Livro rabiscos fingidos

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RABISCOS FINGIDOS... MARCIO JOSÉ DE LIMA Julho de 2014 1

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crônicas reunidas, publicadas em jornais e blog do autor

Transcript of Livro rabiscos fingidos

RABISCOS FINGIDOS...

MARCIO JOSÉ DE LIMA

Julho de 2014

1

Ao bom Deus dedico a presente,

e sempre aos meus familiares que

me acolhem de forma tão serena.

E a todos os mestres que contribuíram

de uma forma ou outra para que eu pudesse

desenvolver o que me proponho... Talvez

não a melhor obra, mas o melhor que posso,

Também, com amor e carinho a todos que dedicam um

pouco de suas vidas à leitura de meus rabiscos...

2

APRESENTAÇÃO

O presente, trata-se de uma coleção de crônicas publicadas

nos jornais Folha do Iguaçu e Jornal do Folha do Iguaçu,

além das publicações no blog Devaneios Literários do

Lima. São obras ficcionais, em que se propõe

principalmente o entretenimento. Pensar a realidade às

vezes é meio que olhar para caminhos que nem sempre

entendemos ou aceitamos, talvez a ficção nos ponha uma

pouco mais próximo da fuga da dura realidade que nos

circunda, e lá, quiçá possamos enfrentar a nossa realidade

com mais um pouco de humor, ou quem sabe, até mesmo

com mais amor.

Uma boa leitura a todos e uma boa viagem!

O Autor.

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SumárioDIPLOMACIA NO ÔNIBUS............................................6UM PASSAGEIRO MUITO IMPORTANTE..................10HORA DO ALMOÇO......................................................16A IDADE MUITO ALÉM DA APARÊNCIA..................20O ATO DE ESCREVER...................................................24O ELOQUENTE SÁBIO.................................................27VOLTA POR CIMA.........................................................29ARMAS............................................................................341000 ACESSOS – UM ATO DE GRATIDÃO.................35PASSIONAL....................................................................38UM HOMEM CAÍDO NO CHÃO..................................39ONDE ESTÁ A MUSA QUE ENFEITA MINHAS LEMBRANÇAS? ............................................................41QUEM ALGUM DIA NÃO FEZ POESIA?....................43PALAVRAS... PALAVRAS... ..........................................45UMA DOCE TENTAÇÃO ..............................................46ACAMPAMENTO NA NOITE DE PRIMEIRO DE ABRIL - A PANELA DE DINHEIRO.............................48O CONCLAVE, TEMOS PAPA, BATEU NA TRAVE....55SURPREENDA-ME (MINICONTO) .............................59UM GRITO NA ESCURIDÃO........................................61COISAS DA POESIA .....................................................64POBRE MENINA............................................................66 A OBSCURA VIDA DE JULIÃO DOS TOMATES.......67SAUDADE DO AVÔ ......................................................68EU E EU MESMO..........................................................69O MERCADOR DA LIBERDADE.................................71POEMA SEM VOLTA.....................................................75

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DEIXE-ME CAMINHAR NA PRAIA LENTAMENTE... ..........................................................................................77HOMENAGEM AO CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE VINÍCIUS DE MORAES..........................................79CELEBRO A VIDA EM VERSOS..................................82UMA PEQUENA REFLEXÃO SOBRE LEITURA DE OBRAS LITERÁRIAS ...................................................84UMA TERNA HOMENAGEM AOS PAIS.....................87ONDE ESTÁ A MUSA QUE ENFEITA MINHAS LEMBRANÇAS?.............................................................89BOTECO..........................................................................91UM HOMEM CAÍDO NO CHÃO..................................94BORBOLETA..................................................................96 O BOITATÁ..................................................................100O BOLO DO DILEMA..................................................108NOITE DE NATAL........................................................111OLHOS BRANCOS ......................................................113MAIS UM BRASILEIRO..............................................114DIALÉTICA AMOROSA..............................................117O PROTESTO................................................................119O MERCADOR DA LIBERDADE...............................123

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DIPLOMACIA NO ÔNIBUS

Conversava com um ex-colega de Faculdade, o assunto:

como andava o respeito entre as pessoas. Falávamos dos

bons modos de como sempre que possível cumprimentar

as pessoas, ceder lugar àqueles que tivessem preferência

como: idosos, gestantes e demais pessoas que

necessitassem. Comentava que isso virou hábito para mim

que vez ou outra nem me dou conta vou em pé mesmo,

mesmo havendo poltronas vagas.

Ele, meu colega, me contou que algumas vezes passou por

situações estranhas que lhe aconteceram em tal

empreitada. Numa vez ele percebeu uma senhora de muita

idade entrar. Prontamente se dirigiu à mesma e lhe cedeu

sua poltrona. Quando se virou para seu antigo lugar, com o

intuito de mostrar para senhora qual era, já não estava

mais vago, uma mocinha folgada já havia sentado lá, sem

ao menos se importar com quem ou a quem se pretendia

ceder o lugar.

Diplomático, meu colega respirou fundo. Olhou para a

senhorinha. Cabelos brancos, meio arqueadinha pelos

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anos, com os olhinhos bem apertados – quase que

fechados – talvez pelo brilho da luz e ou pelo brilho dos

anos. Indignado ficou pela covardia. Não sabia se chegava

lá e tirava a moça à força, se xingava até a mesma se tocar

ou se ia até o cobrador pedir que alguém cedesse lugar à

pobre senhora. Uma moça de azul, sem a mesma

diplomacia do meu amigo, esbravejou escandalosamente

“já tem bicho folgado neste mundo” sem ao menos

disfarçar a quem se destinava tal observação – deveras

merecida. – A invasora de poltronas alheias – mal-educada

– estava escandalosamente ornada com quase um quilo de

piercing e uma cara de quem acabara de acordar. Meu

amigo – embora não precisasse de tal ajuda – agradeceu

em pensamentos a moça de azul que fez o comentário e

ficou feliz por não precisar gastar seu latim nem de sua

diplomacia na reconquista de território.

A mocinha folgada com um sorrisinho amarelo levantou-

se e cedeu o lugar para a vovozinha. Problema resolvido.

A senhorinha seguiu lentamente até a poltrona. Não se

sentou. Segurou-se entre as poltronas e ficou guardando

seu lugar com seu corpo. Neste momento meu colega

olhava a anciã e dizia consigo mesmo “agora ela senta”. E

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nada. Passavam-se uns três pontos e a senhorinha, ainda,

em pé. Ela falou com sua estremecida vozinha: “tem que

esperar esfriar, nunca se sabe quem tá doente e tem doença

que se pega pelo calor”, soou como algo sábio, mas meu

amigo remoeu-se não pela poltrona, mas pela paciência da

dona. Pensou “temos que ter paciência com as pessoas de

mais idade”. “Acho que agora já tá bom” – falou, nossa

senhorinha, olhando para as pessoas ao seu redor -. Já

haviam se passado mais cinco pontos. Nossa pacienciosa

senhora assentou-se e sorriu. Meu amigo me confessou –

sorridentemente – que já estava de plano de requisitar de

novo sua poltrona – brincou -. Respirou fundo. Consultou

seu manual de boas maneiras. Percebeu que quase todos os

vidros do ônibus estavam fechados e resolveu – não mais

por ele que logo desembarcaria, mas sim pelos demais que

ali ficariam – abrir as janelas e de uma só vez abriu umas

cinco. “Ônibus lotado”, disse ao vácuo. “Tem doença que

se pega pelo calor” concordou a senhorinha “e outras que

se pegam pelo ar”. Com a cabeça alguns concordaram,

mas com cara feia uns nem se manifestaram. Pensou “o

povo não se importa com sua saúde, nem com a saúde dos

outros, mas… quem sou eu pra mudar isso”. Acionou a

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campainha, e pediu licença, uns dez estavam na porta e

nem se mexeram para deixá-lo passar. Decidiu dar uma

forçadinha. Ele ouviu algumas manifestações dentre elas

“tem gente que não tem mesmo educação” pareceu vir da

moça de azul que tomou o lugar da vovozinha – mas não

se importou – precisava descer. Olhou bem para as

pessoas, pensou em revidar, engoliu diplomaticamente um

“vá à …” sorriu amarelo e desembarcou.

(Marcio de Lima)

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UM PASSAGEIRO MUITO IMPORTANTE

Estava sentado na poltrona de um ônibus, quando entrou

um franzino senhor de idade. Aquele senhor me chamou a

atenção. Não sei muito bem por quê. Ele estava vestido

com uma surrada calça social e um paletó de cor clara,

chapéu na cabeça. Tinha cabelos brancos e a pele

escurecida e marcada pelo tempo.

O tempo correu em minha mente e retornei a minha

infância. Lembrei-me dos meus parentes de mais idade,

bem como dos velhos amigos da família, de suas histórias

contadas com tremenda tenacidade e veemência, pelo

menos a meu ver. A cada história contada, viajava e

admirava respeitosamente o locutor, embora houvesse

simplicidade em suas palavras jamais perdiam a coerência,

jamais eram perdedores, sempre eles os mocinhos, mesmo

que anti-heróis.

O senhorzinho passou a roleta com um olhar triste e

cansado. As pessoas não o perceberam. Entendi, claro, que

elas não o conheciam e não sabiam de suas histórias, de

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sua história, de sua importância. Ao contrário pessoas

jovens entravam no ônibus e eram notadas,

cumprimentadas, talvez até invejadas.

O triste senhor seguiu lentamente até se assentar.

Continuei a relembrar do passado. Senti uma vontade de

me levantar e ir até aquele senhor, abraçá-lo. Como se

fosse uma presença viva do meu passado. Neste momento

reforcei a ideia de que muito da afetividade passada aos

que amamos é transmitida pelas histórias que contamos,

pelo tempo vivido com os nossos, pela partilha em forma

de doação e interesse pelo semelhante. Os meus

antepassados tinham - e ainda têm problemas -,

frustrações, limitações. Mas isso não os abalava, e em suas

narrativas encontravam os seus refúgios, talvez para dar

força?, talvez para ensinar a olhar sempre pra frente

reescrevendo suas vivências, de forma positiva e

saudável?, talvez fosse mais do que isso, talvez nem

percebessem o quanto faziam felizes e importantes as

crianças que os escutavam.

Atualmente, lendo sobre frustrações da vida moderna e

suas consequências, percebi que isto que eles faziam

encontra um embasamento na psicologia bem grande

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como uma das formas de manter a mente sadia, tanto para

quem conta as suas histórias como para aqueles que as

ouvem. Seus embasamentos vinham pela vivência

empírica do amor e da doação.

Aquela figura daquele senhor me fez perceber que às

vezes nos esquecemos dos mais velhos e de suas

experiências. Vaziamente trocamos suas vivências pelas

infinitas cabeçadas pela vida, que às vezes deixam-nos

marcas que poderiam ser evitadas. Tão vazios andamos.

Quando vemos pessoas de mais idade não sentimos mais

necessidade de abraçá-las, não ouvimos mais suas

preciosas histórias, e ao invés de um ato de carinho

recebemos e enviamos um frio e quase sempre desalmado

e-mail com frases feitas e repetidas como se não

houvéssemos mais capacidade de dizermos palavras

simples mas verdadeiras carregadas de emoção, e algumas

vezes sem mesmo proferirmos uma palavra executarmos

atos que falariam por si só, como um simples e singelo

olhar com respeito e admiração.

Cheguei em casa com uma porção de novidades (pelo

menos para mim era, embora soubesse-as medíocres) para

contar à minha esposa.

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Ela na frente da televisão extasiada, sem nem piscar, sem

ao menos me perceber. Dei um beijo nela. Ela com um

olho em mim e o outro na tevê. Eu fui para mesa almoçar,

todos já haviam almoçado. Ela na sala sentadona, na boa

(como dizem os mais jovens). Da mesa perguntei se ela

havia notado alguma diferença em mim. Resolvi devolver

os motes de tantos xingões que havia tomado por não

perceber quando ela cortava uns três centímetros do

cabelo, mudava-o de castanho escuro para castanho um

pouquinho mais escuro, e outras coisas a mais que servem

de motivo para aquelas briguinhas de casal e, que

sinceramente, o homem não percebe (a ciência deve

explicar, senão o dito popular explica) mas, não é por

maldade, é porque realmente não percebemos (pelo menos

eu não percebo. Desculpo-me com aqueles que percebem

e sobre a generalização). Então, como sempre maltratado

por tal desleixo de observador, perguntei porque achei que

se elas cobram tal capricho é porque são realmente

observadoras e se ligam em tais detalhes. Acho que me

decepcionei. E, ainda para dar um gostinho a mais apelei

para o sentimentalismo barato, falei “E elas dizem que

somos nós homens os insensíveis!”.

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Havia cortado o cabelo. Lógico, que meu cabelo só

aparece mais volume dos lados, em cima é quase que

imperceptível, é mais ou menos (digamos assim) modelo

palhaço Bozo. Mas ela deveria ter notado.

Ia contar a ela sobre minha manhã de serviço, sobre meus

problemas, do trânsito, dos buracos das ruas agilmente

desviados como se fosse motorista de rally, dos xingões

dos apressadinhos mal-educados, dos números cada vez

maior dos casos da gripe suína, dos chazinhos para

preveni-la e outras coisas importantíssimas (pelo menos

para mim como já disse).

Sentei-me à mesa sozinho. Nem meus piazinhos se

sentaram comigo ou vieram me ver, assistiam em outro

cômodo uma série daquelas de super-heróis robóticos que

deixam umas lições incríveis de como a piazada deve se

quebrar na porrada, pelo menos é o que eles fazem logo

após assistirem tal série. Deve ser o efeito catártico...

