Livro Ritmo e Subjetividade

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Autor: SANDRO RODRIGUESEditora: LUMINARIAISBN: 8579615704, 9788579615702 A subjetividade contemporânea emerge no cruzamento de tempos diversos: do caos nascem os meios e os ritmos. Através da música e da filosofia, Ritmo e subjetividade explora e confronta temporalidades distintas, porém inseparáveis: um tempo pulsado ou estriado, que, sob o regime de Cronos, mede e fixa a identidade de territórios, formas e sujeitos; e um liso, amorfo ou não pulsado, sob o regime do Aion, que é o tempo da desterritorialização das formas subjetivas.

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  • EDITORA MULTIFOCO

    Rio de Janeiro, 2011

  • EDITORA MULTIFOCO

    Simmer & Amorim Edio e Comunicao Ltda.Av. Mem de S, 126, LapaRio de Janeiro - RJ

    CEP 20230-152

    CAPA E DIAGRAMAO

    Guilherme Peres

    Ritmo e subjetividade: o tempo no pulsado

    RODRIGUES, Sandro

    1 Edio

    Setembro de 2011

    ISBN: 978-85-7961-570-2

    Todos os direitos reservados.

    proibida a reproduo deste livro com fins comerciais sem

    prvia autorizao do autor e da Editora Multifoco.

  • Dedico este livro a todos que se ocupam coma produo de novos estilos de vida.

  • NOTA PRVIA

    Este livro uma reviso e adaptao da dissertao de mestrado Tempo no pulsado: ritmo e subjetividade, defendida no Programa de Ps-Graduao em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, na linha de pesquisa Subje-tividade e Clnica (2007-2009). Nesta adaptao optei por utilizar notas de rodap e notas de fim com finalidades precisamente distintas. As primeiras, indicadas no texto por nmeros decimais, buscam estabelecer conexes sub-terrneas com a superfcie do texto, de tal maneira que sua leitura torna--se estratgica para uma apreenso esttica dos temas que o livro aborda conceitualmente. Por outro lado, as notas que se encontram agrupadas no final do volume esto indicadas no texto por algarismos romanos e visam esclarecer pontos especficos, com base na pesquisa que serviu de suporte ao presente livro. A deciso sobre ler ou no as notas de rodap e/ou as notas de fim fica a seu encargo. Afinal de contas, o livro agora seu: leia-o quantas vezes e de quantas maneiras desejar.

    Gostaria de agradecer minha me; aos amigos Isabela Montello, Lou-ise Simes, Ktia Abreu, Pablo Pablo, Pedro Bonifrate, Lis Lancaster, Au-gusto Malbouisson e todos os demais das bandas Filme, Supercordas, Jesus Coca, Tonguemische, Zumbi do Mato, Botnicos, Terrorism in Tundra e Acessrios Essenciais; Ftima e ao Fernando, do Plano B; aos filsofos M-rio Bruno e Auterives Maciel; aos professores e alunos do PPG em Psicolo-gia da UFF, em especial ao Edu Passos, Cristina Rauter, Alice de Marchi, Fernanda Ratto, Cristiane Knijnik e todos os demais que colaboraram direta ou indiretamente para a pesquisa; por fim, CAPES, pelo financiamento.

    Em especial, gostaria de propor um brinde, muito respeitoso e rigo-rosamente paradoxal, memria de meu pai, Luiz Cesar Rodrigues (1953-2010), e de minha av, Nilza Machado da Cunha (1935-2011): tears!

  • SUMRIO

    PREFCIO: Afinidades eletivas entre ritmo e subjetividade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

    APRESENTAO: Alice e perguntas sem resposta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

    1. RITMO E PRODUO DE SUBJETIVIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27Sons, rudos e silncios: das pulsaes partitura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28

    Das distines na pauta unidade do tempo musical . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37

    Os compassos e as unidades de tempo binrias e ternrias . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46

    Subjetividade e tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53

    Pulsao/ritmo: metro e fluxos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55Hbito e presente vivo: a primeira sntese do tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

    Memria e passado puro: a segunda sntese do tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68

    Os paradoxos do passado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73 Notao musical e memria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78

    2. O TEMPO NO PULSADO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81Pierre Boulez e a msica serial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84

    Tempo pulsado e tempo no pulsado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87O liso e o estriado: controle e disciplina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91

    Blocos de durao e diagonais: estruturas em devir . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96

    A aliana do material com a inveno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102

    Blocos de devir: um jogo de criao integral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103

    O eterno retorno e a terceira sntese do tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106

  • 3. SUBJETIVIDADE: RITMO E ESTILO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115Ritornelo: territrios, formas e sujeitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117

    Cronos e Aion . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132

    Os incorporais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 136 O acontecimento puro e a superfcie . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 142 O antirritmo e a cesura: situaes-limite e afirmao de paradoxos . . . . . . . . 146Do caos nascem os meios e os ritmos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151

    Ritmo e individuao: devir-msica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155

    Paisagens sonoras, cores audveis e personagens rtmicas . . . . . . . . . . . . . . 159Estilo e produo de subjetividade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163

    Da Capo: consideraes transversais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 166

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169

    NOTAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175

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    Afinidades eletivas entre ritmo e subjetividadeEDUARDO PASSOS

    H entre as paixes uma delicada afinidade (Verwandtschaft) qumica, em virtude da qual elas se atraem e se repelem, se combinam, se neutralizam, se sepa-

    ram novamente e se reconstituem. (Gthe. Carta a Schiller de 23/10/1799)

    Se as cincias naturais algumas vezes se utilizaram de comparaes morais para ilustrar suas discusses, Gthe no romance Afinidades Eletivas (1809) inverteu o sentido da metfora, tomando emprestado da cincia uma imagem para pensar o tema do amor. O livro de um qumico sueco teria dado a pista para o poeta. Gthe, interessado pelos temas da cincia como os fenmenos da eletricidade e do magnetismo, leu a obra de Bergmann (De attractionis electivis), traduzida para o alemo em 1785: Die Wahlverwandtschaften. Nessa mesma poca da redao do romance, o autor conversava assiduamente com o filsofo Schelling, professor em Iena que no seu Ideias para uma filosofia da natureza (1797) toma a afinidade qumi-ca como expresso da lei fundamental da atrao e da repulso universais. Arte, cincia e filosofia em afinidades eletivas. a que estamos sendo convi-dados para nos situar, nesta regio limite entre estes domnios, l onde eles se atravessam formando um tecido impuro, hbrido.

    O livro Ritmo e Subjetividade de Sandro Eduardo Rodrigues nos lana em um campo problemtico onde se entrecruzam os estudos da subjetivi-dade e da msica. A pesquisa transdisciplinar criou seu problema no limite entre a investigao do ritmo na linguagem musical e na produo de subje-tividade. Entre estes domnios da pesquisa, um tema comum os entrelaa: a experincia do tempo tempo musical, tempo do processo de subjetivao

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    e em cada um deles havendo que se distinguir ritmos, frequncias da du-rao, temporalidades pulsadas e no pulsadas, tempos lisos e estriados, for-mas rtmicas e ritmos amorfos, Cronos e Aion como figuras mticas do tempo que do a inflexo a cada uma das diferentes experincias. Tais distines feitas base de um meticuloso trabalho de artesanato conceitual lanam o texto por experimentaes vividas como afinidades eletivas. Dentre estas, sem dvida, o pensamento de Deleuze e Guattari percorre o texto de Sandro como um fio de inspirao metodolgica, como um leitmotive que d unidade composio sem a fechar na forma orgnica que poderia ter um livro.

    Percebemos a fora do paradigma esttico que ressalta o aspecto cons-trutivista do texto de Sandro. Pores de filosofia, de psicologia clnica, de teoria musical, de literatura so extradas de seus solos originrios para so-bre eles aplicar este procedimento de repetio diferenciante repetir um fragmento terico para, no ostinato dessa repetio, produzir uma outra coi-sa. Tal como os ritornelos musicais que Deleuze e Guattari tomam como expresso da produo de territrios existenciais. Em Mil Plats, estes au-tores (1997) do a indicao metodolgica: a repetio prpria do ritornelo repetio dos fragmentos desterritorializados e descodificados de um de-terminado extrato o germe da criao de novos territrios. Repetir para criar; a repetio diferenciao.

    Para Deleuze e Guattari a questo da arte aquela da criao do terri-trio. Com o conceito de ritornelo buscam dar conta do processo de territo-rializao ou dos agenciamentos territorializantes que so prprios da arte e da vida e no prerrogativa do humano. Partem da intuio bergsoniana que a vida um lan criador expresso no s nas produes do homem, mas evi-dentes nas descries da biologia e da etologia amplamente utilizadas como exemplos do ritornelo neste captulo do Mil Plats.

    Mas por que o privilgio dado msica? Das artes, esta tem a vanta-gem de no ter como matria expressiva a linguagem. Enquanto a litera-tura produz seus signos a partir da lngua e seus binarismos, a msica e a pintura diferem por partirem no de uma lngua dada, mas de perceptos e afetos. So blocos de sensao sonora ou luminosa que seguem uma linha de territorializao, se agenciando para composio de formas ou territrios existenciais.

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    Interessa a anlise do regime de signos das artes para apreender as ex-perimentaes criadoras ou os agenciamentos territorializantes que se rea-lizam para alm do que j foi institudo, dado. Criar sempre traar uma linha de fuga para fora dos sistemas relativamente estveis e j formados (sistema da lngua, sistema social, biolgico, fsico). Mas no h contrassen-so maior acerca da linha de fuga do que compreender que se trataria de fugir do mundo, e de se refugiar na arte (Mengue, 1994: 209).

    o caso deste exemplo da etologia em que a repetio criadora do ps-saro scenopoieta prepara a cena do seu canto virando as folhas cadas ao solo para por vista o seu lado no queimado pelo sol. A cenografia cria a paisagem existencial em que o scenopoieta, descobrindo a raiz amarela das penas de seu pescoo, emite o seu canto repleto de subsongs que ele rouba de outras espcies de aves. A repetio, na forma da imitao do canto roubado em uma cena toda montada, um elemento dessa sofisticada maneira de criar o territrio do ps-saro. O scenopoieta repete e inventa em um s movimento.

    Do mesmo modo, em um exemplo no mais etolgico, mas filosfico, as obras monogrficas que Deleuze escreveu acerca do modo singular de fi-losofar de Hume, Nietszche, Bergson, Espinosa guardam tambm uma nti-ma relao com o trabalho da arte. Em Diferena e Repetio, Deleuze (2006) descreve o trabalho do historiador da filosofia como anlogo ao do artista que realiza uma colagem em pintura. A referncia aqui aos dadastas que criaram obras a partir da repetio de fragmentos de materiais diversos. De-leuze, filsofo scenopoieta. A filosofia como dadasmo conceitual. O livro como manto de Arlequim em que se misturam fragmentos do mundo.

