Livro Russia No Seculo XXI

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 Organizador André Gustavo de Miranda Pineli Alves

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Livro Russia No Seculo XXI

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  • Misso do IpeaProduzir, articular e disseminar conhecimento para aperfeioar as polticas pblicas e contribuir para o planejamento do desenvolvimento brasileiro.

    OrganizadorAndr Gustavo de Miranda Pineli Alves

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    tncia? A

    Rssia no Sculo XXI

    AUTORES

    Andr Gustavo de Miranda Pineli AlvesAngelo SegrilloFranklin SerranoGabriel Pessin Adam Lenina PomeranzNuma Mazat

    9 788578 111564

    ISBN 978-85-7811-156-4

  • Governo Federal

    Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica Ministro Wellington Moreira Franco

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    Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoriaURL: http://www.ipea.gov.br

  • Braslia, 2012OrganizadorAndr Gustavo de Miranda Pineli Alves

  • Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ipea 2012

    As opinies emitidas nesta publicao so de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, no exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ou da Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica.

    permitida a reproduo deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reprodues para fins comerciais so proibidas.

    O Renascimento de uma potncia? : a Rssia no sculo XXI / organizador: Andr Gustavo de Miranda Pineli Alves. Braslia : Ipea, 2012. 206 p. : grfs., mapas, tabs

    Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7811-156-4

    1. Poltica Econmica. 2. Estratgia de Desenvolvimento.3. Anlise Histrica. 4. Rssia. I. Alves, Andr Gustavo deMiranda Pineli. II. Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada.

    CDD 338.947

  • SUMRIO

    APRESENTAO ........................................................................................7

    CAPTULO 1A GEOPOLTICA DA FEDERAO RUSSA EM RELAO AOS ESTADOS UNIDOS E EUROPA: VULNERABILIDADE, COOPERAO E CONFLITO ..........................................................................9Numa MazatFranklin Serrano

    CAPTULO 2A RSSIA COMO GRANDE POTNCIA E A PARCERIA ESTRATGICA COM A CHINA ...........................................................................................51Gabriel Pessin Adam

    CAPTULO 3A QUESTO DA DEMOCRACIA NA RSSIA PS-SOVITICA ........................97Angelo Segrillo

    CAPTULO 4A RSSIA SOFRE DE DOENA HOLANDESA? ............................................129Andr Gustavo de Miranda Pineli Alves

    CAPTULO 5O OBJETIVO DA MODERNIZAO ECONMICA E A CAPACIDADE DE INOVAO DA RSSIA ............................................169Lenina Pomeranz

  • APRESENTAO

    Em 2012, Vladimir Putin foi reconduzido presidncia da Federao Russa, em eleio na qual obteve quase 64% dos votos. Em 2018, quando deixar o cargo se no for reeleito para um novo mandato de seis anos , tero se passado quase duas dcadas em que Putin, nos postos de presidente ou de primeiro-ministro, esteve frente do poder na Rssia. Qual ser o principal legado da era Putin para o pas? Esta a pergunta guia deste livro.

    A nova Federao Russa surgiu do esfacelamento da Unio das Repblicas Socialistas Soviticas (URSS), que durante dcadas rivalizou com os Estados Uni-dos pela supremacia mundial, entretanto saiu derrotada no apenas da corrida armamentista dos anos 1980 mas tambm da luta por coraes e mentes mundo afora. Isto levou o cientista poltico Francis Fukuyama a sugerir que se havia chegado ao fim da histria, o que conduziria adoo universal dos sistemas poltico e econmico prevalecentes nos pases desenvolvidos do Ocidente.

    Durante os anos 1990, a Rssia foi uma fiel seguidora da cartilha reco-mendada pelos organismos internacionais. Contudo, isto no foi capaz de evitar a catstrofe econmica que se abateu sobre o pas, que viu seu produto interno bruto (PIB) encolher praticamente metade em apenas sete anos. No aspecto geopoltico, a Rssia tambm esteve em posio vulnervel naquela dcada, com a constante ameaa que afinal se concretizou de expanso da Organizao do Tratado do Atlntico Norte (OTAN) e da Unio Europeia em direo ao leste, para pases que outrora fizeram parte da zona de influncia da URSS.

    Por tudo isso, pode-se dizer que o aspecto mais marcante da Rssia do s-culo XXI, pelo menos at o momento, tem sido a busca pela recuperao de seu status no sistema internacional. A poltica de cooperao quando no de alinha-mento com as potncias ocidentais, que marcaram os anos 1990, vem dando lugar a uma postura mais assertiva, menos preocupada em obter o reconhecimen-to alheio e focada na defesa dos interesses geopolticos e econmicos da Rssia.

    Por seu turno, a atividade econmica voltou a apresentar vigor nos anos sub-sequentes crise financeira de 1998, beneficiada pelo elevado preo internacional do petrleo, o que trouxe musculatura financeira para o Estado remodelar suas po-lticas. O capitalismo selvagem dos anos 1990, fruto da adoo da terapia de cho-que na ausncia de instituies adequadas, passou a dar lugar a um sistema mais regulado, no qual o Estado tem ampliado sua capacidade de interveno e de in-duo. E a crise financeira global, embora tenha impactado fortemente a economia russa em 2009, no impediu a retomada do crescimento a partir do ano seguinte.

  • 8 O Renascimento de uma Potncia? A Rssia no sculo XXI

    Por fim, cabe lembrar que a Rssia faz parte, juntamente com o Brasil, a ndia, a China e a frica do Sul, do grupamento BRICS. Se um dia o acrnimo foi pouco mais que um instrumento de marketing criado por um banco de inves-timento para orientar seus clientes, desde a ecloso da crise financeira global em 2008 o grupo vem se transformando em um ator poltico relevante que, se ainda no se revelou capaz de estabelecer instituies conjuntas s vezes nem mesmo conseguindo adotar posies comuns em arenas internacionais , tem-se mostrado relativamente coeso na defesa de reformas nas instituies de governana global que ampliem a representatividade dos pases emergentes. Portanto, ampliar o co-nhecimento sobre a Rssia atual de grande relevncia para os formuladores e ope-radores da poltica externa brasileira. Por seu turno, as diversas semelhanas entre a economia brasileira e a daquele pas onde as discusses sobre o dilema entre a concentrao dos recursos na explorao de suas vantagens comparativas no setor energtico e a opo pela diversificao produtiva e modernizao tecnolgica es-to na ordem do dia podem trazer importantes insights para os agentes pblicos e privados preocupados com o desenvolvimento econmico brasileiro. Boa leitura!

    Marcelo Crtes NeriPresidente do Ipea

  • CAPTULO 1

    A GEOPOLTICA DA FEDERAO RUSSA EM RELAO AOS ESTADOS UNIDOS E EUROPA: VULNERABILIDADE, COOPERAO E CONFLITO*

    Numa Mazat**Franklin Serrano***

    1 INTRODUO

    O colapso da Unio das Repblicas Socialistas Soviticas (URSS), em 1991, ps termo Guerra Fria, perodo caracterizado por fortes tenses entre o mundo oci-dental dominado pelos Estados Unidos e o bloco socialista liderado pela URSS. Esta deu lugar a quinze Estados independentes, no meio dos quais figurava a Rssia. Mesmo sendo o maior destes novos pases, a Rssia s representa dois teros do territrio da ex-URSS e metade de sua populao. Este pas conseguiu obter a cadeira permanente ocupada pela ento URSS no Conselho de Segurana da Organizao das Naes Unidas (ONU) e conservar o controle exclusivo do antigo arsenal nuclear sovitico. Mas, depois que a URSS sob Mikhail Gorbachev abdicou unilateralmente de todas as suas pretenses de disputar o poder mundial como superpotncia, no primeiro momento, a nova Federao Russa correu o risco de perder at seu status de potncia regional.

    Nesse novo contexto, as relaes entre a Rssia, a Europa e os Estados Unidos mudaram bastante em relao ao que podia ser observado durante a Guerra Fria. Nas duas ltimas dcadas, estas relaes conheceram uma trajet-ria conturbada, ligada principalmente s mudanas internas da prpria Rssia. Assim, aparece claramente a primeira fase, que corresponde aos anos 1990 e presidncia de Boris Yeltsin, quando a Rssia, extremamente enfraquecida por seu processo de transio do socialismo para o capitalismo, adotou uma poltica externa pr-ocidental de cooperao com os Estados Unidos. Esta tentativa de

    * Os autores agradecem Mrcio Henrique de Castro, Jos Luis Fiori, Carlos Medeiros e Carlos Pinkusfeld, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ), Renata Summa, do Instituto de Relaes Interna-cionais da Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-RJ), e Andr Gustavo de Miranda Pineli Alves, do Ipea, por seus comentrios e suas sugestes. O resultado de inteira responsabilidade dos autores.** Professor temporrio do IE/UFRJ. E-mail: .*** Professor associado do IE/UFRJ e pesquisador do Programa de Pesquisa para o Desenvolvimento Nacional (PNPD) no Ipea. E-mail: .

  • 10 O Renascimento de uma Potncia? A Rssia no sculo XXI

    aproximao do Ocidente foi usada pelos Estados Unidos para enfraquecer siste-maticamente o poder do Estado russo. A Europa,1 como aliada subordinada dos norte-americanos, tambm participou deste processo, que lhe permitia reduzir o perigo potencial que poderia representar a Rssia para sua segurana.

    A chegada de Vladimir Putin ao poder e a recuperao econmica que se seguiu levaram ao abandono da estratgia de colaborao e a uma tentativa de recuperao do poder do Estado russo e tambm a consolidao de seu papel de potncia regional ao longo dos anos 2000. Naturalmente, esta mudana de estratgia foi acompanhada pela volta das tenses nas relaes entre a Rssia e os Estados Unidos, que mantm suas tentativas de enfraquecimento do poder russo. Da mesma forma, houve transformao das relaes com os pases europeus, mas de forma mais complexa, devido interdependncia econmica crescente entre a Europa e a Rssia, principalmente mas no apenas no setor energtico.

    Este captulo discute a evoluo das relaes entre a nova Federao Russa, a Europa e os Estados Unidos. Mostrar-se- que estas relaes evoluram de tal forma que atualmente existe forte conflito de interesses com os Estados Unidos e uma vinculao mais complexa com a Europa. Esta relao com os pases eu-ropeus marcada ao mesmo tempo ao contrrio dos Estados Unidos por crescente complementaridade de interesses econmicos especialmente na rea energtica , com pases europeus tomados individualmente, e forte conflito de interesses com a Unio Europeia (UE) e a Organizao do Tratado do Atlntico Norte (OTAN) como um todo, instituies subordinadas diretamente estrat-gia geopoltica americana.2

    O captulo est organizado da seguinte forma. Comear-se- com uma curta seo em que se contextua a situao estrutural do sistema de poder mundial no qual surgiu a nova Federao Russa, situao caracterizada por assimetria sem pre-cedentes histricos entre o poder dos Estados Unidos em diversas dimenses e o de todos os demais pases do mundo (seo 2). Em seguida, na seo 3, mostrar-se- como, inicialmente, a Rssia tenta seguir a estratgia de coopera-o com os Estados Unidos e a Europa a despeito das evidncias crescentes de que o objetivo do Ocidente era o enfraquecimento e a subordinao desse pas. Na seo 4, tratar-se- da gradual mudana de postura do Estado russo nos anos

    1. Neste captulo, por Europa est-se referindo, salvo aviso explcito do contrrio, aos pases que so simultaneamente da Unio Europeia (UE) e da Organizao do Tratado do Atlntico Norte (OTAN). Dessa forma, Ocidente ou ocidental significam neste captulo Estados Unidos, acrescido da OTAN e da UE.2. A OTAN uma aliana militar totalmente liderada pelos Estados Unidos, que conta com 28 estados-membros, essencialmente europeus. Suas decises so historicamente subordinadas diretamente aos Estados Unidos. A questo das relaes entre os Estados Unidos e a UE mais complexa, na medida em que esta ltima no dispe de poltica externa nica. Seus estados-membros preservam individualmente grande autonomia diplomtica e podem adotar posies divergentes, como no caso da Guerra do Iraque, em 2003. Mas as orientaes gerais da poltica externa da UE coincidem bastante com as decises dos Estados Unidos, sendo que 21 pases deste bloco econmico e poltico so, tambm, membros da OTAN.

