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  • Amrico de Sousa

    A PersuasoEstratgias da

    comunicao influente

    Universidade da Beira InteriorCovilh

  • Contedo

    1 Retrica: discurso ou dilogo? 51.1 O despertar da oratria . . . . . . . . . . . . . . 51.2 A tcnica retrica de Aristteles . . . . . . . . . 111.3 A retrica clssica: retrica das figuras . . . . . . 26

    2 A nova retrica 312.1 Crtica do racionalismo clssico . . . . . . . . . 312.2 Por uma lgica do prefervel: demonstrao ver-

    sus argumentao . . . . . . . . . . . . . . . . . 352.3 A adeso como critrio da comunicao persuasiva 422.4 Estratgias de persuaso e tcnicas argumentativas 512.5 Amplitude da argumentao e fora dos argumentos 692.6 A ordem dos argumentos no discurso . . . . . . . 72

    3 Retrica, persuaso e hipnose 773.1 Os Usos da Retrica . . . . . . . . . . . . . . . . 773.2 Da persuaso retrica persuaso hipntica . . . 116

    4 Concluso 183

    5 Bibliografia 1915.1 Obras citadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1915.2 Obras consultadas . . . . . . . . . . . . . . . . . 194

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  • Captulo 1

    Retrica: discurso oudilogo?

    1.1 O despertar da oratriaDesde sempre os gregos foram inveterados amantes da palavra,apreciando a eloquncia natural mais do que qualquer outro povoantigo. A comprov-lo esto os brilhantes discursos que enchemas pginas da Ilada e as fervorosas palavras que os comandan-tes militares dirigiam s suas tropas antes de entrar em combate.Os prprios soldados cados na guerra eram logo honrados comsolenes discursos fnebres. Mas foi com o advento da democra-cia que esse interesse pela eloquncia e oratria cresceu de umamaneira explosiva. Compreende-se porqu: o povo - onde no seincluam, nem as mulheres, nem os escravos, nem os forasteiros -passou a poder reunir-se em assembleia geral para tratar e decidirde todo o tipo de questes. Assembleia geral que era ao mesmotempo o supremo rgo legislativo, executivo e judicial. Nela seconcentravam os mais altos poderes. Podia declarar a guerra oua paz, alterar as leis, outorgar a algum as mximas honras mastambm mand-lo para o exlio ou conden-lo morte. Tratava-sede reunies pblicas e livres, pois todos os cidados podiam assis-tir, participar e votar. Logicamente, os que melhor falavam eram

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    tambm os mais influentes. Logo, quem aspirasse a ter alguma in-fluncia nessas assembleias, forosamente teria de possuir assina-lveis dotes oratrios. Alm do mais, os conflitos entre cidadosdirimiam-se perante tribunais constitudos por jurados eleitos porsorteio. Aquele que com suas palavras persuasivas lograsse pren-der a ateno dos jurados e convenc-los da sua posio, sairiavencedor do pleito. A oratria passou assim a ser fundamental,j no apenas para aqueles que aspiravam poltica - que era aambio ou carreira mais normal para os cidados livres daqueletempo - mas tambm para os cidados em geral que, dedicadosaos seus negcios e ocupaes agrcolas ou artesanais, com al-guma frequncia se viam envoltos em acusaes e julgamentosno mbito de infraces ou delitos, contratos, impostos, etc.

    Nem toda a gente porm era capaz de falar em pblico combrilho e eficcia. Os menos hbeis na oratria tinham de pedir aajuda dos mais preparados. Da ao florescimento de uma classeprofissional de especialistas na arte de bem falar e escrever, foi umpasso. Esses especialistas, ora transmitiam ensinamentos de ret-rica, ora representavam pessoalmente os seus clientes nos plei-tos ou cediam-lhes discursos j feitos que aqueles pronunciariamcomo se fossem escritos por eles prprios. Com o passar do tempoa experincia oratria foi sendo reunida em mximas e preceitostendentes obteno do xito no tribunal ou na assembleia. Aoratria tornava-se desse modo uma tcnica e por meados do sc.V a. C. surgiam na Siclia os primeiros tratados de retrica, atri-budos a Krax e Tsias, embora confinados praticamente orat-ria forense e dando especial relevo aos truques a que o advogadopoderia recorrer para vencer em juzo.

    O verdadeiro fundador da tcnica retrica, porm, foi um ou-tro siciliano, Grgias Leontinos que surgiu em Atenas, no ano de427 a. C., como embaixador da sua cidade natal e que desde logocausou a maior sensao, devido aos brilhantes e floreados dis-cursos com que se dirigia aos Atenienses, a solicitar a sua ajuda.Muitos deles, fascinados pela sua oratria, tornaram-se seus dis-cpulos, fazendo de Grgias o primeiro professor de retrica de

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  • A Persuaso 7

    que h conhecimento. Para Grgias, a oratria deveria excitar oauditrio at o deixar completamente persuadido. No lhe inte-ressava uma eventual verdade objectiva, mas to somente o con-vencimento dos ouvintes. Para o efeito, o orador deveria ter emconta a oportunidade do lugar e do momento, para alm de saberadaptar-se ao carcter dos que o escutassem. Mas sobretudo, teriade usar uma linguagem brilhante e potica, cheia de efeitos, figu-ras e ritmos. Ele foi, pode dizer-se, o introdutor de uma oratriade exibio ou de aparato, sem obedincia a qualquer finalidadepoltica ou forense e orientada fundamentalmente para fazer real-ar o prprio orador. Neste aspecto, em nada se afastava de muitosoutros sofistas do seu tempo.

    Aristteles estudou os tratados de retrica deixados por Gr-gias e seus seguidores, chegando mesmo a resumi-los numa sobra em que procedeu compilao das tcnicas retricas. Consi-derou, porm, tais tratados pouco satisfatrios, por no irem almdo recurso aos truques legais e s maneiras mais absurdas de sus-citar a compaixo dos jurados. Faltava uma apresentao sriae mais abrangente das regras e dos mtodos da retrica, especi-almente, os mais tcnicos e eficazes, aqueles que se baseiam naargumentao.

    Quando Aristteles chegou a Atenas, Iscrates era o mais fa-moso e influente Mestre de retrica e possua uma escola maisbem sucedida que a Academia de Plato, com a qual de resto riva-lizava, na formao dos futuros homens polticos da cidade. Logopor altura da fundao da sua escola, Iscrates escreveu uma obracom o muito elucidativo ttulo de Contra os sofistas, na qual acu-sava estes ltimos de perderem o seu tempo e fazerem perder odos demais com subtilezas intelectuais sem qualquer relevnciapara a vida, para a poltica ou para a aco. Igualmente conde-nava os retricos formalistas por inculcarem nos seus alunos afalsa ideia de que a aplicao mecnica de um receiturio de re-gras ou truques pode levar ao xito. Demarcando-se do que ata tinha sido a orientao dominante dos grandes mestres da ret-rica, Iscrates proclama a necessidade de uma formao integral,

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    que partindo de um carcter adequado, inclua o estudo tanto datemtica poltica como da tcnica retrica em toda a sua dimen-so. S assim se poderia formar cidados virtuosos e preparadospara o xito poltico e social. Assinale-se que era a esta formaointegral, onde a retrica assumia um papel de relevo, que Iscra-tes chamava de Filosofia. Os demais filsofos, incluindo Plato,no passariam de sofistas pouco srios.

    Contra essa concepo se pronunciou Plato por achar que oensino de Iscrates, para alm de frvolo e superficial, era dirigidounicamente ao xito social, ficando margem de todo o questi-onamento filosfico ou cientfico sobre a natureza da realidade.Estava em causa a educao superior ateniense e, segundo Plato,a hegemonia da retrica, que visa a persuaso e no a verdade,era um perigo que urgia atacar decididamente. No seu dilogoGrgias, podemos ver como ele confronta a retrica e a filosofia,defendendo claramente uma espcie de tecnocracia moral, em queos verdadeiros especialistas (os filsofos) conduzam os cidadosquilo que o seu interesse, isto , a serem cada vez melhores.Condena a democracia onde os polticos oradores bajulam o povoe seguem servilmente os seus caprichos, o que s pode tornar oscidados cada vez piores. E esgrime os seus contundentes argu-mentos contra a retrica, negando-lhe o carcter de uma verda-deira tcnica, por no se basear em conhecimento algum. Paraele, a retrica no passa de uma mera rotina concebida para agra-dar ou adular. apenas um artifcio de persuaso. No da persu-aso do bom ou do verdadeiro, mas sim da persuaso de qualquercoisa. Lembra que graas retrica que o injusto se livra docastigo, quando segundo ele, valeria mais ser castigado, pois a in-justia o maior mal da alma. Plato conclui que a retrica notem mesmo qualquer utilidade a no ser que se recorra a ela jus-tamente para o contrrio: para que o faltoso ou delinquente seja oprimeiro acusador de si mesmo e de seus familiares, servindo-seda retrica para esse fim, para tornar patentes os seus delitos e selivrar desse modo do maior dos males, a injustia.

    Iscrates, por certo, no comungava de to exaltado mora-

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    lismo, pois a sua retrica estava orientada basicamente para a de-fesa de qualquer postura, para ganhar os pleitos, para persuadira assembleia. Foi, porm, o mais moralista e comedido de todosos retricos, em grande parte, devido s suas reais preocupaespolticas, mas tambm por estar convencido que o virtuoso acabasempre por ter mais xito do que o depravado. Por isso se insur-gia, tal como Plato, contra os sofistas mais cnicos e amorais.Compreende-se assim que Plato, com o decorrer dos tempos, te-nha temperado a veemncia das suas iniciais crticas retrica,chegando mesmo a elogiar Iscrates, embora sem reconhecer oratria outro mrito que no fosse o meramente literrio. Na suaobra Fedro viria inclusivamente a admitir a possibilidade de umaretrica distinta, verdadeira e boa, que se confundiria quase coma filosofia platnica.

    Idntica mutao de pensamento parece ser de assinalar a Aris-tteles, que depois de ter inicialmente enfrentado Iscrates paradefender a supremacia das teses platnicas - cujo xito lhe valeuo convite para dirigir o primeiro curso de retrica na Academia- acabou por ir abandonando pouco a pouco as posies exacer-badamente moralistas destas ltimas, em favor da incorporaode cada vez mais elementos da tcnica oratria. Com isso, podedizer-se que a sua concepo final da retrica, muito precisa erealista, se situa, pelo menos, to prximo de Iscrates como dePlato.

    Aristteles insurge-se contra os retricos que o precederam,acusando-os de se terem contentado com o compilar de algumasreceitas e um sem nmero de subterfgios ou evasivas aplicveis oratria, que visam apenas a compaixo dos juzes. E isto, quandoh outros tipos de oratria para alm da forense, tornando-se ne-cessrio proceder sua distino. Alm do mais, os especialistasda oratria tinham at ali passado ao lado do recurso tcnico maisimportante a que pode deitar mo o orador: a argumentao, emespecial, o entimema. So essas lacunas que Aristteles se pro-pe suprir. Haveria que estudar as razes porque os oradores quepronunciam os seus discursos, umas vezes tm xito e outras no.