    Assim neste livro so criados territrios tericos, atravs da repetio de fragmentos de outros territrios. Por isso, ler este texto nos convoca a percorr-lo com a ateno do cartgrafo que investiga a composio dos territrios, avalia as diferentes linhas e o quantum de transversalizao que cada seo do livro guarda (Passos, Kastrup & Escssia, 2009).

    Ao procurarmos mapear as linhas que esto predominando em cada captulo, as mquinas que esto operando atravs da articulao de auto-res como Gilles Deleuze e Rodolfo Caesar, Boulez e Guattari, Lewis Carrol e Silvio Ferraz, ficamos atentos aos processos de desterritorializao e de construo de territrios que em cada situao se fazem.

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    Quando os fluxos se atravessam, se conectam, se agenciam, h uma composio de territrio que, provisoriamente, secreta modos de objetiva-o-subjetivao, efeitos da operao de uma determinada mquina abstrata em funcionamento. Os movimentos de composio dos territrios se do, pois, por agenciamentos. E isto pode comportar movimentos de fluxos de toda natureza, dimenses processuais. Os territrios, quando deixam de res-ponder a determinadas funes, quando so atravessados por outras linhas, quando sobre eles incidem outras mquinas, se desmancham para que logo componham-se outros territrios.

    H, entretanto, outro movimento possvel: um territrio se enrijece e passa a sobrecodificar outros territrios. Monta-se um jogo de espelhos onde um rosto se reflete sobre os outros, medida que encontra traos comuns. Um territrio cristalizado, mantido por relaes de foras onde predominam as conservadoras, inicia um reinado absolutista sobre outras composies, de modo a que todas venham a ter traos identificatrios com ele. Esta cristalizao se d a custa da expulso da diferena, do estranho, do impondervel dos outros objetos-sujeitos. Tal procedimento gera um livro cuja unidade totaliza seus enunciados, identifica seus interlocutores, homo-geneza os conceitos.

    O livro ele mesmo um territrio que pode se abrir ou pode se sedenta-rizar. No primeiro caso h chance de criao, inveno de novos problemas; no segundo, o que pode ocorrer a cristalizao de certas linhas, levando dificuldade de conexes ou ao fenmeno do tudo sempre igual, repeti-o identificada a um mesmo que paralisa o pensamento na sua tese central.

    A noo de territrio ganha sentido especial na geofilosofia reali-zada por Deleuze e Guattari. Pode surpreender este privilgio dado ao espao em uma filosofia do devir, do tempo como criao. Mas aqui preciso evocarmos a distino entre histria e devir. No captulo 4 do O que a filosofia? os autores distinguem geografia da histria. A geografia arranca a histria do seu culto necessidade, origem, estrutura, para afirmar a irredutibilidade da contingncia, a potncia de um meio e as linhas de fuga. Enfim ela (Geografia) arranca a histria dela mes-ma para descobrir os devires que no so da histria mesmo se nelas recaiam(Deleuze & Guattari, 1991: 92).

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    O territrio apresenta-se como uma espacialidade temporalizada, porque em constante processo de germinao, atravessado por linhas, foras e fluxos que lhe conferem esse aspecto de criao. Trata-se de um tempo diferente do tempo evolutivo que se escande numa sucesso linear de momentos que se dis-tinguem e se separam, um tempo de ritmo metrificado, regular, segundo unida-des de tempo sempre iguais. Franois Ewald caracteriza a filosofia de Deleuze e Guattari como uma ontologia realizada ao modo de uma geologia. Mais como um mapa, o pensamento se organiza segundo uma lgica das mltiplas articula-es singulares. Tudo coextensivo a tudo. As divises s podem corresponder a placas, a estrias paralelas, com diferena de escala, correspondncias e articula-es dos plats, datados, mas co-presentes (Ewald, orelha Mil Plats, vol.1). Esse modelo espacial interessante na medida em que permite pensar a coexistncia de diferentes tempos-meios, espaos-tempos, como plats contguos que viabi-lizam trnsitos na espessura temporal do presente.

    Um territrio produto do seu processo de territorializao, sendo sempre segundo. Tudo aquilo que forma, estrato, territrio, molaridade, realidade derivada. Tal este livro que temos agora em mos, objeto que seguramos e sobre o qual nos debruamos atentos. Nele, no entanto, pode-mos sentir o ritmo de sua criao como um fundo inespecfico que soa em seu tempo no pulsado a que temos acesso apenas por nossa capacidade de experimentar afinidades eletivas.

    Referncias bibliogrficas:DELEUZE, G. (1968/2006) Diferena e repetio. Rio de Janeiro: Graal.

    DELEUZE, G & GUATTARI, F. (1980/1997) Acerca do ritornelo. Em Mil Plats. Capitalismo e esquizofrenia, v. 4. So Paulo: Editora 34, pp. 115-170.

    DELEUZE, G & GUATTARI, F. (1991) Quest-ce que la philosophie? Paris: di-tions de Minuit.

    MENGUE, Ph. (1994) Gilles Deleuze ou le sistme du multiple. Paris: Kim.

    PASSOS, E ; KASTRUP, V. & ESCSSIA, L (org) (2009) Pistas do mtodo da carto-grafia: pesquisa-interveno e produo de subjetividade. Porto Alegre: Sulina.

  • Acho que voc poderia aproveitar melhor o seu tempo, em vez de desper-di-lo propondo charadas que no tm resposta.

    Se voc conhecesse o Tempo como eu conheo, disse o Chapeleiro, no falaria em desperdi-lo, como se fosse uma coisa. um senhor.

    No entendo o que voc quer dizer, disse Alice.

    Claro que no entende!, disse o Chapeleiro, atirando a cabea desdenhosa-mente para trs: Acho que voc nunca sequer falou com o Tempo!

    Talvez no, respondeu Alice, cautelosamente, mas sei que tenho de bater o tempo, quando estudo msica.

    Ah! Isso explica tudo, ele no suporta ser batido. Agora, se voc man-tivesse boas relaes com o Tempo, ele faria quase tudo o que voc

    quisesse com o relgio.

    Lewis CarroL (1832 - 1898)

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    ALICE E PERGUNTAS SEM RESPOSTA

    O que o tempo? Se ningum me perguntar eu sei; se quiserexplicar a quem fizer a pergunta j no sei.

    santo agostinho as Confisses

    Nossa proposta aqui consiste em pensarmos o ritmo na linguagem musical e na produo da subjetividade, buscando distinguir, em ambos, uma temporalidade pulsada de um tempo no pulsado. Mas o que um tempo no pulsado? Uma primeira resposta para essa per-gunta poderia ser outra pergunta, do tipo por que um corvo se parece com uma escrivaninha?. E esta segunda pergunta poderia at causar certa per-turbao, certo estranhamento. Mas isso mesmo o que est em questo! Pois tal enigma suscita questes metodolgicas de extrema relevncia para diversos domnios do pensamento contemporneo que se encontram s voltas com o tema da criao. No somente a Msica e a Psicologia, mas tambm a Filosofia, a Literatura etc.1

    Na cena, a Lebre de Maro, o Chapeleiro Louco e entre eles o sono-lento Caxinguel, tomam ch em torno de uma mesa, onde chega a jovem procura de um Coelho Branco, que Alice vira estranhamente olhar assus-

    1. O enigma sobre o corvo e a escrivaninha, tomado de emprstimo da famosa obra literria Aventuras de Alice

    no Pas das Maravilhas, de Lewis Carroll (2002), foi proposto personagem Alice, no episdio Um Ch Maluco (A

    Mad Tea-Party). Lewis Carroll pseudnimo de Charles Dodgson, um reverendo e matemtico que amava lgica

    e escreveu o livro para a jovem menina Alice Lidell, presenteando-lhe com uma verso manuscrita quando ela

    fez sete anos, chamada Alices Adventures Underground: aventuras subterrneas de Alice. Quando foi publicada,

    com adio do episdio do ch e das belssimas ilustraes de John Tenniel (Alice adorava livros ilustrados!),

    recebeu ento o ttulo de Alices Adventures in Wonderland.

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    tado para o relgio, lamentando sua angstia em sentir-se atrasado para um compromisso que ela desconhece mas insiste em investigar. Alice intromete--se neste ch louco, tentando se comunicar, em busca de alguma informao que ilumine sua curiosidade sobre a pressa desesperada do coelho.

    O Chapeleiro lhe prope uma adivinhao sobre a semelhana en-tre um corvo e uma escrivaninha. Enquanto Alice diverte-se tentando solucion-la, ele pergunta o dia do ms e ela responde quatro! Ele puxa um relgio e, olhando furioso para a Lebre de Maro, exclama: Dois dias de atraso!. Alice acha engraado que o relgio dele marque o dia do ms, mas no a hora. E ele pergunta se o dela, por acaso, marca o ano. Mas claro que no!, pois continua sendo o mesmo ano durante muito tempo... O que exatamente o mesmo caso do meu relgio, responde o Chapeleiro. Como assim?! Mas e o enigma? J decifrou? Alice desiste de tentar, pede-lhe a soluo e ele diz no fazer a menor ideia; a Lebre de Maro, nem eu!; e o Caxinguel, zzzzzzzz...

    Mas Alice se irrita e sugere que eles poderiam fazer algo melhor com o tempo do que desperdi-lo com adivinhaes sem resposta. S que ela ainda no nota a diferena entre dois tipos de problema. Em um deles per-guntamos o que ...?, propondo uma questo sobre uma identidade, uma definio, sobre algo de imutvel no objeto da pergunta, e cuja resposta es-perada uma concluso definitiva, uma verdade eterna. o tipo de per-gunta com resposta, pois quando formulada, a soluo j existe e basta deduzi-la logicamente. E sempre isso e no aquilo: ou Alice grande ou pequena (ela no poderia ser grande e pequena?). No entanto, h tambm uma outra espcie de questo, que diz respeito a outro modo de colocar os problemas, e que do tipo como isso acontece?. o tipo de pergunta sem resposta a priori, ou ao menos as respostas no se esgotam nos termos da pergunta: Alice maior que antes e menor que depois, mas tambm menor que antes e maior que depois. Mas como?! Tais questes paradoxais s se colocam ao longo do tempo. E no de um tempo que se perde (acho que vocs poderiam aproveitar melhor o seu tempo). Nenhum tempo a per-dido, pois no somos donos do tempo. Ao contrrio, o que est em questo neste passatempo uma tentativa de tornar-nos sensveis de novas maneiras s passagens do tempo.

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    Alice no entende ainda as regras do jogo, pois nunca sequer fa-lou com o Tempo. Ao menos, o que lhe sugere o Chapeleiro Louco. Ela ento responde, mais cautelosamente, que isso talvez fosse verdade, mas que sabia que tem que bater o tempo quando estuda msica. E a msica at tem mesmo um conceito de tempo, como algo que pode ser medido, batido, marcado, ou pulsado metricamente. Mas para o Louco, Ele no suporta apanhar. De acordo com o Chapeleiro, se entrssemos em harmonia com o Tempo, Ele nos faria quase tudo o que quisssemos com o relgio. Por exemplo, na hora de ir para a aula, para o trabalho, ou mesmo na hora do ch, bastaria cochichar para o Tempo e o relgio nos levaria para a hora do jantar. E se no houvesse apetite poderamos manter o relgio parado at que a fome chegasse.