Resolvi algo meio que suicida. Disputar espaço com a

televisão. Gritei “viu algo diferente???” e ela “Onde?”

Recuei momentaneamente, como um experiente

estrategista, bradei “deixe pra lá” Pensei “daqui a pouco

termina o episódio da tevê e ela vem me dar atenção.

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Criancice minha agir assim. Pura pirraça. Mas de vez em

quando é interessante agir dessa forma. Fiquei a imaginar:

eu um marido-tevê. Com um aparelho televisor na cabeça.

Marido ideal. Falaria sempre algo interessante, teria

sempre novidades de todos os assuntos, dinâmico, em

cores ajustáveis ao gosto dela e de seu humor e

combinações, não reclamaria, se reclamasse ela mudaria

de canal, enfim um maridaço (vê o que é a dor da carência

afetiva).

Continuei mastigando meus pensamentos. Uma colherada,

uma pensada, para não misturar porque não sei fazer mais

que uma coisa por vez.

Terminou o programa a que ela assistia. Ela vem

sorridente e me pergunta “Que você disse?” Mastigando,

mastigando, rindo com sorriso amarelo, verde, preto.

Fechei a boca. Limpei meus dentes com a língua, um gole

de suco. Respondi “Nada! Esqueça! Já começou o meu

jornal? Não perco um”. Da cozinha enquanto ela lavava a

louça, e eu assistia o jornal, ela me falou alguma coisa. Só

não me lembro exatamente o que era.

(12/08/2009).

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HORA DO ALMOÇO

Cheguei em casa com uma porção de novidades (pelo

menos para mim era, embora soubesse-as medíocres) para

contar à minha esposa.

Ela na frente da televisão extasiada, sem nem piscar, sem

ao menos me perceber. Dei um beijo nela. Ela com um

olho em mim e o outro na tevê. Eu fui para mesa almoçar,

todos já haviam almoçado. Ela na sala sentadona, na boa

(como dizem os mais jovens). Da mesa perguntei se ela

havia notado alguma diferença em mim. Resolvi devolver

os motes de tantos xingões que havia tomado por não

perceber quando ela cortava uns três centímetros do

cabelo, mudava-o de castanho escuro para castanho um

pouquinho mais escuro, e outras coisas a mais que servem

de motivo para aquelas briguinhas de casal e, que

sinceramente, o homem não percebe (a ciência deve

explicar, senão o dito popular explica) mas, não é por

maldade, é porque realmente não percebemos (pelo menos

eu não percebo. Desculpo-me com aqueles que percebem

e sobre a generalização). Então, como sempre maltratado

por tal desleixo de observador, perguntei porque achei que

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se elas cobram tal capricho é porque são realmente

observadoras e se ligam em tais detalhes. Acho que me

decepcionei. E, ainda para dar um gostinho a mais apelei

para o sentimentalismo barato, falei “E elas dizem que

somos nós homens os insensíveis!”.

Havia cortado o cabelo. Lógico, que meu cabelo só

aparece mais volume dos lados, em cima é quase que

imperceptível, é mais ou menos (digamos assim) modelo

palhaço Bozo. Mas ela deveria ter notado.

Ia contar a ela sobre minha manhã de serviço, sobre meus

problemas, do trânsito, dos buracos das ruas agilmente

desviados como se fosse motorista de rally, dos xingões

dos apressadinhos mal-educados, dos números cada vez

maior dos casos da gripe suína, dos chazinhos para

preveni-la e outras coisas importantíssimas (pelo menos

para mim como já disse).

Sentei-me à mesa sozinho. Nem meus piazinhos se

sentaram comigo ou vieram me ver, assistiam em outro

cômodo uma série daquelas de super-heróis robóticos que

deixam umas lições incríveis de como a piazada deve se

quebrar na porrada, pelo menos é o que eles fazem logo

após assistirem tal série. Deve ser o efeito catártico...

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Resolvi algo meio que suicida. Disputar espaço com a

televisão. Gritei “viu algo diferente???” e ela “Onde?”

Recuei momentaneamente, como um experiente

estrategista, bradei “deixe pra lá” Pensei “daqui a pouco

termina o episódio da tevê e ela vem me dar atenção.

Criancice minha agir assim. Pura pirraça. Mas de vez em

quando é interessante agir dessa forma. Fiquei a imaginar:

eu um marido-tevê. Com um aparelho televisor na cabeça.

Marido ideal. Falaria sempre algo interessante, teria

sempre novidades de todos os assuntos, dinâmico, em

cores ajustáveis ao gosto dela e de seu humor e

combinações, não reclamaria, se reclamasse ela mudaria

de canal, enfim um maridaço (vê o que é a dor da carência

afetiva).

Continuei mastigando meus pensamentos. Uma colherada,

uma pensada, para não misturar porque não sei fazer mais

que uma coisa por vez.

Terminou o programa a que ela assistia. Ela vem

sorridente e me pergunta “Que você disse?” Mastigando,

mastigando, rindo com sorriso amarelo, verde, preto.

Fechei a boca. Limpei meus dentes com a língua, um gole

de suco. Respondi “Nada! Esqueça! Já começou o meu

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jornal? Não perco um”. Da cozinha enquanto ela lavava a

louça, e eu assistia o jornal, ela me falou alguma coisa. Só

não me lembro exatamente o que era.

Marcio de Lima

(12/08/2009).

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A IDADE MUITO ALÉM DA APARÊNCIA

A noite de 25 de setembro de 2010 na cidade onde resido,

Guarapuava, ficará na minha memória como um dia que

alguns tabus para muitos foram quebrados, não só em

questão da idade, mas provocou também a reflexão de

como eles se formam e precisam ser superados para que a

humanidade possa se desenvolver de forma mais completa

(corpo e alma).

Indo ao fato. Aconteceu na citada noite uma festa da

melhor idade; agora mais do que nunca; sei porque melhor

idade – pois várias pessoas que já passaram dos 50 anos

festejavam a vida em uma das suas melhores

manifestações, ou melhor, como ela deveria ser celebrada

– em muitos momentos - pelas pessoas: com alegria,

respeito, arte e encanto.

A alegria era um brinde à vida que se estendeu

generosamente dando-lhes experiência, opção de escolha,

sabedoria e equilíbrio entre corpo e alma.

O respeito foi um tempero que encontrei lá e está faltando

a muito dos nossos jovens e nesta festa foi brindada, pois

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idades se fundiram – todos eram jovens todos eram idosos.

Os jovens presentes, até onde pude perceber, respeitaram

os mais idosos que receberam este afeto com

generosidade, numa simbiose para o crescimento

espiritual, pois neste campo não há idade.

A arte ficou por conta das apresentações artísticas de

pessoas que optaram pela vida, deixando para trás suas

dificuldades físicas e de uma vida inteira sem ter a chance

de praticar o que gostavam – por exemplo dança – por não

terem tempo pelos seus afazeres; não terem um grupo que

os acolhesse; por terem inerte algo que nem eles ao

menos sabiam; não encontrarem pessoas que os acolhesse

ou os motivasse. Então, superando a tudo o que citei, e o

que cada um deles guardava em suas histórias, eles se

apresentaram, dançaram como jovens (pelo menos

fisicamente falando), emocionaram, encantaram e

deixaram a plateia (a qual estava divida entre jovens e

jovens da melhor idade) uma lição: a vida vale a pena e a

arte é necessária. Além de tudo, o espetáculo foi de brilho,

de sedução e da sábia decisão: optar pelo movimento é tão

necessário ao homem a seu equilíbrio físico e mental,

ainda mais quando mais quando é feito com amor e

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dedicação.

O que também chamou a atenção foi a principal atração da

noite, o show do quase sexagenário Sidney Magal.

Confesso, surpreendeu a todos. Quanta energia! quanta

sedução! quanta simpatia! O público feminino foi ao

delírio aos calientes passos deste que já foi um dos nossos

maiores ícones por quase duas décadas. O que

surpreendeu mesmo foi a sua energia: dançou como -

diríamos nós guarapuavanos – como um guri. Sua potente

voz incendiou a plateia deixando a todos atônitos. A arte

quem a faz com amor, paixão, consegue se eternizar:

presenciei tal assertiva. O coro “ô eu te amo meu amor”

parecia um só e todos freneticamente ajudavam o ecoar

pelo salão, eram aproximadamente nos meus cálculos três

mil vozes. O Show acabou. A plateia pediu encantada,

apelando ao carisma do astro-cigano, mais uma música, o

qual atendeu prontamente com a simpatia de sempre.

Deixou no ar a pergunta (sem mesmo fazê-la) a arte

envelhece? A resposta talvez seja essa: não, ela – quem

sabe? - ajuda nutrir a alma – pelo menos nos sentimos bem

melhor – foi assim que me senti. E,..., quem sabe

alimentados por ela em eventos assim, nós jovens

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consigamos chegar à melhor idade com um espírito jovem

e saudável.

Enfim, este espetáculo me ensinou muito (no mínimo

renovou o que já sabia). Devemos respeitar as pessoas

independentemente de todas diferenças. Somos iguais, o

que nos diferencia é esta capa mortal a qual carregamos

por toda a vida, ela sim envelhece, o que é essência não.

Mas, este invólucro capta a energia externa, devemos

cuidar bem dele sim, pois nos foi dado pelo grande mestre

como presente de amor e sem preço. Em momentos assim,

somos levados a pensar em algumas coisas – o que é

interessante – mesmo desafiando o que nos propõe o

estressante ambiente em que vivemos – devemos almejar o

equilíbrio do que somos: corpo, alma e coração.

Marcio José de Lima

26/09/2010.

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O ATO DE ESCREVER

Eu por muito tempo fui ligado mais na leitura de mundo

do que na leitura de livros, revistas, jornais, achava que

para mim era um exercício muito desgastante. Na

verdade, penso que era preguiça mesmo. Um dia comecei

a escrever. Era um ato egoísta. Gostava de escrever,

todavia, não tinha paciência de ouvir/ler outros. Veja só. A

prática da escrita faz nascer no indivíduo o hábito da

leitura (pelo menos foi assim para mim), assim como para

muitos o hábito da leitura faz nascer o hábito da escrita.

Aprendi isso, meio que à força. Você começa a escrever,

faltam palavras, faltam argumentos, falta conhecimento de

causa etc. Daí vêm o dicionário e a gramática, que ajuda a

conhecer novas palavras, grafias, faz-se a adequação das

palavras ouvidas no dia a dia etc. Vem o ouvido atento,

que teima em tentar ouvir as conversas alheias buscando

um mote para escrita. Vem a leitura do jornal. E dá-lhe

busca na vida alheia, nos pensamentos alheios para o

autoconhecimento, autoafirmação, criação de estilo

próprio (conheço o outro e vejo-o como o outro, esse não

sou eu, então quem sou?).

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Parece um ato insano. Foi assim que me senti quando

comecei a perceber que escrever é um ato muito

desgastante, faz você se sentir como se fosse um ser

perdido. Pois o indivíduo pega-se falando pelos cantos,

observando a vida de outrem para atear fogo à imaginação.

Abaixa-se para ver um pouco melhor a flor encoberta de

pó que teima em habitar a beira da estrada (sua beleza está

lá, escondida, mas está). Tenta sentir a tristeza de alguém,

mesmo que não o interrogue, sabe-a, imagina-a, sente-a

como se pudesse fazer compreender o imenso vazio que

habita o seu ser. As letras, as palavras, as sentenças, os

parágrafos, enfim os textos começam a incomodar. Então,

o papel pede para ser refúgio teimando em ser abrigo de

um desabafo qualquer - quanta felicidade estou livre – e a

obra toma corpo, encarnece-se, faz-se coerente (pelo

menos pretende-se assim) busca ser bela, despertar a

beleza, encantar (às vezes quem escreve se encanta mais

com a obra do que realmente ela poderia encantar) – mas é

sua menina querida – cuida-a, venera-a, até sente saudade

dela quando fisicamente se distancia.

Enfim, para mim escrever se tornou um exercício

necessário – ajudou a me entender (mesmo sendo isso

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deverasmente difícil) mas acho que eu me entendo um

pouco mais – gosto de escrever, e, já não sou tão egoísta

(leio outros escritores, escuto outros escritores e reparto

um pouco do que escrevo) e acho que isso está me fazendo

bem, pois tenho encontrado o prazer em viagens que antes

eu não imaginava e às vezes trago comigo amigos que

antes eu os tinha tão distantes e o exercício que era

solitário às vezes é feito à companhia de muitos – e isso

me faz feliz porque o homem nasceu para ser feliz – e é

quase impossível sê-lo sozinho – e as novas leituras de

mundo ficam mais inteligíveis porque as pessoas me

ajudam a desofuscar e dar graça àquilo que antes me

parecia tão obscuro.

(Marcio José de Lima)

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O ELOQUENTE SÁBIO

Um Sábio homem proferia silenciosamente o seu discurso.

Nem abanos no ar. Nem entoação. Nem entonação. O

vácuo prosódico imperava.

Somente negava a tudo. Não falava. Não criticava. Não

escrevia. Não chorava. A tudo - sem nada argumentar –

dizia “não”.

Seus lábios mornos. Seu olhar cativante. Seu sorriso

aberto. Seu corpo a falar: “Não!.” Assim, a multidão o

seguia. E ele ensimesmado no silêncio a refletir.

A criança falava. A mulher falava. O homem falava. O

ancião falava. O Sábio ouvia, somente ouvia.

Sem nada dito pelo Sábio, os homens reticentes,

exclamativos, afirmativos: aprenderam.

Em um dos seus mais eloquentes discursos o Sábio

sentou-se ergueu os olhos ao céu, juntou as mãos, e,

escutou sem nada dizer – aos felizes por isso – um número

de duas mil setecentas e dezessete pessoas. Sentiu-se feliz

e em paz passando a proferir por extensos quinze

segundos um largo e imenso sorriso.