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    Sistematizar e explicitar essas razes a grande tarefa da tcnica,no caso, da tcnica retrica.

    Ao assumir essa posio, Aristteles vai afastar-se de toda aconcepo negativista da retrica, reconhecendo-lhe finalmente adignidade de fundamento e de uso que at a tanto fora questio-nada, especialmente por Plato e seus seguidores. Agora a tc-nica retrica considerada til para todos os cidados e at paraos filsofos, pois perante os auditrios populares que formam asassembleias e os tribunais, de nada servem as demonstraes pu-ramente cientficas, sendo imprescindvel recorrer retrica, paraobter o entendimento e convencer os restantes co-participantes.De contrrio, corre-se o risco de ser vencido e ver a verdade e ajustia escamoteadas. Definitivamente, o saber defender-se coma palavra, passou a ser uma parte essencial da educao e cul-tura geral grega. E Aristteles explica porqu: se vergonhosoque algum no possa servir-se de seu prprio corpo [para se de-fender], seria absurdo que no o fosse no que respeita razo,que mais prpria do homem do que o uso do corpo 1. certoque uma das maiores acusaes que Plato fizera retrica tinhasido a de que esta poderia trazer graves consequncias quando al-gum dela se servisse para fazer o mal, mas Aristteles ripostacategoricamente, lembrando que se certo que aquele que usainjustamente desta capacidade para expor razes poderia causargraves danos, no menos certo que isso ocorre com todos osbens, excepo da virtude, sobretudo com os mais teis, comoo vigor, a sade, a riqueza ou a capacidade militar, pois com elestanto pode obter-se os maiores benefcios, se usados com justia,como os maiores custos, se injustamente utilizados2.

    1Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 512 Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 51

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    1.2 A tcnica retrica de Aristteles1.2.1 Os meios de persuasoA tcnica retrica de Aristteles consiste nos principais meios ourecursos persuasivos de que se vale o orador para convencer o au-ditrio. Esses meios de persuaso podem classificar-se antes demais em tcnicos e no-tcnicos. Os meios de persuaso no-tcnicos so os que existem independentemente do orador: leis,tratados, testemunhos, documentos, etc. Os meios de persuasotcnicos so aqueles que o prprio orador inventa para incorporara sua prpria argumentao ou discurso e que se repartem por trsgrupos, tantos quantas as instncias da relao retrica: ethos, ocarcter do orador; pathos, a emoo do auditrio e logos, a ar-gumentao. Impe-se, contudo, precisar um pouco melhor cadauma destas instncias. Em primeiro lugar, o ethos. Sem dvidaque o carcter do orador fundamental, pois uma pessoa ntegraganha mais facilmente a confiana do auditrio, despertando nelemaior predisposio para ser persuadido. Mas trata-se aqui da im-presso que o orador d de si mesmo, mediante o seu discurso eno do seu carcter real ou a opinio que previamente sobre eletm os ouvintes, pois estes dois ltimos aspectos, no so tcni-cos. Quanto ao pathos, tem de se reconhecer que a emoo que oorador consiga produzir nos seus ouvintes pode ser determinantena deciso de serem a favor ou contra a causa defendida. Se o ora-dor suscita nos juizes sentimentos de alegria ou tristeza, amor oudio, compaixo ou irritao, estes podero decidir num sentidoou no outro. Foi alis este o ponto mais estudado nos anteriorestratadistas da retrica. Por ltimo, o logos, constituindo o dis-curso argumentativo a parte mais importante da oratria, aquelaa que se aplicam as principais regras e princpios da tcnica ret-rica. E os recursos argumentativos so fundamentalmente dois: oentimema e o exemplo 3. O entimema o tipo de deduo prprioda oratria. Parece um silogismo mas no , pois s do ponto de

    3Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 55

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    vista formal mantm semelhanas com o silogismo cientfico oudemonstrao. A grande diferena reside nas suas premissas que,contrariamente ao que acontece no silogismo cientfico, no sonem necessrias, nem universais, nem verdadeiras. O entimemaparte de premissas apenas verosmeis, que se verificam em mui-tos casos e so aceites pela maioria das pessoas, particularmente,pela maioria dos respectivos auditrios. Quanto ao exemplo, ele o tipo de induo caracterstico da oratria e consiste em citaroportunamente um caso particular, para persuadir o auditrio deque assim em geral.

    Aristteles concebe trs gneros de oratria: a deliberativa, aforense e a de exibio 4. A oratria deliberativa a que tem lu-gar na assembleia e visa persuadir a que se adopte a poltica queo orador considera mais adequada. a mais importante, a maisprestigiada, prpria de homens pblicos e aquela para a qual pre-ferentemente se orientava o ensino de Iscrates e Aristteles. Aoratria forense, como o seu nome indica, a utilizada perante osjuzes ou jurados do tribunal, para os persuadir a pronunciarem-sea favor ou contra o acusado. Embora til, no muito valorizada.Finalmente, a oratria de exibio, tambm chamada de epidc-tica, a que tem lugar na praa ou outro local similar, perante opblico em geral, que o orador procura impressionar exibindo osseus dotes de oratria, normalmente fazendo o elogio de algumou de algo, ainda que isso seja um mero pretexto para o oradorbrilhar.

    Cada um destes trs gneros de oratria, possui uma especialrelao com o tempo, conforme o efeito da persuaso se mani-feste no passado, no presente ou no futuro. Na oratria delibe-rativa, por exemplo, est em causa o futuro, pois os membros daassembleia so chamados a deliberar sobre o modo como as coi-sas iro decorrer. A oratria forense, remete-nos para o passadopois os juizes ou jurados do tribunal decidem sobre actos que jdecorreram. Por ltimo, na oratria de exibio (ou epidctica) o presente que se assume como dimenso temporal, pois a os

    4 Ibidem, p. 64

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    ouvintes analisam e julgam a habilidade que o orador manifestano preciso momento em que usa da palavra. Evidentemente quecada um destes trs gneros de oratria tem tambm o seu espe-cfico objectivo: a oratria deliberativa procura obter uma certautilidade ou proveito, a oratria forense visa a justia e a oratriade exibio serve ao enaltecimento do orador, ainda que custado elogio de algum. No que respeita aos meios de persuasopropriamente ditos, os exemplos so mais adequados oratriadeliberativa e os entimemas oratria forense, ainda que ambosse utilizem numa e outra. Quanto ao encarecimento ou elogio,esse mais frequente na oratria de exibio.

    1.2.2 As premissas de cada tipo de oratriaO orador far uso abundante dos entimemas que so o principalinstrumento de persuaso de que dispe. O entimema uma infe-rncia ou deduo (um silogismo, segundo a terminologia aristo-tlica) parecido na forma com a demonstrao cientfica mas me-nos rigoroso, ainda que tanto ou mais convincente quando usadoperante um pblico menos culto. No entimema comem-se comfrequncia as premissas, aparecendo s algumas e subentendendo-se as outras. Alm disso, as premissas no precisam de ser ver-dadeiras, basta que sejam verosmeis. Nem o que as premissas doentimema formulam em geral necessita cumprir-se sempre, bastaque se cumpra com frequncia. A tcnica retrica deve proporci-onar um amplo repertrio de premissas verdadeiras ou verosmeisou geralmente aceites acerca de cada tema, de tal modo que apartir delas se possa construir os entimemas. Por isso Aristtelesdedica os captulos IV, V, VI, VII e VIII do Livro I da sua Re-trica apresentao de lugares ou tipos de premissas utilizveisem discursos deliberativos.

    a) Na oratria deliberativaOs temas mais frequentes na oratria deliberativa, perante a

    assembleia popular, so por excelncia, os temas polticos, no-

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    meadamente, impostos, guerra e paz, defesa, comrcio exterior elegislao e tambm sobre eles que Aristteles faz uma srie deconsideraes da maior utilidade para o orador, aps o que chamaa ateno para o facto de, em ltima instncia, toda a gente de-cidir tendo em vista a sua prpria felicidade, coisa que o oradorpoltico ou deliberativo deveria ter em conta. A tcnica retricadever ento proporcionar ao orador premissas sobre a felicidade,que comearo pela sua prpria definio e a dos seus elementos,pois apelando felicidade que esse orador conseguir convenceros membros da assembleia. Aristteles d uma definio da feli-cidade que pode ser facilmente aceite por todos: Seja pois felici-dade a prosperidade unida excelncia ou suficincia dos meiosde vida, ou a vida mais agradvel, acompanhada de segurana ouplenitude de propriedades e do corpo, bem como a capacidade deos salvaguardar e usar, pois pode dizer-se que todos coincidemem que a felicidade consiste numa ou mais destas coisas 5. Mascomo por vezes se apela no felicidade plena mas somente auma das suas partes, o orador deve dispor tambm de premissassobre essas partes da felicidade que so, nomeadamente, a no-breza, a riqueza, a boa fama, as honras, a sade, a beleza, o vigore a fora, o ter muitos e bons amigos, a boa sorte e a excelnciaou virtude.

    Quando o orador recomenda algumas coisas assembleia, apre-senta-as como proveitosas ou convenientes, ou seja, como bens oucomo permitindo a obteno de bens. Necessita por isso de disportambm de premissas sobre os bens, a comear pela sua prpriadefinio e classes em que se podem agrupar. Esses bens so, emprimeiro lugar, a felicidade, depois, a riqueza, a amizade, a glria,a eloquncia, a memria, a perspiccia, os saberes, as tcnicas ea justia. Aristteles preocupa-se em oferecer sobre todos essesbens pontos de vista que podem ser utilizados como premissas,por exemplo aquilo cujo contrrio um mal, ele mesmo umbem. Nas situaes em que todos esto de acordo em que duaspropostas convm ou so boas, o que se torna necessrio dizer

    5Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 71

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    qual delas convm mais ou melhor. Por isso Aristteles forneceuma bateria de critrios de comparao que podem ser usadospelo orador para apresentar um bem como prefervel a outro.

    b) Na oratria forenseNa oratria forense, que tem lugar no tribunal, o tema bsico

    saber se se cometeu ou no injustia num caso determinado.E tambm ao orador forense a tcnica retrica deve oferecer umvasto conjunto de definies, classificaes, critrios e dados queele possa utilizar com premissas dos seus entimemas. Aqui a no-o fundamental que est em jogo a de acto injusto que Arist-teles define como equivalente a causar voluntariamente um danocontrrio lei 6. Ou seja, para que haja injustia so necessriostrs requisitos: a produo de um dano, inteno de o provocar eviolao da lei. Por sua vez, o acto intencional quando prati-cado sem estar forado ou submetido a uma violncia ou a umanecessidade exterior. Considerando que tudo o que se faz volunta-riamente, ser agradvel ou dirigido ao prazer, Aristteles defineeste ltimo como um processo de alma e um retorno total e sen-svel sua forma natural de ser 7 e descreve os diversos tipos deprazeres tais como prazeres naturais do corpo, prazeres da imagi-nao e recordao, prazer de se vingar, prazer de vencer, prazerda honra, prazer do amor, prazer de aprender, prazer de mandar,etc., ao mesmo tempo que fornece as opinies geralmente aceitese utilizveis como premissas ao falar sobre se o acto foi realizadovoluntariamente ou no e o que com ele poderia ter querido obtero agente.