    E isso pode nos dar uma imagem bem louca do tempo, mas Alice tam-bm sabia que eram todos loucos ali, naquelas profundezas; inclusive ela mesma, conforme lhe dissera o gato de Cheshire, personagem com quem conversara no episdio anterior da aventura. Mesmo assim, a pequena ajui-zada quis enfrentar a loucura em busca de um sentido para a corrida do Coelho Branco, angustiado com o tempo, a hora, o relgio: Ai, ai! Ai, ai! Vou chegar atrasado demais! E o Tempo no gosta de apanhar. Mas o enigma do Tempo ainda no se resolve a, pois esse dilogo tranquilo com Ele tambm escapa ao controle do Chapeleiro...

    O Louco relata que, h dois meses, a Rainha de Copas deu um con-certo em que ele teve que cantar. Mal acabou a primeira estrofe, a Rainha saltou e berrou: Ele est matando o tempo! Cortem-lhe a cabea!! Desde o ocorrido, o relgio parou (parei contigo, brother...) com o Louco, o Caxin-guel e a Lebre de Maro, que da tambm enlouqueceu isso foi em maro , e eles ficaram presos no instante de seis horas... Contudo Alice, que no boba nem nada, intui que por isso ento que eles no deixam a mesa e ficam mudando de um lugar para o outro, em crculos, sem tempo sequer para lavar as louas. O Chapeleiro responde exatamente! e ela pergunta o que acontece ento quando retornam ao comeo? A Lebre de Maro se intromete e sugere que tal mudar de assunto? (CARROLL, 2002).

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    Figura 1: Alice, a Lebre de Maro, o Caxinguel e o Chapeleiro Louco. Ilustrao de John Tenniel

    (Fonte: )

    Ns, no entanto, insistimos aqui em mant-lo, pois o problema de uma circularidade do tempo tambm diz bastante respeito msica e aos estudos da subjetividade, temas principais do presente livro.I E a transdisciplinarida-de o paradigma que aqui adotamos para pensarmos o ritmo como princ-pio de articulao transversal nos blocos de devir em que estamos mergulha-dos. Como veremos adiante, o tempo do devir ilimitado, incorporal, mas esse ilimitado expressa a finitude de cada instante vivido nos corpos. No en-tanto, fomos habituados a girar em crculos, buscando verdades eternas, leis gerais, respostas definitivas, em um movimento de cronificao do corpo e do pensamento que nos impede de afirmarmos a criao na singularidade dos acontecimentos. E exatamente disso que queremos cuidar.

    No primeiro captulo tratamos do ritmo, apostando que cada leitura que se faz do tempo implica uma concepo de subjetividade: partimos da msica, contrastando uma abordagem transcendente, pautada em medi-das e valores ideais, com outras imanentes aos sons. A linguagem musical hegemnica divide o tempo em pulsaes, unidades de tempo, identificadas por medidas binrias e ternrias. Mas os sons mesmos so corpos vibrteis, ondas energticas de som-silncio; e a prpria performance musical escapa medida, anunciando um tempo autnomo em relao mtrica. Com

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    o auxlio de Passos e Barros, contrastamos a noo kantiana do tempo como forma a priori do sujeito com a noo humiana da subjetividade como processo de produo em seu fluir e distinguimos na prpria noo de ritmo musical uma tendncia formal, o metro, de uma tendncia produo de fluxos. Metro e fluxos se confrontam como tendncias imobilizao na partitura e diferen-ciao na performance, pois embora a repetio no mude nada no objeto que se repete, algo muda no esprito que a contempla. Com Deleuze, abordamos tal mudana como uma sntese do hbito (primeira sntese do tempo), fundao de sen-saes do presente na contrao de instantes sucessivos do passado e do futuro. Mas a percepo do presente j vivida sob interveno da memria (segunda sntese do tempo: fundamento), o que nos coloca diante dos paradoxos do passado. E, ao abordarmos a relao da memria com a notao musical, acentuamos o papel paradoxal do esquecimento na msica, sendo forados com isso a pensar-mos uma terceira sntese do tempo, o que faremos a partir do serialismo integral, que d consistncia a uma linguagem rtmica que anuncia o afundamento de toda uma histria de naturalizao dos pulsos binrios e ternrios.

    No captulo seguinte abordamos esquecimento e controle na msica contempornea, a partir da relao do compositor e regente Pierre Boulez com a histria da msica. Introduzimos o serialismo vienense e a ideia de no repetir notas em uma srie, para apresentarmos em seguida o serialis-mo integral de Boulez e Stockhausen, compositores que, sob influncia das experincias rtmicas de Messiaen, quiseram estender o princpio serial da no-repetio ao tempo musical. Boulez props o conceito de tempo no pulsado em contraste com a leitura tradicional do tempo. E a distino entre pulsado e liso diz respeito ao tipo de corte que opera em cada espao. Pois, embora inseparveis, em tais espaos-tempos operam modos distintos de ocupao e domnio, o que nos remete a questes de disciplina e controle, que estudamos com Deleuze e Guattari. No tempo liso se desenham blocos de durao e linhas diagonais que nos conduzem terceira sntese do tempo (o sem-fundo), eterno retorno da diferena, que Deleuze utiliza para pensar a dimenso trgica da repetio como afirmao do futuro. Assim, vere-mos a msica como um jogo de criao integral, em que emergem linhas abstratas, cujos movimentos de migrao transversal nos levaro a pensar tambm a questo da subjetivao como produo de um estilo singular.

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    No terceiro captulo, tratamos das passagens entre tempo pulsado e no pulsado na msica e na produo de subjetividade. Retornamos assim ao tema da pulsao, que apresentamos ento como ritornelo, germe de pro-duo de uma identidade formal e subjetiva. Pois ritornelo forma, sinal de repetio na partitura; e forma estrutura. Mas a forma como fazemos, pensamos e dizemos algo tambm um gesto, como aquele das crianas, de cantarolar ou mesmo danar, quando sentem medo (um pequeno ritornelo existencial) em meio aos fantasmas e desmedida do imaginrio. A partitura, a dana e o cantarolar so meios diversos de se tentar construir um senti-do para a experincia. Mas experimentar o ritornelo envolve tambm certo estranhamento, certo deslocamento em relao aos eixos do pensamento lgico-formal. Pois um mnimo gesto corporal, ao ser repetido, pode saltar sobre si mesmo e deslizar por uma dimenso esttica abstrata, lisa; o que nos leva a questo estica do tempo como incorporal. E assim, aproximamos o tempo pulsado ao Cronos, que Deleuze investiga nos esticos como tempo das medidas profundas, atribuindo identidade aos corpos; enquanto o liso se aproxima do Aion, tempo paradoxal dos acontecimentos incorporais de superfcie, que so puros efeitos. Para os esticos os corpos se misturam em blocos de devir, um verdadeiro devir-louco, que Plato via nas profundida-des (como um mau Cronos), mas que, com os esticos, muda de natureza ao atingir a superfcie da linguagem, expressando a finitude dos aconteci-mentos e suas conexes locais sem princpio ordenador transcendente. Em situaes-limite, a linguagem e os corpos so atingidos por uma cesura, uma fissura, um antirritmo, que intervm como operatria esttica de perturba-o dos sentidos usuais e dissoluo das identidades fixas. Assim, os sujeitos no tm como se guiar, pois o tempo fica fora dos eixos, impedindo que o fim rime com o comeo, rompendo o bom sentido do tempo (do passado ao futu-ro) e o senso comum (a identidade do sujeito). Com essa perda de identidades fixas, a subjetividade vai se produzir como estilo, operao que envolve um descentramento do si e uma tentativa metaestvel de sustentar a permann-cia da mudana, pois o que a retorna o modo de diferir.

    Assim cumprimos nosso duplo objetivo: pensarmos o ritmo pela sub-jetividade e a subjetividade pelo ritmo. E uma vez que afirmamos aqui a inseparabilidade entre pensamento e vida, consideramos que quaisquer con-

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    cluses so sempre singulares e temporrias. Portanto, desde o incio no nos propomos a fechar questes em um sistema totalitrio e generalizvel, mas buscamos trabalhar questes que afirmam, nelas mesmas, a abertura finitude. Pois consideramos que os saberes so sempre locais e temporrios, ligados s prticas que investigamos, mesmo quando o que realizamos um estudo terico. Afinal, leitura, pensamento e escrita so tambm prticas de si, produo de subjetividade.

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    1RITMO E PRODUO DE SUBJETIVIDADE

    Passa tempo, tic-tac, tic-tac, passa horaChega logo, tic-tac, tic-tac, vai-te embora

    Passa, tempo, vem depressa, no atrasa, no demoraQue j estou muito cansado e j perdi toda alegria

    De fazer meu tic-tac dia e noite, noite e diaTic-tac, tic-tac, dia e noite, noite e dia

    waLter franCo o reLgio

    A msica uma arte. E se quisermos podemos distingu-la das demais artes, uma vez que cada arte tem seus prprios meios, ou seja, os materiais cuja manipulao criativa tornaria mais sensveis. Os materiais prprios msica so os sons. Diversos livros didticos falam da criao musical como o domnio da articulao entre sons e silncios. Mas a linguagem musical tradicional, na tentativa de excluir de seu discurso os rudos, trata tambm som e silncio como coisas separadas e mutuamente excludentes. No entanto, so relativos os limiares entre sons e rudos; e, alm disso, jamais conseguimos ouvir um silncio absoluto.2 impossvel experimentarmos um silncio puro, como ausncia absoluta de vibraes sonoras. Sons, rudos e silncios coexistem em nossa experincia, embora em graus diversos, nveis diver-

    2. E mesmo os surdos possuem uma espcie de escuta vibrtil, de sensibilidade s compresses e descompres-

    ses provocadas pelos movimentos das ondas sonoras.

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    sos, mesmo que imperceptveis. Comecemos, portanto, por distingui--los, para em seguida contrastarmos nossa leitura com a leitura clssica que, para ns, demasiadamente purificadora e reducionista.

    Sons, rudos e silncios: das pulsaes partituraSom vibrao ondulatria. Uma onda um pulso energtico imaterial que se propaga atravs de um meio material (lquido, slido ou gasoso). Em geral, as ondas existem em um meio cuja deformao capaz de trans-ferir energia de um lugar para outro, sem que as partculas do meio sejam necessariamente deslocadas; ou seja, sem transporte de matria. Acontece que as ondas sonoras so paradoxalmente imateriais e materiais. Pois nada impede que uma onda eletromagntica luminosa se propague no vcuo; s que os sons so compostos de ondas elsticas, mecnicas, que no podem se propagar no vcuo, somente em meios materiais.

    bastante conhecida a experincia do msico John Cage na cmara anecica (uma sala acusticamente preparada para que os sons no se propaguem). Buscando ouvir o silncio absoluto, o msico constatou sua impossibilidade, ao notar ainda um som grave e um agudo: quando os descrevi para o engenheiro responsvel, ele me informou que o agudo era o meu prprio sistema nervoso em funcionamento, e o grave era meu sangue circulando. Com isso, Cage concluiu que o silncio no existe. Sempre est acontecendo alguma coisa que produz som (apud SCHAFER, 1991, p. 130).