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(Marcio José de Lima – 08/nov/2010)

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VOLTA POR CIMA

O lotação para mim é um lugar muito bom, pois para

quem gosta de histórias ele oferece oportunidade de ouvir

muitas. E ali, ali no lotação ouvi diversas, umas

engraçadas, outras trágicas, outras quem não muito

interessantes, mas possuíam alguma riqueza – mesmo em

um primeiro momento apresentando-se como medíocre.

A que hoje narro aconteceu em um dos dias que

antecedem o dia das mães. Estava a procurar nas falas das

pessoas um motivo para escrita – esse é um dos meus

vícios, não sei se gosto, mas até agora não consegui me

livrar dele. Talvez, agora apelando para sua paciência,

convido-o para um brinde, sim um brinde. Uma dose de

vida, manifesta em uma de suas formas mais pura: o Amor

de Mãe. Então vamos à narrativa.

Havia algo de interessante naquela conversa. Uma senhora

e uma moça a conversar. A mais velha com água no olhar

contava de seu filho.

– Encontrei-o no lixo minha filha. Recém-nascido.

Pasme e se assuste. Todo mordido por insetos,

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inchado, com frio, uma criaturinha abandonada à

míngua. Os médicos me falaram que ele não ia

sobreviver. Mas seu olhar me dizia algo, embora

tão pequeno, tão indefeso, clamava à vida. Parece

que entendia. E eu - para não sofrer mais que ele -

naqueles momentos procurei não sentir sua dor. O

que talvez foi inútil. Senti-a. Talvez como a mãe

que ele não teve.

(Pausa)

Engoliu as lágrimas e continuou a conversa.

– O bombeiro que o atendeu me falou que ele não ia

sobreviver. E era pra eu não alimentar esperanças.

E, se ele sobrevivesse teria muitas sequelas.

Nesta hora seu olhar como se ardesse. A expressão de dor,

o olhar ao longe.

– Mas... mesmo assim falei que ia adotá-lo. Sabia

que nesse negócio de viver ou... depende só de

Deus. E eu acreditava. Ele ia viver. (uma nova

pausa)

Gostaria de abrir aqui um parêntesis sobre o poder da fé e

da vida sobre o sopro gelado da não-vida. Acredito em

algo maior. E algumas vezes a pura ânsia do viver supera

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miraculosamente todos os percalços e a estrada que

aparentemente tem fim (materialmente falando) segue

alegre como um dia de verão. O milagre então se faz e

neste caso...

A curiosa moça a interrogava.

– E daí o que aconteceu?

Já com mudança no semblante, como quem comemora

uma vitória a senhora continuou.

– Cinco dias no hospital, à base de antialérgico e

anti-inflamatório, sei lá mais o quê, à vigilância de

enfermeiras na UTI, bem como à base de círculos

de oração, novenas em intenção àquela frágil e

solitária criança. E... como num milagre...

sobreviveu o danadinho.

Após este relato... Soltou um largo sorriso.

– Hoje sou a mãe adotiva mais feliz do mundo.

Quanta alegria. Quanto orgulho. Tinha-o como modelo.

Que filho – desejo de todo pai, de toda mãe - na visão

dela, por possuir um olhar verdadeiro – assim acreditei.

Assim me emocionei. Assim partilhei tão verdadeira

manifestação.

– Olha aqui minha filha. Não é que eu não queira

31

bem meus filhos. Mas de todos, esse é o que mais

me dá orgulho. Nenhum dos que tem o meu sangue

me respeita tanto como ele. E, reconhece o meu

duro ofício de mãe. Boa pessoa, honesto, canta na

igreja, parece um anjo cantando.

A moça confessou que sabia de quem se tratava – mas não

sabia-o até aquele momento seu filho. Também afirmou

que realmente se emocionou ao cantar do jovem.

– Realmente ele canta muito bem.

O que mais me deixou emocionado – agora comovido com

a história – foi como ela falou da mãe que o abandonou.

– Veja só você. O que me deixa com pena é saber

que a mãe que o abandonou, diga-se de forma

cruel, nenhum momento de sua vida teve a alegria

que esta mãe postiça teve. Um filho sem

dissabores. Tenho pena mesmo.

A moça a sentir a emoção da mãe encheu os olhos de

lágrimas e, na minha opinião, refletiria sobre o verdadeiro

significado da palavra “Mãe”.

Com um nó na garganta, orgulhei-me desta sofredora mãe,

e, também senti pena daquela que o abandonou – quando

uma senhora de cabelos brancos - disse que no dia em que

32

emocionada ouviu aquela quase celeste voz arrancar

choros numa missa como outra qualquer em um final de

semana, como outro qualquer.

A viagem continuou. E, poucos pontos depois cheguei em

casa. Minha esposa estava a esperar. Com um nó na

garganta, abracei-a. Sem nada dizer, beijei-a. Ela sem nada

entender falou-me carinhosamente (minha esposa é

sempre carinhosa):

– Neste ano pouparei seu trabalho. Antes que você

ficasse constrangido por não ter comprado aquele

presente que você viu e quase comprou para mim,

eu tomei a iniciativa e comprei – pois afirmo –

você não tem tempo mesmo. Adorei. Foi, pela

descrição que você me fez o ano passado, aquela

blusinha que você passou bem perto de comprá-la

para mim. Ela é linda. Não é?

É! Minha esposa sempre foi uma ótima mãe – não posso

negar – também muito prestativa. (Realmente a blusinha

ficou linda). Ela conhece até meus pensamentos, até

mesmo aqueles que não tive.

33

ARMAS

Pensava nas armas que pusera em minhas mãos...

Agradeci-as. No entanto não sabia o que fazer com elas.

Mas mesmo assim me senti muito grande. Pus tudo nelas:

minha confiança, meus projetos, minha força... Esqueci de

mim, esqueci de Deus. Meus inimigos, com muito mais

preparo, muito mais perseverança – após me render e

tomá-las - fizeram de todas elas meu declínio. Hoje, não

as possuo em grande quantidade, porém as que em minhas

mãos repousam não são maiores do que a minha

confiança no Homem que detém todo honra, toda força e

todo o poder. E dessa forma, mesmo em batalhas – às

vezes tão sem sentido – a que mais uso é a que não é aço,

não é indestrutível, não tem alto poder de fogo, não tem

mira laser, conhecemo-na como a insígnia singela de FÉ.

(Marcio José de Lima)

34

1000 ACESSOS – UM ATO DE GRATIDÃO

Fiquei muito contente ao ter em meu blog os primeiros mil

acessos, e por isso escrevi uma crônica abaixo descrita,

pelo momento de culto à gratidão de pessoas que tiveram a

paciência de acessar um veículo que se pretendia meio de

comunicação de novos contos, crônicas e poesias por mim

produzidos, como segue.

Celebrar os primeiros mil acessos a um Blog é uma

vitória. Principalmente pelo fato de ter pessoas

interessadas em cultura (pelo menos, não por vaidade, mas

por intencionalidade, pretendo-o assim cultural) e pela

consideração de amigos que despendem alguns minutos de

sua vida para navegar em um mundo ficcional, seja ele da

poesia, da crônica ou do conto. Chamei-o Devaneios

literários. O dicionário on line de português define

Devaneio como sendo “Estado de espírito de quem se

deixa levar por lembranças, sonhos e imagens (…)”,

“Sonhos, quimeras, fantasias, ficções”. Essas definições se

coadunam com a essência de minhas criações e de minhas

escolhas de publicações, muitas, fruto, em sua maioria, da

35

imaginação: verdades fingidas. Não sei se essas

“verdades” agradam. Elas se pretendem artísticas, então

despertar o “Belo” - não em sentido restrito de beleza

estética: bonito, lindo, perfeito etc - seria sua simples

função – enfatizo despertar, não importa “o quê” se paz,

incômodo, reflexão, o preenchimento do ócio, e por que

não? raiva, ódio, desprezo etc, por essa contradição não

tenho certeza se agrada, mas... nem sempre agradamos,

todavia me agrada quando você leitor se manifesta

fazendo comentários, ou reproduzindo fragmentos de

pensamentos em suas anotações, seja nas rede sociais e

outras formas de citações. A Arte, doce e útil como

definiria o poeta Romano Horácio, ainda não sabendo se

posso dizer assim de meu trabalho, talvez você possa me

ajudar, se alguma vez te agradou ou te serviu para algo em

sua vida – então começa a ter cara de obra Artística, mas

só o tempo poderá dizer isso, lógico inclusive com sua

sábia contribuição. Sendo assim, espero ter sido nesses

poucos meses de criação do Blog um bom companheiro.

Agradeço pela companhia que me destes, caro leitor, nesta

viagem obstinada em entender um pouco mais esta vida –

que às vezes demonstra-se dura – mas mesmo em sua

36

dureza carrega a sutileza do ensinamento e da busca

incessante em nosso aperfeiçoamento enquanto ser

vivente, agente e reagente. Agradeço de verdade!

Marcio J. de Lima

37

PASSIONAL

Ele a olhava. Admirava sua dureza, frieza, parcialidade,

seus programas e missões religiosamente executados. Ela

não reclamava, não falava mal de seus amigos, tudo

resolvido, tudo produzido, não possuía problemas

existenciais. Havia talvez algo de passional em sua

admiração. Desejou-a. Sentou ao seu lado, a escutá-la.

Doze horas se passaram e ela com o mesmo fôlego. Vivia,

pensou. Talvez, sorriria? Quando pararia? Ela a escutá-lo.

Reclamou-se por 10 horas – ela trabalhava. Sentiu-se

pobre. Sentiu-se fraco. Chorou, dormiu. E, por ser

considerado um viciado em trabalho, foi dispensando para

o tratamento. Ela... semana que vem, logo após um

minucioso estudo de viabilidade, será substituída por uma

de última geração. Afinal, até os amores velhos um dia

precisam ser renovados.

(Marcio J. de Lima)

38

UM HOMEM CAÍDO NO CHÃO

Há um homem caído no chão. Quem se importa?

Bala ao peito. Sangue pintando a calçada. Um

sonho estendido no chão, uma esperança... Em

casa filhos riem inocentes. Um sonho desenha no

piso sua silhueta. Mas quem se importa? Todos

passam apressados, resignam-se com a lentidão do

trânsito, com a ignóbil figura, raquítica, de mãos

encouraçadas, de mochilas nas costas, com sua

térmica quebrada, marmita com um resto de comida

dando nojo nos transeuntes. Envergonha-lhes. O

ônibus vomita pessoas... Aos chutes o corpo anda.

Que culpa tinha este cristão? Todos atônitos com

seus anseios bradam “liberem a rua!” ”já é hora de

minha novela.” “Logo começa o jornal.” Todos

seguem... A chuva cai e lava o sangue... Lava a

discreta cal que ainda permeia nas mãos de nosso

pitoresco herói. O corpo está só. Jogado à rua em

frente à igreja. Ouvem-se primeiras cantigas

39

cantadas pelas beatinhas, pontualíssimas às sete

horas da noite... O sino toca... A plateia canta

animada o canto de acolhida. Uma criança

desobedece a mãe e sai correndo na chuva levando

em suas pequeninas mãos um cartãozinho com o

retrato de Nossa Senhora do Guadalupe. Ela para

tristemente em frente àquele moribundo corpo,

deposita em suas mãos a santinha. A mãe

preocupada com a filha, dissipa-lhe qualquer

vestígio de realidade, grita quase que desesperada

agarrando a mão da pequenina “venha aqui filha o

titio já sara!” A criança olhando para trás joga um

singelo beijo àquela figura. A celebração continua

calorosa.

(Marcio J. de Lima) 02/05/2011

40

ONDE ESTÁ A MUSA QUE ENFEITA MINHAS LEMBRANÇAS?

Onde está a linda Musa que enfeita minhas

lembranças? Onde estão os versos que povoam os

meus sonetos? Onde está a indignação que recheia

algumas de minhas crônicas? A que fim levaram

minhas rimas, minhas limas, meus desesperos e

desencantos; que, emprestados, colorem minhas

criações? Oh Musa que inspira os poetas! Que os

conduz ao onírico mundo de muitos poemas... Em

que ilhas fostes habitar para que eu possa te visitar?

E, oferecer-te um copo de vinho suave, e, com voz

caliente possas contar-me de seus amores, de suas

aventuras e das lembranças que vivestes... Oh

Musa, onde deixastes aprisionados meus versos?

Com que esfíngica chave trancastes meus tesouros?

Pois tão paupérrimo não consigo saldar o preço nem

ao menos de um hai kai... Quando retornarás?

Quem sabe à proa de um barco à deriva estejas tu,

oh Musa... ansiosa a esperar pelo socorro de seu

41

amado ... E quando ele vier te salvar, quiçá mais

uma história com ele possas compartilhar, e ele por

generosidade possa conosco também compartilhar.

Quem sabe em seu enredo haja uma nova Odisseia,

ou ao menos, um novo modo de amar... nem que

seja ao embalo de uma sonante voz a encantar por

no mínimo mil noites...

42

QUEM ALGUM DIA NÃO FEZ POESIA?

Quem algum dia não fez poesia? Algumas pessoas

de mais idade, ou que se achavam assim, me

falaram que elas “antigamente” faziam poesia. E,

com o passar do tempo perderam essa “mania”. Pois

bem, sinto-me então um jovenzinho escrevendo ou

brincando de escrever. Digo... realmente um poeta

tem alma de criança (é o que sinto quando leio

Helena Kolody, Cora Coralina, Vinícius Moraes e

tantos outros que em sua maturidade produziram

ricas obras) realmente é uma pena as pessoas ao

longo de sua vida perderem a inspiração e a vontade

de escrever poesia. Ela menina pura ensina-nos a

pensar. A nos reconhecer. A reconhecer o outro.