    Um outro conjunto de premissas para possveis entimemasreferem-se a quem provvel que cometa injustia e quem pro-vvel que a sofra. Assim, diz-nos que quem pode facilmente co-meter injustia so os que pensam que sairo dela impunes, por-que ficaro ocultos ou porque conseguiro esquivar-se do castigograas a determinadas influncias, como acontece, por exemplo,

    6 Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 1047Ibidem, p. 108

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    com aqueles que so amigos das vtimas dos seus delitos ou dosjuizes, porque os amigos no se previnem contra as injustias epreferem chegar a um acordo antes de recorrer aos tribunais, en-quanto que os juizes favorecem os seus amigos, absolvendo-osou impondo-lhes castigos leves 8. Quanto aos que considera quefacilmente podem ser vtimas de injustia, so os que no tmamigos, os estrangeiros e os trabalhadores. Recordemos que oacto para ser injusto tem de ir contra a lei. Aristteles porm dis-tingue a lei particular, que a polis estabelece para si prpria, da leicomum resultante da natureza humana. Dentro da lei particulardistingue igualmente a escrita da no escrita (costume). Diz aindaque a equidade vai mais alm da lei escrita e que tem mais a vercom a inteno do legislador do que com o esprito da letra. Porisso apela mais a uma arbitragem que a um juzo, porque o rbitroatende ao equitativo, enquanto o juiz atende lei.

    Por ltimo, Aristteles estabelece os meios de persuaso queconsidera imprescindveis nos julgamentos e que so cinco: asleis, os testemunhos, os contratos, as declaraes sob tortura e osjuramentos. E aqui que nos aparece como eminente tcnico ret-rico, colocando-se num plano amoral, capaz de atacar e defenderqualquer posio e de dar a volta a qualquer argumento, como seespera de um bom advogado. Chega ao ponto de mostrar como aprpria lei pode ser manipulada:

    (...) Falemos, portanto, em primeiro lugar, dasleis e de como delas se deve servir quem exorta oudissuade e quem acusa ou defende. Pois evidenteque quando a lei escrita seja contrria ao nosso caso,h que recorrer ao geral ou ao razovel como me-lhores elementos de juzo, pois isso o que significacom o melhor critrio, no recorrer a todo o custos leis escritas. E tambm que o razovel permanecesempre e nunca muda, como sucede com a lei geral(pois conforme natureza), enquanto que as leis

    8Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 117

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  • A Persuaso 17

    escritas o fazem com frequncia (....) atenderemostambm ao que o justo, no sua aparncia, o que verdadeiro e conveniente, de forma que a escrita no lei, porque no serve como a lei. E tambm que ojuiz como o contrastador de moeda, que deve distin-guir entre a justia adulterada e a legtima (....). Pelocontrrio, quando a lei seja favorvel ao caso, h quedizer que o com o melhor critrio no serve parajulgar contra a lei, mas sim para evitar prejuzos pelodesconhecimento do que a lei prescreve. E que nin-gum escolhe o bom em absoluto, seno o que bompara ele 9.

    Em resumo, se a lei escrita nos favorvel, h que aplic-la.Se a mesma no nos favorece h que ignor-la e substitu-la pelano escrita ou pela equidade.

    No que se refere aos testemunhos, Aristteles elabora tambmalgumas regras tcnicas de como proceder, quer quando dispomosde testemunhas, quer quando no as possumos. Argumentosconvincentes para quem no tem testemunhos so que necess-rio julgar a partir do verosmil e que isto o que significa como melhor critrio, j que o verosmil no pode enganar, ao con-trrio do suborno, nem pode ser afastado por falso testemunho.Ao invs, para aquele que tem testemunhos, frente ao que noos tem, os argumentos sero que o verosmil no algo que possasubmeter-se a juzo e que no fariam falta os testemunhos se fossesuficiente a considerao dos argumentos apresentados 10.

    Quanto aos contratos Aristteles diz que o seu emprego nosdiscursos consiste em aumentar ou diminuir a sua importncia,torn-los fidedignos ou suspeitos. Se nos favorecem, fidedignose vlidos, e o contrrio, se favorecem a outra parte. Pois bem,fazer passar os contratos por fidedignos ou suspeitos em nada sediferencia do procedimento seguido com as testemunhas, pois os

    9Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, pp. 130-13110Ibidem, p. 134

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    contratos so mais ou menos suspeitos, segundo o sejam os seuscontratantes ou fiadores. Se o contrato reconhecido e nos fa-vorece, h que engrandecer a sua importncia, sobre a base deque um contrato uma norma privada e especfica, no que oscontratos constituam uma lei obrigatria, mas porque so as leisque fazem obrigatrios os contratos conformes lei, e que, emgeral, a prpria lei uma espcie de contrato, de tal forma quequem desconfia de um contrato ou o rompe tambm rompe comas leis 11. Igualmente no caso das confisses realizadas sob tor-tura, formula regras tcnicas de proceder conforme tais confissesnos so ou no favorveis. As declaraes sobre tortura so tam-bm testemunhos e do a impresso de que que tm credibilidade,porque h nelas uma certa necessidade acrescentada. Nem sequer difcil ver os argumentos precisos no que a elas se refere e cujaimportncia devemos engrandecer, no caso de nos serem favor-veis, no sentido de que so estes os nicos testemunhos verdicos.No caso de nos serem contrrios e favorveis outra parte, tratare-mos de minimiz-los, falando em geral sobre qualquer gnero detortura, pois no se mente menos quando algum se v coagido,seja enchendo-se de coragem para no dizer a verdade, seja re-correndo facilmente a mentiras para terminar a tortura mais cedo12

    . Por aqui se v como, no que respeita persuaso, Aristtelesacaba por se colocar num plano estritamente tcnico, estudandoos meios sem tomar partido pelos fins. Com isso se afasta de-finitivamente do exaltado moralismo platnico, compreendendo,assim, o ponto de vista dos retricos profissionais, que assumeagora como seu.

    c) Na oratria de exibioNa oratria de exibio ou epidctica, recordemos, pretende-se

    acima de tudo fazer luzir o orador, embora a pretexto de elogiaralgum. E para tal, Aristteles recomenda, antes de mais, quese tenha em conta em que lugar e perante que auditrio se ir

    11Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 13512Ibidem, p. 136

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    pronunciar o discurso, para que se louve o que em cada lugarmais se estime ou valorize. certo, porm, que, o que sempre seelogia costuma ser um qualquer tipo de excelncia. Logo, o que oorador epidctico precisa de dispor de um repertrio de opiniesadmitidas ou lugares acerca da excelncia.

    Mas o que a excelncia? Aristteles define a excelnciacomo a faculdade de criar e conservar bens, mas tambm comofaculdade de produzir muitos e grandes benefcios, de prestar nu-merosos e importantes servios. Elementos ou partes da exce-lncia, so a justia, a valentia, a temperana, a liberalidade, amagnanimidade e a racionalidade. Sobre todas estas excelnciasou virtudes d Aristteles preciosas opinies e conselhos tcni-cos. Considerando que se elogia algum pelas suas aces e que prprio de um homem insigne actuar por vontade deliberada,recomenda que se procure mostrar que o elogiado agiu delibera-damente. mesmo conveniente realar que assim agiu muitasvezes, nem que para tal seja preciso tomar as coincidncias ecasualidades como se fizessem parte do seu propsito 13.

    1.2.3 Premissas comuns aos trs tipos de oratriaa) Induo e deduo

    Nos captulos XVIII a XXV do Livro II da Retrica, Aristte-les refere os tpicos ou lugares comuns que podem ser muito teisao orador em qualquer dos trs tipos de oratria j definidos. Paraele, os principais recursos lgicos de que se pode valer um oradorpara persuadir so o exemplo e o entimema, que correspondem induo e deduo, respectivamente. A induo costuma im-plicar uma certa passagem do particular ao geral, da parte para otodo. Porm, no exemplo, considerado como uma espcie de in-duo retrica, no se vai da parte para o todo, como na induopropriamente dita, nem do todo para a parte como na deduo,mas sim, de uma parte a outra parte, do semelhante para o se-melhante e tem lugar quando os dois casos pertencem ao mesmo

    13Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 101

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    gnero, mas um mais conhecido que outro. Seria como dizerque Dionsio14, ao pedir uma escolta, aspira tirania, s porqueantes, tambm Pisstrato pedira uma escolta com essa inteno edepois de a obter, fez-se um tirano, alis, como sucedera com ou-tros, quando diz Aristteles no se sabe ainda se por isso queele pede a escolta15. O exemplo ento um caso particular que oorador utiliza para apoiar a sua afirmao sobre outro caso ante-rior, distinto, mas do mesmo gnero, por apresentar certas carac-tersticas comuns. H dois tipos de exemplos: os casos realmentesucedidos e os casos inventados. Entre os exemplos inventadoscontam-se as parbolas e as fbulas. As fbulas - diz Aristteles -so muito adequadas para os discursos ao povo e tm a vantagemde ser mais fcil compor fbulas do que achar exemplos de coisassemelhantes realmente ocorridas. Contudo, os acontecimentosso mais proveitosos para a deliberaco, pois a maioria das vezeso que vai ocorrer semelhante ao que j ocorreu 16.

    O entimema, por sua vez, uma deduo em que as premis-sas so opinies verosmeis, provveis ou geralmente admitidas.E depois de ter elaborado separadamente premissas por cada tipode oratria, Aristteles oferece agora outras orientadas para temasou tpicos comuns a todos eles. assim que agrupa opinies ecritrios por tpicos como o possvel e o impossvel, se algo ocor-reu ou ir ocorrer, sobre a magnitude, sobre o mais e o menos, asquais podem ser muito teis em todo o tipo de situaes oratrias.Entre as opinies geralmente admitidas, que podem usar-se comopremissas de entimemas, encontram-se as mximas, sentenas ouprovrbios. Uma mxima uma afirmao sobre temas prticosrelativos aco humana, tratados em geral. Algumas mximasso evidentes, triviais e no requerem justificao alguma. Ou-tras, mais ambguas, j requerem um eplogo que as explique oujustifique o que vai convert-las, por sua vez, numa espcie de en-timema. Mas porque recomenda Aristteles o uso de mximas?

    14Dionsio, tirano de Siracusa, em 405 a.C.15 Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 6116Ibidem, p. 197

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  • A Persuaso 21

    Porque estas, por serem comuns e divulgadas, como se todos es-tivessem de acordo com elas, so consideradas justas.

    b) Persuaso pelo carcterPara ser um bom orador so necessrias duas coisas: saber

    argumentar bem e possuir perspiccia psicolgica. Por isso Aris-tteles para alm de analisar e sistematizar os recursos argumen-tativos, estuda tambm os factores psicolgicos da persuaso, acomear pelo carcter (ethos) do orador.