    Como dissemos, os sons so ondas: o movimento (ou vibrao) pro-veniente de um corpo vibrtil por exemplo, uma corda, ou a pele de um tambor geram ondas de compresso que viajam (...) at nosso ouvido (KROLYI, 1990, p. 5). E ao representarmos de maneira simplificada uma onda sonora j percebemos o movimento de oscilao peridica entre um mnimo e um mximo de intensidade (amplitude), embora acima de uma certa velocidade (frequncia) no consigamos mais distinguir as oscilaes e, com isso, passemos a perceber um som contnuo.

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    Figura 2: Ondas de mesma intensidade, mas em distintas velocidades

    O paradoxal que sem esta descontinuidade, esta oscilao, no perce-beramos nada, pois o tmpano auditivo entraria em espasmo (WISNIK, 1989, p. 18). Por outro lado, quando estendemos esta leitura em termos de onda a toda realidade e consideramos todo meio material como atravessado por energias pulsantes, vibratrias, oscilatrias, pensamos ento tudo em movimento. E a partir de certa velocidade, as frequncias oscilantes podem produzir sons e rudos em constante alternncia com o silncio subjacente.

    O silncio no pode ser experimentado fisicamente como ausncia to-tal de sons, mas uma condio necessria para a existncia dos sons no tempo: nenhum som teme o silncio que o extingue e no h silncio que no seja grvido de sons (CAGE, 1985, p. xiv). Um comentrio assim pare-ce dar vida aos sons. E numa experincia como a da cmara anecica, que reduz a difuso sonora ao mnimo e faz com que os sons lanados ao vcuo despenquem ao invs de se propagarem, o ouvido pode se sensibilizar facil-mente com os pulsos vitais. Trata-se de um silncio que d vida aos sons e ritmos pulsantes do corpo.

    O corpo humano est repleto de ritmos. Os batimentos cardacos, a respirao, os passos, os gestos, so expresses rtmicas dos corpos. Cobri-mos os ouvidos com as mos por instantes e ouvimos facilmente o ritmo

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    de nossa respirao. E mesmo quando no estamos conscientes disso, nosso organismo produz ritmos, articulando simultaneamente ciclos orgnicos e hbitos corporais em distintas velocidades. Mas os hbitos tambm j se do no ambiente. Os ritmos biolgicos de cada organismo vivo esto sempre em contato com ritmos que esto fora dele, mas que agem nele. Os ritmos mu-sicais que costumamos ouvir podem mexer com nossos corpos, mesmo sem nos darmos conta. As msicas, falas, sons de vendedores, mquinas, carros, televisores, podem produzir sensaes diversas, ora agradveis, ora insupor-tveis, ora ambguas, da passagem do tempo. Os ritmos de nossos corpos se articulam com ritmos de corpos percebidos como exteriores, embora essa articulao resulte de uma relao agonstica entre foras que operam tan-to de fora para dentro quanto de dentro para fora de nossos organismos, podendo afetar tanto as produes estticas de si quanto nossas produes tico-polticas. Pois os corpos no esto separado do meio; e os prprios cor-pos servem de meio uns para os outros: o intestino para a girdia, o corpo docente para o discente etc.

    A experincia direta que temos do tempo presente uma experincia pa-radoxal, pois nela o que permanece a mudana e o que se repete a diferena: nossos ritmos corporais podem repetir ritmos sociais, mas estes se modificam pelos nossos, simultaneamente. Pensamos: est tudo em movimento. Nesse sentido, a experincia direta que temos dos ritmos musicais tambm no carece de qualquer juzo de valor esttico de antemo para produzir efeitos subjetivos, embora estejamos sempre implicados em valores que j carregamos conosco, mesmo quando no estamos conscientes disso. Afinal, no necessrio que te-nhamos conscincia dos diversos modos como os compositores, produtores e meios de divulgao trabalham de perto a msica para que possamos experi-ment-la como manifestao sonora de foras vitais que nos movimentam por temporalidades mltiplas e mesmo mgicas: Eu tinha a sensao de que o som es-tava meio que me puxando, me arrastando... estranho, como se eu estivesse me mexen-do parada.II Pois sentimos nos corpos efeitos de acontecimentos que so, em si mesmos, incorpreos. Ou no sentimos.

    Suely Rolnik (2004) concebe os corpos como constitudos de vibra-es e aponta que esta cintica sensorial est ameaada no contemporneo, quando os corpos vibrteis pode entrar em coma, perdendo os ritmos vitais:

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    que o ritmo dado pelo processo de atualizao de novos blo-cos de sensaes em novas formas de existncia, processo que uma vez realizado seguido de repouso, ao mesmo tempo em que novos blocos de sensaes j esto se formando, at que uma nova crise se instale e volte a desencadear um processo de atualizao, e assim sucessivamente, como as noites sucedem os dias. Com o corpo vibrtil em coma que implica aquela dupla dissociao, as foras passam a funcionar sem ritmo, frentica e ilimitadamente, o que muitas vezes se acelera mais ainda por sua turbinagem com aditivos qumicos, sejam eles produzidos e comercializados legalmente pela indstria farmacolgica ou ilegalmente pelo narcotrfico (p. 237).3

    Mesmo considerando as ondas sonoras como vibraes ondulatrias, muitas vezes como se tentssemos nos desligar das relaes dos nossos corpos com os incorporais (noo que investigaremos no terceiro captulo). Mas o mundo est permeado de ondas materiais e imateriais...

    3. O uso de psicoativos diversos (ansiolticos, antidepressivos, psicodlicos, estimulantes, neurolpticos etc)

    tambm pode ser pensado em termos de articulao rtmica. No texto Duas questes (1997), Deleuze aponta

    que as drogas concernem ao investimento do prazer direto na percepo de velocidades e lentides distintas

    das usuais: por percepo, preciso entender as percepes internas, no menos que as externas, principal-

    mente as noes de espao-tempo. As distines entre espcies de drogas so secundrias, interiores a esse

    sistema (p. 64). Alm disso, outro tipo de problema se coloca quando pensamos, no uso de psicotrpicos, as

    relaes da percepo com o desejo. Afinal,

    que o desejo invista diretamente a percepo , ainda uma vez, algo muito surpreendente,

    muito belo, uma espcie de terra ainda desconhecida. Mas as alucinaes, as falsas percepes,

    as baforadas paranicas, a longa lista das dependncias muito conhecida, ainda que renovada

    pelos drogados, que se tomam por experimentadores, cavaleiros do mundo moderno ou doa-

    dores universais da m conscincia. (...) Tenho a impresso de que, atualmente, no se avana

    e no se faz bom trabalho. (...) Os que conhecem o problema, drogados ou mdicos, parecem

    ter abandonado as pesquisas (p. 66).

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    Figura 3: Sound Wave (Onda sonora, 2007), de Jean Shin. Fotografia de Jason Mandella.

    2008 Jean Shin (Fonte: )

    No contemporneo, com o aumento dos nveis de rudo nos grandes centros urbanos, provocado no apenas pelo acelerado desenvolvimento de indstrias e crescimento do nmero de veculos em trnsito, mas tambm pela crescente explorao poltica e publicitria dos espaos urbanos, com propagandas e anncios em alto-falantes, soa cada vez mais distante uma experincia de escuta permeada pelo silncio. Parece haver rudo demais. E, por rudo, estamos nos referindo aqui a qualquer manifestao sonora indesejvel (SCHAFER, 1991), embora haja tambm outras definies para o termo, conforme indicaremos a seguir.

    Mas, para nos protegermos de manifestaes indesejveis estamos, portanto, falando aqui de desejo , acabamos por criar uma espcie de muro sonoro, de tela, para evitar sermos invadidos todo o tempo pelos sons ca-ticos do contemporneo: os aparelhos de rdio ou de tev so como um muro sonoro para cada lar, e marcam territrios (o vizinho protesta quando est muito alto) (DELEUZE; GUATTARI, 1997a, p. 116). Nos habituamos a usar os sons para demarcar nosso territrio e reclamar quando outros sons esto altos demais.

    Em termos da fsica do som, quando dizemos alto, como acima, esta-mos nos referindo ao volume do som, ou seja, ao grau de intensidade de sua amplitude; dizemos que est alto demais! para no dizermos que est amplo

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    demais! ou intenso demais!. Mas, em fsica, assim como em msica, alto e baixo dizem respeito tambm frequncia das ondas sonoras. Quanto mais alta a frequncia, quanto mais oscilaes ocorrem ao longo de certo inter-valo de tempo, mais a onda considerada aguda. Como diz Wisnik (1989), a partir de certa altura, os sons agudos vo progressivamente saindo da nossa faixa de percepo: a sua afinao soa distorcida, e eles vo perdendo intensidade at desaparecer para ns, embora sejam escutveis (por um co, por exemplo): so os chamados ultrassons. J os sons de frequncia baixa so chamados graves: o som grave (como o prprio nome sugere) tende a ser associado ao peso da matria, com os objetos mais presos terra pela lei da gravidade, e que emitem vibraes mais lentas, em oposio li-geireza leve e lpida do agudo (p. 21). Nesse sentido, alto e baixo corres-pondem um pouco a leve e pesado. As frequncias graves so mais lentas e pesadas. Se formos diminuindo gradativamente a frequncia de uma onda, abaixo de certo limiar deixamos de ouvi-la como som contnuo e passamos a ouvir pulsos destacados. E no se trata de um limite exato, mas de um limiar oscilante, em meio ao qual as frequncias graves po-dem ressoar em nossos corpos sem que consigamos distinguir nem um som contnuo nem um som descontnuo, embora captemos em nossos corpos os efeitos vibratrios de tais infrassons.

    No entanto, quando dizemos alto ou baixo em relao a um som, muitas vezes nos referimos mesmo ao quo desejvel ou indesejvel ele para ns. E nossa tarefa aqui pensarmos como se cruzam foras de natureza distinta, que vo de um grau mais baixo a um grau mais alto (e vice-versa), numa operao nica que as mistura de um modo perturbador: Est muito alto! Abaixa! Pois assim como uma alta amplitude e uma alta frequncia nas ondas sonoras podem ser indesejveis, desagradveis, podemos pensar tam-bm no atual consumo acelerado de tecnologia de reproduo de udio, aliado ao alto consumo de mdias sonoras (CDs, DVDs, mp3s, rdio, tv di-gital) e ao aumento dos nveis de rudo nos espaos urbanos, que tende a se ampliar e se estender pelo mximo de tempo, produzindo uma verdadeira fobia ao silncio. O silncio, nesse sentido, no apenas impossvel como tambm parece tornar-se mesmo indesejvel (Est muito baixo! Aumenta!). E muitos de ns arrastam este horror ao silncio para outros territrios e,

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    mesmo nas ocasies em que, cansados das atribulaes cons-tantes da vida urbana, fogem da cidade em busca de um lazer longe das angstias urbanas e mais prximo natureza, um lazer capaz de proporcionar-lhes uma certa paz, no deixam de se fazer acompanhar dos aparelhos como rdios e toca--fitas que lhes permitem prosseguir, sem perda de tempo, no consumo de exatamente a mesma msica que incessante-mente os atormenta na cidade (SCHURMANN, 1990, p. 184).

