLIOGRÁFICOS DO AUTOR:
Nasceu no Distrito Administrativo de Pires Belo, Município de Catalão, Estado de Goiás, no dia 28 de dezembro de 1965, tendo passado a infância na Zona Rural de Catalão, onde iniciou os
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estudos no Grupo Escolar de Pires Belo. Fez o antigo segundo grau no Colégio Estadual João Netto de Campos, logo após, cursou Direito no Centro de Ensino Superior de Catalão – CESUC, sendo formando da primeira turma (27 de junho de 1989) daquela entidade de ensino. Há aproximadamente 27 (vinte e sete) anos é servidor público municipal, ocupando o cargo de Assessor Jurídico do Município de Catalão desde o ano de 1989. É membro da Academia Catalana de Letras – www.acletras.org.br - Lançou em 2008 o seu primeiro livro de poesia com o título HORA DE POESIA e em 17 de agosto de 2009, o segundo, com o título: EU JÁ NÃO SOU O QUE ERA. Contato com o autor:
e-mail: [email protected].
Página pessoal:
http://recantodasletras.uol.com.br/autores/ivancorrea
Dedicatória:
Em memória do meu pai, Homero Pereira da Silva,
que se foi deste mundo no dia 05/12/2009. Pessoa
simples e humilde que me ensinou sobre o dever, o
respeito e a honra.
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Ensinou-me, ainda, que nunca se deve olhar o
mundo com olhos vendados ou vendidos, apesar de
que eu mesmo tenha sido vítima disso.
À minha esposa, filhas, mãe, irmã e irmão. A eles e
sempre eles, sempre.
Aos meus colegas de trabalho da Prefeitura que, com
paciência e fineza, me aturam o ano inteiro.
A vocês leitores, que com o carinho e a receptividade
aos meus trabalhos anteriores foram os responsáveis
por me fazer continuar nesta trilha.
Preâmbulo:
“Cem máximas que resumissem a sabedoria universal
tornariam dispensáveis os livros.”
Drummond de Andrade, Carlos
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“Os críticos podem dizer que determinado poema,
longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que
o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil,
e o dia bom, ele mesmo, passa. Temos, pois que
conservar o dia bom em memória florida e prolixa, e
assim constelar de novas flores ou de novos astros os
campos ou os céus da exterioridade vazia e
passageira.”
Pessoa, Fernando
“A maior desgraça que pode acontecer a qualquer
escrito que se publica, não é muitas pessoas dizerem
mal, é ninguém dizer nada.”
Boileau, Nicolas
Nota do autor:
Quase nada do que está neste livro foi vivido pelo
autor. Neste trabalho deixei que florejasse bastante o
lado inventivo, o meu lado poeta.
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Escrevendo, experimento centenas de sentimentos.
Todos os encantos do mundo aportam em mim
quando nasce um verso perfeito, se é que isso existe.
Escrevendo, sou irrequieto. Navego em todas as
águas, das mais calmas às mais indômitas.
Leia este livro como se estivesse assistindo a um
filme, semelhanças com fatos ou pessoas terá sido
mera e espetaculosa coincidência.
Vou pela vida respirando poesia e embriagando-me
de versos. Quem sabe à mão pintar palavras faz a
sua singular aquarela e, quando quer, voa livre nas
asas dos passarinhos.
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Guardo em mim...
“Um beijo é um segredo que se diz na boca e não no ouvido.”
Rostand, Jean
Guardo em mim
um pouco do azul do céu,
um verso de uma canção italiana
e um restinho de um amor que se foi...
Guardo em mim
um pouco da candura da mulher,
uma porção da mentira dos homens
e certa cobiça de abraços, beijos e pecados...
Guardo em mim
um suave perfume de floresta,
uns dois passos de valsa vienense
e o toque quente dos corpos num bolero...
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Guardo em mim
Um doce pedaço de acalanto,
duas partes grandes de saudade
e uma louca sede de um recomeço...
Guardo em mim
um ranço dos problemas,
doses e doses de um fracasso e
umas tantas sementes inertes de loucura...
Guardo em mim
um pouco de tudo que preciso.
Vou usando pela vida a conta-gotas e
do veneno de tudo vou fazendo anticorpos...
Guardo em mim, bem preservados, uns
fiapos de versos e umas gotas de poesias...
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Uns fiapos de versos...
Juntando palavras, inventando vocábulos...
Lá está o poeta em pleno trabalho de parto.
Sem perceber, concebeu
distraidamente uns
fiapos de versos,
que agora gotejam no chão do quarto.
E, na folha branca do papel,
fonemas, dilemas,
poesias e poemas.
Chegou, enfim, a hora
de ver a obra
pronta, finalizada.
E na manhã que surgiu
só um lençol na cama.
Nem poesia, nem poema.
Apenas um amor revirado
e mais um poema abortado...
Tudo que restou é vil caligrafia.
Do parto do poeta, nem as dores!
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Adornando palavras... “A poesia é uma pintura que se move e uma música que pensa.”
Deschamps, Eustache
Eu tão suave tenho estado
que clássicos acordes surgem de mim...
O que Deus não tem sabido
é que um anjo caiu do céu...
E, tão humano, anda pela terra
brincando de ser gente comum,
disfarçando suas asas angelicais.
Eu tão suave tenho estado
que clássicos acordes surgem de mim...
O que eu não consigo esconder
é a fome que eu tenho de vida...
Eu tento compor meus poemas,
mesmo não tendo nata aptidão.
Vez ou outra, é que um se salva.
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Eu tão suave tenho estado
que clássicos acordes surgem de mim...
Na minha mão a palavra se eterniza:
ganha formato, força, rosto e raiz...
Ganha até cidadania a minha frase.
E, se tem brilho, anseio e história,
vira tela e fica afixada na parede!
Eu tão suave tenho estado
que clássicos acordes surgem de mim...
Os vocábulos me ensinaram a voar.
Desço surfando na seiva das veias...
Quem sabe à mão pintar palavras,
faz sua própria e singular aquarela.
Voa livre nas asas dos passarinhos!
Eu tão suave tenho estado
que clássicos acordes surgem de mim.
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Alma portuguesa
“A viagem só é necessária para as imaginações curtas.”
Collete, Sidonie
A minha alma,
de vez em quando,
deve bailar em Portugal.
Deve, num fado
de Amália Rodrigues,
entornar lágrimas nos solos de Mouraria!
Deve, na dolência
e na melancolia dos acasos,
armazenar a dor e trazer consigo.
Do encanto e da beleza de Portugal
traz somente uma vaga e fatal lembrança
para mais torturar a minha memória ancestral!
A minha alma,
quando chega a Portugal,
dança, também, o vira e o corridinho.
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Mas, ela se deleita mesmo
é com o som da guitarra portuguesa
chorando num autêntico fado da terrinha!
A minha alma chega a Lisboa,
depois, a Porto e a Aveiro,
a Veneza dos Portugueses.
Em Coimbra, se deleita e se encontra;
se ajeita, se torna uma alma portuguesa...
Se esquecendo que tem no Brasil um corpo bem brasileiro!
A minha alma, em Portugal
torna-se uma alma mais católica.