  • 11A Geopoltica da Federao Russa em relao aos Estados Unidos e Europa

    2000, com a adoo de estratgia geopoltica defensiva em relao aos objetivos dos Estados Unidos na seo 5, mostrar-se-o as relaes mais complexas e me-diadas pela questo energtica com a Europa nos anos 2000. A ltima seo trata brevemente das reaes ocidentais a esta mudana de postura da Rssia e discute as perspectivas atuais.

    2 ESTRUTURA E ESTRATGIA: A POSIO DA RSSIA NA GEOPOLTICA DO MUNDO ASSIMTRICO PS-GUERRA FRIA

    Para entender a situao com que se defronta a Rssia hoje, necessrio compreender as linhas gerais da estratgia geopoltica americana depois do fim da Guerra Fria. E esta estratgia parte de uma situao concreta, estrutu-ral e especfica. Esta situao de imensa assimetria entre os poderes militar e tecnolgico militar e civil (Medeiros, 2004; Ruttan, 2006) dos Estados Unidos em relao a todos os demais pases do mundo. Esta superioridade militar e tecnolgica foi a base sobre a qual se sustentou a construo da liderana monetria dos Estados Unidos no padro dlar flexvel, no qual a moeda nacional americana aceita como pagamento de todas as obrigaes comerciais e financeiras externas desse pas (Serrano, 2004; 2008). E foi a partir da liderana americana em termos do sistema monetrio internacional que se constituiu e consolidou a posio de liderana dos Estados Unidos no sistema financeiro internacional. De modo concreto, isto significa, por exemplo, que a liberalizao financeira externa em geral enfraquece a capa-cidade de executar polticas econmicas autnomas em n menos um pases, mas no nos Estados Unidos.

    Nessa situao inusitada de forte assimetria de poder tanto militar quanto econmico entre os Estados Unidos e o resto do mundo, com o fim da Guerra Fria e o colapso da URSS, a estratgia geopoltica americana desde 1991 est ex-plicitamente calcada em dois aspectos considerados prioritrios.

    Em primeiro lugar, na ausncia de uma potncia rival em mbito global, a prioridade da estratgia do Estado americano mudou para o enfraquecimen-to do poder dos pases que aspiram ser potncias regionais, especialmente mas no apenas aqueles que dispem de armas nucleares (Fiori, 2004). O outro objetivo central da estratgia geopoltica americana a tentativa de manter o controle do acesso s principais reservas mundiais de recursos energticos. Este ponto, embora evidente nos atos concretos do Estado ame-ricano, tem sido pouco compreendido. Pois o ponto central no primordial-mente a garantia das rotas do abastecimento energtico dos Estados Unidos, mas, sim, a manuteno da capacidade de vetar, se e quando necessrio, o abastecimento dos outros pases importantes, sejam estes aliados ou rivais.

  • 12 O Renascimento de uma Potncia? A Rssia no sculo XXI

    Se o objetivo da estratgia fosse apenas a garantia do abastecimento ameri-cano, difcil entender sua forte presena militar no Oriente Mdio, por exem-plo, pois, em princpio, os Estados Unidos poderiam abastecer-se plenamen-te com recursos energticos oriundos apenas das Amricas (Canad, Mxico, Venezuela etc.) e/ou frica.3 Dessa forma, os Estados Unidos praticamente no importam gs natural da Rssia e/ou da Eursia, o que tornaria difcil entender o interesse americano na regio, se o objetivo fosse apenas a segurana energ-tica da economia americana.

    Essa estratgia geopoltica tem por objetivo manter a posio de lide-rana dos Estados Unidos no sistema mundial e, ao mesmo tempo, combina bem com os interesses econmicos gerais do complexo industrial-militar (Hossein-Zadeh, 2007) e do setor financeiro, que so os que tm maior influncia nas decises do Estado americano, e explica em boa parte o mili-tarismo e a agressividade da sua diplomacia.

    No entanto, nem o Estado nem o capitalismo americano so monolticos. Existe um elemento que, se no elimina esta orientao geral, tende a moder-la substancialmente, que a presena de fortes complementaridades entre os inte-resses nacionais de alguns outros pases e os interesses econmicos especficos de empresas produtivas ou financeiras americanas.4 Esta contradio em relao a objetivos econmicos especficos aparece da mesma forma nos pases aliados ou alinhados a esta estratgia geral dos Estados Unidos.5

    Apesar das qualificaes acima, importante notar que essa estratgia geopoltica geral opera tanto em termos militares e diplomticos como est presente de forma tcita como vis pr-alinhamento automtico com os Estados Unidos em diversos organismos ditos multilaterais o Fun-do Monetrio Internacional (FMI), a Organizao Mundial do Comrcio (OMC), o Banco Mundial e tambm a OTAN e a UE e, de forma menos bvia, na orientao editorial das empresas globais de mdia e de parte das organizaes no governamentais (ONGs).

    Somente nesse quadro de referncia que se pode tentar entender a geopol-tica da nova Federao Russa. Mesmo abrindo mo do sistema econmico e social socialista e de suas aspiraes militares e estratgicas globais, a Rssia herda inevi-

    3. Neste captulo, chama-se ateno apenas para os aspectos estratgicos e geopolticos. Sobre as relaes entre os Estados Unidos e a Arbia Saudita no que diz respeito regulao do preo internacional do petrleo e sua importn-cia para a rentabilidade da relevante indstria petroleira dos Estados Unidos, ver Serrano (2004).4. O economista Mikhail Kalecki dizia os capitalistas fazem muitas coisas enquanto classe, mas no investem en-quanto classe.5. Para uma viso diferente, que no considera essas contradies entre interesses econmicos especficos e interesses polticos e econmicos gerais como fatores atenuantes, mas, sim, como parte de lgica prpria do conflito interestatal.Ver Fiori (2007a; 2008).

  • 13A Geopoltica da Federao Russa em relao aos Estados Unidos e Europa

    tavelmente o status de potncia regional com forte capacidade nuclear. Ao mesmo tempo, na Rssia e em algumas das antigas repblicas soviticas, encontram-se grandes reservas de petrleo e as maiores reservas de gs natural do mundo, alm de a Rssia ser importante supridor de energia de diversos pases importantes da Europa. Ademais, a Federao Russa tem muito pouco intercmbio comercial com os Estados Unidos e relativamente pouco investimento direto americano em seu territrio; at mesmo em termos financeiros, sempre esteve mais conectada e integrada Europa que aos Estados Unidos.

    Assim, as importaes russas dos Estados Unidos s representavam 2,8 % (US$ 5 bilhes) do total em 2010; enquanto as exportaes russas para os Estados Unidos correspondiam a 6% (US$ 18 bilhes) do total (European Commission, 2011).

    Nesse contexto, o que surpreende no so os conflitos mais recentes com os Estados Unidos, e sim como pode ter durado tanto tempo na Rssia a ideia de que seria vivel uma postura de colaborao pr-ocidental em vez de uma atitude defensiva frente estratgia americana geral na regio.6

    No caso da Europa, existe ambiguidade entre a posio dura contra a Rssia dos organismos institucionais coletivos como a OTAN e a UE e as relativamente boas relaes bilaterais de alguns pases europeus considera-dos individualmente com a Federao Russa. Esta ambiguidade talvez parea menos estranha se se levar em conta dois aspectos importantes. Em primeiro lugar, est o fato de que estes organismos coletivos, no que diz respeito a questes geopolticas, so completamente alinhados com a estratgia geopo-ltica geral americana descrita anteriormente, uma vez que a Europa no tem poltica externa estratgica e geopoltica realmente autnoma e independente da americana.7 Em segundo lugar, e ao mesmo tempo, os pases individuais europeus que tm relaes menos conflituosas com a Rssia, em geral, so exatamente aqueles cujas empresas tm mais relaes econmicas com este pas, de comrcio externo, investimento direto e financeiras, especialmente mas no apenas na rea energtica.

    6. Note que a China tem muito mais interesses econmicos complementares com empresas americanas e , sob diver-sos aspectos estratgicos e geopolticos, muito mais vulnervel que a Rssia, particularmente em termos de segurana energtica e potenciais tecnolgicos militar e nuclear. As presses da diplomacia americana contra a China nos lti-mos vinte anos tm sido bem menos fortes e agressivas que as contra a Rssia, mas, mesmo assim, o governo chins evidentemente jamais cogitou postura de cooperao com os Estados Unidos nas linhas de Mikhail Gorbachev ou Boris Yeltsin e sempre imps limites s tentativas de enfraquecimento do Estado chins.7. Vale lembrar que, vinte anos depois do fim da Guerra Fria, no apenas a OTAN se expandiu, apesar do fim do Pacto de Varsvia e da URSS, mas tambm passaram a existir tropas e/ou bases americanas na Alemanha, na Itlia, na In-glaterra, na Espanha, entre outros pases. At a Frana, que tinha abandonado a estrutura militar da OTAN em 1966, reintegrou o comando militar desta organizao em 2009, durante a presidncia de Nicolas Sarkozy.

  • 14 O Renascimento de uma Potncia? A Rssia no sculo XXI

    3 ENFRAQUECIMENTO DO PODER RUSSO E A COOPERAO UNILATERAL COM O OCIDENTE NA ERA YELTSIN (1991-1999)

    Os anos 1990 foram marcados na Rssia por grande enfraquecimento do ponto de vista geopoltico, que refletiu externamente a perda de poder do Estado russo. Zbigniew Brzezinski, que foi assessor de segurana nacional do presidente ame-ricano Jimmy Carter, chegou a usar a expresso buraco negro para designar o espao da ex-Unio Sovitica. Ele escreve:

    A desintegrao no final de 1991 do maior Estado mundial do ponto de vista territorial criou um buraco negro bem no centro da Eursia. Era como se o heartland dos geopolticos tivesse sido de repente varrido do mapa global (Brezinski, 1997, p. 87).

    Ele acrescenta:

    A Rssia, at recentemente o pas criador de um gigante imprio territorial e o lder de um bloco ideolgico de Estados-satlites estendido do corao da Europa at certo ponto no Sul do mar da China, tornou-se um Estado nacional agitado, sem acesso geogrfico fcil para o mundo afora e potencialmente vulnervel a conflitos enfraquecedores nos seus flancos ocidentais, meridionais e orientais. Somente os espaos inspitos e inacessveis do Norte, quase permanentemente gelados, parecem geopoliticamente seguros (op. cit., p. 96).

    Aproveitando essa nova situao russa, os Estados Unidos perseguiram, ao longo dos anos 1990, a poltica de enfraquecimento sistemtico da Rssia. Esse pas foi ajudado pela atitude pr-ocidental de Boris Yeltsin, que, at seu abandono do poder em 1999, defendeu a ideia de integrao virtuosa da Rssia no mundo ocidental.