Tudo isso pela sua simplicidade-complexidade, pela

elaboração (por mais espontânea que seja), pelo

seu poder simbológico etc.

Então, quem escreve poesia, conhece um novo

mundo já existente em seu interior – mas pouco

explorado.

43

Sendo assim, não importa a idade de quem as

escreve! Todos sim – como diriam minhas amigas –

são crianças – mas saem em busca do

autoconhecimento. E, ela dura enquanto estivermos

aqui. Mas... com uma vida com um pouco mais de

sensibilidade – e diga-se de passagem – este

mundo está precisando muito para não nos

maquinizarmos ou nos coisificarmos como produto

ou subproduto do dinheiro. Sendo assim “De onde

nascem os poemas?” traz um convite para você a

voltar ser criança, começando pela leitura de

poemas... e quem sabe volte a produzi-los - ou se

ainda não escreveu e só sentiu vontade comece a

fazê-los, tudo isso para tornar seu dia um pouco

mais feliz, se não - ao menos mais criativo.

44

PALAVRAS... PALAVRAS...

Nada havia mais a ser dito... Por isso resolveu-se a

repetir tudo de novo. E a cada palavra repetida um

novo mundo se criava... As palavras eram as

mesmas o que havia mudado eram as coisas que

elas significavam.

45

UMA DOCE TENTAÇÃO

Como tudo em sua vida, esta também tinha sido

uma tumultuada decisão... comprar ou não comprar

um automóvel. Lembrou-se dos gastos diretos e

indiretos com ele: manutenção, IPVA, seguro, troca

de pneus, parcelas do financiamento, gasto com

gasolina... Pensou em seus benefícios: rapidez,

comodidade, status. Enfim era uma cadeia de

serviços necessárias à permanência daquele bem

em suas mãos nas condições necessárias ao uso

adequado e seguro... Por tudo isso, resolveu não

comprar. Agora era a dúvida, não queria deixar o

dinheiro parado, precisa capitalizá-lo. O carro na

verdade tinha como objetivo maior colocá-lo em

evidência, inflar o seu ego. O seu sucesso

profissional precisava ser visível a muitos. Então o

carro serviria a isso. Todavia, após uma longa

reunião de família, viram que o status era o que

menos interessava. As pessoas não tinham nada a

46

ver com suas vidas. Os resultados positivos

deveriam ser para o bem da família. Por isso,

Investiu-se o valor do carro na compra de um imóvel,

comprou-se um terreno. O carro que ele iria

comprar, após cinco anos passados, hoje vale um

décimo do valor do mesmo. Como substituto do

automóvel foi comprado uma bicicleta para cada

membro da família e nos dias que chove fazem uso

do transporte coletivo... Ganharam em saúde...

Ganharam financeiramente e tornaram-se muito

mais amigos da natureza - e diga-se de passagem -

como eles tem ajudado o meio ambiente! Quanto ao

carro... toda vez que passam em frente à

concessionária ele os acena como uma doce

tentação.

47

ACAMPAMENTO NA NOITE DE PRIMEIRO DE ABRIL - A PANELA DE DINHEIRO

Todos ali sobre o lúmen da fogueira regateira que

iluminava o rosto de todos. Pequenas histórias

saíam do povo que se exibia pelos sustos vividos

pelas pseudoexperiências vividas. Tio Jango o mais

eloquente dos contadores de histórias se exibia por

ter sido testemunha de muitas. A mais

surpreendente foi a que viveu em uma de suas

viagem pelo mundo. Dizia ele:

Olha amigos.

Com os olhos arregalados de quem havia se

assustado muito pelo testemunho ocular de algo

assustador.

Não quero por medo em vocês. Mas, existe muita

coisa que nós não imaginamos nesta vida... Tudo o

que narrei até aqui, foi verdade. Todavia, uma de

minhas histórias, tem o tempero do inimaginável.

Isso aconteceu em 1975, quando contava com 18

48

anos. Fiquei sabendo de uma panela de dinheiro

enterrada em um descampado perto da Serra do Rio

Jordão. Que teria sido enterrada pelos Jesuítas

aproximadamente em 1750. Ali não havia ruínas das

Missões. Sabíamos não por mapas, nem por

histórias de hipóteses do ocorrido pelo descentes da

região. E sim, pelo que muitos já haviam vivido

quando passavam por aquelas aragens,

principalmente nas noites de lua cheia do mês de

agosto. Quando uma das vítimas foi assombrada por

uma tribo fantasma que implorava que fosse

desenterrado aquilo que os prendiam ali... Uma

caçarola de barro carregada de moedas de ouro.

Este sobrevivente sóbrio, que teve a sensibilidade

de encarar aquilo como verdade, convocou-me para

aquela empreitada, pois sabia que eu era homem

que acreditava naquilo por já ter vivido muitas

histórias – que a maioria das pessoas não acredita.

E de pronto, aceitei, por também acreditar naquele

homem que merecia todo meu crédito.

Amigos... saímos com pás, picaretas, enxadas, dois

49

rosários em cada bolso e nosso santinho de

devoção. Pois, sabíamos que teríamos que rezar

muito. O que ali ganhássemos teríamos que repartir

parte com quem realmente precisava para abençoá-

lo. Esta era a regra básica para quem era caçador

experiente de panelas de dinheiro. Chegamos ao

local em uma noite muito límpida. Não estava frio,

embora a nossa região seja considerada uma das

mais frias do sul, aqueles anos o inverno era terrível,

como vocês sabem, mas apesar disso aquela noite

estava agradável. Deixamos nossos carros na

estrada, pois não dava para chegar de carro até lá.

Pulamos uma cerca de arame. E poucos metros

depois, escutamos algo estranho. Paramos. Parecia

um mugido. Mas, não enxergamos nada. Então,

seguimos nosso destino. Como saberíamos o local?

Meu amigo narrou que era próximo a um velho ipê.

Seria naquele local aproximadamente. Teríamos que

trabalhar a noite inteira até o amanhecer. Pois, pela

lenda, diz-se que tem que retirá-la até o por do sol.

Então teríamos que nos apressar. Chegamos ao

assustador ipê. Digo isso, por que naquele momento

50

o achava assim. Ele já foi fazendo um buraco sem

ao menos pensar, tive a impressão de sabia onde

era. Poucas pazadas, desistiu. Eu, confesso. Fiquei

naquele momento somente olhando e pensando.

Onde será ao certo? Não havia uma lógica para

aquilo. Mas... era jovem. Não me importaria em viver

aquela “loucura”. Comecei a cavocar usando minha

lógica. Se tiver próximo do tesouro, algo ocorrerá.

Depois de um certo tempo, de quase limpar a grama

que cercava o ipê, ocorreu algo muito estranho. O

barulho do boi voltou. Paramos... olhamos para os

lados e não havia nada. Concluímos que aí era a

pista que esperávamos. Começamos a aprofundar

nossa procura. Fizemos um buraco de dois passos

quadrados. Quando já estava pelo nosso joelho,

outros brulhos de bichos se juntaram ao mugido do

boi. Agora haviam porcos e cachorros. Além do

barulho de arbusto quebrando. Mas... não haviam

arbustos ali. Era só um descampado. O tempo

começou a fechar. E, em um repente, começou a

chover com muitos raios e trovões. Choveu com

vento. E sombras horríveis assombraram nossa

51

noite. Ouvimos o canto da tribo em uma língua que

não conhecíamos. Mas à medida que nós

afundávamos nosso buraco o canto tornou-se uma

canção religiosa – ou pelo menso parecia assim -

com sotaque parecido com o português e algo perto

do castelhano. Sentimos cheiro de erva-mate

queimada. Chegou ao auge da cantoria. E, tudo se

silenciou. Paramos um momento. Olhamos para a

paisagem agora coberta pela cerração. Tremíamos.

Nos olhamos. Nos interrogamos. Seguiríamos

aquela empreitada? Certo de que estávamos

próximos ao tesouro continuamos. Um canto

continuou. Barulho de cavalos começaram a passar

próximo a nós como um estouro. Abaixamo-nos e

aos poucos pusemos a cabeça fora do buraco para

ver o que estava ocorrendo. Nada acontecia de

diferente a não ser a cerração que aparentava mais

brilhante agora já revelando a copa de alguns

pinheiros ao longe. Cavava freneticamente enquanto

meu amigo descasava – quando bati em algo que

parecia uma caixa. Com as mãos, descobrimos, sim

era uma caixa de madeira. Muito dura não parecia

52

oca, parecia ser preenchida com concreto. Pegamos

algo que parecia uma alça de corda que amarrava a

caixa... Tiramos a terra que a cercava. Tentamos

abri-la. Tentamos movê-la. Mas... a chuva voltou.

Agora mais forte. Os bichos e as cantorias voltaram

também mais fortes. A cerração cobriu o buraco e

agora não enxergávamos mais a caixa, só a

sentíamos. O buraco começou a encher de água. E

quando não era mais possível permanecer ali –

devido a ela, nos retiramos. Com a decepção dos

grandes guerreiros, combinamos retornar pela

manhã. Voltaríamos para casa. Quando

amanhecesse voltaríamos mais equipados, com

baldes para retirada da água. Neste momento

desacreditávamos da lenda, ou coisa parecida.

Víamos somente a lógica, o real. E assim, cansados,

muito cansados nos retiramos quase não

encontrando o rumo à estrada.

A esta altura, todos prestavam muita atenção.

Aparentemente ninguém parecia duvidar. Mas... em

seus interiores. O causo assumia uma vivacidade

53

pungente, ainda mais com a eloquência do contador

que gesticulava muito e impunha a voz nos

momentos certos de tensão.

Todos atônitos e reticentes, viam o contador de

histórias olhando ao longe.... como se estivesse

desgastado somente pelo esforço de tentar lembrar

do ocorrido. E logo após uma pausa. Continuou:

Voltamos quando amanheceu o dia. Pulamos a

cerca de arame. Olhamos o provocador pé de ipê. E,

para nosso espanto, um olhar a cara do outro sem

nada dizer, e como se não fosse possível contar isso

para ninguém – com medo de se ter tido como louco

– olhamos para o chão atônitos - e toda a grama que

recobria aquele lugar estava como se nunca tivesse

sido remexida.

(Marcio J. de Lima)

54

O CONCLAVE, TEMOS PAPA, BATEU NA TRAVE

Estava tensa a votação para escolha do novo Papa.

Sobe fumaça preta saindo da Capela Sistina e nada.

A diferença estava sempre sendo de poucos votos,

não se chegando aos dois terços necessários para

escolha do novo pastor da igreja católica no mundo.

Em uma conversa informal, daquelas que não

ocorrem em todos os conclaves, bem na hora do

almoço, dois bispos resolveram trocar uma

conversinha. O mais novo com todo respeito pensou

em questionar o mais experiente, mas sem deixar

transparecer intenção de voto, pois era o almoço –

hora sagrada. “Talvez este seja minha escolha!”

pensou. “Nunca havia percebido este senhorzinho.

Muito simpático por sinal. Simpatia e carisma... Já

sei de onde ele é...” Imaginava. “Este seu sotaque

me é estranho a minha convivência... Mas, só pode

ser o candidato brasileiro...”

Para ter certeza, soltou sua primeira indagação –

55

meio que assim sem pudor – mas como era um

momento informal – poderia fugir aos protocolos,

afinal papáveis também têm suas vivências sociais...

• E daí me fale de futebol!

Olhou o bispo mais velho com o ar de doutor no

assunto, sem titubear, respondeu:

• Vai muito bem!

Reforçava ainda mais sua hipótese, “realmente é

mesmo o brasileiro, pelo orgulho em relação a sua

seleção, por isso é conhecido como o país do

futebol!”.

Ainda para dar substância às suas indagações

quanto à origem do senhorzinho, pela vergonha de

perguntar de que país ele era, e talvez demonstrar

seu desconhecimento de cultura geral – coisa

normalíssima a qualquer mortal – insistiria à

informalidade do bate-papo, pois ali estava difícil de

conversar de outra forma, sem gerar uma discussão

em torno dos seus propósitos pelos quais estavam

ali, e optou em fazer desta uma oportunidade -

formação de opinião e de se chegar a um nome que

56

conduziria toda a igreja católica apostólica romana. A

tensão era muito grande. Mas... naquele momento

era somente o intervalo para almoço, hora de deixar

de ser bispo e saciar sua fome, sendo um homem

comum.

Uma colherada e sai a pergunta naturalmente:

• Se você for o escolhido, que nome adotarás?

Lógico, que esta indagação havia de sair

naturalmente. E foi o que ocorreu, o velho bispo não

perdeu o carisma e respondeu humildemente:

• Pensei em Francisco.

“Eureca! De fato é brasileiro, ligado à cultura de seu

país, gosta de filmes e de exemplos de pais que

cuidam de seus filhos e os querem vencedores... Já

assisti este filme, gostei muito. Se eu não me

engano é “dois filhos de Francisco”. E também gosta

da natureza, amor aos animais, assim como São

Francisco... hum na Amazônia tem bastante...”

Refletia e mastigava em pensamentos.

Sem o auxílio do Google, devido à falta de

comunicação com o mundo, inclusive o virtual, não

57

teria outras alternativas. Mas não podia errar. Afinal

era sua escolha... Por isso para não restar mais

dúvidas, soltou a última pergunta, começando por

uma exclamação.

• Puxa hoje está meio abafado! De todos os

países da Europa eu gosto do frio de Londres

me sinto muito à vontade. E o Senhor, em

qual cidade de seu país se sente mais à

vontade?

• Buenos Aires.

Não se restou mais dúvidas...

