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Alfabetização de Adultos

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  • 206

    No que diz respeito alimentao, o conjunto normativo que

    regulamenta a aplicao de recurso pblico para a sua compra

    bastante complexo. Se, de um lado, possui os dispositivos de

    controle necessrios para um uso adequado de tais recursos,

    por outro, no caso especfico do TOPA, impe grandes dificul-

    dades para assegurar a merenda escolar a todos os educandos

    matriculados no programa, sejam eles participantes de turmas

    administradas pelas prefeituras ou de turmas administradas

    pelas entidades sociais. Isto pelo fato de as entidades sociais

    no estarem autorizadas pela lei a receberem recurso pblico

    para a merenda escolar.

    Apesar dos desafios burocrticos inerentes questo da

    alimentao e materiais escolares diversos, ao longo das 7

    etapas, a solidariedade e o compromisso comunitrio daqueles

    que se veem implicados no processo se manifestam e fazem

    nascer solues locais que asseguram alimentao e proviso

    de materiais essenciais a todos.

    Ao longo das etapas do TOPA, foram muitas as experincias

    de planejamento do trabalho poltico-pedaggico realizado

    no interior do seu cotidiano. Encontros de mbito estadual e

    municipal so permanentes e visam a uma maior compreenso

    tanto dos aspectos operacionais quanto dos poltico-pedag-

    gicos do Programa.

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    O Programa TOPA realiza nos dias 25 e 26 de fevereiro de 2010, na Escola Parque, o I ENCONTRO ESTADUAL DE GESTORES MUNICIPAIS DO TOPA

    A atividade, que reunir Gestores Municipais, Supervisores

    Regionais e representantes de Unidades Formadoras com a

    Equipe central do Programa, tem entre seus objetivos capa-

    citar os gestores nos sistemas SBA e Gesto TOPA, orientar

    sobre execuo financeira e prestao de contas dos convnios

    realizados, e apresentar e socializar os resultados e desafios

    do Programa. Alm disso, o momento servir para elaborao

    do planejamento das aes do TOPA para 2010.

    Fonte: Acesso em 20 jul. 2014.

    Como podemos perceber, a vida pulsa no cotidiano do TOPA.

    Companheirismos, afetos, esperanas, sonhos, dificuldades,

    aprendizagens, descobertas coletivas, desafios, tomadas de

    conscincia, alegria, conectividades etc. se fazem presentes o

    tempo todo neste programa que sonha contribuir com o fim

    do analfabetismo no estado da Bahia por meio da ao cidad

    do seu prprio povo.

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  • Ro

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    Desde 1948, quando a Declarao Universal dos Direitos do

    Homem foi proclamada pela Assembleia-Geral das Naes

    Unidas, a educao conquistou um status de direito humano,

    reconhecido mundialmente.

    Garantir o direito educao para todos e todas seria, desde

    ento, condio essencial para o desenvolvimento das naes

    que almejassem construir para si uma sociedade mais pacfica,

    justa e menos desigual. Contudo, o reconhecimento do direito

    no tem se revertido em prticas concretas. Outros direitos

    elementares, como o da alimentao, moradia, sade, entre

    tantos, tambm tm sido negligenciados.

    Para as crianas mais empobrecidas, o caminho que deveria

    levar desde cedo escola sofre bruscas mudanas de itinerrio,

    levando-as a definir, como nica rota possvel, a preservao

    da prpria vida. Em decorrncia disso, milhes de crianas so

    obrigadas a abandonar os estudos antes de conclu-los ou nem

    sequer tm a oportunidade de inici-los. Contudo, no somente

    a necessidade de trabalhar desde cedo que contribui para que

    o direito educao seja violado. Muitos dentre aqueles que

    puderam iniciar o processo de escolarizao so expulsos da

    escola por um currculo alienado de suas reais necessidades,

    distante de suas experincias de vida, composto por disciplinas

    fragmentadas, pouco atrativas, desprovidas de sentido, e orga-

    nizado com base em tempos e espaos alheios s suas culturas.

    Esses sujeitos acabaram por recorrer Educao de Jovens

    e Adultos (EJA), vendo nela um atalho que lhes permitir dar

    continuidade trajetria interrompida. No entanto, para alm

    Alfabetizao e cultura

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    do carter reparatrio das injustias sofridas por estes sujeitos,

    a EJA deve buscar formas cada vez mais inovadoras de consti-

    tuir-se como educao de qualidade social, conforme previsto

    na Declarao de Hamburgo (UNESCO, 1997):

    A educao de adultos torna-se mais que um direito:

    a chave para o sculo XXI; tanto consequncia do

    exerccio da cidadania como condio para uma plena

    participao na sociedade. Alm do mais, um podero-

    so argumento em favor do desenvolvimento ecolgico

    sustentvel, da democracia, da justia, da igualdade

    entre os sexos, do desenvolvimento socioeconmico

    e cientfico, alm de um requisito fundamental para a

    construo de um mundo onde a violncia cede lugar ao

    dilogo e cultura de paz.

    Os marcos legais e os documentos nacionais e internacionais

    que amparam a EJA e a colocam no patamar de educao de

    carter regular expressam a intencionalidade de fazer cumprir

    o direito inalienvel de uma educao com qualidade social, que

    permita aos jovens e adultos o pleno exerccio da cidadania.

    Um programa que se pretenda inclusivo deve ter suas aes

    ampliadas a favor daqueles que demandam necessidades

    especiais para iniciarem seus percursos de aprendizagem

    e permanecerem nele. Materiais, currculo e metodologias

    adequados ao pblico adulto, avaliao processual, dialgica

    e formativa, organizao dos tempos e espaos, so algumas

    das questes que devem ser pensadas e otimizadas em favor

    das aprendizagens.

    Sendo assim, a Educao de Adultos no pode ser pensada

    como uma segunda chance. No a segunda e provavelmente

    a ltima oportunidade de se fazer parte da comunidade de

    letrados. Tambm no um prmio de consolao ou um tipo

    de educao reduzida a ser oferecida queles que, por razes

    sociais, familiares ou polticas no a tiveram durante a infncia.

    No uma educao pobre para pobres. A educao de adultos

    est inserida no campo do direito.

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  • Para reverter essa situao so necessrias aes articula-

    das, como proposio de polticas pblicas intersetoriais que

    envolvam diferentes segmentos da sociedade; estabelecimento

    de uma interlocuo mais dinmica e significativa com a comu-

    nidade escolar; investimento em formao inicial e continuada

    de educadores(as) e alfabetizadores(as) de jovens, adultos e

    idosos; elaborao de materiais especficos, diferenciados e

    inovadores, que contemplem a alfabetizao de jovens e adultos

    na riqueza da sua diversidade (regional, geracional, cultural,

    gnero, entre outras).

    1. Alfabetizao e Cultura em Paulo Freire

    Os adultos e idosos que interromperam seus estudos quando

    crianas, ao voltar a estudar, trazem uma imagem que muito

    se assemelha escola do seu perodo de infncia, como se pu-

    dessem retomar os estudos do jeito que pararam, sem levar em

    considerao todas as aprendizagens que acumularam ao longo

    dos anos. Mesmo os que nunca frequentaram a escola trazem

    esse imaginrio. Em geral, essas pessoas esperam encontrar, na

    Turma da APAE

    participando do

    desfile cvico, Direc

    30 - Guanambi, em 7

    de setembro de 2010

    211

    Acervo IPF

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    escola de hoje, a mesma do passado, que remonta a um perodo

    em que a aprendizagem estava relacionada memorizao,

    repetio, treino ortogrfi co, cpias e atividades mecnicas

    com o intuito de fi xar o conhecimento. A alfabetizao neste

    contexto deixa de valorizar o extenso repertrio de experincias

    adquiridas no decorrer da vida dos estudantes.

    O conceito de alfabetizao em Paulo Freire muito claro.

    Alfabetizao a aquisio da lngua escrita, por um processo

    de construo do conhecimento, que se d num contexto dis-

    cursivo de interlocuo e interao, atravs do desvelamento

    crtico da realidade, como uma das condies necessrias ao

    exerccio da plena cidadania: exercer seus direitos e deveres

    frente sociedade global (GADOTTI, 1996, p. 59). Ainda segundo

    Gadotti (2008, p. 73),

    A alfabetizao tem sido entendida tradicionalmente

    como um processo de ensinar e aprender a ler e escrever,

    portanto, alfabetizado aquele que l e escreve. O concei-

    to de alfabetizao para Paulo Freire tem um signifi cado

    mais abrangente, na medida em que vai alm do domnio

    do cdigo escrito. Enquanto prtica discursiva, para Freire

    (1991, p. 68), a alfabetizao possibilita uma leitura crtica

    Educandos (as) do TOPA

    no Centro de Diagnose do

    Dayhorc (Hospital de Olhos),

    no bairro de So Loureno,

    Direc 9 - Teixeira de Freitas,

    em 17 de setembro de 2011

    Car

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    da realidade, constitui-se como

    um importante instrumento de

    resgate da cidadania e refora

    o engajamento do cidado nos

    movimentos sociais que lutam

    pela melhoria da qualidade de

    vida e pela transformao social.

    Freire defendia a ideia de que

    a Leitura do Mundo precede a

    leitura da palavra, fundamen-

    tando-se na antropologia: o ser

    humano, muito antes de inventar

    cdigos lingusticos, j lia o seu

    mundo. Para ele, o processo de

    alfabetizao, como de resto

    toda a educao, vai muito alm

    do aprendizado das letras. In-

    sistia que a Leitura do Mundo

    precede a leitura da palavra: a

    prtica da alfabetizao tem que

    partir exatamente dos nveis de

    leitura do mundo, de como os

    alfabetizandos esto lendo sua

    realidade, porque toda leitura

    de mundo est grvida de um

    certo saber.

    Neste sentido, alfabetizar-se tam-

    bm aprender a pensar-se em seu

    mundo para, a partir da, agir como

    uma pessoa tica e politicamente res-

    ponsvel, participante e transformado-

    ra. Cada pessoa, cada grupo humano,

    cada cultura , em si-mesmo(a), uma

    fonte original, coerente e irrepetvel

    de experincias, vivncias, valores

    e saberes. Essas vrias experincias

    que desenham os modos de viver e

    existir desses educandos constituem

    a cultura que eles trazem consigo ao

    retornar escola. Portanto, tudo o que

    acontece na educao, na escola e na

    sala de aulas faz parte de um mundo

    de cultura.

    No entanto, um dos maiores de-

    safios da alfabetizao de jovens,

    adultos e idosos est no saber como

    realizar a incorporao da cultura e

    da realidade vivencial dos educandos

    como contedo ou ponto de partida

    da prtica educativa.