    3.1 O mito da integrao virtuosa da Rssia no sistema internacional

    A presidncia de Boris Yeltsin foi marcada por uma surpreendente ingenuidade da alta cpula russa, que dizia acreditar nas boas intenes dos dirigentes ame-ricanos e europeus. Esta ingenuidade foi firmemente mantida pelos dirigentes russos pelo menos at 1996, a despeito de seus resultados catastrficos em termos geopolticos para a Rssia. O presidente Boris Yeltsin no cansava de repetir que a Rssia e os Estados Unidos tinham muitos interesses em comum. No seu discur-so de 31 de janeiro de 1992, no Conselho de Segurana da ONU, Boris Yeltsin declarava que a Rssia

    considera os Estados Unidos e os outros pases ocidentais no somente como parcei-ros, mas tambm como aliados. Moscou compartilha os principais valores ociden-tais, que so a primazia dos direitos humanos, da liberdade, do estado de direito e da alta moralidade (Fawn, 2003, p. 13).

  • 15A Geopoltica da Federao Russa em relao aos Estados Unidos e Europa

    Como ser mostrado adiante, os protestos diplomticos da Rssia contra os projetos de expanso da OTAN em relao a pases da esfera de influncia da ex-URSS, quebrando promessas anteriores de que isto no ocorreria, no surtiram nenhum efeito. Curiosamente, isto no impediu os dirigentes russos de continu-arem manifestando grande entusiasmo em relao construo de relaes fortes com o Ocidente at 1996. E, a rigor, mantiveram esta poltica de cooperao unilateral e sem contrapartidas com os Estados Unidos e a Europa at 1999.

    A chegada de Yevgueny Primakov ao cargo de ministro das Relaes Exterio-res, em 1996, de fato marcou uma pequena inflexo na poltica externa que, con-tudo, no se traduziu em mudana na situao geopoltica difcil da Rssia. Assim, Primakov tentou impor transformao na relao diplomtica do seu pas com os Estados Unidos, passando de apoio incondicional a uma afirmao maior dos inte-resses nacionais russos. Primakov defendia a ideia de retomada da influncia na rea da ex-URSS e tentou uma aproximao com a China e a ndia para contrabalanar a influncia internacional dos Estados Unidos.

    No entanto, essas tentativas foram muito tmidas e Primakov no conse-guiu frear as ambies expansionistas dos Estados Unidos e dos seus aliados euro-peus. Apesar de sua oposio ao avano da OTAN na Europa Central e do Leste, Primakov acabou assinando em Paris, em 27 de maio de 1997, o Ato Fundador so-bre as Relaes, a Colaborao e a Segurana Mtua entre a Rssia e a OTAN. Este documento estabelecia que a OTAN e a Rssia no se consideram mais adver-srios e se comprometiam a construir juntos uma paz duradoura e exclusiva na regio euro-atlntica por meio de uma parceria forte e duradoura (Roubinski, 1997). Assinando este ato, a Rssia de Yeltsin admitia a entrada na OTAN de pases da antiga esfera de influncia sovitica, como a Polnia, a Hungria e a Rep-blica Tcheca. Yeltsin tentou minimizar as consequncias desta deciso exprimindo no prprio discurso da cerimnia de assinatura do Ato Fundador seu desejo de um compromisso formal da OTAN para que armas nucleares no fossem implantadas nos seus novos estados-membros das Europa Central e Oriental. Este desejo russo no foi respeitado pelos estados Unidos nem pela OTAN, que iniciaram um plano para implementar um escudo antimssil nesta ex-zona de controle sovitico (Lo, 2002, p. 105). O ato fundador foi corretamente interpretado na poca como mais um sucesso dos Estados Unidos e da OTAN na sua estratgia de enfraquecimento da Rssia (Bayou, 2002; Marchand, 2008).

    3.2 O colapso econmico russo dos anos 1990: a participao dos Estados Unidos e da Europa

    No campo da economia, Boris Yeltsin introduziu depois de 1991 a chama-da terapia de choque para estabelecer rapidamente uma plena economia capitalista no pas. Esta estratgia foi elaborada em conjunto com assessores

  • 16 O Renascimento de uma Potncia? A Rssia no sculo XXI

    econmicos estrangeiros que eram diretamente pagos pelo governo dos Es-tados Unidos. Tal terapia de choque no foi bem-sucedida, sendo que o produto interno bruto (PIB) da Rssia teve queda pela metade entre 1991 e 1998. Mas o que interessa enfatizar neste estudo que os dirigentes russos esperavam obter, em troca de sua colaborao no estabelecimento acelerado de uma economia de mercado em seu pas, vultosas ajudas externas ameri-cana e europeia que lhes permitiriam atenuar os efeitos sociais e econmicos da transio. No caso americano, esta ajuda nunca veio; no caso europeu e de organismos internacionais como o FMI, foi extremamente limitada. Em primeiro lugar, como condicionalidade para obter novos crditos, a Rssia foi forada a assumir a dvida externa acumulada de todas as outras antigas repblicas soviticas. Alm disso, o montante de novos emprstimos e a ajuda externa foram to limitados em relao ao servio da dvida exter-na que, na dcada de 1990 como um todo, a Rssia pagou em termos lqui-dos mais dlares do que recebeu destes credores oficiais (Treisman, 2011).

    A poltica de abertura total e descontrolada da conta de capital fez com que setores estratgicos da economia russa fossem controlados direta ou indi-retamente por empresas estrangeiras, principalmente europeias. Alm disso, a abertura permitiu grande fuga de capitais que, a despeito da Rssia no ter apresentado dficit comercial em nenhum ano entre 1991 e 1998, desenca-deou uma grande crise de dvida externa em 1998, quando o pas teve de suspender os pagamentos. Estas dificuldades de financiamento externo, em conjunto com a forte perda de arrecadao fiscal por conta da recesso e da desorganizao geral da economia ao longo do processo de transio e pri-vatizaes, ajudaram a enfraquecer o Estado e sua capacidade institucional. Esta estratgia de transio desestruturou a economia e desorganizou o apa-relho do Estado, o que se refletiu de diversas formas na posio de poder externo da Rssia (Medeiros, 2008).

    3.3 O enfraquecimento militar

    Com o fim da URSS e a repartio dos equipamentos e das armas do Exrcito Vermelho entre os novos Estados soberanos, a capacidade militar da Rssia j diminuiria mecanicamente em relao ao perodo sovitico. Mas muito mais importante que isto foram os grandes cortes no oramento militar. Assim, o exrcito russo passou de 3 milhes de homens, em 1991, no momento da criao da Federao Russa, a 1,5 milho, em 1996 (Dauce, 2001).

    A capacidade militar em termos de equipamentos foi, tambm, bastante atingida no perodo Boris Yeltsin, principalmente se for comparada com a poca

  • 17A Geopoltica da Federao Russa em relao aos Estados Unidos e Europa

    sovitica. O nmero de tanques de guerra estacionados no Extremo Oriente teve queda, por exemplo, de 14,9 mil, em 1987, para 3,9 mil, em 1999. Naquele pe-rodo, o nmero de avies de combate baseados nesta regio passou de 2,19 mil para 345 mil (Marchand, 2007, p. 9).

    Dessa forma, os recursos para a modernizao e a compra de novos equipa-mentos militares foram cancelados em 1992. Na poca, esta deciso foi justificada por Boris Yeltsin pela necessidade de focar os gastos na economia civil que estava enfrentando grandes dificuldades. Alm disso, ele considerava que a Rssia no precisava manter foras armadas to poderosas no mundo a priori pacfico de-pois do fim da Guerra Fria.

    Apesar desse quadro global negativo na questo militar, a Rssia conse-guiu algumas conquistas. Primeiro, se tornar a nica potncia nuclear do espao da ex-URSS. Todo o arsenal nuclear e estratgico da ex-URSS acabou sendo, ento, controlado pela Rssia, que contou com o apoio dos Estados Unidos, preocupados com a possvel proliferao de armas nucleares nas outras antigas repblicas soviticas. Dessa forma, o pas conseguiu pelo menos conservar seu status de potncia nuclear e, a priori, sua capacidade de dissuaso. Vale obser-var que o governo de Boris Yeltsin concentrou seus esforos oramentrios no exrcito para a preservao parcial da capacidade da fora nuclear russa (Eckert, 2004, p. 12).

    Alm disso, a Rssia conseguiu preservar, graas a Yevgueny Primakov, o uso da base naval de Sebastopol, localizada em territrio ucraniano, e essencial para o acesso da frota russa ao Mediterrneo. Um acordo foi assinado com a Ucrnia em 1997, permitindo Rssia usar por mais vinte anos suas instalaes do mar Negro. Este tratado foi o resultado de duras negociaes, sendo que a Rssia contestava a soberania ucraniana sobre Sebastopol e parte da Crimia. Conser-var o controle de Sebastopol foi um sucesso da diplomacia russa, uma vez que a Ucrnia foi objeto de fortes presses ocidentais para no aceitar o acordo com a Rssia (Lemonier, 2010).

    3.4 A estratgia de cerco norte-americana

    A Rssia de Yeltsin submeteu-se a quase todas as exigncias formuladas pelos Estados Unidos e por seus aliados. Assim, com o fim do Pacto de Varsvia, a Rssia chamou de volta suas tropas espalhadas nas Europas Central e do Leste. O abandono pela Rssia desta tradicional zona de influncia foi ime-diatamente seguido de manobras americanas para integrar estes pases na OTAN. Assim, a Polnia, a Hungria e a Repblica Tcheca entraram nesta organizao em 1999.

  • 18 O Renascimento de uma Potncia? A Rssia no sculo XXI

    MAPA 1O avano da OTAN nas Europas Central e do Leste

    Fonte: Strategic Forecasting Inc. (STRATFOR).Obs.: imagem reproduzida em baixa resoluo em virtude das condies tcnicas dos originais disponibilizados pelos autores

    para publicao (nota do Editorial).

    Dessa forma, o acordo Bltico-Estados Unidos, assinado em 1998, en-sejou a entrada da Letnia, da Estnia e da Litunia na OTAN e na UE, sem que os prprios pases europeus ou a Rssia tenham sido consultados. Era uma forma de os Estados Unidos apertar o cerco em torno da Rssia e impedir os russos de continuar a usar os terminais petroleiros da ex-URSS presentes nos Pases Blticos. Os Estados Unidos obrigavam, assim, a Rssia a desenvolver suas instalaes, sendo que esta no podia continuar exportando um produto to estra-tgico quanto o petrleo pelos portos de pases ligados OTAN (Cohen, 2005).

  • 19A Geopoltica da Federao Russa em relao aos Estados Unidos e Europa

    A expanso da Unio Europeia, programada e apoiada pelos Estados Unidos desde o incio dos anos 1990, era mais uma estratgia para cercar a Rssia. Esta estratgia planejada de integrao dos pases da ex-Unio Sovitica na OTAN e na UE foi defendida por Brzezinski, que escrevia, j em 1997:

    () Os processos de expanso da Europa e ampliao do sistema de segurana transatlntico devem provavelmente avanar por etapas deliberadas. Supondo um compromisso forte dos Estados Unidos e da Europa Ocidental, uma agenda terica, mas cautelosamente realista, poderia ser a seguinte:

    1. Em 1999, os primeiros membros da Europa Central tero sido admitidos na OTAN, mesmo se sua entrada na Unio Europeia no acontecer antes de 2002 ou 2003.

    2. Durante esse perodo, a UE deve comear as negociaes de adeso com as repblicas blticas. De forma concomitante, a OTAN comear a avanar sobre a questo da integrao destes pases e da Romnia, que poderia ser efetiva em 2005. Em algum momento deste processo, os outros Estados balcnicos devem ser elegveis.