Deve ser à força do Santuário de Fátima
com a Capelinha das Aparições é que lhe dobra.
Mas suspeito que ela busque, de fato, seja se fartar
de Luis Camões, Fernando Pessoa e seus heterônimos!
A minha alma, além de se saciar de fado,
beberica o bom vinho do Douro e do Alentejo.
Depois, os peixes e mariscos, o pastel e o Bacalhau!
Depois, ela retorna. E eu sei que já vivi em Portugal.
Noutros tempos, em outras eras. Mas, me é tudo tão
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familiar. Chego a ver os rouxinóis a cantar pelos beirais!
Pelos beirais de Mouraria...
Espantados pelo tropel das procissões
e pelos xales coloridos a rodopiarem pelos becos.
Ah! Deus, esta minha alma... Minha alma portuguesa!
Apaixonada pela voz e pelo fado de Amália Rodrigues,
pela canção do mar; do mar de sal do meu doce Portugal!
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O meu olhar
“Vivemos com os nossos defeitos como com os cheiros que temos: não os sentimos, eles só incomodam os outros.”
Lambert, Anne
Estes meus olhos choram um choro cáustico
ao ver o Brasil andar tão às avessas...
o meu olhar fala! Bala de fuzil
que sai a toda velocidade,
bate nas muralhas
das ignorâncias;
e, ferido, volta
ao meu rosto.
Desgosto!
Estes meus olhos choram um choro cáustico
ao ver a miséria que vive o meu povo.
O meu olhar fala! Meu olhar bala...
E a corrupção corre a galope,
e mudas as universidades,
medíocres e hipócritas;
e um governo fraco
fingindo forte.
Uma morte!
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A minha poesia... “O que é escrito sem esforço em geral é lido sem prazer.”
Johnson, Samuel
Sei que minha poesia é fraca de cerne.
Sei do seu peso e dos vermes inseridos
na madeira anêmica dos meus poemas...
Mas, até os vermes cursam, se espalham.
A maioria dos meus versos carrega um
enorme desespero sobre os seus lombos.
Daí que andam sempre de cabeça baixa
e com olhar de carência pelos caminhos...
Minha poesia não quer ser aplaudida.
Não quer trilhar por caminhos floridos;
quer apenas agitar o sangue nas veias
e brilhar olhos entristecidos dos leitores.
Minha poesia não tem a determinação
das mulheres audaciosas do Nordeste;
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nem tão pouco a subserviência dos olhos
daqueles irmãos na fila do Bolsa família.
A minha poesia quer apenas entrar pela
janela dos seus olhos; quer o colo quente
do seu coração; quer saltitar na juventude
eterna que há nos olhos dos inconformados.
Entre os pedaços de meus poemas gorados;
sem rastros e sem vida, há, alguns, que, se
publicados, trariam luz nos olhos. Sei que
fariam carícias em leitores despercebidos.
Sei que meus poemas não causam tempestades.
Sei do sabor insosso, o vazio que trás nas mãos;
Mas, se souberem, por entre as teias distendidas
poderão sorver partículas tímidas de um encanto.
Minha poesia tem um cheiro de coisas antigas.
Tem um olhar tímido e comportado, tem pouco
de mel e nada de céu; tem uns nós, poucos prós
e tantos contras; mas assim mesmo deixa rastros.
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Uma alma viajante...
“A verdade é uma agonia sem fim. A verdade deste mundo é a morte. É preciso escolher: morrer ou mentir. E eu nunca me consegui matar.”
Louis-Ferdinand Céline
Já fui beduíno cruzando a Península Arábica.
Já orei a Maomé, o verdadeiro profeta de Alá.
Já nadei no Tigre e Eufrates; e cavalguei nas
Guerras mesopotâmicas. Muito feliz fui por lá.
Fui seminômade no México, na civilização asteca.
Já plantei e colhi milho na lama dos vales férteis.
Eu lavrei o Código que hoje se diz de Hamurábi.
Nos dias de folga, visitava os Jardins suspensos.
Já comercializei pedrarias e perfumes em Cartago.
Com os cartagineses, lutei contra a Grécia e Sicília.
Com os Celtas, brinquei de metalurgia e fui artesão,
servo e sacerdote druida bem reputado e de mando.
Com os chineses, inventei a pólvora e o compasso;
concebi a técnica de fabricação da seda e prensas.
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Nas margens do Nilo, fiz fartas colheitas e projetei
as técnicas de construção das Pirâmides dos Faraós.
Já permutei mercadorias no litoral do Mediterrâneo.
Inda com os fenícios, criei um conjunto de símbolos
que se chamou alfabeto. Confesso que, nesta missão,
a Grande Mãe e Baal (o deus protetor) ajudaram-me.
Fartei-me de cultura nas urbes de Atenas e Esparta
e, ainda na Grécia antiga, eu vi nascer a democracia.
Os Incas ensinaram-me a adorar o sol, a lua, a terra
e o raio e também construímos templos esplêndidos.
Com os incas, erigi estradas, fortalezas e casa nobre
para o Soberano e alteramos a geografia dos Andes.
Os maias ensinaram-me sobre a rotação de culturas
e a crença da vida pós/morte e sacrifícios humanos.
Eu já pertenci a várias civilizações antigas da terra.
Já percorri os oceanos, desertos e conheço de tudo.
E, mesmo sabendo tanto, ainda não aprendi a calar
os sonhos que brincam de Deus nas noites de luar...
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Espelho do tempo “A maior parte dos homens utiliza a melhor parte da vida para tornar a outra infeliz.”
La Bruyère, Jean de
Pus-me de pé
e fitei o ontem,
no espelho do tempo.
Vi um menino
que corria feliz;
de inocente que era.
Vi uns sonhos que
passavam rápidos;
viravam pesadelos.
Vi uns olhos tristes
pelo tempo passado;
choravam meninice...
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Vi o tempo gargalhar
troçando o moleque
que não era eterno!
Vi, daqui de cima,
uns sonhos abatidos;
pediam a morte.
Vi o espelho refletir
todo o passado no
meu hoje sem amanhã...
Vi um curumim
garimpando vida,
a ferro e aço...
Me vi tentando
emergir, vencer,
ganhar espaço.
Me vi meio aço
bem diferente
dessa matéria/bagaço.
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Se você surgisse agora... “Esperar é ainda uma ocupação. Terrível é não ter nada que esperar.”
Pavese, Cesare
Se você surgisse para beijar de leve o meu rosto
que espera e sempre esperou sem pressa alguma.
Esperou enquanto caía a chuva,
esperou quando veio o outono...
Ainda ficou a esperar quando todos desistiram.
Não haveria espera se não houvesse um amor puro,
não haveria outono, nem verão, nem primavera.
Apenas uma noite eterna de inverno
e uma poesia grafada num caderno...
Ainda que não fosse de amor, se fosse verdadeira.
Se você surgisse e beijasse de leve o meu rosto
a estação do amor ficaria em nós para sempre.
E seria um tempo diferente
sempre quente e acolhedor...
Ainda que os outros não notassem, assim seria.
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Esplendor da ordem
“O belo é o esplendor da ordem.” Aristóteles
Senta na beirada do dia
e espia a noite brotando
do seio da terra...