    Com efeito, o poder de convico do orador sobre o seu au-ditrio no depende s dos factos que aduza, das premissas queempregue, nem da sua boa argumentao. Os argumentos nos derivam do raciocnio demonstrativo, como tambm do tico,e acreditamos em quem nos fala na base de que nos parece serde uma determinada maneira, quer dizer, no caso de parecer bom,benvolo ou ambas as coisas 17. No se trata portanto - frise-seuma vez mais - da opinio prvia que o auditrio possa ter sobreo orador nem to pouco do carcter que este realmente possui,mas sim, do que aparenta ter quando se dirige ao auditrio. issoque pode ser decisivo para inclinar o auditrio a aceitar as suaspropostas. Persuade-se pelo carcter quando o discurso se pro-nuncia de forma que torna aquele que fala digno de crdito poisdamos mais crdito e demoramos menos a faz-lo, s pessoas mo-deradas, em qualquer tema e em geral, mas de maneira especialparecem-nos totalmente convincentes nos assuntos em que no hexactido mas sim dvida (....) e no h que considerar, como fa-zem alguns tratadistas da disciplina, a moderao do falante comoalgo que em nada afecta a capacidade de convencer, mas antes,que o seu comportamento possui um poder de convico que ,por assim dizer, quase o mais eficaz 18.

    Para despertar a confiana nos ouvintes, o orador precisa queestes lhe reconheam trs qualidades: racionalidade, excelncia ebenevolncia. Porque se o orador no racional na sua maneira de

    17Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 9418Ibidem, pp. 53-54

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  • 22 Amrico de Sousa

    pensar, ento ser incapaz de descobrir as melhores solues. Jum orador racional mas sem escrpulos, pode encontrar a soluoptima mas ou no a comunica ou tenta enganar, propondo gatopor lebre. S num homem insigne, a um tempo racional, excelentee bondoso, se pode confiar. Logo, o orador deve dar a impressode que possui um tal carcter, se pretende persuadir, pois o seuxito no depende s do que disser mas tambm da imagem quede si prprio projectar no auditrio.

    Sendo importante que o orador saiba dar a impresso de pos-suir um carcter digno de confiana, igualmente necessrio queconhea o carcter dos seus ouvintes e a ele saiba adaptar-se. Porisso Aristteles nos captulos XII a XVII do Livro II da Retricaprocede anlise e classificao do carcter em relao com aidade e a fortuna. No que respeita idade, distingue trs classes:os jovens, os adultos e os velhos. Os jovens so apaixonados, pr-digos, valentes e volveis. Os velhos, so calculistas, avarentos,covardes e estveis. S os adultos maduros adoptam uma atitudeintermdia e sensata. Falando em termos gerais, o homem ma-duro possui as qualidades proveitosas que esto distribudas en-tre a juventude e a velhice, ficando num termo mdio e ajustado,pois que uma e outra ou se excedem ou ficam aqum do neces-srio19. Em relao fortuna, Aristteles considera os factoresde nobreza, riqueza, poder e boa sorte. Assim, os nobres tende-ro a ser ambiciosos e depreciativos, os ricos sero insensatos einsolentes e os poderosos parecero como ricos, mas ainda maisambiciosos e viris.

    c) As paixes do auditrioO orador de xito no pode contudo limitar-se ao conheci-

    mento passivo do carcter dos seus ouvintes. Tem tambm queinfluenciar activamente o seu estado de nimo, provocando-lhesas emoes ou paixes (pathos) que mais convenham causa,pois este despertar das paixes adequadas no auditrio um dosmais importantes recursos de persuaso. que, como j ficou

    19Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 185

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  • A Persuaso 23

    dito a propsito dos jurados e juzes, segundo a emoo que ex-perimentem num dado momento, os ouvintes estaro predispostosa decidir num sentido ou no seu oposto. Nos captulos II a XI doLivro II da Retrica, Aristteles estuda as paixes dos ouvintes efornece ao orador lugares, opinies, informaes e critrios queo ajudaro a provocar essas paixes quando isso for do seu inte-resse. F-lo agrupando as paixes em pares de contrrios, comopor exemplo a ira e a calma, o amor e o dio, etc. De cada paixod uma definio, considerando alm disso, a disposio men-tal em que surgem, as pessoas sobre quem recaem e os objectosou circunstncias que as provocam. Por exemplo, em relao aoamor, define-o como o querer para algum o que se considerabom, no seu interesse, e no no nosso, e estar disposto a lev-loa efeito, na medida das nossas foras20. Daqui deriva a sua con-cepo de amizade pois que para ele amigo o que ama e cor-respondido no seu amor21. Mas apesar da profundidade com queanalisa cada uma das paixes, a sua finalidade sempre eminente-mente tcnica: Portanto, evidente que possvel provar que taispessoas so amigos ou inimigos; se no o so, dar a impresso deque so e se se presume que o sejam, refut-los, e se discutem porira ou inimizade, lev-los para o terreno que se prefira 22. Comisto Aristteles leva a cabo, de certo modo, o programa que Platotraara na sua obra Fedro para uma possvel tcnica retrica ge-nuna e onde punha como condio o conhecimento dos diversostipos de emoo e de carcter, a fim de que fosse possvel actuartambm sobre cada carcter despertando nele a emoo adequada.

    d) O discurso: estilo e ordemOs captulos I a XII do Livro III da Retrica tratam da elo-

    cuo, a que Aristteles chamava a expresso em palavras dopensamento. Na prosa cientfica essa expresso directa, semadornos, como convm aos que tm esprito aberto e buscam a

    20Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 15221Ibidem22Ibidem, p. 156 Ibidem, p. 239

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  • 24 Amrico de Sousa

    verdade. Mas no costumam ser assim os ouvintes da oratria,pois trata-se maioritariamente de gente vulgar e sem grande pre-parao intelectual. Aristteles reconhece que o justo seria nodebater mais que os puros factos, de sorte que tudo o que excedea demonstrao suprfluo. Contudo, [tal excesso] tem muitaimportncia, devido s insuficincias do ouvinte.

    A intensidade e o tom da voz que emprega, o ritmo que dao seu discurso e a gesticulao com que o acompanha, confi-guram aquilo a que se pode chamar a actuao do orador, queneste aspecto, como um actor de teatro. Ser necessrio cuidarda expresso j que no suficiente que saibamos o que deve-mos dizer, foroso tambm saber como devemos dizer, pois issocontribui em muito para que o discurso parea possuir uma deter-minada qualidade 23. Por isso a tcnica retrica deve abranger aactuao do orador.

    Quanto ao discurso retrico propriamente dito, pode dizer-seque, ao contrrio da prosa cientfica, ele tem pretenses literrias,pois brilhar, surpreender e at divertir, pode contribuir decisiva-mente para persuadir o auditrio. Mas isso, segundo Aristteles,no deve confundir-se com o recurso a um estilo potico, pesado,como o de Grgias, j que o uso de um estilo sereno, claro e natu-ral o mais adequado quando se pretende ser convincente. Porisso no convm que se note a elaborao nem dar a impresso deque se fala de modo artificial mas sim natural (este ltimo o per-suasivo, pois os ouvintes predispem-se para contrariar, quandoficam com a ideia de que se est a met-los numa armadilha, talcomo acontece com os vinhos misturados) 24. O recurso liter-rio mais importante da oratria a metfora. Mas preciso saberencontrar metforas adequadas, nem muito obscuras nem triviais.Por outro lado, o discurso, embora sem cair no verso, no poderenunciar ao ritmo. E Aristteles explica porqu: a forma quecarece de ritmo indefinida e deve ser definida, ainda que noseja em verso, j que o indefinido desagradvel e difcil de en-

    23Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 23724 Ibidem, p. 242 Ibidem, p. 263

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  • A Persuaso 25

    tender.Aristteles critica o estilo pomposo, potico e artificial,o abuso de palavras complicadas, de eptetos desnecessrios e demetforas obscuras. O discurso deve ser claro, adequado, escor-reito e ser pronunciado de forma eficaz. Defende igualmente que,embora o estilo escrito costume ser mais exacto e o falado maisteatral, mais apropriado interpretao, o orador tcnico deverdominar os recursos de ambos.

    Nos captulos XIII a XIX do Livro III, Aristteles aborda aordem do discurso e define que as suas partes essenciais so a ex-posio do tema e a argumentao persuasiva da tese do orador.Diz, alm disso, que costuma juntar-se no incio do discurso umprembulo que equivale ao prlogo do poema e ao preldio dacomposio musical e no final, um eplogo. A funo principaldo prembulo a de expor qual o fim a que se dirige o discurso,de modo a que o ouvinte possa seguir melhor o fio do mesmo.No eplogo, pelo contrrio, refresca-se a memria do ouvinte so-bre o que (supostamente) foi provado. E isto, no s porque natural que depois de se ter demonstrado que algum sincero eo seu contrrio, um mentiroso, por meio deste recurso se elogie,se censure e finalize25, mas tambm porque a recapitulao dospontos essenciais em que se baseou a argumentao ir facilitara formao de uma opinio final sobre o seu grau de acerto oueficcia.

    Como j ficou dito, a Retrica de Aristteles ter constitudo,em parte, a realizao do programa platnico exposto em Fedro deuma verdadeira tcnica retrica. S que enquanto levava a caboessa tarefa, Aristteles foi-se afastando das posies moralistasde Plato, ao mesmo tempo que se aproximava cada vez maisda concepo tcnica neutral dos oradores e Mestres da altura,sobretudo, de Iscrates.

    25Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 314

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  • 26 Amrico de Sousa

    1.3 A retrica clssica: retrica das figu-ras

    Durante a Idade Mdia, a retrica foi apenas utilizada como meiopara o estudo de textos, menosprezando-se o seu uso prtico.Nessa medida, foi alis da maior importncia na constituio dodiscurso literrio durante o renascimento e o barroco, assim comoinfluenciou os planos de estudos das humanidades e marcou par-ticularmente a oratria sagrada. Chaim Perelman interroga-se so-bre as razes que tero levado a que a retrica dita clssica, quese ops retrica dita antiga, tenha sido reduzida a uma retricadas figuras, consagrando-se a classificao das diversas maneirascom que se podia ornamentar o estilo26. E a principal expli-cao sobre o modo como ter ocorrido essa transformao, vaiencontr-la num artigo que Grard Genette escreveu na revistaCommunications, denominado La rhtorique restreinte :

    Aparentemente desde o incio da Idade Mdiaque comea a desfazer-se o equilbrio prprio da re-trica antiga, que as obras de Aristteles e, melhorainda, de Quintiliano, testemunham: o equilbrio en-tre os gneros (deliberativo, judicirio, epidctico),em primeiro lugar, porque a morte das instituiesrepublicanas, na qual j Tcito via uma das causas dodeclnio da eloquncia, conduz ao desaparecimentodo gnero deliberativo, e tambm, ao que parece, doepidtico, ligado s grandes circunstncias da vida c-vica: Martianus Capella, depois Isidoro de Sevilha,tomaram nota destas defeces, rhetorica est bene di-cendi scientia in civilibus quaestionibus; o equilbrioentre as partes (inventio, dispositio, elocutio), emsegundo lugar, porque a retrica do trivium, esma-gada entre gramtica e dialctica, rapidamente se v

    26Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 16 Cit.in Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 17

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  • A Persuaso 27

    confinada ao estudo da elocutio, dos ornamentos dodiscurso, colores rhetorici. A poca clssica, particu-larmente em Frana, e mais particularmente ainda nosculo XVIII, herda esta situao, acentuando-a aoprivilegiar incessantemente nos seus exemplos o cor-pus literrio (e especialmente potico) relativamente oratria: Homero e Virglio (e em breve Racine)suplantam Demstenes e Ccero; a retrica tende atornar-se, no essencial, um estudo da lexis potica.