    Alm do mais, com esse hbito de isolamento em relao ao ambiente sonoro que nos cerca, mesmo quando no estamos com aparelhos sonoros ligados, acabamos por produzir tambm uma espcie de filtro perceptivo, tentando nos apartar acusticamente do ambiente, da paisagem sonora que nos rodeia. Fazemos isso para permitir-nos a produo de um mnimo de concentrao e de relaxamento em meio a tanto barulho. Contudo, dimi-nuindo nossos limiares de sensibilidade acstica, tornamo-nos insensveis s sutilezas dos sons e mesmo surdos a alguns sons menores que esto sempre produzindo algum rudo, embora no os consigamos notar usualmente. Mas como fazemos para escutarmos estas foras sonoras, incapazes de se tornar audveis por elas mesmas? Mais ainda, como aprendemos a distinguir as sutis diferenas entre tais foras? Trata-se de aumentar o grau de abertura de nossa sensibilidade e de nosso pensamento.

    No entanto, apesar de tais experincias estticas nos forarem a mudar nos-sa maneira de sentir e pensar, pois onde o silncio dos espaos infinitos vem acompanhado da ruidagem absoluta, impe-se uma espcie de conscincia sin-crnica, uma escuta capaz de fazer silncio (WINSNIK, 1989, p. 117), grande parte do ensino tradicional da msica insiste ainda em investir em falsos proble-mas, como o de considerar o rudo como tendo alguma dvida para com o som, supondo haver menos valor no rudo que no som. Essa ideia de rudo supe a ideia que temos de som, acrescida de um sinal de menos, para resultar logica-mente em seu negativo.III Nesta leitura, o rudo seria tratado como uma espcie de menos-som e o silncio como um no-som.

    Portanto, h tambm nessa operao do pensamento musical clssico certa convenincia em silenciar o rudo, reduzindo-o a uma figura do nega-

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    tivo, do no-ser. E mesmo que, para ns, se trate de questes bastante atu-ais, a tradio hegemnica no pensamento musical do ocidente no parece preocupada em questionar limiares sensveis entre sons, rudos e silncios nos organismos vivos, nem dar a mnima para a impossibilidade fsica do silncio absoluto. Afinal, tentando manter-se distncia dos paradoxos do contemporneo, negam valor positivo aos rudos e ao silncio, restringindo--se a falar de sons e silncios apenas na medida em que so articulados dicotomicamente na composio musical. E, para sermos mais precisos, no devemos dizer na composio musical de um modo geral, mas em uma tradio composicional que exclui de seu discurso qualquer tipo de rudo e tenta se pautar, sobretudo, na organizao de alturas e duraes codificadas. Ou seja, a msica cujo ensino pautado no ditado e solfejo das sete notas do chamado sistema diatnico (do, re, mi, fa, sol, la, si), com os respectivos acidentes (sustenidos e bemis), que, somados a tais notas, completam um total de doze sons musicais (a chamada escala cromtica), codificados como variveis discretas, separados por contornos, membranas espacialmente de-finidas, corpos slidos marcados por seus limites espaciais (e no corpos vi-vos, marcados por seus diversos ritmos, suas diversas duraes, sua mltipla interpenetrao em relao a outros corpos), com formas e funes clara-mente definidas a priori pela teoria. Nesta tradio hegemnica do ensino musical, qualquer rudo considerado de fato indesejvel.4

    4. O psiclogo, fsico e fisilogo do sculo XIX, Hermann von Helmholtz (em SCHAFER, 1991), assim distingue

    som de rudo:

    Os movimentos regulares que produzem os sons musicais foram investigados com exatido

    pelos fsicos. So oscilaes, vibraes ou balanos, isto , movimentos de corpos sonoros para

    cima e para baixo ou para frente e para trs, e necessrio que essas oscilaes tenham perio-

    dicidade regular. (...) A sensao de um som musical se deve ao rpido movimento peridico do

    corpo sonoro; a sensao de rudo, a movimentos aperidicos (pp. 135-136).

    No entanto, esta distino to clara entre sons peridicos e aperidicos no nos de todo satisfatria. Uma vez

    que pensemos os sons como complexos vibratrios, podemos falar apenas em tendncias: complexos ondula-

    trios cuja sobreposio tende estabilidade, porque dotados de uma periodicidade interna, e complexos on-

    dulatrios cuja sobreposio tende instabilidade, porque marcados por perodos irregulares, no coincidentes,

    descontnuos (WISNIK, 1989, pp. 26-27). Nesse sentido, os instrumentos percussivos, que produzem mais aglo-

    merados de frequncias sem altura discernvel do que sons afinados, geram ondas sonoras irregulares, mesmo

    quando percutidos a pulsos regulares. E de acordo com as distintas relaes de velocidades e lentides entre os

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    De acordo com Wisnik (1989), descreve-se a msica originariamente como a prpria extrao do som ordenado e peridico do meio turbulento dos rudos (p. 31). Assim, a msica seria um crivo no caos, no som desagra-dvel, no rudo atormentador. No entanto, para Mario de Andrade (1976), a msica primitiva, por sua funo mgico-social, no visava qualquer ideal de beleza, mas a procura do feio, do som assustador, sibilante, estrondante, da procura do mistrio desumano e antinatural. (...) Quanto mais horrvel o som, mais ele se tornava til, capaz de afastar ou de abrandar, por iden-tidade, os demnios (pp. 11-12). Em tais ocasies, os rudos, justo pela irregularidade perturbadora que os difere dos sons, eram algo realmente desejvel. Segundo Wisnik (1989), at que a liturgia da Igreja medieval viesse converter e negar o rudo, silenciando-o e subordinando-o ao som no per-cussivo, ele esteve numa relao de vivaz interferncia nos sons de diversas tradies musicais (p. 224, n. 24).

    Mas no discurso musical hegemnico no Ocidente o que est em questo no uma anlise da complexidade do sonoro, das gradativas in-terpenetraes entre sons, silncio e rudos ao longo do tempo; mas apenas um mtodo de distribuio espacial de figuras, objetos codificados as no-tas musicais , entremeados por intervalos as pausas durante os quais nenhum som musical propositalmente emitido. De acordo com Schafer

    dois tipos de pulsos neles sobrepostos, esses limiares entre regularidade e irregularidade podem se confundir:

    O bater de um tambor antes de mais nada um pulso rtmico. Ele emite frequncias que per-

    cebemos como recortes de tempo, onde inscreve suas recorrncias e suas variaes. Mas se

    as frequncias rtmicas forem tocadas por um instrumento capaz de aceler-las muito, a partir

    de cerca de dez ciclos por segundo, elas vo mudando de carter e passam a um estado de

    granulao veloz, que salta de repente para outro patamar, o da altura meldica. A partir de um

    certo limiar de frequncia (em torno de quinze ciclos por segundo, mas estabilizando-se s em

    cem e disparando em direo ao agudo at a faixa audvel de cerca de 15 mil hertz), o ritmo

    vira melodia (WISNIK, 1989, pp. 20-21).

    Por outro lado, o filsofo Henri Bergson (1999) nos pergunta se ali onde o ritmo do movimento bastante

    lento para se ajustar aos hbitos de nossa conscincia como acontece para as notas graves da escala musical,

    por exemplo , no sentimos a qualidade percebida decompor-se espontaneamente em estmulos repetidos e

    sucessivos (p. 239). Portanto, consideramos aqui por mais paradoxal que isso possa parecer ao modo habitual

    de pensarmos que regularidade e irregularidade, melodia e ritmo, agradvel e desagradvel, sons e rudos,

    no apenas se contrastam, mas tambm se misturam.

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    (1991), nesta leitura, quando falarmos de silncio, isso no significar siln-cio absoluto ou fsico, mas meramente a ausncia de sons musicais tradicio-nais (p. 132). E que sons so esses?

    Das distines na pauta unidade do tempo musicalNa notao musical tradicional (tambm chamada pauta, partitura ou pen-tagrama), um som representado por uma figura que indica sua altura (d, mi, sol, por exemplo) ao longo de um eixo vertical e sua durao (mnima, que dura o dobro da semnima; colcheia, que dura metade da semnima; semicolcheia, que dura metade da colcheia etc) ao longo de um eixo hori-zontal, conforme veremos em seguida. Podem aparecer tambm sinais de dinmica, alm da indicao do timbre que deve executar cada som. isso o que a tradio musical hegemnica chama de som, ou seja, uma nota musi-cal, um estmulo sonoro de tal simplicidade que possamos definir sua altura fundamental segundo valores escalares, coisa que no conseguimos fazer, por exemplo, em relao a um rudo, um amontoado complexo de sons sem uma altura inequivocamente definida.