Sossegue nos braços da noite
e ouça o som do açoite
da chuva na serra...
É lá que o raio e o trovão
clareiam o céu e o chão,
brincando de guerra...
Após, Deus vem e põe a mão
e tudo se acalma, e, então,
por si só, a “batalha” se encerra...
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Dorme o sertão sob a neblina,
sem a sede de antes a campina.
... O pé do homem o grão enterra.
E berra a semente sob a terra,
folhas e flores cobrem a serra.
Deus pode tudo e nunca erra!
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Avesso de mim... “Se a íntima angústia de cada um se lesse escrita na cara, muitos dos que inspiram inveja só fariam pena.”
Metastásio, Pietro
O meu semblante contente
é o avesso, inverso de mim.
E, eu, ao contrário, me mostro ao
mundo muito mais terno do que realmente sou...
Este meu sorriso na face
é o reverso falso da minha agonia.
Legítimos são os poemas e poesias que vão
ficando esparramadas pelos caminhos que percorro...
É que o meu corpo é um mar
e as minhas fugidias fugas, o meu cais.
No divã dos meus problemas brigam comigo
enigmas reais e fantasiosos, criados no reflexo de mim...
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Este sorriso é de dor.
Este choro não é meu somente.
É que levo sobre os dorsos um pouco da culpa
dos meus entes estimados que se foram em dívida...
Ainda não houve choro pela
minha face, nem haverá no amanhã.
É que a minha porção homem forte supera
em muito a parte fraca que sofre e chora por dentro.
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Poema solto...
“Um poema é um mistério cuja chave deve ser procurada pelo leitor.”
Mallarmé, Stéphane Tenho em mim um poema solto,
bradando em idiomas desconhecidos.
Tudo soa bem, como num canto espanhol;
tudo solto e arisco, feito um touro indomável.
Meu poema parece uma pintura inacabada.
A cada hora que se olha, se mostra de um jeito.
Cavalo indomável desembestado dentro de mim.
Olhos alheios pra dentro do dono, se vendo distorcidos.
Poeta louco que não faz com que nasça o seu poema,
guardando pra si o que há de melhor. Turvando
o poema nítido que brilha sem vida no oco
peito desvairado do criador-criatura.
E os ares se tornam intensos e fazem brotar as poesias
antes hibernadas nos escombros do ser humano,
que nasceu poeta e, brincando de tímido eterno,
brinca de lançar poemas soltos, letras vagas.
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Tenho em mim um poema solto
que, se agregassem as palavras,
daria uma poesia alforriada
de leis e conceitos retos.
Tenho em mim um poema solto.
Seus olhos o formatarão
do jeito que quiser
que se eternize.
Do jeito que quiser
que se eternize
em ti!
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Medos e metáforas...
“Quem teme o sofrimento sofre já aquilo que teme.”
Montaigne, Michel de
Quando eu disse que era amor, tu sorriste;
quando eu falei que o nosso barco estava à
deriva, tu saíste do convés;
quando eu falei que sem
tu minhas noites
ficavam frias, deste de ombros.
E o nosso rio se fez profundo e perigoso,
E a noite ficou doente, parecia morrer...
E essa porta de saída, aonde vai dar?
Será que tu ainda és a mesma pessoa?
Quem te fez hoje tão dona de si? – eu?
Por que te farias libertas de ti mesma?
E os teus lamentos, quem depois ouvirá?
Agora partes assim, sem choro nem velas?
E aquele peso morto sobre as minhas caravelas,
que suportei calado por anos e anos a fio... Por nada?
Se eu te falasse que a noite lá fora é longa;
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Tu não conheces mais o caminho da volta,
que tu só possuis o ponto de partida
e que a rosa se desfaz com o vento...
A tua viagem poderá ser dolorida.
E se houver uma pedra no meio
do caminho? E se não existir
mais o caminho?
Antes de partires
repense o nosso
amor. Repense.
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Nossa noite de quase amor...
“Há momentos, e você chega a esses momentos, em que de repente o tempo pára e acontece a eternidade.”
Dostoievski, Fiodor
Sou a falta de diálogo quando
paramos para conversar...
Sou aquela vontade insana
que a madrugada saudou...
Sou aquele beijo furtado
na encosta do seu portão...
Sou aquele suspirar apertado
e preso na boca beijada...
Sou aquele braço do abraço
forte ao redor do seu corpo...
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Sou de novo aquela boca calma
na louca boca do seu batom...
Sou os dedos daquela mão que
sabe o diabo, mas Deus sabe não...
Sou aquela voz que fala quase tudo
que não se aproveita no seu ouvido...
Sou uma parte, quem sabe a arte,
que fica quando falta a coragem...
Sou, ainda, a poesia que resistiu
depois da nossa noite de quase amor...
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Tercetos diversos...
“Um grão de poesia basta para perfumar todo um século.”
Martí, José
Que secura na boca!
Amor é mesmo essa
coisa quente e louca?
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Meu coração bate lento.
Deve ser fome de dengo
mais a sede de acalento.
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Pesa dentro de mim
essa ausência de você.
Peito tolo cultivando saudade.
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Tantas e tantas estrelas
brancas, rosas, amarelas...
Da minha janela, princesas belas!
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Um toureiro derrotado.
Sangue quente na areia fria;
pelo chifre afiado, (peixe) fisgado.
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Feche os seus olhos.
Quem sabe a saudade
vai morar num outro olhar.
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É bicho de casal.
é pássaro, rola, pardal.
Só meu amor é banal.
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Dê um drinque pra mim.
O toque do uísque e gelo
cura no meu peito o flagelo.
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Coisa nua esse céu
sem lua; vai ver nem
é nele que flutuam as estrelas.
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Virou uma ““““proesia””””
“Prosa: palavras na sua melhor ordem; poesia: as melhores palavras na melhor ordem.”
Coleridge, Samuel
Vi uma poesia feia
metendo prosa
num verso sem rima.
Vi uma poesia feia
metendo prosa
num poeta sem voz...
Vi uma poesia feia
metendo prosa
num poeta sem vez...
Vi uma poesia feia
metendo prosa
cem vezes num poeta.
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sem vez, voz e avós...
mas, à caça de poesia
sem ser prosa!
Vi uma poesia
nascer de uma
prosa. Virou proesia.
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Quando olho no teu olho...
"Não fique triste. Se você fica triste, fico
triste. E eu não gosto de me ver triste..."
Thompson, Letícia
Quando olho
no teu olho, o
céu tece uma
estrela nova em nosso louvor.
Deve ser assim:
se eu te olho
e tu olhas
para mim,
é Deus que, enfim,
do alto do sagrado,
nos bendiz com
alegria e bom grado...
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Quando estamos juntos,
poesia pra ser poesia
nem carece de rima,
nem canoa do remo,
nem amor de clima.
Tudo é natural:
tem açúcar e sal,
tem cama e casal,
o bom torna habitual...
E esse amor que seria perfeito
não rendeu poemas perfeitos...
Deve ser que o céu,
tecendo estrelas,
esqueceu
de tecer
o poeta.
Ou a poesia?
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Último suspiro...