    Segundo Brando (2009, p. 21)

    O foco central da ideia de

    cultura no est no que os seres

    humanos fazem. Est no que

    eles sabem; est no que e no

    como aprendem; est no como

    coletivamente criam algo que

    vai da culinria tpica at uma

    ampla viso de mundo. E est no

    que e no como transmitem uns

    para os outros: saberes, senti-

    dos, sensibilidades, significados,

    sociabilidades. A partir da, uma

    cultura existe presente dentro

    das pessoas que a partilham e,

    em diferentes crculos sociais

    de suas convivncias, atravs do

    que-e-como elas pensam, como

    criam suas prticas, ticas, ideias

    e ideologias, envolvendo no seu

    todo e em cada dimenso os seus

    fazeres coletivos.

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    H uma tendncia de pensar a

    cultura como o folclore. Como o do-

    mnio dos costumes, das crenas,

    das criaes artsticas e artesanais

    de nossos povos. Ela tambm

    isto, mas muito mais do que apenas

    isto. A experincia humana de criar e

    viver culturas envolve a totalidade

    da vida coletiva de uma comunidade

    ou de todo um povo. As prticas do

    fazer, as ticas do agir, as polticas

    do viver e os universos simblicos

    so dimenses interligadas de um

    mesmo complexo processo cultural.

    Segundo Freire (1963, p. 17)

    Pareceu-nos, ento que o

    caminho seria levarmos o anal-

    fabeto, atravs de redues,

    ao conceito antropolgico de

    cultura. O papel ativo do homem

    em sua e com sua realidade. O

    sentido da mediao que tem

    a natureza para as relaes e

    comunicaes dos homens. A

    cultura como acrescentamen-

    to que o homem faz ao mundo

    que ele no fez. A cultura como

    resultado de seu trabalho. De

    seu esforo criador e recriador.

    O homem, afinal, no mundo e

    com o mundo, como sujeito e

    no como objeto. [...] desco-

    brir-se-ia criticamente agora,

    como fazedor desse mundo da

    cultura. Descobriria que ele,

    como o letrado, ambos tm um

    mpeto de criao e recriao.

    Descobriria que tanto cultura

    um boneco de barro feito pelos

    artistas, seus irmos do povo,

    como tambm a obra de um

    grande escultor, de um grande

    pintor ou msico. Que cultura

    a poesia dos poetas letrados do

    seu pas, como tambm a poesia

    do seu cancioneiro popular. Que

    cultura so as formas de com-

    portar-se. Que cultura toda

    criao humana.

    Por isso mesmo, Paulo Freire, ao

    associar a cultura alfabetizao

    e aos primeiros momentos de um

    trabalho de educao com jovens e

    adultos, reconhece que o aprender a

    ler e no pode estar dissociado das

    primeiras aprendizagens.

    Para Brando (2009), quando lem-

    bramos tudo que aprendemos quan-

    do crianas, da lngua que falamos

    (mas que ainda no escrevemos) s

    brincadeiras de criana vividas entre

    irmos e amigos, e atravs das quais

    aprendemos muito mais do que po-

    demos imaginar, estamos falando de

    um quase curriculum informal e invi-

    svel que em boa medida nos seguir

    acompanhado ao longo dos anos de

    nossa vida.

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  • 215

    2. Educao escolar e Cultura

    A educao tem importante papel na transformao do mundo.

    Se ela no capaz de gerar mudanas sozinha, tampouco sem

    ela se transformam as condies de existncia.

    Reinventar a educao a fim de permitir que ela cumpra o

    seu papel transformador torna imprescindvel tambm a rein-

    veno da escola, que muito mais que um espao fsico. Ela

    um espao de cultura. Existe uma cultura escolar na medida

    em que a escola resultado das relaes que a fazem ser o que

    ela , dos acontecimentos e modos de vida que nela tm local e

    ocasio, dos valores, relaes, hbitos, atitudes, conhecimentos

    e comportamentos que a caracterizam. papel da educao

    possibilitar que o encontro entre os diferentes modos de vida

    no se convertam em formas de dominao cultural, mas em

    oportunidades de aprender a viver junto em meio a tantas di-

    ferenas. Se as desigualdades devem ser combatidas, porque

    so formas de poder, as diferenas merecem ser respeitadas,

    porque materializam, como num mosaico, a beleza da vida.

    A educao de jovens, adultos e idosos tambm no pode

    prescindir da tomada de posio diante do conhecimento.

    Isso implica considerar de antemo que jovens e adultos so

    Atividade externa

    de Leitura do Mundo

    e confraternizao

    junto uma entidade

    apoiadora da Direc

    23 - Macabas, na

    realizao da 6 eta-

    pa Programa TOPA

    Acervo IPF

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  • 216

    diferentes entre si e tambm diferentes de crianas. Desinfan-

    tilizar as formas de tratar os conhecimentos e contemplar as

    heterogeneidades etrias que compem um grupo de educandos

    jovens e adultos pr-requisito para valorizar suas culturas e

    as histrias de vida. Somente assim podemos retirar das costas

    de cada indivduo o peso da crena no fracasso escolar que

    curva a espinha de sua autoestima ao nvel do cho. Cumpre,

    portanto, acolher esses(as) educandos(as) valorizando-os(as)

    e oportunizando momentos de satisfao diante do ato de

    estudar, de forma que o medo de no conseguir aprender se

    esvaea e no mais se coloque como obstculo.

    Do pblico que tem procurado os programas de educao de

    jovens e adultos, uma grande maioria constituda de pessoas

    que tiveram passagens fracassadas pela escola, entre elas, uma

    crescente demanda de adolescentes e jovens recm-excludos

    do sistema regular de ensino. Esse panorama ressalta o grande

    desafio pedaggico e o compromisso que se impe em garantir

    a essa pessoas acesso de qualidade a uma cultura letrada que

    lhes possibilite uma participao mais ativa e efetiva no mundo

    do trabalho, da poltica e da cultura.

    Nesse ponto, a escola torna-se um espao para desenvolver

    o pensamento reflexivo, para se aprender a discutir, participar

    Educandas-artess

    em atividade na

    Direc 30 - Guanam-

    bi, 6 etapa, em

    julho de 2012

    Arquivo TOPA

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 216 04/11/2014 20:38:52

  • 217

    democraticamente e desenvolver a

    responsabilidade pelo bem-estar co-

    mum. extremamente importante no

    trabalho com jovens e adultos favorecer

    a autonomia dos educandos, estimu-

    l-los a avaliar constantemente seus

    progressos, tomando conscincia de

    como a aprendizagem se realiza. Acima

    de tudo, importante fortalecer a sua

    identidade, por meio da valorizao de

    sua cultura.

    Para isso, vale destacar que o foco

    do trabalho com a EJA deve estar no

    sujeito mais do que na estrutura, isso

    porque na ao do sujeito que se

    estabelece o conhecimento, ou seja,

    enfatizamos que os sujeitos da EJA

    so ativos, vivenciam diferentes rea-

    lidades, na maioria das vezes, duras

    e desafiantes, e esto o tempo todo

    produzindo saberes e culturas. Nesse

    sentido, faz-se necessrio valorizar a

    riqueza de todas as culturas na nossa

    constituio de sujeitos nicos e mul-

    tifacetados, e da necessidade do outro

    para a nossa formao de indivduo, que

    no pode prescindir da coletividade para

    se afirmar como sujeito. nicos porque

    indivduos, com suas singularidades, e

    coletivos porque sociais e inacabados.

    Para Freire (1993, p. 93),

    Perguntar-nos em torno das

    relaes entre a identidade cul-

    tural, que tem sempre um corte

    de classe social, dos sujeitos da

    educao e a prtica educativa

    algo que se nos impe. que

    a identidade dos sujeitos tem

    que ver com as questes fun-

    damentais de currculo, tanto

    o oculto quanto o explcito e,

    obviamente, com questes de

    ensino e aprendizagem.

    Nesse sentido, vale ressaltar tambm

    a importncia dos saberes acumulados

    historicamente, como defende Cndida

    Andrade de Moraes (2011, p. 36), em

    sua dissertao de mestrado:

    direito de cada educando

    entrar em contato com a rique-

    za das contribuies dos seus

    ancestrais, direito, tambm,

    aprender a aprender com uma

    vivncia que integre o sentir,

    o pensar e o agir. As heranas

    culturais africanas e indgenas

    na cultura brasileira, ao longo

    do desenvolvimento educati-

    vo e do acesso escola formal,

    ficaram margem dos currcu-

    los e foi necessria, atravs de

    leis, a entrada de tais contedos

    como legtimos na prtica pe-

    daggica, a fim de considerar

    as identidades e pluralidades

    dos sujeitos. O toque, o olfato,

    o paladar, o sentir e respeitar

    o lugar e as escolhas do outro,

    ainda so relegados em prticas

    educativas, a favor de crianas,

    jovens ou adultos, sentados em

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 217 04/11/2014 20:38:53

  • 218

    cadeiras durante o longo turno

    dos tempos destinados apren-

    dizagem. As marcas deste no

    sentir esto sendo acumula-

    das em cada sujeito, ao longo

    do processo de educao. As

    fileiras de cadeiras, a ausncia

    de ritmos, cores e formas inter-

    rompem um pensar simblico

    que, se suscitado, estimularia

    e promoveria as descobertas.

    3. Dilogos com a prxis

    O TOPA vem desenvolvendo, ao lon-

    go dos seus 7 anos de existncia, um

    importante papel na valorizao da

    cultura local. O Programa pode ser con-

    siderado uma referncia nacional, pois

    conseguiu mapear as comunidades com

    necessidades educacionais especiais e

    oferecer alfabetizao com foco nessas

    necessidades e nas suas culturas.

    Como exemplo disto, podemos ci-

    tar o trabalho realizado na Chapada

    Diamantina, no serto da Bahia. De

    acordo com o Relatrio do Programa

    Brasil Alfabetizado no Estado da Bahia

    Programa Todos pela Alfabetizao

    TOPA, etapas 2007, 2008, 2009 e 2010,

    p. 172 - 187,

    As comunidades remanes-

    centes de quilombos consti-

    tudos durante o processo de

    escravatura negra no Brasil,

    vigente at o sculo XIX, tentam

    superar os desafios impostos

    pela caatinga, sobretudo, em

    longos perodos de estiagem.