E por diferença de um voto a fumaça branca

alcançou os céus sendo aclamado com muita alegria

o primeiro Papa da América Latina.

58

SURPREENDA-ME (MINICONTO)

- Surpreenda-me disse João.

- Como assim? Respondeu o amigo magricela.

- Você precisa mudar o seu jeito de ser.

- Sempre fui assim e não vou mudar.

A conversa iria longe. Amigos em discussão. O João

estava muito preocupado com a inocência do seu

amigo – em seu ver – em um mundo cheio de

armadilhas e pessoas mal intencionadas. Eram tão

íntimos, mas o magricela estava sofrendo muito

naquele momento pela falsidade de alguns que se

diziam seus amigos e as armações que estavam

tramando a fim de denegrir sua imagem.

- Sofro, João, mas aprendo com isso. Não tem como

mudar as pessoas, assim de uma hora para outra.

Alguns até mudam seu jeito de ser, mas suas

essências permanecem a mesma. Então comigo é

assim. Sofrer, aprender, mas jamais me arrepender,

pois sou autêntico. Acredito que a felicidade estaria

em correr atrás daquilo que reforçaria de forma

positiva o que pode me fazer melhor sendo eu

59

mesmo.

João balançou, simplesmente, balançou a cabeça.

60

UM GRITO NA ESCURIDÃO

Um grito na escuridão acordou toda a vila. Todos já

o conheciam. João Mauro que era de fora não o

conhecia. Um frio rasgou suas entranhas e o

arrepiou por inteiro. Levantou lentamente devido à

escuridão do seu quarto. Uma espessa névoa

tomava todo o vilarejo. Sair com certeza não o faria,

mas a curiosidade era grande. Dali por diante não

dormiu mais. Várias memórias lhe vinham à cabeça.

O trabalho exaustivo e quase que escravo o fazia

trabalhar sem parar. Várias desilusões amorosas se

sucediam como uma maldição. Também uma crise

financeira mundial levara todas suas economias. A

depressão há pouco curada era seu único trunfo. E

tudo isso passava em sua frente fazendo-o esquecer

aquele assustador grito. Logo o sol nasceu. João

levanta, lava o rosto em frente a um espelho antigo.

Uma mão lhe toca às costas. Sem nada entender,

vira-se rapidamente. Uma assustadora imagem lhe

tolda os sentidos.

61

Logo na noite seguinte, um novo visitante da vila é

acordado novamente por um grito mais assustador

que da anterior, em uma noite iluminada de lua

cheia. Sem nada entender mira da janela uma figura

que vaga a esmo por inóspitas ruas de

paralelepípedo. Aquela figura lhe parecia conhecida.

Podia ser seu amigo João Mauro que ficara de

esperá-lo para fecharem negócios na cidade e que

estranhamente não estava no hotel lhe aguardando.

O homem sai à rua atrás de seu provável amigo.

Devido a este andar vagarosamente ele o alcança.

Ao alcançá-lo ele põe sua mão sobre seu ombro.

Este para. Um breve segundo de silêncio se sucede.

Sem se encararem o homem que vagava a esmo

solta um horrendo grito. Envolvido pelo medo do

grito o homem retorna ao hotel em um frenesi

tremendo não conseguindo dominar seus sentidos e

movimentos.

João Mauro, ninguém mais o viu. O grito toda noite

de lua cheia se sucede, cada vez mais assustador,

porém ninguém mais sumiu daquele misterioso

vilarejo, em que as pessoas que moram ali juram

62

nunca mais tê-lo ouvido.

63

COISAS DA POESIA

Às vezes fico a refletir sobre a poesia, seus efeitos e

os eventos que as inspiram. Dias atrás me atrevi a

compor um poema. Depois de muito pensar saíram

os versinhos que seguem “Você, luz que rasga

minha manhã, pele de açucena, boca de maçã”. É

realmente só os mais ilustres escritores definem

adequadamente a poesia, mas quando é possível

vivê-la, talvez esteja aí a sua alma – fazer os dias

mais vivos à luz da poesia – então é poeta quem

também consegue escrever uma vida mais rica à

humanidade. Quem sabe o momento da composição

seja o mais puro e verdadeiro momento poético...

Mas aí iríamos longe nesta divagação. Penso que

muitas vezes o trabalho acaba com a

espontaneidade da obra (fazer, refazer, reescrever,

incrementar, etc)... Mas... sustentar a metáfora é

algo difícil. Principalmente se você escreve uma

declaração dessa (como a acima) antes de seu amor

acordar pela manhã e... logo após ao lado da cama

64

você a encontra. Cabelos despenteados, sem a

maquiagem do dia a dia, sem a fragrância de sua

boca, sem a poesia necessária ao momento... Mas é

o amor, quiçá dá-nos o presente de ver algo que só

o coração enxerga... Diga-se de passagem, ainda

bem que os corações são generosos (pelo menos às

vezes ele realmente é – os poetas com um certo

romantismo que o digam). Senão perderíamos o

lirismo dos momentos românticos e a sátira

inadequada poderia dar lugar a um poema de

escárnio ao invés de um de amor... Todavia... sairiam

- quem sabe - umas metaforazinhas, ao meu ver

bonitinhas... Então salve a poesia que às vezes nos

causa miopia e não nos deixa enxergar aquilo que

os olhos poderiam ver. E digo... se meu amor tem

algum defeito faz tempo que não enxergo... se não é

o efeito da poesia, então terei que trocar meus

óculos e achar um jeito de consertar os meus

sentidos!

65

POBRE MENINA

Pobre menina. Em frente à tevê não percebia sua

infância sugada. Os pais inertes à mesa. Somente

sonhavam. Nunca haviam sofrido tanto, por suas

dores e pelas de outros. Pensavam quanto dinheiro

na mão de poucos e em nossos bolsos as migalhas

deixadas pelo sufoco de um mês inteiro de

trabalhar. A barriga roncava, a menina sentia-se feliz.

Para dormir um copo de água doce e um pão

surrado deixado por seus pais. Um beijo na testa da

pobrezinha Um boa noite. Sonhe com os anjos.

Amanhã é um novo dia!

66

A OBSCURA VIDA DE JULIÃO DOS T OMATES

Sempre achei Julião dos tomates muito gente boa.

Excelente pai de família, bom pagador, comportado

cristão, fazia sempre doações assistenciais –

repartia com o próximo. Conhecidíssimo nas redes

sociais por suas boas ações e campanhas ali

lançadas a favor dos não afortunados. Eu somente

não conhecia um lado da sua vida – que creio

obscura – e até hoje me pergunto. O que fez que tal

cidadão tivesse por notícia de sua passagem (à

outra vida) – a espontânea manifestação de 832

pessoas que curtiram a sua morte?

67

SAUDADE DO AVÔ

Seguia. Não sabia bem ao certo aonde ir. Aquele dia

acordara muito cansado. Sua cabeça doía. A

lembrança de alguém que amava brotava. Era, de

certo a de seu avô. Pensou... era ele sim que fazia

falta naquele momento. Há muito partira. Mas...

algumas histórias permaneciam vivas. O vô homem

forte, de sonhos duradouros, de muitos planos. Por

que se fora? Havia muito a aprender com ele. Havia

muito a dizer a ele. Estava cansado. Seus

movimentos não estavam produzindo vida, ao

contrário a cada dia esvaziava-lhe cada vez mais. O

vô saberia como fazê-lo viver mais, aproveitar seu

tempo, ou pelo menos fazer entender o cansaço que

lhe pesava tanto e seu porquê. Pensou, sentou no

banco da praça, ficou a curtir profundamente a

saudade de quem amava tanto, ele de certa forma

estava ali - certamente - vivo nas lembranças e em

seu coração.

68

EU E EU MESMO

Uma manhã há algum tempo atrás em que o sol

iluminava as árvores, as casas, as pessoas e tudo

mais. Aconteceu-me algo inesperado e que muitos

teriam por mentira... mas às vezes até eu penso se

isso foi real ou imaginário. Mas... vamos ao

acontecido. Encontrei-me por acaso... sim era eu

mesmo... só que alguns anos mais velho. Olhei-me

para mim mesmo (se é que existe tal construção...)

de forma surpresa (aliás confesso tentei fazer

heroicamente parecer tudo normal). Nós, meros

mortais resistimos acreditar em absurdos... foi o que

ocorreu... disse para mim “não está acontecendo” e

isso me ajudou a não acreditar (pelo menos para

aliviar a tensão e me enganar que não estava

acreditando). Portanto... para mim isso não estava

existindo... então relaxei e pude me observar com

um pouco mais de idade... Eu-futuro estava bem.

Quando este fato se sucedeu, eu tinha uns 18 anos

69

e meu eu-futuro, digamos que estaria com uns 37.

Tinha a mesma fisionomia, estatura, um pouco mais

de peso, cabelos escuros... Olhamos-nos. Não nos

falamos nada. Creio que ele deve ter estranhado

como eu mesmo estranhei tal fato (mas acho que

meu eu futuro já havia ignorado o passado – tudo

bem, pensei). Todavia... agi como se tivesse

acostumado a sempre me encontrar por aí... ele

também, talvez estivesse... Para não me

constranger mais do que já estava constrangido, e

quem sabe constrangendo. Afastei- me. Olhei-me

um pouco mais... desejei-me silenciosamente boa

sorte. E me distanciei. Hoje tenho a idade

aproximada em que me vi com 18 anos. Só uma

coisa não bateu, deve ter sido algum defeitinho na

linha do tempo, hoje sou calvo. Coisas que só o

tempo mesmo explica, um dia vou entender. Quem

sabe!?

70

O MERCADOR DA LIBERDADE

Ela estava ali imóvel. Muito bem embalada, com o

preço à altura do pescoço. Um slogan bem atrativo

em sua camiseta. A embalagem valoriza o produto. A

aparência era tudo. Estava limpinha. O perfume era

bom, uma fragrância agradável que não irritaria o

cliente e quem não passaria por despercebido. O

produto bom tem que ter um cheiro agradável. Ao

seu lado estava um outro produto sendo exposto,

tão bem produzido quanto ao primeiro, com todas as

características de aparência do lote, mas diferia-se

pelo gênero.

Vários consumidores passavam pela vitrine com

olhares cobiçosos. Uma boa olhada nos produtos,

outra nos preços e com sorrisos decepcionados

seguiam, todavia permanecia em seus olhares uma

indisfarçável cobiça, e mais um sonho a ser

realizado.

Como o mercado estava aquecido não demoraria

muito a serem arrematadas, essas ricas joias. Eles

certamente seriam vendidos! Mas, diferente de tudo

71

que a loja possuía, a esses dois espécimes havia

consigo a opção – antes de estarem ali - de

aceitarem ou não serem vendidos... Estavam ali

usufruindo o resultado de uma das coisas mais

belas que lhes havia sido entregue, o livre arbítrio.

Quem desperdiçaria tal negócio? Produtos de

primeira. Por isso não duraram mais que – para eles

quase que infinitos – quinze minutos para serem

vendidos, logo após a exposição. O negócio foi bom

para o proprietário da loja. Ambos foram vendidos

pelo preço de etiqueta. Sem pechincha, sem

barganha. O comprador só não tinha visto os olhos

dos dois, pois estavam vendados.

Ao chegar em sua casa o comprador, com toda

paciência que os anos foram responsáveis de

presenteá-lo, tirou as vendas, desembalou-os e os

recepcionou com fraterno abraço. Deu-lhes

alimentos, ofereceu-lhes abrigo – caso desejassem.

Ambos estavam à sua frente atônitos, nem

imaginavam - por não terem recebido em suas vidas

- a razão de tamanho afeto. Resolveram nada

indagar. Pois no contrato de compra e venda não

72

estavam as opções de emitir juízo, nem indagar. O

comprador falou: “paguei o preço por vocês e a partir

de hoje vocês estão livres de suas amarras... vocês

não são mais produtos, poderão emitir opinião e

gozar do prazer da contradição, além disso poderão

falar, reclamar, enxergar um mundo novo, amar,

chorar e fazer tudo que desejarem... o limite será o

infinito que se aponta aos seus horizontes. Sigam

seus caminhos – se isso for de seus desígnios –

sigam seus caminhos...”.

Sem nada mais a dizer, somente segurava um

sorriso tendo sua voz presa pela emoção. Lágrimas

corriam pela sua face.

Ambos olharam fixamente o bondoso homem, sem

ainda nada entender. Saíram lentamente à rua...

Olharam para a humilde casa onde residia o

comprador, a qual se situava em uma área central e

possuía um enorme terreno. À frente da casa estava

um homem recolhendo uma placa de “vende-se”; era

o homem da imobiliária.

O casal ainda continuou a caminhar lentamente na

calçada, esboçaram um sorriso, esboçaram um

73

entristecer e entraram sem pudores em uma outra

loja. Ofereceram-se novamente à uma nova

promoção. Mas agora tudo seria diferente, pediram

para que seus olhos não fossem vendados.