    Genette, no mesmo artigo, vai mais longe ainda, quando iden-tifica a histria da retrica com a restrio do seu prprio mbito:

    O ano de 1969-70 viu aparecer quase simultane-amente trs textos de amplitude desigual, mas cujosttulos convergem de maneira bem sintomtica: trata-se da Rhtorique gnrale do grupo de Lige, cujottulo inicial era Rhtorique gnralise; do artigo deMichel Deguy Pour une thorie de la figure gnra-lise; e do de Jacques Sojcher, La mtaphore gn-ralise: retrica-figura-metfora: sob a capa denega-tiva, ou compensatria, duma generalizao pseudo-einsteniana, eis traado nas suas principais etapas opercurso (aproximativamente) histrico de uma dis-ciplina que, no decurso dos sculos, no deixou dever encolher, como pele de chagrm, o campo da suacompetncia, ou pelo menos da sua aco. A Ret-rica de Aristteles no se pretendia geral (e aindamenos generalizada): ela era-o, e de tal modo oera na amplitude da sua inteno, que uma teoria dasfiguras ainda a no merecia qualquer meno parti-cular; algumas pginas apenas sobre a comparao ea metfora, num livro (em trs) consagrado ao estilo e composio, territrio exguo, canto afastado, per-dido na imensido de um Imprio. Hoje, intitulamosretrica geral o que de facto um tratado das figuras.

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  • 28 Amrico de Sousa

    E se temos tanto para generalizar, evidentementepor termos restringido demasiado: de Corax aos nos-sos dias, a histria da retrica a de uma restriogeneralizada27.

    Paul Ricoeur, na sua obra sobre a metfora, veio clarificarainda mais esta restrio de que j nos fala Genette, ao lembrarque a retrica de Aristteles cobre trs campos: uma teoria daargumentao que constitui o seu eixo principal e que fornece aomesmo tempo o n da sua articulao com a lgica demonstra-tiva e com a filosofia (esta teoria da argumentao cobre, por sis, dois teros do tratado), uma teoria da elocuo e uma teoriada composio do discurso. Aquilo que os ltimos tratados deretrica nos oferecem , na feliz expresso de G. Genette, umaretrica restrita, restringida em primeiro lugar teoria da elocu-o, depois teoria dos tropos (....) Uma das causas da morte daretrica reside a: ao reduzir-se, assim, (...) a retrica tornou-seuma disciplina errtica e ftil. A retrica morreu quando o gostode classificar as figuras suplantou inteiramente o sentido filos-fico que animava o vasto imprio retrico, mantinha unidas assuas partes e ligava o todo ao organon e filosofia primeira28.

    Sobre as figuras, no entanto, necessrio proceder a uma im-portante distino. Como diz Ricouer, ao lado da retrica fundadana trade retrica-prova-persuaso, Aristteles elaborou tambmuma potica que no tcnica de aco mas sim tcnica de cria-o e que corresponde trade poisis-mimsis-catharsis. Ora, aoreferir-se metfora nos dois tratados, Aristteles mostra-nos quea mesma figura pertence aos dois domnios, exercendo no s umaaco retrica, como desempenhando tambm um papel na cria-o potica. por isso que Chaim Perelman estabelece uma di-ferena ntida entre figuras de retrica e figuras de estilo, quandoafirma: Consideramos uma figura como argumentativa se o seuemprego, implicando uma mudana de perspectiva, parece nor-

    27Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 1728Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 18

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  • A Persuaso 29

    mal em relao nova situao sugerida. Se, pelo contrrio, odiscurso no implica a adeso do auditor a esta forma argumen-tativa, a figura ser entendida como ornamento, como figura deestilo. Ela poder suscitar admirao, mas no plano esttico, oucomo testemunho da originalidade do orador 29. indispensvel,por isso, examinar as figuras dentro do contexto em que surgem.De outro modo, escapa-nos o seu papel dinmico e todas se tor-naro figuras de estilo. Se no esto integradas numa retricaconcebida como a arte de persuadir e de convencer, deixam de serfiguras de retrica e tornam-se ornamentos respeitantes apenas forma do discurso 30.

    Perelman fixa a instaurao da retrica clssica no sc. XVI,quando Pedro Ramo define a gramtica como a arte de bem falar(falar correctamente), a dialctica como a arte de bem raciocinare a retrica como a arte de bem dizer (fazer um uso eloquente eornamentado da linguagem). Note-se a amplitude com que a di-alctica surge nesta classificao, abrangendo tanto o estudo dasinferncias vlidas como a arte de encontrar e julgar os argumen-tos. Com esta ampliao da dialctica, naturalmente, a retricade Aristteles teria que ficar privada das suas duas partes essen-ciais, a inveno e a disposio, restando-lhe apenas a elocuo,traduzida pelo estudo das formas de linguagem ornamentada. E na sequncia desta classificao de Pedro Ramo, que o seu amigoOmer Talon, publica em 1572, na Colnia, a primeira retrica sis-tematicamente limitada ao estudo das figuras, sob o entendimentode que a figura uma expresso pela qual o desenvolvimento dodiscurso difere do recto e simples hbito 31. aqui que Perelmanestabelece o nascimento da retrica clssica, uma retrica das fi-guras que, por degenerescncia, iria conduzir progressivamente morte da prpria retrica.

    No mesmo sentido vai Philippe Breton quando se interrogasobre as razes porque a partir do sc. XIX, a retrica, como

    29Ibidem, p. 1930Ibidem31Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p.23

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  • 30 Amrico de Sousa

    matria de ensino, desapareceu dos programas escolares e uni-versitrios em Frana. Tambm ele pensa que o definhamento daretrica comeou muito antes do sc. XIX, fundando essa sua po-sio, nomeadamente, no pensamento de Roland Barthes: estedescrdito trazido pela promoo de um valor novo, a evidncia(dos factos, das ideias, dos sentimentos) que se basta a si mesmae passa sem a linguagem (ou cr poder passar), ou pelo menos,finge j se servir dela apenas como de um instrumento, de umamediao, de uma expresso. Esta evidncia toma, a partir dosc. XVI, trs direces: uma evidncia pessoal (no protestan-tismo), uma evidncia racional (no cartesianismo), uma evidnciasensvel (no empirismo) 32. E justamente no cartesianismo ena sua rejeio do verosmil que se deve localizar a grande difi-culdade da retrica em manter um lugar central nos sistemas depensamento moderno. Em traos gerais, pode dizer-se que estefoi um perodo de confrontao entre a cultura da evidncia e acultura da argumentao, com esta ltima a ficar para trs, alvode um descrdito que afinal, no lhe diz respeito, na medida emque tal descrdito se relacionava apenas com o aspecto estticodo discurso. Como sublinha Breton, foi preciso esperar at aosanos 60 para renascer o interesse da retrica, precisamente numapoca em que se comea a tomar conscincia da importncia edo poder das tcnicas de influncia e de persuaso aperfeioadasao longo de todo o sculo e em que a publicidade comea a invadircom fora a paisagem social e cultural 33.

    32Breton, P., A argumentao na comunicao, Lisboa: Publicaes D. Qui-xote, 1998, p. 16

    33Ibidem, p. 17

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  • Captulo 2

    A nova retrica

    2.1 Crtica do racionalismo clssicoO renascimento do interesse pela retrica muito deve chamadaEscola de Bruxelas 1, onde - no obstante as diferentes perspec-tivas de anlise - trs dos seus maiores representantes, Duprel,Perelman e Meyer, convergiam num ponto fundamental: a cr-tica ao racionalismo clssico. justamente a partir dessa rupturacom uma razo necessria, evidente e universal que Perelman vaielaborar a filosofia do razovel com que, epistemolgica e eti-camente, recobre a sua nova retrica, propondo um novo conceitode racionalidade extensivo ao raciocnio prtico, mais compatvelcom a vivncia pluralista e a liberdade humana do que o con-sentiria a respectiva noo cartesiana de conhecimento. Sabe-se,com efeito, como ao fazer da evidncia o supremo critrio da ra-zo, Descartes no quis considerar como racionais seno as de-monstraes que a partir de ideias claras e distintas, propagariam,com a ajuda de provas apodcticas, a evidncia dos axiomas a to-dos os teoremas 2. O que surgisse ao esprito do homem como

    1Cf. Grcio, R., Racionalidade argumentativa, Porto: Edies ASA, 1993,p. 14

    2Perelman, C., De lvidence en mtaphysique, in Le Champ deLargumentation, Presses Universitaires de Bruxelles, 1970, p. 236

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  • 32 Amrico de Sousa

    evidente, seria necessariamente verdadeiro e imediatamente re-conhecvel como tal. Por princpio e por mtodo, no se deve-ria conceder qualquer crena quando se trate de cincia, da qual,afirma Descartes, cumpre eliminar a menor dvida. , de resto,nesta linha de pensamento que surge a sua conhecida tese de quea cada vez que sobre o mesmo assunto dois cientistas tenham umparecer diferente certo que um dos dois est enganado; e atnenhum deles, parece, possuiu a cincia, pois, se as razes de umfossem certas e evidentes, ele poderia exp-las ao outro de umatal maneira que acabaria por convenc-lo por sua vez 3. Mas,como sublinha Perelman, a questo no reside no mtodo carte-siano em sim mesmo, mas sim, no desmesurado mbito da suaaplicao, que relembremos, seria o de todas as coisas que po-dem cair no conhecimento dos homens 4. que Descartes topouco quis limitar as suas regras ao discurso matemtico, antesse props fundar uma filosofia verdadeiramente racional e a,como acentua Perelman, que ele d ...um passo aventureiro, queo conduz a uma filosofia contestvel, quando se lembra de mistu-rar uma imaginao propriamente filosfica com as suas anlisesmatemticas, transformando as regras inspiradas pelos gemetrasem regras universalmente vlidas 5.

    A sua filosofia teria assim como finalidade a descoberta daverdade e como fundamento a evidncia. Seria uma filosofia in-teiramente nova, uma verdadeira cincia que progrediria de evi-dncia em evidncia. Apenas enquanto no se alcanasse por estemtodo o conhecimento da verdade seria necessrio deitar moa uma moral provisria cuja necessidade Descartes justifica doseguinte modo: para no ficar irresoluto na minha conduta, en-quanto a razo me obrigasse a s-lo nos meus juzos, e, para nodeixar de viver, desde ento, o mais felizmente possvel, formei

    3Descartes, Oeuvres, ed. de la Pliade, Paris, 1952, p. 40 cit in Perelman,C., Retricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 211

    4Descartes, R., Discurso do Mtodo, Porto: Porto Editora, 1988, p. 735Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 163

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  • A Persuaso 33

    para mim prprio uma moral provisria constituda somente portrs ou quatro mximas.... 6.