    3. A integrao dos Pases Blticos pode levar a Sucia e a Finlndia a conside-rar sua candidatura OTAN.

    4. Em algum momento, entre 2005 e 2010, a Ucrnia, especialmente se, no intervalo, o pas tiver feito progressos significativos nas suas reformas inter-nas e conseguir assumir de forma mais clara sua identidade centro-europeia, deveria estar pronta para iniciar negociaes srias com a UE e a OTAN (Brzezinski, 1997, p. 84).

    Dessa forma, os pases europeus viam nessa poltica uma maneira de conter qualquer veleidade de retomar a poltica de potncia dos tempos so-viticos. O avano da UE, com a OTAN, significava mais segurana para os principais pases da Europa Ocidental. Criava uma zona tampo controla-da pelos pases europeus, auxiliados pelos Estados Unidos e pela organizao. A assinatura pela Rssia do Ato Fundador sobre as Relaes, a Cooperao e a Segurana Mtuas com a OTAN, em maio de 1997, foi, como se viu, uma oficializao da fraqueza russa e da incapacidade do pas de frear o avano da aliana atlntica.

    O bombardeio da Srvia, pas historicamente ligado aos russos, pelas tro-pas da OTAN em 1999, sem consulta ao Conselho de Segurana da ONU, apareceu, ento, como a ltima etapa de processo de excluso da Rssia das grandes decises mundiais, at mesmo no continente europeu. Os protestos russos contra a interveno da OTAN no Kosovo e o bombardeio da Srvia no adiantaram nada, e a diplomacia russa atingiu, na poca, o pice de sua decadncia (Rucker, 2003).

  • 20 O Renascimento de uma Potncia? A Rssia no sculo XXI

    Lacoste escreveu assim:

    Em 1999, somente de forma verbal que a Rssia pde exprimir sua oposio interveno da OTAN no Kosovo contra a Srvia. A Rssia tinha quase se tornado um objeto de piada para a opinio internacional, fato agravado pela intemperana quase pblica de seu presidente (Lacoste, 2002, p. 2).

    A diplomacia russa, nos anos 1990, foi, ento, incapaz de atingir seus dois supostos objetivos prioritrios, que eram a constituio de espao de segurana na rea da ex-URSS e o impedimento de qualquer expanso da OTAN.

    3.5 Os tratados internacionais de desarmamento no perodo Boris Yeltsin

    O tratado Conversaes para a Reduo de Armamentos Estratgicos (START I em ingls, Strategic Arms Reduction Talks) foi assinado pelos Estados Unidos e pela URSS em 31 de julho de 1991 ou seja, somente alguns meses antes do fim da prpria Unio Sovitica. Previa reduo de 10mil para 6 mil no nmero de armas nucleares estratgicas implantadas pelos Estados Unidos e pela Rssia at 2001. O START I comeou a vigorar em 1994, com as obrigaes neste contidas sendo retomadas pelos Estados sucessores (Eckert, 2004, p.31).

    A Rssia e os Estados Unidos negociaram um novo acordo de desarma-mento em 1992 e acabaram assinando em 1993 o Segundo Tratado de Reduo das Armas Estratgicas (START II, em ingls), que aprofundava os objetivos de START I. Assim, os dois pases deveriam reduzir para 3mil o nmero de armas estratgicas que possuam at 2003. Um protocolo assinado pelos presidentes Bill Clinton e Boris Yeltsin em 1997 previa que os objetivos do START II seriam finalmente atingidos em 2007. Este tratado foi ratificado pelo Congresso dos Estados Unidos em 1996, mas foi muito mal recebido na Rssia, na qual s foi ratificado em 2000 pelo Parlamento, j durante a presidncia de Putin (Docu-mentation Franaise, 2011).

    3.6 A poltica de enfraquecimento da posio russa na rea energtica

    Na rea energtica, tambm, os Estados Unidos e a Europa promoveram uma srie de iniciativas para enfraquecer a posio da Rssia e limitar a crescente de-pendncia da Europa Ocidental em relao ao gs russo. Alm disso, o Ocidente pretendia evitar que a Rssia obtivesse o monoplio da comercializao dos re-cursos energticos da sia Central.

    O esfacelamento da URSS deu lugar a quinze Estados independentes ou seja, proliferao do nmero de pases pelos quais transitam os oleodutos e os gasodutos transportando a produo russa. Assim, s na parte europeia da ex-URSS, surgiram seis novos Estados (Ucrnia, Belarus, Moldvia e Pases

  • 21A Geopoltica da Federao Russa em relao aos Estados Unidos e Europa

    Blticos), alm da Rssia. Este novo cenrio complicou bastante a situao desse pas, que tinha doravante que negociar com um grande nmero de pa-ses, os quais, como se viu, foram alvos de tentativas de aproximao em geral bem-sucedidas pelos Estados Unidos e pela Europa.

    Os Estados Unidos e seus aliados europeus conseguiram, assim, de-senvolver nos anos 1990 novas rotas que transportassem o gs e o petrleo das antigas repblicas soviticas da sia Central sem passar pelo territrio russo. Os projetos Baku-Tblissi-Erzurum (BTE em ingls, South Cau-casus Pipeline) e Baku-Tblissi-Ceyhan (BTC) inseriram-se nesta estratgia. O BTE permitiu trazer para os mercados ocidentais o petrleo do Azer-baijo, sem passar pela Rssia. O BTC, tambm chamado South Caucasus Pipeline, transporta o gs do Azerbaijo para a Turquia.

    Era a concretizao de uma estratgia descrita por Brzezinski no seu livro The grand chessboard. Falando da sia Central, ele escreve:

    O principal interesse dos Estados garantir que nenhum poder nico consiga con-trolar esse espao geopoltico e que a comunidade global tenha acesso econmico e financeiro irrestrito a essa rea. O pluralismo geopoltico tornar-se- realidade duradoura somente quando uma rede de dutos e estradas de transporte ligar a regio diretamente aos maiores centros da atividade econmica global atravs dos mares Mediterrneo e rabe ou por via terrestre. Assim, os esforos russos para monopoli-zar o acesso a essa rea precisam ser combatidos por serem contrrios estabilidade regional (Brzezinski, 1997, p. 148-149).

    A degradao da situao geopoltica da Rssia nos anos 1990 e o papel que os Estados Unidos tiveram neste processo foram sintetizados por Fiori:

    Quando se olha a dcada de 1990, do ponto de vista desse projeto imperial [dos Estados Unidos] e do seu expansionismo militar, muito antes dos ataques terro-ristas, compreende-se melhor a rapidez e as intenes geopolticas da ocupao americana dos territrios fronteirios da Rssia, que haviam estado sob influncia sovitica at 1991. O movimento de ocupao comeou pelo Bltico, atravessou a Europa Central, a Ucrnia e a Bielorssia, passou pela pacificao dos Blcs e chegou at a sia Central e o Paquisto, ampliando as fronteiras da OTAN, mes-mo contra o voto dos europeus. Ao terminar a dcada, a distribuio geopoltica das novas bases militares norte-americanas no deixa dvidas sobre a existncia de um novo cinturo sanitrio, separando a Alemanha da Rssia e a Rssia da China (Fiori, 2007b, p. 88).

    A chegada de Putin ao poder iria modificar radicalmente esse quadro geopo-ltico, at ento muito desfavorvel para a Rssia.

  • 22 O Renascimento de uma Potncia? A Rssia no sculo XXI

    4 A TENTATIVA DE RECONSTRUO DO PODER DA RSSIA NA ERA PUTIN

    A interveno da OTAN na Srvia em 1999, apesar da forte oposio da Rssia, foi percebida pela populao russa e por seus dirigentes como ameaa para a segu-rana do pas (Eckert, 2004; Treisman, 2011). O bombardeio da Srvia mostrou de forma ntida o quanto a estratgia de cerco organizada pelos Estados Unidos e seus aliados, mediante o avano programado da OTAN e da UE nas zonas antigamente controladas pela URSS, podia representar perigo para a soberania da Rssia. Assim, nas eleies legislativas de dezembro de 1999, a questo da segurana internacional do pas tornou-se um dos principais temas de campanha. O partido do ento primeiro-ministro Vladimir Putin venceu estas eleies pro-metendo mudana radical na insero geopoltica da Rssia, que devia manter sua integridade territorial ameaada diretamente pelo terrorismo e pelo conflito na Chechnia , recuperar a soberania nacional e voltar a ser uma potncia mini-mamente respeitada em mbito internacional, capaz de proteger seus interesses e de garantir certo controle sobre a antiga rea sovitica.

    A chegada de Putin Presidncia interina da Rssia, em 31 de dezembro de 1999 confirmada por sua eleio como presidente, em 26 de maro de 2000 , marcou, ento, o incio da recuperao geopoltica da Rssia, cuja posio tinha sido muito enfraquecida durante a dcada de 1990. A presidncia de Dimitri Medvedev, iniciada em 2008, no representou nenhuma mudana em termos de posicionamento geopoltico da Rssia. Assim, Medvedev, mais que aliado fiel, seguidor de Putin. Apesar dos recorrentes boatos sem fundamentos sobre eventu-ais divergncias entre os dois, na prtica os fatos concretos so que: i) Medvdev indicou Putin para primeiro-ministro assim que assumiu; ii) mais recentemente, ele sugeriu Putin como candidato eleio para presidente em 2012; e iii) uma vez eleito, Putin ento indicou Medvedev para ser seu primeiro-ministro.

    Alm disso, o mais importante que Putin ou Putin-Medvedev representa(m) a ascenso ao poder de ampla e slida coalizo de interesses econ-micos e polticos que se uniram quanto necessidade de recompor as bases mni-mas de operao de um Estado capitalista moderno que superasse a fase selvagem e predadora da acumulao primitiva na Federao Russa. A nova estratgia de afirmao geopoltica, segundo as explicaes psicologizantes presentes em boa parte da literatura ocidental sobre o tema, seria o resultado de suposto revan-chismo russo, alimentado pelas mltiplas humilhaes enfrentadas pela Rssia durante os anos 1990. Neste tipo de anlise,

    os russos agem por orgulho ferido. Impulsivos, emocionalmente instveis e muitas vezes paranicos, os russos atacam seus vizinhos em tentativa de cauterizar as feridas da histria recente e de reacender a chama perdida de sua antiga grandeza (Shleifer e Treisman, 2011, p. 123).

  • 23A Geopoltica da Federao Russa em relao aos Estados Unidos e Europa

    Mas, como ser visto, a deciso da Rssia de restaurar seu poder regional guiada por razes bem mais pragmticas. A recuperao geopoltica da Rssia foi possvel graas afirmao de um projeto nacionalista de recuperao do Estado russo (Medeiros, 2011, p. 29) por parte de Putin. Alis, ele foi muito claro no seu famoso discurso pronunciado na 43a Conferncia de Munique sobre a Poltica de Segurana, em 2 de outubro de 2007. Wallerstein observa assim que:

    Putin abriu as suas observaes em Munique dizendo que iria evitar delicadezas excessivas e dizer o que realmente penso sobre os problemas de segurana inter-nacional. Comeou por uma apreciao e uma crtica poltica externa dos EUA. Chamou de perniciosa a ideia de um mundo unipolar, no s para os outros, mas [tambm] para a prpria soberania. O modelo unipolar era no s inaceitvel, mas tambm impossvel no mundo de hoje.