    Por l, cultivam os hbitos e

    costumes dos antepassados,

    muitas vezes, alijadas de qual-

    quer benfeitoria promovida pelo

    desenvolvimento tecnolgico

    e econmico e pela expanso

    das aes do Estado. Somente

    em Amrica Dourada, munic-

    pio da microrregio de Irec,

    de apenas 15.961 habitantes e

    839 km2 (IBGE, 2011) e voltado

    agricultura, esto seis destas

    comunidades (Lajedo dos Ma-

    theus, Lapinha, Canabrava, Ga-

    rapa, Lagoa Verde e Queimada

    dos Beneditos).

    Fincados na zona rural do

    municpio, os descendentes de

    quilombolas de Queimada dos

    Beneditos, por exemplo, vivem

    distantes geograficamente da

    cidade e tm dificuldade de

    acesso a equipamentos e servi-

    os pblicos, inclusive de gua

    tratada. Conseguir gua potvel

    para beber e cozinhar depende

    de longa caminhada com latas

    sobre a cabea ou no lombo de

    animais. De indcio dos avanos

    recentes da humanidade, h ape-

    nas um bico de luz iluminando

    cada uma das parcas casas que

    compunham o arraial.

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 218 04/11/2014 20:38:55

  • Em 2011, formou-se no povoado uma turma do Programa

    TOPA, com a participao de onze homens e mulheres remanes-

    centes do quilombo. A maioria dos candidatos nunca havia ido

    escola, mas conseguiram se alfabetizar abrindo precedente

    para que outras pessoas da comunidade despertassem o inte-

    resse pela alfabetizao.

    Da mesma forma, o Programa tem uma importante atuao

    na comunidade indgena. Na aldeia Mirandela, do municpio de

    Banza, no serto baiano, na microrregio de Ribeira do Pombal,

    a cerca de 300 quilmetros de distncia de Salvador, funciona a

    turma do Programa Todos pela Alfabetizao voltada aos Kiriris

    (ou Cariris, Quiriris). Com calendrio de aulas baseado nos festejos

    e rituais da populao local, com livro didtico especfico sobre a

    realidade do lugar, desenvolvido com a participao dos prprios

    alfabetizandos e do seu povo, o Programa oferece a oportunidade

    de os indgenas aprenderem a ler e escrever em portugus a

    lngua oficial do Brasil e fazer operaes matemticas bsicas,

    alm de contedos relacionados ao meio ambiente e a outros

    temas relevantes, mas sem desconsiderar a cultura indgena.

    Todos os procedimentos e materiais so adaptados cultura

    kiriri, respeitam e valorizam as manifestaes indgenas e os Kiriris,

    abordando aspectos da sua cultura, tradio, realidade atual e histria,

    sob superviso do cacique Lzaro, a principal autoridade da aldeia.

    Educandas Maria

    Lima da Costa e Ere-

    mita Ambrosia dos

    Santos com o coorde-

    nador da Associao

    de Remanescentes

    de Quilombo, co-

    munidade Olhos

    Dgua do Meio, em

    Livramento de Nossa

    Senhora, Direc 19 -

    Brumado, em 2014

    219

    Ace

    rvo

    IPF

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 219 04/11/2014 20:38:59

  • 220

    Todo o contedo parte das experincias e

    da realidade daqueles sujeitos, conforme

    preconiza Paulo Freire.

    A Declarao de Hamburgo sobre

    Educao de Adultos, ao tratar do tema

    diversidade e igualdade (V CONFINTEA,

    1997, 15), no tocante educao de

    adultos, assim se expressa:

    [...] deve refletir a riqueza da di-

    versidade cultural, bem como

    respeitar o conhecimento e for-

    mas de aprendizagem tradicionais

    dos povos indgenas. O direito de

    ser alfabetizado na lngua mater-

    na deve ser respeitado e imple-

    mentado. A educao de adultos

    enfrenta um grande desafio, que

    consiste em preservar e documen-

    tar o conhecimento oral de grupos

    tnicos minoritrios e de povos

    indgenas e nmades. Por outro

    lado, a educao intercultural

    deve promover o aprendizado e

    o intercmbio de conhecimento

    entre e sobre diferentes cultu-

    ras, em favor da paz, dos direitos

    humanos, das liberdades fun-

    damentais, da democracia, da

    justia, da coexistncia pacfica

    e da diversidade cultural

    Ainda na proposta de incluso social e

    respeito diversidade cultural, o Progra-

    ma tambm atuou junto comunidade

    cigana, que, em funo da vida nmade

    e do preconceito de que so vtimas,

    concentra grande nmero de analfa-

    betos. Um desses grupos que estava

    acampado nas imediaes da cidade de

    Cruz das Almas, no Recncavo Baiano,

    comps uma turma do TOPA. A formao

    de turmas dentro do acampamento faz

    parte de um plano de preparao da co-

    munidade para atuao no mercado de

    trabalho e busca da garantia dos direitos

    j previstos pelos dispositivos legais.

    Outro grupo assistido pelo Programa

    o de assentados e acampados. O

    Movimento de Mulheres Trabalhadoras

    Rurais de Inhambupe (MMTR), municpio

    localizado no Nordeste baiano, na mi-

    crorregio de Alagoinhas, atua dentro do

    Programa TOPA conseguindo alfabetizar

    at mais de oito de cada dez estudantes

    matriculados, utilizando performances

    teatrais, msicas, rodas de leitura, alm

    da prtica de avaliao do andamento

    do trabalho de campo, socializao de

    vivncias com os objetivos de estimular

    a interao social, desenvolver a ora-

    tria e a expresso corporal e abordar

    contedos de interesse do grupo, como

    a questo ambiental.

    A parceria do TOPA com os movimen-

    tos de luta pelo direito terra na Bahia

    ilustra bem o compromisso deste governo

    com as causas dos oprimidos que, numa

    perspectiva freiriana, melhor renem as

    condies para a superao da opresso

    que oprime oprimidos e opressores. Uma

    parceria celebrada na compreenso de

    que alfabetizao e conscientizao so

    processos indissociveis.

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 220 04/11/2014 20:39:01

  • 221

    A esperanosa marcha dos que sabem que mudar possvel

    O Movimento dos Sem-Terra, to tico e pedaggico quanto cheio de boni-

    teza, no comeou agora, nem h dez ou quinze, ou vinte anos. Suas razes

    mais remotas se acham na rebeldia dos quilombos e, mais recentemente,

    na bravura de seus companheiros das Ligas Camponesas que h quarenta

    anos foram esmagados pelas mesmas foras retrgradas do imobilismo

    reacionrio, colonial e perverso.

    O importante porm reconhecer que os quilombos tanto quanto os

    camponeses das Ligas e os sem- terra de hoje todos em seu tempo, ante-

    ontem, ontem e agora sonharam e sonham o mesmo sonho, acreditaram

    e acreditam na imperiosa necessidade da luta na feitura da histria como

    faanha da liberdade. No fundo, jamais se entregariam falsidade ideo-

    lgica da frase: a realidade assim mesmo, no adianta lutar. Pelo con-

    trrio, apostaram na interveno no mundo para retific- lo e no apenas

    para mant- lo mais ou menos como est.

    Se os sem- terra tivessem acreditado na morte da histria, da uto-

    pia, do sonho; no desaparecimento das classes sociais, na ineficcia dos

    testemunhos de amor liberdade; se tivessem acreditado que a crtica ao

    fatalismo neoliberal a expresso de um neobobismo que nada constri;

    se tivessem acreditado na despolitizaao da poltica, embutida nos discur-

    sos que falam de que o que vale hoje pouca conversa, menos poltica e

    s resultados, se, acreditando nos discursos oficiais, tivessem desistido

    das ocupaes e voltado no para suas casas, mas para a negao de si

    mesmos, mais uma vez a reforma agrria seria arquivada.

    A eles e elas, sem-terra, a seu inconformismo, sua determinao

    de ajudar a democratizao deste pas devemos mais do que s vezes

    podemos pensar. E que bom seria para a ampliao e a consolidao de

    nossa democracia, sobretudo para sua autenticidade, se outras marchas

    se seguissem sua.

    A marcha dos desempregados, dos injustiados, dos que protestam

    contra a impunidade, dos que clamam contra a violncia, contra a mentira

    e o desrespeito coisa pblica. A marcha dos sem-teto, dos sem-escola,

    dos sem- hospital, dos renegados. A marcha esperanosa dos que sabem

    que mudar possvel. (FREIRE, 2000, p. 60)

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 221 04/11/2014 20:39:02

  • Como j destacamos, a histria da EJA no Brasil tem sido

    compreendida como um campo de lutas. Luta por garantia de

    oferta em todo territrio nacional, por aumento de vagas nas

    escolas em diferentes perodos, por materiais e recursos ade-

    quados ao pblico jovem e adulto, por reconhecimento como

    uma modalidade regular, por formao inicial e continuada

    dos educadores e educadoras, enfim, luta por uma educao

    de qualidade com garantia de acesso e permanncia. Garanti-

    das todas as condies necessrias, ainda h um novo desafio:

    mobilizar os educandos e educandas para romper o obstculo

    maior para esse segmento: a deciso de voltar a estudar.

    Rompido esse primeiro obstculo, muitos outros se apre-

    sentam, e o retorno aos estudos , via de regra, marcado por

    inmeras sensaes e desafios.

    Misturam-se a expectativa das novas aprendizagens, o medo

    de um possvel fracasso, a vergonha de frequentar um ambiente

    que muitos acreditam ser de exclusividade da infncia, o desafio

    de gerenciar as diferentes demandas dirias com o tempo de

    estudo, a alegria pelo incio de uma nova etapa na vida e outros

    sentimentos desafiadores.

    Jos Ferreira de

    Castro, lavrador e

    educando da turma

    da Associao de

    Pequenos Produ-

    tores Rurais, na

    Comunidade Lagoa

    Dourada, Direc 22 -

    Ibotirama, 2 etapa

    222 Acervo IPF

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 222 04/11/2014 20:39:07

  • 223

    Mas, antes de chegar escola, os

    educandos j interpretam a realidade

    em que vivem, experimentando-a e

    explicando-a de maneiras muito par-

    ticulares. Essas leituras de mundo no

    podem ser desconsideradas como um

    tipo de saber menor e descartvel, pelo

    contrrio, devem ser lidas pelo educa-

    dor e relidas por toda a comunidade de

    aprendizagem, confrontando-as com os

    conhecimentos humanos sistematizados.

    Desse modo, no possvel construir

    uma prtica pedaggica libertadora sem

    conhecer os educandos, seu universo e

    suas demandas enfim, sua cultura, sem

    respeitar a leitura que trazem, como nos

    alerta Freire (2013d, p. 120):

    O desrespeito leitura do

    mundo do educando revela o gos-

    to elitista, portanto antidemocrti-

    co, do educador que, desta forma,

    no escutando o educando, com

    ele no fala. Nele deposita seus

    comunicados. H algo ainda de

    real importncia a ser discutido

    na reflexo sobre a recusa ou ao

    respeito leitura de mundo do

    educando por parte do educador.