    H aqui, como bem observa Rui Grcio, uma ntida distinoentre os domnios da teoria e da prtica e o implcito reconhe-cimento das dificuldades que o recurso epoch sempre colocaquando se trate de articular a razo com a aco. que se te-oricamente, possvel permanecer-se irresoluto, sendo mesmo,como Descartes pensa, indispensvel esse momento de purifica-dora suspenso para que o esprito se purgue de todo o tipo depreconceitos e para que as opinies possam ser ajustadas ao n-vel da razo, j no domnio da aco o mesmo no se passa,pois estamos sempre, irremediavelmente in media res, incontor-navelmente inseridos em contextos e situaes, apegados a va-lores, convices e normas ou, para o dizer abreviadamente, in-dissociavelmente ligados a uma ordem prvia determinante daspossibilidades de sentido para a nossa aco 7. Daqui decorreo diferente estatuto que o cartesianismo confere a todo o conhe-cimento anterior. No plano terico, tudo o que prvio surgecomo no confivel, como potencial fonte de erro e obstculo clareza e distino de uma razo que se cr portadora de uma ga-rantia divina e que por isso mesmo contm em si prpria o critriopara distinguir o verdadeiro do falso. No plano prtico, porm, oprvio impe-se como indispensvel sob pena de se ficar conde-nado a uma total arbitrariedade. o que Descartes reconhecequando depois de ter formulado os seus preceitos morais provis-rios, atribui a estes um fundamento que no vai alm da utilidadeinstrumental de que se revestem: as trs mximas precedentes[as regras da sua moral provisria] outro fundamento no tinhamseno o propsito de continuar a instruir-me.... 8.

    Ficam assim evidenciadas as duas principais aporias da teo-ria do conhecimento cartesiana, por um lado, o carcter associal

    6Descartes, R., Discurso do Mtodo, Porto: Porto Editora, 1988, p. 787 Grcio, R., Racionalidade argumentativa, Porto: Edies ASA, 1993, p.

    188Descartes, R., Discurso do Mtodo, Porto: Porto Editora, 1988, p. 82

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    e an-histrico do saber e por outro, a ntida separao entre te-oria e prtica, aporias que iro ser, de resto, o principal alvo davigorosa crtica de Perelman. Com efeito, no dizer do pai danova retrica, Descartes elaborou uma teoria do conhecimentono humano, mas divino, de um esprito nico e perfeito, sem ini-ciao e sem formao, sem educao e sem tradio. E desteponto de vista, a histria do conhecimento seria unicamente ados seus crescimentos e nunca a das suas modificaes sucessi-vas, pois se, para chegar ao conhecimento, mister libertar-sedos preconceitos pessoais e dos erros, estes no deixam nenhumvestgio no saber enfim purificado9. Por outro lado, a separaoclara e absoluta entre a teoria e a prtica, faz com que, quando setrate, no da contemplao da verdade mas do uso da vida, na quala urgncia da aco exige decises rpidas, o mtodo cartesianono nos sirva para nada.

    Mas Perelman no poderia estar em maior oposio tese car-tesiana. Rejeitando a possibilidade de acedermos ao absoluto, vaicondicionar a qualificao de conhecimento dimenso probat-ria do saber afirmado: enquanto a intuio evidente, nico fun-damento de todo o conhecimento, num Descartes ou num Locke,no tem a menor necessidade de prova e no susceptvel de de-monstrao alguma, qualificamos de conhecimento uma opinioposta prova, que conseguiu resistir s crticas e objeces e daqual se espera com confiana, mas sem uma certeza absoluta, queresistir aos exames futuros. No cremos na existncia de umcritrio absoluto, que seja o fiador de sua prpria infalibilidade;cremos, em contrapartida, em intuies e em convices, s quaisconcedemos nossa confiana, at prova em contrrio 10. J seantev o relevo que a prova vai ter na sua concepo de saber e,em especial, na recuperao do mundo das opinies para a esferada racionalidade, uma racionalidade assim alargada, que no seconfinando mais aos estreitos limites da verdade ou certeza ab-soluta, opera igualmente e com no menor eficcia nos domnios

    9Perelman, C., Retricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 15910Ibidem, p. 160

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    da razoabilidade onde o critrio qualificador do racional ser oacordo ou consenso e j no a evidncia cartesiana. Para isso, necessrio afastar do esprito qualquer ideia de uma razo impes-soal e absoluta. E o que Perelman faz, quando rejeita a identi-ficao do racional com o necessrio e do no-necessrio com oirracional, no reconhecimento de que h entre esses dois extremosabsolutos todo um imenso campo em que a nossa actividade ra-cional se exerce enquanto instncia da razoabilidade. Analisandosobretudo as caractersticas do raciocnio prtico, ele prope-semostrar como a razo apta a lidar tambm com valores, a orde-nar as nossas preferncias ou convices, logo, a determinar, comrazoabilidade, as nossas decises. Esse o campo da argumen-tao que ele identifica com a retrica e por cuja reabilitao erenovao se bate ao fundar a sua teoria da argumentao numafilosofia do razovel. Desse modo, a razo humaniza-se e ganhaum novo rosto: a racionalidade argumentativa.

    2.2 Por uma lgica do prefervel: demons-trao versus argumentao

    Sabe-se como Perelman foi conduzido retrica. Inicialmenteinteressado na investigao de uma hipottica lgica de juzos devalor que permitisse demonstrar que uma certa aco seria pre-fervel a outra, acabou por retirar desse estudo duas inesperadasconcluses: primeiro, que no existia, afinal, uma lgica espec-fica dos juzos de valor e, segundo, que aquilo que procurava ti-nha sido desenvolvido numa disciplina muito antiga, actualmenteesquecida e menosprezada, a saber, a retrica, a antiga arte depersuadir e de convencer11. Confessa, alis, que foi da leitura eestudo da retrica de Aristteles e de toda a tradio greco-latinada retrica e dos tpicos que lhe surgiu a surpreendente revela-o de que nos domnios em que se trata de estabelecer aquilo

    11Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 15

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    que prefervel, o que aceitvel e razovel, os raciocnios noso nem dedues formalmente correctas nem indues do parti-cular para o geral, mas argumentaes de toda a espcie, visandoganhar a adeso dos espritos s teses que se apresentam ao seuassentimento12. Da que parta igualmente da distino aristot-lica entre duas espcies de raciocnio - os raciocnios analticose os raciocnios dialcticos - para evidenciar a estreita conexodestes ltimos (os dialcticos) com a argumentao. Percebe-seque Perelman quer deixar bem clara a diferena entre estas duasespcies de raciocnio, porque, alm do mais, a anlise dessa di-ferena serve na perfeio para ilustrar a indispensabilidade daretrica. Para o efeito socorre-se dos Analticos onde Aristtelesestuda formas de inferncia vlida, especialmente o silogismo,que permitem inferir uma concluso de forma necessria, subli-nhando o facto de a inferncia ser vlida independentemente daverdade ou da falsidade das premissas, ao contrrio da conclusoque s ser verdadeira se as premissas forem verdadeiras. As-sim, a afirmao se todos os A so B e se todos os B so C, daresulta necessariamente que todos os A so C, traduz uma infe-rncia que puramente formal por duas razes: vlida seja qualfor o contedo dos termos A, B e C (na condio de que cada letraseja substituda pelo mesmo valor sempre que ela se apresente) eestabelece uma relao entre a verdade das premissas e a da con-cluso. Naturalmente que se a verdade uma propriedade dasproposies, independentemente da opinio dos homens, o racio-cnio analtico s pode ser demonstrativo e impessoal. Esse no, porm, o caso do raciocnio dialctico, que Aristteles definecomo sendo aquele em que as premissas se constituem de opiniesgeralmente aceites, por todos, pela maioria ou pelos mais escla-recidos (o verosmil ser ento aquilo que for geralmente aceite,cabendo aqui referir, no entanto, que, para Perelman a expressogeralmente aceite no deve ser confundida com uma probabili-dade calculvel, por ser portadora de um aspecto qualitativo quea aproxima mais do termo razovel do que do termo prov-

    12Ibidem

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    vel). Mas se o raciocnio dialctico parte do que aceite, como fim de fazer admitir outras teses que so ou podem ser contro-versas, porque tem o propsito de persuadir ou convencer, deser apreciado pela sua aco sobre outro esprito, numa palavra, porque no impessoal, como o raciocnio analtico. Pode entofazer-se a distino entre os raciocnios analticos e os raciocniosdialcticos com base no facto dos primeiros incidirem sobre a ver-dade e os segundos sobre a opinio. que, como diz Perelman,seria ...to ridculo contentarmo-nos com argumentaes razo-veis por parte de um matemtico como exigir provas cientficas aum orador13.

    Constata-se assim uma ntida preocupao de revalorizar osraciocnios dialcticos, sem contudo pr em causa a operatividadedos raciocnios analticos. O que Perelmam denuncia a supostapurificao feita pela lgica moderna, especialmente depois deKant e dos lgicos matemticos terem identificado a lgica, nocom a dialctica, mas com a lgica formal, acolhendo os racio-cnios analticos, enquanto os raciocnios dialcticos eram pura esimplesmente considerados como estranhos lgica. Essa denn-cia assenta basicamente na constatao de que se a lgica formale as matemticas se prestam a operaes e ao clculo, tambminegvel que continuamos a raciocinar mesmo quando no calcu-lamos, no decorrer de uma deliberao ntima ou de uma discus-so pblica, ou seja, quando apresentamos argumentos a favor oucontra uma tese ou ainda quando criticamos ou refutamos umacrtica. Em todos estes casos, no se demonstra (como nas ma-temticas), argumenta-se. Da que Perelman conclua: poisnormal, se se concebe a lgica como estudo do raciocnio sob to-das as formas, completar a teoria da demonstrao, desenvolvidapela lgica formal, com uma teoria da argumentao, estudandoos raciocnios dialcticos de Aristteles 14.