    Falou do crescente desdenho pelos princpios bsicos da lei internacional, e disse que primeiro, e acima de tudo, os Estados Unidos ultrapassaram as suas fronteiras nacionais de todas as formas. Disse que isto era extremamente perigoso. Insistiu que o uso da fora s pode ser justificado se for sancionado pela ONU, e que no se pode substituir a ONU pela OTAN ou pela Unio Europeia. Advertiu especi-ficamente contra a militarizao do espao exterior. Lembrou a todos do discurso do ento secretrio-geral da OTAN, Manfred Woerner, em 17 de maio de 1990, no qual este deu Rssia uma firme garantia de segurana de que a OTAN no colocaria um exrcito da OTAN fora do territrio da Alemanha. Putin perguntou: Onde esto estas garantias? (Wallerstein, 2007).

    4.1 A colaborao da Rssia com os Estados Unidos e seus aliados no incio da presidncia de Putin

    No incio de sua presidncia at 2003, Putin pareceu sinalizar a manuteno da poltica de cooperao com os Estados Unidos e os outros pases ocidentais que tinha aplicado Boris Yeltsin. Assim, a Rssia ofereceu sua colaborao aos Esta-dos Unidos na luta contra o terrorismo depois dos atentados do 11 de Setembro de 2001. Os russos apoiaram a interveno americana no Afeganisto e no se opuseram ao uso pelos norte-americanos e pelas tropas da coalizo de bases areas nas ex-repblicas soviticas da sia Central. O chefe da diplomacia russa, no final de 2002, observou que a chegada das tropas da coalizo internacional liderada pelos Estados Unidos no Afeganisto podia contribuir para atenuar as ameaas de desestabilizao nas regies meridionais do pas. O ento presidente americano George W. Bush chegou a referir-se Rssia como um pas aliado na luta contra o terrorismo islmico (Council on Foreign Relations, 2006, p. 23).

    A prpria Rssia tinha, assim, interesse nessa iniciativa na medida em que, desde a desastrosa Primeira Guerra da Chechnia, em 1994, estava enfrentando um grande nmero de ataques terroristas por parte de grupos do Cucaso do Norte. Em troca de seu apoio, a Rssia conseguiu que os movimentos independentistas

  • 24 O Renascimento de uma Potncia? A Rssia no sculo XXI

    chechenos fossem considerados terroristas, podendo realizar operaes militares na Chechnia e no resto do Cucaso russo sem enfrentar naquele momento protestos diplomticos e tentativas internacionais de veto. A prioridade inicial do governo Putin foi a Segunda Guerra da Chechnia e o combate ao terrorismo.

    Alm disso, a Rssia aproximou-se diplomaticamente do Ocidente sobre questes como os programas nucleares norte-coreanos e iranianos em 2002, chegando a apoiar as iniciativas das potncias ocidentais para negociar sua sus-penso. Na rea energtica, tambm surgiram vrios projetos de colaborao entre os dois pases nessa poca por exemplo, a construo de oleoduto priva-do at Murmansk para facilitar a exportao de petrleo para os Estados Unidos (Council on Foreign Relations, 2006, p. 24).

    As relaes com os Estados Unidos estavam to boas nesse breve per-odo que at a chegada de conselheiros militares americanos na Gergia em 2002 no provocou grandes protestos da diplomacia russa. A Rssia tornou-se at parceiro institucional privilegiado da OTAN em maio de 2002, com a perspectiva de participar da organizao da segurana coletiva na Europa (Eckert, 2004, p. 19). Esse pas conseguiu, tambm, integrar de forma de-finitiva o Grupo dos 7 (G7), que se tornou G8, em junho de 2002, graas, segundo o comunicado oficial, s suas notveis transformaes econmicas e democrticas (Council on Foreign Relations, 2006, p. 19).

    Entretanto, a estratgia de cooptao praticada pelos Estados Unidos conti-nuava sendo acompanhada por mltiplas tentativas de enfraquecimento da posi-o geopoltica russa. Putin foi, ento, rapidamente forado a afirmar sua vontade de defender exclusivamente os interesses nacionais da Rssia, que tinham sido ignorados durante os anos 1990. Esta restaurao, mesmo parcial, da posio geopoltica russa supunha tomada de posies fortes frente aos Estados Unidos e Europa em certas questes. natural, portanto, que a entente americano-russa tenha durado pouco, porque a Rssia e os Estados Unidos compartilham pou-cos interesses e ainda menos prioridades (Shleifer e Treinsman, 2011, p. 125). Em 2003, na chamada cruzada contra o Eixo do Mal, a Rssia abandonou sua solidariedade aos Estados Unidos, recusando-se a apoiar a interveno americana no Iraque. Dessa forma, os dois pases foram incapazes de levar muito adiante sua colaborao contra o terrorismo. A Rssia percebeu que o fato de ser membro permanente do Conselho de Segurana da ONU em nada impedia, na prtica, o unilateralismo americano no mundo ps-Guerra Fria. At mesmo a manuteno do que na realidade se resumia a uma capacidade nuclear estratgica de retalia-o, embora central como poder de dissuaso de ltima instncia, no exclua a importncia de recobrar a capacidade operacional de interveno militar conven-cional e contrainsurgente das foras armadas da Rssia.

  • 25A Geopoltica da Federao Russa em relao aos Estados Unidos e Europa

    4.2 A reafirmao geopoltica da Rssia no antigo espao sovitico: a definio de uma nova zona de segurana

    A partir da chegada de Putin ao poder, a Rssia comeou a opor-se vigorosamente s tentativas permanentes de enfraquecimento de sua posio geopoltica por parte dos Estados Unidos. Apesar desta oposio, ele no conseguiu impedir a entrada na UE e na OTAN da Estnia, da Letnia, da Litunia, da Polnia, da Repblica Tcheca, da Eslovquia, da Hungria, da Romnia e da Bulgria, todos pases que pertenciam sua rea de influncia durante o perodo sovitico. Os russos, como mostram as declaraes pblicas de seus dirigentes, acabaram sentindo-se vtimas de um cerco cada vez mais apertado tanto diretamente, por parte da UE,8 quanto indiretamente, por parte dos Estados Unidos, como lder da OTAN.

    Os dirigentes russos, na ltima dcada, decidiram concentrar seus esforos na reconquista de domnio geopoltico sobre a rea da ex-URSS. Eles pretendem ob-ter que seja respeitada a linha vermelha9 que corresponde s antigas fronteiras da URSS, os Pases Blticos representando uma exceo a este princpio. Para evitar o risco de disperso de recursos e prioridades, as ltimas bases militares extrarregio-nais, remanescentes do perodo sovitico foram fechadas.10

    Mas a maior preocupao dos russos em termos de segurana provm da atuao da OTAN no ex-bloco sovitico. Assim, a Rssia ops-se vigorosamente em 2007 ao projeto de escudo antimssil que os norte-americanos queriam insta-lar na Europa Central (Polnia e Repblica Tcheca), por meio desta organizao. Este escudo deveria supostamente proteger os membros europeus da OTAN con-tra a ameaa iraniana. Os Estados Unidos continuam afirmando que o Ir estaria desenvolvendo um programa nuclear avanado, incluindo-se lanadores de ms-seis de longo alcance, o que representaria risco global (Braun, 2009).

    O presidente Putin no foi convencido por esses argumentos e afirmou que isso constitua uma verdadeira provocao, intolervel para a Rssia. Ele disse que

    a poltica americana na Europa, e especificamente as suas propostas sobre instalao de msseis, semelhante da crise dos msseis de Cuba. Est a ser montada uma ameaa nas nossas fronteiras. Tendo feito a analogia, disse que no havia agora uma crise semelhante, devido mudana de relaes da Rssia com a Unio Europeia e os Estados Unidos (Wallerstein, 2007).

    8. A UE no possua fronteira com a Rssia at 1995. Atualmente, compartilha com a Rssia mais de 2,2 mil quil-metros de fronteira.9. A expresso linha vermelha foi cunhada por Primakov em1998 (Nation, 2010, p. 14).10. A base naval de Can Rahn, no Vietn, e as instalaes de radar de Lourdes, em Cuba, que eram as duas ltimas bases militares ultramarinas russas, foram fechadas por deciso de Putin em 2002, apesar da forte oposio de setores do exrcito e da inteligncia (Treisman, 2011).

  • 26 O Renascimento de uma Potncia? A Rssia no sculo XXI

    Putin declarou, em 2008, que instalaria no enclave de Kaliningrado, no meio do territrio polons, uma srie de estaes mveis de msseis. A chegada de Barack Obama Presidncia dos Estados Unidos pareceu assinalar mudana na posio americana sobre esta questo. Em setembro de 2009, Obama anun-ciou que os Estados Unidos renunciavam parcialmente a seu projeto de escudo antimssil na Europa, abandonando a instalao de radares na Repblica Checa e msseis interceptadores na Polnia. O dispositivo seria, ento, limitado presena de msseis interceptadores em navios militares patrulhando nas guas europeias. Mesmo assim, a Rssia conseguiu o apoio ativo da China a partir de 2010 para obrigar os norte-americanos a abandonarem totalmente seus planos, objetivo que at hoje no foi atingido.11

    Dessa forma, a Rssia pressionou os pases vizinhos da ex-URSS que tinham aceitado receber bases militares americanas no seu territrio para estes no reno-varem as concesses destas bases.12

    4.3 As revolues coloridas e a influncia ocidental

    As chamadas revolues coloridas so conhecidas pelo nome dado coletivamen-te a uma srie de movimentos que se desenvolveram em certos pases do ex-espao sovitico. O primeiro episdio significativo foi a Revoluo das Rosas na Gergia, em 2003, desencadeada pela eleio contestada de Edouard Chevardnaz, ex-ministro das Relaes Exteriores de Mikhail Gorbachev e presidente do pas aps sua independncia. As manifestaes populares levaram queda de Chevardnaz e sua substituio por Mikheil Saakachvili. Na Ucrnia, a Revoluo Laranja de 2004 levou sada do presidente pr-Rssia recentemente eleito e j contestado, Viktor Yanukovytch, substitudo por Viktor Yushchenko. Este fenmeno aconte-ceu no Quirguizisto, em 2005.

    Essas revolues coloridas apresentam todas o mesmo padro. Foram incentivadas pelos Estados Unidos que apoiaram at financeiramente os movi-mentos de oposio que tinham como objetivo derrubar governos julgados pr-russos. Os Estados Unidos veem nestas revolues uma forma de desestabilizar a influncia russa nestes ex-pases soviticos, para poder facilitar sua integrao na OTAN no futuro.

    Mas a Rssia est, tambm, usando instrumentos econmicos e culturais para lutar contra a influncia ocidental no ex-espao sovitico. Uma srie de acor-dos culturais foi assinada entre a Rssia e os outros integrantes da Comunidade

    11. No incio de 2012, Obama anunciou que uma verso inicial do escudo utilizando radares instalados na Turquia e msseis interceptadores embarcados a bordo de cruzadores antiareos do tipo Aegis patrulhando o mar Mediterrneo j estava se tornando operacional.12. Foram os casos do Usbequisto, em 2005, e do Quirguisto, em 2009.

  • 27A Geopoltica da Federao Russa em relao aos Estados Unidos e Europa

    dos Estados Independentes (CEI) para subvencionar o ensino do russo no sistema educativo destes pases. Uma unio aduaneira foi, tambm, proposta pela Rssia a Belarus e ao Cazaquisto (Crane et al., 2009, p. 88).