    A leitura de mundo revela, eviden-

    temente, a inteligncia do mundo

    que vem cultural e socialmente se

    constituindo. Revela tambm o

    trabalho individual de cada sujeito

    no prprio processo de assimilao

    da inteligncia do mundo. Uma das

    tarefas essenciais da escola, como

    centro de produo sistemtica de

    conhecimento, trabalhar critica-

    mente inteligibilidade das coisas e

    dos fatos e a sua comunicabilidade.

    imprescindvel portanto que a

    escola instigue constantemente a

    curiosidade do educando em vez

    de amaci-la ou domestic-la.

    preciso mostrar ao educando

    que o uso ingnuo da curiosidade

    altera a sua capacidade de achar e

    obstaculiza a exatido do achado.

    preciso, por outro lado, e sobre-

    tudo, que o educando v assumin-

    do o papel de sujeito da produo

    de sua inteligncia do mundo e no

    apenas o de recebedor da que lhe

    seja transferida pelo professor.

    A primeira mediao do educador

    se d com a formao da comunidade

    de aprendizagem. O grupo reunido em

    uma sala de aula constitui-se em um

    crculo de culturas diversas, disponveis

    em tais circunstncias para potenciais

    trocas. Tal comunidade, unida em torno

    da aprendizagem, comea por se conhe-

    cer e por superar a condio de mero

    agrupamento de pessoas, iniciando a

    construo de seus vnculos afetivos.

    papel do educador criar as possibilidades

    para que todos se apresentem, falem de

    si e do mundo em que vivem, de suas

    histrias de vida, de seus problemas

    dirios, dos seus sonhos, das vontades

    de saber e de poder que os levam at a

    escola, das dificuldades e expectativas de

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 223 04/11/2014 20:39:08

  • 224

    aprendizagem. Essa primeira abordagem

    promove uma primeira aproximao do

    educador com as situaes significativas

    vividas pelos educandos, alm de permitir

    a eles que se distanciem de suas prprias

    experincias cotidianas, estranhando a

    sua aparente obviedade. A leitura de

    mundo o incio da desnaturalizao da

    realidade e da passagem de uma viso

    ingnua sobre o mundo para uma viso

    crtica e problematizadora sobre este.

    De acordo com Freire (2013d, p. 90),

    Como educador preciso de ir

    lendo cada vez melhor a leitura

    do mundo que os grupos popula-

    res com quem trabalho fazem de

    seu contexto imediato e do maior

    de que o seu parte. O que quero

    dizer o seguinte: no posso de

    maneira alguma, nas minhas re-

    laes poltico-pedaggicas com

    os grupos populares, desconsi-

    derar seu saber de experincia

    feito. Sua explicao do mundo

    de que faz parte a compreenso

    de sua prpria presena no mun-

    do. E isso tudo vem explicitado

    ou sugerido ou escondido no

    que chamo leitura do mundo

    que precede sempre a leitura

    da palavra.

    Respeitar a leitura de mundo do

    educando no tambm um jogo

    ttico com que o educador ou edu-

    cadora procura tornar-se simptico

    ao educando, mas uma forma de

    valorizar a sua cultura, entendendo-a

    como um:

    conjunto (dinmico) de conheci-

    mentos que o ser humano acumu-

    la a partir do grupo a que pertence

    e a partir de suas experincias

    pessoais, principalmente no que

    diz respeito ao uso de sistemas

    simblicos em sua vida cotidiana.

    O conhecimento cultural est na

    origem das reaes que a pessoa

    apresenta e na interpretao que

    faz das informaes que recebe.

    Ele est na base dos processos

    interacionais e nas formas de ao

    espontaneamente elaboradas ou

    assumidas pelos indivduos em

    sua vida cotidiana. (LIMA, 1998,

    p. 16-17)

    Percebe-se a estreita relao existente

    entre Alfabetizao e Cultura. Esse bin-

    mio, ao mesmo tempo em que representa

    um desafio para muitos programas edu-

    cacionais, no TOPA, constitui-se como

    nica e promissora perspectiva.

    4. O TOPA e a cultura popular

    O TOPA um projeto de educao

    popular, uma poltica pblica de edu-

    cao popular, pois reconhece os dife-

    rentes saberes, respeitando a cultura

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 224 04/11/2014 20:39:09

  • 225

    popular e os direitos humanos. Cultura

    o processo histrico por meio do qual

    o ser humano transforma a natureza

    e se transforma a si mesmo.

    Tudo o que no natureza cultura,

    obra do ser humano: as cincias, as

    artes, o direito, a religio, a filosofia,

    as atitudes, os smbolos, as crenas,

    os projetos, a linguagem e os valores.

    A cultura pessoal e social ao mesmo

    tempo, pois os seres humanos trans-

    formam e se transformam em relao

    uns com os outros, em comunho. A

    cultura popular diz respeito a um

    tipo de cultura voltada para a ao

    poltica transformadora da realidade

    histrico-social.

    No sistema de alfabetizao proposto

    por Paulo Freire em Angicos (1963), o

    processo de alfabetizao tinha incio

    com uma discusso sobre o concei-

    to antropolgico de cultura. Diz ele

    (FREIRE, 2013b, p. 115):

    Pareceu-nos que a primeira

    dimenso deste novo contedo

    com que ajudaramos o analfa-

    beto, antes mesmo de iniciar sua

    alfabetizao, na superao de

    sua compreenso mgica como

    ingnua e no desenvolvimento

    de crescentemente crtica, seria o

    conceito antropolgico de cultura.

    A distino entre dois mundos:

    o da natureza e o da cultura. O

    papel ativo do homem em sua e

    com sua realidade. O sentido de

    mediao que tem a natureza para

    as relaes e comunicao dos

    homens. A cultura como o acres-

    centamento que o homem faz

    ao mundo que no fez. A cultura

    como resultado de seu trabalho.

    Do seu esforo criador e recriador.

    O sentido transcendental de suas

    relaes. A dimenso humanista

    da cultura. A cultura como aqui-

    sio sistemtica da experincia

    humana. Como uma incorpora-

    o, por isto crtica e criadora, e

    no como uma justaposio de

    informes ou prescries doa-

    das. A democratizao da cultura

    dimenso da democratizao

    fundamental. O aprendizado da

    escrita e da leitura como uma cha-

    ve com que o analfabeto iniciaria

    a sua introduo no mundo da

    comunicao escrita. O homem,

    afinal, no e com o mundo. O seu

    papel de sujeito e no de mero

    e permanente objeto.

    No desenvolvimento de prticas

    alfabetizadoras comprometidas com a

    vida das pessoas, no possvel dissociar

    aprendizagem da leitura e da escrita

    da cultura. Ao longo das 7 etapas do

    Programa TOPA, educandos e alfabeti-

    zadores se desafiaram a transformar o

    ambiente da sala de aula em espao de

    produo e difuso cultural, trazendo

    para dentro dela as vrias identidades

    culturais locais.

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 225 04/11/2014 20:39:10

  • Arquivo TOPA

    Arquivo TOPA

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 226 04/11/2014 20:39:16

  • 227

    H diferena entre a construo formal de um regime democr-

    tico e a construo de prticas efetivamente democrticas. A

    identidade do termo democracia, presente nas duas situaes,

    poderia sugerir, equivocadamente, que se trata sobretudo de

    uma distino de sutilezas, daquelas tipicamente talhadas ao

    gosto das elucubraes mais tericas e eruditas, que servem de

    mote montagem de grandes tratados acadmicos. No entanto,

    a diferena de carter radical, que no se pode transpor com

    uma simples passada. Na verdade, de uma margem a outra, o

    que temos a percorrer um tortuoso caminho de pedras. A do-

    lorosa constatao dessa verdade faz parte dos ensinamentos

    da histria moderna, e o seu aprendizado representa, acima

    de tudo, o fundamento mais slido que temos alcanado para

    continuarmos refazendo permanentemente essa caminhada,

    potencialmente com crescente eficincia e melhores resultados.

    1. Desafios contemporneos da nossa democracia

    A construo da prtica democrtica no Brasil sempre se de-

    parou com inimigos de grande envergadura: em sua primeira e

    precria forma, durante o perodo da Repblica Velha, carregava

    a herana imediata, ainda muito viva e vigorosa, do escravismo,

    patriarcalismo e patrimonialismo coloniais, que se expressavam,

    entre outras formas, nas modalidades do mandonismo, do voto

    masculino, alfabetizado e censitrio, do coronelismo e todos

    Articulao e mobilizao social

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 227 04/11/2014 20:39:19

  • 228

    os outros modos de compadrios. Essa primeira experincia foi

    interrompida pela ditadura varguista, na dcada de 1930. Depois

    da Segunda Guerra Mundial, quando comeavam a se delinear

    os contornos do que viria a ser a Guerra Fria, surge a nossa se-

    gunda experincia de regime pblico democrtico. Nesse novo

    contexto, de acordo com os padres poltico-ideolgicos da zona

    de influncia imperialista sob a qual o nosso pas era objeto

    de hegemonia, aparecia um novo e mais vigoroso inimigo do

    regime democrtico burgus, o comunismo, e a luta contra ele

    no contexto latino-americano do perodo justificaria, inclusive,

    a prpria supresso do regime democrtico, tal como se fez

    entre ns em 1964. Tal experincia dramtica, que se repetiu

    em diferentes pases da nossa regio, serviu mais uma vez de

    lio sobre como o regime poltico est sempre subordinado,

    em ltima instncia, sua maior ou menor capacidade de ajudar

    a reproduzir um determinado projeto de sociedade.

    Agora, desde o ltimo processo de redemocratizao, que

    culminou com a Constituio de 1988, experimentamos j

    26 anos ininterruptos de regime democrtico, fato indito e

    Promulgao da

    Constituio de 1988

    por Ulysses Guima-

    res, ento presiden-

    te da Assembleia Na-

    cional Constituinte

    AB

    r

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 228 04/11/2014 20:39:21

  • 229

    amplamente comemorado entre ns.

    Essa idade mais avanada, pelo seu

    ineditismo na nossa histria nacional,

    poderia talvez servir de razo para afir-

    marmos que somos uma democracia

    provada em sua eficincia, madura nas

    suas prticas e nos seus valores, vigorosa

    na sua vontade e na sua defesa enquanto

    modelo poltico. Mas, se nos aventurar-

    mos em defender essas posies, o que

    diremos diante de fenmenos como

    junho de 2013, diante da diluio de

    reformas to importantes, tais como a

    tributria, a poltica, a urbana e a agrria,

    diante do extermnio sistemtico de

    jovens, negros e pobres nas periferias

    das grandes cidades?