    No mbito da nova retrica, porm, o estudo da argumenta-o, visando a aceitao ou a rejeio duma tese em debate, bem

    13Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 2214Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 24

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    como as condies da sua apresentao, no se limita recupera-o e revalorizao da retrica de Aristteles. Comprova-o, desdelogo, o facto de Perelman assumir um diferente posicionamentoquanto relao entre a retrica e a dialctica. Recordemos quenos seus Tpicos, Aristteles concebe a retrica como oposta dialctica, chegando a consider-la mesmo como o reverso destaltima. Essa oposio, contudo, fortemente tributria da distin-o que o velho filsofo fazia entre uma e outra: a dialctica comoestudo dos argumentos utilizados numa controvrsia ou discussocom um nico interlocutor e a retrica, como dizendo respeitos tcnicas do orador dirigindo-se a uma turba reunida na praapblica, a qual no possui nenhum saber especializado e que incapaz de seguir um raciocnio um pouco mais elaborado 15.Mas a nova retrica vem romper totalmente com essa distino,na medida em que passa a dizer respeito aos discursos dirigidosa todas as espcies de auditrios, quer se trate de reunies pbli-cas, de um grupo fechado, de um nico indivduo ou at, de nsmesmos (deliberao ntima). Essa , alis, uma das novidadesda nova retrica em que Perelman pe mais nfase e para a qualapresenta a seguinte justificao: Considerando que o seu ob-jecto o estudo do discurso no-demonstrativo, a anlise dos ra-ciocnios que no se limitam a inferncias formalmente correctas,a clculos mais ou menos mecanizados, a teoria da argumentaoconcebida como uma nova retrica (ou uma nova dialctica) co-bre todo o campo discursivo que visa convencer ou persuadir, sejaqual for o auditrio a que se dirige e a matria a que se refere 16.Quando muito, Perelman admite que se possa completar o estudogeral da argumentao com metodologias especializadas em fun-o do tipo de auditrio e o gnero da disciplina, o que levaria elaborao, por exemplo, de uma lgica jurdica ou de uma lgicafilosfica, as quais mais no seriam do que aplicaes particularesda nova retrica ao direito e filosofia. Nesta afirmao podere-mos surpreender uma outra inovao no seu pensamento retrico,

    15Ibidem16Perelman, C., O imprio retrico. Porto: Edies ASA, 1993, p. 24

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    pois dela decorre, como ele prprio assume, uma subordinaoda filosofia retrica, ao menos, no momento em que se trate deverificar se as teses da primeira merecem ou no ser acolhidas. Aquesto esta: ou se admite que se pode fundar teses filosficascom base no critrio da evidncia e, nesse caso, a filosofia bastar-se- a si prpria, no s quanto sua elaborao mas tambm notocante sua demonstrao ou no se admite que se possa fundarteses filosficas sobre intuies evidentes e ser preciso recorrera tcnicas argumentativas para as fazer prevalecer. Como j vi-mos, Perelman toma partido por esta segunda hiptese, o que oleva a considerar a nova retrica como um instrumento indispen-svel filosofia, na convico de que todos os que crem na exis-tncia de escolhas razoveis, precedidas por uma deliberao oupor discusses, nas quais as diferentes solues so confrontadasumas com as outras, no podero dispensar, se desejam adquiriruma conscincia clara dos mtodos intelectuais utilizados, umateoria da argumentao tal como a nova retrica a apresenta17.Vislumbram-se aqui os primeiros alicerces fundacionais daquiloa que, numa das suas obras, vir a chamar O imprio retricoe que se tornam ainda mais visveis quando afirma que a nova re-trica no se limitar, alis, ao domnio prtico, mas estar nomago dos problemas tericos para aquele que tem conscinciado papel que a escolha de definies, de modelos e de analogias,e, de forma mais geral, a elaborao duma linguagem adequada,adaptada ao campo das nossas investigaes, desempenham nasnossas teorias 18.

    Torna-se pois imperioso distinguir entre demonstrao e ar-gumentao, o que Perelman faz com assinalvel clareza, come-ando por salientar que, em princpio, a demonstrao despro-vida de ambiguidade (ou, pelo menos, assim entendida) en-quanto a argumentao, decorre no seio de uma lngua natural,cuja ambiguidade no pode ser previamente excluda. Alm disso,a demonstrao - que se processa em conformidade com regras

    17Ibidem, p. 2718Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 27

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    explicitadas em sistemas formalizados - parte de axiomas e prin-cpios cujo estatuto distinto do que se observa na argumentao.Enquanto numa demonstrao matemtica, tais axiomas no estoem discusso, sejam eles evidentes, verdadeiros ou meras hipte-ses, e por isso mesmo no dependem tambm de qualquer aceita-o do auditrio, na argumentao, a discutibilidade est semprepresente, j que o seu fim no deduzir consequncias de certaspremissas mas provocar ou aumentar a adeso de um auditrios teses que se apresentam ao seu assentimento 19. Pode entodizer-se que, no quadro do pensamento perelmaniano, a diferenaentre demonstrao e argumentao surge umbilicalmente ligadaao modo como nele se distingue a lgica tradicional da retrica.No surpreende, por isso, que a prpria noo de prova tenha queser significativamente mais lata do que na lgica tradicional e nasconcepes clssicas de prova pois a necessidade e a evidnciano se coadunam com a natureza da argumentao e da delibe-rao. Nem se delibera quando a soluo necessria, nem seargumenta contra a evidncia. Da que Perelman venha dizer-nos que ao lado da prova para a lgica tradicional, dedutiva ouindutiva, impe-se considerar tambm outro tipo de argumentos,os dialcticos ou retricos. Este alargamento da noo de prova,mostra-se, alis, em perfeita harmonia com o j referido alarga-mento da prpria noo de razo. Organizada por um conjuntode processos que tendem a enfatizar a plausibilidade da tese quese defende, a prova retrica manifesta-se pela fora do melhorargumento, que se mostrar mais forte ou mais fraco, mais oumenos pertinente ou mais ou menos convincente, mas que, pelasua natureza, afasta, partida, qualquer possibilidade de poderser justificado como correcto ou incorrecto. Alm disso, o actode provar fica assim indissociavelmente ligado a uma dimensoreferencial que implica a considerao das condies concretasdo uso da linguagem natural e da ambiguidade sempre presentenas noes vagas e confusas que integram aquela. Do que se trataagora de realizar uma prova nas e para as situaes concretas em

    19Ibidem, p. 29

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    que se elabora e face s quais se apresenta como justificao ra-zovel de uma opo, pois, como diz Perelman, a possibilidadede conferir a uma mesma expresso sentidos mltiplos, por ve-zes inteiramente novos, de recorrer a metforas, a interpretaescontroversas, est ligada s condies de emprego da linguagemnatural. O facto desta recorrer frequentemente a noes confusas,que do lugar a interpretaes mltiplas, a definies variadas,obriga-nos muito frequentemente a efectuar escolhas, decises,no necessariamente coincidentes. Donde a obrigao, bem fre-quente, de justificar esta escolha, de motivar estas decises 20.Rui Grcio assinala aqui uma deslocao fundamental na noode prova, no sentido da sua desdogmatizao, sem que, contudo,se tenha de cair no cepticismo radical. O que se passa que asexigencias de rigor e certeza deixam de se cingir polaridade cer-teza absoluta-dvida absoluta, passando a ser apreciadas luz deuma lgica do prefervel (ou informal) que j no visa a verdadeabstracta, categrica ou hipottica, mas to somente o consensoe a adeso. Abre-se assim espao a um livre confronto de opi-nies e argumentos que permite dimensionar criticamente o actode provar, ajustando-o s possibilidades e limites da condio hu-mana (ligao com o passado, historicidade, impossibilidade deuma linguagem pura ou de um grau zero do pensamento) e mos-trar que a prpria exigncia de provar s tem verdadeiramente umsentido humano quando nela se vem implicadas a nossa respon-sabilidade e a nossa liberdade 21. que se o raciocnio terico,onde a concluso decorre das premissas de uma forma impessoal,permite elaborar uma lgica da demonstrao puramente formal,de aplicao necessria, o raciocnio prtico, pelo contrrio, aorecorrer a tcnicas de argumentao, implica sempre um determi-nado poder de deciso, ou seja, a liberdade de quem julga a tese,para a ela aderir ou no. O fim do raciocnio prtico no j o de

    20Perelman, C., cit. in Grcio, R., Racionalidade argumentativa, Porto: Edi-es ASA, 1993, p. 79

    21Grcio, R., Racionalidade argumentativa, Porto: Edies ASA, 1993, p.80

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    demonstrar a verdade, mas sim, mostrar em cada caso concreto,que a deciso no arbitrria, ilegal, imoral ou inoportuna, numapalavra, persuadir que ela motivada pelas razes indicadas.

    2.3 A adeso como critrio da comunica-o persuasiva

    2.3.1 O duplo efeito da adesoQue a retrica visa persuadir e que a adeso , simultaneamente, ofim e o critrio da comunicao persuasiva, ponto assente. Masqual a natureza e extenso dessa adeso? Quando se pode afir-mar que h ou no adeso? Bastar para tanto que o interlocutorou o auditrio passem a comungar da mesma ideia que o orador?Poder-se- falar de adeso passiva e adeso activa? Mais: serpossvel estabelecer alguma distino entre adeso e convenci-mento? Santo Agostinho vem ao encontro deste conjunto de ques-tes quando considera que o auditrio s ser verdadeiramentepersuadido se conduzido pelas vossas promessas e aterrorizadopelas vossas ameaas, se rejeita o que condenais e abraa o querecomendais; se ele se lamenta diante do que apresentais comolamentvel e se rejubila com o que apresentais como rejubilante;se se apieda diante daqueles que apresentais como dignos de pi-edade e se afasta daqueles que apresentais como homens a temere a evitar 22. Dele nos diz Perelman que, falando aos fiis paraque acabassem com as guerras intestinas, no se contentou comos aplausos e falou at que vertessem lgrimas, testemunhandoassim, que estavam preparados para mudar de atitude. Eviden-temente que no podemos, hoje em dia, aceitar integralmente asideias retricas de Santo Agostinho, nomeadamente quando nosfala de verdades prticas e preconiza o aterrorizar do audit-rio. O que interessa aqui destacar a sua visvel preocupao poraquilo a que podemos chamar de adeso activa, ou seja, a ideia

    22Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 32

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    de que em muitos casos, ao orador no bastar levar o auditrio aconcordar com a sua tese - o que em si mesmo se traduziria pelomero assentimento ou disposio de a aceitar - antes ter de se cer-tificar que a adeso obtida configura tambm a aco ou a predis-posio de a realizar. Ora a nova retrica contempla igualmenteesse duplo efeito da adeso, j que (...) a argumentao no temunicamente como finalidade a adeso puramente intelectual. Elavisa, muito frequentemente, incitar aco ou, pelo menos, criaruma disposio para a aco. essencial que a disposio assimcriada seja suficientemente forte para superar os eventuais obst-culos23. Um discurso argumentativo ser ento eficaz se obtiverxito num dos dois objectivos possveis: ou conseguir do audit-rio um efeito puramente intelectual, ou seja, uma disposio paraadmitir a plausibilidade de uma tese (quando a tal se limite a in-teno do orador) ou provocar uma aco a realizar imediata ouposteriormente. Logo, com base no critrio da tendncia para aaco, poderemos configurar o primeiro dos efeitos como ade-so passiva e o segundo, como adeso activa. Num e noutrocaso, porm, sempre est em causa a competncia argumentativado orador, os metdos e as tcnicas retricas a que recorre e, deum modo muito especial, o tipo de auditrio sobre o qual queragir.