74

POEMA SEM VOLTA

Quero soltar meus versos, ao centro de uma praça,

solitariamente... Correrão inaudíveis aos que ali

passarem. Soarão totalmente voluptuosos, porque

ali não é um corpo que se desveste... É uma alma

que se desvela. Cairão os pássaros ao chão,

atônitos; argumentarão talvez os sonhos que ali se

aninham nas mais altas árvores... Talvez a senhora

que ali, marafona, me dê ouvidos, e chore de

saudade do tempo que não lhe faltava pão pela

riqueza de seu agridoce ofício, em que declamava

poemas tão concretos em tantos ouvidos

desconhecidos... Relerei Baudelaire destoando seus

intentos... Sentarei a olhar o Gato Preto que

escapou de uma parede qualquer aprisionado

metaforicamente, ou talvez denotativamente, por

Edgar Poe... Muitos me olharão, mas não me

verão... pois serei só um zunido empurrado pelo

Minuano estampido do Sul de minha Nação... Serei

sol a mim mesmo, lua para moça que espera

ansiosamente que me cure de minha insanidade,

75

serei o espirro provocado, por uma alergia ao novo,

a um misantropo... Quero, quiçá, me declarar

totalmente sacrílego à última flor do Lácio, por não

pensar nas consequências de tentar materializar os

descampados de minha alma... Sendo uma peste

que soa lentamente a separar corações... pai de

filho, mãe de filho, mãe de pais e filhos... Talvez me

sentirei culpado, por isso, e cairei por terra, e

levantarei dali humilde, humos, a reiniciar cada

versinho não tentando escalar inconsequente e tão

despreparadamente o topo dessa montanha que

nasce onde o sol se põe...

(marcio j. de lima)

76

DEIXE-ME CAMINHAR NA PRAIA

LENTAMENTE...

Deixe-me ser o que quero. Errar, acertar. Acertar e

errar. Deixe-me caminhar na praia lentamente,

pensando nas areias que cintilam me sentindo ali

eterno... Deixe-me caminhar amassando as folhas

secas de um bosque qualquer. Deixe-me expressar.

Escrever meus devaneios, ler o que é científico,

artístico, religioso, o que é exato, perene, solene...

Deixe-me desacreditar nos outros, em mim mesmo...

Deixe-me desdizer o que disse antes... Deixe-me ser

tão naturalmente... contraditório. Deixe-me voar alto,

correr de pés no chão – baixo... ir, vir, ficar, viver no

mínimo – mais um dia aqui deitado em minha rede

vendo um lago calmo com meu suco de caju ao lado

– de preferência – gelado! tomado adoçado com

dignidade... Deixe-me mentir minha idade, meus

sonhos... Deixe-me fazê-los motivos para viver

enxergando o doce que habita a cada tilintar do

relógio que vive pendurado ao alto da matriz... e que

77

controla os sinos que avisam algo maior que cerca

nossos dias... quem sabe seu sentido. Deixe-me

sozinho no meio desta multidão de solitários...

Deixe-me ter medo de raios... E viver boa parte de

meus dias tentando superar tal medo... Deixe-me

mais um dia enganar – com uma rima-clichê – meu

coração... Deixe-me pensar que o amor entre

homem e mulher - seja mais que um impulso de

procriação a melhorar a espécie, assim entendido

pelos ouvidos de minha ignorância... Deixe-me saber

omitir-me na hora certa, a não desmentir a verdade

criada e necessária, para que em algumas situações

haja paz... Deixe-me buscar a Arte, fazer Arte e

descobrir a cada amanhecer o contraditório daquilo

que engana a cada Ser em sua originalidade assim

ser... Amém!

78

HOMENAGEM AO CENTENÁRIO DO

NASCIMENTO DE VINÍCIUS DE

MORAES

Hoje comemora-se o centenário do nascimento de

um de nossos mais geniais intelectuais que marca

há décadas a nossa literatura, e por que não dizer,

nossa cultura, ele... Vinícius de Moraes.

Era um simples passar de uma moça. Seria para

qualquer um de muitos de nós. Porém para ele, era

o passar de uma Musa, sendo ela possuidora de um

"balançado (..) "mais que um poema" que era, com

certeza, poeticamente falando, na voz-poema de

Vinícius "a coisa mais linda que eu já vi passar".

Sendo assim, o momento que teria tudo para ser

trivial, ficou imortalizado na canção "Garota de

Ipanema", uma das músicas mais conhecidas no

Brasil e em muitos países, compostas por Vinícius.

Quando estava na faculdade, conheci um pouco

mais profundamente a poesia deste gênio. Seu

79

modo simples de escrever, porém de uma

eloquência sem igual. O fragmento de um de seus

poemas denominado "como dizia o poeta" foi um

dos que mais me marcou, como abaixo escrito,

inspirou-me em muito minhas produções.

"Quem já passou

Por esta vida e não viveu

Pode ser mais, mas sabe menos do que eu

Porque a vida só se dá

Pra quem se deu

Pra quem amou, pra quem chorou

Pra quem sofreu, ai

Quem nunca curtiu uma paixão

Nunca vai ter nada, não"

Poeticamente falando, ele viveu intensamente uma

obra que uniu de forma harmônica o mais rico de

nossa cultura, de um povo miscigenado, através da

música, poesia, teatro, integração de intelectuais e

suas produções culturais. O que sempre é ratificado

pelo testemunho de muitos artistas como Martinalha,

80

Martinho da Vila, Toquinho, Edu Lobo Tom Jobin e

muito outros que fizeram parte da vida deste homem

que é um orgulho à nossa cultura.

Por tudo que o poetinha contribuiu ao nosso cultural,

e muito que ainda contribuirá, que ecoa através de

sua longa produção literária, o Blog vem

homenagear este que sempre será um de nossos

maiores poetas da Literatura Brasileira. Que por ter

vivido, apaixonadamente, com certeza "teve tudo

sim!"

Texto por Marcio J. de Lima

81

CELEBRO A VIDA EM VERSOS

Perguntou-me um dia alguém por que escrevo

versos tão doces. Meus poemas, lembro-me bem,

por que ao mundo eu os trouxe.

Foi para cantar a alegria em uma bela manhã de sol.

Foi para encantar quem já sabia – vive bem quem

não vive só.

Sou um cantante enamorado, que esparrama seus

versinhos, e por um minuto deixa de lado – a vida

dura em espinhos.

Não esqueci da dor do pobre, nem da mãe que

chora a esmo. Nem todo o sentimento nobre, nem a

história de mim mesmo.

Não sou poeta egoísta, divido com todos os meus

versos, e por isso sou altruísta. E, quem guarda só a

si, é diverso.

Não fecho os olhos ao mundo. Não vivo no mundo

da lua. Mas, busco sentimento bem fundo, na dor

que encontro na rua...

Se às vezes me corre o mel num soneto, é que

canto a vitória buscada. E, o homem em seu ímpeto;

82

busca a vida, que é celebrada.

Não escorre a lágrima ligeira, sem que seja para um

bem futuro. Mesmo que seja com nada na algibeira,

forjando com o ouro, equilíbrio ao homem maduro.

Não desfaço de quem me questiona “por que meus

versos são tão doces”. Pois sabe que me emociona

louvar à vida, presente, a quem os trouxe.

83

UMA PEQUENA REFLEXÃO SOBRE LEITURA DE OBRAS LITERÁRIAS

Precisamos muito ganhar com a leitura! Nossa vida

de leitor não se restringe somente a leitura de livros,

revistas, jornais etc, lemos diariamente, também, o

meio em que vivemos. Todavia, no que diz respeito

aos primeiros, eles levam-nos a algo mais além, a

uma reflexão mais profunda sobre esse meio (ao

menos mais elaborada).

Nosso material publicado se destina à leitura e à

produção de material, pretenso literário (contos,

crônicas e poesias). Espero que esses “Pequenos

Rabiscos Literários” contribuam à consciência de

que existe uma extensa produção literária mundial

que pode nos encantar e nos ensinar muitíssimo.

Literatura é Arte. Sendo Arte a expressão do Belo

(conceito de Belo, tomado aqui como tudo que

desperta no homem uma reflexão profunda) temos

84

em nossos materiais produzidos e analisados o

simples objetivo, tornar a vida mais bela e agradável

aos nossos dias, e também a partir da Arte (por

também possuir - quase sempre - um alto grau de

elaboração estética) nos confrontarmos com essa tal

reflexão mais aprofundada, ao lermos a realidade

que nos circunda.

Lembre-se a vida imita a arte e vice-versa.

Nas viagens (literárias) ganharemos um bom vício, a

leitura; e com isso – como um corredor que treina

quase que diariamente e mantém ou melhora seu

desempenho, por este fato - poderemos adquirir

rapidez ao acessarmos os conhecimentos que se

escondem atrás deste tipo de linguagem e que se

somará às demais, certamente.

Portanto, viaje, desprenda-se, leia mais, e lembre-

se, leitura é hábito, e você pode começar por este

delicioso - que é viajar pela leitura de obras

literárias.

85

(Marcio J. de Lima)

86

UMA TERNA HOMENAGEM AOS PAIS

Um dia você vai chorar... Quem enxugará suas

lágrimas? Um dia você se sentirá fraco. Quem te

dará forças para caminhada? Um dia você poderá

estar doente. E quem te confortará e te aconselhará

a ter força para superar, além de te indicar os

caminhos a que não deve seguir para recuperar-te?

Um dia tuas verdades serão questionadas. Quem te

ajudará a ver que verdades são sempre

questionadas e esse é o normal da vida. Um dia

você verá que tudo é finito. Mas quem te convencerá

que vale a pena viver como se não houvesse um

amanhã... Um dia os poemas te serão duros e

impermeáveis não apresentando o mais doce de

suas metáforas. Quem te apontará as Belezas que

eles carregam? Um dia não sentirá o perfume das

flores. Quem te fará recobrar as suas fragrâncias,

atribuindo-lhes as suas verdadeiras importâncias?

Um dia, perderá em uma esquina qualquer seus

sorrisos. Quem te fará sorrir? Um dia você não terá

87

dentes... Quem te mostrará que vale a pena abrir a

boca para expressar teus sorrisos, mesmo assim?

Um dia a vida te pesará... Quem te fará ver o quanto

ela foi importante a todos que militaste? Um dia você

estará sozinho... E quem te fará companhia? Olha,

ao velho que te tornaste... Lembra da face a qual

hoje você espelha, ela te dará resposta a estas e

muitas outras perguntas...

88

ONDE ESTÁ A MUSA QUE ENFEITA MINHAS LEMBRANÇAS?

Onde está a linda Musa que enfeita minhas

lembranças? Onde estão os versos que povoam os

meus sonetos? Onde está a indignação que recheia

algumas de minhas crônicas? A que fim levaram

minhas rimas, minhas limas, meus desesperos e

desencantos; que, emprestados, colorem minhas

criações? Oh Musa que inspira os poetas! Que os

conduz ao onírico mundo de muitos poemas... Em

que ilhas fostes habitar para que eu possa te visitar?

E, oferecer-te um copo de vinho suave, e, com voz

caliente possas contar-me de seus amores, de suas

aventuras e das lembranças que vivestes... Oh

Musa, onde deixastes aprisionados meus versos?

Com que esfíngica chave trancastes meus tesouros?

Pois tão paupérrimo não consigo saldar o preço nem

ao menos de um hai kai... Quando retornarás?

Quem sabe à proa de um barco à deriva estejas tu,

oh Musa... ansiosa a esperar pelo socorro de seu

89

amado ... E quando ele vier te salvar, quiçá mais

uma história com ele possas compartilhar, e ele por

generosidade possa conosco também compartilhar.

Quem sabe em seu enredo haja uma nova Odisseia,

ou ao menos, um novo modo de amar... nem que

seja ao embalo de uma sonante voz a encantar por

no mínimo mil noites...

90

BOTECO

Ali seu mundo.

Chamam-no de João. Mas para ele tanto faz. Mal

não faria se o chamassem Raimundo, Beltrano,

Sicrano ou até mesmo José.

Pé de Boteco cravado em uma rodovia qualquer –

fachada velha, ares decadentes, risadas soltas,

conversas repetidas, lorotas cambaleantes, fígados

rotos, famílias em frangalhos – esse era o locos

amoenos de meia centena de trabalhadores a fugir

da realidade familiar, do trabalho, da crise social, da

crise da comunicação, da crise mundial; ali tudo se

podia, tudo se fazia, tudo se resolvia.

“Desce mais uma!” e a conversa corre solta.

“Ele é bom!” dizia o moreno sentado ao canto

solitário do extenso balcão – elogiando, talvez seu

distante amigo imaginário de outrora.

Os causos que a todos faziam rir esgotam-se com a

luz do vaga-lume na sombria noite de lua nova.

91

As aventuras são as mesmas desde que à primeira

vez pisou naquela tortuosa casa de álcool e smoke.

Ao esvaziar-se o último copo, João paga sua dívida

com a palavra. E o bar o cospe passando por suas

tortuosas escadas movediças e voadoras.

O pé nas nuvens, ainda a escutar seus amigos

imaginários.

Segue para sua segunda casa. Lá, mais do que

nunca: rei. Bate à mesa. Ruge. Cospe-se. Reclama-

se. O lampião já não lhe serve, pois seu líquido

queima-lhe a garganta.

Os guris? A amada? Sem brincadeiras, sem poesia,

sem o quente beijo.

“Onde aprendeu essa língua?” – reclama a esposa.

“Como é engraçado o papai, mamãe. Sempre nos

traz doces. Como ele é bom!”

E o céu acende mais uma centelha de esperança. O

dia pula cedo da cama.

Acende-se o fogão velho. O café e o pão surrado na

92

mesa. O lombo surrado de um honesto trabalhador,

na cadeira. O velho beija sua rainha. E com um olhar

arrependido clama a Deus um golpe de misericórdia

“despeja-me Senhor de minha primeira casa!”

(Marcio J. de Lima – 02/12/2010).

93

UM HOMEM CAÍDO NO CHÃO

Há um homem caído no chão. Quem se importa?

Bala ao peito. Sangue pintando a calçada. Um

sonho estendido no chão, uma esperança... Em

casa filhos riem inocentes. Um sonho desenha no

piso sua silhueta. Mas quem se importa? Todos

passam apressados, resignam-se com a lentidão do

trânsito, com a ignóbil figura, raquítica, de mãos

encouraçadas, de mochilas nas costas, com sua

térmica quebrada, marmita com um resto de comida

dando nojo nos transeuntes. Envergonha-lhes. O

ônibus vomita pessoas... Aos chutes o corpo anda.