"Ter um filho ingrato é mais doloroso do que a mordida de uma serpente!"
Shakespeare, William
Meu pai sofreu
os males do fumo.
Coisa inútil e fútil
matando homens...
Meu pai sofria,
pedia a morte.
Ela, teimosa,
não lhe atendia...
Até que um dia
de calma e paz,
sem alarde, ela
chegou e ele morria...
Morreu como quem
obedecia a uma ordem;
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os olhos suavemente
foram se fechando...
Meu Deus!
Eu assisti a tudo.
Assisti seu último
suspiro de vida...
E uma dor absurda
no meu peito
veio morar;
morada eterna...
Se eu pudesse,
apagaria na boca
de cada homem
a chama da morte...
E lhes salvaria
da triste sorte
de ter a morte
em meio à fadiga...
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Se eu soubesse fazer verso
“Escrever é um ócio muito trabalhoso.” Goethe, Johann
Se eu fosse capaz,
se soubesse fazer verso,
num lance de audaz,
ofereceria, a ti, o universo...
Mas, como não posso,
e não sei brincar de Deus,
com este meu verso insosso
digo tchau, te dou adeus...
Se desejares eu permaneço.
Passo a ser o teu escravo.
Ando ao teu lado, de adereço,
e, se carecer, grito e fico bravo.
Apanho no teu lugar,
e, dou graças por isto.
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Posso, ainda, madrugar...
Trabalhar e ficar bem-visto.
Mas verso não sei fazer.
Já tentei e não deu certo.
Mas posso te dar prazer,
nas ocultas ou a céu aberto.
Mesmo de brincadeirinha,
não sei inventar poesia...
Deixo uma amostrinha
da minha fraca neopoesia.
Assim: pra ti, de cortesia,
minha doce e bela senhorinha!
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Fome de amor... “Amar é saborear nos braços de um ente querido a porção de céu que Deus depôs na carne.”
Hugo, Victor
Chegue e deite ao meu lado com olhos de mel...
Finja dormir por um instante,
deixe que eu contemple tudo!
Deixe que eu olvide as regras.
Mãos ardentes querem desvendar segredos...
Lençóis e almofadas embaraçam,
como num ritual varremos tudo!
Livre acesso aos corpos carentes.
Com a fome de cem anos de seca e castidade
devoro cada parte do seu desejo.
Ora de um jeito louco e depois...
Delicadamente do meu jeito,
te faço amor como nunca
antes na vida fizéramos.
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Perdoe este meu silêncio...
“O silêncio é a minha maior tentação. As palavras, esse vício ocidental, estão gastas, envelhecidas, envilecidas. Fatigam, exasperam. E mentem, separam, ferem. Também apaziguam, é certo, mas é tão raro! Por cada palavra que chega até nós, ainda quente das entranhas do ser, quanta baba nos escorre em cima a fingir de música suprema! A plenitude do silêncio só os orientais a conhecem.”
Eugénio de Andrade.
Perdoe-me pelas coisas que eu não te disse.
Estas, com certeza, seriam mais admiráveis
que todas as outras que eu falei e repeti.
Perdoe-me por eu ser reservado sempre!
Perdoe-me pelas coisas que eu não te disse.
Por jamais ter te falado sobre o sabor do teu
beijo. Por ter me calado e não ter te falado o
quanto o teu amor já me salvou nesta vida!
Perdoe-me pelas coisas que eu não te disse.
Por jamais ter falado da magia que tem teus
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olhos, o teu sorriso discreto, teus mistérios,
os mais secretos, perdoe este meu silêncio...
Perdoe-me pelas coisas que eu não te disse.
Por ter sempre desviado dos obstáculos sem,
contudo, tê-los tirado da nossa trilha da vida;
perdoe toda vez que pensar em condenar-me...
Perdoe-me pelas coisas que eu não te disse,
pelas noites que eu não te amei; pelos beijos
que eu matei antes de fazê-los nascer. Perdoe-me
agora e sempre, mesmo que eu não te peça...
Se eu me calar de novo, outra vez perdoe-me.
E, quando teu perdão tornar inútil, ouça o meu
silêncio, ele grita que carece de ti, hoje, agora,
e sempre e sempre, mesmo que eu jamais te fale!
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Com olhos de poesia “A poesia não é nem pode ser lógica. A raiz da poesia assenta precisamente no absurdo.”
Hidalgo, José
Colorindo girassóis e apreciando pássaros,
passei minha manhã de pré-primavera.
O sol nasceu meio ao contrário
ou foi eu que amanheci assim:
com sentimentos de poeta e olhos de poesia.
No além pesou a leveza do meu olhar.
... Esse vento surgiu para ameigar
o semblante de quem o arrostar.
Quente e saboroso esse café matinal.
Incomum esse meu apreciar juvenil...
Que logo a tarde se achegue,
Que o sol se abrande e se acerte,
Que descansem as cores e os girassóis,
Que voltem aos ninhos os assanhaços e pardais,
Que se perpetuem em mim essas emoções de poeta
e esse gosto de poesia no meu paladar de homem...
52
O valor do silêncio “Nunca quebres o silêncio se não for para o melhorar.”
Beethoven, Ludwig
Quero apreciar o silêncio.
Preciso sentir e contemplar
a mudez de tudo que existe.
Nesta hora, se Deus quisesse,
falaria através da brisa suave
seus ensinamentos mais puros,
seus exemplos mais legítimos.
E, assim, nos daria a paciência
que precisamos para seguirmos
vivendo bem, daria a força que
precisamos para transpormos
as resistências e os obstáculos.
Aí, o tempo não seria (como é
para alguns) um fardo difícil de
levar sobre os lombos. O tempo
passaria a ser de paz, sempre...
53
E, em tempos de paz, há mais
silêncio. No silêncio; mais Deus.
E somente com Deus há um
tempo bom viver-se a vida!
54
Agonia misteriosa
“A poesia é um nexo entre dois mistérios: o do poeta e o do leitor.”
Alonso, Dámaso
É tudo inverno neste peito.
É tão eterno o meu inverno.
É tão sem verde minha esperança.
Fica tão sem graça seus cabelos com trança.
Cadê a neve que faz frio o amor?
Cadê o sorriso que é falso e breve?
Onde está o poema que esteve aqui?
Aonde dói mais no peito que virou inverno?
Este quadro que se pinta é um auto-retrato.
Cadê a lágrima que me queima a pele do rosto?
- Eu vi. Fundiu-se com a saudade do olho da
menina que fica sem graça com suas tranças.
55
É tudo nostalgia neste meu inverno eterno.
Não há poesia que alivia, nem a que Deus cria.
É tudo noite e todo fantasma liberto me espia.
Até o dia virou noite na tela que pintava a mão
feia e fria do pintor, no dia-noite da minha agonia.
56
Sorrindo amor pelos olhos
“A ausência só mata o amor quando ele já está doente na data da partida.”
Diane, Condessa
Amor eu sei que sentias por mim,
apenas não sabia que era tão frágil.
Hoje, pra ti, pareço uma folha solta
de um livro que não ambicionas mais ler.
Amor eu sei que sentias por mim.
Não sabia que se partia ao primeiro abalo.
Se dói no meu peito é que ainda não findou.