    2.3.2 Persuaso e convencimento: do auditrio par-ticular ao auditrio universal

    Segundo Perelman, justamente pela anlise dos diversos tiposde auditrio possveis que poderemos tomar posio quanto dis-tino clssica entre convencimento e persuaso, no mbito daqual se concebem os meios de convencer como racionais, logo,dirigidos ao entendimento e os meios de persuaso como irraci-onais, actuando directamente sobre a vontade. A persuaso se-ria pois a consequncia natural de uma aco sobre a vontade

    23Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 31

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    (irracional) e o convencimento, o resultado ou efeito do acto deconvencer (racional). Mas se, como sugere Perelman, analisar-mos a questo pela ptica dos diversos meios de obter a adesodas mentes, foroso ser constatar que esta ltima normalmenteconseguida por uma diversidade de procedimentos de prova queno podem reduzir-se nem aos meios utilizados em lgica formalnem simples sugesto 24. o caso da educao, dos juzosde valor, das normas e de muitos outros domnios onde se julgaimpossvel recorrer apenas aos meios de prova puramente ra-cionais. Alm disso, afigura-se igualmente muito problemticaa possibilidade de determinar partida quais os meios de provaconvincentes e aqueles que o no so, segundo se dirijam ao en-tendimento ou vontade, pois que, como se sabe, o homem no constitudo por faculdades completamente separadas. Acresceque Aquele que argumenta no se dirige ao que consideramoscomo faculdades, como a razo, as emoes, a vontade. O ora-dor dirige-se ao homem todo... 25. Da que a distino entrepersuaso e convencimento, quando centrada nos ndices de con-fiabilidade e validao inerentes ao par racional/irracional, pareanada poder vir a acrescentar compreenso do acto retrico. Es-tar mesmo contra-indicada pois os critrios pelos quais se julgapoder separar convico e persuaso so sempre fundamentadosnuma deciso que pretende isolar de um conjunto conjunto deprocedimentos, conjunto de faculdades certos elementos consi-derados racionais 26. Surpreendentemente, porm, eis que Pe-relman submete essa mesma distino a uma reciclagem concep-tual e dela se serve no j para validar racionalmente os meiosutilizados ou as faculdades s quais o orador se dirige, nem topouco para precisar o que se deve entender por persuaso e porconvico mas para estabelecer uma polmica diferenciao en-tre duas intencionalidades discursivas, que poderamos prefigurar

    24Perelman, C., Retricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 6325 Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 3226Perelman, C. e Olbrechts-Tyteca , L., Tratado da argumentao, S. Paulo:

    Martins Fontes, 1999, p. 30

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    como intencionalidade tcnica e intencionalidade filosfica, con-forme se vise unicamente a adeso do auditrio particular ou umaaprovao universal. O que, a nosso ver, se traduz numa dife-rente forma de perspectivar o convencimento fazendo-o convergiragora, do ponto de vista da argumentao, mais com a potnciado que com o acto, mais com o que deve ser do que com o que, mais com a inteno do orador do que com a adeso do audi-trio. A essa constatao nos reconduz a natural anterioridade detoda a inteno relativamente apresentao e recepo efectivasde cada argumento. Reconhea-se, por isso, que, da concepoclssica de uma convico fundada na verdade do seu objecto, jpouco resta neste modo perelmaniano de distinguir a persuasodo convencimento. A resposta de Perelman, mais do que solucio-nar, parece matar o problema. Da inicial pretenso verdade,fica apenas uma inteno de verdade e um mtodo para a retricatendencialmente dela se aproximar, mtodo esse que desde logose vislumbra no modo como estabelece a diferena entre argu-mentao persuasiva e argumentao convincente quando se pro-pe chamar persuasiva a uma argumentao que pretende valers para um auditrio particular e chamar convincente quela quedeveria obter a adeso de todo o ser racional 27. Notemos aqui,antes de mais, que as expresses pretende valer e deveria valerso certamente suficientes para afirmar uma inteno de se chegar persuaso ou convico mas nunca para definirem o que sejauma ou outra. Logo, so os meios de obter a adeso das mentesque ficam definidos e no a persuaso nem a convico. Ou seja, principalmente a atitude do orador e o seu modo de argumentarque esto em causa. Resta saber o que pode ser entendido por umaargumentao que deveria obter a adeso de todo o ser racional. aqui que entra a controversa noo de auditrio universal pe-relmaniano.

    J deixamos antever que para Perelman a questo do conven-cimento indissocivel da natureza do auditrio. Ora este podeser representado como o conjunto daqueles que o orador quer

    27Ibidem, p. 31

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    influenciar pela sua argumentao 28, o que algo mais do quecircunscrev-lo ao nmero de pessoas fsica e directamente pre-sentes ao orador. O deputado que discursa na Assembleia da Re-pblica, ser aqui um bom exemplo. Embora se dirija formal-mente ao Presidente da Mesa, ele fala, no s para os restantesdeputados que integram o Parlamento como tambm, frequente-mente, para o conjunto de cidados que o iro ouvir, em suascasas, na reportagem do telejornal. Pode mesmo falar para todosos portugueses se a causa que defende a todos respeita e at paraos europeus ou, ainda, no limite, para todo o mundo, no caso dorespectivo interesse nacional de alguma forma ser dimensionvelao nvel da globalizao. Teremos aqui o primeiro afloramentodo que seja um auditrio universal, no sentido que Perelman lheatribui? Obviamente que no, pois a sua noo de auditrio uni-versal no se funda numa qualificao numrica ou espacial, emfuno da quantidade e localizao dos destinatrios de uma dadaargumentao. Alm disso, o auditrio do exemplo que acabamosde referir insere-se na prpria realidade, enquanto que o audit-rio universal de Perelman pura e simplesmente no existe, nose oferece a qualquer observao fsica, uma pura construoideal do orador. No pois nem uma universalidade concreta edelimitvel, nem to pouco uma universalidade terico-abstractaautnoma e invarivel que pudesse servir de garantia ou padroqualificativo da argumentao convincente. Neste sentido, per-feitamente compreensvel a advertncia de Perelman: Em vezde se crer na existncia de um auditrio universal, anlogo aodo esprito divino que tem de dar o seu consentimento ver-dade, poder-se-ia, com mais razo, caracterizar cada orador pelaimagem que ele prprio forma do auditrio universal que buscaconquistar para as suas opinies. O auditrio universal consti-tudo por cada qual a partir do que sabe de seus semelhantes...29.Mas daqui no decorre que seja convincente toda a argumentao

    28Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 3329Perelman, C. e Olbrechts-Tyteca , L., Tratado da argumentao, S. Paulo:

    Martins Fontes, 1999, p. 37

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    que obedea ao que cada uma das pessoas, num dado auditrio,entenda como real, verdadeiro e objectivamente vlido (de resto,tarefa impossvel), e sim, a argumentao em que o orador crque todos os que compreenderem suas razes tero de aderir ssuas concluses30. Pode ento deduzir-se que, de algum modo, oorador fica cometido de uma importante funo prospectiva: a deavaliar antecipadamente o que os destinatrios da sua argumenta-o devem (ou deveriam) pensar e concluir quanto s razes queele prprio lhes ir apresentar. Mas ocorre perguntar se, nestascondies, estaremos ainda face a uma situao retrica. At queponto esta convico prvia do orador sobre o carcter racio-nal (logo, inatacvel...) dos seus argumentos no ir dificultar ouat mesmo violar a livre discutibilidade a que aquela no podenunca eximir-se? E de que poder ou faculdade to especial dispequem argumenta para definir, partida, o que os seus auditoresdeveriam entender como racionalmente vlido? Pensamos quenesta sua concepo de auditrio universal Perelman no resis-tiu ao assdio da razo objectiva (ainda que numa verso for-temente mitigada) que tanto critica em Descartes. Basta atentarnesta breve passagem do seu Tratado da argumentao: porse afirmar o que conforme a um facto objectivo, o que cons-titui uma assero verdadeira e mesmo necessria, que se contacom a adeso daqueles que se submetem aos dados da experin-cia ou s luzes da razo 31. Facto objectivo? Que valor de uni-versalidade pode ser atribudo a este conceito ao mesmo tempoque se reconhece que no contamos com nenhum critrio quenos possibilite, em qualquer circunstncia e independentementeda atitude dos ouvintes, afirmar que alguma coisa um facto?32Luzes da razo? Mas quem apela razo, como diz Thomas Na-gel, ...prope-se descobrir uma fonte de autoridade em si mesmoque no meramente pessoal ou social, mas antes universal - e

    30Ibidem, p. 3531Ibidem32Perelman, C. e Olbrechts-Tyteca , L., Tratado da argumentao, S. Paulo:

    Martins Fontes, 1999, p. 76

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    que dever tambm persuadir outras pessoas que estejam na dis-posio de a ouvir 33. Ora este modo de descrever a razo, comoo reconhece o prprio Nagel, de ntida inspirao cartesiana ouplatnica34. O mnimo que se pode dizer, portanto, que Pe-relman no explicitou com suficiente clareza esta sua noo deauditrio universal, quer enquanto instncia normativa da argu-mentao, quer como critrio do discurso convincente. Tal comoa apresenta, quer no Tratado da argumentao, quer no Imprioretrico ou na Retricas, fica-nos, alis, a impresso de que, mo-vido pela louvvel preocupao de conferir retrica um cunhomarcadamente filosfico, dela ter exigido mais do que a mesmapoderia dar. certo que toda a argumentao que visa somente aum auditrio particular oferece um inconveniente, o de que o ora-dor, precisamente na medida em que se adapta ao modo de ver dosseus ouvintes, arrisca-se a apoiar-se em teses que so estranhas,ou mesmo francamente opostas, ao que admitem outras pessoasque no aquelas a que, naquele momento, ele se dirige35. Masno o prprio Perelman quem, sem qualquer reserva, afirma que , de facto, ao auditrio que cabe o papel principal para deter-minar a qualidade da argumentao e o comportamento dos ora-dores? 36 E como conciliar a imposio racional do auditriouniversal 37 com a tolerncia de situaes em que a adeso do au-ditrio se fica a dever utilizao de premissas cuja validade no reconhecida pelo orador? Ainda que parea algo estranho e in-coerente, o que Perelman faz quando refere, a certa altura, nasua obra Retricas: possvel, de facto, que o orador procureobter a adeso com base em premissas cuja validade ele prpriono admite. Isto no implica hipocrisia, pois o orador pode tersido convencido por argumentos diferentes daqueles que podero

    33Nagel, T., A ltima palavra, Lisboa: Gradiva-Publicaes, Lda, 1999, p.12

    34 Cf. Ibidem35Perelman, C. e Olbrechts-Tyteca , L., Tratado da argumentao, S. Paulo:

    Martins Fontes, 1999, p. 3436 Ibidem, p. 2737 Ou do modo como o orador o imagina.

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  • A Persuaso 49

    convencer as pessoas a quem se dirige 38. Ser que, no entenderde Perelman, a funo normativa do auditrio universal exerce-sequanto aos fins mas j no quanto aos meios da argumentao?No estaramos aqui perante um srio atropelo s preocupaestico-filosficas na base das quais Perelman formula a prpria in-teno de universalidade que deve animar o orador? provvelque estas contradies ou ambiguidades em que a sua noo deauditrio universal parece mergulhar e at mesmo o pendor uni-versalista que a caracteriza, fiquem a dever-se, em grande parte,ao proposionalismo e correspondente acento lgico-intelectual daprpria concepo perelmaniana de retrica (ou argumentao).Recordemos que esta remete-nos para o estudo das tcnicas dis-cursivas que permitem provocar ou aumentar a adeso dos esp-ritos s teses que se lhes apresentam ao assentimento 39. MasMeyer (a quem voltaremos na III Parte deste estudo) veio mostrarcomo a retrica no fala de uma tese, de uma resposta-premissaque no corresponde a nada, mas da problematicidade que afectaa condio humana, tanto nas suas paixes como na sua razo eno seu discurso 40. E, na medida em que, segundo este