    Primeiramente, a democratizao

    da vida poltica no costuma caminhar

    com a democratizao da vida social

    e econmica. Embora capazes de sus-

    tentar nossas prticas democrticas

    ao longo desses 26 anos, de eleger um

    operrio e uma mulher para o cargo

    mximo da poltica nacional, continua

    existindo a imensa desigualdade eco-

    nmica entre uma pequena poro

    de ricos e uma imensa quantidade

    de pobres. Essa imensa quanti-

    dade de pobres continua impedida de

    acessar bens e servios de qualidade,

    como educao, sade, moradia, tra-

    balho, transporte, cultura, lazer etc.

    Outro importante fator limitador da

    vida democrtica sob a ordem capita-

    lista reside no fato de que a prtica

    democrtica na vida pblica est em

    relao inversa com a prtica auto-

    ritria que se vive, via de regra, no

    contexto da famlia, da escola e do

    trabalho. A cultura que nos constri e

    nos conforma, desde a infncia, a do

    autoritarismo e no a da democracia.

    Da voltamos novamente diferena

    indicada no comeo deste captulo,

    entre a construo formal de um re-

    gime democrtico e a construo de

    prticas efetivamente democrti-

    cas. A primeira relativamente fcil

    e simples. Consiste, basicamente, na

    criao e regulamentao de espaos

    para o funcionamento da participao

    da populao. A segunda construo,

    a das prticas e valores efetivamente

    democrticos, muito mais difcil e

    complexa, por diversas razes.

    Esse o tema da Educao Popular

    em perspectiva freiriana. As caracte-

    rsticas negativas presentes na ordem

    social vigente j no podem mais ser

    pensadas como um bloco monoltico,

    que poderia ser destrudo de um golpe

    s e de uma vez por todas. O tecido

    dessa ordem social vigente precisa

    ser rasgado aos poucos, simultane-

    amente em diferentes pontos, at a

    possibilidade de seu comprometimento

    irremedivel. Trata-se de pensar nas

    estratgias de construo de uma cul-

    tura efetivamente democrtica, que v

    ao encontro das formas j construdas,

    e que possa inclusive modific-las na-

    quilo que se fizer necessrio para sua

    ampliao e aprofundamento.

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 229 04/11/2014 20:39:23

  • 230

    2. Democracia, mobilizao popular e mobilizao social

    Os programas de alfabetizao de jovens, adultos e idosos,

    elaborados com perspectivas ao desenvolvimento da conscin-

    cia e do comportamento crtico, tm cumprido, nesse sentido,

    um importante papel na nossa histria. O caso mais exemplar

    e paradigmtico, pela luta poltica que representou e pela pro-

    jeo nacional e internacional que ganhou o da experincia

    de Angicos, concebida e coordenada por Paulo Freire, no Rio

    Grande do Norte, em 1963. No pretendemos abordar aqui

    os aspectos pedaggicos dessa experincia, mas to somente

    aqueles que dizem respeito nossa temtica de agora.

    Em primeiro lugar, do ponto de vista da dotao de um direito

    formal, alfabetizar adultos, naquele contexto, significava dotar do

    direito ao voto. Na experincia de Angicos, bem como na possibi-

    lidade efetiva de replicar o modelo em escala nacional, tratava-se

    do projeto de alfabetizar trabalhadores agrcolas pobres. Esse

    programa tinha um sentido poltico muito forte naquela poca,

    por conta do contexto internacional da Guerra Fria, das lutas das

    Alfabetizadores, alu-

    nos e coordenadores

    da Direc 16 - Jacobi-

    na participando do

    desfile cvico, em 7

    de setembro de 2012

    Arquivo TOPA

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 230 04/11/2014 20:39:25

  • 231

    ligas camponesas pela reforma agrria, bem como da linha de

    aprofundamento do pacto populista adotada pelo governo Jango,

    que consistia em levar direitos trabalhistas, econmicos e sociais

    para o campo, por meio da formao de sindicatos, formalizao

    do trabalho e pela proposta de reforma agrria compreendida

    pelo programa de reformas de base. Paulo Freire conhecia as

    limitaes e os usos oportunistas que caracterizavam o princpio

    do pacto populista, constitudo pela ideia de uma incorporao

    poltica subordinada e tutelada das massas populares. Mas ava-

    liava que, naquela conjuntura, era a poltica vigente com maior

    capacidade e possibilidades para tensionar as formas polticas e

    econmicas mais conservadoras da sociedade, assim como para

    promover aes de elevao do nvel de conscincia crtica das

    camadas populares, em direo ao mximo de conscincia possvel

    em um determinado contexto histrico e cultural (FREIRE, 1977).

    Esse trabalho de alfabetizao de jovens, adultos e idosos,

    alm disso, s poderia funcionar para explorar essas possibili-

    dades crticas e libertadoras, na medida em que fosse orientado

    e desenvolvido de acordo com os postulados pedaggicos e

    metodolgicos de uma educao problematizadora. bastante

    sintomtico e curioso, a esse propsito, que a primeira greve

    conhecida naquela regio tenha se manifestado no contexto

    desse trabalho alfabetizador:

    Educandos(as) do

    TOPA da Direc 7 -

    Itabuna, apresentam

    a ala prpria : ABC

    de Jorge Amado, na

    ocasio do desfile

    cvico, ao realizada

    em parceria com

    as escolas da Rede

    Estadual, em 7 de

    setembro de 2011

    Arquivo TOPA

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 231 04/11/2014 20:39:27

  • 232

    Coincidncia ou no, logo

    aps a formao da primeira tur-

    ma de alfabetizandos, a cidade de

    Angicos teria sua primeira greve.

    Os proprietrios rurais chamam

    a experincia de Paulo Freire de

    praga comunista. (GADOTTI,

    2014a, p. 4)

    Paulo Freire escreveu que a leitura

    do mundo precede a leitura da palavra.

    Ler o mundo, aqui, significa problemati-

    z-lo, e uma das suas mais importantes

    questes diz respeito, sem dvida, ao

    carter das relaes sociais, suas formas

    mais ou menos democrticas, e aos

    sentidos, usos e interesses enraizados

    nas prticas autoritrias.

    O TOPA tem muito forte essa

    questo da incluso social, []

    da alfabetizao inicial em uma

    perspectiva de letramento, mas

    o letramento para alm daquele

    texto que est escrito, o letra-

    mento de uma nova vivncia den-

    tro do que o mundo. Em uma

    concepo muito ampla de texto,

    podemos dizer que o mundo

    um texto que precisa ser lido.

    Essa perspectiva de alfabetizao

    popular , em muitos sentidos,

    libertria. Alm da questo da

    aquisio da leitura e da escrita,

    desse letramento oficial, desse

    pontap do letramento de textos

    escritos, eu acredito que o ganho

    para as pessoas que passam pelo

    curso realmente muito grande.

    (TUPINIQUIM, 2014, p. 1)

    Em todas essas questes e prticas

    acima apontadas, pulsa permanente-

    mente um conjunto de importantes

    mobilizaes e articulaes sociais,

    relacionadas com as propostas de

    reformas de base, bem como com as

    campanhas de alfabetizao por meio

    do uso da Educao Popular, que se

    difundiam principalmente por todo o

    Nordeste brasileiro no perodo pr-64.

    A bem da verdade, as diferentes formas

    e modalidades de mobilizao e luta

    popular sempre foram de fundamen-

    tal importncia para a formalizao e

    implementao dos inmeros direitos

    que foram sendo conquistados ao longo

    do processo histrico da modernidade:

    desde os econmicos e trabalhistas,

    que tiveram nos sindicatos e partidos

    polticos os seus principais agentes

    protagonistas, at os civis e culturais,

    elaborados pelos diversos movimentos

    que vieram a se constituir com muita

    fora a partir da dcada de 1960 em

    todo o mundo ocidental, ressaltan-

    do-se, para exemplo, o dos negros,

    dos LGBTs, das mulheres, ambiental

    etc. Essas mobilizaes, articulaes e

    movimentos, sociais e populares, repre-

    sentaram desde sempre um conjunto

    de prticas e instrumentos decisivos

    para se pensar e implementar outras

    formas e modalidades de experincia

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 232 04/11/2014 20:39:27

  • 233

    democrtica, relacionadas com as dimenses dos direitos como

    objetivos, do poder popular como mtodo, e do protagonismo

    do sujeito de sua prpria histria como fundamento de um

    conjunto de outros valores. Esse sempre foi um frtil terreno

    para o enraizamento de prticas democrticas no cotidiano,

    e em outras esferas da vida, sociais, econmicas e culturais.

    Como ilustrao, podemos observar, nesses anos de 2013 e

    2014 no Brasil, dois movimentos sociais fortemente caracterizados

    pelo sentido da articulao social, despontando como atores po-

    lticos de grande peso no cenrio urbano de grandes metrpoles:

    o Movimento pelo Passe Livre, que questiona a precificao e o

    pesado custo que deve ser pago para o exerccio constitucional da

    liberdade de ir e vir; e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto,

    que se constri com base em uma demanda que se torna cada

    dia mais dramtica

    e potencialmen-

    te explosiva, por

    conta sobretudo

    da especulao

    imobiliria e a mer-

    cantilizao neo-

    liberal do direito

    constitucional

    moradia digna.

    Nesse cenrio

    contemporneo

    da mobilizao

    social, um aspec-

    to importante chama a ateno e merece ser observado, qual

    seja, a diversificao das suas formas de organizao. Se con-

    siderarmos as lutas sociais do sculo XIX e primeira metade do

    XX, vamos perceber a posio central e quase exclusiva que foi

    ocupada pelos sindicatos e partidos polticos nas diferentes

    lutas desenvolvidas para a proposio e defesa dos direitos

    dos trabalhadores. Grosso modo, a partir da segunda metade

    do sculo XX, o que se v o surgimento e o desenvolvimento

    de outras modalidades de organizao e luta, representadas

    Por muito tempo, os alunos se achavam refns das

    outras pessoas e o TOPA deu mais autonomia a

    eles. Hoje lutam pelos seus direitos e no tem mais

    aquela coisa da pessoa s ouvir. Hoje tem a mesma

    condio de ouvir, dizer e lutar tambm pelos seus

    direitos, e com isso muitas portas foram abertas.

    Joo Aparecido Ramos da Costa. Associao dos

    Remanescentes de Quilombos da Comunidade

    Olho Dgua do Meio, Municpio de Brumado.