Choraria eu se ainda houvesse lágrimas e certezas.
Amor eu sei que sentias por mim.
Lutarias se eu ainda valesse a pena pra ti.
Sonhos existiam, mas não fortes o suficiente
para te estimulares a caminhar em minha direção.
57
Amor eu sei que sentias por mim.
Quem sabe fosse um amor preso aos teus olhos
somente; quem sabe fosse coisa de corpo e eu
me enganei; e o amor que eu vi era pouco e não durou.
Amor eu sei que sentias por mim.
Fosse o que fosse era amor que eu via no teu olhar.
Podes fingir que não me amas. Fujas pra longe, se quiseres.
Quem sabe, depois, as lágrimas não te acariciam o rosto
e, neste momento, te lembrarão de voltares pra mim e voltarás:
sorrindo amor pelos olhos, vertendo desejo pelos teus poros.
58
Dança da solidão
“É sobretudo na solidão que se sente a vantagem de viver com alguém que saiba pensar.”
Rousseau, Jean Jacques
Esta cama sem você é muito fria.
Nem este drinque me acalora...
Derrete o meu fígado,
que esguicha sangue
por entre as almofadas,
mas não me faz mais feliz.
Na calma da noite, lá fora,
os indivíduos solitários
caminham sem rumo.
Vão com a cabeça na lua,
atarracados na esperança
de ter o amor que sonham...
Metade marchará em vão a vida toda!
Para continuarem vivos,
necessitam acreditar.
Meninos sonhadores
59
em corpos de homens
carentes de alma e calma,
presos nas grades de uma saudade.
Dos seus passos no chão,
saem canções de ninar
gente grande...
Embalados nesta música,
os afortunados da vida
acendem os corações,
e se amam por entre
as paredes muda-surdas de suas casas.
O amor que aquece o mundo
fica sempre longe deste leito.
O que raras vezes acalora
e acalma minha alma,
é a alma deste aperitivo...
Ela, que loucamente baila
na música que surge
do contato das pedras
de gelo deste copo bêbado.
Quero ver quem não chora
quando chora a madrugada.
60
O triste lamento da alta noite
é pior que lamúria de homem...
Machuca na alma da gente
e o coração persiste em bater
para fazer mais padecer quem
foi incapaz de amar acertado.
Nem mesmo o calor do novo dia
faz sair de dentro de mim
o frio da saudade.
É dentro do peito
que ele se esconde,
onde o atrevido sol
não alcança e não bate.
É aqui onde dançam
a dança da solidão...
É aqui onde mora
a agonia do mundo.
Sou eu quem a suporto
por sobre meus ombros
já vergados pela dor de ser sozinho.
61
O vai e vem do amor...
“Esquecer é uma necessidade. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa apagar o caso escrito.”
Machado de Assis
Ficou um gosto de sabão na boca
com a morte do amor que pereceu
sem antes chegar ao paraíso...
Parou na metade do caminho.
Agora vem vento forte e chuvarada
e o coração está a descoberto; perdeu o teto.
O piso ficou escorregadio,
o seu sapato restou liso,
sem corrimão, sem salvação.
O seu limite é o chão; escoriações.
Uma lembrança guardada
do amor que acabou
sem que no peito acabasse.
Uma casa sem porta e janela, sem saída.
E as forças que se escorrem pelo ralo da pia...
62
E a necessidade de continuar a história,
agora com medo das outras pedras da estrada.
Diferentes “astros” brilham, gritam e se oferecem.
E você com o olhar distante e inseguro, continua...
Tem o dever de outra vez botar um teto no coração.
É difícil saber que outra metade está ali
e que você pode tentar colar as duas,
tentar de novo fazer um.
Agora que a tempestade enfraqueceu,
você pensa se vale à pena arriscar
num terreno desconhecido.
Você sabe que as embalagens não revelam conteúdo.
Mas, mesmo se o mundo se tornasse perfeito,
ainda assim existiriam os riscos,
aquele perigo de novamente ficar
sobre um piso escorregadiço.
O olhar denuncia a carência e vontade,
o peito sente e chora,
a razão segura os pés e trava os lábios.
Aquele astro brilhante, na medida dos seus desejos,
ao alcance das suas mãos, na medida das suas pernas,
63
no exato lugar, no momento certo e você parada
se segura no seu orgulho, rainha nos seus pretextos.
Entretanto, o mundo gira
e, numa noite de chuva fina e vinho tinto,
uma massa, um queijo, um abraço, um beijo...
E tudo volta ao normal. E se limpam as gavetas,
escovam-se os cabelos e volta o brilho nos olhos.
O coração ganha novo teto e cheiro de tinta fresca.
E numa tarde qualquer verá no horizonte o arco-íris
com um colorido nunca antes percebido.
64
Roupa de domingo “Se a poesia não surgir tão naturalmente como às folhas de uma árvore, é melhor que não surja mesmo.”
Keats, John
Ponha sua roupa de domingo
e corre para a praça para,
de mãos dadas feito
uma criança feliz,
rir e passear
comigo.
Ponha um sorriso no seu rosto
daqueles que rebrilham
mais que esta manhã.
Exercite sua alegria:
grite, dance, pule,
sorria sempre!
Chegando a noite vai se
deixando ser mulher
e, muito feminina,
65
a guria de antes
some na face
da fêmea.
Depois, vista a sua roupa de
gostar-se e vá ao quarto
e, com aquele jeito
único, comece a
fazer amor
comigo.
66
Ínterim do absurdo...
“Quando se não chora, parece que as lágrimas nos caem todas cá dentro e queimam; e o padecimento é então de morte.”
Dinis, Júlio
Se eu choro,
se eu calo,
se eu urro
ou se sussurro...
Nada altera, nada varia.
Tudo continua ermo dentro de mim.
Meus olhos falam, não falham, fitam o além...
Depois olham para dentro de mim
e enxergam a dor que
padeço e você não vê.
É a minha dor extremada
no reflexo de mim mesmo.
67
É nesse ínterim do absurdo
que brincam
dentro de mim:
a ferida e a dor
o amor e a saudade,
eu, você e as vontades...
Se eu choro
se eu calo,
se eu urro
ou se sussurro...
Nada altera, nada varia.
Tudo continua ermo dentro de mim.
68
Fragmentos:
“A cada minuto que ficamos zangados, perdemos sessenta segundos de felicidade.”
Overbury, Thomaz
Porta aberta...
Deixe a porta do quarto aberta,
vá que o amor queira adentrar...
aí será festa, suor e descoberta.
Chuva fina
Chuva fina no corpo e na alma
quem sabe isso é falta de amor...
Quem sabe é saudade esta calma.
Gente passarinho
Sou eu o sabiá laranjeira
preso na gaiola do seu olhar
incapaz de pelos ares voar...
69
Na sua mira...
Seu olhar é um arpão.
Eu, o indefeso peixe,
flechado no coração...
Meio Monaliza
Pintou um quadro e o beijou:
a moça na figura quase sorriu.
Zombou do pintor, o arisco tiziu.
Nos traços da minha mão
Nas linhas e traços da minha mão
tenho amostras dos meus pais.
O amor mantenho no coração.