    A pauta tradicional no anota rudos, mas distingue usualmente quatro parmetros nas notas ou sons musicais: a durao, a altura, a intensidade e o timbre. Este ltimo, geralmente vem indicado diretamente na pauta apenas como referncia ao instrumento que deve executar aquele som ou sequn-cia de sons, sem qualquer critrio prprio de diferenciao escalar (neste caso, o timbre corresponde unicamente identidade do instrumento que deve executar os sons; p. ex. timbre de flauta, timbre de trompete, timbre de piano). Quanto intensidade (ou dinmica), h valores escalares para gradu-ar do pianssimo (pp) ao fortssimo (ff), embora a escala no seja muito precisa quanto dinmica exata que dever ser aplicada ao instrumento na execu-o da pea, algo que varia muito a cada performance.5

    5. Durante a Idade Mdia, quando a vida girava em torno de Deus, o Cristianismo cresceu bastante e tornou-se

    a religio oficial em toda Europa Ocidental. A Igreja tornara-se rica e poderosa e as nicas escolas existentes

    eram nos mosteiros. Os atos litrgicos eram acompanhados por cnticos diferentes em cada local. At que Gre-

    grio Magno (papa de 590 a 604) compilou e organizou os cnticos dispersos, e fixou com base neles o cntico

    oficial da Igreja Catlica, chamado canto gregoriano (mais tarde tambm chamado de cantocho). Havia muita

    msica fora da Igreja, mas s a Igreja escrevia sua msica, silenciando os sons indesejveis. Para anotar essa

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    Timbre e intensidade so em geral menos analisados na linguagem musical que predomina em grande parte da msica ocidental. A maior parte do ensino da msica no Ocidente est baseada no solfejo tradicional, ou seja, no exerccio de cantarolar sequncias de sons musicais notados na partitura, tendo em vista, sobretudo, a apurao do sentido de distino das duraes e alturas entre si e de umas em relao s outras. As sequncias de duraes so distribudas ao longo do pentagrama, segundo um eixo horizontal e o que distingue as duraes entre si nesse eixo o maior ou menor espao cronolgico de tempo que cada uma ocupa (a mnima durando metade da semibreve, o dobro da semnima etc):

    Figura 4: Duraes (com proporo matemtica entre as diversas figuras)

    J as alturas so diferenciadas uma da outra de acordo com um eixo vertical:

    msica foi utilizado o registro neumtico. Os neumas implicavam leituras variadas por no indicarem a altura

    exata dos sons (NEGREIROS, 2000). No sculo IX surge a pauta, mas com uma nica linha horizontal (KROLYI,

    1990). A notao somente adquire mais clareza no sculo XI, com o padre italiano Guido dArezzo, que j em-

    prega uma pauta de quatro linhas, desenvolvidas da linha nica usada nos manuscritos dos sculos anteriores

    (ANDRADE, 1976, p. 43). O pentagrama (a pauta de cinco linhas, usada at hoje) s se generalizou a partir do

    sculo XIV. No entanto, mesmo com a notao exata das alturas,

    o ritmo s ser notado com clareza no sculo XV e ser preciso aguardar o sculo XVIII para que a dinmica

    e a instrumentao sejam determinadas com exatido. medida que a polifonia se torna mais complexa e

    refinada que, por necessidade, a msica ocidental se dota lentamente de um sistema de notao cada vez mais

    preciso (CAND, 2001, p. 24).

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    Figura 5: Alturas distribudas verticalmente na partitura

    Por outro lado, se anotssemos na pauta, por exemplo, o acionamento em sequncia, da esquerda para a direita, a intervalos iguais de tempo, das teclas brancas de um piano, seramos surpreendidos pelo desenho de uma linha diagonal, que emerge do cruzamento entre a vertical e a horizontal, ligando virtualmente a sequncia de notas escritas do piano:

    Figura 6: Notao da sequncia ascendente de alturas com duraes de igual medida

    De acordo com Schurmann (1990), por conta da grande relevncia atribuda s alturas e s duraes, a teoria musical passou a desenvolver--se em dois domnios distintos: um onde se sistematizam as duraes sonoras ou a disposio dos sons no tempo , e que chamado rtmi-ca, e outro que se ocupa da organizao das alturas sonoras, que aqui designamos por mlica (p. 41). Os gregos distinguiam rythmos e melos. E precisamos ficar atentos a tal diferena, se no quisermos confundir melos e melodia, o que nos comprometeria metodologicamente. Para Schurmann, quando a distino entre duraes e alturas feita com base na diferena entre ritmo e melodia, mantm-se ainda confusos o tempo e o espao. Pois no tempo que se localizam as duraes sonoras e que se efetuam as associaes rtmicas; so as entidades rtmicas que de fato

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    se caracterizam por uma estrutura temporal. Isso no ocorre com as entidades mlicas, uma vez que as associaes entre as alturas sonoras so efetuadas independentemente do tempo (p. 45). A mlica uma tentativa de organizar as relaes entre as alturas sonoras segundo rela-es atemporais. Mas, a rigor, no pode haver melodia sem ritmo, pois no h melodia fora do tempo.

    Ao representarmos na partitura uma nica linha meldica (monofonia), notamos que o ritmo, ou melhor, a mtrica musical, segue uma distribuio horizontal, com cada unidade de tempo vindo aps a outra e durando mais ou menos tempo que a anterior e a posterior, enquanto a mlica distribui verticalmente as alturas. chamada de espao mlico a categoria em que se baseia o melo. claro que diversas linhas meldicas podem ser representa-das simultaneamente (polifonia), assim como distintas linhas rtmicas podem se articular (polirritmia). Mas o interessante que uma nica melodia j uma sntese entre os eixos vertical e horizontal, pois traa linhas diagonais (no representadas na pauta), ligando as figuras que identificam alturas e duraes sobre tais eixos. A melodia o som em movimento; portanto j articula melo e ritmo.

    Para Schurmann (1990), o que se ope ao ritmo, isto , ao elemento exclusivamente temporal da msica, portanto, no a melodia, mas o melo, ou seja, o fator que havamos conceituado como se referindo unicamente s alturas sonoras (p. 48). Pois a melodia j uma sntese espao-tempo. E cabe considerar ainda o quo complexas podem ser as snteses geradas pela textura homofnica (a chamada melodia acompanhada), em que uma diago-nal meldica pode se articular polifonicamente com a distribuio vertical e horizontal dos acordes da harmonia.6

    6. O termo textura se refere ao modo como o compositor tece a matria musical. A ideia de textura nos remete

    s diversas sensaes tteis fornecidas pelo contato com uma superfcie. Por uma analogia com diferentes

    tecidos produzidos pela humanidade, podemos pensar a textura musical como a diversidade de modos de se

    tramar, de se articular as linhas meldicas (como os fios de um tecido) numa rede densa, o que provoca efeitos

    sensveis de superfcies de espao-tempo bastante singulares. Por exemplo, temos a chamada textura monof-

    nica, presente no canto mondico, onde uma nica linha meldica se desenrola; a textura polifnica, quando

    h diversas melodias entrelaando-se ao longo do tempo; e a textura homofnica (ou melodia acompanhada),

    quando h uma linha meldica principal em articulao com linhas harmnicas que produzem acordes.

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    Um acorde um grupo de notas simultneas, com relaes mlicas (verticais) especficas entre si. Mas a harmonia no apenas produz acordes; como tambm os conduz ao longo do tempo. Na homofonia, os acordes so encadeados entre si sobre os eixos vertical e horizontal, mas ligam-se tambm s melodias diagonais, oferecendo-lhes uma paisagem polifnica em movimento (com vrias diagonais virtuais), um ambiente em meio ao qual as melodias podem se desenrolar. Assim, os acordes so como polos verticalizados de atrao que pontuam e acentuam as frases meldicas em momentos e movimentos diversos.

    Figura 7: Melodia diagonal e acordes verticais

    Como veremos mais frente, o prprio ritmo pode ser compreen-dido como diagonal. O eixo horizontal nos diz da mtrica, mas ainda insuficiente para compreendermos o ritmo como movimento. E esse movimento pode at transbordar os limites do campo musical, fazendo saltar destas diagonais rtmicas linhas transversais capazes de atravessar os domnios mais diversos do pensamento contemporneo. Ou, ao me-nos, pretendemos que o ritmo possa nos servir adiante como uma esp-cie de articulador transversal entre a linguagem musical e a produo de sentidos do tempo na subjetividade.IV

    Mas no nos esqueamos do silncio! Quanto a ele, o que nos diz a leitura hegemnica? Pois bem, na notao tradicional, h uma figura que corresponde ao silncio musical e que chamada pausa. A pausa no indica qualquer altura, pois no sugere qualquer emisso de nota ou rudo, mas exatamente o contrrio. O que a pausa representa apenas uma medida de sua durao (pausa de semibreve, de semnima, de fusa, de colcheia, etc):

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    Figura 8: Pausas (com proporo matemtica entre as diversas figuras)

    Embora a representao das notas musicais indique a altura exata e a das pausas no porte qualquer indicao de altura, ambas representam sua durao, elemento necessrio a todo e qualquer fenmeno musical; e, ao se dizer isso, afirma-se a msica como uma arte temporal. Mas no seriam temporais todas as artes, uma vez que no podemos dizer que algo ocorra fora do tempo? Afinal, no h tempo na pintura, na literatura, no teatro, no cinema? claro que h! Basta nos colocarmos no lugar de quem produz e/ou aprecia quaisquer des-sas artes para que percebamos que o tempo est presente em toda produo e contemplao artstica. No s na msica, mas tambm na dana, na escultura, na literatura, na arquitetura, fotografia, teatro, cinema etc. Nenhum processo escapa ao do tempo. Cabe ento esclarecermos aqui como o tempo se faz presente na msica, de tal maneira que possamos distinguir a o seu papel da-quele exercido nas demais formas de manifestao artstica.

    Pois bem, partimos da definio da msica como arte: uma arte dos sons e silncios. Para a abordagem musical tradicional o som a nota e o silncio a pausa. A escrita clssica das notas musicais, assim como das pausas, re-presenta sempre o intervalo de tempo ao longo do qual tais sons e silncios devem ocorrer. Nessa leitura, todo elemento de uma composio musical possuiria uma durao determinada, toda matria musical estaria disposta ao longo de um tempo, mesmo com a possibilidade de fermatas, figuras que indicam que o executante pode interpretar a durao de certa nota ou pausa a seu bel prazer (ad libidum). Mas isso talvez no baste. Podemos dizer que a msica mais que uma arte de sons dispostos ao longo do tempo, pois se s dissermos isso pode parecer que pensamos o tempo como se fosse um espao homogneo. Queremos inverter os princpios metodolgicos e dizer que a msica uma arte dos tempos que se tornam audveis por suas conexes com o sonoro.

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    A msica a arte de tornar audvel o tempo. Mas que tempo esse que ela faz ouvir? E trata-se de um s ou de vrios tempos? Na abordagem cls-sica da msica o tempo uma varivel que pode ser controlada, manipulada espacialmente. A abordagem clssica da msica correlata de uma certa abordagem clssica do sujeito que a produz e contempla. o que pretende-mos esclarecer aqui, pois nossa proposta pensarmos um outro modo de colocarmos o problema do tempo na msica que, levando em considerao a produo de subjetividade envolvida, no pode tampouco se basear num ideal clssico do sujeito.

    Por isso, no nos interessa estendermos a discusso sobre as dis-tines que o sistema de notao musical tradicional trabalha entre al-tura, timbre, intensidade e durao; mas ao contrrio, queremos agora considerar todas essas questes em funo do tempo, como efeito com-plexo de pulsaes em frequncias distintas. Com isso, seremos levados a pensar a msica no apenas como arte do tempo, expresso ainda vaga, mas como uma linguagem artstica que explora e confronta dis-tintas temporalidades, afinal uma composio musical nada mais que uma organizao temporal de eventos sonoros, assim como cada even-to sonoro nessa composio uma organizao temporal de impulsos (STOCKHAUSEN, 1961, p. 143).

    Assim, se partirmos do fato de que as diferenas da percepo acsti-ca so todas no fundo reconduzveis a diferenas nas estruturas temporais das vibraes como fez o msico Karlheinz Stockhausen, no clebre texto A unidade do tempo musical (1961) , chegamos a conceber um tempo musical unitrio que faz com que as diferentes categorias da percepo, isto , que dizem respeito cor, harmonia e melodia, mtrica e rtmica, dinmica, forma, correspondam a distintos campos parciais desse tempo unitrio (p. 144). Tal leitura do som como complexo rtmico de pulsaes ondulatrias, e no como nota, no apenas aborda as notas musicais como tambm faixas de frequncia inaudveis, infrassons e ultrassons (o silncio), e, mais ainda, abarca os rudos, ampliando o limiar de indistino entre o que pode ou no ser considerado musical.