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 233 04/11/2014 20:39:27

  • 234

    sobretudo pelos movimentos sociais, que progressivamente

    vo organizando a atuao poltica de setores cada vez mais

    expressivos da classe trabalhadora, bem como de expressando

    e fazendo valer suas demandas.

    As mobilizaes e articulaes sociais e populares continuam

    presentes e atuantes. Suas formas mais frequentes e comuns,

    no entanto, deixaram de ser exclusivamente os sindicatos e

    partidos, e passaram a ser, com cada vez mais fora, os movi-

    mentos sociais. So esses movimentos que tm demonstrado

    uma grande capacidade para organizar segmentos da classe

    trabalhadora que as formas tradicionais no conseguem mais

    atingir ou cativar, e isso em razo das suas caractersticas mais

    frequentes de organizao territorial, mobilizao por deman-

    das temticas e maior grau de informalidade. Essa capacidade,

    na verdade, ao longo das ltimas dcadas, tem enfrentado

    desafios e dificuldades similares s que passaram os partidos

    polticos, o que acarreta um grande risco para essas formas

    mais atuais de mobilizao popular e exerccio mais abrangente

    das prticas democrticas e projetos transformadores da nossa

    realidade social:

    Educandos (as) do

    TOPA visitam a Asso-

    ciao de Moradores

    do Bairro Vila Nova,

    em Pinda, Direc

    30 - Guanambi, em 7

    de agosto de 2013

    Arquivo TOPA

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 234 04/11/2014 20:39:29

  • 235

    [] Alm disso, o ativismo se profissionalizou. Em vrios

    pases do Ocidente, movimentos sociais se burocratiza-

    ram, se converteram em partido, se empresariaram ou

    assumiram a prestao de servios estatais. Assim se

    esmaeceu a aurola de inovao poltica que traziam

    desde os anos 1970 (ALONSO, 2014, p. 74).

    3. O TOPA como espao e ferramenta da mobilizao social

    Essas questes colocam imensas dificuldades para a concepo

    e execuo das polticas pblicas de participao e controle

    social, bem como para os diversos programas pblicos que se

    articulam com movimentos e entidades sociais e populares,

    como, por exemplo, os de oramento participativo e o prprio

    programa do TOPA. Um dos principais reside na necessidade

    de separar poltica e conceitualmente a mobilizao social da

    mobilizao popular, reconhecendo e respeitando as formas

    autnomas e independentes de organizao e luta direta de

    diferentes entidades e movimentos, que muitas vezes preferem

    no se vincular a espaos de participao do poder pblico, a

    no ser eventualmente:

    Aqui o grande desafio relacionar e fazer dialogar,

    no interesse das polticas pblicas emancipatrias e dos

    seus temas e pautas de luta, a Participao Social e a Par-

    ticipao Popular, respeitando e garantindo a autonomia

    e a independncia das formas de organizao popular,

    superando os riscos de cooptao, subordinao, frag-

    mentao e dissoluo das lutas populares. (GADOTTI,

    2014a, p. 3)

    Diante do quadro traado do comeo at agora, devemos

    ressaltar algumas ponderaes e desafios que so estratgi-

    cos, pensados j dentro de um conjunto de demarcaes que

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 235 04/11/2014 20:39:30

  • 236

    traam as relaes entre o Programa TOPA e a sua articulao

    com os movimentos sociais.

    Para comear, o reconhecimento de que os movimentos so-

    ciais e as entidades comunitrias e sindicais assumem cada vez

    mais o legado e a responsabilidade de tocar adiante as lutas dos

    trabalhadores, para o conhecimento, defesa e implementao

    dos seus direitos. No contexto dessas lutas e dessas formas de

    mobilizao, a alfabetizao de jovens, adultos e idosos continua

    servindo como ferramenta para a construo de conscincia e

    prticas crticas, no contexto das realidades locais, regionais

    e outras mais abrangentes. Nesse sentido, ilustramos com

    o exemplo da Associao dos Pequenos Agricultores da

    Boa Vista, na cidade de Valena (BA). Essa associao, que

    se inscreveu para a premiao Cosme de Farias na sua quarta

    etapa (2010-2011), apresentou um relato das suas finalidades

    comunitrias, do qual ressaltamos o seguinte trecho:

    Nesse relato

    simples e direto,

    podemos identi-

    ficar importantes

    pontos em comum

    com o que est

    descrito e preco-

    nizado na Pedago-

    gia do oprimido, de

    Paulo Freire, que

    tambm, em larga

    medida, serviu-se

    das experincias

    de alfabetizao

    no campo, embora

    no necessariamente essa obra tenha sido estudada pelos pro-

    tagonistas desse relato. Desses pontos em comum, destacamos

    o diagnstico coletivo das carncias objetivas e subjetivas da

    comunidade de trabalhadores (de infraestrutura, polticas pbli-

    cas e conhecimento de direitos), a constituio de uma entidade

    como forma de organizao coletiva para agir contra essas

    A entidade surgiu a partir das necessidades

    e carncias da comunidade Boa Vista, em

    uma localidade que necessitava de tudo. Os

    trabalhadores desconheciam seus prprios direitos,

    da junto com a comunidade surgiu a ideia

    de fundarmos a entidade. Hoje a Boa Vista j

    tem escola, energia, agente de sade, promove

    cursos para os trabalhadores dentro e fora da

    comunidade, participa da agricultura familiar.

    Hoje as famlias j conhecem os seus direitos.

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 236 04/11/2014 20:39:32

  • 237

    O TOPA NA COMUNIDADE

    A gente realizou vrios projetos no decorrer do TOPA. Organizamos uma feira de

    sade, onde tivemos vrios profissionais, com os alfabetizandos e a comunidade

    fazendo perguntas e consultas, no contexto da realidade deles. Tivemos o projeto

    do meio ambiente, em que o tcnico da EBDA (Empresa Baiana de Desenvolvimento

    Agrcola) falou sobre o cuidar da plantas e da natureza. [] Tivemos o stand do

    TOPA, onde os alfabetizadores

    puderam expor e apresentar

    seus trabalhos. Tivemos sade

    bucal, em que dois dentistas

    fizeram aplicao de flor.

    Tambm tivemos a presena

    de funcionrios do Banco do

    Nordeste para esclarecer d-

    vidas e do sindicato rural para

    falar sobre o direito da terra,

    o direito do trabalhador rural,

    sua aposentadoria, alm de

    um stand de vacinao para a

    comunidade. Atade Moura

    Ribeiro - Associao de mo-

    radores de Tocos III, Municpio

    de Governador Mangabeira.

    Foto 1: Dra. Ana Conceio aplica

    flor na escova de educanda do

    TOPA, que est se preparando

    para escovar os dentes durante

    a palestra sobre higiene bucal

    realizada na turma Meio de

    Campo, em setembro de 2010

    Foto 2: Stand sobre higiene bucal

    montado na Feira da Sade, ao

    realizada pelo TOPA para integrar

    e conscientizar a comunidade local,

    Direc 32 - Cruz das Almas, 2 etapa

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 237 04/11/2014 20:39:38

  • 238

    carncias, os resultados concretos que vo aparecendo com essa

    nova prxis comunitria, e a importncia central, estratgica,

    que atribuda aos trabalhos de formao e qualificao dos

    trabalhadores. Quanto a esse ltimo ponto, o conhecimento

    crtico dos direitos no contexto de uma articulao coletiva

    corresponde a uma mudana de prticas e realidades, e, na

    dimenso desse trabalho, a alfabetizao de jovens, adultos

    e idosos no poderia ser inserida, como ferramenta, sem ser

    encharcada dessa intencionalidade.

    Outro ponto importante que precisamos destacar, e que na-

    turalmente se relaciona com o anterior, focando entretanto de

    um modo mais especfico em um dos seus aspectos, o quanto

    os projetos de alfabetizao de jovens, adultos e idosos, quando

    inseridos no contexto de uma entidade que luta pelos direitos dos

    trabalhadores de determinada localidade, acaba servindo como

    instrumento metodolgico de Leitura do Mundo, aprofundando

    a reflexo crtica sobre as caractersticas particulares de uma

    regio e ampliando o prprio interesse de participao nas ati-

    vidades pedaggicas. o que relata, por exemplo, a Associao

    Comunitria dos Pequenos Produtores Rurais da Comunida-

    de de Morrinhos,

    no municpio de

    Brumado (BA), e

    que tambm se

    inscreveu para a

    premiao Cos-

    me de Farias na

    sua quarta etapa

    (2010-2011):

    Tambm dese-

    jamos destacar o

    quanto as entida-

    des locais de luta

    pelos direitos dos

    trabalhadores, fa-

    zendo uso de uma poltica pblica voltada para superao do

    analfabetismo, pode servir como ponte para a articulao e

    Em relao Educao de Jovens e Adultos, a

    Entidade tem sido privilegiada, uma vez que

    cerca de 10 dos scios tiveram a oportunidade

    de estudar atravs do Programa TOPA. As

    atividades desenvolvidas durante o Programa

    foram todas voltadas para a realidade de vida

    dos alfabetizandos, tais como: agricultura,

    pecuria, meio ambiente e a cultura local,

    uma forma que conquistou a ateno da

    turma, j que so assuntos de interesse deles.

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 238 04/11/2014 20:39:38

  • 239

    implementao de um conjunto de outras polticas pblicas

    garantidoras de direitos, constituindo, desse modo, um novo

    ponto de articulao da rede intersetorial de proteo social.

    o que podemos depreender do relato apresentado pela Asso-

    ciao dos Moradores do Guaibim - Deus Fiel, na cidade de

    Guaibim - Valena (BA), que tambm participou da premiao

    Cosme de Farias na sua quarta etapa (2010-2011):

    Os trs exem-

    plos apontados

    acima caracteri-

    zam e definem

    possibi l idades

    de uso e apro-

    veitamento do

    Programa TOPA

    pelas entidades

    e associaes de

    diferentes regies,

    no contexto das

    suas lutas pela

    efetivao dos

    direitos dos tra-

    balhadores. Essa

    , na verdade,

    apenas uma das

    vias da processu-

    alidade do progra-

    ma TOPA. A outra

    via definida pelo

    modo como o po-

    der pblico se relaciona e articula com essas entidades, quais

    so os aprendizados e as mudanas efetivadas pelo governo,

    quais os conhecimentos acumulados dessa relao com as

    comunidades organizadas.