70
Basta se deixar gostar...
“As melhores mulheres pertencem aos homens mais atrevidos.”
Machado de Assis, Joaquim Maria
Há tanto tempo, meu amor, eu não te vejo!?
Trago agora uma boca desprovida de beijo,
trago olhos lastimosos e lavados de pranto.
Este meu sorriso na face é falso. É manto.
Na verdade, sem você, eu padeço dia e noite.
Se durmo, sonho. Acordado, o desejo é açoite.
Apenas serei feliz se tiver você perto de mim,
vestida de carmim com um aroma de jasmim.
Trago um olhar triste e marcado de saudade,
um peito doído num mortal cheio de vontade,
e uma porção do agrado que tenho pra te dar,
basta abrandar teu ânimo e se deixar gostar.
71
Chuvarada
“Da felicidade ao sofrimento é somente um passo; do sofrimento para a felicidade parece demorar uma eternidade.”
"Pensamento rabínico" Autor: Textos Judaicos
Vivo esperando por você
eu quero pensar que não,
mas, tudo me denuncia.
A minha noite se faz longa demais,
A chuva parece lágrimas e é eterna.
E sempre é noite e sempre chove...
Deve ser porque você nunca vem.
E do corpo do meu olho chove mais,
e a noite fica escura, vira chuvarada.
Tudo me falta na carência de ti.
Somente você não vê, não vê
porque não vem nunca.
72
Se chegasse de repente
toda a chuva cessaria;
a noite seria quente e pequena.
E nos meus olhos
brilharia o sol
eternamente.
73
Os beijos que não dei...
“O homem morre a primeira vez quando perde o entusiasmo.”
Balzac, Honoré de
Abrolha do meu olhar, feito uma tela,
a dor que se esconde no meu peito...
Reflete de mim, o amor que não tive.
O olhar de pesar dos amigos não me salva...
Todos os dias da minha vida me sufocam
os beijos que não dei; os abraços que não abracei...
Numa tarde qualquer de um dia comum demais,
todos chorarão pela tristeza da minha história...
E, será em vão, não mais reanimarão este coração,
que inerte e frígido estará sem vida no meu peito.
74
Há tanto mar pra eu me afogar...
“Quem é capaz de sofrer intensamente, também pode ser capaz de intensa alegria.”
Lispector, Clarice
Olhe para o meu olhar.
Ele revela tudo que sou...
Decifra-me e conseguirá
tirar o melhor deste ser.
Os olhos que me devoram
desnudam-me até a alma...
Permito que me descubra.
Eu aceito ser encontrado.
Há tantas luas que estou triste,
há tantos rios nas minhas veias,
há tanto mar pra eu me afogar...
Onde terá chão? Cadê a costa?
E eu que adorei cada estrela,
estou agora cravado na terra,
75
acuado num tempo disforme,
preso nos próprios temores...
E os sonhos que antes sonhava
brincam de atirar no meu rosto
a realidade fria da vida minha...
Eu que pensava que me bastava!
Nas minhas fraquezas interiores
preciso da sua mão meio divina...
Apenas um sorriso seu já reanima,
e eu amanheço pronto de novo. Ufa!
76
Solidão...
“Todo o inferno está contido nesta única palavra: solidão.”
Hugo, Victor
Uma bebida com gelo,
uma música com paixão.
Uma noite meio bizarra
gozando a morte do dia.
Meus olhos observam
tudo ao redor de mim.
A solidão que passa além
não devia habitar comigo.
Sorrisos sarcásticos cortam
o sossego da minha noite.
São fantasmas conhecidos,
inábeis na hora de alarmar.
O vento nômade sussurra
lá fora. Moveria moinhos,
77
se houvessem. Hoje, canta,
apenas, a música da solidão...
Depois do gole que saboreei,
merecia uma noite sossegada,
mas a monotonia em conluio
com a solidão, impede dormir.
A noite bizarra que gozava
o dia, agora, morre arrastada
pelo clarão do céu! E eu sigo
o dia a espera da outra noite...
78
Há pouco eu era criança... “Você pode viver até aos cem anos se abandonar todas as coisas que fazem com que você queira viver até os cem anos.”
Allen, Woody
Há pouco eu era criança,
tinha apenas oito anos.
Não pensava no tempo,
só pensava em correr
como quem brinca de viver.
Eu vivia cada dia
sem notar os horários;
tudo me escapava
por entre os sorrisos,
pintava os meus sonhos
em desenhos nas nuvens.
Tinha tantas esperanças
que se foram nas noites...
Eu já não sou o que era,
nem sei pra onde devo ir...
79
Aquele menino solto
ainda habita em mim,
agora tão preso às
obrigações da vida.
Há pouco eu era criança,
tinha apenas oito anos.
Gastava os meus dias
sonhando ser grande.
Quando o tempo soube
me tornar um homem,
eu chorei um choro quente,
pedindo a Deus que fizesse
de novo eu ser um menino.
O que me deixa mais triste
é ver que meu pai adoeceu.
não brinca mais de cowboy,
nem sabe sair do seu tédio.
E meus amores meninos
nem chegaram a prosperar.
Meus amigos se dissiparam
80
como as nuvens de algodão.
Nos meus atos de criança,
construí muros ao meu redor,
gastei um acervo de dias
tentando ser bom menino.
Presentemente, posso apenas
viver do meu melhor passado.
Eu gravei os meus sorrisos
e congelei minhas alegrias.
Vivo, agora, a perguntar
se ainda estão em mim
aqueles meus oito anos.
- E se no meu corpo de homem
ainda há espaço para brincar de viver.
81
Nossa guerra do dia-a-dia... “Quando um homem deseja matar um tigre, chama a isso desporto; quando um tigre deseja matar um homem, este chama a isso ferocidade.”
Shaw, Bernard
Depois, a gente se cansa
e decide que não se pode mais morrer.
Morrer de bala certeira chamada de “bala perdida.”
Morrer sem ter feito nada para morrer. Morrer na hora errada!
Depois, fica um cheiro de terra molhada
de lágrimas de olhos que choram
seus mortos nesta insana cidade...
Cidade cheia de gente insensata e assassina!
Depois, a gente se torna sedado, alheio a tudo.
E a noite fica enorme, cortada em pedaços
entre um sono e outro,
entre um sono e meio...
82
Melhor trancar o choro no peito
e não ouvir na noite
os tiros que tiram vidas.
Depois, meio sem querer,
fingimos que não vemos,
trancamos as portas,
fechamos os nossos olhos, amém!
Depois, bem, depois...
vem uma autoridade e diz que foi um fato isolado.
Um fato isolado na nossa real guerra do dia-a-dia.
Fato isolado todo santo dia.
Chega, chega meu Deus do céu!
83
Noites de espera...
“O amor, tal como existe na sociedade, não passa da troca de duas fantasias e do contato de duas epidermes.”
Chamfort, Sébastien-Roch
Em qualquer noite, mesmo nas
sombrias e chuvosas,
eu quero que chegue,
sem aviso e cerimônia,
para alegrar o meu quarto.
Nessas noites,
eu fico a beira do precipício
e vejo apenas duas escolhas:
ou chega depressa e me beija
ou eu saio correndo e vou lhe beijar.