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    Figura 9: Trecho inicial da partitura manuscrita de Kontakte, de Stockhausen, para piano, percusso e fita

    gravada. Stockhausen-Stiftung fr Musik, Krten, Germany ().

    Segundo Wisnik (1989), a msica contempornea se defronta com a admisso de todos os materiais sonoros possveis: som/rudo e silncio, pul-so e no-pulso (p. 31).7

    7. O tema do rudo retorna historicamente msica com toda sua fora no incio do sculo XX, atravs do

    texto A arte dos rudos: manifesto futurista, de 1913, em que Luigi Russolo prope uma esttica de sons produ-

    zidos por mquinas, usualmente indesejveis em uma poca de desenvolvimento acelerado e barulhento de

    indstrias. Russolo considera movimentos na msica paralelos ao multiplicar-se das mquinas, e que tomam

    contribuies de ambos os lados na produo de uma sensibilidade auditiva modulada por foras que afetam

    a subjetividade de fora para dentro:

    O ouvido de um homem do sculo XVIII no teria podido suportar a intensidade desarmnica

    de certos acordes produzidos por nossas orquestras (triplicadas no nmero de instrumentistas

    em relao quelas de outrora). O nosso ouvido, ao contrrio, satisfaz-se, pois que j fora edu-

    cado pela vida moderna, to prdiga de rudos diversificados (p. 52).

    Em meio a essa satisfao da sensibilidade, certa autonomia tico-poltica pode se expressar, apontando para

    uma mudana de sentido, uma operao de dentro para fora, uma maneira diferente de nos voltarmos para o

    espao urbano. E Russolo, entusiasta dos rudos, nos prope esta mudana de sensibilidade:

    Atravessemos uma grande capital moderna, com os ouvidos mais atentos que os olhos, e de-

    gustaremos ento o distinguir dos redemoinhos de gua, de ar ou de gs nos tubos metlicos,

    o murmrio dos motores que resfolegam e pulsam com uma indiscutvel animalidade, o palpi-

    tar das vlvulas, o vai e vem dos mbolos, os rangidos das serras mecnicas, o andar dos trens

    por sobre os trilhos, o estalar dos chicotes, o gorjear das cortinas e bandeiras (p. 53).

    Russolo considera que toda manifestao de nossa vida acompanhada de rudos, possuindo estes uma varie-

    dade ilimitada que ele sugere que, com o multiplicar de novas mquinas, aprendamos a distinguir. Assim, incita

    os msicos a observarem com ateno todos os rudos, a fim de que percebam os vrios ritmos que os com-

    pem: preciso que a sensibilidade do musicista, liberando-se do ritmo fcil e tradicional, encontre nos rudos

    o modo de se ampliar e de se renovar, dado que todo rudo propicia a unio dos ritmos mais diversos (p. 54).

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    * John Cage, considerado por alguns a figura mais paradoxal de toda m-sica contempornea (ECO, 1968, pp. 211-212), apresentou ao pblico em 1952, pela primeira vez, com David Tudor ao piano (embora adaptvel a outras formaes e instrumentos), sua 433 Tacet (Silence). A pea musical no apresentava qualquer som anotado: o intrprete mantinha-se em siln-cio, consistindo a msica nos sons ambientais e eventualmente do pblico (GRIFFITHS, 1998, p. 120). interessante notar que Tudor se apresentava com um cronmetro diante de si, abrindo e fechando a tampa do piano, ao fim de cada movimento da pea. So exatamente quatro minutos e trinta e trs segundos sem que Tudor marque o tempo ou emita qualquer nota musical; ele apenas ocupa o tempo em silncio. No entanto, o silncio persegui-do por Cage nesta composio um silncio propositalmente ruidoso, que faz emergir comentrios do pblico, ranger de cadeiras, impacincia e indignao da plateia, mudanas na percepo e no pensamento. Um silncio que nos fora a pensar paradoxalmente na impossibilidade do silncio absoluto, mas tambm nas zonas de indistino entre o som e o rudo, entre o pblico e o artista, entre o dentro e o fora da msica e das salas de concerto, entre a arte e a vida, em uma enorme abertura para a inveno coletiva que nos remete tambm a prticas rituais anteriores ao prprio desenvolvimento da escrita musical.

    No entanto, antes de tocarmos em tais prticas, vamos nos dirigir ain-da um pouco mais notao tradicional e explorar as noes clssicas de compasso, pulsao e ritmo, articuladas noo de tempo musical, para que possamos notar como ocorre a passagem desta leitura ainda espacializada para leituras contemporneas do ritmo. Mas, por ora, o que est em pauta ainda a diviso do tempo musical em compassos na partitura tradicional.8

    8. Quando dizemos aqui contemporneo, clssico ou tradicional, o que buscamos realar no a identidade de

    tais termos com um perodo cronolgico especfico do tempo e sim a potncia operatria que eles guardam,

    que nos auxilia a compreendermos ritmicamente a passagem de um modo de agir e pensar a outro. Portanto,

    no se trata de traar aqui uma linha evolutiva da esttica musical. Afinal, somos forados a pensar simulta-

    neamente em diversas linhas que concorrem na produo de subjetividade. Portanto, pensar uma operatria

    presente em pocas e lugares distintos, evocar linhas de criao j traadas em um novo contexto onde o devir

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    Os compassos e as unidades de tempo binrias e ternriasA notao clssica de uma composio musical indica sua diviso em com-passos, separados por barras verticais. No pentagrama h tambm a frmula de compasso, representada pelos dois nmeros escritos um sobre o outro no incio da pauta:

    Figura 10: pentagrama, as barras e a frmula do compasso quaternrio simples

    Assim como numa frao matemtica, os nmeros da frmula de com-passo so chamados de numerador e denominador. A partir desta frmula, que no cabe aqui explicitar o funcionamento em detalhe, podemos con-cluir quantos tempos (ou tempi, termo em italiano) h naquele compasso e qual figura representa a unidade de tempo. Os chamados tempos de um com-passo so os intervalos iscronos, nos quais o compasso inteiro se divide.

    Podemos comparar com nossos relgios, aos quais estamos bastante acostumados. Sabemos que, num relgio, a hora dividida em 60 intervalos

    de tais linhas virtual, uma questo metodolgica que remete colocao dos problemas em funo do

    tempo, mas no do tempo medido, e sim do tempo como processo, como passagem.

    De acordo com Negreiros (2000), na Idade Mdia a Igreja dizia que o tempo era imutvel, pertencente a Deus

    e temia que sua medio pelos homens implicasse a passagem desse atributo divino para o domnio profano

    e, em consequncia, a perda de poderes da Igreja (p. 26). Mas, por volta do final do sculo XIII, os primeiros

    relgios mecnicos j haviam sido inventados e o homem foi se habituando a ouvir a passagem do tempo

    acompanhada de uma medida espacializada. Para Schafer (1991), o fato que todos os meios antigos de

    medir o tempo (relgios de gua, de areia, de sol) eram silenciosos. O relgio mecnico audvel (p. 88). E

    isso muda a sensibilidade.

    Uma grande inovao na msica do perodo foi a polifonia catlica. E, de acordo com Roland de Cand (2001),

    esta nova polifonia s foi possvel com as mudanas nos processos de notao. Nessa poca, os msicos, dese-

    jando que suas obras durassem para serem executadas por outros, comearam a buscar maior controle sobre o

    que criavam. Assim, foi publicado o tratado Ars nova musicae e, enquanto a polifonia do sculo XIV foi chamada

    de Ars Nova, a imediatamente anterior passou a ser chamada Ars Antiqua. Uma das principais novidades da Ars

    Nova foi o aperfeioamento do sistema proporcional de medio das duraes, que j se parecia com o nosso.

    Os ritmos foram sendo cada vez mais precisamente medidos at que, em meados do sculo XVI, quando se co-

    meou a publicar a msica em partituras, surgiu enfim a barra de diviso dos compassos (2001, pp. 313-314).

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    iscronos de um minuto. Iscronos, pois todos os minutos possuem a mesma medida cronomtrica. Ou seja, em uma hora, h sessenta tempos com um minuto de durao cada e, independente do que fazemos, do modo como preenchemos, como ocupamos esse tempo, o relgio sempre poder nos indicar uma diviso iscrona dessa hora. O relgio indiferente s nossas expectativas e angstias; indiferente ao fato de experimentarmos um prazer fugidio que gostaramos de prolongar ao mximo, ou uma dor que parece no ter fim... Em um relgio bem ajustado, as horas continuam iguais. As-sim como os minutos de uma hora para o relgio, so os tempos de um com-passo para a partitura musical: iscronos, iguais a eles mesmos, independen-te de como so preenchidos, ocupados, vividos. Eis a medida do tempo, que podemos multiplicar e dividir:

    Se imaginarmos um compasso que dure uma hora, podemos programar nosso relgio para que apite a cada meia hora (unidade de tempo = 30min.) e teremos dois apitos (dois tempos) a cada hora (compasso). Podemos tambm programar nosso relgio para que apite a intervalos de vinte minutos (unidade de tempo = 20min.) e ouviremos trs apitos (trs tempos) a cada hora (compas-so). Quando um compasso possui dois tempos (ou tempi), ele recebe o nome de compasso binrio; quando possui trs tempos, ele chamado de compasso ter-nrio; quando possui quatro, quaternrio. As outras divises so consideradas irregulares e voltaremos a elas no segundo captulo.

    Figura 11: O compasso binrio simples e o compasso ternrio simples

    Acontece que, na linguagem musical tradicional, um compasso no possui apenas um nome (compasso binrio, ternrio, quaternrio), mas tem tambm um sobrenome. O nome completo do compasso j est todo criptografado em sua frmula de compasso. Portanto, um compasso no se

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    define apenas pelo nmero de tempos que possui, mas tambm pelo modo como as unidades de tempo so, elas prprias, divididas.

    O relgio, que tomamos em nosso exemplo, no divide as horas apenas em minutos, mas tambm em segundos. Com isso, podemos che-gar a nveis mais profundos de preciso cronomtrica e medirmos, por exemplo, o tempo que dura o auge da dor de uma picada de injeo ou do prazer de um orgasmo. E, ainda que possamos fazer esses tempos coincidirem em termos cronomtricos, sentimos em nossos corpos que tais segundos so preenchidos por sensaes bastante diferentes, pois di-zem respeito ora ao prazer, que desejamos prolongar, ora ao desprazer, que desejamos extinguir o mais rpido possvel, ora a sensaes amb-guas, paradoxais, que so simultaneamente prazerosas e desprazerosas. Contudo, tal diviso mais precisa da hora tem sua prpria razo de ser. Podemos dizer que quando dividimos uma hora no apenas em minu-tos, mas em segundos, estamos ainda fazendo algo com a cronometria. Estamos subdividindo a unidade com a qual medimos o tempo; o que til para distinguirmos intervalos menores. mais ou menos isso o que a unidade de tempo do compasso indica, ou seja, o tipo de subdiviso da unidade que tomamos como padro; e esta subdiviso, na teoria musical tradicional, tambm pode ser binria ou ternria.