Que culpa tinha este cristão? Todos atônitos com

seus anseios bradam “liberem a rua!” ”já é hora de

minha novela.” “Logo começa o jornal.” Todos

seguem... A chuva cai e lava o sangue... Lava a

discreta cal que ainda permeia nas mãos de nosso

pitoresco herói. O corpo está só. Jogado à rua em

frente à igreja. Ouvem-se primeiras cantigas

cantadas pelas beatinhas, pontualíssimas às sete

94

horas da noite... O sino toca... A plateia canta

animada o canto de acolhida. Uma criança

desobedece a mãe e sai correndo na chuva levando

em suas pequeninas mãos um cartãozinho com o

retrato de Nossa Senhora do Guadalupe. Ela para

tristemente em frente àquele moribundo corpo,

deposita em suas mãos a santinha. A mãe

preocupada com a filha, dissipa-lhe qualquer

vestígio de realidade, grita quase que desesperada

agarrando a mão da pequenina “venha aqui filha o

titio já sara!” A criança olhando para trás joga um

singelo beijo àquela figura. A celebração continua

calorosa.

(Marcio J. de Lima) 02/05/2011

95

BORBOLETA

Pobre moça que padece de sofrer de ingratidão.

Embora alegre, sei que segue na correria do

mundão. Não teve tempo de escrever, nem para

agradecer o milagre que agora narro, tão alegre de

prazer.

Aconteceu em uma clara tarde, os pássaros a

cantar, eis que passava bela; encantando até o mar.

Assobiava seus dourados anos, a vida a curtir; na

desfé sempre vivia, não se preocupava com o porvir.

Era estudo, casa, amigos, festas, bem próprio da

juventude, era como se eterna fosse, vivia sempre

livre pela cidade. Seus velhos esquecia, não

lembrando mais da infância. Fazia planos para o

amanhã, condizente com a ganância.

Pensou em tantos mundos, em tantas opções, tinha

tempo para tudo, mas esquecera das orações...

Retomando àquela tarde da qual eu lhes falava;

infelicidade nunca é certa; mas aconteceu onde ela

estava. Foi um carro desgarrado que a pegou por

96

um acaso – tempo depois fiquei sabendo com

detalhes todo o caso... A tristeza habitou seus dias a

partir desta tarde. Como uma chama ardeu sua

alma, com a ação de um ébrio, fraco, covarde...

Vários dias no hospital, a recuperar-se do ocorrido,

era a frieza que fazia seu vigor ser corroído, que era

dia a dia semeado da saudade de seus passos. Que

ia pouco a pouco deglutindo a alegria de seus

traços...

E o tempo foi passando, e o tempo fez-se amigo,

oportunizou ficar mais com seus e também mais

consigo...

Conhecendo muito mais, conheceu o que não

conhecia até. Olhando as crianças que brincavam

em seus risos, encontrou-se com a fé... Quis buscar

saber mais, donde vinha a esperança prometida há

tanto tempo por um Deus que se fez criança...

Os dias se passavam, em sua frente a natureza, era

rica em sua composição, diversificada em beleza.

“Se o Pai faz muitos milagres, por que em mim um

não faria?” Decidiu então pedir, ao Grande Deus,

todos os dias... Era busca incessante, oração,

97

fisioterapia. Buscou apoio também nos braços da

Virgem Maria...

Eis que chego de onde parti, da minha humilde

narração, pois ponho os meus versos a traduzir um

privilegiado coração...

Eis que à sua frente passa uma linda borboleta, bate

as asas intercalando cores preta e violeta...

Dá nela uma vontade de correr ao observar lindo

inseto, que celebra a vida em plenitude em seu viver

tão modesto...

Eis que uma perna se mexe, a outra a seguir, com

os braços se apoia, com seu corpo a erigir...

O milagre se opera, desde então começa a andar,

recupera como antes, sua beleza como o mar...

Os dias se sucedem, os amigos se reaproximam, se

afasta pouco a pouco, dos que de coração a

amam... dos quais quando está triste sempre a

reanimam.

Na correria do dia a dia, esquece-se de orar.

Agradecer é parar, e parar não quer pensar...

De braços abertos ficaram família, Deus e Maria.

98

Eles não querem o mal da moça, e cada um deles

diz “te amo, siga em frente minha filha!”.

(Marcio J. de Lima)

99

O BOITATÁ

Olá meus amigos! Eu não sou homem de contar

história à toa não. Sou trabalhador que valoriza o

tempo, e sei o quanto ele é precioso, embora saiba o

quanto somos sedentos de uma boa conversa à

moda antiga com todo respeito e bem contada...

Sendo assim, vou contar um causo para vosmecês

que não é que eu queira pôr medo em ninguém, mas

aconteceu de verdade, tá aqui cumpádi Gaudôncio

que não me deixa mentir.

Então, vamos ao que tenho que contar... Era numa

tarde de quinta-feira da semana santa, compadre

Beraldino, homem bravo domador de cavalo, não de

muita corpulência, mas de uma força sem igual, de

peleja dura, mão calejada que nem que eu, me

convidou pra ir à Chácara dele, para mor de

conhecê-la e ver o que tinha feito por lá. Em um

momento meu cumpadi ficou meio que amuado,

disfarçado, como alguém que tem uma coisa muito

importante pra contar... Eu que sou homem vivido,

100

que já vi muita coisa nessa vida, saquei em um

momento que era batata o que compadi tinha a me

assuntar.

E, pela expressão dele não era pouca coisa não.

Num repente ele me confessou que tinha

conseguido domar um Boitatá... E eu precisava

ajudá-lo com a fera... por saber de minhas

empreitadas com a besta. Mas confesso que nesses

assuntos de domar o danado eu não era muito bom.

A curiosidade acendeu...

Um silêncio caiu juntinho c'a noite. Confesso que por

já ter enfrentado o dito e não ter obtido êxito, fiquei

fã de meu cumpádi. Ele, como homem que já sofreu

muito – ao meu ver – silenciou como que já abatido

pelo ocorrido... E, eu continuei...

- Ora cumpádi, este bicho me surpreendeu quando

eu trabaiava à noite numa serraria, como vigia. Era

eu e mais outro amigo de profissão que tinha que

aluitar a noite inteira espantando a assombração

com medo que ele incendiasse toda madeirama lá

guardada. Te conto, era uma cobra de fogo que

pilampeava serpenteando uns quatrocentos metros

101

para cima e vinha mais ou menos uns sessenta

metros de onde nóis tava.

(Pausa... o locutor olhava ao longe tentando lembrar

o que ocorreu com olhar assustado meio que

ofegante, continuou)

- Cumpádi, vampiro se mata com estaca de madeira

no coração. Lobisomem com bala de prata, também

no coração... Mas Boitatá não... meu filho pesquisou,

disse que na nossa história ele foi já visto desd'o

descobrimento do Brasil pelo Padre Anchieta e vem

assombrando até hoje... sem que se descobrisse um

jeito de acabar com o dito cujo – Boitatá. Mas, creio

que pelo que venho assuntando com o povo... deve

ser com muita força e fé que se derrota esse bicho...

Mesmo que muitos digam que ele tem até serventia,

que é proteger as florestas... era o que desconfiava

quando cuidava da serraria, até achava que era

castigo... mas na verdade – não sei bem!

(Pausa)

- Mas, como tava falando – por isso que te invejo

meu cumpádi!

E a conversa rolou mais umas duas horas sobre a

102

temida assombração... O narrador, continuou...

- Numa das empreitadas, meu amigo de trabalho

tinha me contado que um amigo dele tinha

capturado um Boitatá. Amarrado ele se debateu a

noite inteira. No dia seguinte era um homem, assim

que nem que nós... de carne e osso. Muita vergonha

ele ficou, achando que era uma armação, descobriu

que se tratava de um amante de uma cumádi com o

cumpádi dela... É, dizem que tem Boitatá que nasce

daí... se não me engano... não me alembro bem...

Houve muito riso nesse momento. Quebrando-se um

pouco da tensão.

Pensei: “Se meu cumpádi me convidou para

conhecer ele, então homem que não havia de ser

aquele Boitatá...”

O sábado chegou... Convidei cumpádi Gaudôncio e

meu afilhado, já quase hominho, para ir junto à

chácara. Lógico não falei nada pra eles. Queria ver a

cara deles quando vissem o Boitatá, pois sempre

duvidaram de minhas histórias... Só não tinha bem

certeza se era da mesma forma que eles conheciam.

Uma cobra de fogo. Mas acho que de dia não ia

103

aparecer muito bem o fogo...

Chegamos lá. Compadre Beraldino estava laçando.

Víamos de longe o campo em que era praticado o

tiro de laço... Compadre Beraldino nos enxergou e

se dirigiu a cavalo nos receber na porteira, faceiro

que ficou. Comentou da laçada, perguntou se

lançávamos, e todos dissemos que não. Sem

cerimônia, nos perguntou se tínhamos vindo para

passar a noite por lá para pescaria e pra roda de

pinhão com chimarrão e uma fritada de tilápia no

disco e reforçou o convite pra gente pernoitar por

lá... Tínhamos preparado o básico para passar a

noite por lá... porque não estávamos muito convictos

que passaríamos a noite na chácara... Mas pra

pescaria estava todo material preparado... sempre

carregava minha caixa de pesca no carro...

Depois de um dia bem agitado no campo a noite

principiava... Cumpádi Beraldino se lembrou do

bicho. Como que uma certa preocupação assolou-o.

- Ah cumpádi – falou ele. Espero que vocês não

tenham medo. São homens vividos, o teu guri

cumpádi já se recolheu, restando só nós adulto por

104

aqui. Agora posso apresentar a vocês meu Boitatá.

Olhou-nos com olhar de uma certa malícia... talvez

por exibir sua vaidade...

Compadre Gaudôncio não entendeu muito o que

estava ocorrendo, pois eu não havia comentado...

Riu discretamente. Mas não falou nada, achando

que se tratava de uma brincadeira... Confesso, eu

estava um pouco ansioso e só. Não tava muito

espantado, pois conhecia a ousadia do cumpádi... e

ele chamou...

- Vem cá Tatá!

Já tinha dado até nome pro bicho que coragem

manter um certo afeto pela assombração, tinha

domado muito bem ela.

Meu coração gelou. No meio da mata escura só vi

dois olhos muito brilhantes e arregalados a se

mexerem em nossa direção. Não sabia se

aguentaria... Mas fiquei ali firme. Não olhei para os

meus compadres. Só mirava, arrepiado, a mata.

Minha história correu frente aos meus olhos. Quanta

luta travada com aquela figura lendária – para

muitos que não a conhecia como eu. E agora ela

105

estava ali na minha frente. Domada, mas não sei se

menos perigosa...

Eis que se aproxima fazendo um certo barulho na

mata. Vejo dois pares de chifres, como narrado por

alguns povos indígenas, o que o tornava mais

assustador ainda. Imaginei neste momento como o

minotauro... Como explicava esses dias na tevê –

metade homem metade touro... Era só imaginação

esta figura – lógico que não era assim... Se tratava

do Boitatá. É realmente tinha cabeça de vaca ou de

touro, sei lá, só sei que tinha uma mancha branca

muito luminosa no centro da cabeça em forma de

nuvem. Tonto, tentei falar... Mas não consegui. O

tempo não passava, parecia tudo congelado. O que

demorava quase uma eternidade ocorrer o que

ocorreu... Mas aconteceu... Saiu da mata um boi.

Sim era um boi! Corpulento, se aproxima de

compadre Beraldino, que põe sua mão sobre ele e

ele para.

Balançando a cabeça em sinal de aprovação penso:

“ realmente, dessa forma ainda eu não tinha ouvido

falar do Boitatá se manifestar quando domado –

106

aliás é a primeira vez que ouço falar nisso.”

Compadre Beraldino, um forte, fez um bom trabalho!

Podia ver no olho da fera seu fogo preso ali e esse

com certeza não mais apavoraria ninguém.

(Marcio J. de Lima)

107

O BOLO DO DILEMA

Eu e minha irmã a juntar latinhas.

Antigamente se chamava assim, (catar latinhas),

hoje a maioria das pessoas fala apanhar recicláveis,

ser operador ecológico, etc.

Não se tinha bem ao certo do valor deste

trabalho para o meio ambiente, nós juntávamos para

ajudar no orçamento da família. Nos dia atuais,

muitos pais de família tiram seus sustentos desse

ofício.

Fazia esse serviço com um carrinho feito de

madeira para ajudar no trabalho, eu mesmo o

produzi, o qual era carregado até quase não caber

mais nada.

Minha irmã ia junto comigo algumas vezes, o

que era conseguido por um insistente pedido “Mãe,

deixe eu ir junto!”. Ela punha um boné na cabeça

para esconder seus cabelos compridos para

disfarçar que era uma menina, para diminuir o risco

de alguma violência – o que hoje seria quase que

108

inconcebível. Mas enfim, naqueles tempos não se

havia falar em violência como hoje...

Certo dia, um casal de desconhecidos, em um

carro, se aproxima. E nos pergunta:

- Vocês querem este bolo?

Acenamos envergonhados com a cabeça, que “sim”

Estava feito o dilema. Minha mãe sempre

aconselhou a não pegarmos coisas oferecidas por

estranhos. Que bolo! Parecia delicioso. Hoje sei que

era um rocambole de amendoim. A minha irmã

segurava o bolo e ficava próximo ao carrinho

enquanto eu continuava a entrar no mato dos

terrenos baldios procurar recicláveis, que naquela

época em Guarapuava dos anos 90 era muito

comum serem jogados nesses, o que era favorecido

pelo serviço de limpeza pública deficitário.