    4.4 As boas relaes entre a Rssia e a China

    Houve, ao longo dos anos 1990, (...) um estreitamento das relaes polticas e econmicas entre China e Rssia (Leo, Martins e Nozaki, 2011, p. 214). Mas foi nos anos 2000 que a Rssia resolveu desenvolver parceria estratgica com a China. A Rssia considera que a China pode ajud-la na sua resistncia s ambies geopolticas dos Estados Unidos tanto na Europa Oriental quanto no Cucaso ou na sia Central. A Organizao da Cooperao de Xangai (Shanghai Cooperation Organization SCO) foi criada em 2001 para estabelecer aliana entre a Rssia e a China em termos militares e de combate ao terrorismo, ao fundamentalismo religioso e ao separatismo na regio da sia.13 Como observa Fiori (2008, p. 51), a SCO uma organizao de cooperao poltica e militar que se prope explicitamente a ser um contrapeso aos EUA e s foras militares da OTAN. Putin resolveu as ltimas disputas territoriais com a China em 2004, tornando segura sua fronteira oriental. J se mencionou neste texto que a China se ops vigorosamente ao escudo antimssil da OTAN, ao lado da Rssia. Alm disso, a Rssia e a China compartilham vises parecidas sobre questes como o terrorismo, a soberania nacional, o tratamento reservado aos separatistas14 ou a situao da Coreia do Norte. Os dois pases defendem, em geral, posies conver-gentes na ONU e nos demais fruns internacionais, como o G20.

    A parceria entre a China e a Rssia existe, tambm, no setor do armamento. Ao longo dos anos 1990, as vendas de armas para a China foram essenciais para a sobrevivncia do complexo militar-industrial russo (Lo, 2008, p. 80). A Rssia continuou sendo o maior fornecedor de armas modernas da China nos anos 2000 e houve, mais recentemente, transferncia de tecnologia militar russa para a pro-duo de novas armas chinesas (Leo, Martins e Nozaki, 2011, p. 220).

    No que diz respeito questo energtica, as relaes entre a China e a Rssia so mais ambguas. A China grande importadora de hidrocarbonetos russos. Mas, ao mesmo tempo, preocupa-se com sua segurana energtica e no quer depender da Rssia para seu abastecimento em gs e petrleo. A China no quer ser refm dos dutos majoritariamente controlados pela Rssia na sia Central. Assim, est assinando contratos com pases do Oriente Mdio, da frica e da Amrica Latina para garantir fontes variadas de abastecimento em petrleo nos

    13. A SCO integra tambm como membros permanentes o Cazaquisto, o Quirguisto, o Tadjiquisto e o Usbequisto e conta com a Monglia, a ndia, o Ir e o Paquisto como pases observadores.14. A Rssia apoia a China na questo do Tibete, enquanto os chineses no se juntam s crticas ocidentais sobre o tratamento reservado Chechnia.

  • 28 O Renascimento de uma Potncia? A Rssia no sculo XXI

    prximos anos. A China est, tambm, tentando disputar a hegemonia da Rssia sobre os dutos da sia Central. Os chineses j conseguiram construir dutos para abastecerem-se diretamente de gs e petrleo na regio.15 Mas, como ser mos-trado mais adiante, a posio da Rssia na sia Central forte. Alm disso, os chineses permanecem grandes clientes de hidrocarbonetos russos. Enfim, a par-ceria estratgica entre China e Rssia to fundamental para os dois pases que as tenses acerca da questo energtica ou de outras divergncias de interesses, naturais entre duas potncias, por mais importantes que sejam no foram capa-zes de ameaar a colaborao entre os dois pases no que diz respeito tentativa de limitar o poder dos Estados Unidos.

    4.5 A reconstituio parcial do potencial militar

    Os dirigentes russos, na dcada de 2000, voltaram a dar prioridade questo das foras armadas, visando reverter a acelerada decadncia do potencial militar do pas durante os anos 1990. O objetivo desta reconstituio parcial do poder militar russo foi dar base material mais forte estratgia de afirmao diplo-mtica e geopoltica da Rssia frente s tentativas permanentes de enfraqueci-mento do pas por parte dos Estados Unidos e de seus aliados europeus. Putin, em discurso pronunciado em 10 de maio de 2006, definiu muito claramente a nova posio da Rssia:

    Devemos estar prontos para contrariar qualquer tentativa de pressionar a Rssia quando posies so reforadas s nossas custas. (...) Quanto mais forte for nosso exrcito, menos tentativas haver para exercer presses sobre ns (Marchand, 2007, p. 9).

    A proteo e o desenvolvimento do complexo militar-industrial, no cen-tro da estratgia de potncia da URSS, voltaram a ser elementos prioritrios na poltica russa de desafio s pretenses norte-americanas. Como indica Medeiros (2011, p. 31), os principais esforos russos de modernizao tecnolgica tm sido catalisados para as indstrias relacionadas com o complexo industrial-militar por meio das holdings estatais.

    Em 2000, pela primeira vez desde 1992, a Federao Russa aumentou seu oramento de defesa. Em 2003, foram entregues Fora Area russa os primeiros caas novos desde 1992, assim como helicpteros de ataque em 2004. Em 2006, comeou o fornecimento Fora Area do Sukhoi 34, novo avio voltado ao ataque de longa distncia. interessante observar que o desenvolvimento de um avio como o Sukhoi 34 mostra que existe por parte dos russos a percepo de ameaa clara para suas fronteiras.

    15. O gasoduto sia Central-China, inaugurado em 2009, transporta o gs do Turcomenisto para o territrio chins. Atravessa tambm o Usbequisto e o Cazaquisto.

  • 29A Geopoltica da Federao Russa em relao aos Estados Unidos e Europa

    Em artigo publicado em fevereiro de 2012, Putin anunciou que a Rssia ia gastar 580 bilhes em armamento nos prximos dez anos para modernizar seu exrcito (Pflimlin, 2012).

    Alm disso, a Rssia hoje grande fornecedora de armas para os pases que querem manter sua independncia em relao aos Estados Unidos, como a ndia.16 Dessa forma, as naes que sofrem de embargo sobre armas por parte dos Estados Unidos como a China,17 a Venezuela18 ou o Ir fazem compras militares com a Rssia.19

    Finalmente, a Rssia continua sendo a grande potncia nuclear mundial ao lado dos Estados Unidos. Os dois pases ainda controlam cerca de 90% das armas nucleares mundiais e decidem o tamanho de seu arsenal nuclear respectivo por meio de tratados bilaterais de desarmamento.

    4.6 Os tratados internacionais de desarmamento no perodo Putin/Medvedev

    O incio da presidncia de Putin foi marcado pela ratificao do START II pelo Parlamento russo em 2000. Era uma forma de ele mostrar seu compro-misso com a questo do desarmamento e, tambm, de pressionar os Estados Unidos a no abandonarem o Tratado sobre os Msseis Antibalsticos (ABM, em ingls). O ABM, assinado pela URSS e pelos Estados Unidos em 1972, previa forte limitao dos dispositivos antimssil de ambos os pases. O proble-ma que os Estados Unidos estavam cada vez menos dispostos a respeit-lo, querendo comear a desenvolver um verdadeiro escudo antimssil para prote-ger seu territrio. Em 2001, o ento presidente Bush anunciou oficialmente a sada unilateral dos Estados Unidos do ABM, que se tornou efetiva em 2002, o que provocou rejeio do START II por parte da Rssia. A questo da ma-nuteno do ABM era importante para os russos porque a Rssia, ao contrrio dos Estados Unidos, no tem mais os recursos financeiros e tcnicos para de-senvolver dispositivo antimssil realmente eficiente nem o menor interesse em comear uma nova corrida armamentista de alta tecnologia contra os Estados Unidos. Nestas condies, se os Estados Unidos conseguissem criar um escudo antimssil eficiente, isto criaria grande assimetria entre a capacidade blica dos dois pases. Os Estados Unidos seriam protegidos de qualquer ataque, enquan-to a Rssia permaneceria vulnervel. O poder de dissuaso nuclear desse pas no existiria mais em relao aos Estados Unidos.

    16. A Rssia o maior fornecedor de armas para a ndia desde 1959. Existem entre os dois pases programas de transferncia tecnolgica para certos equipamentos militares (Crane et al., 2009, p. 77). 17. A Rssia vendeu cerca US$ 22 bilhes em armas China entre 1999 e 2008 (Leo, Martins e Nozaki, 2011, p. 220).18. A Venezuela assinou com a Rssia uma srie de acordos para o fornecimento total de US$ 3 bilhes em armas em 2006. A Rssia oferece, tambm, assistncia tcnica ao exrcito venezuelano (Crane et al., 2009, p. 80).19. A China e o Ir so, ambos, objeto de embargo sobre armas por parte da UE.

  • 30 O Renascimento de uma Potncia? A Rssia no sculo XXI

    Mas, apesar do abandono efetivo do ABM pelos americanos em 2002, a Rssia e os Estados Unidos iniciaram novas negociaes de desarmamento nes-se ano. O Tratado de Desarmamento Estratgico (SORT em ingls, Strategic Offensive Reductions Treaty) foi assinado pelos dois pases em 2002, tornando o START II caduco. O SORT previa reduo de dois teros do estoque de armas nucleares at 2012. Este tratado estipulava, tambm, que o START I estaria em vigor at 2009 (Documentation Franaise, 2011).

    Enfim, o Novo START (New START) foi assinado pelos presidentes Obama e Medvedev em abril de 2010, para substituir o START I, que expirou em 2009. Este tratado prev diminuio ainda maior do nmero de ogivas nucleares, que teria reduo de 1,5 mil na Rssia e nos Estados Unidos nos prximos cinco anos.

    TABELA 1Os tratados americano-russos de reduo estratgica de armas nucleares

    TratadoData de assinatura/ entrada em vigor

    Limitao do estoque de ogivas nucleares

    Limitao do nmero de veculos estrat-gicos de transporte

    nuclear1

    Data de expirao

    START I31/7/1991 5/12/1994

    6.000 1.600 5/12/2009

    START II 3/1/19932 3.000-3.500 nenhuma -

    SORT24/5/2002 1o/6/2003

    1.700-2.200 nenhuma 31/12/2012

    Novo START8/4/2010 5/2/2011

    1.500 800 6/2/2021

    Fonte: Kile (2011, p. 380).Notas: 1 So os msseis balsticos intercontinentais, os submarinos lanadores de msseis e os bombardeiros de longo alcance.

    2 O START II nunca entrou em vigor.

    4.7 A interveno russa na Gergia

    A demonstrao mais clara da reafirmao geopoltica russa em relao OTAN e a seus membros foi a guerra russo-georgiana em agosto de 2008, tambm co-nhecida como a Segunda Guerra da Osstia do Sul. A tenso entre a Rssia e a Gergia sobre a questo da Abcsia e da Osstia do Sul existe desde o esfacela-mento da URSS. O status destas duas provncias de maioria russfona muito ambguo. Estas foram integradas Gergia quando acabou a URSS, mas decla-raram unilateralmente sua independncia em 1992. A Gergia entrou imedia-tamente em conflito com as tropas separatistas da Abcsia e da Osstia do Sul. Os frgeis acordos finalmente assinados entre a Gergia e os separatistas das duas provncias no resolveram a situao. A Gergia, apoiada pelos Estados Unidos e pela UE, continuou reivindicando sua plena soberania sobre estes dois territrios e resolveu invadir a Osstia do Sul em agosto de 2008.