Somente assim, minha vida
flui naturalmente
e percebo que agora
sou muito mais seu
do que meu mesmo.
84
Estes olhos entristecidos
não são meus diariamente,
apenas quando tomados
pela saudade do seu corpo
que chega sempre depois dessa dor...
Quando chegar,
e eu sei que chegará,
terei para você o melhor do meu abraço,
o mais ardoroso dos beijos.
Darei a você o melhor de mim.
Assim:
Quem sabe ficará mais tempo
e minhas noites deixarão de ser
sombrias, molhadas, tristes e
de esperas infindas...
85
Eu nem notei o seu olhar... “A vida de um poeta é como uma flauta na qual Deus entoa sempre melodias novas.”
Tagore, Rabindranath
O ano passou e eu nem me dei conta.
Fiquei parado enquanto caminhavas.
Sentei na borda do dia até que o vento
viajante passasse pela minha janela...
Ele passou ligeiro. Depois, lentamente...
Eu nem me dei conta que devia caminhar.
O tempo correu e eu nem notei teu olhar
que daria mil poemas no ano que morreu.
Rezo agora uma novena inteira para que
eu saiba aproveitar esse esvoaçar do teu
cabelo no vento novo do ano que chegou,
cheio de dias e casto de poemas e poesias.
86
Vou me vestir de poesia... “Felicidade é alguém para amar, algo para fazer e algo para aspirar.”
Joseph, Addison
Vou me vestir de poesia e
sair por aí a chocar quem
não percebe o encanto...
As pessoas que se finjam
insensíveis, sorrirão;
as que não sintam afeto,
sentirão; as duras de
Coração, se comoverão.
Vou me vestir de poesia e
sair por aí a chocar quem
não percebe o encanto...
as pessoas que finjam
carinho, chorarão;
as que falsamente acariciem
das suas aleivosias falarão,
As puras de alma e calma
poemas se tornarão.
87
Quem não confia em ninguém,
no homem-poesia, confiarão.
Em troca, farei um carinho
poético na alma de cada um.
Seguirei assim:
aplaudindo o milagre da poesia,
chutando ao longe a hipocrisia.
Vou brincando de brincar de poeta
e me vestindo, dia e noite, de poesia.
88
Eu morro sem você...
“Só se ama o que não se possui completamente.”
Proust, Marcel
Quem pode beijar a sua boca melhor que eu?
Você devia chegar, tocar a campainha e ficar.
Ficar para sempre. Como se fosse dona da casa.
Assim: eternamente, e todo dia me amar somente.
Marcar território,
cuidar do que é seu e me amar pacientemente
até que o clarão do dia expulse a noite...
E, após, me amar de novo,
até que o dia torne a anoitecer.
E nunca mais partir,
apenas ficar e me amar,
amar sempre e sempre!
89
Não tolero mais esta espera,
nem a falta do seu amor.
Esse quarto é enorme,
fica maior sem você.
Essas janelas sufocam,
a campainha não toca,
você não volta.
E, aos poucos, eu morro sem você.
Morro na esperança de lhe ver.
90
Desencontros...
“Cada um de nós é uma lua e tem um lado
escuro que nunca mostra a ninguém.”
Twain, Mark
Sempre de papo pro ar,
vou levando a minha vida
brincando de ser poeta...
Nas noites alongadas,
em horas infindas,
a saudade tortura.
E na festa dos galos
outra vez me ponho de pé.
Sozinho, saio pelas ruas
e fico sempre a apreciar,
pelas frestas dos olhos
dos passantes felizes,
os sonhos que carregam...
José quer Maria,
a Maria o Adauto,
Adauto se perdeu
91
de amor por Sofia,
Sofia não quer ninguém.
Diz que se casará com o Senhor.
De novo chega à noite
e a lua vem faceira;
parece querer amor
com o vento passageiro.
O vento madrugador
não tem parada,
segue noite afora
buscando outras plagas.
Enquanto eu, de papo pro ar,
fico aqui sonhando a lua
que se sugere marota
a este solitário poeta,
pintando de prata
o chão do meu quarto.
92
O peso do tempo... "A felicidade é uma borboleta que, quando você persegue, sempre está mais longe do seu alcance. Mas que, se você se senta e fica quieto uns momentos, pode ser que pouse em seu ombro."
Hawthorne, Nathaniel
Acocoraram-se sobre meus ombros
os meus quarenta e tantos anos.
Não é costume senti-los, mas
como pesam de vez em quando!
Ninguém me avisou.
Nem minha mãe, nem meu pai
falaram-me do peso que tem o tempo.
Não existe balança que o saiba pesar:
dói no corpo, dói na alma,
dói até na calma
das minhas omissões...
Deve ser saudades e vontades
acumuladas neste fardo da vida.
É pelas minhas veias que se escondem,
93
dissimulam-se em mim, feito vermes malditos.
Para as saudades e as vontades
jamais rezei terços.
Sempre as tratei com desleixo e abuso.
Agora, se vingam cruelmente de mim.
Cresceram por elas mesmas,
sem que eu pedisse.
Quem as plantaram foi o tempo.
Alimentaram-se da chuva dos meus desacertos.
Do calor e alegria da minha vida, se um dia houver,
tostarão.
Passaram tantas primaveras
que nem me dei conta
que já andei mais da
metade da minha vida.
Agora eu sei sobre este peso nos lombos.
Foram tantas manhãs quentes
e noites frias que passei a meditar.
Tantas coisas observei que
me diziam sobre poesias,
94
eu, teimoso, as avoquei,
algumas ouviram e vieram,
outras jamais nasceram,
viraram cargas e postaram-se sobre os meus dorsos.
Noutras horas elas levitam equilibrando-se na alegria
de quem lê os meus poemas pelo andar do tempo...
95
Oito ou oitenta!
"A preocupação é como a cadeira de
balanço: nos mantêm ocupados, porém não
nos leva a lugar algum.”
Silvado, Hedy
Quem
sabe em mim
o amor se revela
bem mais potente
que em outras criaturas!
Quando o amor se apresenta,
ou você ama e se deixa amar,
ou fuja. Assim: oito ou oitenta!
Sem saber se é a sua vontade,
o coração se alegra e já bate
numa batida diferente!
O amor se faz forte, meio tempestade,
e, nessa abstração, num bate e rebate
96
apenas quem ama é que sabe e sente!
Quem
sabe em mim
o amor se revela
bem mais potente
que em outras criaturas!
97
Poema fosco...
“Desprezo o verso que soa e não cria.”
Foscolo, Ugo
Minha mão de amante segura o papel.
Tenho que colocar nesta branca folha
todo o amor que dilacera o meu peito.
Adicionar tinta, lágrima, amor e emoção,
numa harmonia poética que não mereça
reparos, mas somente apoios e aplausos!
E o poema se cria, surge comum.
Ficou aquém do amor que tenho.
Parece anêmico, fraco, opaco, um caco!
Ficou sem cor nem tem olhos luminosos.
Achei-o turvo, faltou o brilho dos apaixonados,
faltou sol, ficou sem sal, nem bom, nem muito mal; normal!