A minha cabeça enquanto o tempo se seguia só

estava no bolo e no dilema, comê-lo ou não comê-lo.

Decidimos, mas com muito dó, a jogar o bolo e não

arriscarmos... Fiquei com a imagem daquele dia.

Minha irmã, anos depois me confidenciou.

109

"Realmente o bolo era uma delícia!"

Marcio Lima

110

NOITE DE NATAL

Quem à porta bate? Quem sabe Papai Noel? Quem

sabe um patrão em busca de trabalhadores para

colheita de alguma plantação? Ou será a mulher do

recadastramento para receber, de graça, o leite?

Quem sabe alguma pastoral na difícil missão de

saciar pobres famintos? Quem à porta bate? O

pessoal dos vicentinos com suas misericordiosas

cestas natalinas para alegrar o rosto de nossas

minguadas crianças? Quem sabe não seja só o

vento... Queira que não seja só tormento... Quem

sabe esperança... Ainda que tardia a nutrir nossos

rebentos a não repetir uma dura sina... Quem sabe a

verdade - cama quente – comida de gente... Que

não seja só a Clemência – mas a justa troca pelo

suado suor do serviço... Quiçá uma pueril criaturinha

que subiu a ladeira levando a seus pais a alegre

notícia – Deus Menino Nasceu e que este eco que

tilinta não seja somente de esperança, mas sim da

111

esperada realidade que se milagriza: homens

repartindo - vidas se somando.

Marcio J. de Lima

112

OLHOS BRANCOS

Um frio corre-lhe a espinha... Aquela ponte do Rio

Coutinho nunca fora tão extensa. Donde veio aquele

vulto? Movia-se a passos firmes e lentos... Aqueles

olhos brancos... Aquela figura toda coberta de barro,

fita à distância os olhos que estão alertas ao brilho

da luz alta dos faróis do carro que vem na outra

pista. Ele se aproxima - lentamente - em sua

direção. E o tempo paralisado parece não passar. A

luz de seu carro é baixada para não ofuscar a visão

do motorista que vem. A figura ao meio da ponte

desaparece... Sua razão não entende. Mas não ousa

perguntar neste momento. Qual seria a pergunta?

Qual seria a resposta? Fala lentamente à esposa

que lhe faz companhia “Para onde foi aquela figura?”

A mesma com voz quase sumida lhe responde “Não

sei! Você também viu?” O silêncio impera. A

resposta não vem...

113

MAIS UM BRASILEIRO

A chuva caía fria... Uma criança nos braços. Lá vai

mais um brasileiro. Chove mais ainda. O ponto de

ônibus é longe. O barro pesa-lhe o calçado. A

tristeza abala o seu coração. Seu filho nos braços.

Aquela raquítica figura, esquálida, de tez

acinzentada. Sua dor ainda mais forte com a febre

dele em alta, e o ofego se faz mais intenso.

Respirar... difícil. Durará mais algumas horas,

minutos...quem sabe?

Neste momento, não sabe se reza, ou se lamenta

por sua situação, ou se enfurece por toda dor no

mundo. Todavia, sabe que não deve desistir. O ponto

do lotação ainda está muito longe, chegar lá nunca

foi tão difícil. Ao se aproximar do ponto, lembra-se

que em seu último acesso de raiva participara da

destruição do mesmo. Na ora lhe parecera certo, era

o momento que se sentira poderoso. Todo seu

bando enfurecido mandara muitas pedradas lá –

assustou todo o bairro – era o poder – sua marca

114

registrada... Mas agora... que falta fizera o abrigo.

Como ficava numa área quase que inóspita, um

pouco distante de um lugar coberto, teria que ficar

ali... A chuva continua a judiar. A quem recorrer?

Ninguém - era sua resposta. Não tinha ninguém com

quem contar. Os amigos eram todos quebrados,

desempregados, desajustados... Talvez deveria

bater em alguma casa e clamar por ajuda. Era por

uma vida. Era justo... Mas quem abriria a porta a ele,

já que todos o temiam...

Tudo parecia ao seu redor melindrar seu coração... a

raiva o assolara. Encontraria respostas neste

momento de turbilhão de sofrimento? Lógico que

não era momento de pensar e sim, agir... Mas de

que jeito? Sabia que deveria esperar ali...

O lotação já viria... E, de fato logo após alguns

minutos um par de luzes – quase que celestes –

queimava o chão com milhares de vaga-lumes a cair

– pelo efeito da chuva... A esperança e a alegria

quiseram brotar naquele árido coração – ressecado

pela injustiça social... quando... o lotação acelera e

115

passa.

O motorista olha pelo para-brisa e tem a certeza que

desta vez não caíra em nova cilada. Afinal, com dois

assaltos na mesma semana, não contaria com

salário suficiente para cobrir o caixa, e seus filhos –

desta forma - passariam fome.

(Marcio J. de Lima)

116

DIALÉTICA AMOROSA

No princípio foi assim – um olhar perdido, um toque

casual... Um “oi” meio preso. Sentiu-se um calor,

algo tão bom...

Em meio a milhões de coincidências e tamanhas

congruências, duas algumas se convergiram – pelo

menos naquele instante – em uma só.

O tempo passa – e passa impiedoso. Vêm os

rebentos e frutificou um amor.

Pela correria do dia a dia, vêm as insanas buscas

que atordoam as enamoradas almas – e estas não

poderiam deixar de sofrer de tal mal, de se sentirem

atônitas...

Neste instante, tudo parece à deriva, e ficou assim

por um bom tempo. As histórias perderam a graça,

as amarguras vividas a dois deixaram de ensinar na

mesma intensidade que ensinavam, e perderam o

seu valor salutar ao casal – pelo menos

aparentemente...

117

Eis o momento da culpa. Quem é o culpado? Lógico

que não seria diferente – e a resposta óbvia – o

outro. Assim é mais fácil de responder – assim é

mais fácil de concluir – assim é mais fácil – é para se

proteger...

Saíram os pombinhos em uma – pretensa – busca

maior, primando à felicidade... que tinham a

impressão que não morava onde moravam.

Perdem-se os caminhos... E duas almas tão

solitárias e moribundas, reencontram-se, e, como se

tudo de ruim tivesse se exaurido, renasce um novo

amor – renasce o mesmo amor.

118

O PROTESTO

Com a onda de revolta contra tantas mazelas

sociais, o povo saindo às ruas para protestar por

tantas coisas mais que justas, minha tia motivada

por isso também resolveu protestar. Viu que só

quando há protesto é que muda alguma coisa – (in)

felizmente é esta a realidade.

Pois é... ela diz que meu tio é um tirano e que não

escuta sua voz. Embora o meu tio só tenha voz para

dizer “Sim amô!”. Dias atrás minha tia resolveu

comprar uma bolsa nova e meu tio a alertou que seu

salário não subira muito e que a inflação havia

comido parte do que ganhava e já não aguentava

fazer hora-extra em seu trabalho e almoçar pão com

mortadela – se bem do jeito que a coisa anda só vai

almoçar pão. E isso foi a gota d'água e desencadeou

uma reação muito... muito... do tipo da minha tia –

um jeito particular de sentir ódio que não sei explicar.

Então as reivindicações de minha tia eram: 1) ser

mais ouvida; 2) ganhar uma mesada mensal que

119

desse para fazer suas compras pessoais, pois não

tem salário e se dedica exclusivamente aos afazeres

domésticos; 3) ter pago seu INSS para um dia gozar

de aposentadoria; e o quarto e mais nevrálgico

ponto 4) levá-la às compras no final de semana, pois

não aguentava mais a dor nas varizes ao carregar

suas compras nos ônibus lotados, além da longa

espera no ponto de ônibus.

Meu tio pensou em criar uma comissão para ouvir

minha tia. E foi o que fez. Chamou seus cinco filhos

e nomeou o mais novo de oito anos e o mais velho

de quinze para participar da análise dos pedidos. O

mais novo pediu mais explicações para a sua irmã

do meio do que era salário, INSS e não entendia

porque seu pai não levava sua mãe de carro, pois

ele ficava na garagem a maior parte do tempo.

Depois de um longo debate depois de alguns dias

nas lan houses para pesquisarem o tema e

chegarem a algumas conclusões, continuaram os

trabalhos, pois o mais velho não queria conversar a

respeito – não tinha muita paciência com o mais

120

novo - enquanto ele não soubesse o que estava em

pauta. A comissão ficou com a análise por uns vinte

dias, o que levou minha tia a protestar novamente

deixando toda a criançada sem almoço por dois

dias. Depois da irmã do meio fazer o almoço nesses

dias - colocou mais celeridade ao processo.

Resolvido o impasse a comissão deu continuidade

aos trabalhos, com dois pedidos de queda do

representante mais novo, por desídia, o que foi

indeferido por maioria em uma plenária com a

participação de uma maioria absoluta em que até a

interessada, minha tia, votou.

A votação tinha sido tensa. Minha tia acordou muito

nervosa no dia seguinte. Criou alguns cartazes e

colou por toda a casa. A frase mais marcante foi

“Não sou escrava Zé! Tenho meus direitos!” Todos

viam a preocupação na cara de meu tio. O mais

novo até ficou com dó de meu tio por sua cara de

“gato de botas no filme do Sherek”. A minha prima

do meio era toda mãe – até a ajudou na confecção

dos cartazes. O mais novo esboçou uma

121

argumentação quase que ensaiada – ensinada às

escuras por meu tio, o que foi refutada pela brilhante

atuação de minha prima (do meio).

Chegou o grande dia. Depois de acalmado o

plenário. Deu-se início a votação. A minha tia

ganhou por maioria absoluta. Todos apoiavam a

minha tia, até meu tio, indiretamente. Todos diziam o

que não deve ocorrer nesta casa é baixaria, e todos

concordavam com isso, embora algumas vezes os

ânimos tenham se exaltado.

Dois meses se passaram... minha tia está feliz. Ela

conseguiu ser mais ouvida. Mas ainda não teve

paga nenhuma parcela do INSS, ganhou no lugar da

bolsa, uma sacola ultraecológica para as compras,

com um fundo retangular para parar em pé no

ônibus e; meu tio justificou por que o carro não saía

da garagem... estava estragado, o dinheiro do mês

ainda não foi suficiente para consertá-lo.

(MARCIO J. DE LIMA)

122

O MERCADOR DA LIBERDADE

Ela estava ali imóvel. Muito bem embalada, com o

preço à altura do pescoço. Um slogan bem atrativo

em sua camiseta. A embalagem valoriza o produto. A

aparência era tudo. Estava limpinha. O perfume era

bom, uma fragrância agradável que não irritaria o

cliente e quem não passaria despercebida. O

produto bom tem que ter um cheiro agradável. Ao

seu lado estava um outro produto sendo exposto,

tão bem produzido quanto ao primeiro, com todas as

características de aparência do lote, mas diferia-se

pelo gênero.

Vários consumidores passavam pela vitrine com

olhares cobiçosos. Uma boa olhada nos produtos,

outra nos preços e com sorrisos decepcionados

seguiam. Todavia, permanecia em seus olhares uma

indisfarçável cobiça, e mais um sonho a ser

realizado.

Como o mercado estava aquecido não demoraria

123

muito a serem arrematadas, essas ricas joias. Eles

certamente seriam vendidos! Mas, diferente de tudo

que a loja possuía, nesses dois espécimes havia

consigo a opção – antes de estarem ali - de

aceitarem ou não serem vendidos... Estavam ali

usufruindo o resultado de uma das coisas mais belas

que lhes havia sido entregue, o livre arbítrio.

Quem desperdiçaria tal negócio? Produtos de

primeira. Por isso não duraram mais que – para eles

quase que infinitos – quinze minutos para serem

vendidos, logo após a exposição. O negócio foi bom

para o proprietário da loja. Ambos foram vendidos

pelo preço de etiqueta. Sem pechincha, sem

barganha. O comprador só não tinha visto os olhos

dos dois, pois estavam vendados.

Ao chegar em sua casa o comprador, com toda

paciência que os anos foram responsáveis de

presenteá-lo, tirou as vendas, desembalou-os e os

recepcionou com fraterno abraço. Deu-lhes

alimentos, ofereceu-lhes abrigo – caso desejassem.

Ambos estavam a sua frente atônitos, nem

124

imaginavam - por não terem recebido em suas vidas

- a razão de tamanho afeto. Resolveram nada

indagar. Pois no contrato de compra e venda não

estavam as opções de emitir juízo, nem indagar. O

comprador falou: “paguei o preço por vocês e a partir

de hoje vocês estão livres de suas amarras... vocês

não são mais produtos, poderão emitir opinião e

gozar do prazer da contradição, além disso poderão

falar, reclamar, enxergar um mundo novo, amar,

chorar e fazer tudo que desejarem... o limite será o

infinito que se aponta aos seus horizontes. Sigam

seus caminhos – se isso for de seus desígnios –

sigam seus caminhos...”.

Sem nada mais a dizer, somente segurava um

sorriso tendo sua voz presa pela emoção, lágrimas

corriam pela sua face.

Ambos olharam fixamente o bondoso homem, sem

ainda nada entender. Saíram lentamente à rua...

Olharam para a humilde casa onde residia o

comprador, a qual situava-se em uma área central e

possuía um enorme terreno. À frente da casa estava

125

um homem recolhendo uma placa de “vende-se”, era

o homem da imobiliária.

O casal ainda continuou a caminhar lentamente na

calçada, esboçaram um sorriso, esboçaram um

entristecer e entraram sem pudores em uma outra

loja. Ofereceram-se novamente a uma nova

promoção. Mas agora tudo seria diferente, pediram

para que seus olhos não fossem vendados.

(Marcio J. de Lima)

126