  • 31A Geopoltica da Federao Russa em relao aos Estados Unidos e Europa

    O presidente georgiano Mikheil Saakashvili possivelmente pensava em apro-veitar o fato de que seu pas, aliado dos Estados Unidos e da UE, estava envolvido em processo de adeso tanto OTAN20 quanto UE, em prazo mais longo. Os dirigentes georgianos achavam que este novo status de seu pas iria proteg-lo de uma interveno da Rssia no conflito.21

    Entretanto, isso no impediu a Rssia de declarar guerra Gergia e de der-rotar o exrcito georgiano em alguns dias, aniquilando boa parte de sua capacida-de militar. Os Estados Unidos e os pases europeus marcaram sua desaprovao em relao interveno russa, mas no se envolveram diretamente no conflito. O Ocidente, todavia, no reconheceu a independncia da Abcsia e da Osstia do Sul, ao contrrio da Rssia.

    A guerra russo-georgiana marcou sem dvida o ponto mais baixo das re-laes russo-americanas do ps-Guerra Fria (Mankoff, 2009, p. 104). Corres-pondeu ao primeiro fracasso claro da estratgia de enfraquecimento da posio geopoltica da Rssia que os Estados Unidos tinham adotado depois do fim da Guerra Fria.

    Outra grande lio da interveno russa na Gorgia foi que o Cucaso tinha voltado a ser zona de controle russo. A Segunda Guerra Russo-georgiana foi para a Rssia, principalmente, uma forma de conter o processo de expanso da OTAN no Cucaso. Radvanyi escreve assim:

    Em agosto de 2008, reconhecendo a independncia da Abczia e da Osstia do Sul, onde instalam bases militares, os russos mandam ao mundo uma mensagem clara: o Cucaso faz parte de seu ambiente estratgico e Moscou no tem a inteno de pass-lo ao controle ocidental (Radvanyi, 2009, p. 73).

    Essa anlise confirmada por discurso pronunciado pelo ento presidente Medvedev em 2011, no qual ele afirma o seguinte:

    Se tivssemos hesitado em 2008, haveria hoje outra situao geopoltica [no Cucaso], e muitos pases, que alguns tentavam levar artificialmente a entrar na OTAN, j seriam membros desta aliana (En Osstie..., 2011).

    importante sublinhar que o Cucaso um corredor essencial para o transporte do petrleo do mar Cspio, assim como do gs da sia Central. Os europeus enxergam na Gergia um parceiro fundamental para sua estratgia de diversificao do abastecimento energtico. Os Estados Unidos consideram

    20. Em abril de 2008, ou seja, poucos meses antes da guerra Russo-gergiana, a OTAN aceitou na reunio de Bucarest o princpio de adeso da Gergia organizao.21. Nos anos imediatamente anteriores invaso da Osstia do Sul, em 2008, a Gergia recebeu assessores militares e ajuda externa para comprar armas americanas, assim como importou com recursos prprios grande quantidade de armamento americano. Durante o conflito com a Rssia, tropas da Gergia que estavam no Afeganisto apoiando as tropas americanas foram transportadas de volta s pressas em avies da fora area americana (Treisman, 2010).

  • 32 O Renascimento de uma Potncia? A Rssia no sculo XXI

    que esse pas pea essencial no Cucaso para lutar contra a hegemonia russa no transporte do gs para a Europa. O traado de Nabucco, grande projeto de gasoduto promovido pelos Estados Unidos que se detalhar mais frente, passa pelo territrio georgiano.

    4.8 A abertura do mercado interno russo: as crticas ocidentais ao protecionismo russo

    A questo da falta de abertura de certos setores da economia russa s empresas euro-peias outra fonte de tenses entre a UE, a Rssia e os Estados Unidos (Bordachev, 2010, p. 7). Os Estados Unidos e a UE pressionam a Rssia para abandonar o pro-tecionismo que o pas praticaria em setores como as indstrias automobilstica, de mquinas e equipamentos e de bens de consumo ou a agricultura (Matelly, 2007). O demorado processo de adeso da Rssia OMC, que comeou em 199322 e s foi concludo em dezembro de 2011, mostra a reticncia de muitos pases ocidentais em aceitar as prticas russas. O uso de argumentos por parte dos pases ocidentais como as deficincias nas polticas fito-sanitrias foi, tambm, visto pelos dirigentes russos como tentativa de barrar a qualquer custo a entrada do pas na OMC. Vale a pena lembrar, tambm, que a parte mais importante da pauta exportadora da Rssia composta de gs, com suas especificidades, e de petrleo, que se negocia no mercado internacional; a adeso OMC no constitua, para a Rssia, prioridade absoluta. Enfim, o ento presidente Medvedev, logo aps a assinatura do protocolo de adeso da Rssia OMC, afirmou que isto no impediria seu pas de continuar praticando polticas de preservao de setores estratgicos da economia, deixando clara a grande mudana de postura em relao Rssia dos anos 1990. Medvedev declarou, em 20 de dezembro de 2011:

    No haver obstculos aplicao de programas atuais e futuros para o desenvolvi-mento e a modernizao da agricultura na Rssia. (...) O nvel da proteo alfande-gria sobre produtos-chave permanecer eficiente e, para alguns destes, poder at haver aumento das taxas de importao (Putin, 2011).

    5 A GEOPOLTICA DA ENERGIA E AS RELAES COM A EUROPA NOS ANOS 2000

    5.1 As difceis relaes da UE com a Rssia

    A entrada de vrios pases do ex-bloco sovitico na Unio Europeia sinalizou, para muitos observadores russos, que as relaes com a UE, concebida como entidade institucional prpria, iriam tornar-se mais tensas (Monaghan, 2005; Lacoste, 2002). De fato, estes novos membros, alm de terem desenvolvido, por razes histricas, uma profunda hostilidade contra a Rssia, so aliados fiis dos Estados Unidos. O antagonismo entre a Rssia e a UE j existia e se tornou, ento, maior ainda.

    22. Naquela poca, era o antigo Acordo Geral sobre Tarifas e Comrcio (GATT).

  • 33A Geopoltica da Federao Russa em relao aos Estados Unidos e Europa

    As relaes da Unio Europeia com a Rssia foram definidas por uma srie de acordos e pela criao de vrios programas. O Acordo de Parceria e de Cooperao (APC em ingls, Partnership and Cooperation Agreement), adotado pelo Conselho Europeu de Corfu em 1994 e somente aplicado a partir de 1997, prev o desenvolvimento do dilogo poltico entre a UE e a Rssia, assim como a criao de uma zona de livre-comrcio no longo prazo. A Unio Europeia desenvolveu tambm a Estratgia Comum para a Rs-sia (ECR em ingls, Common Strategy on Russia), acordo assinado pelos pases-membros em 1999. Seu objetivo consolidar a democracia, o estado de direito e a integrao da Rssia no espao social e econmico comum da Europa (Bayou, 2002, p. 6). Tanto o APC quanto a ECR so considerados por muitos analistas documentos vagos, muito imprecisos e s vezes contradi-trios (Eckert, 2004; Marchand, 2008).

    Assim, a poltica oficial da Unio Europeia em relao Rssia marcada por contradio fundamental. A UE pretende ajudar esse pas a alinhar seu siste-ma poltico, econmico e social ao padro da Europa Ocidental.

    Essa atitude, adotada com os pases candidatos entrada na Unio Europeia, problemtica na medida em que a Rssia nunca manifestou seu interesse em ade-rir. Os dirigentes russos, principalmente desde a chegada de Putin ao poder, con-sideram que seu pas deveria ser tratado como qualquer outra potncia exterior UE, como a China ou a ndia, e consideram que esta poltica uma forma de inge-rncia em assuntos estritamente soberanos. Alm disso, a poltica de ampliao da Unio Europeia analisada pela Rssia como ameaa para sua posio geopoltica.

    Putin afirmou de forma muito clara que a Rssia no toleraria mais nenhuma expanso da Unio Europeia para o leste depois da entrada da Romnia e da Bulgria em 2007. As manobras russas para conservar um controle de fato sobre a Ucrnia mostram que a Rssia no aceitar deixar esse pas entrar na UE. O episdio da independncia do Kosovo, reconhe-cida logo pela Unio Europeia, foi tambm visto muito negativamente pela Rssia. Os russos consideram que isto poderia ter consequncias potencial-mente desestabilizadoras no seu pas, devido existncia no territrio da Rssia de vrios pequenos movimentos tnicos regionais com aspiraes separatistas. A UE , ento, percebida pela Rssia atual como concorrente perigoso no espao ps-sovitico.

    O dilogo estabelecido entre a UE e os pases do Cucaso (Gergia, Armnia e Azerbaijo) visto de forma muito negativa pela Rssia, que enxerga estas discusses como mais uma tentativa dos Estados Unidos e dos seus aliados europeus de apertar o cerco em volta do territrio russo (IHEDN, 2009, p. 11).

  • 34 O Renascimento de uma Potncia? A Rssia no sculo XXI

    A Rssia teme, tambm, a influncia dos chamados Estados antirrus-sos da Unio Europeia.23 Os observadores russos consideram que nos cor-redores de Bruxelas, muitas pessoas da Europa Oriental tentam influenciar nos bastidores as decises da Comisso Europeia (Vlasova apud Marchand, 2008, p. 331). Esta preocupao parece confirmada pelo ministro do Exterior da Letnia, que declarava, em 2004, logo aps a entrada de seu pas na UE e na OTAN, que sua misso era impedir que a Rssia seja vista de forma posi-tiva pelos outros Estados europeus e tentar barrar os projetos de colaborao com os russos. Este ministro afirmava assim que necessrio antes de tudo, falar da Rssia para nossos aliados europeus e faz-los entender que a imagem que tm da Rssia no realista, nem pragmtica (Bayou, 2005, p. 17).

    Outra fonte de conflitos entre a Unio Europeia e a Rssia a questo do acesso ao oblast24 de Kaliningrado,25 cravado no territrio da Polnia e da Litunia (mapa 2). Antes da entrada da Litunia na UE, a passagem entre o enclave de Kaliningrado e o resto do territrio russo era livre. Mas a entrada da Litunia na Unio Europeia em 2004 comprometeu esta situao, sendo que os Pases Blticos estavam entrando no espao Schengen, que prev regras muito restritivas para a circulao dos cidados extraeuropeus, grupo dos quais os russos fazem parte. Assim, as exigncias da Rssia de obter um corredor de transporte e a iseno da necessidade de visto entre Kaliningrado e o resto do territrio russo no foram satisfeitas. Os cidados russos que desejam viajar en-tre a Rssia e o enclave precisam doravante obter um documento facilitando o trnsito. Mesmo Kaliningrado no sendo uma regio economicamente muito prspera, esta nova situao irrita profundamente a Rssia (Dafflon, 2004). O tratamento da questo desta regio est em contradio total com a Dimen-so Setentrional (em ingls Northern Dimension), programa da UE aprova-do em 2000, que busca a cooperao transfronteira entre a Rssia e os pases da Europa do Norte (Vitunic, 2003).

    23. Essa expresso, usada com frequncia na Rssia, remete aos trs Pases Blticos e Polnia.24. O oblast uma unidade administrativa territorial russa que pode ser traduzida em portugus por regio.25. O oblast de Kaliningrado (antiga Knigsberg, em alemo) tornou-se territrio sovitico em 1945. A populao alem foi expulsa e substituda majoritariamente por russos. O enclave contava com 940mil habitantes no Censo de 2010.

  • 35A Geopoltica da Federao Russa em relao aos Estados Unidos e Europa

    MAPA 2Enclave de Kaliningrado

    Vale observar que o antagonismo entre UE e Rssia no impede que os rus-sos tenham boas relaes diplomticas e comerciais bilaterais com certos pases da Europa Ocidental, como a Alemanha, a Itlia ou a Frana, principalmente quando se trata da questo energtica, que ser analisada mais adiante. De igual modo, a Europa o maior parceiro econmico da Rssia, com 44,8% de suas exportaes (US$ 136 bilhes) e 50,2% de suas importaes (US$ 88 bilhes), assim como 71% do investimento direto estrangeiro em 2010.