    Assim, h dois tipos de compassos: os simples e os compostos. Temos o primeiro caso quando a unidade de tempo representada por uma figura divisvel por dois; e o segundo caso quando a unidade de tempo dividida por trs. Nessa leitura, a unidade de tempo tambm chamada de pulsao, a menor unidade (mnimo mltiplo comum de todos os valores utilizados), ou um mltiplo simples dessa unidade (duas ou trs vezes o seu valor) (BOULEZ, 1963, pp. 87-88). Ou seja, nos compassos simples as pulsaes so binrias e nos compostos so ternrias. Um com-passo pode, por exemplo, ser binrio (possuir duas unidades de tempo) e, ao mesmo tempo, ser formado por unidades de tempo (pulsaes) tern-rias; e, nesse caso, ele no vai se chamar compasso binrio ternrio, mas binrio composto:

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    Figura 12: O compasso binrio composto e o compasso ternrio composto

    Mas o que buscamos salientar at aqui apenas que, assim como o vi-sor de um relgio, o compasso representa uma espacializao, uma diviso regular do tempo musical (mesmo em compassos irregulares, como veremos adiante), na medida em que se estabelece a um retorno iscrono de ele-mentos idnticos (DELEUZE, 2006a, p. 46). H sempre uma isocronia no compasso, embora no vivamos o tempo como iscrono, mas como mlti-plo e diferenciante, atribuindo valores diversos aos ritmos que experimenta-mos em vrias pocas e lugares.

    De acordo com o musiclogo Roger Cotte (1997), desde o comeo da notao musical dos ritmos considerou-se a existncia de dois ritmos funda-mentais: o perfeito e o imperfeito, correspondentes ao ternrio e ao binrio. Os msicos medievais outorgavam um valor masculino ao ritmo ternrio, con-siderado perfeito por evocar o mistrio da Santssima Trindade. Em con-traposio, o binrio tomava o valor feminino (pp. 45-46). Haveria portanto, nessa linguagem, certa superioridade esttica dos ritmos ternrios sobre os binrios, que estaria ligada a uma concepo do masculino como superior ao feminino e a uma aproximao entre o ternrio e a Santssima Trindade, modelo de perfeio, de eternidade, na leitura medieval. Nesse contexto, ao ritmo ternrio, masculino, era atribudo um valor de perfeio e uma for-ma circular. Santo Agostinho (apud COTTE, 1997) dizia que o ternrio era o primeiro nmero perfeito, que tem comeo, meio e fim (p. 46).9

    9. Segundo Cand (2001), desde que se imps o primado do ternrio, surgiram novas figuras representando

    duraes relativas: na notao da Ars nova teria ocorrido um restabelecimento do binrio e, com isso, a emer-

    gncia de um sistema de notao baseado em propores entre dois e trs. A escrita da Ars nova funda-se em

    um princpio unificador chamado isorritmo, baseado na repetio iscrona de estruturas rtmicas (pp. 283-292).

    Uma coisa importante no confundirmos a noo clssica de unidade de tempo e o princpio unificador do

    isorritmo, com a noo de tempo musical unitrio, de Stockhausen (1961), que abordamos no item anterior. As

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    Para os msicos clssicos, essa noo de ritmos masculinos e femini-nos traduzida por uma referncia que no se diz mais a do perfeito e do imperfeito, ou do ternrio e do binrio, mas se anuncia como medida da fora da unidade e fraqueza da multiplicidade. o estabelecimento de um metro-padro que est se efetuando no interior do discurso musical: Vicent DIndy (apud COTTE, 1997) dir que a abordagem clssica da msica chama de masculino o ritmo cujo tempo forte contm um nico som, e de feminino aquele cujo tempo forte formado de um som principal acentuado, seguido de outros cuja intensidade diminui (p. 46). Nessa leitura dicotomizan-te, o tempo musical masculino quando dotado de um nico som, de uma unidade sem movimento interno de diferenciao, e feminino quando os sons esto distribudos em momentos e nveis diversos de intensidade. A notao musical tradicional chama de terminao mas-culina aquela em que a msica, ou o trecho acaba no tempo forte; e feminina aquela que acaba no tempo fraco, ou na parte fraca do tempo. Essa leitura expressa a fora do padro masculino na sociedade (em oposio a uma suposta fraqueza do feminino), dicotomia refletida na linguagem musical clssica; linguagem esta que, alis, tambm parece confundir os sentidos de ritmo e de compasso.

    O compasso apenas uma representao espacializada, que diz respei-to sobretudo aos cdigos musicais. E claro est que nosso interesse aqui no discutir tipologia musical, identificar compassos por seus nomes e sobre-nomes, pois nenhum compasso porta a ritmicidade que queremos abordar. Apenas precisamos expor at aqui as noes do pensamento musical clssico que se relacionam com o que queremos problematizar. Pois o compasso situa-se no espao homogneo de uma folha de papel e, como mera repre-sentao espacializada, no porta qualquer processo de diferenciao em re-

    unidades de tempo j so binrias e ternrias e o que resulta da articulao dessas pulsaes binrias e ternrias

    que passa a ser tomado como unidade no isorritmo. Essas partculas no so quebradas, no so analisadas

    como uma ordenao temporal de impulsos, como na teoria da unidade do tempo musical, que, ao pensar a

    msica do ponto de vista da sntese eletrnica de sua onda fsica, amplia a preciso cronomtrica da anlise

    dos micro-movimentos temporais intrnsecos aos sons a tal ponto que unifica as diversas caractersticas do som

    musical num fluxo contnuo que vai se aproximar paradoxalmente da noo de ritmo como tendncia avessa a

    qualquer isocronia, qualquer isometria, conforme trabalharemos mais adiante.

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    lao a si prprio, qualquer heterogeneidade; ou seja, compasso represen-tao, e como tal est apenas no espao, e no no tempo: o compasso no sofre a ao do tempo. Mas o que queremos dizer com isso?

    Pois bem, podemos fechar os olhos diante de uma partitura, pelo intervalo de tempo que quisermos. Por exemplo, podemos ficar de olhos fechados durante o intervalo de tempo correspondente durao da pr-pria msica que est representada na partitura. Ao abrirmos novamente os olhos, nada ter se alterado na notao do tempo musical: as semnimas, as colcheias e as pausas continuaro em seus lugares, imunes ao do tempo transcorrido. Podemos dizer que nada muda na partitura, se no aplicamos a ela alguma ao (como, por exemplo, inciner-la, amass-la, atir-la na gua, ou mergulh-la em um balde de tinta). Mesmo assim, isso ainda seria dizer pouco, pois muito fcil pensar que o metro esteja s na notao e que basta que a abandonemos para que possamos pensar a msica como um processo de diferenciao, como um verdadeiro fluxo vital expressivo.

    S que as coisas no se passam nesse nvel, pois nem ao menos propo-mos aqui o fim da notao; no essa a nossa questo. O ritmo nos interessa aqui na medida em que nos ocupamos com a produo de subjetividade, o que implica tambm uma distino, mas, antes e sobretudo, uma conside-rao da inseparabilidade entre corpo e esprito de quem toca, ouve e/ou compe msica. Como em uma performance musical, onde tocar, ouvir e compor msica so aes simultneas. Portanto, no se trata aqui de separar escrita e execuo, nem se trata apenas de msicos e notas musicais, mas tambm da escuta e do sonoro. Alis, nem se trata aqui somente do audvel, mas de qualquer experimentao em que a produo esttica de sentido comparea como criao de si, efeito paradoxal que expressa a unidade entre corpo e pensamento no tempo.10

    10. Pois quando dizemos aqui performance no nos referimos interpretao, no sentido de representao do

    significado de uma obra, mas pensamos em processos de composio que so sempre coletivos e se do em

    tempo real. Por isso, a noo de performance, conforme a utilizamos, pode nos remeter inclusive ao fora da

    msica: com Untitled Event (Evento sem Ttulo), Cage se props a uma fuso original de cinco artes: o teatro,

    a poesia, a pintura, a dana e a msica (GLUSBERG, 2007, p. 25). Pois o que esse fora expressa, para ns,

    uma certa relao do corpo com o tempo, que pressupe em toda criao algum tipo de estranhamento, de

    desnaturalizao.

  • r i t m o e s u b j e t i v i d a d e

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    Segundo Mrio de Andrade (1976), como na Grcia Antiga a msica no era uma arte isolada, mas estava sempre unida poesia e dana, o compositor grego era ao mesmo tempo cantor, poeta e danarino. As m-sicas continham texto e expresso coreogrfica. E o que unia as trs artes era o ritmo (p. 29). Por conta disso, estabeleceram as trs artes uma s quantidade de tempo, chamada de Tempo-Primeiro por Aristoxeno (...). O Tempo-Primeiro correspondia ao som mais curto da msica, slaba breve da poesia e ao gesto mais rpido da dana (p. 30). E os Tempos-Primeiros no implicam uma distino espacializada, dicotmica, entre forte e fraco: os gregos no empregaram o Tempo Forte (p. 30). O Tempo-Primeiro no uma unidade de tempo, nem um isorritmo; ao contrrio, diz respeito unio das artes com o corpo e seus ritmos, assim como destes com os ritmos cole-tivos: mudana de percepo, mudana de sentido.

    Portanto, primeiro aqui no se diz no sentido cronolgico; ou seja, no se trata de um tempo forte (como os que so proporcionalmente marcados no pentagrama), mas remete a uma postura de dar primazia aos ritmos vitais, o que questiona nosso modo usual de pensar. E isso resulta de colocarmos o tempo como primeiro, como princpio; ou, dizendo de outro modo, de colocarmos os problemas em funo do tempo (DELEUZE, 1999), levando em considerao que a espacializao uma caracterstica especfica de nossa inteligncia prtica, habituada a pensar apenas no que tem forma delimitada e ocupa lugar visvel no espao, como as rguas, compassos, relgios e calendrios.

    Glusberg (2007) nos conta que, em uma manh de 1962, Yves Klein realizou um de seus trabalhos mais conhe-

    cidos: Salto no vazio. Ele mesmo fotografado no instante que saltava para a rua, de um edifcio era o prota-

    gonista de sua obra, e, nesse sentido, a obra em si. Esta ao teria sido talvez, a iniciao do que se tem deno-

    minado arte da performance (p. 11). E a arte da performance busca questionar o usual, valorizando o instante:

    A performance um questionamento do natural e, ao mesmo tempo, uma proposta artstica.

    Isso no deve causar surpresas: inerente ao processo artstico o colocar em crise os dogmas

    principalmente os dogmas comportamentais seja isso mediante sua simp