Poema tem que flamejar mais que vestes brilhantes.
Poemas tem que ser inteiros e cabais, tem que convencer
a cada vocábulo, tem que nascer e andar por si só, sem muletas
ou andadores, sem usar o nome do criador. Tem que ser ímpar.
Meu poema fraquejou, nasceu doente, tem data para desaparecer.
Se continuar vivo manchará o amor que sinto, fará menor o meu amor.
98
O amor que me incendeia o peito
não arde nas linhas do meu poema;
Não incendeia nem mesmo as vistas do poeta criador.
É alicerce feito na areia, cede fácil,
desmorona ao primeiro vento.
E, que a maré cheia lamba os restos mortais
deste poema que eu criei e matarei. Amém...
99
Um feriado de mim
“Se o ano todo fosse de feriados, o lazer, como o trabalho, entediaria.”
Shakespeare, William
Queria sim, um feriado de mim.
Um dia, em que estes problemas não fossem meus,
um dia pleno, outros pensamentos, os seus, talvez.
Queria um tempo sossegado dentro da minha cabeça.
Queria sim,
um feriado de mim.
Um barulhinho de paz,
um assanhaço se fartando
no mamoeiro do quintal,
uma borboleta no meu jardim,
uma água de coco geladinha...
Uma balada dos anos setenta,
com o Demis Roussos ou Bee Gees.
Queria sim, um feriado de mim.
Como eu queria!
100
Vergel de malmequeres
Deixa-me entrar na sua vida...
Ser sua rede, sua água, sua comida...
Sempre unidos, nas descidas e subidas.
Inclua-me nos seus lazeres e prazeres
Darei calma nos seus dias mais céleres...
Cumprirei sempre com os meus deveres.
Venha e no amor se deleite e se exagere,
Deslembre de algumas brigas e entreveres...
Amemo-nos, todo dia, nesse vergel de malmequeres.
101
A vida virou festa...
“Fazer poesia é como fazer amor: nunca se saberá se a própria alegria é compartilhada.”
Pavese, Cesar
Quando pela primeira vez eu vi Amélia,
foi como ver uma flor numa fenda de rocha.
Aquela visão me levou a levitar do meu chão,
E tudo pareceu belo! E belo ficou o mundo!
A noite surgiu perfeita para o amor
e nos meus braços ela se deleitou.
Uma noite se fez pouco pra tanto amor.
Do quarto em chama uma deusa desfilava
um elenco de motivos para que aquele amor
continuasse através dos anos.
Para que passasse pela história,
entre beijos me disse:
- há muito eu te amava!
102
Depois de horas de beijos, delírios,
prazeres divinais e gozos da alma,
retornamos ao mundo real.
Antes, juramos fazer tudo de novo,
feito crianças enlouquecidas com o brinquedo.
Dissemos um ao outro um até breve!
A vida virou festa.
A trilha se fez um jardim florido.
Tudo colorido de amor e felicidade!
Foi assim à primeira vez que vi Amélia.
103
Meu peito é o palco
“Ninguém ignora que a poesia é uma solidão espantosa, uma maldição de nascença, uma doença da alma.”
Cocteau, Jean Aqui neste peito desfilaram amores.
Ilimitados enquanto duraram e renderam
poesias, suspiros, vigílias, sonhos e agonia...
Tudo rodopiou a passos largos por este peito.
Chegaram bem vestidos, lindos e faceiros,
vieram preparados para uma temporada:
trouxeram provimentos em forma de beijos,
saciou-me a fome, bateram sinos, festejaram!
Tudo acabou! E neste meu peito, agora,
há uma fome negra e uma saudade enorme.
E eu me deito vazio nesta cama fria e sem vida.
Meus suspiros doridos não matam a fome de amor
e as lágrimas descem úmidas, quentes e em cascatas,
sobre a face de tantos amores passados e definhados.
104
Tem uma dor no poema...
“Se tu soubesses, quando deixamos de ter os nossos velhos, até que ponto lamentamos não lhes havermos dado mais do nosso tempo.”
Daudet, Alphonse
Meu pai, quando morreu naquele dia,
morreu apenas parte dele.
Do inteiro que ele era,
grande parte foi perdendo pela vida...
Tornou-se triste e morreu um tanto dele.
Por mais que se fizesse,
não lhe chegava a alegria.
Nada lhe era bom que o contentasse.
Depois de perder o entusiasmo resta pouco.
Resta nada, se não quiser se erguer e seguir...
Os dias e as noites conjugam-se. Tornam um escuro só.
Depois é o coração que bate e bate não se sabe pra quê.
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Se não lhe escapa um sorriso por quase nada,
É porque quase nada lhe resta nesta vida...
Um mundo entre a cabeça e os pés da cama,
mundo não é... nem cama. É prisão de um ser livre.
Meu pai já não sorria nem chorava,
porque nada mais lhe tocava de verdade.
Tudo fizemos. Eram médicos de corpo, mente
e alma. E remédios e remédios que não remediavam.
Deve ser a tristeza um vício
que facilmente nos faz dependentes.
O caminho mais curto que há é a falta
de desejos e a ausência de sonhos reais ou irreais.
Meu pai foi morrendo pouco a pouco
pelo caminho. Naquele dia em que a
vida de fato lhe deixou, ele não era mais ele.
Era, na verdade, uma sombra fraca do que foi.
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Poesia do homem de negócio
“Seja em que poesia for, o caos deve transparecer sob o véu cerrado da ordem.”
Novalis, Friedrich
No jardim da casa grande da avenida central
um homem sisudo caminha prá lá e prá cá...
Na cabeça, equilibra os problemas do mundo.
No olhar, nem um pouco do verde da ramagem.
O vento que sopra não faz sopro no seu rosto.
Apenas incomoda a inquietude negocial que
ele trás sempre nos ombros e no semblante...
Caso de quem há muito se tornou impassível.
Nos momentos em que há um pouco de calma
pesam no corpo e na alma os martírios da vida.
As alegrias não vividas e a saudade infinita
do tempo que passou e não volta jamais,
passam agora voando,
se segurando nas asas
107
da borboleta colorida
que mora no jardim...
Ao homem de negócio, ao menos,
um etéreo instante de paz total...
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Um brinde aos meus fantasmas...
“Eu definiria o efeito poético como a capacidade que um texto oferece de continuar a gerar diferentes leituras, sem nunca se consumir de todo.”
Eco, Umberto
Mergulhei fundo
no meu passado
somente para arrostar
fantasmas de outras ocasiões...
Meu Deus! Alguns estão
deformados pelo tempo;
outros, agora, com cara de amigos.
Tantos nem se lembram mais de mim...
No meu juízo, combati, de novo,
combates dos tempos das antigas...
senti as mesmas dores e frustrações.
Chorei pelos mesmos medos e temores...
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Lacerei feridas já hígidas e
reanimei suspiros acalmados.
Vi que entre os meus fantasmas
havia outros que agora eram anjos de guarda...
Ergui um brinde a todos...
Vi que sem eles eu não seria quem sou.
Anjos e demônios bebericaram do meu vinho.
Jamais me senti tristonho, depois dessa viagem.
Embriaguei-me de saudades e leve fiquei a sorrir...