    5.2 As relaes entre a Rssia e a Alemanha

    A Alemanha o principal parceiro comercial econmico da Rssia desde o fim da Unio Sovitica. A Alemanha era responsvel por mais de 9% do estoque de investimentos diretos estrangeiros na Rssia no final de 2011 (Federal State Statis-tic Service, 2012). Por sua vez, a Rssia fornece cerca de 30% das importaes de petrleo da Alemanha 20% das exportaes totais de petrleo russas e de 40% de suas importaes de gs 25% das exportaes totais de gs russas. A segurana energtica da Alemanha depende, ento, parcialmente de sua relao com a Rssia. Por seu turno, esse pas precisa do mercado energtico alemo para exportar sua produo, principalmente no caso do gs. A interdependncia econmica e ener-

  • 36 O Renascimento de uma Potncia? A Rssia no sculo XXI

    gtica entre os dois pases faz com que tenham desenvolvido relao muito mais profunda do que existe entre a Rssia e os outros pases europeus (Adomeit, 2005).

    Os dirigentes russos consideram que a Alemanha, apesar de sua aliana com os Estados Unidos, menos oposta sua ambio de controle geopoltico do ex-espao sovitico que a UE. Assim, a realizao do gasoduto Nord Stream, que liga a Rssia e a Alemanha diretamente atravs do mar Bltico, a concretizao destas boas relaes. A Comisso Europeia observou de forma muito negativa a concretizao do Nord Stre-am e est querendo impor aos Estados-membros a necessidade de pedir seu acordo antes que contratos de abastecimento energticos sejam assinados com pases terceiros. Mas a Alemanha j sinalizou que no vai aceitar que tal regra seja formulada (Bezat, 2011).

    5.3 A afirmao russa na geopoltica da energia

    O forte antagonismo entre norte-americanos e russos deu-se, tambm, na rea energtica, vital na nova poltica estratgica da Rssia. Desde que Putin chegou ao poder, o Estado russo voltou a controlar o setor energtico e, em particular, o gasfero. Frente aos Estados Unidos e Europa, este Estado segue, desde ento, estratgia consistente de afirmao geopoltica por meio do gs e, em medida bem menor, do petrleo, que concentram boa parte dos investimentos do pas. Alm de ser o segundo maior exportador mundial de petrleo, a Rssia lidera as exportaes de gs. Como escreve Schutte (2011), a presena da Rssia no cenrio mundial, de qualquer forma, continuar determinada por muito tempo pelo fato de ser o maior produtor e exportador de energia.

    Como nos tempos da Guerra Fria, os Estados Unidos esto tentando lutar com a geopoltica do gs estabelecida pela Rssia na Europa, no Cucaso e na sia Central. Os Estados Unidos incentivam a criao de novos gasodutos, como o pro-jeto Nabucco no corredor caucasiano, que no seriam controlados pelos russos. Os americanos apoiam esta tentativa e promovem multi pipeline diplomacy no intui-to de diversificar as rotas de exportaes para que estas no atravessem pases cujos regimes so considerados hostis, como o Ir, ou pelo menos relutantes sua influ-ncia, como a Rssia (Gomart, 2008). O Cucaso e a sia Central contm grandes reservas de gs, concentradas no Azerbaijo, no Usbequisto e no Turcomenisto. Por enquanto, no existe gasoduto proveniente desta zona que possa abastecer o mercado europeu sem a mediao da Rssia. O Nabucco seria justamente encarre-gado de preencher esta lacuna. Este projeto prolongaria o BTE para criar um verda-deiro corredor caucasiano, capaz de fornecer Europa gs da regio do mar Cspio. O Turcomenisto e o Azerbaijo seriam os dois principais pases fornecedores. Me-tade do gs transportado deveria abastecer os pases atravessados (Turquia, Hungria, Bulgria e Romnia), o resto poderia ser comercializado nos grandes mercados da Europa Ocidental (Itlia, Alemanha e Frana).

  • 37A Geopoltica da Federao Russa em relao aos Estados Unidos e Europa

    Mas a relao entre a Rssia e a Europa no mbito energtico muito am-bgua. De um lado, os pases europeus apoiam a maior parte das iniciativas ame-ricanas para abalar a geopoltica do gs da Rssia. De outro lado, esse pas hoje o principal fornecedor energtico da Europa. Assim, os maiores clientes do gs russo so a Frana, a Alemanha e a Itlia, coincidentemente trs dos pases da Europa Ocidental que tendem a manter boas relaes bilaterais com a Rssia.

    Na Europa, a produo de gs est principalmente concentrada na Holanda, na Inglaterra e na Noruega, que representam mais de 80% do volume total extrado na regio. Mas esta produo cada vez mais insuficiente para cobrir o consumo europeu. De fato, no capaz de atender ao aumento considervel da demanda de gs, que foi multiplicada por quatro desde 1965. Assim, a participao do gs no consumo primrio total de energia passou de 5%, em 1965, a 25%, em 2005 (Noel, 2008). A dependncia da Europa em relao s importaes de gs dever atingir 84% do seu consumo em 2030 (Locatelli, 2008).

    Os pases europeus so abastecidos por gs por meio de trs eixos principais: o eixo norte, o eixo sul e o eixo leste. O primeiro encaminha a prpria produo europeia da Inglaterra, da Holanda e da Noruega. O eixo Sul corresponde s im-portaes de gs provenientes do norte da frica da Arglia, principalmente, e um pouco da Lbia. Por fim, o eixo leste constitudo pelos gasodutos transportando a produo da Rssia. Esse pas hoje responsvel pela maior parte das importaes de gs da Europa, chegando a fornecer cerca 25% do consumo total da regio.

    A dependncia dos pases europeus em relao ao gs russo varivel. Alguns pases so muito dependentes, como mostra a tabela 2.

    TABELA 2Dependncia europeia em relao ao gs russo (2008)(Em %)

    Pas Parcela do gs russo no consumo total Parcela do gs russo nas importaes

    totais de gs

    Gr Bretanha 0,0 0,0

    Frana 14.1 14.3

    Itlia 26.2 29.0

    Romnia 30,7 99,2

    Alemanha 42.5 44.3

    Polnia 47.0 69.5

    ustria 66.7 77.5

    Grcia 66,9 66,9

    Repblica Checa 78,3 86,0

    Bulgria 98,7 100,0

    Finlndia 100 100

    Fonte: International Energy Agency, em Protasov (2008).

  • 38 O Renascimento de uma Potncia? A Rssia no sculo XXI

    tambm importante observar que mais da metade (5 milhes de barris por dia em 2005) da produo russa de petrleo (9,4 milhes de barris por dia em 2005) exportada na direo da Europa (Locatelli, 2006).

    O contraste entre essas relaes bilaterais e a atitude da UE em relao Rssia vem muito da necessidade desses pases terem acesso ao gs russo. Neste novo contexto, a grande arma geopoltica defensiva da Rssia na sua relao com a Europa o gs. Esta estratgia lhe permite moderar as pretenses eu-ropeias de querer interferir na sua zona de influncia. Como escreve Lacoste (2006, p. 156), com tal parceria fundada no fornecimento de gs para a Unio Europeia, a Rssia dispe de um poderoso meio de influncia geopoltica. importante sublinhar que o gs possui este destaque porque seu transporte quase exclusivamente realizado por meio de gasodutos, o que supe poder de barganha considervel por parte do pas fornecedor. O problema que o fim da URSS foi responsvel pela proliferao do nmero de pases pelos quais transi-tam os oleodutos e os gasodutos transportando a produo russa. Muitos destes novos pases so relativamente hostis Rssia, que tem de praticar poltica externa muito ativa para manter uma forma de controle sobre as zonas atraves-sadas pelos gasodutos. Os contratos russos de fornecimento de gs so um ins-trumento geopoltico, administrado por meio de poltica tarifria diferenciada, segundo a importncia estratgica dos Estados envolvidos, para administrar esta situao. Mesmo assim, a Rssia, consciente do perigo desta situao, comeou a implementar uma poltica de diversificao das trajetrias dos dutos.

    Nesse mbito, o caso da Ucrnia interessante. Apesar da presena de forte minoria russa26 na sua populao e da profunda integrao entre as duas econo-mias, sempre est oscilando entre o Ocidente e a Rssia. A Revoluo Laranja, no final de 2004, fortemente incentivada pelos Estados Unidos, no agradou o governo russo, devido a seu programa de ocidentalizao e revitalizao da eco-nomia ucraniana, que no levava em conta a Rssia. Depois de presses polticas pouco exitosas, esse pas decidiu ameaar a Ucrnia e cortar a alimentao do gasoduto que abastece o pas se no houvesse reajuste na baixssima tarifa cobra-da pelo gs russo. O contencioso gasfero entre os dois pases em 2005 acabou resolvendo-se a favor da Rssia, e o governo pr-ocidental foi desestabilizado. Este episdio constitui um bom exemplo da disposio do governo russo de no mais aceitar passivamente maior avano dos Estados Unidos e da Europa na sua rea de influncia.

    A Rssia desenvolveu tambm uma poltica ativa de diversificao das rotas de dutos para diminuir a capacidade dos Estados Unidos de poder atrapalhar sua geopoltica da energia. Esta poltica tinha comeado de forma tmida antes da

    26. A minoria russa representava 17,3% da populao ucraniana em 2001 (Eckert, 2004, p. 221).

  • 39A Geopoltica da Federao Russa em relao aos Estados Unidos e Europa

    chegada de Putin ao poder, pela assinatura de um acordo com Varsvia em 1995, que previa a construo de Yamal 1, gasoduto capaz de assumir o transporte de 20% do total das exportaes russas na direo da Polnia e, possivelmente, da Alemanha, passando por Belarus, mas no pela Ucrnia (Marchand, 2007, p. 56). A construo do Blue Stream, gasoduto que atravessa o mar Negro para ligar a Rssia e a Turquia, tambm se inscreve nesta poltica de diversificao.

    Outra grande realizao russa foi o gasoduto Nord Stream, passando pelo mar Bltico, que liga a Rssia (campos da Sibria) e a Alemanha. O Nord Stream evita, assim, de passar pelos Pases Blticos e pela Polnia, aliados incondicionais dos Estados Unidos. Resultado de parceria entre a Gazprom russa e as empresas energticas alems Badische Anilin und Soda-Fabrik (BASF) e E.ON, a holandesa N.V. Nederlandse Gasunie e a francesa Gaz de France(GDF), o Nord Stre-am foi parcialmente inaugurado em 2011. A capacidade final de transporte de 55 bilhes de m3 de gs por ano ser atingida no final de 2012 (Bezat, 2011). O abandono dos planos de expanso da energia nuclear por parte da Alemanha faz com que este gasoduto aparea como a nica soluo vivel para o abasteci-mento energtico alemo nos prximos anos.

    Outro projeto muito ambicioso da Rssia na sua tentativa de diversifi-cao das rotas gasferas o gasoduto South Stream, que ligaria os recursos do mar Cspio e, potencialmente, da Sibria s Europas do Sul e do Leste, passando pela Bulgria, pela Srvia, pela Hungria, pela ustria e pela Itlia. Concebido pela Gazprom com a italiana Ente Nazionale Idrocarburi (ENI) e a francesa lectricit de France (EDF), este projeto, que est previsto para ser realizado em 2015, muito dispendioso e muitos a