    Podemos vislumbrar as potencialidades viabilizadas pela

    Secretaria da Educao do Estado da Bahia nesse sentido,

    por meio dos encontros estaduais com as entidades. Assim,

    Ajudamos nas documentaes pessoais e carteira

    de marisqueiras, pescador, e continuamos na luta

    junto com o TOPA (Todos pela Alfabetizao)

    contra o analfabetismo. Criamos dentro da

    comunidade uma biblioteca comunitria em

    parceria com alunos da UNEB, e disponibilizamos

    espaos para o funcionamento das turmas

    do TOPA. Ajudamos no material didtico,

    pequenos lanches e palestras de incentivo para

    eles no desistirem do programa. Com parceria

    do Programa TOPA ajudamos muitos em

    cirurgias de catarata, exames oftalmolgicos

    com direito a culos, e participamos de mutires

    de sade. Alm disso, j tivemos na nossa

    comunidade vrios cursos profissionalizantes

    com a ajuda da Secretaria de Promoo Social.

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 239 04/11/2014 20:39:38

  • 240

    no Primeiro Encontro com Entidades e Prefeituras Parceiras

    do TOPA 2009,1promovido pela Direc 32, entre os pontos da

    pauta consta um momento dedicado ao Relato de Experincias

    Exitosas - TOPA 2008, quando ento se tem a possibilidade

    de fazer a escuta dos diferentes modos como o programa

    tem servido para alcanar suas finalidades, permitindo os

    ajustes necessrios. 2

    J no III Encontro Estadual dos Representantes dos Movi-

    mentos Sociais e Sindicais - Escuta Aberta, organizado pela Se-

    cretaria da Educao

    do Estado da Bahia,

    nos dias 3 e 4 de maio

    de 2011, lideranas

    de 38 das 41 entida-

    des que aderiram ao

    TOPA se encontraram

    com o governo. Nessa

    oportunidade,

    Esse exemplo nos

    mostra a preocupa-

    o relacionada de

    proporcionar encon-

    tros formativos com

    as entidades e movi-

    mentos parceiros do

    Programa TOPA, ao mesmo tempo que o uso do debate em

    grupos, que permite a escuta das realidades e caractersticas

    particulares de cada entidade e localidade.

    J no IV Encontro Estadual Escuta Aberta, que ocorreu no dia

    13 de novembro de 2012, em Salvador (BA), podemos verificar a

    participao expressiva de 350 representantes de movimentos

    sociais e sindicatos de todo o Estado.

    1 Disponvel em: Acesso em: 4 jul. 2014.

    2 Disponvel em: Acesso em: 4 jul. 2014.

    Alm de apresentaes culturais e palestras

    sobre a importncia da participao dos

    movimentos sociais e sindicais na construo

    de polticas pblicas de alfabetizao no

    programa de Educao de Jovens e Adultos

    (EJA), os presentes participaram de oficinas

    para esta 4a etapa. A supervisora do TOPA

    na Direc 2, Valdeci Mamona, coordenou um

    desses grupos de trabalho que debateu sobre o

    tema Participao dos Movimentos Sociais no

    TOPA: Avanos, Desafios e Possibilidades.2

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 240 04/11/2014 20:39:39

  • 241

    Esses so bons exemplos que ajudam a elaborar algumas

    concluses sobre as caractersticas mais expressivas da relao

    que o Programa TOPA tem construdo com as entidades, movi-

    mentos sociais e sindicatos, e que podem

    ser resumidas nos seguintes tpicos:3

    1) Escuta aberta e relato de experincias, que

    proporcionam o conhecimento sobre como

    o Programa TOPA tem sido implementado

    concretamente e quais as consequncias

    particulares que se desdobram no con-

    texto de realidades distintas, o que ajuda

    a enriquecer o saber sobre as diferentes

    intencionalidades locais nas quais se insere,

    bem como elaborar as possibilidades formais

    da sua adaptao aos diferentes contextos.

    Esses momentos tambm se apresentam

    como oportunidades propcias para uma

    troca de experincias das entidades e movi-

    mentos entre si, fortalecendo e melhorando

    3 Disponvel em: Acesso em: 7 jul. 2014.

    Essa Escuta Aberta, a quarta

    que estamos realizando

    desde que o programa foi

    implantado pelo Governo

    do Estado, um momento

    muito importante de

    dialogar e construir as aes

    do programa com os nossos

    parceiros dos movimentos

    sociais e sindical. Francisca

    Elenir, coordenadora

    estadual do TOPA3

    Informativo do V En-

    contro de Estadual de

    Escuta Aberta, realizado

    no Centro Administra-

    tivo da Bahia (CAB),

    em Salvador no dia 30

    de outubro de 2013

    Div

    ulga

    o

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 241 04/11/2014 20:39:42

  • 242

    reciprocamente as aes que so implementadas em cada lo-

    calidade, e compartilhando um saber que vai se tornando cada

    vez mais comum e espalhado pelo territrio estadual.

    2) Por meio de oficinas, grupos de debate e outras atividades

    formativas, a explorao pedaggica das possibilidades de

    criao, nos encontros regionais e estaduais, de espaos de

    formao sobre os movimentos sociais, atividades sindicais

    e partidrias, participao social, cidadania e protagonismo

    etc., que so de suma importncia para a elaborao poltica

    e ideolgica de lideranas comunitrias, fortalecendo os pos-

    tulados da cidadania ativa, do pensamento crtico e da prtica

    transformadora.

    3) Avaliao dialogada e processual de cada uma das etapas do

    programa, momento esse que sempre estratgico para fazer

    o balano coletivo e crtico dos avanos e das dificuldades do

    programa, incorporando as propostas e apontamentos dos

    movimentos e entidades que implementam efetivamente o

    TOPA em diferentes localidades.

    4. Por uma Poltica Nacional de Participao Social

    Do ponto de vista da mobilizao e articulao social, que

    o que aqui nos interessa, esse processo determinou todo um

    conjunto de possibilidades e desafios. Duas grandes possibi-

    lidades, que se afirmaram com muita fora nos ltimos anos,

    expressaram-se no Pacto Nacional pela Participao Social e

    no Marco Referencial da Educao Popular. As propostas b-

    sicas se definem pelas expectativas de ampliar e fortalecer os

    espaos e mecanismos da participao social na elaborao e

    implementao das polticas pblicas, nos trs nveis da estru-

    tura federativa, o que configura, oficialmente, uma proposta

    de fortalecimento de um mtodo complementar de governo e

    gesto pblica, e os objetivos de fazer uso da concepo e da

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 242 04/11/2014 20:39:43

  • 243

    Agroecologia e associativismo

    A agroecologia, cincia que tem sua origem na dcada de 1970, valoriza o

    conhecimento agrcola tradicional e procura sistematiz-lo, favorecendo sua

    perpetuao. Apresenta-se como uma forma de resistncia contra a monocul-

    tura em larga escala, valorizando o desenvolvimento da agricultura familiar e

    o associativismo.

    Em maio de 2014, a cidade de Juazeiro (BA) acolheu o III Encontro Nacional de

    Agroecologia (ENA), cujo tema foi Cuidar da Terra, Alimentar a Sade e Cultivar

    o Futuro. Ao final do evento os cerca de 2100 participantes, em sua maioria

    agricultores familiares, camponeses, extrativistas, indgenas, quilombolas,

    pescadores artesanais, ribeirinhos, faxinalenses, agricultores urbanos, gerai-

    zeiros, sertanejos, vazanteiros, quebradeiras de coco, caatingueiros, criadores

    em fundos de pasto e seringueiros, produziram um documento que traduz o

    momento atual da agroecologia no Brasil. Nele, afirmam que o Encontro produ-

    ziu claras evidncias da abrangncia nacional que assume hoje a agroecologia,

    sendo referncia para a construo de caminhos alternativos aos padres de

    desenvolvimento rural impostos pelo agronegcio. Registram que dezenas de

    milhares de trabalhadores e trabalhadoras do campo incorporaram a proposta

    agroecolgica como caminho para a revalorizao do diversificado patrimnio

    de saberes e prticas de gesto social dos bens comuns e de reafirmao do

    papel da produo de base

    familiar como provedora de

    alimentos para a sociedade.

    Considerando a capila-

    ridade do Programa TOPA

    e sua forte presena nas

    reas rurais, este prestou,

    por meio das suas aes de

    alfabetizao, importante

    contribuio ao desenvolvi-

    mento de polticas agrcolas

    comprometidas com os fun-

    damentos da agroecologia.

    Atividade em grupo na ocasio do

    III Encontro Nacional de Agroecologia

    (ENA), em maio de 2014

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 243 04/11/2014 20:39:47

  • 244

    metodologia da Educao Popular como ferramenta pedaggica

    a ser usada no interior das polticas pblicas, para viabilizar o

    conhecimento das diferentes localidades e seus saberes es-

    pecficos, elaborar conscincia crtica e caminhar rumo a uma

    prxis transformadora, com intencionalidade.

    A disputa central da democracia brasileira hoje est se dando

    no campo da participao social. Trata-se de um processo de

    qualificao da democracia, diante de uma democracia formal

    que proclama direitos que no os atente. Ampliar a cidadania

    um dever de uma sociedade que quer avanar. O Decreto n

    8.243, de 23 de maio de 2014, que instituiu a Poltica Nacional de

    Participao Social e o Sistema Nacional de Participao Social,

    organiza e consolida o que j existe e avana na proposta de

    que outras esferas, alm do governo federal, adotem a parti-

    cipao como mtodo de governo, aderindo a essa poltica.

    Entretanto houve uma reao raivosa das elites na mdia e

    no Congresso. um sinal de que vamos ter que enfrentar defi-

    nitivamente a batalha pela democracia participativa, um direito

    constitucional e humano. As elites no toleram mais avanos

    nas polticas sociais. A batalha est ligada umbilicalmente

    outra: a reforma poltica. Sem ela o capital continuar dando

    as cartas, aprovando no Congresso as leis que o beneficiam em

    detrimento da justia social e da superao das desigualdades.

    Lanamento do Pacto pela Educao

    Todos pela Escola, no Instituto Ansio

    Teixeira, na cidade de Salvador, em 28 de

    abril de 2011. Segundo o secretrio Os-

    valdo Barreto: O governo ir se respon-

    sabilizar pelo fornecimento de todo ma-

    terial pedaggico para a alfabetizao,

    capacitao e metodologia de avaliao

    medida que os municpios se integrem

    ao pacto (Trecho de reportagem publi-

    cada em 29 de abril de 2011 em: )

    Manu Dias /GOVBA

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 244 04/11/2014 20:39:51

  • 245

    A nosso ver, um dos grandes desafios estruturais que se apre-

    sentam, cotejando as caractersticas apontadas e as possibilidades

    desenhadas, reside na contradio de lgicas distintas que se

    confrontam na relao que se estabelece entre ambas. No centro

    desse conflito, as diversas polticas e

    programas pblicos, como o TOPA, que

    operam com a mobilizao e articulao

    social, no podem fechar os olhos para

    esse dilema, nem deixar de falar a seu

    respeito, principalmente considerando

    que o curso natural desse desenvolvi-

    mento costuma ser o do predomnio

    do interesse privado e corporativo, dos

    sacrifcios exigidos pela governabilidade,

    e da cooptao e acomodamento de

    lideranas populares e comunitrias.

    Tambm no podemos deixar de

    apontar o contexto poltico e ideolgico

    das entidades, movimentos e sujeitos que

    vo fazer uso do TOPA, e que muitas ve-

    zes podem demandar um trabalho espe-

    cfico de interveno e qualificao das

    intenes e dos procedimentos, para

    que a alfabetizao de jovens, adultos

    e idosos no perca a sua expectativa de

    servir como ferramenta para a constru-

    o de conscincia e prtica crticas. o

    tipo de desafio que podemos discernir

    no relato apresentado por um bolsista,

    do municpio de Teixeira de Freitas (BA),

    que participou da premiao Cosme de

    Farias na sua terceira etapa (2009-2010), por conta do trabalho

    desenvolvido em um presdio masculino no especificado:

    A educao de jovens e adultos, em suas modalidades de

    educao emancipadora, sempre se constituiu em importante

    instrumento das lutas por direitos da classe trabalhadora.

    Continuar esse legado no pode ser uma declarao de prin-

    cpios: s pode ser o resultado de um trabalho do dia a dia.

    O projeto supracitado tem facilitado

    ao presidirio um conhecimento

    tcnico que possa lhe proporcionar

    uma nova fonte de renda, uma

    vez que muitos deles no recebem

    visitas de familiares e carecem

    de comprar alguns produtos de

    higiene pessoal, e quando sarem do

    presdio se reintegrarem ao mercado

    de trabalho, tem contribudo

    para a elevao da autoestima do

    detento, pois o trabalho dignifica

    o homem, a terapia ocupacional

    com os cursos aplicados

    ocupam a mente dos alunos,

    proporcionando condies de

    construo de novos conhecimentos

    e gerando assim esperana de

    reintegrao sociedade.

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 245 04/11/2014 20:39:53

  • 246

    O TOPA, o local e o global

    O Programa TOPA desenvolvido, em sua essncia, na pers-

    pectiva da mobilizao e articulao social, do exerccio

    de cidadania ativa, da participao social e da participao

    popular. Participao social compreendida como aquela

    que se d por meio da atuao em espaos de participao

    j consolidados, como sindicatos, conselhos, associaes e

    grmios, por exemplo. J a participao popular ganha corpo

    por meio de movimentos que nascem de iniciativas de pessoas

    com interesses comuns, como marchas, fruns de discusso,

    manifestaes de diferentes segmentos em defesa de seus

    direitos, entre outras.

    Para Paulo Freire, a politizao algo inerente ao ato

    educativo. Uma vez lido o mundo e construdas coletivamen-

    te interpretaes da prpria realidade, preciso construir

    comprometimento com a sua transformao em algo melhor

    para todos e todas. A pedagogia deve estar comprometida

    com a cidadania ativa, tendo a tica como referncia para a

    construo da democracia. Nesse sentido, pode-se dizer que

    alfabetizao de adultos e participao social e popular de-

    vem caminhar juntas. Desafio este abraado pelo Programa

    Todos pela Alfabetizao.

    As parcerias estabelecidas entre o TOPA e organizaes da

    sociedade civil espalhadas pelos 27 Territrios de Identidade

    existentes no estado da Bahia contriburam com a formao

    de equipes de educadores/as das diferentes instituies,

    ampliaram a visibilidade destas em suas regies de atua-

    o, provocaram a partilha de experincias e favoreceram o

    dilogo entre organizaes de vrias regies, inspirando e

    potencializando a realizao de novas aes educativas de

    natureza semelhante. Nessa perspectiva, possvel afirmar

    que o Programa ampliou os horizontes de seus participantes

    no que se refere ao exerccio de cidadania.

    O Brasil tem compartilhado sua experincia na rea de

    educao popular de jovens e adultos em encontros inter-

    nacionais como o Frum Social Mundial, o Frum Mundial de

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 246 04/11/2014 20:39:54

  • 247

    Educao e tambm em Encontros Internacionais do Frum

    Paulo Freire. So iniciativas que buscam articular mltiplas

    aes em torno da construo de novas realidades, de modo

    que no se percam no isolamento, que se alimentem umas

    s outras e que produzam um movimento que possibilite sua

    expanso para alm dos territrios onde so realizadas. F-

    runs mundiais estimulam o dilogo entre ONGs e movimentos

    sociais, gerando um novo tipo de cidadania, favorecendo a

    ampliao de saberes e transformao de prticas que tm

    como referncia a construo de um presente e um futuro

    melhores.

    Nessa perspectiva, pode-se dizer que as referencialida-

    des construdas pelo TOPA para combate ao analfabetismo

    ultrapassam as fronteiras do estado da Bahia, indo alm das

    fronteiras do pas.

    A coordenadora do Programa Todos pela Educao, Fran-

    cisca Elenir Alves, compartilhou a experincia desenvolvida

    na Bahia com educadores de diversos lugares do mundo

    durante o IX Encontro Internacional do Frum Paulo Freire,

    realizado em Turim - Itlia, de 17 a 20 de setembro de 2014.

    Metodologia, desafios e resultados do processo desenvolvi-

    do no Brasil foram apresentados em um Crculo de Cultura

    que reuniu outros trabalhos feitos na Itlia, Mxico, Estados

    Unidos e Frana, todos relacionados ao tema Educar para

    emancipar em contextos de desigualdade e vulnerabilidade.

    Francisca Elenir

    Alves durante o IX

    Encontro Interna-

    cional do Frum

    Paulo Freire, em

    setembro de 2014

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 247 04/11/2014 20:39:57

  • Alberto Coutinho/ GOVBA

    Arq

    uivo

    TO

    PA

    Arq

    uivo

    TO

    PA

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 248 04/11/2014 20:40:03

  • 249

    Ao observarmos a realidade vivida nas diferentes regies do

    estado da Bahia, deparamo-nos com uma mltipla e valiosa

    diversidade cultural, e, ao mesmo tempo, com a urgncia de

    polticas pblicas que viabilizem o acesso de mulheres e homens

    adultos, idosos e idosas, jovens e crianas, a direitos bsicos

    historicamente negados. Um deles, a educao. A Bahia abriga

    a maior populao de no alfabetizados/as, em nmeros abso-

    lutos, entre as 27 unidades federativas do Pas.

    Conforme citado anteriormente, cerca de 1.700.000 habitantes

    do territrio baiano, com idade igual ou superior a 15 anos, so

    analfabetos (Censo de 2010 - IBGE, 2011). Aproximadamente 34%

    dos habitantes do estado nesta faixa etria so considerados

    analfabetos funcionais, no conseguindo entender o que leem

    e nem elaborar um enunciado curto sobre um assunto genrico,

    por falta de acesso escolarizao formal ou por distores

    no processo educativo do qual participaram. Cerca de 16% da

    populao total do estado foi privada de seu direito educao.

    So comunidades remanescentes de quilombos, comunidades

    indgenas e ciganas, populaes ribeirinhas, assentados por pro-

    gramas de reforma agrria, pescadores, catadores de materiais

    reciclveis, extrativistas, profissionais do sexo, entre outros

    grupos com especificidades que necessitam ser reconhecidas

    e valorizadas no momento de enfrentamento do desafio de

    incluir todos e todas em um amplo processo de alfabetizao.

    Mas no basta alfabetizar. No basta atender ao desejo

    de escrever o nome, como dizem muitos dos que procuram

    os programas de alfabetizao. preciso desenvolver um

    Lugares diferentes, solues diferentes

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 249 04/11/2014 20:40:06

  • 250

    processo de alfabetizao, junto com os/as educandos/as,

    que possibilite conscientizao, politizao e emancipao. Que

    contribua para a transformao de todos/as os/as envolvidos/

    as no processo de aprendizagem e produza resultados tambm

    nos territrios onde vivem.

    1. Trata-se de um sonho? Utopia?

    Vem sendo uma das conotaes fortes do discurso

    neoliberal e de sua prtica educativa no Brasil e fora

    dele a recusa sistemtica ao sonho e utopia, o que sa-

    crifi ca necessariamente a esperana. A propalada morte

    do sonho e da utopia, que ameaa a vida da esperana,

    termina por despolitizar a prtica educativa, ferindo a

    prpria natureza humana. A morte do sonho e da uto-

    pia, prolongamento consequente da morte da Histria,

    implica a imobilizao da Histria na reduo do futuro

    permanncia do presente. O presente vitorioso do

    neoliberalismo o futuro a que nos adaptaremos. Ao

    mesmo tempo em que este discurso fala da morte do

    sonho e da utopia e desproblematiza o futuro, se afi rma

    como um discurso fatalista. [...] Nenhuma realidade

    assim porque assim tem de ser. Est sendo assim porque

    interesses fortes de quem tem poder a fazem assim.

    (FREIRE, 2000, p. 58)

    Crculo de Cultura na comunidade

    Quilombola Olhos Dgua do Meio,

    Direc 19 - Brumado, em 2010Acervo IPF

    _Book-MIOLO-TOPA.indb 250 04/11/2014 20:40:12

  • 251

    Transformar a realidade exige vontade poltica, compromisso

    com a tica e com a justia, e coragem. A carncia e as deficincias

    educacionais esto intimamente relacionadas condio socioe-

    conmica das famlias e limitam sua insero e permanncia no

    mundo do trabalho, comprometem o exerccio da cidadania e as

    tornam vulnerveis discriminao e segregao.

    Uma das consequncias mais imediatas do analfabetismo e

    das lacunas no processo de escolarizao, resultantes do pro-

    cesso histrico ao qual a populao foi submetida, a restrio

    de acesso/permanncia no mundo do trabalho, cada vez mais

    exigente quanto formao e qualificao profissional dos tra-

    balhadores. Tal restrio implica na ausncia ou insuficincia de

    renda e, por conseguinte, na incluso destas pessoas no grupo

    marcado pela pobreza ou pobreza extrema. De acordo com a

    pesquisa do Ipea (BRASIL, 2011), em 2009, os analfabetos eram

    maioria entre os desempregados e em situao de extrema

    pobreza. poca, o desemprego atingiu 9,3% da populao

    baiana ativa, e a taxa de analfabetismo entre pessoas com 15

    anos ou mais era de 16,7%.

    Conforme o Ipea (2011), apesar da existncia de polticas

    pbl